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PIBID
LEITURA E ESCRITA: PRINCÍPIOS
NATURAIS DO GOSTO E DO DESGOSTO1
C. Ferrarezi Jr.
0. Introdução
Há doze anos ganhei um pequeno livro2 de presente.
Nele, encontrei implícita uma das mais interessantes
perguntas de minha vida como professor, pergunta esta
que me vem perseguindo desde então, sem resposta,
fervilhante dentro de mim, repetida milhares de vezes aos
meus alunos e colegas: sem resposta. Intrigou-me o fato de
que o próprio livro em que encontrei a pergunta não me
1 Este texto é a versão de divulgação científica dos resultados de um trabalho realizado por uma equipe multidisciplinar de doze profissionais, entre os anos de1995 e 1998, com cerca de duas mil crianças de Educação Básica. Nele, a preocupação é muito mais com a necessidade de divulgação das ideias para leitores de todas as áreas e níveis, do que com preciosismos técnicos e terminológicos. 2 Trata-se da pequena, mas muito significativa obra: Lilian L.M. da SILVA (1986). A Escolarização do Leitor: A Didática da Destruição da Leitura. Porto Alegre: Mercado Aberto.
ofereceu uma resposta que me satisfizesse. E, desde então,
penso em uma resposta para tão aguçada questão. Creio que
agora, passados doze anos de pensar constante, cheguei a uma
conclusão que me satisfaz. Não tenho, é claro, a pretensão de que
minhas ideias a esse respeito satisfaçam a todos os meus
leitores, porque eu mesmo não me satisfiz com o que encontrei
no livro que li, mas, a mim me satisfaz esta resposta que hoje
tenho. Por isso quero compartilhá-la com aqueles que ensinam a
Língua Portuguesa nas escolas de todos os graus, como eu, há
quinze anos, o faço. Mas, afinal, que pergunta é esta capaz de
fazer um professor pensar doze anos para poder respondê-la e
qual a natureza da resposta que encontrei para ela? Ei-las: por
que razão o maior anseio de nossas crianças, o que mais querem
na vida antes de entrar na escola, que é aprender a ler e a
escrever, logo nos primeiros contatos com a realidade escolar
transforma-se em aversão ou apatia para com a leitura e a
escrita? Ou, em uma formulação mais simples: como algo que se
ama e se deseja transforma-se em algo que se odeia ou, no
mínimo, não se dá valor? Tal pergunta não mereceria uma
solução que não fosse fundamentada nos princípios naturais da
vida dos organismos chamados humanos. É esta resposta em
forma de princípios naturais que esboço neste artigo: uma
abordagem que demonstra como a escola atua com as crianças
nas suas primeiras experiências da vida estudantil e quais as
reações naturais desenvolvidas pelas crianças - tanto as
chamadas “bons alunos”, quanto as chamadas “maus alunos”.
Ainda, precisamos ver que espécie de resquícios essas respostas
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naturais das crianças deixam para o restante da sua vida
estudantil.
Entretanto, para poder esboçar uma resposta de tal
forma abrangente, penso ser necessário deter-se nas
soluções encontradas nos livros e artigos que abordam o
assunto. As que mais comumente tenho encontrado para
esta pergunta na bibliografia são as seguintes:
1. por uma confluência de fatores;
2. porque a criança é obrigada a ler;
3. porque as leituras não são adequadas às crianças;
4. porque as crianças não compreendem o que leem.
Quero comentar e refutar uma a uma destas
respostas só com base na minha experiência como professor
de Língua Portuguesa. E digo refutar, porque todas essas
respostas têm uma falha comum que tem feito os
professores gastarem seu precioso tempo em atividades
erradas, baseadas em uma concepção equivocada do
problema. Esse erro de concepção está no fato de que essas
respostas comuns propõem que o problema do desgosto
das crianças pela leitura e pela escrita podem ser resolvidos
com atividades superficiais, com a excitação momentânea
de uma técnica elaborada de redação em classe ou de
leitura em grupo, por exemplo. As ideias de que os livros
são ruins, os textos inadequados, os professores não são
suficientemente dedicados, são parte desse rol de ideias
equivocadas que têm como fundamento a hipótese de que
se pode resolver o problema do desgosto das crianças pela
leitura e pela escrita com atividades superficiais, porque é
igualmente comum que se considere equivocadamente que a
causa desse problema é superficial. O problema é mais profundo,
porém. As causas desse desgosto estão localizadas em um nível
mais profundo da psique infantil, nível não alcançado por uma
excitação momentânea. Vejamos.
A leitura e a escrita são tecnologias. Logo, trata-se de algo
artificialmente elaborado pelo ser humano para facilitar (ou
dificultar?...) sua existência aqui. A leitura e a escrita são
culturais e não potenciais, como a fala e a audição. Ora, se assim
o são, ler e escrever são habilidades e não capacidades.
Entretanto, embora o ser humano moderno tenha se tornado um
homem de letras, ele continua sendo um organismo vivo. Suas
reações aos elementos externos continuam obedecendo aos
princípios naturais que vêm regendo sua existência desde a
origem. É assim que nosso organismo e nossa mente reagem a
um televisor ligado hoje como reagiriam se o televisor tivesse
sido inventado há vinte séculos: organicamente. Da mesma
forma, reagimos organicamente a um microondas, a um telefone
celular, a uma viagem interplanetária. Simplesmente, porque
continuamos sendo organismos vivos e submetidos às regras
naturais que regem esses organismos. No caso específico do ser
humano, deve-se acrescentar toda uma complexidade
psicológica vagamente conhecida, que complica as coisas na
educação. Não que os animais não possuam essa complexidade
psicológica; nós somente não temos respostas satisfatórias para
dar sobre a psicologia animal. As respostas sobre a psicologia
humana, porém, são bem mais elaboradas e serão muito úteis
para entendermos o que ocorre com as crianças com relação à
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leitura e à escrita. É sobre o que conhecemos do
funcionamento natural do organismo vivo chamado
homem, portanto - tanto quanto à sua dimensão física,
quanto no que se refere à sua dimensão psicoemocional -
que fundamento minha resposta. Creio que somente uma
resposta que explique o processo do ponto de vista de suas
bases naturais pode dar conta de resolver o problema.
A hipótese em que me baseio para formular tal
resposta natural é bastante simples, e pode ser dividida em
três fases de elaboração:
1. uma vez que a leitura e a escrita são atividades
culturais - portanto não naturais - do ser humano, mas,
como todas as demais atividades externas, desenvolvem
reações naturais, precisamos identificar que tipos de
reações são essas e em que ordem se encadeiam;
2. identificadas as reações naturais na criança e em
que ordem ocorrem, torna-se necessário identificar as
seqüelas que estas reações trazem ao desenvolvimento do
gosto pela leitura e pela escrita;
3. identificadas tais seqüelas, precisamos reverter o
processo natural construído pela escola, provocando
reações naturais contrárias às que causaram os problemas
nas crianças para, assim, resolvê-los. Em outras palavras: a
escola percorre um caminho com as crianças que resulta,
normalmente, em um profundo desgosto pela leitura e pela
escrita; proponho que percorramos o caminho inverso,
desfazendo esse desgosto e criando o gosto por essas
tecnologias.
Mas, primeiro, como disse, devemos passar pelas
respostas costumeiras. Vamos a isto.
