UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
LETRAS: REGISTRO DA FORMA DE SER
MARCOS DESAN SCOPINHO
PIRACICABA, SP 2015
LETRAS: REGISTRO DA FORMA DE SER
MARCOS DESAN SCOPINHO
ORIENTADOR: PROF. DR. JOSÉ MARIA DE PAIVA
Tese apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNIMEP como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Educação.
PIRACICABA, SP 2015
BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. JOSÉ MARIA DE PAIVA (Orientador) Prof. Dr. Bruno Pucci Prof. Dr. Edivaldo José Bortoleto Prof.ª Dra. Luzia Batista de Oliveira Silva Prof. Dr. Paulo de Assunção
“Ando devagar Porque já tive pressa
E levo esse sorriso Porque já chorei demais Hoje me sinto mais forte
Mais feliz, quem sabe Só levo a certeza
De que muito pouco sei Ou nada sei
Conhecer as manhas
E as manhãs O sabor das massas
E das maçãs É preciso amor
Pra poder pulsar É preciso paz pra poder sorrir É preciso a chuva para florir”
[...]
Trecho da Música: Tocando em Frente
Composição de Almir Sater em parceria com Renato Teixeira.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador Professor Dr. José Maria de Paiva, pela confiança,
incentivo e amizade. Serei sempre grato.
Ao Professor Dr. Elias Boaventura, “in memoriam”, pelo incentivo decisivo.
Ao Professor Dr. Bruno Pucci e a Professora Dra. Josiane Maria de Souza
pelas contribuições quando do exame de Qualificação.
Aos Professores: Dr. Bruno Pucci, Dr. Edivaldo José Bortoleto, Dra. Luzia
Batista de Oliveira Silva e Dr. Paulo de Assunção pela participação da banca de
defesa.
A todos os funcionários e professores do programa de pós-graduação em
Educação da Universidade Metodista de Piracicaba-UNIMEP.
À minha esposa e companheira Márcia, que fez comigo este doutorado; pelas
contribuições na formatação deste trabalho, mas acima de tudo, pela compreensão,
apoio e incentivo.
À professora e amiga Jeniffer Arruda Santos, pela disponibilidade e
competência com que realizou a revisão gramatical deste trabalho.
Às minhas amigas bibliotecárias Araci, Betinha e Solange do Seminário
Seráfico São Fidélis e Elaine, Isabelle, Simone e Muriel do Colégio Dom Bosco
Assunção, pela disponibilidade e cuidado comigo.
Aos meus pais Mário (com muitas saudades) e Antônia, que foram os
primeiros grandes educadores com quem aprendi muitas lições de vida.
Ao meu irmão e irmãs, cônjuges e sobrinhos, pela convivência de anos que
jamais serão esquecidos.
Ao meu sogro Durvalino, sogra Maria Ignêz, cunhadas, cunhados e sobrinhos,
pelo incentivo, paciência e carinho, sempre maiores do que sou merecedor.
Ao meu parceiro na arte de cantar João Guilherme, sem sua amizade e
companheirismo este trabalho teria sido mais difícil.
Aos meus amigos músicos Jorge, Nilson, Toninho (Castro) e Bertin, por me
acolherem como parceiro na divulgação da música sertaneja raiz.
Aos meus amigos Frades Capuchinhos do Seminário Seráfico São Fidélis de
Piracicaba por me acolherem como irmão na fraternidade.
A todos os meus amigos que através da práxis pedagógica, em especial,
do Colégio Salesiano Dom Bosco-Assunção de Piracicaba e Claretiano Faculdade
de Rio Claro, que acreditam e lutam por uma educação libertadora e afetiva.
RESUMO
Um passeio pela história da humanidade, relatando aquilo que é característico
do ser humano: a construção de cultura e um dos seus inventos mais importantes:
as letras. Contudo, antes delas aparecerem como formas de manifestação das
vivências humanas, a humanidade já se revelava através de outros dizeres, como
entalhes, gravuras, pinturas, etc. Dizeres estes que não desaparecem com o
advento da escrita, mas continuam a existir nas manifestações artísticas da
humanidade. Cabe à história ampliar seu conceito de documento para entendê-los
como parte integrante da história humana. No Ocidente, as letras foram
fundamentais na construção de uma cultura que perpassa toda a história do
pensamento e que determinou uma leitura do real, baseada numa racionalidade
instrumentalizada por uma sociedade mercantil e expansionista. Esta expansão
representou um domínio territorial e espiritual. A crítica a esta racionalidade é o
caminho de libertação da razão pela razão. Esta liberdade, porém, só é possível no
diálogo em igualdade com o diferente; cada um tendo condições de se expressar
com seus próprios termos, palavras e significados.
Palavras-chave: cultura, letras, oralidade, escrita, alfabeto, mercantil, conceito.
ABSTRACT
A stroll through the history of humanity, reporting what is unique to humans: the
construction of culture through one of its most important inventions: the letters.
However, before they appear as manifestations of human experiences, humanity has
already revealed through other sayings, such as slots, prints, paintings, etc. Saying
they will not disappear with the advent of writing, but still exist in the artistic
manifestations of humanity. It is up to history to expand its concept paper to
understand them as an integral part of human history. In the West, the letters were
instrumental in building a culture that permeates the entire history of thought and
determined that a reading of reality, based on instrumental rationality by a merchant
and expansionist society. This expansion was a territorial and spiritual domain. The
criticism of this rationality is the path of liberation of the reason why. This freedom,
however, is only possible in equality in dialogue with the different; each having
conditions to express themselves on their own terms, words and meanings.
Keywords: culture, letters, speaking, writing, alphabet, commercial, concept.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA 1 - Afresco da gruta de Font-de-Gaume na Dordonha – França ..............50
FIGURA 2 - Afresco da gruta de Lascaux – França ................................................51
FIGURA 3 - Afresco da gruta de Altamira – Espanha .............................................51
FIGURA 4 - Afresco da gruta de Lascaux – França ................................................52
FIGURA 5 - Empréstimo do alfabeto grego para etrusco e depois para latino ........57
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ..................................................................................................12
INTRODUÇÃO À CULTURA E À HISTÓRIA .........................................................16
CAPÍTULO 1 – A LINGUAGEM HUMANA .............................................................24
1.1 A linguagem no processo da evolução .........................................................29
1.2 Origem dos símbolos gráficos .......................................................................35
CAPÍTULO 2 – A FUNÇÃO DAS LETRAS: O REGISTRO ....................................38
2.1 Letras como registro .......................................................................................40
CAPÍTULO 3 – FORMAS DE REGISTRO ..............................................................46
3.1 A forma escrita ................................................................................................58
3.2 As letras: referência antropológica e social .................................................64
CAPÍTULO 4 – O REGISTRO: EXPRESSÃO DOS SIGNIFICADOS
CULTURAIS ............................................................................................................70
4.1 Sociedade egípcia ...........................................................................................72
4.1.1 Períodos políticos ...........................................................................................74
4.1.2 Escrita egípcia ................................................................................................76
4.1.3 Religião egípcia ..............................................................................................79
4.1.4 Realizações intelectuais .................................................................................81
4.2 Sociedade mesopotâmica ..............................................................................84
4.2.1 Sociedade suméria .........................................................................................86
4.2.2 Origem da escrita mesopotâmica ...................................................................92
4.3 Sociedade hebraica .........................................................................................94
4.3.1 Cultura hebraica e a escrita ............................................................................99
4.4 As letras no templo e no palácio ...................................................................102
4.4.1 As letras na religião ........................................................................................102
4.4.2 As letras na economia ....................................................................................105
CAPÍTULO 5 – AS LETRAS NA CULTURA OCIDENTAL .....................................108
5.1 História do alfabeto .........................................................................................108
5.1.1 Escrita semita .................................................................................................109
5.1.2 O alfabeto grego .............................................................................................110
5.2 Alfabeto grego e a metafísica .........................................................................112
5.3 Pensamento hindu: outro olhar .....................................................................129
CAPITULO 6 – AS LETRAS E O MERCANTIL ......................................................137
6.1 O grande comércio e as letras no ocidente ..................................................137
6.2 O grande comércio, as letras e a modernidade ............................................146
CAPÍTULO 7 - O DESENCANTAMENTO DO CONCEITO ....................................153
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................167
REFERÊNCIAS .......................................................................................................174
12
APRESENTAÇÃO
O propósito deste estudo é desenvolver uma análise sobre a humanidade e
uma de suas invenções mais importantes ao longo de sua história: as letras. Fischer
(2009) lembra que se um dia os hominídeos se distinguiram de outras criaturas ao
formarem sociedades baseadas pela fala, hoje, o que distingue o homo sapiens
sapiens moderno, é o fato de viver numa sociedade baseada na escrita. Cerca de
85% da população mundial se utiliza da escrita como uma das suas formas de
expressão, para manifestarem seus agires e portanto, criarem cultura.
Propor-se a esta análise implica pensar as sociedades que têm as letras
como meio de expressão, seja como conhecimento científico, seja como agente
cultural da sociedade através da literatura, ou meio de expressão e informação,
como no caso da imprensa. Enfim, falar da escrita é tentar reproduzir as diferentes
culturas com seus diferentes significados, afinal, as letras não têm um significado em
si, mas carregam o entendimento que as diferentes sociedades dão a elas. Nesse
sentido, tratar deste assunto, as letras, é acima de tudo, um exercício democrático
no trato com o diferente.
E isto acontece não só porque há o confronto de sociedades letradas que dão
significados diferentes a seus conceitos e palavras, mas porque também, nos
deparamos com culturas, que ao longo de suas histórias, se caracterizaram pela
expressão de seus agires de outras formas que não através das letras. O confronto
entre estas diferentes formas de agires, leva a uma discussão sobre a forma de ser
de cada sociedade. Uma das questões que se coloca, por exemplo, é de considerar
sociedades que se caracterizam pela ausência das letras, como sociedades sem
história, já que não registram por escrito seus agires. O que caracteriza estas
comunidades é a transmissão de seus feitos através da oralidade.
Este tema já nos remete a uma preocupação inicial, ou seja, introduzir neste
trabalho uma concepção de história, que possibilite dar bases teóricas para uma
compreensão mais ampla desta ciência, fugindo daquela ideia tradicional de que a
história visa um conhecimento exato e, portanto, baseado em documentos que
possam fornecer dados objetivos, evitando o máximo possível, a interferência do
historiador. Para este propósito, é que se utiliza de pensadores que trarão uma
concepção de história como uma ciência que se caracteriza, não pela exatidão, mas
pelo contrário, pelo inexato. Para a exposição desta ideia, se fará uma análise
13
daquilo que caracteriza a diferença entre o documento e o monumento. Uma
reflexão oportuna que opõe, de um lado, o documento, aparentemente objetivo, e do
outro, o monumento, declaradamente intencional.
Esclarecida esta concepção de história, inicia-se este estudo propondo-se
uma análise histórica sobre o processo de formação das sociedades humanas
baseadas na fala e as mudanças que esta característica trouxe de essencial à
atividade consciente do homem. Em seguida, uma explanação sobre a linguagem no
processo de evolução, culminando com a origem dos símbolos gráficos.
No capítulo dois, desenvolve-se a ideia das letras e sua função de registro.
Demonstra-se como a complexidade que vai caracterizando as comunidades ao
longo do tempo, faz surgir como uma necessidade, o registro como uma forma de
organização desta comunidade. A princípio, este registro aparece em forma de
desenhos, mas com a complexidade das relações, os desenhos serão incorporados
pelos escribas para sua utilização mercantil.
No entanto, é sabido que a escrita é apenas uma das formas de registrar os
agires humanos. No capítulo três, propõe-se apresentar algumas formas de registro
humano que a humanidade ao longo de sua existência, deixou em forma de
registros. São entalhes, gravuras, pinturas, nós, a pictografia, que revelam que o
homem na sua história é mais do que os registros escritos podem revelar. Neste
sentido, este capítulo tem por desejo também, lembrar que mesmo envolto por uma
cultura que tem nas letras um instrumento prático a serviço do cálculo e da busca do
conhecimento exato e, se serve da escrita para revelá-lo, este homem traz em suas
origens, características que nem sempre a cultura letrada permite revelar. As
explicitações destas formas de registro acabaram perdendo espaço com o advento
da escrita e decorre desta tradição letrada, a ideia de que as letras são sinais de
progresso e evolução. As sociedades que não se pautam seus agires através da
escrita, são sociedades atrasadas e fadadas ao pensamento ilógico e, portanto,
primitivas. Com o objetivo de relativizar esta concepção binária muito comum na
tradição do pensamento do ocidente, é que se desenvolve um questionamento desta
leitura que se mostrou preconceituosa. Com o auxílio de Lévy–Strauss, deseja-se
desmistificar algumas decorrências desta leitura, demonstrando, no mínimo, sua
incoerência.
Em seguida, no capítulo quatro, tem-se como objetivo entender o registro
escrito como expressão dos significados em algumas culturas da antiguidade que
14
são conhecidas por terem a escrita como característica marcante. Propõe-se uma
exposição destas comunidades relatando suas experiências anteriores ao advento
da escrita e o processo de aquisição desta ferramenta como característica social. As
sociedades escolhidas são a egípcia, a mesopotâmica e a hebraica. Ao final da
exposição por estas culturas, encerra-se o capítulo com as decorrências mais
imediatas das letras, em especial, na religião e na economia nestas comunidades
antigas.
O capítulo cinco inicia-se com um estudo da aproximação das letras na
cultura do Ocidente. Propõe-se uma reflexão da influência e a importância do
alfabeto, lentamente adaptado pelos gregos, na construção de uma metafísica que
dará base à história do pensamento com decorrências que serão significativas na
construção da história e do conhecimento. E com o objetivo de compreender esta
teoria, há uma exposição de alguns conceitos determinantes deste pensamento. Em
seguida, para se entender a metafísica grega, e também, visualizar caminhos
alternativos na construção do conhecimento, se expõe uma visão antropológica de
Heidegger e de sua compreensão de linguagem que contribuem para refletir frente à
concepção que se estrutura a partir da metafísica tradicional grega. Em seguida,
recupera-se uma sociedade que teve nas letras, uma marca importante na sua
história, a exemplo de Egito, Mesopotâmia e Hebreus. Mas é uma sociedade que
pertence ao extremo Oriente e que traz uma contribuição significativa no trato com
as palavras e o conceito. Trata-se da cultura hindu. Não é a intenção de se
compreender esta cultura de forma profunda, mas de trazer à luz, uma compreensão
que os orientais, através da Índia, fazem dos conceitos e das palavras. O
antagonismo em relação aos significados que o Ocidente atribui aos conceitos e as
palavras, comparado ao Oriente é muito evidente, e é de extrema importância
destacar.
No capítulo seis, vai se verificando como o processo mercantil se desenvolve
possibilitando que nas cidades medievais europeias aconteçam os primeiros indícios
de uma cultura marcada por uma racionalidade instrumental, que ocorre paralelo a
difusão da escrita. A complexidade das transações comerciais exigirá do
comerciante um conhecimento da escrita essencial para os cálculos comerciais, que
sem os quais, seu comércio estaria em risco. Portanto, os atos escritos irão
desempenhar um papel fundamental nas grandes transações. Além disso, outras
mudanças decorrem do renascimento comercial europeu. Por exemplo, uma
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valorização do individualismo, característica esta, que cada vez mais, vai se
estabelecendo como padrão social. Este comércio em expansão, somado a uma
racionalidade que se autoproclama superiora às outras culturas e veiculada através
das letras, chega à modernidade em busca de novas terras. Neste contexto, nasce o
que Dussel denomina de “mito da modernidade”, fenômeno que, segundo ele, só
ocorre a partir da conquista da América. Neste momento se faz uma análise das
concepções históricas de alguns pensadores europeus, em especial, Hegel
legitimadas por uma racionalidade que vem se estabelecendo desde a antiguidade,
mas se cristaliza com o processo mercantil na modernidade.
No capítulo sete, a proposta é estabelecer uma análise crítica a esta
mentalidade europeia portadora de uma concepção de cultura superiora as outras
culturas, fundamentadas na crença de um conceito absoluto, portador da realidade
em sua totalidade. Para esta crítica, busca-se auxílio em Adorno, pensador que
através de obras como a Dialética Negativa, propondo a oposição à totalidade do
conceito imputando-lhe o não-idêntico, o não-conceitual. Destaca-se, a relação que
se pode estabelecer na história, entre o documento e o monumento, bem como, o
não-conceitual com o “outro” negado que sugere Dussel.
Finalmente, nas considerações finais, com as contribuições dos pensadores
trabalhados, destaca-se a necessidade do respeito ao diferente, ao outro. Na
história, não basta a referência aos que foram negados. Há a necessidade de se
reconhecer o outro como sujeitos, criadores de seus próprios conceitos com seus
próprios significados. Este processo só será possível, à medida que se realize um
diálogo que respeite o outro como igual e não o transformando em objeto, roubando
inclusive, como diz Paulo Freire, a sua palavra, ou seja, sua expressividade.
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INTRODUÇÃO À CULTURA E À HISTÓRIA
Na introdução ao seu artigo Religiosidade e cultura brasileira século XVI,
Paiva (2007) afirma que por detrás das formas visíveis de cultura existe uma
experiência histórica que as moldou, dando-lhes um significado. Cultura é a forma
de ser de um povo que vai se construindo ao longo do tempo, sendo esta forma de
ser, o ser das relações que as pessoas estabelecem entre elas. Diz respeito ao
processo social, regido pela sobrevivência das pessoas no contexto histórico no
equilíbrio das formas aprendidas e das respostas às novas condições sociais.
Assim, conclui Paiva, a cultura deve ser vista como uma ação presente de pessoas
respondendo às novas condições sociais. Condições estas, que não carregam
significados em si, mas nos homens que nelas se movem. A cultura, portanto, é a
forma de ser dos homens em sociedade, construídas nas condições reais.
Laraia (1989) seguindo o mesmo raciocínio introduz o conceito de cultura,
citando o antropólogo americano Clifford Geertz, que diz que o ser humano não é
ser Homem com H maiúsculo, mas ser homem com h minúsculo, isto porque ser
humano é pertencer as inumeráveis culturas que existem na terra. Homens de
sociedades diferentes, pensam, falam e agem de maneira diferente, negando
qualquer forma de imposição biológica. O homem, diferente dos animais, é capaz de
comunicação oral e de fabricar instrumentos. Portanto, o único a possuir cultura.
De posse deste conceito de cultura, pode-se compreender melhor o homem.
É ele o produto do meio cultural em que foi socializado. É herdeiro, dirá Laraia
(1989, p. 777) “de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a
experiência adquiridos pelas numerosas gerações que o antecederam. A
manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e
invenções”. Paiva (2007, p. 09) reforça citando Ortega e Gasset: “eu sou eu e
minhas circunstâncias”. Isto quer significar que as criações e inovações que
aparecem nas sociedades, não devem ser atribuídas à ação isolada de indivíduos,
mas ao resultado de toda a comunidade. Para que alguém crie ou inove, faz-se
necessário que a cultura coloque à disposição dos indivíduos o material necessário
que possibilite o exercício da criatividade.1
1 Laraia destaca a relevância deste conceito de cultura na medida em que é a afirmação de uma igualdade biológica entre os homens e a negação de uma hierarquia natural entre raças humanas.
17
Partindo deste conceito, retoma-se a ideia inicial de Paiva, ao afirmar que
cultura é a forma de ser sob dois aspectos: o ser das pessoas e o processo social.
Um não pode ser compreendido sem o outro. Não há processo social sem indivíduos
se fazendo. Mas também não pode haver indivíduo que se faça isoladamente, fora
das relações sociais. A questão é que o processo de afirmação do indivíduo,
característica forte nas sociedades capitalistas, reforçou a ideia de que as grandes
inovações culturais são méritos de indivíduos inteligentes que parecem agir de
maneira isolada de uma herança cultural. Laraia ajuda entender que é impossível ao
indivíduo produzir ou inovar por apenas mérito individual, isolado do seu meio com o
seguinte exemplo:
Santos Dumont não teria sido o inventor do avião se não tivesse abandonado a sua pachorrenta Palmira, no final do século XIX, e se transferido em 1892 para Paris. Ali teve acesso a todo o conhecimento acumulado pela civilização ocidental. Em Palmira, o seu cérebro privilegiado poderia talvez realizar outras invenções, como por exemplo, um eixo mais aperfeiçoado para carros de bois, mas jamais teria a capacidade de proporcionar à humanidade a possibilidade da locomoção aérea. Por outro lado, se Santos Dumont tivesse morrido em sua primeira infância, fato comum no lugar em que nasceu, a humanidade não ficaria privada do avião. Outros inventores estavam aptos para utilizar do mesmo conhecimento e realizar a mesma façanha. (LARAIA, 1989, p. 777).
Entende-se que este conceito de cultura contribua para a superação de um
paradigma que marca profundamente a história do pensamento Ocidental e que está
relacionado com a compreensão que antropólogos e historiadores reproduziram ao
longo dos séculos. Ou seja, ideia de que os povos ágrafos reproduzem sua história
através dos mitos, e por consequência, de maneira coletiva por se caracterizar por
uma produção oral. Esta concepção legitima uma compreensão que contribui para
expressar um pré-conceito de que povos que não se caracterizam por registrarem
por escrito seus agires não possuam no seu meio social, individualidades capazes
de criarem e inovarem. Da mesma forma que, ao se atribuir ao documento escrito
um valor cientifico objetivo como expressão do real, e neste caso o documento é
resultado de uma produção intelectual de uma individualidade, ou seja, do cientista
que o produziu, há uma tendência de se valorizar a produção do cientista como uma
produção individual, como se sua criação não fosse resultado também de um
trabalho coletivo, de uma herança cultural que este indivíduo recebeu.
Logo, as diferenças individuais são produtos de oportunidades e não de uma determinação biológica.
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Seguindo este raciocínio, se faz fundamental uma análise sobre a
compreensão de que concepção de história se está falando. Le Goff (2003) inicia
destacando a ideia de que a história não é uma ciência como as outras, no entanto,
esta sempre no centro das controvérsias e, por objeto, já sugere uma série de
questões sempre objetos de discussão. Por exemplo, de que assunto deve ela
tratar? dos assuntos humanos apenas ou também dos divinos? dos heróis e seus
feitos ou também das massas? De quem só tem poder ou também dos mais pobres.
Estas questões remetem a outras relativas ao seu estatuto e métodos. Por exemplo,
sobre o passado e o presente, sobre as fontes, sobre as civilizações, ditas
selvagens ou civilizadas. Outra questão fundamental e central para esta ciência se é
a história uma narração dos fatos ou se é ela também, uma explicação deles, bem
como, suas relações com outras disciplinas.
Se partirmos da etimologia, a palavra história vem do grego historie que
deriva da raiz “wid”, “weid” que quer significar “ver”. Histor, “aquele que vê”. No
grego antigo historein quer significar “procurar saber”, “procurar”. Assim ver, saber,
está na origem da própria história. Le Goff empresta de Paul Ricoeur sua definição
de história:
A história só é história na medida em que não consente nem no discurso absoluto, nem na singularidade absoluta, na medida em que seu sentido se mantém confuso, misturado... A história é essencialmente equívoca, no sentido de que é virtualmente evenementielle e virtualmente estrutural. A história é na verdade o reino do inexato. Esta descoberta não é inútil; justifica o historiador. Justifica todas as suas incertezas. O método histórico só pode ser um método inexato... A história quer ser objetiva e não pode sê-lo. Quer fazer reviver e só pode reconstruir. Ela quer tornar as coisas contemporâneas, mas ao mesmo tempo tem de reconstruir a distância e a profundidade da lonjura histórica. Finalmente, esta reflexão procura justificar todas as aporias do ofício de historiador, as que Marc Bloch tinha assinalada na sua apologia da história e do ofício de historiador. Estas dificuldades não são vícios do método, são equívocos bem fundamentados. (LE GOFF, 2003, p. 22)
Nesse sentido, a história define-se em relação a uma realidade sobre a qual
se testemunha e se relata e este aspecto nunca deixou de ser uma das grandes
questões a serem discutidas e de estar presente no desenvolvimento da ciência
histórica.
Desde os primórdios na antiguidade, e em especial, com o surgimento da
escrita, a história passou a reunir os documentos registrados e passou a fazer deles
seu testemunho, ultrapassando determinadas limitações impostas pela transmissão
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oral do passado. A elaboração textual possibilitou a constituição de arquivos que
forneceram os materiais necessários para fundamentar o estudo cientifico. O texto
escrito possibilitou a elaboração de métodos científicos possibilitando a história o
distanciamento do relato oral subjetivo, conferindo a história um dos seus aspectos
de ciência graças ao texto entendido como relato objetivo da realidade. Portanto,
neste raciocínio é que se entende que seria impossível compreender a história como
ciência sem a erudição. Não é por acaso, que o pensador reconhecido no Ocidente
como o pai da história seja o grego Heródoto.
No entanto, Le Goff (2003, p. 09) lembra que, da mesma maneira que se fez
no século XX a crítica da noção de fato histórico afirmando não ser este um dado
pronto e acabado, também hoje se faz a crítica à noção de documento. Diz o autor
medievalista que o documento não significa um material “bruto, objetivo e inocente”,
mas exprime o poder da sociedade do passado sobre a memória e o futuro. Le Goff
denomina esta concepção de documento como monumento. Entende-se que na
ciência da história aplicam-se dois tipos de materiais da memória. O primeiro, os
monumentos, que seriam os responsáveis pela herança do passado e retratam as
escolhas do historiador. O monumento liga-se ao poder de perpetuação das
sociedades históricas, sejam elas voluntárias ou involuntárias, e só uma pequena
parcela são testemunhos escritos. O segundo, o documento teria evoluído para a
significação de prova e ganha sentido de testemunho histórico no início do século
XIX. No final do século XIX, para a escola positivista, será fundamento do fato
histórico ganhando status por si mesmo como prova histórica. Como um testemunho
escrito, aparece aos olhos do cientista como oposto ao monumento, já que
aparentemente exibe objetividade, enquanto o monumento se caracteriza pela
intencionalidade.
Com a escola positivista, o documento vai ganhando cada vez mais espaço
quando se trata de historiografia, a ponto de o estudo da história se confundir com o
método histórico de análise dos documentos escritos. Sem documentos não haveria
história e por documento, entendia-se, sobretudo o texto.
No entanto, Le Goff recorda que se a concepção de documento não se altera,
seu conteúdo será ampliado, e cita Fustel de Coulanges2 numa fala pronunciada em
2 Historiador francês do século XIX que grande influência teve em várias gerações de historiadores, como por exemplo, March Bloch, um dos fundadores junto com Lucien Febvre, da Escola dos
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1862 na Universidade de Estrasburgo, que reflete os limites da definição primeira de
documento:
Onde faltam os monumentos escritos, deve a história demandar às línguas mortas os seus segredos [...]. Deve escutar as fábulas, os mitos, os sonhos da imaginação [...]. Onde o homem passou, onde deixou qualquer marca, da sua vida e da sua inteligência, aí está a história. (LE GOFF, 2003, p. 530).
Foucault contribui com esta discussão dando ênfase a este problema,
afirmando que a grande questão na história é elaborar uma crítica ao documento. Na
sua importante obra A Arqueologia do Saber, Foucault dirá que desde que a história
existe, os historiadores têm se utilizado de documentos, analisando além do seu
conteúdo, perguntando também sobre sua veracidade, sua autenticidade e etc. O
documento sempre era tratado como a linguagem de uma única voz. Contudo,
segundo Foucault, esta concepção limitada do documento vem sendo alterada e
ampliada de maneira significativa pela história. Dirá este autor:
[...] a história mudou a sua posição acerca do documento: ela se dá por tarefa primeira, nem tanto interpretá-la, nem tanto determinar se ele diz a verdade e qual é seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza, recorta-o, distribui-o, ordena-o, reparte-o em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, delimita elementos, define unidades, descreve relações. O documento, pois, não é mais para a história essa matéria inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado e do qual apenas permanece o rastro: ela procura definir, no próprio tecido documental das unidades, conjuntos, séries, relações. [...] O documento não é o feliz instrumento de uma história que seria nela mesma, e de pleno direito, memória; a história é, para uma sociedade, uma certa maneira de dar estatuto de elaboração à massa documental de que ela não se separa. (FOUCAULT, 1972, p. 13-14).
Esta é uma contribuição fundamental de Foucault. Em se tratando da história,
não significa fazer uma crítica ao documento escrito já que este continua sendo
fundamental como objeto de estudo da história. A questão que se deve destacar é
que concepção de documento está subjacente ao historiador. Foucault conclui com
os seguintes dizeres:
[...] a história, em sua forma tradicional, empreendia ‘memorizar’ os monumentos do passado, transformá-los em documentos e fazer falar estes
Annales, que propunha ir além de uma visão positivista da história, ou seja, romper com a ideia tradicional de documento.
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traços que, por si mesmos, raramente são verbais, ou dizem em silêncio coisa diversa do que dizem; em nossos dias, a história é o que transforma os documentos em monumentos, e o que, onde se decifravam traços deixados pelos homens, onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinham sido, desdobra uma massa de elementos que se trata de isolar, de agrupar, de tornar pertinentes, de estabelecer relações, de constituir conjuntos. (FOUCAULT, 1972, p. 14).
Hoje, portanto, fala-se de outra definição para documentos, num sentido mais
amplo que a definição de apenas o texto escrito. Implicaria também o documento
ilustrado, a palavra, a imagem, o gesto. Constituem também arquivos orais3. Nesta
perspectiva, surge a possibilidade de se vislumbrar outros modelos que descartam a
visão unitária da história, abrindo espaço para as diferenças.
Estas questões postas levam, inevitavelmente, o historiador a se confrontar
novamente e a todo momento, com o problema da possibilidade da objetividade ou
não na história. É evidente que nesta nova maneira de se conceber o documento, a
questão fica ainda mais explícita e mais vulnerável às críticas. Contudo, Le Goff dirá
que este fato não só deve responsabilizar ainda mais o cientista da história, como
tem contribuído também, no desmascaramento das falsificações da história, antes
protegidas pela aura da verdade objetiva.
Ricoeur contribui com esta reflexão na sua importante obra “História e
Verdade”. Sugere o autor:
Esperamos da história uma certa objetividade que lhe é conveniente: é daí que devemos partir e não de outro têrmo. Ora, que esperamos nós sob tal título? Deve a objetividade ser aqui tomada em seu sentido epistemológico estrito: é objetivo aquilo que o pensamento metódico elaborou, pôs em ordem, compreendeu, e que por essa maneira pode fazer compreender. Isto é exato quanto às ciências físicas, quanto às ciências biológicas; também é exato quanto à história. Esperamos por conseguinte da história que ela proporcione ao passado das sociedades humanas o acesso a essa dignidade da objetividade. Isso não quer dizer que essa objetividade seja a da física ou da biologia: há tantos níveis de objetividade quantos procedimentos metódicos. Esperamos, portanto, que a história ajunte uma nova província ao império variado da objetividade. (RICOEUR, 1968, p. 23).
Neste processo de construção, como diz Ricoeur (1968, p.23), de “uma nova
província ao império variado da objetividade” é oportuno retomar a ideia
desenvolvida na introdução à concepção de cultura, da convicção de que o homem
ao criar e inovar, o faz inserido numa determinada cultura e, envolvido por ela,
3 Ginzburg (1987) destaca que este é um dos motivos mais imediato da desconfiança dos
historiadores, o fato de ainda hoje a cultura das classes subalternas ser predominantemente uma cultura oral.
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executa uma atividade criativa e parcial. Schaff traz grande contribuição para se
entender aquilo que seria característico do processo de construção na busca pela
objetividade no trabalho do historiador. Destaca o autor de História e Verdade:
O homem é na sua realidade o conjunto das relações sociais; e se abstrai deste conteúdo social da pessoa humana, os únicos laços que subsistem entre os homens são os que estabelece a natureza, o que é falso. É esta precisamente a pergunta que se coloca: será o indivíduo apenas um exemplar da sua espécie biológica, ligado aos seus semelhantes de uma maneira puramente natural, biológica? A ciência contemporânea responde a esta pergunta com uma negativa: certamente, o indivíduo humano é um ser biológico enquanto exemplar da espécie Homo sapiens; mas isto não chega para o caracterizar pois, além das determinações biológicas, está sujeito às determinações sociais e é precisamente por esta razão um ser social. (SCHAFF, 1986, p. 79)
Por isso, qualquer tentativa de isolar o homem de seu contexto cultural e
social, comprometeria a tentativa de compreender o próprio homem já que este está
longe de ser um ser abstrato. Conclui Schaff:
Só o indivíduo humano e concreto, percebido no seu condicionamento biológico e no seu condicionamento social, é o sujeito concreto da relação cognitiva. É portanto então evidente que esta relação não é nem pode ser passiva, que o seu sujeito é sempre ativo, que introduz – e deve necessariamente introduzir – algo de si no conhecimento que é então sempre, numa acepção determinada destes termos, um processo subjetivo-objetivo. (SCHAFF, 1986, p. 81).
Le Goff (2003) dirá que a crítica à noção de fato histórico, tem sim
contribuído para o reconhecimento de outras realidades históricas esquecidas pelos
historiadores, resgatadas a partir de documentos ligados não só ao texto, mas à
palavra, ao gesto, ao imaginário que permitem trabalhar com documentos literários e
artísticos como material histórico que respeite a especificidade daquela sociedade
em questão, através das práticas, dos rituais, das gravuras dos gestos, ou seja, do
respeito a uma história do simbólico. Dentro desta perspectiva de um alargamento
do objeto do historiador, Le Goff reproduz a fala do historiador Lucien Febvre:
A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-se sem documentos escritos, quando não existem. Com tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para fabricar o seu mel, na falta das flores habituais. Logo, com palavras. Com signos. Paisagens e telhas. Com as formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e com as análises de metais feitas pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem, depende
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do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem... Toda uma parte, sem dúvida a mais apaixonante do nosso trabalho de historiadores, não consistirá num esforço constante para fazer falar as coisas mudas, para fazê-las dizer o que elas por si próprias não dizem sobre os homens, sobre as sociedades que as produziram, e para constituir, finalmente, entre elas, aquela vasta rede de solidariedade e de entreajuda que supre a ausência do documento escrito? (LE GOFF, 2003, p. 530).
É por este caminho que os historiadores podem e devem fazer críticas
profundas à noção de documento e a ideia concebida e profundamente enraizada na
cultura Ocidental, de que o texto escrito é a expressão plena e completa da
realidade, e que, portanto, basta o texto para se fazer a história. O texto é parte
importante da história, mas ainda assim, não pode passar disso, ou seja, parte dela.
Le Goff recupera o historiador Marc Bloch que traz contribuições tanto na
perspectiva de concepção dos documentos, como também, na compreensão do
papel do historiador como cientista ativo e parcial na busca pela objetividade
histórica:
Não obstante o que por vezes parecem pensar os principiantes, os documentos não aparecem, aqui ali, pelo efeito de um qualquer imperscrutável desígnio dos deuses. A sua presença ou a sua ausência no fundo dos arquivos, numa biblioteca, num terreno, dependem de causas humanas que não escapam de forma alguma à análise, e os problemas postos pela sua transmissão, longe de serem apenas exercícios de técnicos, tocam, eles próprios, no mais íntimo da vida do passado, pois o que assim se encontra posto em jogo é nada menos do que a passagem da recordação através das gerações. (LE GOFF, 2003, p. 534)
Enfim, concluirá Le Goff, seguindo este raciocínio sobre a história e o papel
do historiador, o documento qualquer que seja ele, escrito por quem quer que seja,
ou em que época for, é ao mesmo tempo verdadeiro e falso, já que é o resultado de
uma montagem, consciente ou não, da história da sociedade que o produziu e das
épocas sucessivas. Cabe ao historiador desmontar e analisar as condições de
produção destes documentos-monumentos, elaborando uma nova erudição capaz
de transferi-los do campo da memória para o campo da ciência histórica,
possibilitando um alargamento e um aprofundamento da história cientifica.
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CAPÍTULO 1 - A LINGUAGEM HUMANA
Sob sua forma primeira, quando foi dada aos homens pelo próprio Deus a linguagem era um signo das coisas absolutamente certo e transparente, porque se lhes assemelhava. Os nomes eram depositados sobre aquilo que designavam, assim como a força está escrita no corpo do leão, a realeza no olhar da águia, como a influência dos planetas está marcada na fronte dos homens: pela similitude. Essa transparência foi destruída em Babel para a punição dos homens. As línguas foram separadas umas das outras e se tornaram incompatíveis, somente na medida em que antes se apagou essa semelhança com as coisas que havia sido a primeira razão de ser da linguagem. Todas as línguas que conhecemos, só as falamos agora com base nessa similitude perdida e no espaço por ela deixada no vazio. (FOUCAULT, 2000, p. 49)
É sabido que os animais têm sua ação regida por leis biológicas, não havendo
possibilidades a eles da escolha de realizar ou não uma determinada tarefa.
Considerando o instinto, o animal executa suas tarefas ignorando, do ponto de vista
da consciência, porque as executa. E o mais instigante é que todo este saber é
transmitido de uma geração para outra, sem que necessite de um intermediário, ou
seja, é transmitida sem palavras. Rubem Alves exemplifica de maneira muito precisa
esta particularidade pertencente aos animais. Diz ele:
Lembro-me daquela vespa caçadora que sai em busca de uma aranha, luta com ela, pica-a, paralisa-a, arrastando-a então para seu ninho. Ali deposita os seus ovos e morre. Tempos depois as larvas nascerão e se alimentarão da carne fresca da aranha imóvel. Crescerão. E sem haver tomado lições ou frequentado escolas, um dia ouvirão a voz silenciosa da sabedoria que habita os seus corpos, há milhares de anos: Chegou a hora. É necessário
buscar uma aranha... (ALVES, 1984, p. 15).
O fato é que há uma diferença fundamental que separa o ato humano da ação
animal. A ação humana está impregnada da consciência do seu fim. O ser humano
sabe por que executa aquela ação, o que faz dela um ato voluntário. Pode ser
executado ou não. O biológico não tem como no caso dos animais a última palavra.
É bom que se diga, no entanto, que existem casos de ações de alguns mamíferos
que surpreendem ao homem. Diante de alguns desafios imediatos, algumas
espécies de animais respondem de maneira inteligente e criativa, alcançando a
resolução do problema proposto. Certas espécies de macacos, por exemplo, são
capazes de aprender a utilizar gravetos que introduzem no interior de cupinzeiros
para, em seguida, se alimentarem. Segundo os estudiosos, é um aprendizado que
distancia da ação instintiva e coloca o animal como executor de um ato de
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inteligência. Segundo estes observadores, os chimpanzés que se utilizam destes
recursos, ensinam seus filhotes a fazerem o mesmo. No entanto, este tipo de ação
executada por estes animais, são ações que respondem ainda a uma necessidade
imediata deles. Portanto, é considerada uma ação concreta porque depende da
experiência imediata. É uma ação utilitária que responde àquela necessidade
imediata e que não resultará em uma experiência que terá uma evolução posterior.
Esgota-se na resposta a necessidade imediata de resolver aquele problema
específico.
No ato humano, o que se deseja destacar é que ele existe antes de ser
executado, como pensamento e, por isto mesmo, é consciente de um fim e dos
meios que se utiliza para alcançar este fim. Gusdorf resume bem esta distinção
homem e animal:
O animal nunca está em falta. Ele está ali onde está. Seu estar no mundo fica limitado ao âmbito do horizonte material. O próprio regime de sua vida e de sua morte parece fundido com os ritmos da natureza. A abertura, pela consciência humana, de indefinidas possibilidades leva à dissociação do possível e do real, que quase coincidem no animal. No homem, o possível passa à frente do real: alargando indefinidamente a paisagem, ele mantém a nostalgia de uma expansão superior do ser. Realiza-se assim permanentemente uma transfiguração do horizonte natural. O habitat humano assume forma mental. (GUSDORF, 1980, p. 24).
Luria (1979) destaca que as diferenças da atividade consciente do homem em
relação ao comportamento dos animais, resumem-se a três traços. O primeiro é que
o homem não está obrigatoriamente ligado a motivos biológicos. A atividade do
homem seria regida por complexas necessidades, tais como, cognitivas, de
comunicação, de ser útil, e outras. Um segundo traço consiste em que o
comportamento humano não é determinado por impressões evidentes, recebidas do
meio, ou por vestígios da experiência individual imediata. O homem pode refletir as
condições do meio. Pode abstrair a impressão imediata, penetrar nas conexões e
dependências profundas das coisas. O terceiro e último traço que difere a atividade
do homem em relação ao animal, torna-se bastante significativo considerando a
capacidade do homem ser um criador de cultura. Diferente de outros animais, cujos
comportamentos têm como fontes os programas hereditários e os resultados da
experiência individual, a atividade consciente do homem tem como uma terceira
fonte o fato que a grande maioria dos conhecimentos e habilidades do homem se
forma por meio de assimilação da experiência de toda a humanidade, acumulada no
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processo de aprendizagem. Isto quer significar que desde o nascimento de uma
criança, ela já forma seu comportamento sob a influência das coisas que se
formaram na história, assimilando as habilidades que foram criadas pela história
social.
Considerando estes três fatores, em especial, este terceiro elemento, as
diferenças fundamentais que dão as peculiaridades inerentes aos homens devem
ser procuradas na forma histórico-social de atividade relacionada diretamente com a
dimensão do trabalho que produz o próprio homem e o mundo em que vive. Nesse
sentido, evidenciam-se dois fatores que são a fonte da transição da vida
determinada dos animais para uma história humana marcada pela criação de
cultura. O primeiro fator é o trabalho social e os instrumentos para a realização do
mesmo, o segundo fator é o surgimento da linguagem.
Com relação ao trabalho humano se caracteriza por ser uma atividade dirigida
com fins conscientes, possibilitando ao homem transformar a natureza, e ao mesmo
tempo, vai ele mesmo se modificando no processo de elaboração do trabalho. Como
visto o animal por ser movido pelo instinto, realiza uma ação inconsciente repetindo
suas ações mantendo-se num ciclo fechado e determinado. Já o homem no decorrer
do processo, age sobre o mundo e este, modificado pela ação humana, age sobre o
homem modificando-o também e determinando alterações na maneira de perceber o
próprio mundo que o cerca.
Karl Marx, na sua obra O Capital expressa com precisão esta concepção,
quando analisa a dimensão que o trabalho exerce sobre homem e sua relação com
o meio:
Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural com uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças a seu próprio domínio. Não se trata aqui das primeiras formas instintivas animais de trabalho... Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de sua colméia. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do
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trabalhador, e, portanto, idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato isolado. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é exigida a vontade orientada a um fim, que se manifesta como atenção durante todo o tempo de trabalho, e isso tanto mais quanto menos esse trabalho, pelo próprio conteúdo e pela espécie e modo de sua execução, atrai o trabalhador, portanto, quanto menos ele o aproveita, como jogo de suas próprias forças físicas e espirituais. (MARX, 1983, p. 149-150).
O outro fator fundamental neste processo da construção de uma história
humana será o surgimento da linguagem. Desde o homo erectus4, a fala parece ser
a grande distinção dos hominídeos em relação às outras criaturas. Em outros
termos, a palavra se encontra na origem do universo humano.
Não que os animais não possuam linguagem. É sabido que eles se
comunicam, mas sua linguagem está biologicamente programada ou quando muito,
está restrita à experiência vivida. A linguagem do animal não conhece o símbolo. No
dizer de Luria (1979), a “linguagem” dos animais nunca designa coisas, não
distingue ações nem qualidades. É fundamental para o entendimento entre as
espécies, mas certamente muito diferente da linguagem simbólica que caracteriza a
linguagem humana. É o que escreve Vendryès, citado por Wilson Martins:
A linguagem humana não é menos natural que a do animal, mas se situa num grau superior, porque o homem, tendo dado aos sinais um valor objetivo, pôde fazê-lo variar por convenção infinitamente. A diferença entre a linguagem animal e a humana está na apreciação da natureza do sinal. O cão, o macaco, a ave, fazem-se compreender dos seus semelhantes; eles emitem gritos, gestos, cantos, que correspondem a certos estados psíquicos de alegria, terror, de desejo, de apetite; alguns desses gritos são tão bem apropriados às necessidades particulares que se poderia quase traduzi-los por uma frase em linguagem humana. Entretanto, os animais não formam frases; eles são incapazes de fazer variar os elementos dos seus gritos, por mais complexos que estes sejam, como nós fazemos variar as nossas palavras, que são, na frase, elementos de substituição. Para eles, a frase não se distingue da palavra. Ainda mais: essa palavra mesmo, grito ou sinal, como se quiser chamá-la, não tem valor objetivo independente. Dessa forma, não é objeto de convenção, e por consequência, a linguagem animal não é suscetível de transformações nem de progressos; não existe aparência de que o grito dos animais tenha sido outrora diferente do que é hoje. A ave que solta um grito para chamar a mão portadora duma folha de alface não tem consciência de seu grito como sinal. A linguagem animal implica uma aderência do sinal com a coisa significada. Para que a aderência cesse e o sinal adquira um valor independente do objeto, é
4 Espécie extinta de hominídeo que viveu entre 1,8 milhões de anos e 300.000 anos atrás. Encontrados principalmente na África, habitavam cavernas, produziam e usavam ferramentas bem mais elaboradas, que representam a primeira ocorrência no registro fóssil de um design consciente. Foram provavelmente os primeiros a usar o fogo.
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necessária uma operação psicológica, que está no ponto de partida da linguagem humana. (MARTINS, 2001, p. 19).
Acioli (1994) distingue dois tipos de linguagem. A que denomina de natural,
característica própria dos animais que se resumem a emitir sons e a linguagem
artificial ou convencional. Esta última, a linguagem humana, devido a sua
capacidade de abstração, convenciona um valor para os sinais. Difere da linguagem
natural, porque os sons pronunciados pelo homem têm valores por ele atribuídos
aos fonemas. Feita esta distinção, destaca ainda a autora que a linguagem
convencional pode ser classificada da seguinte maneira:
Auditiva: aquela que transmite a ideia através de sons.
Visual: aquela cuja percepção acontece através dos olhos. A escrita, por
exemplo, é um tipo de linguagem visual. Sendo a atribuição de um valor simbólico
ao sinal gravado, a escrita tem por objetivo a fixação da linguagem verbal. Outro
exemplo de linguagem não-verbal é a mímica ou gesto e seu conhecimento
contribuiu de maneira significativa para o estudo da escrita.
Sensorial: tipo de linguagem convencional que se caracteriza pelo tato. Um
exemplo deste tipo de linguagem é o Braille.
Quanto ao seu surgimento, é complexo determinar como e quando o homem
passou a se utilizar dela para se comunicar com outros homens. Uma possibilidade
seria que a partir do momento que passou a usar as mãos, este fato teria permitido o
desenvolvimento do instinto criador, possibilitando o surgimento do conceito e a
associação das ideias e permitindo ao homem, mesmo que partindo do concreto,
elaborar abstrações culminando com o aparecimento da linguagem conceitual. Outra
hipótese é que a linguagem teve seus primórdios nas relações dos homens no
processo de trabalho. Contudo, estes sons necessários como informações, não
tinham ainda existência autônoma, estavam ligados diretamente à atividade prática.
Neste estágio, como é de se supor, a linguagem gestual era mais decisiva que a
linguagem de sons. Só muito mais tarde, a linguagem de sons separou-se da ação
prática e passou a adquirir independência, possibilitando o surgimento da língua
como um sistema de códigos independentes. O que se quer destacar é que na
linguagem denominada natural comum aos animais, não se designa coisas, o que
acontece na linguagem convencional; característica dos seres humanos.
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Na compreensão de Luria (1979) o surgimento da linguagem distinta da
prática imediata traria ao menos três mudanças essenciais à atividade consciente do
homem. A primeira é que designando os objetos e eventos do mundo exterior com
palavras isoladas ou combinações de palavras, a linguagem possibilitará discriminar
esses objetos, dirigir a atenção para eles e conservá-los na memória. O segundo
papel da linguagem é que as palavras de uma língua não só indicam as coisas como
também abstraem as propriedades essenciais destas, possibilitando o processo de
abstração e generalização. Assim, a palavra possibilita a análise e a classificação
dos objetos, transformando a linguagem na possibilidade de meio de comunicação e
de veículo fundamental do pensamento, que assegura a transição do sensorial ao
racional na representação do mundo. E finalmente, a terceira função essencial. A
linguagem passa a ser o veículo fundamental de transmissão de informação e ao
transmitir a informação mais complexa, produzida ao longo de séculos de prática
histórico-social, permitirá ao homem assimilar essa experiência e por meio dela,
dominar conhecimentos, habilidades e modos de comportamento, trazendo um
desenvolvimento psíquico desconhecido das outras espécies de animais.
1.1 A linguagem no processo da evolução
Considerando a importância no processo da comunicação, realiza-se, a
seguir, um histórico da linguagem humana com o objetivo de compreender por que
algumas comunidades humanas mantiveram a oralidade e outras desenvolveram a
escrita como forma de expressão e, em alguns casos, atribuindo a esta última
privilégio sobre outras, como acontece, por exemplo, com a cultura Ocidental.
Para realizar este breve histórico, parte-se do conceito de Roberts (2000) que
define a história como a narrativa dos seres humanos. O que se quer dizer com
narrativa, é que a história não será compreendida como apenas aquilo que se
registrou nos documentos através da escrita. Recorda-se a esclarecedora
contribuição dos historiadores da revista Annales d’Histoire Économique et Sociale
de 1929, em especial, a definição de Febvre insistindo na necessidade de se ampliar
a noção de documento. Diz ele que na ausência dos documentos escritos o
historiador pode fazer história com as palavras e paisagens, ou seja, com tudo o que
pertencendo ao homem, depende dele, serve a ele, exprime-o, demonstre sua
presença e suas maneiras de ser.
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Isto quer significar que a história de fato não se faz sem documentos. No
entanto, a compreensão que se adota desde já de documento é aquela que passa
pelo documento escrito, mas também do ilustrado, da imagem ou de qualquer outra
maneira em que exista o homem no seu agir. É um ponto de partida que considera
os seres humanos como aqueles que de início demonstraram capacidade de criar
mudanças diferentes de outras espécies. Isto significa definir que a história começa
quando a herança da genética e do comportamento foi pela primeira vez quebrada
através de uma escolha humana consciente. Neste momento, o homem rompe com
o determinismo e a história humana passa a ser realizada por ações baseadas em
escolhas deliberadas e conscientes. Este ponto de partida coincide com a distinção,
já exposta neste trabalho, em relação aos homens e aos demais animais, que teria
levado ao surgimento desta capacidade de escolha determinando, a partir daí, a
construção progressiva daquilo que se pode chamar de uma cultura humana5.
Existe uma preocupação de se partir de um conceito de história humana que
não limite a história ao período posterior ao seu registro por escrito. Ao manifestar o
processo da história da humanidade, faz-se com a intenção de romper com o
paradigma da história tradicional que considera a escrita como um marco divisor
significativo da vivência humana, em detrimento de outras tantas manifestações.
Entende-se que para se decifrar o significado das letras na sua expressão mais
profunda, deva se resgatar outros traços de explicitação do humano que não se
esgotem com as letras. Pelo contrário, permanecem nas culturas letradas como
elementos constitutivos dessas culturas, mas que o privilegiado olhar para as letras,
ocultou ou desconsiderou.
É consenso por parte de muitos biólogos a interferência do meio ambiente
contribuindo para a preservação ou extinção de algumas espécies. Provavelmente
tenham sido significativas algumas alterações no clima que tenham determinado o
desaparecimento ou aumento de espécies de seres vivos. Novas condições
climáticas, por exemplo, contribuíram para que mamíferos que surgiram de
minúsculos ancestrais há cerca de 200 milhões de anos, evoluíssem para atuais
famílias, inclusive a do homo sapiens sapiens.
5 Interessante destacar que cientistas tradicionalmente consideram a história o período que se inicia com a invenção da escrita, que ocorreu por volta de 3200 a.C. Portanto, todo período antecedente corresponderia à pré-história. Nota-se a partir desta leitura, a importância que os pesquisadores depositaram à escrita, concepção esta que terá uma determinação para a compreensão posterior das culturas humanas, especialmente para a civilização Ocidental.
31
Segundo Roberts (2000), há cerca de 55 milhões de anos, um grupo de
roedores que vivia nas árvores, denominados de prossímios, foram os ancestrais de
sobreviventes melhores adaptados geneticamente aos desafios encontrados nas
florestas. As florestas teriam premiado a capacidade de aprender e se adaptar de
algumas espécies e entre os que sobreviveram estavam espécies de longos dígitos,
que evoluíram para dedos e com os polegares separados. Há 25 milhões de anos,
teriam surgido os primeiros símios e macacos com corpo e cérebros maiores. Alguns
grupos, que passaram a viver nas florestas, foram se adaptando às novas
condições. Deste grupo se desenvolveram os hominídeos.
Baseado em estudos dos fósseis, Roberts (2000) afirma que há três ou quatro
milhões de anos, começaram a aparecer aqueles que podem ser considerados
nossos ancestrais. Descobertos na África, na década de 1950, foram batizados de
australopithecus africanus. Mediam cerca de 1,20 metros, possuindo um crânio
grande como o do gorila e os membros superiores terminavam com mãos parecidas
com os dedos humanos. Um dado bastante significativo é o fato de serem
carnívoros e por ser a carne um alimento concentrado, diferente dos vegetais, não
necessitavam comer com tanta frequência, liberando mais tempo livre para
executarem outras atividades. Somado a este tempo livre, ainda existia a
necessidade de se cortar a carne e esmagar os ossos, uma tarefa não tão simples,
considerando que eram descendentes de vegetarianos. Isto leva a supor que o
australopithecus era fabricante de ferramentas, descoberta fundamental no processo
da evolução.
Munido de um cérebro grande e diante de desafios que outrora poderiam
determinar a extinção de outras espécies, a inteligência aparece como uma
característica singular capaz de determinar um novo marco na trajetória dos seres
vivos e, por decorrência, o início da história humana construída por ações
resultantes de escolhas conscientes.
E se o australopithecus apresentava um cérebro grande, o do Homo erectus
era quase o dobro deste. Este diferencial pode ter sido resultado do consumo de
carne, adquirida do desenvolvimento de uma complexa atividade de caça. É bem
provável que esta atividade tenha exigido, por parte de seus envolvidos, a
necessidade de uma comunicação mais elaborada, o que teria favorecido o
desenvolvimento da linguagem e, consequentemente, o desenvolvimento do
pensamento abstrato, reforçado por uma série de novas exigências. Portanto, o
32
Homo erectus e suas novas habilidades contribuíram para o advento do pensamento
abstrato e, por decorrência, para o surgimento da linguagem. Cerca de 250.000
anos foram descobertos crânios que podem significar os primeiros traços Homo da
espécie sapiens. Trata-se do Homo sapiens nean dertalensis que viveu por volta de
80.000 a.C. em grande parte da Europa e Ásia.
Com cérebros ainda maiores que o Homo erectus, estudos sugerem a
existência de um complexo sistema de linguagens, acompanhados de experiências
de rituais, já que há indícios que enterravam seus mortos. Posteriormente, foram
localizados no Oriente entre 50.000 e 40.000 a.C., indivíduos denominados de Homo
sapiens sapiens que alcançaram as Américas há cerca de 30.000 a.C.
Não é intenção uma análise mais profunda ou detalhada deste processo
evolutivo que passou a humanidade. O que se quer destacar com este breve relato é
que a humanidade já na era Paleolítica, apresentava características que permitiam
sugerir um indivíduo, que diante de desafios concretos, começou a elaborar e
apresentar soluções criativas que seriam necessárias e úteis para a sua
sobrevivência enquanto espécie e, como não representavam ações instintivas, mas
o resultado de uma ação deliberada e criativa, necessitariam ser transmitidas para
os indivíduos e para as gerações seguintes.
Nota-se, neste caso, o distanciamento de uma linguagem baseada em sons
com significados imediatos para um campo da linguagem abstrata onde o homem se
depara com a necessidade de convencionar um valor para os sinais.
Acioli (1994) destaca que a linguagem é resultado de um duplo reflexo: a
percepção dos sentidos e a concepção das ideias. Disto resulta o conceito de
linguagem. Baseado na classificação dada por Acioli, das diferentes linguagens,
auditiva, sensorial e visual, destaca-se a linguagem visual que Roberts (2000) irá
denominar de primeira arte. Por volta de 20.000 a.C. teriam os homens deixado
pinturas nas paredes das cavernas, predominando temas de animais. O detalhe
destas pinturas é que se localizavam no fundo das cavernas e eram alcançadas
apenas com luz artificial. Roberts (2000) considera que por todos estes detalhes, é
difícil não se pensar na possibilidade destas pinturas representarem rituais
religiosos.
Outros importantes passos da humanidade e que tiveram significativas
decorrências para a evolução, foram o advento da agricultura, bem como, a criação
de animais, que ocorreram por volta de 10.000 a.C.
33
Como decorrências destas descobertas, as comunidades humanas foram
sofrendo alterações significativas. Se até então, a incerteza com relação à aquisição
de alimentos era uma constante nestas comunidades, agora com a agricultura
tinham nas mãos, a possibilidade de uma garantia maior de que o alimento estava
mais próximo do que antes. Bright (1978) confirma esta teoria, afirmando que por
volta do nono milênio a.C., o homem inicia uma economia de produção de alimentos.
É o caso de um dos aldeamentos mais antigos do qual se tem notícia, o aldeamento
de Jericó em torno de 8000 a.C., com uma população de aproximadamente três mil
habitantes. Certamente, com o advento da agricultura, a decorrência natural é o
surgimento de assentamentos cada vez mais numerosos e permanentes.
Neste período, diferente do que sugerem outras interpretações, não se trata
de estar a caminho da história, mas sim, de comunidades que, desde este momento,
convivem e enfrentam necessidades comuns e cotidianas que, necessariamente,
não precisam estar registradas por escrito para serem consideradas como parte da
história da humanidade. Esta constatação não diminui a importância da escrita na
história, mas permite outro olhar, percebendo que algumas culturas caminham para
o registro escrito o que determinará para estas comunidades significativas
mudanças e que vão deixar marcas profundas nas suas relações políticas,
econômicas, sociais e culturais. Enquanto outras culturas, marcadas pela oralidade,
terão características próprias, mas não menos importantes como relatos humanos
de suas respectivas histórias. Cabe, desde já, lembrar que embora as culturas
letradas tenham seus registros escritos, nem por isto, deixarão de serem culturas
que se revelam também pela oralidade, afinal, embora registrando suas vivências
por escrito, continuam formadas por seres “dizentes”.
Do mesmo modo, as primeiras comunidades que existiram muito antes do
aparecimento da escrita, já possuíam práticas religiosas e elaboravam complexos
desenhos que carregavam simbolismos e abstrações que demonstravam uma
grande autonomia do homem em relação à natureza e a seus instintos. Estava o
homem produzindo história e manifestando a forma de ser daquelas comunidades
através de gestos, que revelavam o sentido que davam às suas vidas. Entende-se
que tratar da história, portanto, é tratar das vivências humanas nas diferentes
comunidades de forma criativa nas soluções dos problemas existenciais que
envolvem estas mesmas comunidades. Não é a escrita responsável pelo início da
história da humanidade. É importante esta observação, porque resgata a escrita
34
como mais um componente importante das grandes descobertas, semelhantes à
utilização do fogo, da fala ou da agricultura. Resgatar a escrita como uma importante
descoberta na história introduz a questão sobre o que teria levado algumas
civilizações a produzir um dos traços mais marcantes da nossa cultura
contemporânea, ou seja, as letras.
A escrita, como também os desenhos nas paredes das cavernas ou em argila,
desenhos nas pedras e outros, são todos, relatos simbólicos das vivências
humanas. A ausência das letras não elimina a historicidade das comunidades que
não se pautam por esta característica, da mesma forma que as letras não são
suficientes para revelarem a história das comunidades que se pautam pela escrita.
Portanto, os relatos escritos não representam a história das comunidades, mas
antes, a história destas comunidades como foram descritas.
Por este raciocínio, tratar-se-á da pré-história, como o período que antecede
qualquer sinal do aparecimento do homem em comunidade. Quanto ao conceito de
história, será compreendido como os primeiros relatos da vivência dos homens em
comunidade. Um dos exemplos já citado anteriormente, é a aldeia de Jericó,
comunidade conhecida por ter existido por volta de 8000 a.C.
Marx e Engels já alertavam sobre esta questão, ao se atribuir ao conceito, um
valor que ele não tem. Compreendiam estes autores, que o ponto de partida da
história não poderia ser a ideia. Dirão na introdução da Ideologia Alemã:
A premissa de que parte a ciência positiva da história são os indivíduos humanos reais de vida. Premissa a qual se chega por via empírica, dispensando filtragens filosofantes. A premissa de toda história humana é a existência de indivíduos humanos viventes. (MARX; ENGELS, 1977, Introdução – p. 24).
Argumentam Marx e Engels que a produção das ideias, das representações e
da consciência é a linguagem da vida real. São os homens reais que produzem suas
representações. Portanto, as representações não têm autonomia, não têm história. E
concluem os autores: “Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida
que determina a consciência.” (MARX; ENGELS, 1977, Introdução – p. 20).
Fundamentado pela contribuição destes autores, reafirma-se que a história
será entendida, como o período que se conhece desde os primeiros sinais da
vivência dos homens em sociedade até nossos dias. Quanto aos relatos escritos,
35
fundamentais para a compreensão da história, serão entendidos como relatos
escritos das vivências humanas, ou seja, relatos da história humana.
1.2 Origem dos símbolos6 gráficos
Os primeiros entalhes de que se tem informação parecem datar de cem mil
anos atrás. A humanidade usou de símbolos gráficos e de memória para registrar
informações. Um exemplo de dispositivo de memória foi utilizado pelos Incas no
Peru, ainda no período Neolítico, registrando com vários tipos diferentes de nós,
suas transações mercantis ou pagamentos de tributos do império. Havia uma
categoria especial de escriturários que supervisionavam e administravam esse
sistema altamente complicado.
Quanto aos entalhes, marcas em pedra e osso do homo sapiens sapiens
datadas de cem mil anos atrás, indicam registros intencionais, o que sugere
armazenagem de informação. Mas a necessidade de uma variedade de informações
fez surgir a união de marcas e elementos de memória, criando assim a pictografia7.
A arte rupestre pode ser entendida como uma pictografia e já era transmitida há
dezenas de milhares de anos. Transmitindo valores fonéticos, a pictografia tem
como característica a sua identidade com a fala.
Fischer (2009) destaca o surgimento de um dos primeiros símbolos gráficos
de que se tem notícia na história. A cultura vinca, nos Bálcãs, revela a possibilidade
de um conjunto de símbolos gráficos, há 6.500 anos, todavia, ainda não seriam
sinais de palavras completas que representariam o som do nome do objeto e nem
sinais que contém um valor fonético.
Quanto à escrita, nasce da necessidade de se registrar situações do
cotidiano. Na região do Oriente Médio, foram encontradas fichas de argila utilizadas
para controlar as mercadorias. A maior parte destas fichas vinha da Suméria, região
conhecida por ser o berço da escrita. A Suméria teria sido a primeira civilização que
apareceu no sul da Mesopotâmia8. As drenagens e as inundações anuais
colaboraram para um solo rico, garantindo água e produção, propiciando o
surgimento de uma vida urbana na região.
6 Aqui entendidos como uma marca gráfica que quer significar uma outra coisa.
7 Do latim “pictu” - pintar. Sistema de imagens que constituem uma escrita sintética.
8 Região entre rios, antigo nome grego do atual Iraque.
36
Surgiram zonas de cultivo e foram criadas técnicas de drenagem e irrigação
do solo e eram usadas coletivamente, dando margem para o surgimento de uma
organização social, que desembocou naturalmente em uma autoridade consentida.
Com o aumento da população, espaços maiores foram sendo dominados e foram
surgindo centros urbanos cada vez maiores e mais complexos, bem como, centros
administradores que acompanhavam este processo de crescimento urbano. O
centro em torno do qual resultaria o assentamento, seria o santuário da divindade
local. O administrador concentraria em suas mãos o poder político e a autoridade de
sumo sacerdote.
Por volta do quarto milênio a.C., ocorreram inovações nestas fichas de argila
usadas pelos sumérios. Segundo Fischer (2009), foram criados recipientes para
estas fichas que eram marcadas e impressas por fora, tornando-se padronizadas.
Assim, cada ficha representava algo, e os recipientes indicavam o tipo de ficha que
havia dentro. Aqueles que continham as fichas podiam registrar o tipo e a
quantidade de seu conteúdo. Assim que esses símbolos exteriores começaram a ser
interpretados e usados como sinais primários, teria nascido, então, a escrita como
conhecemos.
Diringer (1971), mesmo alertando sobre os cuidados devidos para uma
demarcação que não fosse rígida, mas sempre encarada com reservas, sugere uma
classificação das escritas da seguinte maneira:
Pictografia ou escrita figurativa: é aquela que representa o mais rudimentar da
verdadeira escrita. É capaz de representar a sequência de ideias de uma narrativa,
podendo exprimir-se oralmente sem alteração de conteúdo, já que as pinturas não
são representadas por meio de sons específicos. Porém, cada coisa tem um nome
oral para aqueles que executaram o desenho.
Escrita ideográfica: significa a possibilidade de transmitir abstrações. Os
pictogramas podem sugerir ideias a que essas coisas estão ligadas. Por exemplo,
na escrita pictográfica um círculo pode representar o sol, mas na ideográfica pode
significar luz, dia, um deus associado ao sol.
Escritas analíticas de transição: segundo Diringer (1971) são classificadas de
transição por se situarem entre a escrita ideográfica e a escrita fonética. Exemplos
dessas escritas encontram-se nos antigos povos mesopotâmicos, egípcios,
cretenses e hititas.
37
Escritas fonéticas: Neste tipo de escrita ocorre a relação da escrita com a fala.
Por exemplo, na escrita ideográfica não ocorre a relação do símbolo desenhado e o
nome oral. No caso da escrita fonética, cada elemento corresponde a um som na
língua que é representado, estabelecendo a relação entre as linguagens escrita e
falada, não se tornando necessário qualquer ligação entre a sua forma externa e o
som que elas representam.
A escrita fonética pode ser silábica ou alfabética. A sílaba seria a menor
unidade em que se pode subdividir a palavra falada ou o som. Quanto à escrita
alfabética, ganhou em importância nos últimos três mil anos e o alfabeto passou a
ser considerado o método de escrita mais útil e flexível, tornando-se a base
universal das escritas das mais diversas civilizações.
38
CAPÍTULO 2 - A FUNÇÃO DAS LETRAS: O REGISTRO
Como já visto anteriormente, a fala é uma grande característica que distingue
os homens das outras criaturas e este elemento distintivo faz parte no processo de
construção da história humana desde o princípio. Uma linguagem única, porque é
simbólica. E porque é simbólica, não significa que seja abstrata. Deve ser
compreendida como expressão de uma determinada realidade, de um determinado
contexto em que foi produzida, buscando compreender todas as suas dimensões
numa totalidade que considera o registro como parte reveladora da realidade
histórica humana9.
Mattoso sugere como possibilidade de se alcançar esta totalidade, através do
que ele denomina de uma atitude “contemplativa”. Este seria o caminho para se
conseguir “ler” os documentos inseridos numa totalidade que os compreendesse na
existência do homem no seu tempo, como seres viventes inseparáveis do seu
contexto. Este exercício consistiria num verdadeiro mergulho na realidade das
coisas. Assim se expressa o autor:
Na minha maneira de entender, o melhor exercício contemplativo é justamente a observação atenta do real... Quer dizer, uma observação que procura captar todas as suas dimensões: não apenas as aparentes e imediatas, mas também as ocultas, não apenas as mensuráveis, mas o que as coisas evocam e simbolizam, não apenas o que nelas é classificável segundo os parâmetros das diversas taxonomias científicas, mas também o que só pode ser captado num registro poético. A apreensão do real em todas as suas facetas implica que se ponham em jogo todas as faculdades de observação, não apenas as racionais, mas também as volitivas, o que corresponde a dizer que os sentidos do corpo e do espírito se deverão abrir de tal modo ao real, que ele seja como que interiorizado, absorvido, captado em nós mesmos. Este exercício é, por isso, um acto de amor. Um amor na plena acepção da palavra, isto é, que não é contaminado pela tentação de possuir, dominar ou destruir... (MATTOSO, 1997, p. 18).
De momento, o que se quer realçar é que na análise dos símbolos e, em
especial, do símbolo escrito, não se pode querer compreendê-lo como um valor em
si mesmo, mas sim em virtude da sua relação com o tempo e o contexto em que
9 Heidegger (2008) em Ser e Tempo afirma que o fundamento ontológico-existencial da linguagem é a fala, e esta, por sua vez, é igualmente originaria ao compreender. Logo, a compreensibilidade está sempre articulada. Dirá Heidegger: “A fala é a articulação da compreensibilidade. Por isso, a fala se acha à base de toda interpretação e enunciado. Chamamos de sentido o que pode ser articulado na interpretação e, por conseguinte, mais originariamente ainda já na fala. Chamamos de totalidade significativa aquilo que, como tal, se estrutura na articulação da fala. Esta pode desmembrar-se em significações. Enquanto aquilo que se articula nas possibilidades de articulação, todas as significações sempre têm sentido.”