1. Uma confluência de fatores
Este é o típico caso de resposta que não ajuda muito. Seria
melhor dizer simplesmente “porque sim”. Mas, de qualquer
forma, encontramos isso como explicação para o desgosto das
crianças pela leitura em muitos compêndios sobre o tema. O que
me parece significativo é que a impossibilidade direta de
identificar quais são esses fatores e de que forma agem na
criança para fazê-la odiar a leitura e a escrita é a “mãe” desta
resposta evasiva.
Ao dizer apenas “muitas coisas”, coloco em um mesmo
balaio tudo o que acontece na escola, inclusive as coisas boas que
a escola têm feito com as crianças. Há uma tendência das novas
correntes de pensamento bastante semelhante aos ciclos de
“negação da negação” das escolas literárias. Uma nova corrente
surge e, quase que por obrigação, inicia o trabalho de negação do
valor e das conquistas da escola anterior, quase sempre através
da ridicularização do trabalho anterior. Há um grande perigo
nisso. E esse perigo está calcado no fato de que, ao negar a
experiência passada, negamos as possibilidades de aprender com
ela.
Uma ilustração bastante comum do que quis dizer no
parágrafo anterior é a criação que alguns pais querem dar a seus
filhos. Eles sempre começam com a mesma história de que
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“querem dar a seus filhos aquilo que não tiveram, não vão
bater em seus filhos porque não gostavam de apanhar, não
vão colocar seus filhos para trabalhar porque tiveram que
trabalhar quando adolescentes” e daí para frente. O que
estes pais não enxergam é que se, hoje, eles são cidadãos
conscientes, trabalhadores, produtivos e participativos na
sociedade em que vivem, se construíram algum
patrimônio, se não têm medo do trabalho, tudo isso é
porque foram criados da forma que foram. Quando esses
pais, simplesmente para negar a educação que tiveram dos
próprios pais, estabelecem novas formas de criação
baseadas em pura negação aleatória de princípios, negam
concomitantemente aos seus filhos as oportunidades que
eles mesmos, enquanto crianças, tiveram, e que fizeram
deles o que são. O mesmo se vê na educação.
Não sou favorável à violência na escola, mas não
posso negar que muitos grandes homens foram educados
neste país na época da palmatória e do milho atrás da
porta. Alguma coisa havia na educação daquela época que
fazia desses homens grandes pessoas, gente de
responsabilidade, grandes pensadores. Talvez eles
desenvolvessem o cérebro pensando em uma forma de
livrar-se da palmatória e do milho... Mas, de qualquer
forma, em alguns aspectos, a educação tradicional possuía
atributos que não se deveriam ter perdido no tempo.
Deveriam, sim, ter sido aproveitados nas correntes
pedagógicas posteriores, ao invés de ser simplesmente
negados. E cito um desses aspectos que muito me
agradava: o ensino artístico. Lembro-me bem das minhas aulas
de primário (e não se vão lá tantos anos...): nós cantávamos,
éramos ensinados pelas professoras a gostar da música em suas
diversas modalidades, sabíamos os hinos pátrios e os
treinávamos com regularidade. Também cantávamos uma
grande diversidade de músicas folclóricas e, periodicamente,
havia apresentações de canto na escola. E hoje? Há alguns anos
não ouço uma criança de escola pública cantar o Hino à Bandeira
ou alguma canção folclórica. Por que o princípio de ensino da
arte depauperou-se tanto? Simples negação? Já ouvi quem
dissesse que os hinos pátrios não deveriam ser ensinados na
escola porque isso era reminiscência do período militar! Será que
essa avaliação ideológica está mesmo correta? Tenho para mim
que não.
Quando simplesmente digo que nossas crianças não
gostam de ler e de escrever por uma confluência de fatores e não
sou capaz de identificá-los com precisão, jogo muita coisa boa no
lixo. Conoto, com essa resposta, que há muito mais coisa errada
do que realmente há nas escolas brasileiras. A constante crítica
pedagógica às escolas nacionais nas duas últimas décadas
desenvolveu nos professores e na comunidade uma concepção
catastrófica de nossa escola. Mas essa concepção não é
verdadeira. Nossa escola erra, como todas as escolas do mundo
erram - é só isso! Nossa escola não é a “calamidade” idealizada
por Darcy Ribeiro, nem “a doença social” pregada por alguns
pedagogos interacionistas. Muita coisa boa tem sido feita nas
escolas brasileiras desde sempre. Não posso, portanto, acreditar
em uma resposta de tal forma vácua, que se contenta em dizer “a
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criança não gosta de ler por muitos fatores”. Gostaria,
portanto, de tirar duas conclusões dessas considerações,
conclusões que nos ajudarão a construir a resposta que
necessitamos. São elas:
a. a tradição não é execrável somente por ser
tradição; há muita sabedoria na educação e na moral
tradicionais, sabedoria que deveria ser melhor aproveitada
pela educação atual;
b. nossa escola, nossos professores, nossas
concepções educacionais não são tão ruins como são
pintadas; a escola brasileira não é tão ruim como é descrita;
nossa prática necessita de melhoras, mas isso não é
privilégio da educação nacional: ocorre em todo o mundo.
2. A criança é obrigada a ler
Esta resposta é um desenvolvimento da invariante
pedagógica de Freinet: “A criança e o adulto não gostam de
imposições autoritárias”3 que, a despeito de ter belo efeito
sonoro-pedagógico, é meio perigosa. Primeiro, porque “a
criança e o adulto”, isto é, “todos” constitui-se em um
universo grande demais. Há, sim, quem por suas
peculiaridades de personalidade goste de “imposições
3 Essa e as demais Invariantes Pedagógicas de Freinet podem ser lidas em: Rosa Maria W.F. SAMPAIO. (1989). Freinet: Evolução Histórica e Atualidades. Série Pensamento e Ação no Magistério, no 2, São Paulo: Scipione.
autoritárias”. Segundo, porque não se explicita bem o que são
essas tais “imposições autoritárias” na escola.
Desenvolvamos algumas considerações sobre essas
imposições. O que a escola impõe? O que ela não impõe? Por
exemplo, o horário do recreio é imposto ou a criança escolhe a
que hora ela sai da classe para a merenda e as brincadeiras? Mas,
nem por isso, me consta ter ouvido reclamações sobre o horário
do recreio, exceto aquelas que se referiam à sua pequena
duração. O conteúdo ministrado, o regime disciplinar, o sistema
de notas, as classes em que se estuda, as carteiras que se tem, o
uniforme da escola, tudo são imposições autoritárias! E, se não
são unanimidade, não são, por outro lado, odiados por todos.
Há uma infinidade de crianças que amam vestir seu uniforme
cheiroso e bem passado todas as manhãs (quando isso é
possível), que adoram tirar uma boa nota, que gostam de suas
classes e, até, ajudam a lavá-las, pintá-las, enfeitá-las. Há muitas
que se orgulham da disciplina rígida de sua escola, mesmo
sabendo que tal disciplina tolhe muitas de suas ações. Onde está
o efeito devastador da obrigatoriedade aí?
Não me parece que o fato seja exatamente a
obrigatoriedade do fazer, mas o reconhecimento da inutilidade
da obrigatoriedade. Parece-me que não gostamos de fazer
obrigados algo que percebemos inútil. E aí o sábio Freinet acerta
em sua invariante “ninguém gosta de trabalhar sem objetivo.”4
Mas, aquilo que sabemos útil, não o fazemos obrigados;
ao contrário, nos auto-obrigamos a fazê-lo. Poderíamos nos
4 Idem.
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perguntar pertinentemente que espécie de princípios regem
isto que se chama imposição. Os princípios são os mesmos
que regem todos os organismos vivos: manutenção e
perpetuação. Todos os seres vivos - todos mesmo, sem
exceção - quando em seu estado normal, obedecem a esses
dois princípios vitais.