39
eles surgiram. Para tal exercício Mattoso dirá que é possível realizá-lo a partir de um
olhar atento e imaginativo para não esquecer todos os fatores que interferem na
história. E esclarece sobre três justificativas que o alicerçam no propósito de se
utilizar da contemplação como método na análise histórica.
A primeira delas é a convicção de que tal atitude contemplativa não se opõe à
atitude racional e científica, mas torna a ciência mais rigorosa, já que está alicerçada
pela paixão de conhecer. No dizer de Mattoso (1997, p. 20) “O amor é ele próprio
uma forma de conhecimento.” A segunda é que a atitude contemplativa não
permitirá o contentamento apenas com os vestígios escritos do passado, já que o
homem produz, além do discurso escrito, outras marcas que se revelam de outras
maneiras e em outros lugares, como na paisagem, nas construções, nos jogos, nos
brinquedos e etc. Portanto, não basta estudar documentos escritos. Em terceiro
observar o passado não é desenterrar os mortos, mas resgatar aquilo que me
permite compreender e viver o presente e que para isto, não se pode apenas
contentar-se por conhecer uma parcela do passado, mas sim uma totalidade na qual
deve o historiador se inserir.
É com este objetivo que se propõe neste capítulo observar o registro. Evitar
olhar o registro escrito como a expressão real e totalizante da realidade, mas sim
como parte reveladora das vivências humanas. Porém, reveladora não apenas no
seu conteúdo, mas naquilo que está oculto e que somente um olhar que considera
uma dimensão mais totalizante possa alcançar. Insiste-se na necessidade de se
perceber a existência dos homens em todas as suas manifestações. Com este olhar,
o registro vai deixando de ser apenas o registro escrito, e vai alcançando uma
dimensão mais ampla e totalizante. Com isto, seguramente a discriminação
selvagem e civilizada, decorrente da consideração histórica que valoriza o registro
escrito como referência reveladora do humano, vai se dissipando e evidenciando a
história humana ampliada no tempo e nos seus detalhes constituintes que
extrapolam a dimensão do registro escrito. Teria que admitir a civilidade do
“selvagem”, o que implica dizer, a desconsideração de determinados conceitos que
cegam os homens e dificultam a compreensão da história nos seus detalhes
reveladores. Mesmo no caso do estudo do registro escrito, este aspecto é
fundamental na compreensão dos registros, já que estes não revelam valores em si,
válidos para todos, mas sim significados localizados no tempo e no espaço,
40
portanto, com sentido para aquela determinada comunidade que deu o significado a
palavra escrita.
A questão é que o homem na cultura ágrafa não está deixando de produzir
sua história. Transmite a seus descendentes toda uma herança caracterizada por
elementos morais, econômicos e políticos que fazem destas comunidades
constituintes dos agires histórico. Nestas comunidades, a escrita está ausente e a
valorização posterior deste elemento como determinante, levará a desvalorização de
todos os outros, para se considerar históricas aquelas comunidades letradas. Le
Goff lembra que a passagem do oral ao escrito será de fundamental importância,
tanto para a memória, como para a história. Mas diz ele que não podemos esquecer
que: “1) oralidade e escrita coexistem em geral nas sociedades, e esta coexistência
é muito importante para a história; 2) a história, se tem como etapa decisiva a
escrita, não é anulada por ela, pois não há sociedades sem história.” (LE GOFF,
2003, p. 53).
2.1 Letras como registro
A busca pelo alimento e a satisfação da comunidade eram preocupações
constantes dos homens e das mulheres. A organização coletiva para a caça e suas
decorrentes consequências nas relações entre os próprios homens caçadores, bem
como, entre as mulheres que executarão trabalhos específicos nas comunidades,
serão elementos significativos na formação e constituição do Estado. Desde já,
economia e política aparecem inseparáveis no processo de organização das
primeiras comunidades e, obviamente, vão ganhando em importância e
complexidade, à medida que as comunidades vão se tornando maiores no número e
na distribuição das tarefas.
Os homens passaram a desenvolver a criação de animais e a desenvolver
uma das grandes descobertas econômicas que foi a agricultura10. Também a
utilização do fogo, nas mais diversas situações, foi outra importante ferramenta para
as comunidades antigas e concentradas numa determinada região, garantindo
provisões de alimentos, com a agricultura e a criação de animais. Homens e
10
Durant (1995) destaca que esta descoberta é mérito das mulheres. Enquanto o homem saía para
caçar, cabia à mulher buscar nas imediações das cabanas o que fosse comestível.
41
mulheres destas comunidades foram usando de sua criatividade, motivada pelas
novas necessidades, o que resultou nas resoluções de seus principais problemas.
No entanto, resultante de diferentes demandas e de recursos naturais
disponíveis, cada povo podia produzir diferentes produtos, o que possibilitava a troca
entre as diversas comunidades, resultando possivelmente, num ordenado sistema
de trocas, até que fosse inventado, posteriormente, um sistema de valor. Fica
evidente que, até o momento, o comércio não aparece de maneira mais organizada,
não há propriedade privada e, portanto, nada ainda que se pudesse comparar a uma
organização política mais complexa. A posse da terra era coletiva e cabia a toda a
comunidade.
Para Lobo (1968), tudo leva a crer que não havia comércio entre uma tribo e
outra antes do aparecimento das cidades, já que cada povo constituía uma autarquia
econômica. Com o processo de passagem do regime da caça para uma nova
economia de domínio do solo, através da agricultura e do pastoreio, vão se
formando as primeiras cidades decorrendo uma conveniente troca de produtos e de
serviços. Nas próprias comunidades internamente, surgirão pessoas que vão se
especializando em determinadas funções, como, por exemplo, na produção de
instrumentos de metal para o cultivo da terra. Estes artesãos especializados, porém,
necessitavam do retorno de outros trabalhadores especializados, como, por
exemplo, os produtores de alimentos. Este processo vai fortalecendo a troca de
produtos internamente, mas tende a se estender para o comércio entre povos. Um
grupo oferece ao outro o que lhe sobra em troca do que lhe falta. Num primeiro
momento as atividades comerciais se caracterizaram pelas trocas de produtos, pois
cada qual dava o que lhe sobrava em troca do que lhe faltava. Contudo, com a
complexidade que as relações comerciais vão adquirindo com o passar do tempo,
surge a necessidade de um parâmetro para avaliar o valor das mercadorias. Um
exemplo deste parâmetro foi o gado na Itália antiga que serviu como padrão para
comparar aos demais artigos negociados.11 Com o crescimento da produção do
gado e da agricultura, o alimento vai deixando de ser uma preocupação primordial
para aqueles que tinham posse. Seu critério de valor se transferiu para outro
parâmetro. Objetos de uso pessoal, como tecidos ou joias, passaram ser referência
de riqueza, especialmente o ouro e a prata, metais que não deterioravam com o
11
O termo “pecus” no latim quer significar “gado miúdo” e originou termos como “pecúnia” e “pecúlio”.
42
tempo, mas muito raros e, por isso, de difícil obtenção. Fica evidente, que serão
eles, os novos parâmetros de valor comercial, especialmente depois que alguns
governantes passaram a criar alguns metais com peso e símbolos fazendo surgir as
primeiras moedas, dando aos produtores e comerciantes, a possibilidade de aceitá-
las para depois com elas, comprarem outros artigos.
Gradualmente, de posse de propriedades e por meio do trabalho na
agricultura realizada não só pelo proprietário e sua família, as desigualdades
provocadas pela aquisição ou não de propriedades, irá provocar divisões do trabalho
e uma consequente desigualdade social. Diante deste novo quadro, caracterizado
pela posse da propriedade e pela divisão de classes, fortalecido pela prática da
herança, o Estado como regulador de uma nova e complexa relação social, torna-se
indispensável à manutenção da nova ordem. Esta desigualdade ocorrerá não só
internamente, como também, entre habitantes de outras cidades. As cidades
vencedoras impuseram-se dominadoras, criando verdadeiros impérios e
estabelecendo um governo dominante sobre várias outras cidades, ampliando ainda
mais, o intercâmbio comercial.
Durant (1995, p. 18) dirá que “à medida que o comércio une as tribos e os
clãs, as relações daí advindas já não dependem do parentesco, mas da
continuidade, e por isso requerem um princípio artificial de ordem”. E com este
objetivo, o Estado se incumbirá de criar instrumentos que tenham a força e eficácia
no controle dos membros da comunidade. Neste contexto mais complexo e marcado
pela posse da terra, de divisões sociais de classe, de hereditariedade de bens, o
Estado vai substituindo com leis o que antes era regido pelo costume. O indivíduo
começa a surgir como expoente em meio à comunidade, agora identificado pela
posse da propriedade privada, que lhe dá autoridade econômica e pelo Estado, que
lhe garante direitos sociais definidos. O indivíduo começa a aparecer como uma
realidade distinta em meio a uma comunidade que outrora valorizava o coletivo.
Um exemplo evidente deste processo do surgimento de regras foi o
aparecimento de relações mais estáveis entre os homens e as mulheres. Uma
relativa promiscuidade vai dando lugar a uma união mais duradoura. E o motivo da
necessidade do casamento individual ocorre fundamentalmente por uma questão
econômica, já que está ligada ao desenvolvimento da instituição da propriedade
particular e o receio de que esta acabasse nas mãos de filhos de outros homens.
Esta mesma preocupação da manutenção do poder econômico, também ocorre na
43
manutenção do poder político. Embora muitos governantes possuíssem muitas
mulheres em haréns, tinham eles o cuidado de que os filhos destas mulheres
fossem, de fato, filhos do rei, já que o poder era passado de pai para filho. Daí o
cuidado de admitirem somente eunucos para trabalharem nos haréns.
Também relacionado ainda à propriedade, estabeleceu-se como
característica a poligamia, possibilitando o poder produtivo, a consequente riqueza
da família e a preocupação constante de não permitir sua divisão. Posteriormente, a
monogamia em muitas culturas, tornar-se-á a forma legal de união e, a necessidade
das letras, ficará evidente neste processo, já que será uma construção artificial e
conveniente na preservação das posses.
Tendo, portanto, sua origem na preservação dos bens, inclusive a mulher era
vista como posse, à medida que a riqueza crescia as uniões marcadas pelos
arranjos, generalizava-se. O amor, nesse caso, tinha muito pouco a ver com as
uniões entre os sexos. O casamento, distante de qualquer desejo sentimental,
possuía na sua base uma consideração prática, ou seja, era uma simples transação
comercial, uma cooperação econômica.
A própria moralidade sexual sofrerá diretamente alterações com a instituição
da propriedade e o desejo de preservá-la. Se nos primórdios a família tinha como
objetivo o aumento de seus membros, o que lançava à mulher o temor da
infertilidade; com a posse da propriedade, a valorização da virgindade foi acentuada
na compra e no valor da noiva. Era fundamental que os bens do homem fossem
para seus verdadeiros filhos e a virgindade da mulher, nesse caso, seria como uma
garantia de que, em função do seu passado, ela lhe seria fiel. Decorre deste
raciocínio também, a valorização do adultério como uma ação cada vez mais grave
e passível de punição severa. Durant (1995) dirá que o surgimento da propriedade
privada não só exigirá da mulher a fidelidade, como também, irá gerar no homem o
senso de domínio em relação à esposa.
Curioso ressaltar que, com o desenvolvimento da propriedade privada, o furto
e a mentira serão práticas frequentes nestas sociedades, criando uma cultura
propensa à mentira. O texto escrito surge não como uma confirmação da palavra,
mas como uma garantia de que a palavra será respeitada. Mais uma vez, o registro
escrito terá uma função bastante significativa, tanto no aspecto legal, no que diz
respeito ao direito da posse, como também, no aspecto moral, já que com a mentira
44
como uma prática comum, os documentos escritos ganharão cada vez mais
importância.12
Os registros das propriedades tendem a identificar cada vez mais o indivíduo
no meio social. O desenvolvimento da propriedade privada e sua posse como um
bem individual desestruturam a sociedade comunal e vão intensificando cada vez
mais o individualismo.
Quando as comunidades se tornaram mais complexas e surgiram os Estados,
as regras estabelecidas por estas instituições ampliaram suas fronteiras alcançando
números maiores de homens. Também no comércio foi se estabelecendo a
necessidade de um conjunto de normas que orientassem a prática mercantil. Durant
(1995) destaca que se existe uma ética é porque esta atividade não pode viver sem
regulamentações e sem a confiança de que estas regras serão respeitadas. Mas
como naturalmente os indivíduos de uma sociedade, são avessos às regras
impostas por grupos particulares, entra neste momento uma função da religião que é
dar um consenso social a regras que são particulares de grupos específicos. Esta
será uma das grandes funções da religião, ou seja, tornar regras específicas, um
consenso. A princípio não era esta a origem da religião. O medo que os homens
sentiam era anterior às necessidades comerciais e isto é muito compreensível se
entendermos que a vida nas primeiras comunidades era marcada por inúmeros
perigos e a morte era parceira e uma preocupação diária. A ignorância diante dos
acontecimentos e a expectativa de ajuda sobrenatural também contribuíram para a
crença religiosa. Todas as coisas tinham vida e eram objetos de adoração, desde
objetos celestes a animais selvagens. Buscando um determinado controle, sobre
este mundo marcado pela presença de espíritos, o homem criou a magia, dando
origem aos primeiros rituais. Nasce deste processo, a figura do sacerdote que de
posse de conhecimento e habilidade receberá, por parte da comunidade, o
reconhecimento de grande poder. Com o crescimento da instituição religiosa, que
acompanha o crescimento mercantil, as regras religiosas tendem a responder aos
interesses do mercado, contribuindo para sua assimilação. Basta ver que as
instituições do casamento, da propriedade privada e a instituição política, repousam
sobre as sanções religiosas.
12
Será visto posteriormente neste trabalho, como os europeus eram identificados pelos povos
ameríndios como mentirosos e ladrões.
45
Nas primeiras comunidades, o que se valorizava era a coragem. Basta
verificar que os ritos de iniciação eram os de coragem e o uso da escrita era
desnecessário, já que os habitantes daquelas comunidades aprendiam tudo o que
necessitavam pela transmissão oral. No entanto, com o aumento das relações entre
as tribos, o sistema de comunicação por meio de sinais gráficos foi se tornando uma
necessidade culminando com as invenções de rudes representações de objetos que
eram comercializados bem como sua quantidade. É bem provável que os números
tenham sido os primeiros símbolos escritos, fazendo da escrita, em seus primórdios,
apenas uma forma de desenho.
A verdade é que a origem da literatura está nas palavras e não nas letras, já
que nasce com as fórmulas mágicas dos sacerdotes, que serão transmitidas
oralmente de memória. Com o advento do comércio entre as tribos e a
complexidade que passa a envolver as relações mercantis, a escrita vai se
desenvolvendo e se adaptando ao mercado, ganhando em importância e se
secularizando. E da mesma forma que as letras podem ter tido seu início com os
sacerdotes, também a ciência deve ter tido seu começo nos templos e, com o
comércio, em especial, através da navegação, ocorreu o seu desenvolvimento.
É bem possível que a escrita começasse com as marcas na argila mole com o
objetivo de identificação dos produtos comercializados. A escrita que viria a surgir de
forma linear nas comunidades como a Suméria, por exemplo, seriam formas
abreviadas das primeiras pinturas e sinais elaborados na cerâmica da Mesopotâmia.
A escrita, portanto, tem sua origem na comunicação produzida na cerâmica
em forma de desenho e será, posteriormente, incorporada pelo escriba
desenvolvendo as letras, fundamentais para a comunicação mercantil. Origina daí,
dos primeiros símbolos comerciais, uma forma de escrita capaz de expressar ideias
através de representações gráficas. Durant (1995) defende que a escrita é por isto,
produto da conveniência comercial. Dirá que, embora os sacerdotes tenham
organizado um sistema de desenhos no intuito de registrar suas magias, com o
comércio, os seculares produziram as primeiras representações gráficas. Isto
significa dizer que a contabilidade será fundamental para o aparecimento do registro
escrito. Este fato fica evidente na sociedade Suméria, que aparece na história como
uma das importantes comunidades, que desde cerca de seis mil anos atrás, utiliza-
se dos primeiros símbolos gráficos como critério para dar conta das demandas de
uma região em expansão territorial.
46
CAPÍTULO 3 - FORMAS DE REGISTRO
Costuma-se dizer que o ser humano se distingue das outras criaturas pela
fala capaz de expressar uma mensagem simbólica diferente dos outros animais.
Fischer (2009) dirá que o que distingue o homem moderno é o fato de desenvolver
uma sociedade global baseada na escrita.
Com este capítulo, deseja-se revelar e, sobretudo, ressaltar que o homem ao
longo de sua trajetória de milhões de anos, vem se manifestando através dos
registros, mas de inúmeras maneiras diferentes, das mais diferentes formas e não
apenas pela fala ou pela escrita. Resgatar estas diferentes formas de agires humano
significa, neste caso, redimensionar o lugar da escrita na história com o intuito de lhe
tirar o peso que sobre ela caiu nas culturas letradas, de ser a única significante, e
permitir que se considere outras formas de expressão. Ao mesmo tempo, contribui-
se para que se possa entender melhor, uma nova realidade de manifestação dos
agires, característica desta nova forma de expressar o humano, marcado
principalmente pela audição e pelo olhar. Cada vez mais, vemos e ouvimos o mundo
inteiro, através das mídias de massa.
Portanto, resgatar as diferentes formas de registros humanos não significa
apenas uma contribuição na superação de leituras antropológicas que consideram a
história da humanidade a partir de uma evolução linear tendo a escrita como sinal de
evolução de progresso e, consequentemente, as sociedades ágrafas como
atrasadas e selvagens, mas também entender o que caracteriza as formas
contemporâneas de manifestação dos agires marcados pela visão e audição que
continuam sendo como antes da escrita, durante seu auge e mesmo agora, nestes
tempos de grandes avanços tecnológicos, expressões e formas de agires que
revelam o humano na sua maneira de ser. Em outras palavras, nas sociedades
marcadas pela presença da escrita, também há outras formas de manifestação
comunicativa. A economia necessita dos valores, dos registros escritos, a religião se
pauta pelas doutrinas, a política se move pelas leis e a sociedade culturalmente
caminha respaldada pelo registro escrito. No entanto, isto não elimina e muito
menos diminui o agir que se pauta pela transmissão da cultura de tradição oral.
Mesmo que exista o documento escrito como prova cabal de que determinado
negócio está feito (preto no branco), para muitos, o que vale ainda é a palavra
empenhada (o fio do bigode). Mesmo que as doutrinas religiosas sejam ordens
47
divinas impostas aos fiéis por escrito, a existência de uma religiosidade popular de
tradição oral nunca deixará de existir.
Assim, ao expor a seguir as diferentes formas de registro, deseja-se contribuir
para que não se perceba a história da humanidade como momentos evolutivos que
se sobrepõem a outros marcados pelo atraso. O que se deseja, portanto, é
possibilitar perceber que a humanidade carrega consigo, embora se destaque em
alguns períodos uma ou outra forma de registro, as diferentes formas de seus
agires. O segredo está na habilidade do cientista em saber ler a história nas suas
mais variadas formas de ser contada.
Recuperar as formas de registros humanos na história da humanidade é, sem
dúvida nenhuma, um grande desafio da Paleontologia, pois é muito difícil delimitar o
exato momento das primeiras manifestações humanas. Como lembra Arambourg
(VARAGNAC, 1963, p. 11-60), as descobertas da arqueologia pré-histórica fizeram
recuar a um passado a beira de um milhão de anos. Isto porque, o olhar
arqueológico sugere que se olhe além do referencial comumente aceito para que se
considere o início da história da humanidade. Varagnac (1963) alerta que a grande
distinção do homem em relação as outras criaturas não é propriamente a sua
capacidade de agir sobre o mundo. Os animais, dirá ele, também fazem isto. A
grande distinção dos homens será sua capacidade de fabricar com ferramentas que
foram criadas por ele. Ou seja, a técnica humana não começa com o ato de fabricar,
mas com a fabricação de um objeto que será utilizado para fabricar outros objetos.
Assim, o homem se distingue de outras criaturas e se revela conscientemente,
produzindo ferramentas para então fabricar e transformar o mundo que o cerca e a
si próprio. É esta a grande diferença da ação humana reveladora do seu agir e da
ação das outras criaturas. O homem é capaz de considerar os meios à medida que
são meios e recordar deste meio como ferramenta para alcançar um determinado
fim.
Estes registros, através da criação de ferramentas, são construções humanas
simbólicas com o objetivo de acumular informações. Por exemplo, como acontece
com a arte produzida pelos homens em pedras representando símbolos dos mais
variados e universais, como é o caso dos desenhos geométricos, astros e figuras
humanas.
Varagnac (1963) chama a atenção para este dado fundamental na busca pela
história da humanidade. A fabricação pelo homem de ferramentas, abrirá um
48
caminho para as operações mecânicas regidas por leis inteligíveis. Assim, uma
pedra lascada, resultante de um golpe calculado sob determinado ângulo, resultará
numa determinada ferramenta. Continua Varagnac (1963) que cada ferramenta é a
consequência da ferramenta seguinte. Por exemplo, cortar com uma pedra partida
está na origem do martelo. Unir as duas ações é inventar o cinzel.
No dizer de Breuil (VARAGNAC, 1963, p. 107-126) quando talhou os
instrumentos, o artífice o fez com preocupação deliberada pela harmonia e, portanto,
constituem uma arte decorativa de origem técnica. E em se tratando de arte, dirá
Lobo (1968) que surpreenderam bastante os paleontólogos, a descoberta no
paleolítico superior de obras de arte de boa qualidade. Além de instrumentos
musicais como a flauta e tambores, o que mais causou surpresa foram as
descobertas da arte figurada que surgirá nas paredes das cavernas e em pequenos
objetos. Desta variedade é que resultará uma primeira divisão em dois grandes
grupos: o que ficará conhecida como arte mobiliária, que é aquela que se pode
transportar; e a arte chamada de parietal, construídas nas paredes, no solo ou em
blocos imóveis. Tanto a arte mobiliária como a arte parietal, são dedicadas à fauna
em torno da qual viviam estes homens antigos. Na Europa este período final da
pedra lascada recebeu o nome de “Idade da Rena”, mas os animais retratados são
os mais variados, tais como cavalos, bisontes, bois, veados, mamutes, rinocerontes,
bodeguim, ursos, leão, leopardo, hiena, lobo, roedores dos mais variados e outros.
Sobre a arte mobiliária são, em geral, pouco numerosas, indo da Morávia
para as estepes lituanianas e russas até a Sibéria e são ricas em figuras humanas
geralmente esculpidas em marfim. Já no Ocidente, são encontradas destas
estatuetas na Itália, Áustria e Bélgica. Na Moravia, figuras de animais foram
encontradas acompanhando estatuetas femininas. No leste da França, encontra-se
certo número de seixos gravados com figuras de animais.
Quanto a arte parietal desenvolveu-se por duas vias: a gravura e a pintura. A
gravura partiu dos dedos sobre o barro e depois com o auxilio de um instrumento.
Inicialmente foram simples contornos e com o passar do tempo, foi evoluindo para
uma técnica mais apurada. As primeiras gravuras demonstram a simplicidade na
reprodução da perspectiva. Por exemplo, na reprodução de um animal ele aparece
de perfil enquanto os chifres são vistos de face. É uma fase inicial da manifestação
humana através da gravura, que apesar da simplicidade na reprodução artística,
revela a compreensão do artista em relação ao mundo que o cerca. Já num segundo
49
ciclo, as gravuras aparecem com a perspectiva corrigida. Com relação à pintura,
também apresenta dois ciclos e com a mesma evolução na alteração da perspectiva,
já que também revela uma superação da perspectiva torcida para a perspectiva que
se usa até hoje.
Tanto as pinturas como as gravuras não apresentam uma padronização nas
representações, mas o essencial em todas elas é o fato de terem como
característica o desejo de transmitir uma mensagem e nisto reside sua grande
importância, ou seja, registram algo e transmitem para outros.
As primeiras artes pintadas, gravadas ou esculpidas datam dos tempos da
Pré-História na Europa, África e Ásia. Os exemplos mais flagrantes encontram-se
em abrigos subterrâneos em grutas do sul da França da Europa Setentrional e
Oriental há cerca de 12mil a 20mil anos. Por toda parte do mundo, há indícios de
que o homem primitivo escavou, gravou ou pintou nas paredes. Na África Meridional,
Central ou Setentrional, nas regiões ocidentais dos Estados Unidos, na Oceania, na
Austrália. Segundo Upjohn (1974), distinguem-se dois centros de arte primitiva
europeia: o do Norte da Espanha e o Sudoeste da França, ou região franco-
cantábrica e, mais ao sul, o da Espanha Oriental. O centro franco-cantábrico
corresponde ao Aurinhacense e ao Magdalenense, primeiro e terceiro períodos do
Paleolítico superior que devem o seu nome a locais do Sudeste da França. As obras
de arte dessa região foram, em geral, encontradas em grutas profundas, enquanto
as da zona meridional apareciam nas paredes rochosas de abrigos. As pinturas e
incisões foram muitas vezes encontradas em solos inacessíveis do fundo da gruta o
que permite pensar que essas salas eram possivelmente santuários ou locais de
cerimônias e foram utilizadas como tal durante longos períodos.
A partir das características estilísticas de várias centenas de obras pintadas
ou esculpidas da região franco-cantábrica, pode supor que datam do primeiro e
terceiro períodos do Paleolítico Superior. O período mais antigo é caracterizado por
formas geométricas, por silhuetas de animais desenhados com os dedos nas
paredes argilosas e por mãos pintadas em negativo sobre o fundo vermelho e negro.
O elefante da gruta de Castilho, nos Pirineus espanhóis, é um exemplo típico de arte
aurinhacense. Os contornos em ocre vermelho são muito estilizados e o artista
desenhou apenas duas patas. Não foi indicado nenhum pormenor no interior da
silhueta. A incisão, um pouco mais recente, da gruta de Combarelles, na Dordonha,
50
representa um mamute de perfil, onde se nota as quatro patas em perspectiva e
algumas linhas quebradas evocam os longos pelos do animal.
Upjohn (1974) destaca que as figuras da Pré-História sejam elas escultura,
relevo, incisão ou pintura, têm todas, um estilo de um realismo absoluto e
impressionante, caracterizado por uma concepção visual e dinâmica do animal que
se quer registrar. Os corantes utilizados pelos artistas no Paleolítico, eram a base de
cores ocres, indo das cores do vermelho ao negro, passando por várias gradações
de castanho. Chegavam a um negro mais profundo por meio de ossos carbonizados.
As cores eram aplicadas com auxílio de ferramentas como pauzinhos aguçados ou
misturadas com gordura de animal.
As grutas de Altamira foram as primeiras a serem descobertas. A caverna de
trezentos metros de comprimento, está ornada de incisões e pinturas representando
animais pintados de várias cores diferentes. A mais conhecida é o grande fresco de
abóbada que mede cerca de catorze metros reproduzindo os mais variados animais.
Upjohn destaca o realismo com que estes animais foram retratados, alguns em
plena corrida, outros feridos ou exaustos. A variedade de cores é significativa e o
detalhe da forma como as irregularidades geológicas foram incorporadas aos
animais para lhes dar maior relevo.
Entre as diversas grutas franco-cantábricas as de Font-de-Gaume
descobertas em 1901 e as Lascaux descobertas em 1940, ambas na Dordonha,
apresentam especial significação:
Figura 1 - Afresco da gruta de Font-de-Gaume na Dordonha – França
<http://www.northofthedordogne.com/around-les-eyzies.php>. Acesso em: 19 jan. 2015.
51
Figura 2 - Afresco da gruta de Lascaux – França
<https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQM0B0qLShxwYs4J3qdN_0nDMU9vyuAZWeuOURJkBlR3Tt3Gd2x>. Acesso em: 19 jan. 2015.
Figura 3 - Afresco da gruta de Altamira – Espanha
<http://www.solarmapproject.com/2013/10/altamira-cave-it-was-one-of-those-world-changing-discoveries/>. Acesso em: 19 jan. 2015.
52
Figura 4 - Afresco da gruta de Lascaux – França
<http://www.arthistoryarchive.com/arthistory/prehistoricart/images/Lascaux-France-Bull.jpg>. Acesso em: 19 jan. 2015.
As numerosas galerias e salas de Lascaux contêm quase todos os estilos pré-
históricos de pintura e incisão, do início do Aurinhacense ao final do Magdalenense.
Lascaux, Altamira e Font-de-Gaume constituem o apogeu da arte paleolítica.
A arte rupestre da Espanha Oriental difere em muitos pontos da do Norte.
Nesta região, as pinturas de dimensões relativamente reduzidas, encontram-se mais
nos abrigos sob as rochas do que nas grutas profundas. São frescos
monocromáticos vermelhos ou negros e procuram revelar cenas extraídas da vida
dos homens e dos animais, reproduzindo narrativas. Os animais, como os veados,
cavalos, javalis e os antílopes, são representados principalmente de perfil, num
estilo rápido e despojado, que contrasta com a impressão de profundidade e de
dinamismo criado pela arte franco-cantrábica. As figuras humanas, raramente
evocadas no Norte, são aqui de dimensões reduzidas e suas formas inteiramente
coloridas são muitas vezes estilizadas até a abstração. No entender de Upjohn
(1974) devido as sobreposições dá a entender que as estações da Espanha Oriental
foram também santuários.
53
Os registros com nós foram os mais comuns do mundo antigo, remontando ao
último período da idade da pedra. Segundo Fischer (2009) estes registros poderiam
ser simples nós em uma única corda ou uma série de nós coloridos em cordas que
se ligavam a outras. O quipu inca é um exemplo sofisticado de contabilidade. Nós
diferentes representavam quantidades diferentes, enquanto que nós coloridos,
representavam diferentes mercadorias. Cada nó tinha determinado valor decimal.
Havia lugares específicos para os conceitos de dezenas, centenas e unidades. O
sistema de nós tornou-se tão complexo, que fez com que surgissem pessoas
especializadas para supervisionar o sistema. Esta complexidade por si só já revela a
própria complexidade da sociedade inca. Possuíam uma arte utilitarista e foram
conhecidos como grandes construtores utilizando-se de pedras, bronze e argila.
Construíram casas, palácios e templos. Mas destaca-se que por não conhecerem a
escrita, se utilizavam dos quipus13 para manterem os registros. Os especialistas
eram ensinados para memorizar as cores e as posições correspondentes às regiões
representadas, aos tipos de produtos armazenados, ao recenseamento da
população, tanto das pessoas quanto dos rebanhos. Segundo Coe (1997) é possível
que utilizassem os quipus também para usos esotéricos com finalidades
astronômicas ou religiosas. Este sistema de comunicação foi também encontrado do
Alasca ao Chile.
Outra forma de registro importante foi a pictografia, uma junção de marcas e
elementos mnemônicos. A arte rupestre pode ser entendida como uma comunicação
pictórica. Mas algumas mensagens podem aparecer melhores elaboradas que
outras. Embora ainda sem recorrer a um discurso articulado, a pictografia diferente
dos entalhes, por exemplo, pode transmitir valores fonéticos representando objetos
e, portanto, se identificando com a fala. Fischer (2009) exemplifica com um relato de
um caçador abnaki, no Maine14, que deixa fora de sua oca um rolo feito de casca de
bétula, representando um homem numa canoa e um veado, um homem a pé
apontando para um rabisco e um homem com botas de neve puxando um trenó.
Neste caso a mensagem a ser passada seria de que o homem estaria cruzando o
13
Segundo Le Goff (2003) o quipo é um dos raros exemplos da existência de procedimentos mnemotécnicos em sociedades sem a escrita, já que para estas sociedades este gênero de atividade não é sentido como uma necessidade útil, ao contrário do que acontece em uma sociedade com escrita.
14 Maine é um dos cinquenta estados dos Estados Unidos localizado no extremo nordeste do país.
Tribos nativas viviam na região antes da chegada dos primeiros europeus. Os abenaki eram uma dessas tribos.
54
lago para caçar um veado, desviando antes de chegar próximo ao lago, e que não
estaria de volta antes da primavera. Este é um exemplo de uma mensagem que
carrega um grau elevado de complexidade, sem, no entanto, recorrer ao discurso
articulado. Deve-se destacar que, embora este tipo de arte gráfica transmita uma
mensagem limitada em um domínio social limitado, sua função é perfeitamente
cumprida já que seu objetivo é comunicar e isto acontece satisfatoriamente dentro
daquele contexto.
A escrita é outra forma de registro e aparece certamente pela necessidade
social, em especial, pela necessidade da contabilidade. É o caso da região da
Suméria onde por volta de seis mil anos, esta sociedade se defronta com novas
necessidades em função de sua expansão e crescimento. Questões como, gastos,
impostos, taxas, e tantas outras questões exigirão outras formas de comunicação,
que não mais apenas as mnemônicas.
Inicialmente, a escrita representava um conjunto de milhares de sinais que
não representavam nenhuma relação com a língua falada. É o caso, por exemplo,
dos pictogramas. Eram desenhos simplificados de objetos ou de determinadas
ações, geralmente dos grandes feitos realizados pelas autoridades de destaque
daquela determinada comunidade. Portanto, eram relatos das classes que
dominavam e comunicavam seus feitos. No entanto, a escrita foi se transformando e
os sinais que antes representavam ações e objetos específicos, passaram a
representar os sons. Este processo para Fischer (2009) ocorreu num período de
crise dos povos acadianos, por volta de 2200 a.C. possibilitando a liberdade de
determinadas comunidades até então submissas, contribuindo para o
desenvolvimento comercial de povos semitas. Um exemplo desses povos foram os
cananeus, conhecidos pelos gregos como fenícios, grandes comerciantes da
antiguidade. Criaram novas rotas de comércio, estabelecendo contato com outros
povos e trazendo para Canaã15 novos conhecimentos, em especial, as trazidas do
Egito.
Lembra Citron (1999) que por volta de 1380 a.C. os cananeus já haviam
criado portos por toda costa do Mediterrâneo oriental e necessitavam, para facilitar
as transações comerciais, de um sistema de escrita mais simples e prático.
15
Região da Palestina entre o rio Jordão e o Mediterrâneo. Hoje, região árida, mas a três ou quatro mil anos antes de Cristo, era uma região bastante fecunda.
55
Fischer (2009) recorda que no período de 2000 a.C. a 1200 a.C. havia na
região, dois sistemas de escrita: a escrita silábica característica da Mesopotâmia, e a
escrita consonantal dos egípcios. Como a região de Canaã estava entre outras
regiões importantes e poderosas com Egito, Mesopotâmia, o conhecimento de
diferentes sistemas de escrita, somado à necessidade dos mercadores em
simplificar as escritas herdadas, provocará o surgimento por parte dos fenícios16, de
uma escrita silábica.
Os fenícios eram povos semitas e receberam dos hebreus os primeiros sinais
da escrita, por volta de 1250 a.C. no reinado de Ahiram. Vários povos usavam de
sinais gráficos para registrar seus pensamentos e com o uso desses sinais
regularmente deixaram de significar o objeto para significar o som. Contudo, como o
emprego destes sinais ainda era relativo já que sua colocação não tinha uma
regularidade, ainda não se podia admitir o uso de um alfabeto, já que este implica na
aceitação segundo uma ordem convencional17. Até que os fenícios modificaram e
simplificaram os sinais, criando o seu alfabeto. Numa cultura que foi com o decorrer
do tempo se caracterizando pelas relações mercantis, modificaram os antigos sinais
e os adaptaram para o comércio.
Com a fonografia, sistema de escrita que representa os sons por meio de
sinais individuais, ocorre uma redução do número de sinais que permite uma
reprodução quase exata da fala. As palavras tornam-se sequências gráficas de
sinais sonoros. Serão as letras de um alfabeto que não terão significados próprios.
Terão significado quando juntarem a outras letras, formando uma palavra. Seu
emprego pode ser compartilhado por outras línguas, pois é facilmente adaptável.
Fischer (2009) sugere que o primeiro alfabeto pode ter sido criado há quatro
mil anos como obra dos egípcios que, no entanto, utilizavam somente consoantes.
Por volta de 2200 a. C., os escribas egípcios reduziram o sistema de escrita e
passaram a escrever usando só o alfabeto consonantal. Os fenícios, em contato
16
Vindos da Arábia, os fenícios se apossaram da região. Tinham pala frente o mar que bordejava quase todo mundo conhecido e florestas de cedros para a construção de navios. Fizeram-se marinheiros e comerciantes construindo frotas numerosas e colônias em distantes lugares. Chegaram ao oceano Atlântico e criaram cidades na Espanha, França, Itália, África. Também para o Oriente mandaram caravanas. Comerciavam com o Oriente e Ocidente, recebendo mercadorias da Índia, Norte da Europa e ilhas britânicas. Segundo Donato (1951) com tantos negócios forçosamente tinham de contar com uma escrituração ordenada e por isso deram tanta importância à escrita.
17 Segundo Donato (1951) dos primeiros sinais ideográficos até o aparecimento do alfabeto, se
passaram aproximadamente quatro mil anos.
56
comercialmente com os egípcios, levaram o esquema para Canaã. Os gregos, por
sua vez, além de copiarem o mesmo esquema e sinais, acrescentaram vogais
desenvolvendo um alfabeto praticamente completo.
Portanto, foram os fenícios de cidades como Tiro, Sidon, Biblos que levaram
até os gregos suas letras e os gregos reconheceram a sua facilidade para a
contabilidade. Já por volta de 2000 a.C., os gregos de Creta teriam entrado em
contato com a escrita silábica de biblos e, posteriormente, por volta de 1000 a.C.
teriam conhecido a escrita alfabética dos fenícios acabando por difundi-la entre os
gregos do mar Egeu. Com a expansão mercantil grega no início do século VIII a.C.
acabam por estender seu alfabeto para as colônias desde a Síria, no Oriente, até
Nápoles, no Ocidente.
Fischer (2009) dirá que serão os gregos os primeiros a representarem
consistentemente fonemas vocálicos e, de uso agora de vogais e consoantes,
tiveram condições de reproduzirem a fala muito mais fielmente e o que é mais
importante, usando estes sinais, possibilitavam a transmissão de qualquer língua do
mundo.
No geral, a história da escrita acaba por privilegiar a escrita formal, no
entanto, a tendência é que estas escritas formais acabem por resultar em escritas
mais comuns, mais simples e práticas para o uso do cotidiano. Isto acontece, como
já foi visto, com os hieróglifos egípcios, resultando numa escrita cursiva. O mesmo
acontece com os gregos que terão uma escrita cursiva em torno do século III a.C.,
tornando a escritura de uso cotidiano dos gregos.
Segundo Fischer (2009) a escrita grega antiga era maiúscula e de dois tipos:
as capitulares e as unciais. A primeira era usada para a escrita formal e as unciais,
diferentemente das anteriores, eram letras em curvas e era a forma de letra mais
comum.
O alfabeto grego inspirou outros povos a elaborarem seus próprios alfabetos.
No Egito, inspirou o copta. Nos Bálcãs, as escritas glagolítica e cirílica que
desembocaram na escrita russa. Na península itálica, inspirou a escrita etrusca que
resultou na escrita latina. Por volta de 775 a.C., a Grécia estabeleceu uma Colônia
em Nápoles, influenciando os etruscos, principais intermediários entre os gregos e
povos do Ocidente. Resultando deste encontro, o alfabeto greco-etrusco servirá de
base para o alfabeto latino.
57
Figura 5 - Empréstimo do alfabeto grego para etrusco e depois para latino
<http://conhecimentopratico.uol.com.br/linguaportuguesa/gramatica-ortografia/26/artigo190215-3.asp> Acesso em 19 jan. 2015.
A escrita etrusca era a que predominava na Itália até por volta de 200 a.C. até
que a região foi assimilada pelo Império Romano. A partir daí, a escrita etrusca
deixou de ser usada preterida pelo latim. Foi por volta do século VII a.C. que os
romanos emprestaram a escrita dos etruscos, se utilizando basicamente de formas
58
maiúsculas quadradas e rústicas e as formas arredondadas, sendo que esta última,
tornou-se a principal caligrafia latina de 400 a 700 d.C.
Também os romanos, a exemplo de outros povos, também elaboraram uma
escrita utilizada no dia-a-dia, ou seja, uma escrita cursiva e que resultará na criação
de letras minúsculas. A maior parte destes escritos era feita em tabuleto ou em
papiro.
Durante os primeiros séculos d.C., o letramento estava espalhado pelo
Império romano e isto é atestado por uma base militar romana localizada no norte da
Inglaterra, onde se descobriu milhares de cartas e documentos que atestam o uso
da escrita por todo império. São escritos que relatam a vida de pessoas que viveram
naquela região nos primeiros séculos e interligava o império através das letras.
Outras descobertas confirmam que o letramento era generalizado pela Roma antiga.
3.1 A forma escrita
Ao tomar as letras como um dos traços marcantes da cultura o que se deseja
é revelar uma das maneiras, dentre tantas outras, que uma determinada
comunidade humana se revela. A escrita é mais um dos inúmeros gestos de como
esta sociedade se entende e explicita o seu modo de viver.
Pensando nesse sentido, alguns esclarecimentos preliminares, que se
consideram importantes para que se possa redimensionar o valor atribuído às
culturas letradas e àquelas que não possuem as letras como critério revelador de
suas existências.
Ao tratarmos das sociedades letradas nos seus primórdios é comum
encontrarmos uma relação que, no mínimo, se apresenta como polêmica, para não
dizer equivocada, ou seja, considerar sociedades letradas como superiores às não
letradas. Certamente o referencial para este critério resulta dentre outras coisas, da
concepção de que a escrita determinaria o início da história da humanidade e,
portanto, o início das sociedades entendidas como civilizadas. O historiador Edward
Burns, em seu livro História da Civilização Ocidental, por exemplo, se utiliza do
seguinte conceito de civilização:
Uma vez que cada cultura possui feições próprias e uma vez que algumas culturas são mais desenvolvidas do que outras, podemos muito apropriadamente falar de uma civilização como de uma cultura superior.
59
Dizemos, pois, que uma cultura merece o nome de civilização quando atingiu o nível de progresso em que a escrita tem largo uso, em que as artes e as ciências alcançaram certo grau de adiantamento e as instituições políticas, sociais e econômicas se desenvolveram suficientemente para resolver ao menos alguns dos problemas de ordem, segurança e eficiência com que se defronta uma sociedade complexa. (BURNS, 1966, p. 28).
Nota-se na conceituação de Burns uma concepção usual utilizada com
frequência por intelectuais contemporâneos do Ocidente, sejam eles, antropólogos,
sociólogos, historiadores e filósofos. Há uma tendência em considerar as sociedades
a partir de categorias binárias, leituras estas que acabam por reforçar uma visão das
sociedades como primitivas ou como sociedades avançadas, tendo a escrita como
um critério de referência.
O discurso comum acaba inclusive desconsiderando um elemento
antropológico relevante. Goody (1988) nos alerta que falar de primitivo e avançado
seria como se considerar que as mentes pudessem diferir na sua estrutura. Este
alerta é oportuno e fundamental porque se está falando de seres humanos com
capacidade de reflexão e criação independentes de pertencerem a comunidades
mais complexas ou menos complexas. Seus componentes nas suas vivências
individuais e sociais se expressam como pessoas inteiras, portadoras das
características inerentes aos seres humanos. São seres reflexivos, criativos e
afetivos, que ao viverem constroem culturas e não ficam se perguntando se são
evoluídos ou primitivos.
Muitos pensadores contemporâneos que tiveram importância fundamental na
construção do pensamento moderno Ocidental receberam como herança esta visão
fundamentada numa leitura dicotômica. Inseridos no contexto europeu, das grandes
descobertas científicas e tecnológicas, bem como, vivenciando a rápida expansão
do capitalismo pelo mundo, estes pensadores, seja legitimando ou criticando este
modelo econômico, não tiveram, no entanto, como parte de suas reflexões, a
preocupação de considerar este aspecto cultural mais particular. Pensadores como
Auguste Comte, Karl Marx e Max Weber apenas para ficar nesses três, que viveram
e refletiram sobre a sociedade industrial moderna, acabaram por elaborar teorias
que fortaleceram esta visão dicotômica da realidade. Pensadores que
compreenderam a história não só em termos de processo, mas construíram suas
análises da realidade, tendo como referência uma concepção de progresso que foi
60
ganhando corpo, principalmente a partir do chamado período moderno europeu, com
o advento do comércio.
Para uma melhor compreensão do significado deste conceito de progresso, o
pensamento de Auguste Comte é oportuno e elucidativo, já que, reforça a
concepção binária e etnocêntrica que fundamentou e ainda fundamenta as análises
de muitos pensadores contemporâneos.
Comte, na sua obra Curso de Filosofia Positiva, desenvolve o que ele
denominou de teoria dos três estados. Trata-se da teoria que afirma que a
humanidade, passa por três estágios. São eles: o estado teológico ou fictício, o
estado metafísico ou abstrato e o estado científico ou positivo. No dizer de Comte:
Três sortes de filosofia, ou sistemas gerais de concepções sobre o conjunto de fenômenos, que se excluem mutuamente: a primeira é o ponto de partida necessário da inteligência humana; a terceira, o seu estado fixo e definitivo; a segunda, unicamente destinada a servir de transição. (COMTE, 1983, p. 4).
No estágio teológico, os fenômenos sofrem a ação de agentes sobrenaturais,
no metafísico buscam-se suas essências, mas é no estágio positivo que:
o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão e similitude. (COMTE, 1983, p. 4).
Reproduz-se este trecho do pensamento de Comte, por ser bastante
representativo de uma concepção histórica e cultural que caminha na direção da
valorização do conceito e que terá nas letras, sua expressão maior. Destaca-se no
pensamento de Comte que é possível ater-se na busca de leis efetivas e invariáveis,
através do raciocínio e observação, característica singular do pensar clássico grego
de pensadores clássicos como Sócrates, Platão e Aristóteles, cujo raciocínio é
expresso através da escrita lógica.
Karl Marx (1818-1883), também não conseguiu ter uma compreensão da
história da humanidade que conseguisse ir além de uma visão marcadamente
evolutiva e progressiva, características muito presentes no pensamento europeu do
século XIX. Com críticas, a noção de história de Hegel como manifestação do
Espírito Absoluto, Marx compreende a realidade definida como luta de classes: “A
61
história de todas as sociedades que já existiram é a história da luta de classes.”
(MARX, 1998, p. 09).
Embora fazendo críticas profundas ao capitalismo europeu, Marx não tem
como preocupação uma reflexão que transcenda a visão de história além da
compreensão evolutiva europeia. Lê-se no Manifesto Comunista:
O descobrimento da América e a circunavegação da África prepararam o terreno para a recém-surgida burguesia. As Índias Orientais e os mercados chineses, a colonização da América, o comércio com as colônias, o aumento dos meios de troca e das mercadorias em geral deram ao comércio, à navegação, à indústria um impulso nunca antes conhecido e, desse modo, um desenvolvimento rápido ao elemento revolucionário na sociedade feudal esfacelada. (MARX, 1998, p. 10).
O pensamento de Marx reafirma conceitos ocidentais europeus que vão se
tornando gerais e dão a impressão de representarem a chave de compreensão de
progresso para toda a história. A história europeia vai se tornando a história de toda
a humanidade e as letras, sua porta-voz.18
Goody (1998) destaca que autores importantes como Max Weber e Karl Marx,
contribuíram para criar um mito19 que acabou comprometendo e compromete até
hoje, toda uma compreensão da história Ocidental. A ideia de que o Ocidente possui
uma supremacia sobre os outros povos, como por exemplo, os povos da Ásia, da
África e da América. Cria-se uma tendência em explicar a modernidade como
resultado de pretensas singularidades ocidentais, como o individualismo e a
racionalidade que determinariam, por decorrência, uma compreensão das outras
culturas com diferentes singularidades como estáticas e retrógradas.
18
Não se deseja fazer uma crítica ao pensamento de Marx, mas sim realçar os limites do seu pensamento já que estavam restritos ao contexto europeu. Ao contrário, perceber este limite e buscar reinterpretar as obras de Marx em outros contextos, evidenciará a importância de Marx para a atualidade. No prefácio de Marx Selvagem (2013), Michael Löwy argumenta o seguinte: “Se trata, eu diria, de um Marx ‘romântico’ – que escapa dos limites estreitos das ortodoxias marxistas posteriores – um Marx que se refere às formações sociais ‘arcaicas’, pré-modernas, para criticar a desumanidade do capitalismo e para pensar um futuro comunista. A análise da evolução de Marx, a partir de posições eurocêntricas, em direção a uma crescente abertura ao ‘Outro’, me parece bastante convincente.” (TIBLE, 2013, p. 11).
19 Dussel, reforça a ideia de um “mito da modernidade”, conceito que será retomado mais à frente,
construído pelos europeus quando estes definem sua própria cultura como superior, mais desenvolvida e, por outro lado, a outra cultura como inferior, sempre sujeito de uma imaturidade da qual são culpados, a ponto, dirá Dussel, de se conceber a dominação sobre o outro como uma emancipação do bárbaro que se civiliza ou se moderniza. “Nisto consiste o ‘mito da Modernidade’, em vitimar o inocente (o Outro) declarando-o causa culpável de sua própria vitimação e atribuindo-se ao sujeito moderno, plena inocência com respeito ao ato sacrificial.” (DUSSEL, 1993, p. 75-76).
62
Também Max Weber contribuirá com suas teorias para uma visão de uma
supremacia do Ocidente na história da humanidade. Segundo Goody (1998) para
Weber esta supremacia do Ocidente está associada à posse de uma racionalidade
específica do Ocidente, resultante de duas heranças possíveis. Uma, seria a
tradição humanista clássica, herdeira da racionalidade grega; a outra, herdeira do
renascimento ou iluminismo. Para Weber, esta herança, permitiu ao Ocidente a
liderança no desenvolvimento econômico e intelectual. Nesse caso, Weber legitima
o desenvolvimento do Ocidente e o consequente atraso do Oriente em função de
uma racionalização especificamente Ocidental.
Esta análise se faz fundamental, pois quando se busca na história ou na
antropologia as raízes das primeiras sociedades letradas, isto acontece, tendo
presente por parte dos grandes cientistas do Ocidente, uma leitura ainda
fundamentada nestas bases dicotômicas. O conceito “civilização” é comumente
utilizado pelas ciências humanas a partir de uma perspectiva evolucionista e
progressiva, determinando que as comunidades mais “evoluídas”, sejam
denominadas de “civilizações” em oposição às comunidades denominadas de
“primitivas”. E não por acaso, as letras acabaram sendo uma das características
para uma possível discriminação entre o que se conhece por “avançado” e o
“primitivo”.
Paiva (2012), em seu artigo “Sobre a Civilização Ocidental”, nos alerta que,
independente de existirem culturas, praticadas nas sociedades grandes e complexas
ou em sociedades pequenas, todas elas têm cultura. Todas as pessoas vivendo em
comunidade agem buscando afirmar o seu viver, elaborando o seu ser. Esta ação
acontece como convivência e as pessoas vão modelando sua ação, com o agir das
outras pessoas do grupo. Essa conformação dos agires, essa convivência das
pessoas, definindo uma forma de ser compartilhada, é o que Paiva define como
cultura. Partindo desta concepção de cultura, justifica-se o fato de não se utilizar do
conceito civilização e sim sociedades20 letradas, pois, se deseja evitar a ideia
corrente, de que, ao considerar as primeiras sociedades letradas como civilização,
cometa-se o equívoco de julgar as sociedades não letradas como primitivas.
20
Sociedade (do latim societas que significa “associação amistosa com outros”) representa um conjunto de pessoas que compartilham propósitos, gostos, preocupações e costumes, e que interagem entre si constituindo uma comunidade.
63
Para que se entenda, portanto, o significado das letras nas sociedades, cabe
desvincular a ideia de que as letras possam ser uma referência para se julgar o
avanço ou o atraso de uma determinada sociedade. Cabe, inclusive, repensar a
própria perspectiva tradicional antropológica que caracteriza determinadas
sociedades em avançadas e/ou primitivas.
Seja na concepção da filosofia Ocidental, que afirma na sua base, portadora
de uma reflexão que tem como critério metodológico o conhecimento baseado na
racionalidade lógica através do texto escrito, seja na sociologia, construída a partir
de uma perspectiva evolutiva e progressiva, fundada em grandes pensadores como
Marx e Comte, ou ainda, na visão dos antropólogos que colocam seus termos a
partir do primitivo ou avançado, o que temos é sempre uma compreensão da
realidade, simultaneamente, binária e etnocêntrica.
Interessante observar, como o processo de construção do pensamento
Ocidental, partindo deste princípio binário, vai sendo incorporado e legitimado pelo
processo do pensamento, ao ser compreendido e assimilado pela história, também
como um progresso do pensamento. Este processo, portanto, com grande sutileza,
adquire um juízo de valor, que acompanhará todo pensamento Ocidental, sem que
se perceba, na sua origem, o ponto de partida equivocado por ser etnocêntrico.
Neste sentido, é que se procura buscar na própria antropologia, indícios que
remetam a uma análise mais aprimorada das sociedades antigas, daquelas
primeiras comunidades que se utilizaram das letras ou não, na manifestação dos
seus agires. Rompendo com este olhar dicotômico, as letras deixarão de ser
compreendidas como expressão ou revelação de uma sociedade que se aparente
como avançada. As letras perdem seu caráter privilegiado de reveladoras de uma
sociedade pretensamente mais avançada, em relação a outras sociedades que
manifestam seus agires de outros modos que não a escrita. Rompendo, portanto,
com a visão binária, possibilita-se o resgate de elementos que são características
das culturas orais ainda presentes nas culturas letradas. Da mesma forma,
elementos que são tidos como específicos de uma cultura letrada se constatará
também que não estão ausentes nas culturas orais.
Retorna-se à fala inicial de Paiva (2012) ao lembrar que tanto as grandes
sociedades quanto as pequenas têm cultura. Acrescenta-se a esta ideia que tanto as
sociedades letradas ou as não letradas possuem cultura, afinal em todas elas,
pequenas ou grandes, é o homem se fazendo. Dizer que este existir é primitivo ou
64
avançado, porque se faz registrando ou não por escrito, ocorre muito mais em nome
de um juízo de valor condicionado por uma cultura que se pautou pelo registro
escrito e tornou esta característica uma referência para um julgamento em relação a
outras sociedades humanas.
3.2 As letras: referência antropológica e social
Considerando que na sociedade Ocidental o termo analfabeto passou a
identificar pessoas incapazes de ler e escrever, nas culturas que relacionam as
letras como sinal de progresso, não se hesita em ampliar esta ideia para sociedades
inteiras e, em nome deste progresso, justificar o domínio sobre povos considerados
atrasados por sua condição de ágrafos. No dizer de Havelock (1996), a sociedade
humana existe muito antes de ter alcançado o domínio da escrita. Nesse sentido, o
analfabetismo de hoje, não pode ser confundido com a condição de sociedades
humanas que desconhecem a escrita.
Portanto, ao expor a seguir algumas vivências de sociedades não letradas se
quer recuperar um valor cultural ofuscado pela leitura tendenciosa das culturas que
fizeram das letras, por inúmeras razões, uma referência quase que única para julgar
outras culturas, que apresentaram diferentes formas de manifestações. Cabe dizer
ainda, que ao resgatar valores dessas culturas não letradas, o que se faz, é revelar
elementos característicos do humano, que se manifestam também nas culturas
letradas. Portanto, o resgate valorativo das culturas não letradas, implica também,
no resgate de valores das culturas letradas, que foram negligenciados por não
serem considerados significativos já que não passam pelo registro escrito.
Goody faz uma importante observação quando sinaliza que para que se
possa realizar uma análise ampla da história humana, faz-se necessário que se
amplie o método de análise. Deve-se dar a necessária ênfase aos meios e modos
de comunicação. Diz o autor o seguinte:
Em primeiro lugar estou a tentar fornecer uma explicação mais satisfatória, a mim e ao leitor, para certos conceitos de uso generalizado, sociológicos e antropológicos, históricos e do foro do senso comum, que têm sido utilizados para descrever as diferenças ou transições mais importantes da História das sociedades humanas. Esta tentativa leva-me transpor parte da ênfase dada aos meios e modos de produção ao explicar a História humana
para os meios e modos de comunicação. (GOODY, 1986, p. 09).
65
Goody (1998) recorda importantes pensadores que contribuíram para uma
leitura da história da humanidade. Mas que, no entanto, se pautaram por uma teoria
marcada por uma visão dicotômica, tais como, Wilson, que elabora toda uma teoria
que propõe a emergência da racionalidade a partir da irracionalidade, Cassirer, que
elabora um pensamento que evolui para o lógico-empírico a partir do mito poético e
Lévy-Bruhl, que desenvolve uma análise onde os procedimentos lógicos se
desenvolveram e evoluíram a partir dos procedimentos pré-lógicos, característica
esta, própria segundo Bruhl, das sociedades pré-letradas. Portanto, são inúmeros os
exemplos de teóricos que se pautaram por esta visão dicotômica e que contribuíram
para que esta leitura de mundo impregnasse também a pedagogia Ocidental.
Considerando esta afirmação fundamental, busca-se apoio nas teorias de um
dos mais importantes e influentes pensadores da antropologia contemporânea, com
o objetivo de sinalizar um caminho de superação da dicotomia primitivo e avançado.
Trata-se de Claude Lévy-Strauss que faz uma análise bastante significativa dos
povos denominados de primitivos e que contribui para uma reflexão que coloca em
questão a visão tradicional que perdura especialmente no pensamento Ocidental do
que se entende por sociedades primitivas ou sociedades avançadas. Tem-se por
referência seu importante livro O Pensamento Selvagem.
Lévy-Strauss começa sua obra com a seguinte afirmação contundente:
Aprouve-nos, durante muito tempo, mencionar línguas a que faltam termos para exprimir conceitos, tais como as de árvores ou animal, se bem que elas possuam todas as palavras necessárias a um inventário minucioso de espécies e de variedades. Mas, invocando esses casos em favor de uma suposta inaptidão dos ‘primitivos’ ao pensamento abstrato, omitíamos, então, outros exemplos, que atestam que a riqueza em palavras abstratas não é só apanágio das línguas civilizadas... E o caráter tendencioso do argumento, evocado no parágrafo anterior, é bem posto em evidência quando se nota que a situação inversa, isto é, aquela em que os termos muito gerais prevalecem sobre as denominações específicas, foi também explorada para afirmar a indigência intelectual dos selvagens: ‘Dentre as plantas e os animais, o índio só dá nome às espécies úteis ou nocivas; as outras são classificadas, indistintamente, como ave, erva-daninha, etc. (LÉVY-STRAUSS, 1976, p. 104).
Destaca-se esta observação de Strauss, que chama a atenção o julgamento
tendencioso que existe na observação, tendo como referência de análise, o
conceito. E no caso do pensamento ocidental, o conceito apresenta um histórico que
contribui para a legitimação deste tipo de leitura parcial. Desde os gregos, com
pensadores como Parmênides, Sócrates, Platão e Aristóteles, o conceito presente
66
no texto escrito é um critério fundamental para uma construção abstrata dos textos
filosóficos. Neste caso, há uma ingerência de que o conceito possibilita o texto e
este, por sua vez, possibilita a abstração. Este raciocínio induz pensar que não
escrevendo, comunidades pré-letradas estariam fadadas a reproduzir conceitos
imediatos, já que não os registram por escrito. Seus conceitos produzidos estariam
respondendo às suas necessidades mais imediatas. Logo, estariam estas
comunidades distantes de um processo reflexivo, condição esta para se considerar
uma civilização evoluída.
Deste raciocínio, se estrutura um pensamento que comunidades humanas
pré-letradas são marcadamente pragmáticas, buscando durante sua existência
social, satisfazer apenas suas necessidades básicas não produzindo abstrações e
nem mesmo produzindo história, já que não registram seu existir. Mais uma vez, o
caráter binário, dicotômico de análise se faz presente neste tipo de pensamento.
Dirá Strauss que cada civilização tende a superestimar a orientação objetiva
de seu pensamento, por isso ela nunca está ausente. Strauss demonstra, por
exemplo, a comunidade dos hanunoo, nas Filipinas, reproduzindo Conklin que dirá:
Todas, ou quase todas, as atividades dos hanunoo exigem uma íntima familiaridade com a flora local e um conhecimento preciso das classificações botânicas. Contrariamente à opinião segundo a qual as sociedades que vivem em economia de subsistência só utilizariam uma pequena fração da flora local, esta última é utilizada numa proporção de 93%. (STRAUSS, 1976, p. 22).
Quanto à fauna:
Os hanunoo classificam as formas locais da fauna de aves em 75 categorias (...) distinguem cerca de 12 espécies de cobras (...) 60 tipos de peixes (...) mais de dúzia de crustáceos do mar e da água doce e outros tantos tipos de aranhas e miriápodes (...) As milhares de formas de insetos estão agrupadas em 108 categorias designadas por nomes, das quais 13 para as formigas e as térmites. Identificam mais de 60 classes de moluscos marinhos e mais de 25 moluscos terrestres e de água doce (...) 4 tipos de sanguessugas sugadoras de sangue (...): total, 461 tipos zoológicos recenseados. (STRAUSS, 1976, p. 22).
A respeito de uma população de pigmeus das Filipinas, Lévi-Strauss destaca:
Um traço característico dos negritos, que os distingue de seus vizinhos cristãos das planícies, consiste em seu conhecimento inesgotável dos reinos vegetal e animal. Este saber não quer somente a identificação específica de um número fenomenal de plantas, de aves, de mamíferos e
67
de insetos, mas, também, o conhecimento dos hábitos e dos costumes de cada espécie (...). O negrito está completamente integrado em seu meio e, coisa ainda mais importante, estuda sem cessar tudo que o cerca. Muitas vezes, vi um deles, incerto sobre a identidade de uma planta, provar o fruto, cheirar as folhas, quebrar e examinar uma haste, observar o habitat. E é somente depois de verificar todos esses dados, que declarará conhecer ou não a planta em questão. O sentido agudo de observação dos pigmeus, sua consciência plena das relações entre a vida vegetal e a vida animal (...) são ilustrados de forma surpreendente por suas discussões sobre os costumes dos morcegos. O tididin vive sobre as folhagens secas das palmeiras, o dikidik, sob as folhas da bananeira selvagem, o lítlit, nos bambugain, o kolumboy, nas cavidades dos troncos de árvores, o konanabá, nos bosques espessos, assim por diante... Desta forma os negritos pinatubo conhecem e distinguem os costumes de 15 espécies de morcegos. E não é menos verdadeiro que a sua classificação de morcegos, como a dos insetos, aves; mamíferos, peixes e plantas baseiam-se, principalmente, nas semelhanças e nas diferenças físicas. Quase todos os homens enumeram, com a maior facilidade, os nomes específicos e descritivos de, pelo menos, 450 plantas, 75 aves, de quase todas as cobras, peixes, insetos e mamíferos e, mesmo, de 20 espécies de formigas (...). (STRAUSS, 1976, p. 23).
Lévi-Strauss, continua com outros exemplos. Diz sobre uma população
atrasada21 das ilhas Ryu Kyu: 22
Mesmo uma criança pode, frequentemente, identificar a espécie de uma árvore, por um pequeno fragmento de madeira e, o que é mais, o sexo dessa árvore, segundo as ideias que alimentam os indígenas sobre o sexo dos vegetais, fazem-no, observando a aparência da madeira e da casca, o cheiro, a dureza e outros caracteres do mesmo tipo. Dúzias e dúzias de peixes e de conchas são conhecidas por termos distintos, bem como suas características próprias, seus costumes e as diferenças sexuais, dentro de cada tipo (...). (STRAUSS, 1976, p. 24).
Ainda sobre a riqueza e precisão dos conhecimentos geológicos e botânicos
dos índios do nordeste dos Estados Unidos da América e do Canadá, a partir da
observação de um etnólogo continua Lévi-Strauss:
Isto se poderia esperar, no referente aos hábitos da caça grossa, de onde provêm a alimentação e as matérias primas da indústria indígena. Não é surpreendente que o caçador penobscot, do Maine, possua melhor conhecimento prático dos hábitos e do caráter do alce do Canadá que o mais experimentado zoólogo. Mas, quando apreciamos, no seu justo valor, o cuidado que os índios tiveram em observar e sistematizar os fatos
21
Grifo meu. Penso ser significativo que Strauss desenvolvendo uma análise onde procura contribuir para a superação de uma dicotomia entre o primitivo e o avançado, venha a se referir a este povo como atrasado. A pergunta que emerge é: atrasado em relação a quem?
22 É um grupo de ilhas ao sul de Kyushu e de Taiwam. A parte norte pertence à província de
Kagoshima enquanto a metade sul pertence à Okinawa, ambas no Japão.
68
científicos relacionados com as formas inferiores da vida animal, ser-nos-á permitido demonstrar alguma surpresa. Toda a classe de répteis (...) não oferece nenhum interesse econômico para estes índios; eles não comem a carne de cobras nem a dos batráquios, nem utilizam parte alguma de seu despojo, exceto, em casos muito raros, para a confecção de amuletos contra a doença ou a bruxaria. (STRAUSS, 1976, p. 28).
Também com relação aos produtos naturais para fins medicinais, demonstra a
definição precisa, a atenção às minúcias, a preocupação com as distinções. São
inúmeros os exemplos que Strauss dá em seu livro das mais variadas partes do
mundo. Por exemplo:
aranhas e vermes brancos engolidos (itelmene e iakute, para a esterilidade); gordura de escaravelho preto (assete, contra hidrofobia); barata esmigalhada, fel de galinha (russos de Surgut, contra abscesso e hérnia) e tantos outros. (STRAUSS, 1976, p. 28).
Dirá Strauss conclusivamente que se poderia dizer que as espécies animais e
vegetais não são conhecidas porque são úteis, mas são classificadas úteis ou
interessantes porque são conhecidas. O que se observa é que todo este
conhecimento não tem como objetivo uma ordem prática ou não e feito por uma
necessidade imediata de sobrevivência. Ele antes responde a uma exigência
intelectual. A ordem característica do pensamento científico está na base também de
todo pensamento humano.23
Antonio Candido (1987) contribui nesta reflexão, admitindo que todo grupo
social pressupõe a obtenção de um equilíbrio relativo entre as necessidades e os
recursos do meio físico, e as soluções serão relativas à qualidade e à quantidade
das necessidades a serem satisfeitas, lembrando ainda que as necessidades
apresentam um duplo caráter natural e social, já que se suas manifestações
primárias são impulsos orgânicos e a satisfação destes acontecerá a partir de
iniciativas humanas que vão se tornando mais complexas e, ao se tornarem cada
vez mais complexas perdem seu caráter natural, para se tornarem produtos da
sociedade, ao ponto de se poder dizer que as sociedades se caracterizam pela
23
Cunha (1992) referindo-se a História do Brasil, dirá que ela começa invariavelmente pelo chamado “descobrimento” sendo os “descobridores” que inauguram e conferem aos gentios a entrada no curso da História. Destaca Cunha que neste processo de dominação, a maior armadilha foi a ilusão de primitivismo onde sociedades sem Estado se tornaram sociedades “primitivas”, pois teriam permanecido na estaca zero da evolução.
69
natureza das necessidades de seus grupos e os recursos de que dispõem para
satisfazê-las.
A evolução das sociedades irá aparecer, no dizer de Candido, num vasto
processo de emergência de necessidades sempre renovadas e multiplicadas, a que
correspondem recursos também renovados e multiplicados para satisfazê-los. Neste
momento, Candido recupera o pensamento de Marx que ilustra de maneira precisa a
relação do homem com a natureza.
Conhecemos uma única ciência, a ciência da História. A História pode ser encarada de dois lados e dividida em História da Natureza e História dos Homens. Mas os dois lados podem ser separados do tempo; enquanto houver homens, a História da Natureza e a História dos Homens se condicionarão reciprocamente. (CANDIDO, 1987, p. 24 apud MARX, Oeuvres Fhilosophiques, 1937, vol. VI, p. 153).
Portanto, baseado nesta análise, pode-se partir deste princípio de se
compreender a vida social a partir da satisfação das necessidades, mas que esta
vivência humana, na busca destas satisfações, não pode ser considerada apenas
como uma satisfação das necessidades orgânicas, mas do ângulo social,
organizada de atividade. Lévy-Strauss crítica Malinowski24 ao dizer que este
afirmava: “que o interesse em relação às plantas e aos animais totêmicos só era
inspirado aos primitivos pelas queixas de seus estômagos.” (STRAUSS, 1976, p.
21).
Conclui Candido (1987) que a obtenção do equilíbrio entre as necessidades e
os recursos depende do encontro de soluções que permitam explorar o meio físico e
o estabelecimento de uma organização social compatível com elas. Os meios de
subsistência de um grupo não podem ser separados do conjunto das reações
culturais, desenvolvido sob o estímulo das necessidades básicas. Logo, o meio se
torna um projeto humano, já que é uma projeção do homem com as suas
necessidades e o planejamento em função destas, aparecendo como uma
construção de cultura.