O primeiro princípio é o da manutenção e dita que o
ser vivo deve fazer tudo o que estiver a seu alcance para
manter-se vivo pelo maior espaço de tempo possível.
Nenhum ser vivo em seu estado normal aceita a morte com
naturalidade. O ser humano, em sua complexidade
psicológica, reconhece que sua manutenção depende de
mais do que somente sua condição orgânica. O ser humano
reconhece a importância do psicoemocional e do social e
sabe muito bem que enormes prejuízos podem ser
acarretados ao organismo se tais dimensões não forem
devidamente cultivadas. A manutenção para o ser humano,
portanto, é mais do que alimentar-se, exercitar-se e
repousar.
O segundo princípio é o da perpetuação ou da
reprodução. Todos os seres vivos reconhecem
instintivamente a necessidade de perpetuar seus genes
através das diversas maneiras naturais de multiplicação das
espécies: algumas de forma sexuada, outras de forma
assexuada. Mas, sem exceção, de um ser unicelular a um
ser humano, todos são obrigados a obedecer à necessidade
natural de reproduzir-se.
Muito bem, tudo o que se refere à manutenção (no caso do
ser humano, no mais amplo conceito da palavra) e à perpetuação
é aceito como natural pelos organismos vivos. As ações que se
identificam de alguma forma com um desses dois princípios
citados são consideradas sempre naturais e, consequentemente,
poderão ter utilidade aos olhos do organismo. Quando uma
criança ou um adulto veem alguma relação com sua manutenção
ou sua reprodução em qualquer atividade que seja, autoimpor-
se-ão essa ação. Assim é que comemos, dormimos, nos mexemos,
conversamos, etc., considerando essas ações naturais e
necessárias, porque nelas enxergamos utilidade para nossa
manutenção e para nossa reprodução. Quando um ser humano
enxerga nitidamente essa utilidade, ele fará dessas atividades
consideradas necessárias, possivelmente, atividades prazerosas.
O prazer em qualquer atividade nasce da autoimposição do
organismo para tal atividade. Mas quando, por qualquer razão, o
ser humano perde seu equilíbrio e deixa de ver utilidade nas
ações que normalmente lhe seriam naturais, então ele passa a
desrespeitar os princípios naturais da manutenção e da
reprodução; deixa, então, de comer, de dormir, de exercitar-se,
enfim, passa a um estágio que pode ser considerado doentio,
porque desrespeitoso à natureza dos organismos vivos.
Assim, o problema com uma atividade proposta a uma
criança na escola estará simplesmente no fato de que esta criança
poderá não ver nela uma utilidade real para sua manutenção ou
sua reprodução, mas nunca no fato de que essa atividade é
obrigatória ou não. Aliás, a imposição autoritária é uma
necessidade da escola e de todos os demais organismos sociais.
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Isto sim me parece significativo: a imposição autoritária é
necessária ao desenvolvimento do trabalho escolar, mesmo
porque sem autoridade não há organização que se
mantenha. O próprio Freinet reconheceu, em outra
invariante, que “a ordem e a disciplina são necessárias na
aula.”5. E considero claro que a ordem e a disciplina só se
estabelecem se há liderança, autoridade em sala. Não falo
de um autoritarismo cego e ditatorial, mas de autoridade e
liderança da parte do professor. Então, como dizia, não está
na imposição autoritária o problema, mas no fato de que,
muitas vezes, não se vê razão plausível para a imposição.
Vejamos um exemplo corriqueiro disso. Alguns
adolescentes não gostam de limpar seus quartos (quando os
têm), mas o fazem; resmungando, mas o fazem. Já tive
oportunidade de perguntar a vários deles o que pensavam
de limpar o quarto. Disseram-me, sem exceção, que era
uma chatice, que a mãe só pedia para que limpassem seus
quartos na hora errada, mas que o faziam porque era preciso,
porque reconheciam a necessidade disso. Mas, uma vez, tive a
oportunidade de conversar com um adolescente que via na
sujeira de seu quarto a melhor forma de protestar contra a
separação de seus pais. Limpar o quarto era uma imposição
que, para ele, além de não ter razão de ser, feria suas razões
mais íntimas! Ele odiava limpar o quarto; amava sujá-lo e
desordená-lo. Até que engraçou-se por uma menina da
escola, daquelas direitinhas, arrumadinhas... Em poucos
5 Ibidem.
dias, sua mãe mo relatou, inaugurou-se uma nova ala em casa: a
ala da limpeza e da arrumação. Agora havia uma razão para
aceitar a imposição da mãe. A imposição deixou de ser uma
imposição externa, passando a ser autoimposição. Quando
reconhecemos o valor de uma ação, impomos autoritariamente a
nós mesmos sua execução, modificamos nossos hábitos, nosso
padrão e cronograma de vida, e aceitamos como natural do dia-
a-dia ter que fazer algo que nos parecia, antes, inútil.
Nunca perguntei a uma criança se ela considerava
importante ler e escrever e ouvi a resposta não. Parece uma
unanimidade cultural o fato de que a leitura e a escrita são
habilidades importantes, necessárias ao cotidiano de uma pessoa
inserida em uma sociedade moderna e democrática. Qualquer
criança reconhece isso. Muito mais significativo do que isso,
porém, é o fato de que a criança ingressante deseja tanto
aprender a ler e a escrever que a leitura e a escrita são já para ela
uma autoimposição. A criança quer, e por várias razões:
a. ela vê os outros lendo e escrevendo, e sente uma
necessidade imitativa, quase biológica, de poder fazer o mesmo;
b. ela já reconhece o valor que se dá à leitura e à escrita em
nossa sociedade, porque já é cobrada pelos pais quanto à isso:
“meu filho já vai pra escola aprender a ler e a escrever...e o papai
vai ficar contente quando isso acontecer”;
c. ela sente falta das habilidades de leitura e de escrita no
dia-a-dia, porque é cercada pela língua escrita por todos os
lados, desde uma simples figurinha de chiclete até as legendas
de um desenho animado estrangeiro.
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Enfim, por essas e por outras razões facilmente
enumeráveis a criança em idade de alfabetizar-se reconhece
que a leitura e a escrita, na sociedade em que ela está
inserida, são uma necessidade que responde diretamente
aos princípios de manutenção e de reprodução e, assim, a
criança autoimpõe-se a alfabetização. Não se trata de uma
imposição autoritária da escola o fato de que ela vai ter que
aprender a ler e a escrever. Mas, então, por que ouvimos
respostas de crianças já na terceira ou na quarta séries, do
tipo: “só leio se a tia me obriga”, “não gosto mais de ler e só
leio se vale nota” ? Parece claro que a autoimposição já foi
aí destruída. Os alunos já experimentaram a causa de
destruição da vontade de ler e escrever. O problema não
está na imposição que se faz, mas no fato de que já se
perdeu, no processo escolar, a razão dessa imposição.