24
Bronislaw Malinowski nasceu em 7 de abril de 1884 na Polônia. Foi considerado um dos fundadores da antropologia social. Sua grande contribuição à antropologia foi o desenvolvimento de um novo método de investigação de campo. Faleceu em New Haven em 1942.
70
CAPÍTULO 4 – O REGISTRO: EXPRESSÃO DOS SIGNIFICADOS CULTURAIS
Neste capítulo, deseja-se discorrer sobre algumas civilizações antigas que se
utilizaram da escrita, como uma das maneiras de manifestarem o seu agir. E como já
foi dito, o desejo será de considerar esta importante transformação na comunicação
destas comunidades, como uma mudança que representará transformações de
caráter múltiplo. Isto significa dizer, que a introdução da escrita acarretará
significativas mudanças na política, na religião, na economia, bem como, em todas
as relações cotidianas daquelas comunidades. No dizer de Goody (1988), estas
transformações são consideradas na comunicação como fundamentais e cruciais,
inevitavelmente, desaparecerá a velha dicotomia normalmente utilizada pela maioria
dos estudiosos que divide as sociedades em primitivas e avançadas, como também,
ajudará a compreender a organização social destas comunidades além de uma
análise que normalmente fica restrita a uma ênfase aos meios e modos de
produção, passando agora a considerar significativo também, os meios e modos de
comunicação.
Antes de tratar destas comunidades mais específicas, cabe uma introdução
aos fundamentos destas comunidades. Dados arqueológicos indicam que os mais
antigos aldeamentos de que se têm notícias, surgiram por volta do oitavo milênio
a.C. Antes deste período, é provável que os homens ainda vivessem em cavernas.
Em função de mudanças climáticas, que tornaram o clima mais ameno, o homem
teve a possibilidade de se utilizar de uma economia baseada na produção de
alimentos e na criação de animais. O aldeamento mais antigo de que se tem notícia
como já comentado anteriormente atestado por radiocarbono, teria sido o de
Jericó,25 comunidade esta, que teria durado do oitavo milênio até o sexto milênio
a.C. Bright (1978) destaca que nestas comunidades, nota-se que esqueletos
humanos eram utilizados para fins de culto, já que recebiam enfeites. Também já se
registra a domesticação de cães, cabras, porcos, ovelhas e bois.
Há indícios de que se utilizavam da irrigação e que se relacionavam
comercialmente com outras comunidades, o que atesta a existência de outras
sociedades estabelecidas pelo Oriente Médio. Na Mesopotâmia nas terras
montanhosas do Iraque, havia povoação baseada numa economia agrícola
25
As datas são de 7800 a 9216 a.C.
71
permanente, tão antiga quanto à de Jericó. Outras tantas foram descobertas e
datadas da época do sétimo milênio. Já por volta do sexto milênio, cidades foram se
estabelecendo por toda parte e a partir do momento em que as comunidades
menores se uniram a outras comunidades próximas, foram surgindo outras
comunidades maiores, resultando numa série de transformações que tornaram estas
comunidades mais complexas e com novas necessidades. Outras comunidades, que
se mantiveram sem grandes alterações no número de sua população, continuaram
conformadas nos seus agires, produzindo e reproduzindo a cultura daquela
determinada comunidade.
Quanto às comunidades que foram resultando em comunidades mais
complexas e numerosas, teriam surgido principalmente em função de um fator
geográfico. Os exemplos das comunidades nos vales do Nilo e do Tigre – Eufrates
parecem confirmar esta possibilidade.
No Egito, por exemplo, o solo rico, que possibilitava três colheitas anuais, não
era maior que 26.000 quilômetros quadrados. No vale do Tigre-Eufrates a situação
não era tão diferente. Isto provocava a concentração das pessoas em torno do
território fértil. Com o aumento das populações e com os contatos periódicos
facilitados pelo rio e pelo comércio, ocorre uma junção das diferentes comunidades,
formando uma sociedade mais compacta e cada vez mais numerosa.
É compreensível que com aumento destas comunidades vivendo em regiões
restritas geograficamente, novas necessidades irão surgir, obrigando os habitantes a
buscarem novas soluções para as novas demandas. Burns (1966) dirá que se
tornará uma necessidade urgente os órgãos de controle social como governo,
escolas, os códigos morais, de produção e distribuição de riquezas. A escrita,
operações matemáticas, a astronomia também serão resultados das novas
exigências sociais.
Procurando conhecer o significado das letras no interior de algumas
sociedades humanas específicas, reafirma-se o desejo de tratar as letras, não como
expressão de uma comunidade civilizada avançada em relação às outras iletradas.
O que se deseja é compreender as letras como mais uma maneira que o homem
utiliza para se pôr no mundo e que determinará a organização das sociedades que
possuirão nas suas vivências, esta característica específica de ser26.
26
Ser entendido não como um substantivo, mas como ação, diferente da concepção metafísica-tradicional grega que concebe o ser imóvel, definido por uma essência imóvel. Neste caso, o ser é
72
Entendendo que há traços comuns entre as sociedades letradas, procura-se,
a partir de agora, uma exposição do processo de formação de algumas dessas
comunidades, em particular, a egípcia, a mesopotâmica e a hebraica.
4.1. Sociedade egípcia
Na história das sociedades humanas, o declínio da cultura neolítica marca o
surgimento de comunidades mais complexas e com populações maiores obrigando
seus habitantes a uma série de transformações. A necessidade de registros,
culminando com o surgimento das letras, o calendário, instituições como o estado, a
religião, também vão ganhando características próprias nestas comunidades. No
Egito, estas transformações não só ficaram muito evidentes, como também, foram
os alicerces para tantas outras sociedades. Antes, porém, um olhar nas regiões que
deram origem ao Egito, antes do surgimento da escrita.
Desde o Paleolítico inferior27 são encontrados instrumentos que atestam a
presença na região do Nilo, de comunidades tribais que se utilizavam de entalhes.
No período do paleolítico superior, fragmentos de barro cozido, supõe a existência
de lareiras, bem como, de mós e rebolos que utilizavam para esmagar os grãos.
No período do Neolítico, por volta do quinto milênio, o deserto inabitável,
agrupou os homens mais perto do Nilo e dos lagos. Cultivavam a cevada e o trigo
que, segundo Montet (VARAGNAC, 1963, p. 228- 260), pelo fato de designarem por
ideogramas, atesta que conheciam estes produtos antes de outros que foram
designados por caracteres fonéticos. A cultura de cereais pode ter sido propagada
da Mesopotâmia ou surgiram ao mesmo tempo no Nilo e no Eufrates. De qualquer
modo, a agricultura propiciou a sedentarização e a construção de casas e utensílios
e de adornos pessoais.
Os egípcios, antes dos tempos dos faraós, eram conhecedores do cobre, mas
tem sua história conhecida principalmente pela abundante quantidade de utensílios
à base de pedras. Praticavam a tecelagem e os entrelaçados como esteiras e cestos
e deixaram inúmeras estatuetas de barro e marfim. Graças aos documentos
movimento, sua essência se caracterizando por sua existência. O ser que está se pondo, se fazendo.
27 “Paleolítico Inferior (de cerca de – 600 000 a cerca de – 140 000): seixos partidos. Paleolítico Médio
(de cerca de – 140 000 a cerca de – 40 000): síntese das técnicas precedentes. Elaboração dos encabamentos. Paleolítico Superior ( de cerca de – 40 000 a cerca de – 10 000): indústrias de lâminas.” (VARAGNAC, 1963, p.106).
73
figurados e estatuetas é possível conhecer espécies de animais e o significado que
os egípcios atribuíam. Por exemplo, um artista deste período anterior ao período
faraônico, retratou, através do desenho, um desfile de animais conduzido por um
elefante. Não há gravuras que sugerem caçadas deste animal pelos egípcios. O fato
de estar conduzindo outros animais pode significar que ele esteja representando um
determinado povo, tanto que ele aparece também como emblema de um clã que
teria fundado a cidade de Elefantina. Diferente do que acontece com os
hipopótamos. Animais territorialistas, disputavam espaços nos rios com os
navegadores e eram comuns os ataques. Além do que, seus dentes eram
apreciados. Gravuras atestam suas caçadas. O leão, a exemplo do elefante,
também simbolizava um clã. Eram animais poderosos e admirados pelos egípcios.
Os cães já eram vistos como parceiros nas caçadas e na ajuda no controle
dos outros animais. Aparecem representados em gravuras e em bonecos pelos
egípcios. O boi vivia nos desertos e era caçado pelo homem com a ajuda de um
laço. O bode também é reproduzido nas gravuras ruprestes, como também a girafa,
o burro e as cabras que aparecem representados nos vasos. Em marfim e vasos
também aparecem pássaros como o ganso, o pato e os pombos.
O ouro, o cobre, o lápis, a turquesa eram utensílios para fazer adornos. As
casas eram feitas de blocos de argila misturado de palha e o mobiliário geralmente
em vasilhas de pedra, ossos e marfim. Os barcos, por conta do Nilo, estão presentes
nas gravuras rupestres e nas vasilhas decoradas e se revelam muito anteriores ao
Egito dos faraós.
A caça e a pesca são ocupações importantes e as armas mais comuns eram
o arco e a flecha e o pau de arremesso. Pelas gravuras, usavam o arco e flecha
para a caça de grandes animais, como o leão e os avestruzes, além de se utilizarem
de armadilhas para capturarem animais vivos para garantirem o alimento do clã. A
dança e a música aparecem em vasos indicando que eram praticadas por homens e
mulheres.
Quanto às origens das cidades egípcias, no dizer de Montet (VARAGNAC,
1963, p. 228- 260), é muito difícil estabelecer uma cronologia exata. O que se pode
dizer é que algumas cidades se tornaram importantes como foi o caso de Onu,
conhecida depois pelos gregos como Heliópolis. Ao norte do Delta, um reino
denominado de Arpão. Estes pequenos reinos foram criados já no período
Paleolítico superior com a sedentarização dos egípcios. Como já se disse, estes
74
grupos eram identificados com determinados emblemas conhecidos pelos desenhos
e que posteriormente no período faraônico, se tornarão divindades, cidades ou
territórios. São os casos do elefante, do falcão, do sol, e outros. É comum nas
gravuras, observar os barcos de determinados nomos partindo em expedição com
sua insígnia como identificação.
Cada nomo tinha o seu deus particular e o chefe militar e civil era também o
principal sacerdote. Cada deus exerce no seu território a função de proteger, curar e
de garantir a fertilidade. A magia é um legado do passado. Quando desenhavam o
leão cravado de flechas ou a flecha em vôo em busca da presa, estavam jogando
com o desejo de que a sorte os acompanhasse. Era a crença de que o sonho
representado iria se realizar.
Neste período, que antecede a escrita hieroglífica, o marfim, as gravuras
rupestres, desenhos em vasos, já manifestavam as qualidades da arte egípcia, bem
como, já evidenciam os primeiros sinais da escrita, como é o caso dos emblemas
dos clãs e de outros sinais resultantes de uma atividade mercantil já existente de
uma extremidade a outra do Mediterrâneo. A seguir, uma explanação do processo
histórico do Egito antigo com o objetivo de se compreender o advento da escrita na
sua história.
4.1.1 Períodos políticos
Como visto, o período que antecede o Egito faraônico é caracterizado pela
existência de comunidades independentes denominados “nomos”, uma espécie de
cidades – estados, que posteriormente irão se fundir, dando origem a dois grandes
reinos no Egito, o reino do norte e o reino do sul. Segundo os historiadores, foi um
período de muitas descobertas e realizações, como por exemplo, sistema de
irrigação, drenagem de pântanos, trabalhos com pedra, cobre, ouro e cerâmica.
Dada à complexidade da escrita egípcia posterior, presume-se que os egípcios
deste período já se utilizavam de um sistema de escrita28, bem como, inventaram um
28
Durant (1995) cita o professor PETRIE (“The Formation of the alfhabet”) que teria encontrado os mais velhos símbolos gráficos nos vasos e pedras dos túmulos do Egito, da Espanha e do Oriente Próximo, aos quais dá a idade de 7000 anos. São 300 sinais indicando relações comerciais de uma extremidade a outra do Mediterrâneo e isto por volta de 5000 a.C. Eram marcas mercantis que representavam palavras inteiras ou ideias e foram se constituindo em um corpo de sinais que foi gradualmente entrando em uso para vários fins.
75
calendário solar, provavelmente o primeiro que se conhece sugerindo um
desenvolvimento científico considerável para a época.
Por volta de 3200 a.C., ocorre o início daquela que seria a primeira Dinastia
egípcia com a unificação dos reinos do norte e do sul. Seu grande fundador foi o
faraó Menés. Desta Dinastia, seguiram-se outras cinco até 2300 a.C. Este período
de 3200 a.C. a 2300 a.C. é conhecido pelo nome de Antigo Império. Neste período,
o rei exercia o poder como vigário de deus. Portanto, era uma teocracia onde o
monarca era um agente de deus. Burns (1966) lembra que o respeito ao rei era tanto
que não se podia mencioná-lo pelo nome, mas como faraó que queria significar
“casa real”.
No antigo império não havia separação entre estado e igreja. O faraó era
considerado o sumo sacerdote e abaixo dele, vinham os sacerdotes. Em seguida,
outras autoridades administrativas, inclusive os nomarcas que ainda governavam os
nomos ou as províncias do império. Havia também uma divisão judiciária composta
de seis tribunais e juízes, submetidos a um juiz supremo. Tudo indica que o fim
deste período por volta de 2300 a.C., foi devido a uma série de fatores, como, por
exemplo, conflito entre nomarcas e os pesados Impostos estabelecidos pelo governo
do faraó.
Por volta de 2000 a.C., começa um novo período no Egito, conhecido como
médio império, que vai de 2000 a 1780 a.C. Este período é marcado pela diminuição
do poder do faraó e por um poder maior nas mãos dos nomarcas. De 1788 a 1580
a.C., o Egito volta a viver um período de desordem interna, agravada pela invasão
dos hicsos em 1750 a.C., povos originários da Ásia Ocidental. Por volta de 1580
a.C., os hicsos foram expulsos da região. Nasce a XVIII dinastia do Egito, agora sob
o comando de Amósis I e inicia-se o período conhecido como novo império (1580 a
1090 a.C.) que será marcado por três sucessivas dinastias faraônicas.
A experiência militar com os hicsos contribui para desenvolver nos egípcios
um nacionalismo e uma cultura militar que mudará os propósitos daquela sociedade,
outrora mais reservada e pacífica iniciando uma fase de conquistas, que culminou
com o avanço e o domínio sobre a Palestina e a Síria. No reinado de Tutmósis III,
que subiu ao trono em 1479 a.C., fenícios, cananeus, hititas e assírios, foram
obrigados a pagarem tributos ao monarca egípcio. O faraó, neste período, exercia
um grande poder, alicerçado agora por um poderoso exército. Segundo Burns
76
(1966), o faraó apesar de não ser ainda um monarca por direito divino, a extensão
do seu poder se aproximava do que foram os monarcas modernos europeus.
Após o governo de Ramsés III (1198 a 1167 a.C.), o Egito entra num
processo de declínio resultante de inúmeros fatores. Em 670 a.C., foram invadidos
pelos assírios, readquirindo a independência em 662 a.C. Porém, em 525 a.C., a
região foi conquistada pelos persas.
4.1.2 Escrita egípcia
E a escrita terá nesta sociedade, uma função fundamental tanto para a
religião como para os sacerdotes, já que o uso da escrita e seu ensino estarão nas
mãos dos sacerdotes. Segundo Goody (1986), particularmente no antigo e médio
império, muito do uso da escrita e das formas gráficas centrava-se no culto dos
mortos. Tanto é verdade, que os textos que chegaram até os dias atuais são textos
referentes ao aparato religioso em vez de textos administrativos. Nas paredes dos
túmulos eram elaboradas cenas da vida na terra, embora a comunicação não se
dirigisse diretamente aos vivos, mas sim aos mortos e aos deuses. O culto aos
mortos no Egito foi fundamental para o desenvolvimento de uma tradição escrita, já
que foi a partir da adoração da realeza morta que os grandes templos se
desenvolveram com o clero e a instrução florescente apoiada por doações, inclusive
do próprio faraó. Tanto é que, grande parte dos documentos existentes no Egito
antigo provém dos templos mortuários dos reis, em especial, da quinta dinastia
(2500 a 2350 a.C.).
Goody (1986) confirma que as dotações no Egito eram em grande parte
originárias da coroa e registradas por escrito e consistiam em propriedades de terras
e oferendas. Uma inscrição registrando uma dádiva deste tipo estipula que os seus
produtos são oferendas do deus, isentos na qualidade de terra do deus, o que queria
significar, livre de impostos. Foi este complexo sistema de rendas internas, que
acabou por exigir, por parte do templo, um complicado sistema de registros.
A escrita egípcia hieroglífica29 tinha uma função religiosa e, segundo Diringer
(1971), os antigos egípcios a chamavam de “fala dos deuses” e suas inscrições mais
29
O termo “hieroglífico” é uma transcrição parcial do grego hiroglyphikà grammata, derivada de hierós, “sagrada”, glyphein, “esculpir”, e grammata, “letras”: literalmente, “letras sagradas esculpidas”. Diringer (1971).
77
antigas estão no começo do terceiro milênio, atingindo seu maior desenvolvimento
na primeira dinastia (3000 a 2800 a.C.).
Na escrita egípcia, os seus sons vocálicos não eram representados, embora
fonogramas biconsomânticos e seu uso ocorria nas inscrições sagradas, rituais
imperiais e funerárias. Por apresentar esta característica sagrada, fez dela uma bela
escrita, mas muito complexa para usos mais cotidianos. Por isso, ocorre o
surgimento de uma escrita mais cursiva para o uso mais cotidiano e na aplicação em
manuscritos, documentos comerciais e cartas. No Egito o papiro era abundante e
conhecido desde a primeira dinastia (3000 a 2800 a.C.), o que pode ter encorajado
formas mais cursivas de escrita. Esta escrita recebeu o nome de hierática30.
Segundo Diringer (1971), este tipo de escrita já havia aparecido na primeira dinastia
e no século VII a.C. e já era uma escrita confusa e de domínio apenas dos
sacerdotes. O resultado disto foi o surgimento de uma nova escrita denominada
demótica (do grego demos, “povo”)31. Esta escrita se difundiu por todo o Egito
tornando-se a escrita popular do país. Seu uso se estendeu até por volta do século
V d.C..
Nas vivências dos egípcios, nota-se a marca de uma cultura que se utiliza dos
registros por escrito como critério organizacional daquela sociedade. As letras
revelam a forma de ser daquela civilização em todos os seus segmentos (Reis,
rainhas, obreiros, camponeses e todos os habitantes32).
Toda a terra do reino pertencia ao rei e ao camponês só seria permitido o uso
da terra por consentimento mediante o pagamento de uma taxa anual que ia de 10%
a 20% da colheita. A vida do camponês era uma vida dura, sujeitos a taxas além de
intermediários e ter que trabalhar para o rei quando necessário. As taxas a que
estavam submetidos eram controladas pelos escribas e certamente causava um
incomodo que se fazia presente na vida como um todo do destes trabalhadores.
Havia também serviço postal, embora a comunicação fosse difícil em função
da falta e da precariedade das estradas existentes. O Egito enriqueceu com a
importação de matérias primas e a exportação de produtos manufaturados. O crédito
30
Do grego hieratikós, “sagrado ou sacerdotal”. 31
Segundo Martins (2001), Clemente de Alexandria distinguia três escritas egípcias: a hieroglífica, isto é, a escrita gravada sagrada; a hierática, a escrita reservada aos sacerdotes; e a epistolográfica, destinada à redação de cartas. Posteriormente, Heródoto denominou o terceiro tipo de demótica.
32 Segundo Durant (1995), a população egípcia no quarto século antes de Cristo era calculada em
sete milhões de pessoas.
78
se desenvolveu e as transferências por escrito substituíram a troca. Os escribas
estavam por toda parte ocupados na tarefa da documentação legal e da escrita
mercantil. Tinham como função anotar o trabalho feito, as mercadorias compradas,
os preços de custo, lucros e perdas, contar o gado, o trigo para venda, redigir os
contratos e testamentos e calcular as taxas de renda a pagar.
Baseados na burocracia controlada pelos escribas, os nobres mantinham a lei
e a ordem no Estado. Os escribas calculavam o volume das colheitas e a renda do
governo, distribuíam as dotações aos departamentos administrativos, fiscalizavam
as indústrias e o comércio. Graças a ação dos escribas e a possibilidade da
organização por escrito através de documentos, a economia do Egito era dirigida
pelo Estado.
Também com relação ao poder jurídico não há como pensá-lo se não a partir
de uma cultura marcada pelo registro escrito. A legislação civil e criminal era
objetiva. Na quinta dinastia havia uma precisa legislação reguladora da propriedade
privada e da herança dessas propriedades. Os casos, sempre sob a forma escrita,
eram apresentados aos juízes e debatidos tendo como referência as leis
estabelecidas.
Na maior parte da população egípcia, o povo era monogâmico e o divórcio
não era uma pratica comum. No caso do homem, caso fosse traído pela mulher teria
o direito de abandoná-la sem que tivesse qualquer encargo. Mas como nos dias de
hoje, caso se divorciasse por outro motivo, teria a obrigação de pagar uma
indenização. De acordo com Durant (1995), a mulher era muito valorizada na
sociedade egípcia, já que era considerada a dona da casa e todas as propriedades
se transmitiam por linha feminina. O marido, portanto, no contrato de casamento,
passava-lhe todos os seus bens e ganhos futuros. É interessante notar que esta
legislação que respaldava a mulher como proprietária dos bens da casa e dos bens
do marido, interferia diretamente nas relações afetivas. Registros da época como
cartas de amor, revelam que as mulheres tomavam a frente nas iniciativas
amorosas.
A instrução cabia aos escribas sacerdotes e era direcionada para as crianças
de famílias abastadas. A função era produzir escribas que trabalhassem na
administração pública e os conteúdos normalmente ensinados eram, na maioria,
relativos a assuntos comerciais.
79
4.1.3 Religião egípcia
Na história, pode-se afirmar que o Egito é quem fornece uma das primeiras
religiões escritas. A religião esteve presente em todos os lugares e é impossível
entender este povo sem entender os seus deuses. Todos os corpos celestes eram,
eram considerados, para os egípcios, formas de espíritos. Exemplo Órion e Sírio
eram Sahu e Sopdit e eram deidades. Sahu devorava deuses três vezes ao dia.
Ocasionalmente devorava a lua, explicação que os egípcios davam ao eclipse. A lua
era um deus e o sol o maior de todos, era o deus Hórus, que tomava a forma de um
falcão e voava para fiscalizar todos os seus domínios. Posteriormente, o falcão
tornou-se um dos símbolos da realeza e da religião egípcia.
Também havia os animais-deuses. Adoravam o boi, o crocodilo, o galo, o
falcão, o ganso, o bode, o carneiro, o cão, a galinha, a andorinha, o chacal e a
serpente. O bode e o touro eram especialmente sagrados, pois representavam o
poder sexual criador. Os deuses tornaram-se humanos, concebidos como heróis,
mas de carne e osso limitados como todo ser humano. Ra, Osíris, Ísis, e Hórus eram
considerados os grandes deuses. O Próprio Faraó era considerado um deus e
governava não só por direito divino como por nascimento divino. O rei era o
sacerdote supremo da fé e graças a essa associação com os deuses é que se
atribui o domínio dos faraós por tanto tempo e com tão pouco uso da força. Daí
serem os sacerdotes fundamentais na manutenção da ordem política e, ao mesmo
tempo, imprescindíveis no controle ideológico para a manutenção da ordem social.
O cargo sacerdotal foi ganhando cada vez mais status e era passado de pai para
filho, chegando a ser mais importante que a própria família real. Tinham garantidos
grandes moradias, alimentação, rendas das terras pertencentes aos templos eram
isentos de taxas, isentos de serviço militar, dos trabalhos obrigatórios devidos aos
reis.
A religião tinha como grande característica a insistência na imortalidade e
para se alcançar este objetivo, bastava que a pessoa tivesse sido bom em vida.
Osíris era quem julgava os mortos pesando o coração do morto numa balança em
que o peso de um dos pratos era uma pena. Existiam meios para se vencer o teste
de Osíris, sendo que um deles consistia em adquirir o Livro dos Mortos, este que
80
trazia orações e fórmulas para apaziguar o deus. Este aspecto da religião revela em
primeiro lugar, a distância da religião com aspectos da moralidade. As ações
acabavam por significar pouco para o egípcio já que pouco também determinava na
sua salvação. Contudo, remete a um segundo aspecto: dava ao sacerdote poderes
ainda maiores, pois o mesmo era o conhecedor dos caminhos para a eternidade. As
orações e os amuletos eram mais importantes que a boa prática e isto explica pelo
fato da literatura dos egípcios estar repleta de mágicas. A vida era marcada pelas
encantações e adivinhações. De acordo com o dia do nascimento, já se sabia
praticamente o destino.
Com o desenvolvimento da civilização egípcia, a religião também foi
adquirindo uma complexidade maior e o uso da escrita foi sendo cada vez mais
imprescindível e decisiva para a determinação do fenômeno religioso do Egito
Antigo. De início, as divindades eram locais e com a unificação política no antigo
império, ocorre também uma fusão de divindades. Alguns deuses locais foram
absorvidos no panteão. Segundo Goody (1986), a formalização de um panteão está
com frequência, relacionada com a formalização de um estado egípcio, com a
incorporação de deuses locais numa estrutura nacional mais vasta. Nota-se uma
construção mais complexa, tanto do ponto de vista político-administrativo quanto do
religioso. Mas também, deve-se destacar que a complexidade vai aumentando, não
só no processo de construção das instituições políticas e religiosas, mas também,
considerando as relações entre elas marcadas por momentos de proximidade, mas
também, por períodos de relações conflitivas. Notadamente o apelo à racionalização
nestas culturas será muito grande, bem como, a necessidade maior de registros por
escrito. Goody (1986) destaca que os efeitos da escrita nas religiões locais do
Próximo Oriente podem ser considerados como preliminares ao grau superior de
interrogação que teve lugar nos tempos alfabéticos.
Quanto à organização do clero, é baseada no culto régio, na manutenção dos
templos, no seu papel como professores de escribas e como guardiões de textos
antigos. Todo este conjunto de funções era sustentado por propriedades de terras
doadas pelos reis e por indivíduos particulares. Em determinados momentos da
história egípcia, o templo chegou a possuir um terço dos recursos cultiváveis. O
faraó era considerado deus e sua preservação eterna, seria a garantia da
preservação do próprio Egito. Na reorganização do panteão, conduziram o falcão
Hórus a primeiro grande deus da realeza egípcia. Os deuses Ptah e Rá também
81
foram conduzidos a deuses nacionais. Burns (1966) dirá que Rá era também o deus
da retidão, da justiça, da verdade, enquanto Osíris, através de sua morte, provocada
por seu irmão Set, e sua ressurreição graças a sua esposa Isís, simbolizava a
certeza de que o Nilo todo ano, através das inundações, garantiria a próxima
colheita. Posteriormente, a morte e ressurreição de Osíris, terão um significado mais
profundo. Uma interpretação mais elaborada racionalmente, permitirá aos egípcios a
criação de uma teologia que possibilitará uma reflexão mais profunda sobre
questões, como, por exemplo, o bem e o mal, garantindo a possibilidade de uma
argumentação em defesa da vitória do primeiro sobre o segundo, bem como, uma
teoria que considera a promessa de vitória da vida sobre a morte, ou seja, garantia
da imortalidade pessoal. Fica evidente que questões como estas, só serão passíveis
de discussão com o auxílio do registro, dada a complexidade e o nível de abstração
que envolve os temas propostos.
Ao fim do Médio Império a religião egípcia teve a sua fase mais completa. No
período do novo império, algumas transformações, resultantes de novas conquistas,
acabaram por descaracterizar a religião construída até então sob bases mais
racionais, ocasionando uma retomada da religião mais voltada para a superstição e
colaborando para o aumento do poder dos sacerdotes. Diante desta degradação
religiosa, Burns (1966) destaca a intervenção do faraó Amenotep IV, que começa a
reinar em 1375 a.C. e faz uma grande reforma política e religiosa. Após expulsar os
sacerdotes dos templos, ordenou a adoração do deus Áton. Segundo as novas
reformas, o deus Áton passa a ser o único deus existente, universal, criador e justo,
concepções que irão aparecer posteriormente com os hebreus 600 anos depois.
4.1.4 Realizações intelectuais
Costuma-se atribuir aos gregos a base do pensar filosófico. Durant (1995)
lembra que o mais velho trabalho de filosofia que chegou até os nossos dias foi
Instruções de Ptah-hotep33 de 2880 a.C., ou seja, 2300 anos antes de Confúcio ou
Sócrates. Este documento é considerado o mais antigo exemplo de filosofia ética
que se tem notícia. São quarenta parágrafos divididos em aforismos de sabedoria
prática e outros de uma moral profunda, deixados pelo vizir para a educação do seu
33
Foi governador de Mênfis e primeiro ministro do rei, na quinta dinastia e ao afastar-se do cargo, deixou a um filho um manual de eterna sabedoria.
82
filho. Considerando ser este documento o mais velho texto escrito que chega para o
mundo contemporâneo, pensa-se ser válido expor a seguir, trechos das Máximas de
Ptah-hotep:
Não te mostres orgulhoso pelo fato de seres instruído: trata tanto com sábios como com ignorantes. Por que não há limites para o aprendizado, nem nenhum artífice que possua toda a arte. Linguagem clara é coisa rara como a esmeralda no meio do pedregulho. (...) Vive, portanto, na casa da benevolência e os homens dar-se-ão a ti. (...) Teme fazer inimigos com as tuas palavras (...). Não ofendas a verdade, nem repitas aquilo que qualquer homem, seja príncipe ou camponês, diz quando abre o coração: é aborrível à alma. (...) Se queres ser homem de sabedoria, gera um filho para o agrado de deus. Se ele leva vida perfeita, segundo o teu exemplo, se conduz teus negócios na devida ordem, faze por ele tudo que for bom. (...) Mas se é desatento e não segue tuas regras de conduta, e é violento; se cada palavra que sai de sua boca é uma palavra vil, então poderás bater-lhe - essa linguagem poderá ser adequada. (...) Muito preciosa para um homem é a virtude de seu filho; bom caráter é coisa sempre recordada. (...) Para onde quer que vás, cuidado com o comércio feminino. (...) Se queres ser prudente, cuida da tua casa e ama tua mulher. (...) O silêncio te valerá mais do que o falar muito. Considera como te comportas no conselho quando um perito discorre. É loucura querer falar de todas as coisas. (...) Se te tornares poderoso, faz-te honrado pela ciência e pela bondade. (...) Evita responder sob o calor da exaltação; afasta isso de ti; controla-te. (DURANT, 1995, p. 133).
Burns (1966) ainda destaca como último filósofo ético do Egito,
Amenemope34, autor de uma obra de trinta capítulos intitulada “Sabedoria de
Amenemope”. É interessante ressaltar que esta vasta obra está impregnada do
discurso religioso como está toda a literatura egípcia e teve grande influencia em
outra grande cultura que terá também nas letras a sua marca, principalmente na
elaboração do discurso teológico. Refere-se aqui aos Hebreus que traduziram a
“Sabedoria de Amenemope” e a copiaram na Bíblia, mais especificamente no Livro
dos Provérbios.
No campo do pensamento político, um sacerdote de Heliópolis chamado de
Khekheperre-soneb, elabora uma crítica contra os desmandos dos que governam e
contra as injustiças sociais. No campo das ciências, por questões bem práticas,
contribuíram para o desenvolvimento da astronomia e da matemática. Lançaram os
fundamentos da aritmética e da geometria e foram os inventores do ábaco.
34
Foi o quarto faraó da XXI dinastia e governou o Egito entre 993 e 984 a.C. Mesmo como faraó, assumiu o título de sumo sacerdote de Amon.
83
Na medicina tiveram alguns avanços e compilaram a primeira farmacopeia
que se conhece e na arquitetura, seus trabalhos estão expressos principalmente nas
pirâmides. Heródoto calcula que na pirâmide de Quéops, em Gizé, cem mil homens
trabalharam no decorrer de vinte anos para construir uma pirâmide de cento e
cinquenta metros de altura e mais de dois milhões de blocos de pedra. No médio e
novo império, o templo substituiu as pirâmides, que até então representavam poder
político e religioso do governante. Os mais famosos templos foram os de Carnac e
de Luxor no período do novo império. Apesar de não servirem como tumba, as
dimensões de grandiosidade permaneceram. Carnac, por exemplo, era um templo
de quatrocentos metros de comprimento com colunas de vinte metros de altura e
seis metros de diâmetro. Quanto à escultura era complemento da arquitetura e suas
obras simbolizavam a força e a grandeza do estado egípcio. Isto pode ser visto tanto
nas estátuas dos faraós que eram gigantescas, como também em outras
representações, como por exemplo, a famosa figura do escriba sentado.
A organização social do Egito, segundo Cardoso (1985), tinha no vértice da
hierarquia social, o rei, que podia ter concubinas, constituindo uma numerosa
família, depois uma aristocracia hereditária de funcionários, sacerdotes e chefes
militares constituindo a nobreza, numa situação intermediária, os escribas,
funcionários inferiores, artesãos, artistas e lavradores. Por último, na base da
pirâmide social, formando a grande maioria da população, os trabalhadores braçais,
os camponeses. Deve-se destacar a presença forte das mulheres o que não se
observa em outras sociedades da antiguidade. Há casos de mulheres que
exerceram o poder e o destaque para as mulheres escribas. Quanto à educação,
devido às necessidades de contadores e administradores, o Estado bancava escolas
para formação de escribas, o que mais uma vez contribui para demonstrar a relação
de proximidade que o mesmo tinha com os escribas, dada sua importância cada vez
mais acentuada.
A economia girava em torno da agricultura e, posteriormente, depois de 2000
a.C., o comércio ganha em importância com sociedades como Creta, Fenícia,
Palestina e Síria. Com o fim dos nomarcas, a economia ficou concentrada nas mãos
do governante, o faraó. A terra, segundo Goody (1986), também era atribuída a
indivíduos e poderia ser transferida, quer por testamento quer por venda,
envolvendo em ambos os casos, documentos escritos. Também a indústria se
destacou na construção de embarcações, cerâmica, vidro e tecidos. No comércio, as
84
exigências de documentos escritos, a exemplo da Mesopotâmia, seria uma
necessidade constante. Havia pedidos e recibos de mercadoria, escrituras,
testamentos e outros.
Os impostos no Egito eram pagos em gêneros e armazenados nos depósitos
dos reis e também do templo, e dependia significativamente de registros escritos.
Goody (1986) afirma que, embora a escrita estivesse muitas vezes associada à
religião; o clero, por sua vez, estava intimamente ligado tanto à constituição política
como à economia. No novo império, com as conquistas, o controle estatal aumentou
devido à necessidade de recursos. Este aumento do poder do rei é acompanhado do
aumento do poder dos sacerdotes, já que foi comum no Egito antigo, a aliança entre
faraós e sacerdotes.
A escrita, portanto, foi fundamental na administração civil do início do período
dinástico, quando as questões administrativas estavam ligadas de perto à economia.
Os funcionários de categoria mais elevada tinham ao seu redor, no mínimo um
escriba, que tinha como função, recolher e distribuir provisões que eram cobradas
como impostos. Todo este conjunto de tarefas era facilitado pela utilização da
escrita, já que eram transações mais elaboradas e exigiam a adoção de uma
linguagem escrita.
4.2 Sociedade mesopotâmica
Os avanços ocorridos nas ciências têm possibilitado um grande progresso
nos conhecimentos das primeiras sociedades humanas, anteriores ao período do
surgimento da escrita. Isto tem contribuído para se alargar o conhecimento histórico
de determinadas comunidades que até então, eram reconhecidas historicamente a
partir do advento da escrita, ou seja, sua história só era reconhecida a partir de
registros gráficos. São os casos de duas grandes civilizações, Egito e Mesopotâmia,
famosas na história justamente por serem as primeiras civilizações a se utilizarem
dos registros escritos. No caso da Mesopotâmia, o período alargado parte do
Neolítico até o momento em que aparecem escritos nomes de dinastas encontradas
nos monumentos.35
35
Este período é denominado pelos cientistas de “proto-história da Mesopotâmia”.
85
Entendem os pesquisadores que serão nas terras da região do norte da
Mesopotâmia que aparecerão as primeiras sociedades. Segundo Parrot (1963) as
primeiras aldeias de todas serão as de Muallafat e de Jarmo. A primeira por volta do
VI milênio e a segunda por volta do V milênio a.C. Eram comunidades agricultoras e
criadoras de gado, além de terem domesticado a cabra, a ovelha, o porco e os cães.
A cerâmica ainda não aparece, mas produzem os utensílios de pedra e osso.
Posteriormente a Jarmo, surge Hassuna. Nesta comunidade já aparece a utilização
da cerâmica como utensílio e decoração. Nota-se nesta comunidade do início do V
milênio a.C., através da cerâmica decorada, uma preocupação não só de
comunicação, mas também estética. Não conhecendo a escrita, se manifestam
através da arte como forma de expressão, ou seja, registro.
O mesmo ocorre com duas outras sociedades, contemporâneas de Hassuna
e Jarmo. São elas Samarra e Halaf. Nestas duas sociedades, ainda
desconhecedoras da escrita, utilizavam o barro, a pedra, bem como, o cobre. Mas o
grande diferencial destas comunidades, esta na arte de trabalhar a cerâmica.
Utilizando de cores diversas, reproduziam temas dos mais diversos através de uma
decoração complexa e expressiva. Com traços retilíneos, horizontais, verticais,
oblíquos, faziam referencias à natureza como os peixes, flores, estrelas, e também a
animais e pessoas. Com a elaboração consciente de temas e cores, deseja o artista,
manifestar uma intenção estética, mas também, reveladora de um conteúdo que
expressa a maneira como entende seu mundo, como também, revela como a
comunidade perceba a realidade a sua volta. No caso de Halaf, a cerâmica se
apresenta ainda mais requintada pela sua forma e decoração. Além de ilustrações
de animais, vegetais e humanos, expressam temas religiosos, como por exemplo,
divindades que evocam fertilidade. Nestas comunidades, encontram-se também as
primeiras marcas em pequenas placas de barro significando uma forma de
linguagem e que provavelmente, precede os futuros registros de tabuinhas que
indicarão os objetos comercializados por eles.
Na região sul da Mesopotâmia, em exploração recente de Eridu, revelou-se
antigas instalações anteriores as já conhecidas, fazendo surgir um templo, com
altares e mesas para oferendas e uma cerâmica que revelou a mais antiga
civilização existente naquela região.
Portanto, seja ao norte ou sul da Mesopotâmia, no período que antecede a
escrita, a cerâmica é forma documental destas civilizações. E é através dela que se
86
presume a chegada de um novo povo na antiga cidade de Uruk. A louça aparece
sem nenhuma decoração e com formas diferentes, revelando a chegada de uma
nova população para o local. Será esta comunidade que se utilizará das primeiras
tabuinhas de barro com sinais que reproduziam aquilo que estava a sua volta.
Usavam sinais e palavras, coexistindo valores ideográficos e valores silábicos ao
mesmo tempo. Estava nascendo uma nova forma de comunicação e uma nova era
para a civilização mesopotâmica.
4.2.1 Sociedade suméria
Resultante deste processo das exigências das forças da natureza, os homens
foram respondendo com resoluções que caminharam para uma organização social
mais complexa e o surgimento de centros sociais mais numerosos. A primeira destas
comunidades foi a Suméria, na região sul da Mesopotâmia, no vale do Tigre-
Eufrates.
A civilização Suméria teria durado de 3500 a 2000 a.C. e foi nesta civilização
que teria se originado a tão conhecida na história a escrita cuneiforme. Produziam
pequenas figuras em cilindros que, rolados na argila, deixavam uma impressão
sobre ela. Desenvolveram figuras com uma vareta de junco, feitas sobre tabuletas
de argila, culminando para a escrita cuneiforme. Estas varetas de junco eram
usadas para imprimir na argila fresca, sinais formando supostas cunhas. Daí o nome
de cuneiforme, do latim, cuneus (cunha). Em uma sociedade que aumentava sua
população e tornava-se mais complexa em sua organização, a escrita foi se
tornando um elemento fundamental para facilitar a organização e o fortalecimento
dos governos, estreitando as relações com os sacerdotes que, a exemplo do Egito,
foram adquirindo mais poder, não só do ponto de vista econômico, como também,
do ponto de vista político e ideológico, e isto porque foram monopolizando a
instrução e o seu controle. A origem da sociedade Mesopotâmica deve muito aos
sumérios. As artes, a escrita, a religião, as leis, as práticas comerciais e políticas.
A agricultura era a característica econômica e graças à irrigação tinham boas
colheitas, mas o comércio também fazia parte como fonte de riqueza. Segundo
Burns (1966), usavam faturas, recibos, notas promissórias e cartas de crédito,
utilizando como dinheiro nas negociações barra de ouro ou prata, sendo que
87
possuíam inclusive, uma unidade – padrão que utilizavam em suas transações
comerciais.
Para Burns (1966), a mais importante das realizações dos sumérios, teria sido
seu sistema de leis copilado durante o governo do rei Dungi e, este por sua vez,
serviu de base para o famoso Código de Hamurabi, que será a base para boa parte
dos povos semitas, como, por exemplo, os babilônios, assírios, caldeus e hebreus.
Também a religião exercia um importante lugar para este povo. Eram
politeístas e cada deus tinha uma personalidade distinta sendo capazes de agir tanto
para o bem como para o mal. No entanto, diferente da religião egípcia, a religião
suméria era mais pragmática voltada para as coisas do mundo. Considerando que
viviam sob os riscos constantes de inundações, ventos, calor e acreditando serem
os deuses os causadores diretos do bem e do mal, entende-se a preocupação
constante com os deuses, já que estes tinham o domínio das situações bem
concretas do cotidiano. Roberts (2000) sugere que nenhuma outra sociedade antiga
tenha feito as pessoas se sentirem tão dependentes da vontade dos deuses como a
sociedade dos sumérios.
Existem duas narrativas importantes da religião suméria que falam uma da
criação e a outra do dilúvio. Roberts (2000) diz que a história sobre o dilúvio é a
mais antiga história do mundo e Gilgamesh36, que teria sido governador da cidade
de Uruk e também teria sido ele a se tornar o primeiro herói individual da literatura
mundial.
Conta-se neste épico, que os deuses cheios de inveja do homem, decidiram
afogar a humanidade. Mas um dos deuses teria revelado o segredo e ensinado a
uma família privilegiada a construir uma arca. Durante sete dias, a terra ficou coberta
de água. Após o dilúvio, os homens saíram da arca e ofereceram um sacrifício em
ação de graças, alimentando os próprios deuses famintos pela privação de
alimentos, levando os deuses a tomarem a decisão de não mais atentarem contra os
homens. Deve-se lembrar de que, nesta região, as inundações eram constantes e
este relato, exemplifica a dependência imediata dos sumérios com sua religião.
Distinguem-se três grandes fases na história da Suméria. A primeira é o
período Arcaico (3360 a 2400 a.C.). Trata-se de um período de guerras entre
36
Rei da Suméria foi o quinto da primeira dinastia de Uruk datada aproximadamente de 2750 a.C. É mais conhecido, no entanto, por ser o principal personagem da Epopéia de Gilgamesh, épico preservado em 12 tabuletas quebradas da biblioteca de Assurbanipal escritas com caracteres cuneiformes. Hoje no museu Britânico, revelam a poesia épica da Mesopotâmia. Durant (1995).
88
Cidades-Estados com ascensões e declínios. A segunda fase acontece com o
aparecimento do rei Sargão I da cidade de Acádia. Dominando cidades sumérias,
inaugurou um domínio acadiano (2400 a 2350 a.C.). Seu governo foi marcado pela
unificação de inúmeras cidades, inaugurando um estado independente do poder
religioso e com uma guarda profissional para ataques e defesa do seu palácio.
Cento e cinquenta anos depois de Sargão I, com o fim da hegemonia acadiana,
inicia-se a última fase da Suméria, cuja hegemonia passa para as mãos de sumérios
nativos. Os governantes, nesta fase, exaltam o poder político expresso nas
zigurates37 luxuosas. Por volta de 2000 a.C. a cidade de Ur cai sob o domínio dos
elamitas38. Depois de quinze séculos, a Suméria deixa um legado para os povos
seguintes, que passa, entre outras coisas, pela escrita, literatura, leis, mitologia e a
arquitetura.
No período seguinte aos sumérios, era grande a quantidade de povos no
Oriente Próximo. Acadianos, gútios, amorreus, elamitas, hititas e outros. Neste
conjunto de disputas, nasce na Mesopotâmia o império babilônico. Seu rei mais
famoso foi Hamurabi, grande conquistador e legislador, que governou a Babilônia
por 43 anos. Selos e inscrições transmitem seus feitos. Sob seu comando, os
pequenos estados guerreiros do baixo vale viram-se compelidos à unidade e
disciplinado na ordem por um código de leis histórico. O código de Hamurabi foi
desenterrado em Susa, 1902. Lembrando a maneira como também Moisés recebeu
o código das mãos de Deus, também Hamurabi teria recebido as leis das mãos de
Chamac, o próprio deus-sol para os babilônicos. Roberts (2000) destaca a extensão
de seu império que se estendia da Suméria e do Golfo Pérsico em direção à Assíria,
na parte alta da Mesopotâmia, com cerca de 1100 quilômetros de extensão e 160
quilômetros de largura. Era regido pelo Código de Hamurabi que reunia
aproximadamente 285 artigos referindo-se a propriedade privada, comercio e
negócios, família, agravos e trabalho.
Segundo Burns (1966), era uma sociedade essencialmente comercial e o
Estado regulamentava o comércio, as transações bancárias e a indústria. A
legislação tratava do armazenamento, das escrituras, testamentos, empréstimos de
dinheiro a juros, etc. A burocracia será tão relevante nesta sociedade e,
37
Era uma forma de templo, criado pelos sumérios. 38
Povo que se originou no vale do Nilo. Fez parte das migrações africanas rumo a Ásia, cerca de 8000 a.C. a 5000 a.C. Estavam submetidos à terceira dinastia de Ur. Ajudados por povos seminômades e por desavenças internas, derrubaram a terceira dinastia por volta de 2004 a.C.
89
consequentemente, a escrita, que se uma transação comercial acontecesse sem um
contrato, isto poderia levar os envolvidos a punição com a morte. Também a
agricultura era regulamentada e havia penalidades para as pessoas que não
cultivassem a terra, por exemplo, ou que por algum motivo se descuidassem dos
diques.
Os primeiros juízes foram os sacerdotes e a penalidade começou com a lei da
retaliação. Se a casa caia e matava o filho do comprador, o filho do arquiteto que
projetou a casa teria seu filho morto. Gradualmente as punições foram substituídas
por multas. No código de Hamurabi foram fixados salários para construtores,
alfaiates, pedreiros, carpinteiros, barqueiros, pastores, trabalhadores agrícolas, e
outros. O código também assegurava a propriedade de terras e outros bens. Os
escribas eram os redatores de tudo e mesmo o rei ficava submetido ao poder das
leis. É interessante destacar que o código tem o seu inicio com homenagens aos
deuses, e embora os preceitos vão ganhando ares seculares, a dimensão da
religiosidade presente nas leis está incorporada na cultura.
O próprio rei, se não era considerado um deus, era entendido como um
agente dele. As taxas vinham em nome desse deus e iam para os tesouros do
templo e à medida que os ricos repartiam seus dividendos com os deuses, as
riquezas dos templos cresciam. Quando, por exemplo, o exercito vencia uma
batalha, as primeiras levas de escravos e despojos iam para os templos. Todos
estes detalhes, somados aos tributos anuais que recebiam os templos, fizeram dos
sacerdotes os maiores agricultores e comerciantes da Babilônia, bem como,
determinaram que tivessem uma grande influência na vida cotidiana do povo,
superando a própria influência real.
Esta interferência na vida cotidiana pode ser explicada à medida que se
entende que havia praticamente um deus para cada necessidade humana. Sua
religião era muito prática e suas orações buscavam atender necessidades terrenas e
nunca além tumulo. O pecado para eles se caracterizava pela presença de seres
demoníacos e necessitavam de intervenções mágicas para que pudessem se livrar
do mal. Com os babilônios, a magia ganhou em importância, bem como a adoração
dos demônios. A feitiçaria também ganha lugar de destaque e a lei chegava a prever
a pena de morte para quem a praticasse. Era, portanto, uma civilização rica em
superstição.
90
O casamento entre o povo era monogâmico, arranjado pelos pais e
sancionado pala trocas de presentes. A mulher adúltera e seu amante sofriam penas
severas como, por exemplo, serem afogados no rio. A esterilidade, o adultério, a
incompatibilidade ou a possível negligência da mulher nos afazeres do lar podiam
ser motivos para um divórcio. O divórcio era exclusividade do marido, mas se a
mulher, caso comprovasse a crueldade do marido, poderia abandonar a casa. Entre
as classes mais abastadas, ela era dona de suas propriedades, podendo receber
rendas, comprar e vender e herdar propriedades. Há registros de mulheres que se
dedicaram ao comércio e há registros de casos de mulheres que se tornaram
escribas, o que significa que também recebiam educação. Diferentemente do que
acontecia com as mulheres das classes inferiores, que procriavam e estavam
distantes de qualquer direito, a não ser, de estarem submetidas a uma cultura que
privilegiava os homens.
Por volta de 1300 a 612 a.C., depois de um isolamento na parte superior do
vale do Tigre, começa na Mesopotâmia uma supremacia dos Assírios. Devido às
condições ambientais, com recursos limitados e sob constantes riscos de ataques,
acabaram por se tornarem povos guerreiros e ambiciosos de conquistas. Seus
comandantes do exército se tornaram poderosos e ricos. Seus exércitos eram os
mais numerosos e mais bem armados de que qualquer outra nação da antiguidade.
Quanto à legislação, reservaram punições para infrações como o aborto ou as
perversões, que, segundo Burns (1966), tinha um interesse militar de prevenir o
declínio da taxa de natalidade. Embora tendo como pano de fundo a guerra, no
século VII a.C., o rei Assurbanipal, dedicou-se ao ensino e às artes. A biblioteca de
Nínive chegou a conter 22.000 tabuletas de escritos babilônicos.
Finalmente, a última fase da civilização babilônica se deu com os caldeus e
seu rei mais conhecido, Nabucodonosor, retomando, de certo modo, as
características culturais, comerciais e industriais dos babilônicos. Grandes
mercadores que eram, acabaram por se tornarem grandes realizadores científicos. A
religião era o que motivava a astronomia. Como consideravam os planetas como
deuses, achavam possível adivinhar o futuro pelo movimento dos corpos celestes.
Goody (1986) dirá que os mesopotâmicos, passarão a anotar atos incomuns no céu
o que possibilitará uma passagem do discurso religioso folclórico, para um nível de
atividade mais científico. Criaram a matemática, sendo a astronomia a ciência
especial. Cada planeta equivalia a um deus e cada movimento das estrelas eles
91
entendiam que significava algum acontecimento na terra. Os sacerdotes é que
conheciam e decifravam estes indícios. Acabaram desenvolvendo um estudo
cientifico dos fenômenos da natureza, determinando a posição de várias estrelas, e
aos poucos, foram levantando um mapa do céu. Traçaram, por exemplo, as órbitas
do sol e da lua, notaram conjunções e eclipses e fizeram pela primeira vez a
distinção entre planetas e estrelas. Também mediram o tempo usando relógios de
água e de sol. Observando o movimento dos astros, dividiram o ano em doze
meses, seis meses com trinta dias e seis meses com 29 dias. O mês era dividido em
quatro semanas de acordo com as fases da lua. Burns (1966) lembra de dois
grandes nomes da astronomia babilônica. No século VI a.C. Nabu-Rimannu39 que
teria calculado a duração correta do ano e cem anos depois, Kidinnu40 que teria
descoberto e provado a inclinação do eixo da terra.
Os mais antigos mapas conhecidos também surgiram na Babilônia tendo
como referência as estradas utilizadas no comércio e as cidades com quem
negociavam. Havia uma dependência entre a ciência e a religião, mas as
consequências dessa dependência foi mais determinante para a medicina do que
para a astronomia. A superstição do povo fazia com que o feiticeiro fosse
considerado mais importante e mais popular que o próprio médico e era comum a
tentativa de solucionar as doenças com métodos fundados na magia. A doença era
encarada pelo povo como uma possessão e decorrente do pecado, por isso,
acreditavam que o tratamento seria possível através de rituais mágicos, rezas ou
drogas.
As implicações da escrita serão consideráveis nesta sociedade. O escriba
passa a ter em mãos um texto complexo sobre o qual, terá também o seu domínio.
Este processo de erudição da religião, porém, não elimina suas versões mais
populares como se pode constatar com relação à medicina. Por outro lado, toda esta
elaboração escrita, desenvolvida pelos mesopotâmicos, motivou preocupação com
questões teológicas levando a um refinamento dos próprios métodos da
interpretação de augúrios, como também, a mudanças nas técnicas de adivinhação.
A responsabilidade em função dos resultados do sacerdote (adivinho) será maior, já
que agora as predições são redigidas tornando mais difícil escapar das
consequências das predições não cumpridas.
39
Astrônomo e matemático caldeu que viveu no V século a.C. 40
Astrônomo e matemático caldeu que viveu no IV século a.C.
92
Caminha-se para outra decorrência importante da escrita que é o surgimento
de um conjunto de conhecimentos no campo religioso, que na visão de Goody,
podem ser denominadas de teologia. Dirá este autor que a construção do texto:
“pode levar à sua contemplação, ao desenvolvimento de pensamentos acerca de
pensamentos, a uma metafísica que pode requerer a sua própria metalinguagem”.
(GOODY, 1986, p. 56).
Mas também, a escrita congelaria aspectos da religião, onde ritos ficariam
agora, submetidos ao texto escrito, a ponto da necessidade de intérpretes
especializados para a tradução das palavras dirigidas aos deuses41.
Os hebreus foram influenciados pelas lendas da criação, do dilúvio42e pelo
sistema de direito. Também a tendência pelo comércio, pode ter sido adquirida no
período do cativeiro da Babilônia, bem como, simbolismos, o pessimismo, o
fatalismo, e a demonologia também foram incorporados pelos hebreus. Burns (2000)
ainda destaca a influência, mesmo que indireta, sobre os gregos e romanos, como a
filosofia estóica e nas artes com o uso do arco e da abóboda.
4.2.2 Origem da escrita mesopotâmica
A escrita cuneiforme (a palavra deriva do latim cuneus - “cunha” e forme -
“forma”) é a mais antiga escrita que se tem notícia. Por volta da metade do quarto
milênio a.C., os sumérios ocuparam a região sul da Mesopotâmia e deixaram um
vasto material literário jurídico, administrativo, comercial e religioso. Segundo
Diringer (1971), este povo começou a utilizar uma escrita, que se desenvolveu
posteriormente na escrita denominada cuneiforme. No entanto, segundo esse autor,
não é possível determinar a origem exata, já que apresenta semelhanças com a
escrita de outros povos como os elamitas, a escrita hieroglífica egípcia e do vale do
Indo.43
41
Comblin (1986) referindo-se à teologia ocidental cristã destaca que a teologia marca a união da classe intelectual clerical. A teologia é, antes de tudo, um linguajar que permite a unidade e a circulação das ideias. A teologia é um discurso e não a expressão da religião popular. Não é mais a expressão da fé concreta e nem mesmo dos próprios sacerdotes e que todos do clero acabam por aprender o linguajar teológico, mesmo que não tenha dele sua compreensão. Pensa-se que este raciocínio pode ser atribuído também à sociedade mesopotâmica antiga.
42 Segundo Bright (1978), o rei assírio Assurbinípal, teria organizado uma grande biblioteca
preservando cópias dos mitos e epopéias da antiga Babilônia, incluindo as histórias do dilúvio e da criação babilônica, descobertas a apenas um século.
43 Como afirma Fischer (2009), ninguém inventou a escrita, já que todos os sistemas de escrita
parecem descender de protótipos ou sistemas precedentes, cuja ideia de representar graficamente
93
Independente de sua origem, o conhecimento desta escrita baseia-se num
achado em Uruk de pequenas tábuas com uma escrita pictográfica.44, o que quer
significar que inicialmente a escrita cuneiforme era uma escrita figurativa, não
contendo qualquer ideograma.45 Posteriormente, evolui para uma escrita ideográfica
e fonética.46 Diringer (1971) exemplifica com o disco solar dos sumérios, que podia
representar tanto os conceitos de “dia” e “tempo” como também o próprio sol. Neste
sentido, que Fischer (2009) entende que a história da escrita cuneiforme segue a
história da escrita da palavra (logografismo) e a escrita do som (fonoticismo). Este
primeiro sistema de escrita surgiu na Suméria, como resposta às necessidades da
economia e vai se tornando um instrumento nas mãos de uma hierarquia
burocrática.
Segundo Fischer (2009), a escrita inicial descoberta nas tabuletas de Uruk se
baseava em cerca de 1800 pictogramas e símbolos. Com o passar do tempo a partir
de certos convencionalismos, ocorre uma redução para oitocentos pictogramas e por
volta de 2500 a.C. os elementos gráficos tornaram-se unidades sonoras. Os
pictogramas foram substituídos por marcas em cunha feitas com cálamos47 sobre a
argila. Essas marcas serão estilizadas a ponto de deixarem de ser identificáveis.
Em seguida, um exemplo dessas modificações pode ser notado na
transformação do significado de “boi”:
Sumério Pictográfico
(3000 a.C.)
Forma
rotacionada
Arcaico
(2500 a.C.)
Babilônico
(1800 a.C.)
Assírio
(600 a.C.)
gud = “boi”
a fala humana, esquema para conseguir isso, e/ou sinais gráficos usados nesse processo, foram emprestados e adaptados ou convertidos para se adequarem à língua e as necessidades sociais de outro povo.
44 Do latim “pictu” part. de pingere, “pintar”. Constitui um sistema de imagens que constitui uma
escrita sintética (Dicionário Aurélio). 45
Sinal de notação das escritas analíticas, como, por exemplo, o hieroglífico egípcio ou os símbolos abstratos da escrita cuneiforme e chinesa. Símbolo gráfico que representa diretamente uma ideia, como algarismos, certos sinais de transito, etc. (Dicionário Aurélio).
46 Do grego phonetiké, epistéme phonetiké, “ciência da voz”; Estudo dos sons, no qual se leva em
conta a pertinência deles a uma língua. (Dicionário Aurélio). 47
Pedaço de cana ou caniço talhado na ponta.
94
A necessidade leva à criação de um sistema formal de educação, culminando
com o surgimento de uma classe social de escribas que passarão a ter grande
influência na sociedade.
A maior parte dos escritos cuneiformes foi produzida em argila, diferente do
Egito que se utilizou do papiro48; este detalhe colaborou para a preservação deste
material, apesar das guerras e do clima. Fischer (2000) acrescenta que por volta de
2500 a.C. a escrita cuneiforme era capaz de transmitir qualquer pensamento, e isto,
graças à criação de um silabário, que relaciona sinais específicos usados por seu
valor silábico sonoro. Por isto, afirma este autor que, com a escrita cuneiforme, a
literatura (do latim litteratura “alfabeto”, “gramática”) teve seu início, mas com a
ressalva de que mais de 75% das 150 mil inscrições encontradas na Mesopotâmia
são de registros relacionados a assuntos contábeis, administrativos e de listas de
mercadorias, pagamentos e outros.
Em 1975 foram descobertas na Síria mais de 1500 tabuletas cuneiformes.
Sem dúvida, uma riqueza registrada em uma escrita utilizada por mais de três mil
anos e que ainda continua sendo um caminho para a compreensão dos primórdios
da escrita.
4.3 Sociedade hebraica
Burns (1966) entende que, em boa medida, devido à localização geográfica
(entre o Egito e as civilizações da Ásia), isto teria colaborado para uma série de
influências e transformações na religião hebraica. Segundo este autor, é possível
distinguir cinco períodos da religião hebraica. O primeiro é o pré-mosaico,
caracterizado pelo animismo, adoração de espíritos e formas de magia. O segundo
período (XII a IX a.C.) foi da monolatria nacional, adoração de um único deus sem
negar a existência de outros sendo Iavé venerado como legislador e mantenedor da
ordem do universo. Os dez mandamentos é um exemplo disso. Marcada pela
superstição e idolatria, a religião hebraica passa por uma reforma realizada pelos
profetas, dando início ao terceiro período que foi dos séculos VIII e VII a.C. Três
doutrinas básicas marcariam esta nova fase da religião. A primeira é caracterizada
pelo monoteísmo; a segunda, marcada pala ideia de que Iavé é exclusivamente
48
É comum a ideia de que isto se deve a quantidade de matéria-prima de cada região. Fischer (2000) atribui mais às tradições, já que também a Mesopotâmia tinha muito papiro.
95
deus e justo e a terceira e última doutrina é que os fins da religião são
principalmente éticos e sociais.
Em seguida, com as influências externas, entra a religião hebraica num quarto
período. Com influências da Babilônia49, adotaram o deus transcendental, onipotente
e santo. Para preservar a identidade do povo, restauraram costumes como,
circuncisão, distinção de alimentos, instituição dos sábados e outros, culminando
com o aumento do poder dos sacerdotes, transformado numa religião eclesiástica.
Finalmente, o último período caracteriza-se pela influência persa (539 a 300
a.C.), marcando a introdução de novos elementos como a crença em satã,
julgamento final, ressurreição dos mortos.
Os hebreus tiveram grande importância para o mundo moderno,
especialmente, como se sabe, para a religião cristã. Sabe-se também que tiveram
larga influência de culturas antigas importantes, como Egito e Mesopotâmia.
A origem do povo hebreu acontece no deserto da Arábia. Por volta de 1800
a.C., se estabeleceram na Mesopotâmia sob a liderança de Abraão. Posteriormente,
Jacó os teria conduzido à Palestina e por volta de 1700 a.C. algumas tribos se
instalaram no Egito, embora não haja consenso histórico sobre as datas e os
motivos que os levaram até aquele país, se foram como imigrantes ou como
escravos. Em torno de 1250 a.C., são libertados sob a liderança de Moisés e
posteriormente conquistaram a Palestina, segundo a Bíblia, com grande violência e
com o respaldo e ordem divina. Se Moisés se destaca por ter sido um grande
estadista, Josué não passava de um guerreiro brutal,50 e foi dessa maneira, com
muito sangue, que este povo se apossou da terra prometida.
Segundo Burns (1966), graças aos contatos com outros povos desenvolveram
a agricultura, o comércio, o uso do ferro, a escrita e também acabaram adaptando
as leis do Código de Hamurabi. Enfrentaram conflitos com povos que habitavam a
região, como os cananeus e os filisteus, estes últimos acabaram por conquistar
grande parte do território da Palestina. Por volta de 1025 a.C., os hebreus
49
Os hebreus ficaram cativos da Babilônia de 586 a 539 a.C. 50
Josué não retirou a mão que estendeu com a lança até que tivesse dedicado ao anátema todos os habitantes de Hai. E Israel não tomou por presa senão o gado e os pequenos despojos daquela cidade, segundo a ordem que Iahweh havia dado a Josué. Josué queimou Hai e a reduziu a ruína para sempre, um lugar desolado até hoje. Quanto ao rei de Hai, enforcou-o numa árvore. (Bíblia de Jerusalém – Josué, capítulo 8 – V. 26 a 29).
96
organizaram uma política monárquica, resultado de uma série de necessidades,
principalmente com o objetivo de organizar o povo.
Primeiro Saul, e com sua morte, assume por mais de quarenta anos o rei
Davi, levando os hebreus a grandes vitórias sobre os filisteus e a um período de
glória, iniciando sua capital Jerusalém. Seu sucessor, Salomão, é conhecido por sua
sabedoria, justiça e proteção do comércio, mas também, marcado pelo luxo e
extravagâncias de seu governo. Após sua morte em 935 a.C., ocorre nova divisão
entre as tribos do norte e do sul. As dez tribos do norte ficaram conhecidas como
reino de Israel e as do sul, reino de Judá. Em 722 a.C., o reino de Israel é
conquistado pelos assírios. Em 586 a.C., os caldeus conquistaram o reino de Judá.
Quando a Pérsia conquistou os caldeus, a Palestina tornou-se estado vassalo (539 -
532 a.C.). Em 332 a.C., a Palestina foi dominada por Alexandre, rei da Macedônia e,
em 63 a.C. caiu sob o domínio dos romanos até 70 d.C. com a destruição de
Jerusalém.
A família era a fonte no campo e no pastoreio, situação que se altera com o
desenvolvimento da indústria no reinado de Salomão, fazendo do indivíduo a base
econômica. Com a ameaça dos filisteus, os hebreus se submetem a uma temporária
unidade liderada por um poder único.
Quando aparecem na história, os judeus era um povo nômade de uma fé
marcada pelo politeísmo elementar. Este fato pode ser confirmado no período do
êxodo egípcio, quando os judeus, na ausência de Moisés, criaram o bezerro de
ouro, numa lembrança do culto ao boi característica da religião dos egípcios.
Também a influência da cultura da mesopotâmia era muito presente junto ao povo
hebreu, como por exemplo, a prática da adivinhação, muito comum entre os
babilônicos.
Durant (1995) dirá que lentamente a concepção de um deus nacional vai
tomando forma dando a fé judaica, a unidade e simplicidade que a levaram superar
os diversos deuses mesopotâmicos. Neste processo, a presença do registro através
do livro da lei, será um elemento de fundamental importância. De um deus trovão,
Jeová se tornará, no livro do Pentateuco, num deus dos exércitos e colaboradores
na conquista de novos territórios. Com o desenvolvimento da unidade política,
somada a construção do templo que possibilitou um centro religioso para o povo, os
hebreus vão ganhando identidade tanto no aspecto político, quanto no religioso.
97
Com relação à imortalidade não era considerada pelos judeus entendendo as
recompensas limitadas a vida terrena. Para a ameaça do pecado e suas
consequências, combatiam com oração e sacrifício. O pecado era uma ideia central
de toda a teologia judaica e marcava a vida cotidiana do povo já que tornava a
pessoa espiritualmente impura e necessitava purificação com sacrifícios, orações e
donativos.
Com a unificação política e a crescente importância religiosa, os sacerdotes
foram ganhando em poder e riqueza a ponto de fazê-los a exemplo do Egito e da
Babilônia, mais poderosos que o próprio monarca. Salomão fez Israel passar do
estágio agrícola para o industrial. Cresceu a divisão de classes entre ricos e pobres
e o conflito agravado entre cidade e campo, contribuiu para a divisão entre o reino
ao norte conhecido como reino de Israel e o reino de Judá, ao sul, com a capital em
Jerusalém. Com a morte de Salomão, Jerusalém é conquistada pelo Egito. É neste
contexto que surgem os profetas.
Como estivesse o povo deixando de adorar Jeová para adorar deuses
estrangeiros, os sacerdotes, durante o governo do rei Josias anunciaram que nos
arquivos secretos do templo, encontraram o livro da lei, numa tentativa de preservar
a fé nacional. Neste processo, o faraó é derrotado por Nabucodonosor, rei da
Babilônia, e capturou Jerusalém escravizando o povo. Em seguida, com a Pérsia
dominando a Babilônia, Ciro dará liberdade aos judeus, que retornam a Palestina.
Neste retorno à Palestina, o livro foi fundamental para a construção de uma
unidade nacional por parte dos judeus. E no dizer de Durant (1995) por volta de 444
a.C. em diante o livro da lei passou a ser a constituição e a consciência daquele
povo.51 Orienta o povo em relação a dieta, medicina, higiene pessoal, parto, etc.
Atribuir à divindade os códigos não era uma ideia estranha à época.52
As leis envolvem a cultura dos judeus refletindo suas necessidades e
direcionando seus agires. O primeiro mandamento garantia a possibilidade e a
manutenção de um Estado teocrático que repousaria na ideia de Deus e na vontade
dele. Não é diferente com o que acontecia no Egito, onde o faraó era considerado
deus, bem como na Mesopotâmia, onde se o rei não era considerado deus, ao
51
Durant (1995) dirá que provavelmente seu conteúdo continha grande parte do velho testamento. Como, quando e onde foram escritos, são dúvidas que persistem até hoje e responsáveis por vasta literatura.
52 As leis do Egito foram dadas pelo deus Thoth, as leis de Hamurabi, pelo deus Shamash, as leis da
Pérsia foram entregues a Zoroastro por Ahura-Mazda, entre outros.