Assim, não posso crer que a obrigação de leitura
destrua o gosto de ler. Pelo menos, não na maioria das
crianças. Há algo que ocorre paralelamente à imposição que
a transforma em algo tão detestável. Não posso, portanto,
concordar com essa resposta também. Para finalizar este
subtítulo, vamos às conclusões que podemos retirar dele:
a. a alfabetização para a criança, na fase propícia de
entrada na escola, é uma autoimposição, pois a criança
reconhece que a leitura e a escrita são necessárias à sua
manutenção e, quem sabe, até à sua reprodução no mundo
moderno;
b. como a criança reconhece a importância da leitura
nessa fase, é bastante provável que seja o procedimento da
própria escola, logo nos primeiros dias de vida escolar, o que faz
com que a criança deixe de reconhecer na leitura e na escrita o
seu valor intrínseco para a própria manutenção na sociedade.
3. As leituras não são adequadas às crianças
Creio que posso começar minhas considerações sobre esta
resposta tão comum com a pergunta “o que é ser adequado, em
se tratando de leitura?”. Será que as crianças só gostam de ler
aqueles livrecos, alguns realmente ridículos, com uma frase por
página e um monte de ilustrações psicodélicas? Lembro-me de
minha experiência de quatro anos atuando em sala de leitura de
uma escola pública. Repetidas vezes vi crianças de quarta e de
quinta séries procurando nas estantes esse tipo de livrecos de
iniciação à leitura (se é que servem para isso...). Reiteradas vezes
perguntei-lhes porque escolhiam esses livros, se gostavam deles.
Invariavelmente a resposta era “Não... pegamos estes porque
não gostamos de ler e estes têm menos coisas para ler.”.
Parece-me um crasso engano considerar que as crianças
gostam desse tipo de livros porque são coloridos ou porque são
escritos com grandes letras. Há uns poucos dias minha esposa,
entrevistando alguns alunos de primeira série primária,
encontrou um menino que relatou sua leitura preferida: jornal.
Imediatamente lembrei-me de um primo que tinha o mesmo
hábito, quando estava na primeira série primária: era assíduo
leitor das páginas de esporte de O Estado de São Paulo. Lembro-
me perfeitamente que ele vasculhava aquele montão de cadernos
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diários da assinatura de seu pai (que sempre ficava bem
feliz com a arrumação do menino...) até encontrar as duas
ou três folhas diárias de futebol, que eram prontamente
devoradas. Será que O Estado de São Paulo, ou outro jornal
qualquer, é uma leitura visualizada como propícia para as
crianças em alfabetização por alguém que argumenta que a
causa da aversão das crianças pela leitura está na
adequação? Creio que não.
Onde está a adequação pretendida em uma leitura?
Os livros infantis que temos visto apontam para algumas
respostas contestáveis...
a. na cor das letras? E, desde quando, a cor das letras
faz diferença no sistema alfabético?;
b. no tamanho das letras? Só se a criança tem
problemas de visão...;
c. nas ilustrações? Por que as crianças judias
ortodoxas não se irritam, então, com a sucessão de folhas e
mais folhas da Septuaginta, sem uma única ilustraçãozinha
sequer? Quem não se lembra dos primeiros livros de
Monteiro Lobato, com uma figura em preto-e-branco a cada
dez páginas? E eram lidos muito mais do que hoje o são os
ilustradíssimos livros infantis!
Que efeito, podemos nos perguntar, tem uma
ilustração sobre uma criança? A mesma que tem sobre um
adulto, certamente. Se a criança souber ler, a ilustração
propiciará prazer estético tanto como ao adulto; se não
souber ler, tanto a criança quanto o adulto tentarão “ler” a
história nas ilustrações. E nada mais. As ilustrações de um
livro não levam ninguém a gostar de ler. No máximo, o levam a
gostar de folhear os livros atrás de novas e coloridas figuras;
d. nos formatos? Bem, os exemplos dos dois meninos que
amavam os jornais, parece, são suficientes para derrubar essa
hipótese. Quer coisa mais incômoda de se ler do que jornal? Cai
para os lados, é ruim de dobrar, é grande demais para segurar
aberto, enfim... é jornal!
Onde, então, está a adequação de uma leitura?
Obviamente no que se busca encontrar nela. E os alunos
alfabetizandos não querem encontrar na leitura cores, desenhos e
formatos, simplesmente porque não precisam da escola para
isso. Ver figuras e inventar histórias, ver as belas cores de uma
impressão cuidadosa e perceber a praticidade que um bolsilivro
oferece são coisas que a criança já sabe quando chega na escola.
O que ela quer é poder encontrar o conteúdo do que está escrito.
Logo, podemos concluir que a adequação, pelo menos no que
concerne à leitura, é uma característica residente na relação entre
o conteúdo expresso e o desejo do leitor. Uma foto é inadequada
para a criança não pelo papel em que ela é impressa ou pela
qualidade de suas cores, mas pelo conteúdo que ela carrega.
Adequado à leitura é um texto que responde diretamente aos
anseios dos leitores, mesmo que esses anseios não sejam
legitimados pela cultura. Lembro-me de um jovem que resolveu
que queria ler O Exorcista. Começou e não conseguiu mais parar
até que acabou. A experiência foi extremamente desagradável e
custou-lhe muitos dias subsequentes de sono. Mas ele não
passou a detestar a leitura depois dessa experiência. Isto porque
ele criou condições adequadoras para sua leitura e reconheceu,
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depois, que o problema estava na incompatibilidade
existente entre ele e aquilo a que se houvera proposto a ler.
Ele reconheceu uma incompatibilidade de conteúdo,
embora tenha lido, entendido e desgostado da experiência.
Mas, como ele criou condições adequadoras para sua
própria leitura (isto é, como considerou que,
independentemente da quantidade de páginas, da cor das
letras, da inexistência de figuras ou do formato do livro ele
poderia gostar do que iria ler) ele conseguiu ler e,
independentemente da péssima experiência com aquele
livro, esta não afetou seu gosto pela leitura.
Com as crianças ocorre o mesmo fenômeno. Quando
uma criança se depara com um livro com ilustrações
psicodélicas e um texto que é pura bobice, ela não desgosta
do ato de ler, ela desgosta do livro. Assim, muitos alunos
detestam a leitura escolar, mas gostam de ler aquilo que se
adequa aos seus anseios. Ainda, há aqueles que leem aquilo
que, pensam, poderá fazer-lhes bem. Não é por outra
razão que se multiplicam os chamados livros de autoajuda:
é porque grande número de pessoas crê que, nesses dias de
grande competição, os “autoajudados” têm mais chances de
ser felizes em suas empreitadas. Veja-se, portanto, que
uma pessoa que gosta de ler procura aquilo que seja
adequado a ela, ou, que ela presume adequar-se a seus
anseios e necessidades. Ninguém que goste de ler deixará
de fazê-lo por ler um ou dois ou muitos livros ruins, assim
como ninguém que gosta de ir ao cinema deixará de fazê-lo
depois de decepcionar-se com um filme aclamado pela crítica
especializada.
A inadequação dos textos escolares, portanto, não explica
porque muitas crianças - a maioria delas, diga-se de passagem -
não procuram outras leituras fora da escola. Este fator não é
suficiente para impor-se como causa da aversão que muitas
criança sentem pela leitura dentro e fora da escola. Esta outra
resposta, então, eu também não posso aceitar, justamente pela
conclusão que apresentei acima sobre o que considero ser
adequação.
4. As crianças não compreendem o que leem
De todas as que tenho visto, esta é a mais ideologicamente
marcada das respostas. Ela pressupõe uma burrice natural do
gênero infantil, que se dissipa ao longo do tempo, com o
aprendizado. Isso, obviamente, não é verdade. A relação entre o
conteúdo expresso e os anseios e necessidades do leitor, a que
me referi anteriormente, merece atenção quanto a esses “anseios
e necessidades”. Um dos fatores mais importantes no
desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita, como já
muito bem o clarificaram Piaget e seus seguidores6 , é a fase de
maturidade do ser. Os adultos também não compreendem certas
coisas que leem e, não por isso, deixam de gostar de ler. Muitos
desistem de certas leituras por não achar-se capazes de
6 Dentre esses seguidores das ideias de Piaget, cumpre ressaltar Emília Ferrero e sua teoria da psicogênese da língua escrita.
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compreendê-las, mas não desistem do ato de ler. Conheço
alguns cristãos que não se atrevem a incursões
apocalípticas, mas não deixam, de forma alguma, de ler a
Bíblia. Passam horas viajando nas histórias do Velho
Testamento e nos Salmos; gostam dos Provérbios e das
poesias dos Cânticos de Salomão e das Lamentações de
Jeremias. Mas o Apocalipse está lá, no canto dele... e o
hábito de leitura firmando-se cada vez mais!
A incompreensão de algo que se leia nunca
constituiu obstáculo para que se procurasse outro algo para
ler. O que não posso crer é que as crianças não
compreendam nada do que leem. Certa vez, fui procurado
por uma professora alfabetizadora que me perguntava
sobre a incompreensão, da parte das crianças, de textos
considerados banais pela professora. Então, ela chamou um
dos alunos considerados mais espertos de sua sala e deu
um texto que dizia algo como “Tito é dono do cão Totó”. A
professora pediu que o aluno lesse o texto, o que ele fez
muito bem. Então ela perguntou ao aluno: “O que Tito
tem?”, ao que ele respondeu, depois de pensar alguns
segundos, “Não sei...”. A professora, desesperada, virou-se
para mim e disse: “Viu professor, que inteligência? Como é
que eu vou alfabetizar isso? E não é só ele não, porque esse
é dos bons... o senhor precisa ver os outros.” A esta altura,
o menino estava quase para chorar. Eu virei para ele e
perguntei se ele não tinha entendido que o Tito tinha um
cachorro e que esse cachorro chamava Totó. Ele respondeu
exatamente isso: “Isso eu entendi, mas eu pensei que a
professora tinha me chamado aqui para perguntar uma coisa
mais difícil...”
O problema do aluno estava exatamente no nível de sua
compreensão: era maior do que a da professora... Ele havia
compreendido não só o que havia lido, mas também que a
pergunta feita pela professora era tão óbvia, tão inadequada para
o que ele, como aluno, esperava da escola, que acreditou que
algo mais complexo e mais inteligente deveria ser respondido.
Como ele não possuía essa resposta mais complexa, contentou-se
com um singelo e sincero “não sei”. Muitas vezes, a escola perde
grandes oportunidades de desenvolver habilidades importantes
em seus alunos pela presunção da incapacidade das crianças. A
ideologia do “ser inacabado, sem vontade e sem inteligência”
perpetua-se nas escolas ao lado da ideologia da “folha em
branco” a ser escrita pelo professor. Isso se reflete em uma
pergunta de tamanha “dificuldade” para uma criança normal de
sete anos: “com base em João tem um cão, responda: o que João
tem?”. Ora, fico sinceramente perguntando-me se nossas
crianças precisam ir para a escola para aprender esse nível de
coisas.
Mas, muito mais importante do que isso, é considerar que
nesta fase a criança ainda está formando seus complexos
psicológicos, complexos que a acompanharão por toda a vida. Se
considerarmos que uma criança de seis ou sete anos
recentemente resolveu (ou não...) seu complexo de Édipo ou de
Electra, que ainda vive as transições da infância e da
socialização que se inicia, poderemos ter uma leve medida do
que significará para ela as primeiras experiências escolares. O
12
complexo psicológico que se formará com relação à escola,
a partir da própria experiência escolar, acompanhará a
criança provavelmente pelo restante de sua vida. Está aí a
explicação de porque um jovem de segundo grau ainda
conserva as mesmas dificuldades, com relação ao seu trato
com a escola, que possuía quando estava no ensino
fundamental. Ou seja, embora a criança cresça e evolua em
relação às suas concepções de vida e sociedade, a menos
que seja trabalhada especificamente para redimensionar
suas ideias com respeito à escola e suas atividades, ela
mudará apenas superficialmente sua visão dos fatos
escolares e somente o fará nas frequentes fases de curta
excitação que a escola tem se esmerado em propiciar, como
no período de uma atividade de redação com motivação
audiovisual ou de leitura em salas especiais. A mesma
escola que foi responsável por formar na criança uma
concepção de inutilidade e, mais do que isso, de
prejudicidade com relação à leitura e à escrita, deverá
trabalhar a criança para reverter tais concepções. É o que
chamei anteriormente de trabalhar na via inversa, de
reconstruir as concepções da criança profundamente.
Assim sendo, sinto muito, mas esta resposta de que as
crianças não entendem o que leem também não me
convence.
5. Enxergando no meio da fumaça
Durante os doze anos em que procurei uma resposta para
a pergunta que apresentei no início desta conversa, não consegui
encontrar muito mais do que essas respostas que contestei até
aqui. Vi, isso sim, muita lenha sendo queimada entre
professores, pais e alunos em uma fogueira de acusações mútuas
que gera uma fumaça muito intensa, que não ajuda muito a
encontrar uma resposta mais interessante para uma questão tão
crucial. Creio porém, que é possível encontrar uma causa mais
central, mais essencial para esta aversão das nossas crianças para
com a leitura e a escrita. O próximo passo nesse sentido será o de
juntar as características dessa causa já descobertas em nossa
discussão até aqui. São elas:
a. trata-se de um fenômeno que ocorre com a grande
maioria das crianças nas escolas brasileiras. Portanto, não pode
ter relação com idiossincrasias das crianças. Entretanto, é
possível que se relacione a peculiaridades da infância;
b. trata-se de um fenômeno que ocorre muito cedo na vida
escolar; provavelmente, logo no primeiro semestre da primeira
série primária;
c. não se trata de nada relacionado à natureza ou outras
características dos livros e demais leituras escolhidas. Portanto,
aponta-se para a possibilidade de que este fenômeno assustador
resida na forma como este material é tratado nas escolas;
d. entretanto, no que concerne à forma de tratamento da
leitura e da escrita, não podemos atribuir às imposições escolares
13
tal fenômeno, pois, como vimos, nesta fase da vida escolar a
leitura e a escrita são uma autoimposição da criança;
e. finalmente, sabemos que esse fenômeno tem a
característica de transformar um objeto de desejo em algo
desprezado.
Creio que essas características colhidas ao longo de
nossa conversa poderão ajudar-nos a encontrar uma
resposta. E quero abordar essa resposta começando com
uma pequena história ilustrativa. É através dessa parábola
que pretendo apresentar a conclusão a que cheguei. Vamos
a ela:
Imagine-se no lugar de Maria. Maria é uma
apaixonada das joias. Seu maior desejo é possuir um anel
com um enorme diamante solitário que aponte seu brilho
para o céu, a partir do dedo de Maria, é claro. Maria fala
disso para todo mundo: “Ah! se eu tivesse dinheiro... ah!
meu solitário...” Um dia seu chefe, um grande industrial,
entra na sala de Maria e a pega absorta, com uma revista da
alta sociedade nas mãos. Na página aberta, um anúncio de
uma grande joalheria com a fotografia de um belíssimo
solitário, cujo preço é totalmente impeditivo para Maria.