98
menos era mensageiro dele. O segundo mandamento eleva a concepção nacional
de Deus e rejeita a superstição, muito presente na cultura judaica por influência
especialmente dos mesopotâmicos. O terceiro mandamento reflete a intensa
devoção, bem como a necessidade dela aos judeus. O quarto mandamento santifica
o sábado, costume originário dos babilônicos que em dia de sábado faziam
abstinência. O quinto mandamento expressa o valor da família, como já visto, a base
da sociedade judaica desde os primórdios. Era a unidade política e econômica onde
o pai representava o Estado e a mulher se submetia a ele. A necessidade de
aumentar a população, exaltava a maternidade e tornava obrigatório o casamento,
além de condenar o aborto. O sexto mandamento reflete a condição de violência
que caracterizava as comunidades antigas. Dos dezenove reis de Israel, oito foram
assassinados. Neste sentido, este mandamento conduz a um conselho ou alerta
frente a tantas chacinas. O sétimo mandamento, decorrente da consciência da
importância da família como base social, coloca, o matrimonio, como a base da
família. Se fosse rico, o homem podia praticar a poligamia, enquanto a mulher, tinha
que ter um único homem, já que tinha que preservar a propriedade garantindo que
não teria filhos de outros homens. No caso da mulher ser estéril, podia o homem
tomar uma concubina. O oitavo mandamento está de acordo com o direito de
propriedade, que era quase todas em terras e representava junto com a família e a
religião, as bases da sociedade judaica. O nono mandamento não só exigia
honestidade, mas tomava Deus como testemunha. Como a lei religiosa era a única
lei imposta para aquela sociedade, tornava os sacerdotes seus juízes e o templo em
corte. O décimo mandamento evidencia o valor da propriedade privada e expõe a
mulher na sociedade judaica como mais uma delas.
Não se pode dizer que estas leis escritas e aceitas pelo povo como vontade
de Deus sejam rigorosamente seguidas na vida cotidiana da comunidade como um
todo. Certamente, como acontece com todos os códigos, também estes eram
violados. São, no entanto, diretrizes que dão noção da vida da comunidade no seu
agir e na sua maneira de pensar, e exerce influência, não só entre os judeus, mas
na história de muitos povos modernos que hoje são marcados pela herança cultural
deste código de leis milenar.
99
4.3.1 Cultura hebraica e a escrita
Destaque para o direito, a literatura e a filosofia. No direito, um exemplo é o
código deuteronômico53. Preocupado muito mais com princípios práticos, o código
submetia inclusive o rei. Está escrito:
Que ele não multiplique excessivamente sua prata e seu ouro. Quando subir ao trono real, ele deverá escrever num livro, para seu uso, uma cópia desta Lei, ditada pelos sacerdotes levitas. Ela ficará consigo e ele lerá todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer a Iahweh seu Deus, observando todas as palavras desta Lei e colocando estes estatutos em prática. Deste modo ele não se levantará orgulhosamente sobre seus irmãos, nem se desviará deste mandamento para a direita ou para a esquerda, de modo a prolongar os dias do seu reinado, ele e seus filhos, no meio de Israel. (Bíblia de Jerusalém, Deuteronômio, 17:17-20)
Burns (1966) considera a literatura hebraica como a melhor que o Oriente
antigo produziu. Conservado no velho testamento e nos livros apócrifos, são textos
ricos de ritmo e vigor emocional. Destaques para o Cântico dos Cânticos e o Livro
de Jó. No campo da filosofia, os destaques mais antigos seriam o Livro dos
Provérbios e do Apócrifo do Eclesiástico. Escritos até certo ponto recentes, percebe-
se presente nestes textos a grande influência de fontes egípcias e reproduzem um
pensamento marcadamente ético. Apresentando uma reflexão mais elaborada, está
o Eclesiastes54 trazendo no conjunto de suas reflexões ideias básicas como o
mecanismo do universo; o determinismo, sendo o homem vítima do destino; o
cepticismo (é impossível conhecer as últimas causas); o pessimismo, e a
moderação55.
A Bíblia é um dos livros mais lidos no mundo. Sua tiragem atinge uma média
anual de 11 milhões de exemplares e 12 milhões só do novo testamento. Inclusive,
53
Segundo Bright (1978), o fim do Império Assírio, tornou Judá uma nação livre. Neste momento, o rei Josias (640 a 609 a.C.) lançou uma grande reforma. Quando da reforma no templo, foi encontrada uma cópia do livro da lei. Na verdade este livro encontrado foi o Deuteronômio e serviu de base para as reformas de Josias, como por exemplo, o combate à idolatria, considerado como um crime capital. Além da unificação política, ocorreu uma unificação do culto baseado neste livro de leis.
54 Este livro se intitula Palavras de Coélet, filho de Davi, rei de Jerusalém. A palavra Coélet é usada
como substantivo comum usado às vezes como artigo. É um nome de ofício e designa aquele que fala na Assembléia (qahal, em ekklesia). Mesmo o nome não sendo mencionado, é identificado com Salomão, atribuição que não passa de ficção literária do autor que, na verdade, é desconhecido (Bíblia de Jerusalém).
55 Dado seu caráter de transição, há uma abalo das certezas tradicionais. Com relação às influências
externas, têm-se estabelecidos paralelos com obras egípcias e com a literatura mesopotâmica de sabedoria e com a Epopéia de Gilgamesh. (Bíblia de Jerusalém).
100
segundo Rogerson (1996), o apego pelas suas tradições escritas, fez o povo hebreu
ser conhecido como “povo do livro”. Goody (1986) diz que a Bíblia representa menos
a redação de uma religião oral e mais a criação de uma religião letrada.
Os usos e consequências da instrução foram muito importantes: o
congelamento das genealogias, o ordenamento dos mandamentos, a enumeração
das tribos hebraicas, os métodos de construção de templos, a compilação dos
provérbios, as listas dos que pertenciam à comunidade, censo etc. Moisés teria
registrado por escrito leis56 e decisões jurídicas, assim como fez memorandos
relativos às viagens dos israelitas.
De início, os feitos de patriarcas como Abraão, Isaac e Jacob foram
conservados e transmitidos oralmente, e isto, como toda a história de Israel até a
chegada do rei Davi, por volta de 1000 a.C. o que implica dizer que relatos como
gênesis, êxodo, juízes e 1Samuel foram transmitidos oralmente antes de serem
escritos. No entanto, Rogerson (1996) destaca compilações de leis anteriores ao
antigo testamento. Assim, é possível que as leis tenham figurado entre os primeiros
textos, na história escrita de Israel.
Com Davi e Salomão ocorre um crescimento da atividade literária. A
ascensão de Davi como rei e a construção de um império unificado fez com que
Israel se transformasse rapidamente na maior potência da Palestina e da Síria.
Segundo Bright (1978), seu império incluía toda a Palestina, de leste a oeste, do
deserto até o mar, com suas fronteiras ao sul do deserto do Sinai, do Golfo de
Acaba até o Mediterrâneo, no rio do Egito. Sem contar, Moab, Edom e Amon que
pagavam tributos. Quanto à Síria, estava sob a administração provincial. Isto
significa que Israel, de uma confederação tribal, passa a um complexo império
organizado. Muitas terras foram subjugadas por acordos, e existem evidências de
Judá ter sido dividida em distritos, para fins administrativos. Quanto a Jerusalém,
promoveu-a como instituição oficial do estado, onde dois sumos sacerdotes
administravam os assuntos religiosos.
Salomão herda o grande império e seu grande desafio era mantê-lo unido e
alcançou seu objetivo, no dizer de Bright (1978), através de um judicioso programa
de alianças. De grande importância, foi a aliança estabelecida com Tiro, capital de
56
Veio, pois, Moisés e referiu ao povo todas as palavras de Iahweh e todas as leis, e todo o povo respondeu a uma só voz: “Nós observaremos todas as palavras ditas por Iahweh.” Moisés escreveu todas as palavras de Iahweh (...). Tomou o livro da aliança e leu para o povo; e eles disseram: “Tudo o que Iahweh falou, nós o faremos e obedeceremos.”
101
um estado que controlava o litoral sul da Fenícia. Esta aliança resultou em
benefícios comerciais mútuos, abrindo para Israel novos caminhos de comércio e
indústria, como o comércio do Mar Vermelho, com a Arábia e com o Egito.
Resultado, portanto, deste grande desenvolvimento econômico, que tornou
Israel em um estado extremamente rico, fez-se acompanhar de um grande
florescimento cultural e obviamente a escrita foi intensamente utilizada, Salomão
necessitou de uma equipe de escribas para que pudesse manter seu império. O
aumento populacional, Jerusalém, por exemplo, dobrou o número de habitantes, e
as complexas relações comerciais e tributos, exigiram o recurso das letras. Todo
este impulso literário fez autores recuperarem relatos das narrativas de Davi, Saul e
Samuel e colocá-los em forma literária. Também foi na época de Salomão que, a
história dos patriarcas, do êxodo e da conquista, foi organizada em prosa produzindo
um documento que forma a base do hexateuco e resultará numa das obras-primas
da Bíblia.
Portanto, será a partir do século X, que se comporá o pentateuco e os
escritos dos primeiros profetas. Posteriormente, segundo Rogerson (1996), só no
século VIII com os profetas “clássicos” se teria um novo impulso na escrita, já que as
palavras dos profetas eram redigidas por seus discípulos57.
Com o exílio na Babilônia (587 a 539 a.C.), a história de Israel, da conquista
de Canaã até ao exílio e os livros proféticos, foram redigidos, próximo do que se
conhece hoje. Também os “livros sapienciais” e os poemas reunidos no “cântico dos
cânticos”. Já nos fins do século II a.C., o antigo testamento estava terminado.
Rogerson (1996) destaca que quando surgiu o cristianismo, o antigo testamento, já
existia em grego para os judeus do Egito. Com relação ao novo testamento, o mais
antigo testemunho é um fragmento do evangelho de João de 150 d.C. e cópias das
epístolas de Paulo, encontradas no Egito, que remontam ao fim do século II. No
século IV, foi composto o essencial do antigo e novo testamento, em grego. Dois
destes exemplares estão conservados, um na biblioteca do Vaticano (Codex
Vaticanus) e o outro no Britsh Museum (Codex Sinaiticus).
57
O exemplo do profeta Isaías é bem próprio. Nascido em 765 a.C. teria recebido a missão de anunciar a ruína de Israel e de Judá em castigo das infidelidades do povo. Era crítico dos governantes. Rejeitado, pôs por escrito o que tinha dito: “Vai agora e escreve-o sobre uma prancheta, grava-o em um livro que se conserve para dias futuros, para todo o sempre, por que este povo é rebelde, constituído de filhos desleais, de filhos que se recusam a ouvir a Lei de Iahweh.” (Bíblia de Jerusalém, Is 30:8-9).
102
Quanto às principais contribuições dos hebreus, foram principalmente no
campo religioso e no campo ético. Basta lembrar que as bases do cristianismo foram
heranças dos hebreus, especialmente dos essênios58. Valorizavam a espiritualidade
mais do que os ritos, acreditavam na imortalidade da alma e na vinda do messias.
No campo da política, como visto com relação à dependência do governante à lei,
pode-se dizer que a ideia de um governo limitado à soberania da lei contribuiu para
o desenvolvimento do pensamento político moderno.
4.4 As letras no templo e no palácio
Ao se expor a formação de culturas antigas, onde a escrita teria surgido nos
seus primórdios, nota-se uma série de mudanças que este fenômeno traz como
consequências em relação às comunidades humanas, que não desenvolveram a
escrita como uma maneira de expressão dos seus dizeres. A seguir, algumas destas
alterações significativas e que ocorreram de uma maneira geral em todas as
comunidades antigas em que as letras se fizeram presente, em especial, na religião
e na economia.
4.4.1 As letras na religião
No campo religioso, como visto, a escrita terá um papel fundamental nos
povos antigos. Goody (1986) dirá que graças às letras, a religião que antes era
marcada pelo particularismo originário, agora terá a possibilidade de transcender os
limites regionais, para se tornar uma religião de conversão. Isto significa que, o que
as letras vão provocar não se resume somente à possibilidade de propagação de
uma religião até então restrita a seu universo originário particular, mas também irá
contribuir para a construção e expansão de uma nova concepção do que seja
religião.
As religiões que passam a se utilizar das letras começam a ganhar autonomia
em relação às suas origens particulares, inclusive em relação ao local demarcado
geograficamente de onde ela teria se originado. A partir de agora, esta nova forma
de comunicação, possibilitará a esta religião, outrora restrita e conduzida pela
58
Antes da era cristã, a nação judaica se dividia em fariseus (maioria), saduceus e essênios (minoria).
103
oralidade, a estabelecer uma fronteira autônoma e mais ampla. Graças à utilização
deste novo método de comunicação que viabiliza a possibilidade da demarcação
dos seus limites através dos ritos, normas e crenças, a religião que agora se utiliza
da escrita, estende seus limites além dos domínios originários e não estando
delimitada pelos significados imediatos e sim por uma teoria que transcende a
localidade originária, pode trazer para seu interior novos adeptos. É o que Goody
denomina de “religiões de conversão”, só possível graças o estabelecimento de
regras escritas:
As religiões letradas por um lado, pelo menos as alfabeticamente letradas, são geralmente religiões de conversão, não são apenas religiões de origem. Podem ser espalhadas como geléia. E podem persuadir-se ou forçar-se as pessoas, a abandonar um conjunto de crenças e práticas para adoptarem outro conjunto, a que se chama uma seita ou igrejas particulares. (GOODY, 1986, p. 21).
Segundo este autor, diferentemente do que pode acontecer nas religiões
marcadas pela prática da oralidade, nas igrejas letradas, os dogmas e serviços são
estabelecidos pela escrita de forma rígida, rigorosa e, assumir as práticas propostas
por esta religião, significa também, para aquele que a assume, a rejeição de todo o
resto. Este aspecto torna-se fundamental para este estudo, já que ortodoxia agora
toma o controle. A verdade passa a adquirir um significado todo diferente
desvinculado e distante de seu significado original, pois surge uma nova referência
de medição, ou seja, a palavra escrita.
Estas religiões que vão ampliando seu universo de domínio contrastam com
as religiões locais, são religiões que tendem a encontrarem-se associadas a mais de
um lugar e há mais tempo. Organizam-se em torno de um conjunto de normas que a
caracterizam, ou seja, possuem uma racionalidade que as determinam, e podem
persuadir ou forçar pessoas a adotarem suas normas. Para estas religiões, suas
escrituras são repositórios sagrados da palavra de Deus e que por isso,
permanecem imutáveis e eternas. Destaca-se, que sua condição de “eterna” só é
possível, porque a escrita registra o conceito, dando-lhe esta dimensão aos olhos de
quem lê. O conceito existe antes e depois do leitor lhe garantindo a perenidade.
Quanto à sua condição de imutabilidade, é possível, graças ao seu distanciamento
da significação original do conceito. O afastamento da particularidade originária, que
104
dava ao conceito seu significado imediato, possibilita identificar o conceito com uma
realidade que se torna universal e abstrata.
Os códigos escritos, associados à religião, tendem, portanto, a levar para um
processo de generalização indo além de qualquer estado particular, colaborando
para um processo de abstração das regras que outrora estavam localizadas dentro
de limites e situações particulares. Em outras palavras, as formulações escritas
encorajam a descontextualização das normas. Goody (1986) conclui que o contexto
comunicativo mudou dramaticamente, tanto no que se refere ao emissor, quanto ao
receptor, com consequentes implicações para a própria natureza da mensagem.
Outro elemento significativo que irá surgir a partir do advento das letras nas
religiões, será a necessidade de pessoas especializadas nas letras59, especialmente
ao se considerar o processo de universalização, que ocorre simultaneamente ao
processo inevitável da abstração. Quanto mais distante da origem, da
particularidade, mais abstrato e menos compreensível será o conceito para o
convertido. A figura do erudito vai adquirindo cada vez mais importância na tradução
e compreensão dos significados. O sacerdote além de ser o guardião, também será
o intérprete, a ponto de se identificar uma divisão entre letrado e iletrado
correspondente à divisão entre sacerdotes e leigos.60 O controle efetivo dos meios
de comunicação letrada dava à Igreja poder sobre os literatos que eles mesmos
produziam.61
Resulta desta necessidade de domínio das técnicas da leitura e da escrita e
seus respectivos especialistas, recursos materiais necessários para manter toda
esta estrutura. Isto acontece através de oferendas instituídas, pela própria Igreja,
mas também através de doações de terras, principal meio de riqueza econômico da
antiguidade: “Na Europa ocidental 62 um terço da terra cultivável, aproximadamente
59
Cabe aqui uma distinção fundamental em relação às sociedades sem a escrita. Os homens-memória nas sociedades ágrafas reproduzem suas memórias com numerosas variantes, possibilitando determinada liberdade e criatividade. Já nas sociedades com escrita, a reprodução mnemônica está vinculada a palavra por palavra. Não é por acaso que a escola não aparece senão com a escrita.
60 No Cristianismo, no Islamismo e no Judaísmo o ensino foi dominado por especialistas religiosos até
a educação secular moderna. Goody (1986). 61
Comblin (1986) dirá que a formação da classe intelectual acabou por gerar dois níveis de conhecimento: o nível da teologia e o nível comum. Uma distinção entre clero e leigos, já que a teologia foi cada vez mais exigida para formar parte do clero, o que na prática resultou num conhecimento normativo, o teológico, e o conhecimento dos leigos, inferior ao conhecimento dos intelectuais.
62 Segundo Huberman (1986) a Igreja medieval foi a maior proprietária de terras no período feudal.
Homens preocupados com a vida que levavam, doavam terras a Igreja. Nobres e reis, quando
105
o mesmo no Ceilão medieval e no Tibete e quantidades substanciais sob o Islão,
atingindo de novo um terço no Antigo Egito”. (GOODY, 1986, p. 34).
Considerando este aspecto, aparece outro elemento decorrente deste. A
instrução para a Igreja vai deixando processualmente de ser só um fim, e resultará
agora também num meio, já que a redação de documentos escritos era utilizada
para legitimar a alienação da propriedade da família em favor da Igreja. Como já
visto, era comum as doações de bens para o templo, principalmente de terras. Com
o desenvolvimento deste processo burocrático e com o aumento das propriedades
de terras nas mãos da Igreja, ocorre uma divisão e um acirramento entre os
interesses do palácio e do templo e, em vários momentos, marcados não só pela
disputa do poder econômico, mas também pela disputa do poder político.
Diante de todas estas transformações e como detentora de grande
quantidade de terras, Goody (1986) entende que a Igreja não pode ser mais vista
como superestrutura ordenada pela infraestrutura como queria Marx.63 Destaca que
o registro da palavra santa institucionalizada pela escrita, tende a tornar a Igreja uma
instituição conservadora visando como propósito a sua própria continuidade. No
entanto, complementa que nunca é puramente conservadora.64
4.4.2 As letras na economia
Para se tratar das decorrências da escrita nas atividades econômicas, nas
primeiras comunidades em que a escrita apareceu, Goody (1986) esclarece que as
pesquisas realizadas têm girado em torno de dois aspectos. O primeiro trata da
escrita no comércio e o segundo, na gestão dos assuntos econômicos do templo e
do palácio.
venciam uma guerra, doavam parte das terras conquistadas à Igreja, até que esta se tornou proprietária de entre um terço e metade de todas as terras da Europa Ocidental.
63 Segundo Marx (2003), tudo o que não pertence à esfera da produção de mercadoria (infraestrutura)
pertence à superestrutura. Estas só podem ser entendidas nas condições de existência material de uma sociedade. A religião, como parte da superestrutura, seguiria esta mesma linha, ou seja, é um instrumento a serviço da reprodução da estrutura de classes.
64 Está na base deste discurso uma questão complexa que diz respeito ao significado do conceito e
que iremos tratar posteriormente. A mudança de significado do conceito pode ser apenas uma adequação às formas de domínio sobre um determinado grupo. Mas também pode ser o resultado de uma reinterpretação do conceito e que implica mudanças significativas. Para que isto ocorra, sugere Gutierrez (1985) que a análise intelectual deve estar alicerçada pela exigência da ação pastoral e, do ponto de vista filosófico, a ação humana seja o ponto de partida de toda reflexão.
106
A relação existente entre o templo e o palácio, variou ao longo do tempo. Por
exemplo, no caso da Mesopotâmia, esta se caracterizou por uma distinção mais
clara do que ocorreu no Egito. Mas independente deste detalhe, tanto no Egito como
na Mesopotâmia, os recursos provinham também do Estado, do faraó no Egito e do
rei na Mesopotâmia. No Egito, estas doações provenientes da coroa eram
registradas por escrito e consistia de propriedades em terra e oferendas. Na
Mesopotâmia, quando os reis saíam vitoriosos de seus confrontos, era comum
ocorrer a doação de uma parte do saque.
A dotação permanente e aquelas recebidas por doação dos reis acabariam
por trazer diversas implicações: a primeira, é que a escrita foi de fundamental
importância na alienação das propriedades doadas em terras; a segunda, é que no
caso a terra, colocará o templo no ramo da produção e organização da produção; a
terceira implicação é que a organização da produção estava associada à
organização do comércio; e a quarta é que a própria complexidade da economia do
templo implicava a manutenção de receitas e despesas. Em todos estes momentos,
a escrita estará presente e se fará necessária para o templo, tanto quanto para o
palácio como também para o mercador.
Quanto ao palácio, arrecadava receitas, organizava a produção e o comércio
e ficava ainda responsável pela distribuição de seus bens. A exemplo do templo,
fazia também uso da escrita, mas de forma ainda mais ampla, já que tinha que
registrar os saques e manter sob controle os lançamentos de impostos. Havia os
registros dos nascimentos e das propriedades. Portanto, era uma ligação necessária
e muito íntima entre escrita e os impostos. O palácio estava envolvido na prestação
de contas das receitas e despesas, bem como, na produção e comércio. Eram
mantidas listas de operários, da quantidade de lã que cada um recebia, peso e
qualidade do tecido.
A complexidade que vai tomando conta da economia, tornará a escrita uma
necessidade imprescindível. Casos, por exemplo, de ações que podiam ser
compradas e vendidas, empréstimos a juros, tudo necessitando do controle por
escrito. Também existem registros que demonstram emissão de cartas de crédito,
com o objetivo de diminuir os riscos, no caso de longas viagens. Foram encontrados
exemplos destas cartas, de mercadores assírios do século XIX a.C. A questão é que
o comércio estava cada vez mais intimamente dependente dos registros, já que
estes podiam armazenar as informações.
107
Mesmo os progressos da astronomia, só puderam ocorrer, graças à
observação e medição que faziam uso de formalização gráfica e geométrica, e
porque, graças à escrita, eram possíveis os registros levando a generalização. A
base da ciência primitiva foi a contabilidade, a arte do guarda-livros.
Com relação à propriedade de terras, a escrita foi fundamental. Por exemplo,
a terra podia ser arrendada por particulares e certamente os registros destas
transações é que garantiam sua execução. Como visto, com o enriquecimento da
Igreja com posses de terras, o conflito com o rei foi se tornando mais comum. Neste
sentido, o registro escrito era uma garantia para assegurar os bens adquiridos tanto
para a Igreja como para o Estado.
108
CAPÍTULO 5 - AS LETRAS NA CULTURA OCIDENTAL
Cabe de início um esclarecimento fundamental. A história da escrita, de
maneira geral, sempre foi tratada pela cultura Ocidental de maneira bastante
pontual, como se sua invenção pudesse ser determinada de maneira precisa e
uniforme. Uma interpretação que divide a história em dois grandes períodos, o
período que antecede o aparecimento da escrita, conhecido como pré-história e o
período posterior à invenção da escrita, a história propriamente dita.
Como já se observou anteriormente, a história do surgimento da escrita é
muito mais complexa e somente a consciência deste fato, permite romper com uma
leitura ingênua. Portanto, parafraseando Havelock (1996), seria um engano falar da
escrita como um fenômeno geral, pois, o que existe são sistemas específicos de
escrita resultando em efeitos específicos no interior de um sistema social particular.
5.1 História do alfabeto
De início é interessante destacar um alerta de Fischer (2009). Um alfabeto
não quer significar uma evolução da escrita, um avanço em relação ao período
precedente. Mesmo porque, uma escrita alfabética nunca é só fonética, o que
significa dizer que se utiliza de ideogramas, logogramas e símbolos na sua
constituição.
Embora existam outros autores que pensem diferente, Fischer (2009) defende
a ideia de que o primeiro alfabeto teria sido elaborado no Egito há mais de quatro mil
anos.65 Não fazendo uso das vogais, a escrita egípcia utiliza-se de um número
limitado de consoantes, facilmente reconhecidas, a ponto de se reconhecer que toda
a escrita hoje é mantida por descendentes dos alfabetos do Egito e de Canaã.66 Por
65
Segundo Havelock (1996), para que um sistema de escrita constitua num verdadeiro alfabeto, deve ele preencher três requisitos teóricos: 1.º lugar, o apanhado de todos os fonemas (sons linguísticos oferecidos pelo sistema de escrita) deve ser exaustivo (as letras devem ser suficientes em número e natureza para acionar a memória que tem o leitor de sons da língua, dotados de caráter distintivo); 2.º lugar, esta função não pode ser ambígua. As formas das letras têm de limitar-se a um número entre vinte e trinta e 3.º lugar, cada uma de tais formas, individualmente, não pode cumprir dupla ou tripla função. As identidades acústicas devem ser fixas e imutáveis. Havelock afirma que só os gregos conseguiram satisfazer os três requisitos, por isso, teriam sido os inventores do alfabeto por volta de 700 a.C.
66 Fischer (2009) lembra que é muito mais fácil para a maioria das línguas serem lidas em
consoantes: Ns pdms lr cnsnts, ms n vgs.
109
volta de 2200 a.C., os escribas simplificaram a escrita, passando a escrever usando
somente o alfabeto. Os povos semitas em contato com os egípcios, através do
comércio, levaram o alfabeto para Canaã. Em seguida, os gregos copiaram dos
fenícios, que eram descendentes dos cananeus, com a diferença que acrescentaram
as vogais, criando um sistema que será utilizado pela maioria do globo hoje em dia.
Neste sentido, Fischer (2009) conclui que nem gregos e nem fenícios67
criaram o alfabeto68. A escrita sinaítica69 apresenta pelo menos 23 sinais sendo
quase a metade emprestada dos egípcios cabendo a eles, em seguida, sua
distribuição70. Todas as escritas semitas do norte representam alfabetos com menos
de trinta letras.
5.1.1 Escrita semita
A escrita semita se difundiu em duas formas separadas, derivadas do alfabeto
cananeu. Segundo Fischer (2009) por volta de 1300 a.C. o semita do sul já tinha se
separado do semita do norte. Em torno de 1000 a.C., o alfabeto semita dos fenícios,
com apenas 22 consoantes, já estava inteiramente desenvolvido e foi utilizado por
cerca de mil anos. Este povo, descendente dos semitas de centros litorâneos como
Biblos, Tiro, Sidon e Beirute, passaram a dominar os portos do Mediterrâneo e
lançaram expedições comerciais por todo o Mediterrâneo oriental, obrigando-os a
uma escrita adequada para o comércio. A língua colonial decorrente da escrita
fenícia foi o púnico.
Fischer (2009) destaca ainda, duas outras escritas semitas do norte, o
aramaico e o cananeu. Quanto ao aramaico, foi a fonte do hebraico e do árabe, e
também de centenas de escritas do subcontinente indiano. Já por volta do século
VIII a.C., o aramaico era a língua mais falada no antigo Oriente Médio, tornando-se o
idioma oficial do império persa (550-330 a.C.). Escritores da escrita aramaica
passaram a utilizar vogais, buscando evitar certas ambiguidades.
Ó oeo e ooae, a ão oai.
67 Segundo Fischer (2009), em 1998, foram descobertas duas inscrições alfabéticas semelhantes de
1900 a.C. ao longo de uma velha estrada de Tebas para Abidos, sugerindo dois ou três séculos de uso anterior.
68 A palavra alfabeto é formada pela justaposição de dois elementos: alfa e beta que são os nomes
das duas primeiras letras do abecedário grego. No hebreu e no fenício, tinham estas letras a significação respectivamente de boi e casa. Coutinho (1979).
69 Recebe este nome por ter sido identificada pela 1.ª vez na Península do Sinai.
70 A escrita alfabética mais antiga em Canaã é datada de 1600 a.C.
110
Com as conquistas do império persa71, a escrita aramaica foi se tornando a
principal escrita do Ocidente72 e, destaca-se que a busca por uma escrita que
evitasse as ambiguidades adquire uma dimensão nova, ou seja, as conquistas
territoriais também vão se fazendo no plano cultural. Em outras palavras, a ausência
das ambiguidades, garante o domínio do real também no plano epistemológico.
Mesmo após a derrocada do império persa, a escrita aramaica não só se manteve,
mas também se espalhou, originando posteriormente, derivativos. Segundo Fischer
(2009), foi o que aconteceu com o hebraico, derivativo do aramaico73. Esta escrita se
tornou a escrita de todos os textos judaicos, tanto secular como sagrado e, é a
escrita atual do Estado de Israel, ainda muito marcada pelo uso das consoantes,
fundamento das escritas semitas.
5.1.2 O alfabeto grego
Fischer (2009) lembra que foram os egípcios, que primeiro souberam
representar consoantes individuais, com apenas um sinal correspondente a cada
fonema consonantal em sua língua. Isto representou uma mudança significativa, já
que bastavam agora, menos de trinta letras, para se transmitir os fonemas
consonantais de qualquer idioma.
Como já visto, por volta de 1000 a.C., o alfabeto dos fenícios, utilizando-se de
apenas 22 consoantes já estava inteiramente desenvolvido. E foram eles, os
fenícios, que inspiraram os gregos na construção de seu alfabeto, agora com vogais.
Dominando os portos do Mediterrâneo, lançaram expedições comerciais e
expandiram suas letras adequadas ao comércio. Mercadores de Tiro, Sidon, Biblos e
outros portos, teriam por volta do século X a.C., levado os gregos a entrarem em
71
Segundo Durant (1995), o Império Persa no tempo de Dario possuía vinte províncias, entre elas o Egito, a Palestina, a Síria, a Fenícia, a Lídia, a Frígia, a Jônia, a Capadócia, a Sicília, a Armênia, a Assíria, o Cáucaso, a Babilônia, a Média, a Pérsia, o moderno Afeganistão, o Beluchistão, a Índia a oeste do Indo, a Sogdiana, a Bátria, e outras tribos da Ásia Central. Nunca na História, ocorreu tamanha extensão de terras sob um mesmo governo.
72 Durant (1995) destaca que quando os persas adotaram a escrita, tomaram para suas inscrições o
cuneiforme da Babilônia e para os documentos o alfabeto aramaico. Reduziram os 300 caracteres do silabário dos babilônios a 36, passando de sílabas a letras e deram o alfabeto. A escrita, segundo Durant (1995), parecia algo efeminado. O homem comum não se importava com sua ignorância da escrita.
73 Bright (1978) sugere que neste período, Judá já tivesse iniciado um processo pelo qual o aramaico
iria substituir o hebraico na vida diária dos judeus, já que o aramaico era a língua oficial do império persa e era necessário que os judeus a aprendessem. Os escritos hebraicos foram substituídos por uma forma de “letras quadradas” adaptadas do aramaico.
111
contato com sua escrita74. A questão é que os gregos foram os primeiros a
representarem consistentemente fonemas vocálicos. Com a utilização de vogais e
consoantes, passaram a reproduzir a fala de forma mais fiel.
Nos tempos micênicos, existiam rotas marítimas que ligavam o comércio
entre egípcios, cretenses, hititas e assírios75. Por volta de 900 a.C., os fenícios
navegando rumo ao ocidente, intensificam seus encontros com os gregos. Heródoto
dizia que o alfabeto foi trazido pelos fenícios que viviam na ilha de Eubéia, que
através dos Jônios, grandes navegadores, mantinham intenso contato com a
principal cidade fenícia, Tiro. No entanto, segundo Man (2002), a tendência para ir
às origens do alfabeto grego, caminha em direção à ilha de Chipre. Ilha de
localização privilegiada liga territórios, que são hoje a Síria, a Turquia e a Grécia, e
dependiam dos fenícios com seu império comercial que ligava o Egito à Itália e às
ilhas do Egeu.
Interesses comerciais e políticos acabaram por incentivar a adaptação, por
parte dos gregos, da sua escrita com vogais com a escrita consonantal dos fenícios,
resultando num alfabeto com consoantes e vogais. No dizer de Fischer (2009), os
gregos deram a cada vogal grega, um sinal como se fossem consoantes, ora
escrevendo estes sinais sozinhos, ora acompanhados de uma consoante e dessa
forma, reproduziram a fala mais fielmente que qualquer sistema inventado. No dizer
literal de Fischer:
embora eles quisessem só transmitir seu dialeto particular do grego, usando a nova escrita fenícia, os escribas de Chipre apresentaram uma inovação a qual, sofrendo em geral apenas pequenas adaptações, podia transmitir qualquer língua do mundo... Agora, com a escrita alfabética, os gregos cipriotas se apropriaram da ideia alfabética e dos sinais fenícios, uma vez que se tratavam de letras, não desenhos. Isto é, o som do sinal era importante, e não seu significado. (FISCHER, 2009, p. 112).
É muito importante entender o significado de todo este processo desenvolvido
pelos povos gregos. A exemplo de tantos outros povos anteriores, o que estes
74
Se for consenso que os gregos receberam influência dos fenícios através dos mercadores, Fischer destaca que a data que isto ocorreu é incerta. Autores reforçam o século X, como Roger D. Woodard ou David Diringer.
75 Entre 2100 e 1100 a.C. quando Cnossos e Micenas floresceram. A 1ª dinastia dos Micênios
apareceu relativamente tarde (1700 a.C.) quando a civilização de Creta já existia. (Grandes Impérios e Civilizações, 1996).
112
fizeram foi emprestar o sistema da escrita de outros povos e adaptarem este sistema
às necessidades mais particulares. Cabe retomar Fischer (2009):
“Ninguém inventou a escrita. Talvez ninguém, independentemente jamais tenha reinventado a escrita também... Todos os sistemas de escrita parecem descender de protótipos ou sistemas precedentes, cuja ideia de representar graficamente a fala humana, esquema para conseguir isso e/ou sinais gráficos usados nesse processo foram emprestados e adaptados ou convertidos para se adequarem à língua e necessidades sociais de outro povo.” (FISCHER, 2009, p. 10)
5.2 Alfabeto grego e a metafísica
É próprio da tradição cartesiana, pensar na consciência como algo inerente à cabeça, como se a cabeça fosse o órgão gerador de consciência. Não é. A cabeça é um órgão que orienta a consciência numa certa direção ou em função de determinados propósitos. Mas existe uma consciência aqui, no
corpo. O mundo inteiro, vivo, é modelado pela consciência. (CAMPBELL,
2000, p. 15).