Talvez, se ela trabalhasse oitenta e sete anos - sem comer,
sem morar e sem vestir! - ela conseguisse pagar a tal joia. O
chefe dá uma “bronquinha” amiga em Maria, por estar
ocupando o tempo de serviço com aquilo e sai. No dia
seguinte, Maria é convidada para jantar com o chefe, que é
solteiro e, reconhecidamente um conquistador. Ela aceita e,
durante o jantar, ele tira uma caixinha preta do bolso: o tal
solitário da tal joalheria da tal revista... o tal dos sonhos de
Maria. Ela, entusiasmada, faz um charminho, mas... aceita diante
da afirmação do patrão de que o anel nada mais é do que um
direito dela, uma espécie de reconhecimento por dez anos de
secretariado fiel e eficiente. Ao deixá-la em casa, a primeira frase
destoante: “Olha Maria, se algum dia você quiser agradecer-me
por esse presente, você sabe onde eu moro...” Nos dias que se
passaram, Maria começou a ouvir coisas estranhas dos colegas a
cada vez que ousava usar o anel no trabalho ou em alguma
reunião da firma. Algumas semanas depois, tentou pedir um
aumento ao chefe e ouviu que até poderia receber o aumento se
o chefe já não tivesse gastado tanto com aquele anel... As
cobranças por uma retribuição sexual de Maria, feitas pelo chefe,
por causa do anel, começaram a intensificar-se. Dois meses se
passaram e Maria já não usava mais o anel. Mais um mês e ela o
devolveu ao chefe, que, é claro, o aceitou de volta, devido ao seu
grande valor na conquista de outras Marias.
O que ocorreu na relação entre Maria e seu anel? Maria
percebeu, no decorrer de todo o processo, que aquilo que ela
mais desejava havia se tornado um objeto contra ela. Maria não
projetou diretamente seu ódio nos colegas, os quais ela conhecia
há anos e com os quais convivia muito bem antes do anel. Maria
também não ousou projetar seu ódio no chefe, embora tenha
ficado chateada com ele muitas vezes. Ela considerava que a
atitude dele era normal para um homem solteiro e endinheirado:
pelo menos era o que a sociedade dizia desse tipo de homem.
Restou a Maria, então, projetar sua raiva na novidade, no objeto
novo que tinha mudado sua vida para pior, porque, a despeito
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de ser um objeto de desejo, era agora usado contra ela. E o
que era pior, o objeto de seu desejo, que antes Maria
considerava um meio de adquirir a felicidade, era agora um
fim em si mesmo: ele estava lá, e contra ela, sem que ela
soubesse o que fazer com ele para ser feliz. Mais do que
isso, Maria, agora, achava-se uma idiota por ter aceitado o
presente do chefe. A culpa, no fundo, para ela, era dela
mesma.
Algo análogo acontece com nossas crianças na
primeira série. Ao entrar na escola primária, nossas
crianças desejam o conhecimento da leitura e da escrita
como Maria desejava seu anel solitário. As crianças fingem
que sabem ler, brincam de professor e aluno, criam
histórias a partir de figuras, são bem falantes, em sua
maioria. No fundo, as crianças acreditam que a leitura e a
escrita serão instrumentos úteis para a consecução de
conquistas que pertencem a um mundo diferente do seu,
portanto misterioso e excitante: “o mundo das pessoas
inteligentes”, como as crianças sempre ouviram seus pais
falarem. O primeiro grande erro que a escola comete é
transformar o meio em fim.
A escola tem, tradicionalmente, transformado a
concepção infantil de leitura e escrita em algo tenebroso,
porque sem objetivos. Aquilo que deveria ser um meio, ou
seja, que deveria ser utilizado para aprender e para
comunicar - porque isso é ler e escrever: ler é poder
compreender um conteúdo codificado por alguém e
escrever é poder codificar um conteúdo que se quer
transmitir - passa a ser encarado como um fim em si mesmo.
Assim, a criança deve aprender a ler para aprender a ler; a
escrever, a criança aprende “porque sim”. No máximo, a escola
ensina que quem sabe ler e escrever é mais inteligente, mas
também não explica muito bem como isso de ser mais inteligente
acontece, nem exatamente o que significa isso. Mas, por si só, a
transformação do meio em um fim ensimesmado não me parece
suficiente para fazer com que as crianças passem a ter aversão
pela leitura e pela escrita. O que me parece mais significativo, é
que a escola usa a leitura e a escrita, já desde os primeiros dias, contra
a criança. Por causa da leitura e da escrita, a criança é
ridicularizada na frente de seus pares, por estes mesmos e pelo
professor. Por não aprender a leitura e a escrita, que agora são o
próprio objeto final, e não mais um meio de alcançar algo novo, a
criança é constantemente ameaçada de reprovação e de todos os
castigos impingidos por causa da reprovação: é a bicicleta que
não se vai mais ganhar, a surra que se vai levar, a vergonha que
se vai passar. Esta tortura estende-se por todo um ano, mas já
inicia nos primeiros dias de aula! Ou seja, aquilo que a criança
mais desejava passa a ser duas coisas, concomitantemente: o que
de novo aconteceu em sua vida e a razão da maioria de seus
males também novos. É natural que, assim como fez nossa amiga
Maria, a criança projete na leitura e na escrita toda sua aversão.
Afinal, seus colegas sofrem a mesma vida junto com ela e a
professora... bem, uma professora deve ser isso mesmo, senão
não estaria lá dando aula. O raciocínio da criança é muito
simples e bastante lógico: depois que essas tais de leitura e
escrita entraram na minha vida, eu só me dano. Então, o jeito é
15
tê-las perto o mínimo de tempo possível. E é o que
efetivamente acontece.
No outro lado da história, estão umas poucas
crianças que conseguem dominar rapidamente o sistema de
leitura e de escrita. Essas são, nas entrevistas, aquelas que
dizem que amam ler e escrever. São as bem falantes da
classe e as que, efetivamente, leem mais e escrevem mais.
Estas têm a leitura e a escrita a seu favor: recebem elogios
constantemente, ganham presentes, recebem dose
redobrada de carinho em casa, em função de seu sucesso
escolar, têm uma bicicleta guardada no saco do Papai Noel.
Parece claro que toda vez que um objeto de nosso
desejo é usado contra nós, nós passamos a ter aversão a ele.
O desejo e a aversão são sentimentos limítrofes. Passar de
um a outro é um pequeno passo, como é pequeno o passo
de passar do ódio para o amor e vice-versa. A criança
percebe, desde muito cedo na escola, que a leitura e a
escrita que a professora ensina são poderosas armas
utilizadas contra ela, armas que poderão fazer ruir toda sua
vida infantil, acarretando uma sucessão de humilhações e
de perdas jamais sentidas antes por ela. Por sentir muito
cedo na vida escolar que a leitura e a escrita são usadas
contra elas, as crianças passam, também muito cedo na vida
escolar, a ter aversão por ler e escrever. Isto pode acontecer
já no segundo ou terceiro mês de aulas de alfabetização.
E, por que as crianças não dizem isto claramente?
Mas elas dizem! Dizem através de seus atos inequívocos
com relação à leitura e à escrita. Mais do que isso, elas
dizem em dezenas de depoimentos como “se eu tivesse
aprendido a ler, teria ganhado uma bicicleta... mas não é culpa
da tia, é culpa minha mesmo”, que estamos cansados de ouvir.
Afinal, todos em nossa sociedade reconhecem que a leitura e a
escrita são importantes! Como falar mal de ler e escrever? Parece
impossível para as crianças, como parecia impossível a Maria
afirmar que era infeliz porque agora tinha um solitário de
diamante. A criança, então, quando fala aos outros, passa a
assumir para si mesma uma parte - ou toda - a culpa pelos
problemas que agora tem na vida. Mas, dentro de seu domínio
pessoal, o que faz é “devolver a leitura e a escrita ao seu legítimo
dono”, que é escola. Então ouvimos coisas como “A tia é que lê
bem” ou “a língua da tia é que é bonita” ou ainda “se eu
conseguisse escrever com a letra da tia...”.
A partir desse momento de “devolução”, a criança não se
sente mais responsável pelo aprendizado da leitura e da escrita.
O que era primordial passa a ser secundário, e o fracasso escolar
a seguirá por toda a vida acadêmica. O mesmo fenômeno ocorre
com as demais disciplinas. Toda vez que o aluno sente que a
disciplina é usada contra ele, passa a ter aversão por ela. Por que
tantos odeiam a Matemática, mas quase todos sabem passar um
troco, ou calcular os intervalos da novela, ou contar os pontos do
crochê? Por que razão os alunos têm aversão às provas e demais
avaliações? Porque desde muito têm sido usadas como
instrumentos poderosos na mão dos professores contra os alunos
em sala. Quem nunca ouviu algo como “se vocês não ficarem
quietos eu dou um teste relâmpago!” ou “como vocês
conversaram muito na aula de hoje, vou colocar esse conteúdo
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na prova...”? Do outro lado da moeda estão uns dois ou três
em cada sala que sempre tiram boas notas. Esses poucos
encaram as provas como uma arma em suas próprias mãos.
Eles mesmos usam as provas como armas contra seus
colegas na sala, e a favor de si mesmos ante os pais e
professores. Por isso não temem - e até gostam - das provas
e demais avaliações.
O princípio é muito simples e pode ser assim
resumido: se a meu favor, o desejo; se contra mim, a
aversão. Eis a causa da derrocada do ensino da leitura e da
escrita na escola brasileira.
6. O que podemos fazer?
Embora pense ter chegado bastante perto da causa
real para a aversão que muitas de nossas crianças sentem
pela leitura e pela escrita, não penso poder, ainda,
apresentar uma solução completa para o problema.
Considero que ela passa por uma reformulação muito
complexa da concepção filosófica da maioria de nossos
professores quanto ao ensino da leitura e da escrita. Talvez
mais do que isso, passa pelo trabalho de via inversa que
tenho enfocado. E esse trabalho passa pelos seguintes
passos:
1. devolver à criança a auto-imposição com relação à
leitura e à escrita, através de um processo em que a criança
reconheça a utilidade da leitura e da escrita para sua
manutenção e, quem sabe, até para sua reprodução;
2. devolvida à criança a auto-imposição, deve-se passar ao
desenvolvimento do prazer pela leitura e pela escrita, e isto se
dará demonstrando à criança que espécies de realizações a
criança poderá construir com essas tecnologias;
3. isto feito, certamente as mais profundas concepções da
criança a respeito da escola e das coisas que nela são feitas
estarão sendo afetadas, não superficialmente, mas em suas
raízes, porque em respeito aos princípios naturais que regem
todo o processo.
Assim, creio que podemos isolar algumas atitudes
favoráveis à resolução desse problema, atitudes que atuam no
sentido de reverter a parte ruim da ação escolar sobre a criança.
Vejamo-las.
7. A leitura e a escrita são meios e, não, fins
ensimesmados
A primeira coisa que deve mudar no ensino inicial da
leitura e da escrita é a concepção de que estas são habilidades em
si mesmas. Imaginem uma costureira ensinando outra: “sente
aqui na máquina, passe a linha na agulha, arrume a carretilha,
pise no pedal, ajuste o ponto. Muito bem, agora que você já sabe
mexer na máquina, pode ir embora!” A nós parece muito
estranho que a costureira estivesse ensinando a outra a mexer na
máquina pelo simples fato de que a outra saberia mexer na
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máquina. O objetivo de aprender a mexer na máquina,
obviamente, seria o de poder costurar com ela. Assim são a
leitura e a escrita. Aprendemos a ler, não para dizermos
que dominamos a técnica de ler, mas para sermos capazes
de depreender, da escrita alheia, os conteúdos ali inseridos.
Da mesma forma, aprendemos a escrever, não para
sabermos escrever e só isso, mas para escrevermos coisas
para que outros leiam.
Esta concepção de leitura e escrita como fins se
traduz nas avaliações escolares. O aluno ganha nota se lê
bonito. Aliás, passa ou repete de ano se consegue, ou não,
ler a ficha de leitura para a supervisora no final do ano.
Não interessa muito se ele é capaz de pegar uma revistinha,
ler uma história e contá-la aos amiguinhos de classe, ou se
ele pega o jornal e entende todas as histórias policiais que
lê. O importante é ler com fluência, com voz empostada e,
depois, saber responder a meia dúzia de perguntas idiotas
e idiotizantes.
A escola tem que mudar isso e fazer refletir essa
mudança nas avaliações escolares. Tem-se que ensinar que
a leitura e a escrita são meros meios de conseguirmos fazer
coisas muito maiores e mais importantes do que a leitura e
do que a escrita. Através da leitura, posso estar perto de
meus parentes distantes, conhecer outras partes do mundo
sem estar lá, atualizar-me, proteger-me, salvar minha vida!
Através da escrita, posso fazer um contrato, conseguir um
benefício para mim e para minha comunidade, aproximar-
me de meus parentes e amigos distantes, ensinar aos
outros, mudar concepções de vida, posso fazer o mundo girar!
São coisas que, em si mesmas, são muito maiores e mais
importantes para minha vida do que a leitura e a escrita em si;
estas são apenas os meios.
8. Ler e escrever são coisas diferentes
Outro grande erro perpetuado nas escolas é que ler ajuda
a escrever e escrever ajuda a ler. Já ouvi milhares de vezes que
“quem lê muito, escreve bem”. Isso é pura lorota. Em minha
experiência profissional, encontrei colegas que eram leitores
contumazes, verdadeiros devoradores de livros e que,
simplesmente, não sabiam redigir um requerimento pedindo sua
progressão funcional.
Vigotskii, um psicólogo russo do início deste século,
explicou isso muito claramente. Ele disse, referindo-se ao
aprendizado das habilidades exigidas pela escola:
“A resposta que os psicólogos ou os pedagogos
puramente teóricos costumam dar é que cada aquisição
particular, cada forma específica de desenvolvimento, aumenta
direta e uniformemente as capacidades gerais. O docente deve
pensar e agir na base da teoria de que o espírito é um conjunto de
capacidades - capacidade de observação, atenção, memória,
raciocínio etc. - e que cada melhoramento de qualquer destas
capacidades significa o melhoramento de todas as capacidades em
geral...
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Thorndike opôs-se a esta concepção baseando-se
nas inúmeras pesquisas que demonstram que ela é
insustentável. O desenvolvimento de uma faculdade
particular raramente origina o análogo desenvolvimento
das outras. Um exame mais profundo demonstra que a
especialização das capacidades é maior do que parece à
primeira vista.”7
Em outras palavras, e indo diretamente ao caso da
leitura e da escrita: ler é uma habilidade que exige um
conjunto de habilidades menores e o desenvolvimento de
um grupo de capacidades diferentes do que se exige para
escrever. Ler só se aprende lendo; escrever só se aprende
escrevendo. Não se aprende a escrever lendo, tampouco
isso funciona na direção inversa.
Assim, a escola deve entender que a relação entre a
leitura e a escrita está calcada unicamente nos objetivos de
cada uma dessas habilidades: lê-se porque se escreveu e
escreve-se para que seja lido. Cabe à escola desenvolver os
trabalhos de escrita de forma a que ela cumpra sua
finalidade, ou seja, que se escreva para que a escrita seja
efetivamente lida; da mesma maneira, que se desenvolvam
os trabalhos de leitura de forma a que o aluno possa dar,
como resposta a esta atividade, a confirmação de sua
compreensão do que foi lido. Trabalhar a leitura e a escrita
7 Lev S. VIGOTSKII. “Aprendizagem e Desenvolvimento Intelectual na Idade Escolar”. In.: José CIPOLLA-NETO et alii (orgs.) (1988) Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem. São Paulo: Cone, pp.107-8.
integradamente, portanto, não significa acreditar que uma
desenvolve a outra; pelo contrário: significa acreditar que o
desenvolvimento independente de cada uma delas permitirá a
consecução, ao final, de seus objetivos inter-relacionais.
9. A cada fase, seu esforço correspondente
A escola perde muito tempo, hoje, tentando ensinar
conceitos gramaticais abstratos a crianças que não têm
maturidade intelectual para assimilá-los. Piaget demonstrou
inequivocamente que as crianças só dão conta intelectualmente
de abstrações lá pelos onze ou doze anos, o que corresponde à
quinta série, mais ou menos, no sistema escolar brasileiro. Isso
implica que, antes dessa fase, conceitos como sujeito, objeto,
tonicidade silábica, concretude de um substantivo, etc. - que são
meras abstrações teóricas - simplesmente não podem ser
assimilados pelas crianças por falta de maturidade intelectual.
Então, o máximo que elas fazem é decorar uns poucos conceitos
(às vezes, errados!) dados pelos professores. E podemos
perguntar: mas, como as crianças aprendiam essas coisas no
tempo do meu avô? É fácil de explicar: primeiramente, naquele
tempo não havia a precocidade do ensino, como há hoje. Uma
criança terminar o primário com catorze anos era considerado
normal. Em segundo lugar, as crianças que estavam em idade
regular, isto é, que eram submetidas ao primário entre sete e dez
anos, também não aprendiam esses conceitos da mesma forma
que as de hoje não aprendem. O que ocorria, apenas, era que,
como a escola era mais convincente na coerção (porque usava
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métodos físicos), as crianças tinham mais interesse pessoal -
até por autopreservação! - em decorar muito bem decorada
cada lição da escola. Essa “eficiência” na reprodução de
conceitos dava a impressão de que as crianças realmente
aprendiam os conceitos abstratos da gramática.
Nas primeiras séries escolares, então, a escola de
hoje deveria estar preocupada em fazer os alunos
dominarem as habilidades de leitura e escrita - e só! Se
conseguisse fazer isso, a escola primária estaria dando uma
grande contribuição ao Brasil. Ensinando as crianças a ler, a
escrever e a amar essas habilidades, porque as dominando
e entendendo suas finalidades práticas como meios de
consecução de objetivos maiores, a escola primária estaria,
enfim, cumprindo seu destino maior.
A cada fase de desenvolvimento cabe um esforço
correspondente. Tentar “queimar fases”, como se faz, por
exemplo, colocando as crianças cedo demais na escola ou
querendo que se alfabetizem precocemente, além de um
agravo à própria natureza da criança, pode ter
consequências devastadoras - já bem conhecidas - na vida
da criança.
10. Contratados para ensinar, não para dizer que
os alunos não sabem
Geralmente, fico constrangido quando tenho que
dizer isso a alguns de meus colegas professores. Mas sinto
que tenho que dizer, e não me posso calar. Parece tão óbvio
quanto dizer que andamos sobre a terra, que respiramos o ar ou
que o céu paira sobre nossas cabeças, mas parece verdade que
muitos professores ainda não entenderam que são pagos para
ensinar e, não, para dizer aos alunos que eles não sabem as
coisas que deveriam saber.
Durante muitos anos, a escola brasileira tem-se limitado a
fazer a segunda coisa. No final do ano, a escola vira-se para o
aluno e diz que ele não sabe o que deveria saber. E a maior prova
que ela dá para o fato de que ela fez sua parte é que há alunos
que aprenderam; logo, a culpa não é dela. Mas, será que esses
alunos que passam de ano aprenderam mesmo? E, ainda, será
que aprenderam o que deviam aprender para suas vidas?
Por que razão a escola teme falar sobre o processo? Por
que ela sempre enfoca o fim? Parece claro: porque o processo de
ensino8 é determinado pelo professor. Simplesmente, não posso
concordar com a centralidade do aluno no processo de ensino! É
óbvio demais que a condução do processo, mesmo em uma
metodologia construtivista, é do professor. Posso, sim, concordar
com a centralidade do discente nas preocupações do docente.
Que o aluno seja a razão de agir do professor, tudo bem. Mas, é
só. Aliás, atribuo a essa concepção equivocada de “aluno-deus”,
desenvolvida e propagada por algumas correntes pedagógicas
8 Particularmente, não gosto da expressão “ensino-aprendizagem”, pelo fato de que é redundante. Se há ensino, é porque houve aprendizagem; se ninguém aprendeu, é porque não houve ensino; se alguém aprendeu, é porque algo ou alguém ensinou. Então, ao falar simplesmente em “ensino”, fala-se obrigatoriamente em aprendizagem.
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modernas, a destruição da imagem e do valor do professor
diante da comunidade. Portanto, falar do processo é falar
do professor. E a escola não gosta de falar do professor.
Mas, é preciso. É preciso lembrar que o professor é
contratado para ensinar, não para dizer que o aluno não
sabe o que deveria saber. E eu não falo aqui do contrato de
trabalho que o professor firma com o estado ou com o dono
da escola: falo do contrato social e moral que existe entre
ele e a comunidade. Quando um pai bem intencionado
coloca seu filho na escola, estabelece um contrato de
confiança com cada professor do estabelecimento. Ao
entregar a formação intelectual da criança ao professor (e,
às vezes, não só a formação intelectual, mas toda a
formação da criança!), esse pai acredita na boa vontade do
professor para com a criança. Mais do que isso: qualquer
cidadão reconhece a importância da classe dos docentes no
desenvolvimento do país. Em muitos lugares do Brasil,
principalmente nos interiores, ser professor ainda é uma
grande honraria. Pena que alguns não se deem conta
disso...
Muito do aprendizado escolar se perde porque os
professores assumem posturas pessoais estranhas à
natureza do processo de ensino. O autoritarismo
absolutista, o desprezo pela espécie humana, a descrença
na possibilidade de o homem mudar e a irresponsabilidade
para com seu trabalho são algumas dessas posturas que
devem ser evitadas na escola como se evita uma doença
contagiosa qualquer. Enquanto houver professores que
atuam na escola de uma forma que fere os princípios naturais do
processo de ensino, haverá crianças que tenham aprendido, na
própria escola, a desprezar a leitura, a escrita, o conhecimento,
enfim.
Julho de 1998.