Havelock é um defensor de que o alfabeto grego teria sido a causa direta do
florescimento do gênio grego76, argumentando que foi mais um dos grandes avanços
da humanidade. Graças ao alfabeto, os gregos foram capazes de transformar, obras
recitadas em peças literárias. Dirá Havelock: “a transcrição alfabética dos textos de
Homero, sugere que mesmo a Ilíada e a Odisséia são construções complexas, as
quais refletem o começo de uma parceria entre o oral e o escrito, parceria que se
mostrou fecundo.” (HAVELOCK, 1996, p. 17).
Man (2002) sugere que Havelock defendia que não teria sido apenas a
genialidade grega que garantiu a sobrevivência de suas obras. Foi sim, a
capacidade de registrar como nunca antes por cultura nenhuma, possibilitando
aperfeiçoar ideias, criar a ética, a filosofia e a ciência. Ou seja, os gregos teriam
estabelecido as bases do discurso civilizado77 da forma como os europeus viriam a
conhecê-lo. Neste sentido, os gregos não inventaram o alfabeto e sim a própria
76
Reale, na coleção História da Filosofia, na introdução do volume I, afirma: “Seja como termo, seja como conceito, a filosofia é considerada pela quase totalidade dos estudiosos como uma criação própria do gênio dos gregos”... “Sendo assim, a superioridade dos gregos em relação aos outros povos nesse ponto específico é de caráter não puramente quantitativo, mas qualitativo, por que o que eles criaram, instituindo a filosofia, constitui uma novidade que, em certo sentido, é absoluta.” (REALE, 1990, p. 11).
77 É interessante observar mais uma vez, o emprego da palavra “civilizado” utilizado para se referir a
uma cultura que se tornou conhecida por estabelecer as bases do conhecimento filosófico, tendo as letras como ferramenta para a explicitação deste conhecimento.
113
cultura letrada, dando base letrada ao pensamento moderno. É este invento grego
que se eternizou através da escrita e se espalhou para a Europa, como também,
para tantos outros continentes, como Ásia, África e América.
Além disso, Havelock afirma que os gregos, graças à análise do som,
democratizaram a escrita já que a criança num estágio de aprendizagem dos sons,
do vocabulário oral, estaria adquirindo teoricamente a capacidade de ler, retirando o
privilégio dos escribas ou clérigos. Defende o autor que a eficiência acústica da
escrita alfabética teve um significado psicológico importante: “uma vez aprendida,
não se tem que pensar nela. Embora ela seja uma coisa visível, uma série de
marcas, ela cessa de interpor-se, como um objeto de pensamento, entre o leitor e
sua recordação da língua falada.” (HAVELOCK, 1996, p. 82).
Os nomes das letras se tornaram sem sentido, possibilitando que o leitor
pudesse transcrever qualquer coisa dita por meio da linguagem, através de signos
singulares reconhecidos pela acústica. Foi isto que aconteceu, por exemplo, com a
literatura oral da própria Grécia. E destaca ainda que, o que o alfabeto grego trouxe
de significativo foi possibilitar “a prosa registrada e preservada em quantidade”,
(HAVELOCK, 1996, p. 82), o que significou uma revolução tanto psicológica, como
também, epistemológica.
O texto através do registro visual, aboliu a necessidade da memorização já
que podia agora ser lido quando necessário. E mais do que isso, Havelock enaltece
o fato de que o alfabeto possibilita a formulação de um enunciado novo, de uma
ideia nova. Portanto, o texto não só, não obriga a memorização, como também
possibilita a reflexão do texto produzido.
O que se nota, portanto, é que a escrita vai caminhando para o fonetismo,
sistema que busca interpretar a língua considerada como som e, por isto mesmo
tenha sido, inicialmente silábica, já que na decomposição da palavra, como observa
Martins (2001), o que se tem é a sílaba como unidade e não a letra. Por exemplo,
ca, va, lo. Daí se entende, porque os sistemas ideográficos se valiam do silabismo.
Martins cita Vendryês: “o alfabetismo é o último aperfeiçoamento da escrita.”
(MARTINS, 2001, p. 49).
E continua com este autor para dimensionar a importância do
aperfeiçoamento e de sua expansão posterior. Diz Vendryês:
114
O alfabeto fenício exerceu uma influência inegável sobre o alfabeto grego, como o provam os nomes das letras gregas. [...] O alfabeto grego, aperfeiçoado pelos jônios, estendeu-se rapidamente por todo o mundo grego de uma maneira uniforme. Os gregos o transportaram para o Ocidente. Na Itália, é de Cumes, colônia dos eubeus de Cálcis, que o alfabeto passou para os latinos e para os etruscos. No vale do Ródano, o alfabeto grego penetrou por ocasião da fundação de Marselha; e aí se encontram ainda no começo da era cristã inscrições gaulesas em caracteres gregos. Na direção do oriente, é o aramaico que desempenhou o papel de propagador do alfabeto; papel considerável, justificado pelas circunstâncias históricas. Mas esse papel foi favorecido por uma transformação da escrita. Da mesma forma por que a escrita hieroglífica, graças ao uso do papiro e às necessidades de uma grafia rápida, se tinha transformado no Egito em escrita hierática, depois demótica, a escrita fenícia ganhou no aramaico uma forma cursiva e prática; os ângulos se arredondaram, as cabeças das letras desapareceram, os traços passaram a terminar em espécie de caudas viradas sobre si mesmas. O alfabeto aramaico se estendeu à Índia, dele derivando a maior parte dos sistemas de escrita empregados na Ásia central. Enfim, ele atingiu o Extremo Oriente, visto que encontramos ainda hoje na escrita coreana. A escrita alfabética, última etapa da evolução da escrita, espalhou-se na Europa a partir da era cristã, graças aos gregos e romanos. É uma causa histórica que explica esse acontecimento, isto é, a propagação do cristianismo. Os apóstolos que ensinaram a religião cristã aos povos pagãos, ensinaram-nos ao mesmo tempo a ler as Escrituras Sagradas e para isso foram obrigados a constituir alfabetos tomando por modelo o alfabeto pelo qual eles próprios liam. O alfabeto grego serviu assim de modelo ao alfabeto gótico graças a Wulfila e ao alfabeto eslavo graças a Cirilo e método. Ao contrário, é do alfabeto latino que derivam o do velho-alémão, o do velho-inglês e do velho-irlandês. (MARTINS, 2001, p. 49-50 apud VENDRYÊS, J. Le langage. Introduction linguistique à l’histoire. Paris: La Renoissance du Livre, 1921).
Desde a Grécia antiga, esta é a fala comum para determinar a emergência da
ciência. Goody (1988) destaca que esta interpretação vem acompanhada por uma
concepção de que a emergência da ciência só acontece porque emerge a
racionalidade em oposição ao pensamento que até então se fundamentava na
leitura mítica. Gusdorf (1980) dirá que a história é solidaria com o aparecimento da
razão e sucedendo o mito e sustentada sob bases racionais, assume a tarefa de
tornar o mundo inteligível. Agora estando a inteligência livre das imagens míticas,
poderá ela buscar o conhecimento objetivo abrindo caminho para a constituição
progressiva das ciências. Quanto ao sentido do sagrado, dirá Gusdorf (1980), não
irá desaparecer, mas em lugar de se difundir na totalidade do ser no mundo, irá se
converter numa atividade especializada que se sistematiza em forma de religião. É
comum pensar a racionalidade grega como uma evolução ao pensamento
mitológico. O pensar filosófico como uma evolução em relação ao pensar mítico.
Goody (1988) lembra diversas outras interpretações dicotômicas, ou seja, a
evolução do pensamento ocorre do lógico-empírico a partir do mito-poético, do
115
lógico a partir do pré-lógico. Ou conceitos mais recentes, mas ainda dicotômicos
como domesticado em relação ao selvagem. Este movimento que caminha
aparentemente do irracional ao racional, não é expresso apenas em termos de
processo, mas acaba carregando consigo também uma concepção de progresso. O
que este autor quer realçar é que ele adquire um elemento de valor, ou seja, um
elemento ético. O que ocorre é que os autores acabam por interpretar este
processo, como um sinal de desenvolvimento, de progresso. A questão é que o
aparecimento da escrita também é interpretado a partir de uma leitura evolutiva.
Como já enfatizado anteriormente neste trabalho, sociedades que antecederam a
escrita são denominadas primitivas e aparecem em oposição às sociedades
letradas, estas denominadas de sociedades avançadas. A própria escrita aparece na
história, como elemento fundamental para determinar a divisão do que é pré-história
e do que passa a ser história, como se sociedades sem a escrita fossem sociedades
sem história.
De fato, o próprio Goody (1988) destaca que a lógica, tida como uma
característica específica das sociedades letradas, parece ser uma função da escrita,
já que foi a fixação da fala que possibilitou ao homem separar com mais clareza as
palavras, manipular sua ordem e desenvolver formas silogísticas de raciocínio.
Evidentemente, que o texto escrito facilita todo este processo. Por isso, que estas
formas parecem pertencer especificamente à escrita e não às culturas que se
utilizam da oralidade. Da mesma forma, ocorreria com o conhecido princípio da
contradição que Lévy-Bruhl já negava às sociedades que ele denominava de
sociedades primitivas. É muito mais fácil perceber as contradições no texto escrito
do que na fala, já que é possível formalizar as proposições de um modo silogístico e
porque a escrita trava o fluxo da conversação oral, permitindo comparar enunciados
emitidos em tempos e lugares diferentes. Este é um dos motivos que faz com que
seja mais difícil escrever do que falar. É trivial no senso comum se deparar com esta
observação: “eu sei falar, mas não consigo escrever”. Idêntico raciocínio pode ser
aplicado aos números. O progresso da matemática na Babilônia, por exemplo, foi
igualmente possível pelo prévio desenvolvimento de um sistema gráfico.
Sem dúvida que a escrita e o processo de educação decorrente dela,
introduziu uma possibilidade maior de abstração e descontextualização do
conhecimento, mas alerta Goody (1988) que cristalizar tal processo numa dicotomia
absoluta seria um erro. Seria neste caso, admitir a impossibilidade de um
116
pensamento lógico em sociedades ágrafas. A ausência de uma visualização lógica
através do texto escrito, não implica na ausência de um pensar lógico, ou seja, de
um raciocínio estruturado e organizado. Negar esta condição as sociedades
marcadas pela oralidade, acaba por reforçar uma ideia preconcebida de que
sociedades primitivas não são capazes de se organizarem e produzirem uma
estrutura social e mental, logicamente estruturadas.
Outro tema diretamente ligado à escrita e muito comum quando se trata de
diferenciar as sociedades é a oposição que se faz entre o mito e a história e que se
entende ser originário e reforçado pela própria história da filosofia Ocidental, toda
vez que se reproduz a concepção de que os filósofos gregos superaram e, por isto
mesmo, evoluíram de uma leitura mítica para uma compreensão filosófica da
realidade como totalidade78, ou seja, progrediram de uma visão de mundo marcada
pela irracionalidade para uma visão marcada pela racionalidade. A compreensão de
história no Ocidente sempre esteve ligada ao emprego de materiais documentais
restrito a escrita e, portanto, às culturas letradas. Isto significa que o que ocorre
antes disto ou fora disto é considerado pré-história e se caracteriza por uma leitura
da realidade constituída de elementos míticos e conhecida não pelo registro
“perene” da escrita, mas pela oralidade e distante do saber científico. Gusdorf (1980)
lembra que a identificação da pré-história com a idade do mito é muito habitual, já
que a cultura pré-histórica é anterior a escrita e de muito pouco documento. Isto faz
com que a pré-história escape aos historiadores. Este homem que pertence ao mito,
é o homem que vive no tempo humano, mas não no tempo histórico pois lhe faltava
a consciência das categorias, como por exemplo de passado, presente e futuro.
Portanto, dirá Gusdorf, o homem pré-histórico é em conjunto um homem pré-
categorial. Não que as categorias não existam, já que existe a mediação da palavra
e do mito. Contudo, o indivíduo já recebe uma inteligibilidade que não modifica. A
palavra adere ao ser79. E será justamente a ruptura entre a palavra e o ser que
abrirá a carreira do pensamento. O pensamento mítico nunca é um pensamento
reflexivo. Já a consciência histórica, dirá Gusdorf, trará a afirmação da subjetividade
pessoal e da universalidade objetiva como tais e a descoberta da temporalidade
78
Gusdorf (1980) argumenta que toda reflexão filosófica aparece dentro da história. Portanto, por mais pretenciosa que seja não detém a história, mas é um momento dela. Nenhuma filosofia pôs fim à Filosofia: e, no entanto, é este o desejo de toda filosofia.
79 Destaca-se que se o que caracteriza a leitura mítica é a identidade da palavra ao ser, na metafísica
clássica, fundada na rigorosidade da lógica racional, a identidade do conceito ao real resulta também num mito, já que há uma identidade do conceito com o real.
117
histórica. Na pré-história prevalece o reino da impessoalidade e na história aparece
o homem como indivíduo. Não é o caso de se analisar com profundidade as teorias
de Gusdorf. De momento, interessa destacar como este estudioso do mito assume
uma visão marcadamente binária nas suas teorias. Primeiro, que sua concepção de
documento esta claramente alicerçada na ideia de que este é basicamente o registro
escrito, em contraposição a uma visão mais ampla já discutida anteriormente neste
trabalho de que o documento não se restringe somente aos relatos por escrito, mas
também as imagens, gestos, palavras, etc. Em seguida, percebe-se também uma
divisão radical ao afirmar que o mito nunca é um pensar reflexivo e de que prevalece
na comunidade pré-histórica a impessoalidade, desprezando, portanto, qualquer
possibilidade da ação humana acontecer como uma ação individualizada.
Dirá Goody (1988) sobre a distinção entre mito e história seguinte:
surgiu no momento em que a escrita alfabética permitiu à humanidade pôr lado a lado as várias visões do universo e dos deuses, tornando perceptíveis as contradições
80. Assim, há dois sentidos em que definir o
pensamento selvagem como pré-histórico ou atemporal remetendo estes para a distinção das sociedades entre letradas e pré-letradas. (GOODY, 1988, p. 25).
Neste sentido, Goody (1986) levanta uma questão pertinente. Seria possível
falar em intelectuais nas sociedades pré-letradas ou esta seria uma característica
própria das sociedades letradas? A busca por responder a esta questão, encontra
na sociologia, a origem da resistência para se considerar o papel do intelecto nas
sociedades pré-letradas. Há uma tendência sociológica em se valorizar o coletivo
em detrimento das individualidades quando se trata, na sociologia, do estudo das
sociedades mais simples ou pré-letradas. Durkheim, por exemplo, reproduz
significativamente esta tradição:
Na raiz dos nossos julgamentos existe certo número de noções essenciais que dominam toda a nossa vida intelectual; é as que os filósofos, desde Aristóteles, denominam de categorias do intelecto: noções de tempo, de espaço, de gênero, de número, de causa, de substância, de personalidade etc. Elas correspondem às propriedades mais universais das coisas. São como que as molduras sólidas que engastam o pensamento que parece não poder desvencilhar-se delas sem se destruir; [...] Ora, quando analisamos metodicamente as crenças religiosas primitivas, encontramos, naturalmente,
80
Gusdorf (1980) dirá que o próprio estudo de uma mitologia acontece como algo posterior à idade mítica e irá traduzir o desejo de sistematização. Para o homem que vivia a idade mítica, o mito era a própria verdade. Portanto, não havia duas imagens do mundo, uma real e outra mítica, mas uma única leitura.
118
as principais dessas categorias. Nasceram na religião e da religião; são produtos do pensamento religioso. A conclusão geral deste livro é que a religião é coisa eminentemente social. As representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades coletivas. (DURKHEIM, 1989, p. 38).
A constatação a partir desta análise é que Durkheim (1989) valoriza
sobremaneira os aspectos sociais, o que contribui para minimizar os aspectos
individuais. Para Durkheim (1989), a mais alta atividade intelectual era
essencialmente social e uma das consequências, foi a valorização do pensamento
coletivo e a desvalorização do pensamento individual, perspectiva esta, que teria
grande influência nos trabalhos de sociólogos franceses e na antropologia inglesa.
Lévy-Strauss, pertencente à escola francesa e nos seus estudos das
sociedades não letradas acaba por dar ênfase mais nos aspectos sociais das
atividades intelectuais e menos nos aspectos individuais. Por exemplo, quando
interpreta o mito como produto social, afastado, portanto, da criatividade individual.
O pensamento das sociedades pré-letradas acaba sendo compreendido mais
simbolicamente do que cognitivamente. A criatividade individual e intelectual perde
espaço frente a uma concepção que dá ênfase ao social. Não é que o individual não
exista, já que existe uma criação individual num meio oral. O que existe, no dizer de
Goody (1986), não é uma diferença de pensamento, mas diferenças na natureza dos
atos comunicativos. Não é somente a performance que distingue a narrativa oral,
mas também o modo de composição, pois, a narrativa é composta durante a
execução e incorporada a um corpo de costumes.
Neste sentido, nas sociedades orais, a produção individual tende a ser
incorporada de uma maneira anônima. Isto, no entanto, não exclui inovações
elaboradas por indivíduos criativos que inventam e introduzem elementos novos em
suas sociedades mesmo que não letradas. O fato de serem incorporadas pela
sociedade em detrimento da biografia, características das sociedades letradas, não
exclui a participação do indivíduo como criador intelectual.
Visto que, ao contrário do que se verifica em muitas análises sociológicas,
existem indivíduos e intelectualidades nas sociedades pré-letradas, alerta-se que as
distinções feitas entre sociedades avançadas e primitivas são distinções que podem
estar elaboradas com base em visões pré-determinadas, desrespeitando a própria
historicidade das comunidades analisadas e, portanto, muito próximas de uma
leitura binária e etnocêntrica. No entanto, alerta Goody (1988), que não se pode
119
analisar estas diferentes sociedades como se seus processos intelectuais fossem os
mesmos, porque não o são. Destaca que algumas dessas diferenças estão
relacionadas justamente com as diferenças nos sistemas de comunicação:
no fim das contas, a cultura não é senão uma série de atos de comunicação; e as diferenças no modo de comunicação são frequentemente tão importantes como as diferenças no modo de produção, pois envolvem progressos na possibilidade de armazenagem, na análise e na criação de conhecimento, assim como as relações entre os indivíduos envolvidos. (GOODY, 1988, p. 47).
A aprendizagem e o uso da escrita alfabética possibilitaram examinar o
discurso de outra maneira, permitindo a ação da atividade crítica e, portanto, da
racionalidade e da lógica, já que a escrita expôs o discurso diante dos olhos.
Aumentou-se a possibilidade do conhecimento acumulado e abstrato, pois a escrita
transformou tanto a natureza da comunicação, como também, os contatos
pessoais81 e o sistema de armazenamento de informação. A questão do
armazenamento na memória deixava de ser uma preocupação da vida intelectual do
homem como ocorria nas culturas orais. Agora com as letras, o distanciamento
possibilita a análise do texto, seu questionamento e a elaboração de outras
construções textuais, sem, no entanto, exigir uma preocupação com a memorização
do conteúdo, já que este estará registrado por escrito. No dizer de Goody (1988) a
mente humana estaria mais livre para se debruçar sobre um texto redigido, se
distanciando de sua criação e examiná-lo de forma mais abstrata, generalizada e
racional. Portanto, isto quer significar que a alfabetização estimulou o espírito crítico
e a prática do comentário. Isto não quer dizer, no entanto, que não havia a pratica da
análise nas sociedades que não se pautavam pela escrita. Os membros das
sociedades orais certamente apresentavam também uma capacidade crítica inerente
a todo ser humano. Goody (1988) dirá que os fundamentos de noções científicas
gerais estão mais difundidos nas sociedades humanas do que nossas dicotomias
habituais poderiam levar a pensar.
Isto quer significar que a diferença essencial não parece ser a atitude céptica
em si, já que não estava ausente das sociedades orais, mas a grande diferença
81
Goody (1988) cita Max Weber quando este salientou que uma das características das organizações burocráticas foi a condução dos assuntos públicos com base em documentação escrita. Os métodos de recrutamento de funcionários são realizados através de testes objetivos. Quanto aos sistemas antigos as entrevistas eram diretas e não por documentos impessoais. Pode-se dizer, “olho no olho”.
120
estaria sim na acumulação ou reprodução do cepticismo, elemento que a ausência
da escrita tornava uma prática improvável. Em outras palavras, as sociedades orais
não podem desenvolver uma linha de pensamento céptico a respeito, por exemplo,
da natureza da matéria ou da relação do homem com Deus, pois uma tradição
crítica não pode existir se seus pensamentos não são registrados e, por
consequência, não são comunicados através do tempo e do espaço. Destaca
Goody (1988), que não se trata apenas de possuir consciência das alternativas, mas
antes da forma como as alternativas são apresentadas. Isto é o que possibilita tomar
consciência da diferença e remete a considerar a contradição inerente ao raciocínio
baseado numa lógica. A fala deixa de estar presa a uma ocasião, tornando-se
intemporal. O conceito deixa de estar atrelado ao contexto em que surgiu, e sua
condição marcada pela abstração e generalização, possibilita uma análise que
acontece basicamente no campo semântico.
É a passagem daquilo que se ouve para aquilo que se vê, da voz para mão
do produtor e, complementa Goody (1988), a escrita torna a fala objetiva. Deve se
entender na fala deste autor, que isto só ocorre graças a uma compreensão
metafísica, que se discutirá posteriormente neste trabalho, que entende que o
conceito expresso pela escrita, é revelador de uma identidade com o real que ocorre
por ter se distanciado da realidade que deseja manifestar. Com a análise abstrata,
ocorre a possibilidade de se determinar o valor do conceito estabelecendo seu
significado. Portanto, nesta concepção, será justamente a ausência da objetividade
do conceito, agora distante de sua gênese, que lhe possibilitará a sua suposta
objetividade.
É neste contexto marcado pelo advento da escrita alfabética grega, que
emerge a lógica e o próprio pensamento filosófico. O interesse pelas regras do
raciocínio ou pelos fundamentos do conhecimento surge da formalização da
comunicação inerente à escrita. Acrescenta Goody (1988), portanto, que as
sociedades tradicionais se caracterizam não tanto pela ausência do pensamento
reflexivo, mas sim pela falta de utensílios apropriados à meditação construtiva. Na
comunicação oral, o processo de crítica é dificultado. Torna-se mais difícil descobrir
os embustes deliberados de um orador, do que as ambiguidades não intencionais do
escritor, cujas inconsistências saltam à vista. É desta construção do conhecimento, a
partir do texto escrito, que se falará a seguir e que tanto influenciou as sociedades
121
futuras. Quando se diz que a escrita tornou a fala objetiva, a pergunta que se
poderia fazer é de que objetividade se está falando?
É lugar comum que a filosofia seja considerada pela grande maioria dos
estudiosos como uma criação própria dos gregos. Reale (1990) ao se referir à
gênese da filosofia dirá que:
no que se refere à filosofia nos encontramos diante de um fenômeno tão novo que não apenas não temos uma correspondência precisa junto a esses povos (Oriente), mas também não há tampouco nada que lhe seja estreita e especificamente análogo. Sendo assim, a superioridade
82 dos gregos em relação aos outros povos
neste ponto específico é de caráter não puramente quantitativo, mas qualitativo, porque o que eles criaram, instituindo a filosofia, constitui uma novidade que, em certo sentido, é absoluta. (REALE, 1990, p. 11).
E continua este autor sugerindo que: “em função de suas categorias racionais,
foi a filosofia que tornou possível o nascimento da ciência e, em certo sentido, a
gerou.” (REALE, 1990, p. 12).
Marilena Chauí (1995) acompanha Reale com a seguinte afirmação:
A Filosofia, entendida como aspiração ao conhecimento racional, lógico e sistemático da realidade natural e humana, da origem e causas do mundo e de suas transformações, da origem e causas das ações humanas e do próprio pensamento, é um fato tipicamente grego. (CHAUÍ, 1995, p. 20).
Por que os gregos? O que os gregos possuem de tão especial para que
estudiosos de uma maneira geral, evidentemente depositários da cultura Ocidental,
tenham visto neles o único povo capaz de possibilitar o surgimento da filosofia e do
próprio pensar científico? Um princípio de uma compreensão está em boa medida,
na origem, na análise de que tipo de racionalidade gerou determinada compreensão
de pensar científico. Hoje se procura responder à questão da origem do pensar
racional, a partir dos resultados filosóficos e científicos. Tenta-se compreender a
causa a partir das consequências. Na verdade, deve-se ir às causas para tentar se
compreender as consequências. Reale e Chauí não estão equivocados ao
justificarem a origem do pensar filosófico como sendo na Grécia. A questão é que
eles estão baseados num determinado método e numa determinada compreensão
de racionalidade características da Grécia antiga e que deu origem a uma
determinada compreensão de pensar filosófico e científico. Portanto, cabe pensar
82
Grifo meu.
122
sobre que tipo de racionalidade é esta para compreender algumas características
marcantes do pensar Ocidental que, embora tenha seus valores83, se caracteriza
circunstante a uma determinada compreensão do real, restrita, particular, e que a
história do Ocidente, se incumbirá de tentar torná-la universal.
Pensa-se que a escrita tenha um valor fundamental na construção deste
modelo de pensar que marca a cultura grega. Dando à escrita um valor primordial,
fizeram do alfabeto um instrumento pelo qual se poderia reproduzir fielmente a
realidade. A palavra escrita revela a realidade possibilitando sua análise,
descontextualizando o conceito e aprofundando84 sua compreensão a ponto do
conceito ter o poder de revelar de forma objetiva o real. Pensa-se que esta dicotomia
que os gregos vão delineando, tem sua origem desde o nascimento da própria
escrita já que ao se registrar a história através das letras, ocorre necessariamente o
distanciamento da realidade. Mas será com a cultura helênica que esta dicotomia
será aprofundada. Este é um marco da cultura Ocidental, intrínseco à própria
cultura letrada e que os gregos privilegiaram. A divisão da realidade em duas, onde
o texto é separado do contexto e a essência caracterizada pelo distanciamento da
existência, determinando uma compreensão de realidade entendida como universal
e única de se compreender essa mesma realidade.
Havelock (1996) defende a tese de que a escrita pré-alfabética teria sido
fundamental para que seu conteúdo jamais alcançasse o padrão de sofisticação da
arte literária grega, sendo esta possível, graças à utilização da escrita alfabética.
Graças a esta mudança alcançada pela cultura, o grego alcançou o que este autor
denominou de um novo estado mental, uma mente alfabética. O alfabeto teria
convertido a língua grega falada num artefato separando-a do locutor e
possibilitando a linguagem tornar-se um objeto passível de reflexão. Dirá Havelock
(1996) que em uma palavra, o novo discurso poderia ser designado pelo termo
conceitual. As letras passam agora a favorecer o discurso descritivo da ação e,
processualmente, vai alterando o equilíbrio em favor da reflexão.
83
Reale (1990) dirá que os próprios orientais, quando quiseram se beneficiar da ciência ocidental, adotaram algumas categorias da lógica ocidental.
84 Caminhando na contramão da metafísica clássica, é interessante o questionamento de Adorno
(2000) em A Atualidade da Filosofia, quando questiona expressões como “o sentido profundo do ser”, “análise em profundidade”, ou “a filosofia como a busca de causas profundas”. Entende ele, que interpretar não se confunde com uma busca de um sentido oculto, como se a realidade já estivesse dada.
123
Afirma Havelock (1996) que a sintaxe do grego começou a adaptar-se a uma
possibilidade crescente de enunciar proposições, em lugar de descrever eventos e
com o regime da escrita, afirma-se também a consciência letrada. O intelectual vai
se tornando cada vez mais um pensador, pensando não mais a ação imediata, mas
pensando sobre o conceito que, na concepção metafísica grega, será expressão do
próprio real. Nota-se que está se falando de uma racionalidade que necessita da
escrita para que se possa, através da análise, assegurar a verdade. Surge, portanto,
uma realidade que transcende o próprio domínio do mundo físico e que ficará
conhecida na história do pensamento como metafísica, uma ciência relativa a tudo
aquilo que ultrapassa o domínio da física e que transcende, portanto, o mundo
sensível.
No dizer de Jolivet (1972), a ciência do imaterial que caminha para uma
definição que culmina no estudo do ser enquanto tal. O que se quer dizer com esta
definição é que a metafísica será compreendida como distinta de uma ciência que
tem como objeto o ser material que considera o devir, o movimento. Nesse caso, o
que se pretende por metafísica é considerar uma ciência que procura: “descobrir a
inteligibilidade do ser enquanto ser e não apenas a inteligibilidade do ser móvel e
sensível enquanto móvel, precisamente, móvel e sensível.” (JOLIVET, 1972, p. 16).
É o sentido que dá Aristóteles ao conceito de Metafísica:
Há uma ciência que investiga o ser como ser e os atributos que lhes são próprios em virtude de sua natureza. Ora, esta ciência é diversa de todas as chamadas ciências particulares, pois nenhuma delas trata universalmente do ser como ser. Dividem-no, tomam uma parte e dessa estudam os atributos: é o que fazem, por exemplo, as ciências matemáticas. Mas, como estamos procurando os princípios e as causas supremas, evidentemente deve haver algo a que eles pertençam como atributos essenciais. Se, pois, andavam em busca desses mesmos princípios aqueles filósofos que pesquisaram os elementos das coisas existentes, é necessário que esses sejam elementos essenciais e não acidentais do ser. Portanto, é do ser enquanto ser que também nós teremos de descobrir as primeiras causas. (ARISTÓTELES, IV, 1969, p. 87)
Cabe também uma observação com relação aos sentidos do ser. O ser pode
apresentar o sentido da essência e da existência, já que o objeto da metafísica é o
ser como aquilo que “é”, isto deve se dizer, abrange tanto a essência como a
existência. Como a filosofia busca definir as condições absolutas da existência,
tornando inteligível o ser, o que caracteriza de um modo a metafísica é o ser na sua
pureza ontológica e na sua inteligibilidade própria. Trata-se não dos seres diversos,
124
mas do ser em sua universalidade absoluta. Assim, no dizer do Jolivet: “a metafísica
terá por finalidade definir as condições mais gerais do ‘ser’, isto é, da existência.”
(JOLIVET, 1972, p. 18).
Como na cultura grega a expressão do real se caracteriza pela presença da
escrita através do texto, o que se observa a partir da concepção de metafísica é que
o conceito expresso pela palavra escrita passa a ser um instrumento que
possibilitará o conhecimento da própria realidade. Segundo Jolivet (1972) o que
Aristóteles fez foi mostrar que o conceito não é objeto direto do conhecimento, mas
sinal mental do objeto e instrumento do saber. É por este motivo, por ser o conceito
instrumento do saber e ter a responsabilidade de ser sinal mental do objeto, que
torna-se dever do intelectual pensar logicamente, dentro de uma racionalidade que
determinará o pensamento Ocidental e fará dele uma referência para a
compreensão e julgamento de outras culturas que buscam compreender a realidade
de outras formas.
Por isto, coube a Aristóteles criar um método correto para uma definição
precisa dos termos. É por este motivo, que se atribui a Aristóteles os fundamentos
da lógica85. Segundo a lógica Aristotélica, todo conhecimento é construído a partir de
um saber anterior através de um raciocínio sequencial. É o silogismo86, segundo o
qual, quando alguma coisa é enunciada, algo logicamente lhe segue. A partir dos
termos, se vai construindo toda uma estrutura que leva a um conhecimento dedutivo
universal e, por apresentar esta universalidade, torna este conhecimento
descontextualizado.
Goody (2000) dirá que existe uma tradição humanista que considera que esta
lógica na forma de silogismo, uma referência para se considerar a superioridade do
Ocidente e, por decorrência, as sociedades que não as dominam, são sociedades
compreendidas como pré-lógicas, e, portanto, atrasadas. É evidente que o domínio
desta lógica, que implica numa determinada racionalidade, depende, como
condição, da utilização da escrita. Logo, resulta desta compreensão que as culturas
que não dominam a escrita, são necessariamente culturas pré-lógicas. Goody (2000)
alerta que a forma de raciocínio por inferência, ou seja, a lógica em sentido genérico
85
Goody (2000) destaca que o argumento humanista sustenta que a lógica teria nascido com os gregos e lembra um grande antropólogo Lévy-Bruhl que afirma que o pensamento primitivo se caracteriza pela ausência da lógica e pela incapacidade de identificar a contradição.
86 “Um silogismo é um argumento em que uma conclusão é inferida de duas premissas.” (COPI, 1978
p. 167).
125
pode ser encontrada em todas as sociedades humanas. Mas a lógica na forma de
silogismo não é característica de todas as sociedades, pois não é universal.
É importante destacar como uma tradição que é particular a uma determinada
sociedade pode se tornar critério para julgar outras culturas, mesmo que em alguns
casos isto ocorra involuntariamente. Sem que se tenha consciência, pensa-se a
realidade a partir de uma estrutura mental já cristalizada por uma tradição cultural
definida como única e, tendo esta estrutura como referência, determina-se o real.
Goody argumenta sobre este aspecto, que o silogismo aristotélico pode não ter
sentido mesmo para quem se utiliza de um raciocínio dedutivo mais genérico. Cita,
por exemplo, um estudo feito por Luria sobre silogismos verbais com indivíduos de
sociedades com escrita:
Ao trabalhar na Ásia Central com camponeses que não tinham sido integrados nas grandes quintas coletivas que mais tarde foram organizadas na União Soviética, assim como com camponeses ‘progressistas’ que foram coletivizadas, Luria encontrou grandes diferenças na forma como essas duas populações respondiam a silogismos verbais simples. Por exemplo, foi colocado o seguinte problema a um camponês não colectivizado (a priori mais ‘tradicionalista’): ‘Numa certa cidade da Sibéria todos os ursos são brancos. O teu vizinho foi a essa cidade e aí se deparou com um urso. De que cor era esse urso?’ O camponês respondeu que não tinha forma de o saber, uma vez que nunca tinha estado nessa cidade. Porque é que o Professor Luria não perguntou ao vizinho desse camponês a cor do urso? Este tipo de resposta era típico e, segundo ele, relativamente independente do conteúdo particular do problema. Já os indivíduos mais ‘sofisticados’ (aqueles que durante algum tempo viveram numa quinta colectivizada e estiveram expostos as novas técnicas agrícolas e as novas tradições culturais) deram uma resposta muito semelhante disseram àquela que nós daríamos. Ou seja, disseram algo parecido com ‘É óbvio que o urso deve ser branco uma vez que disse que nessa cidade só havia ursos brancos. (GOODY, 2000, p. 33).
Goody (2000) continua reforçando a ideia de que não foram somente aqueles
que não tiveram instrução que recusaram o raciocínio silogístico proposto por
Aristóteles. Francis Bacon já o fizera. Dizia ele de Aristóteles:
E tendo, ao seu arbítrio, assim decidido, submetia a experiência como a uma escrava para conformá-la às suas opiniões. Eis por que está a merecer mais censuras que os seus seguidores modernos, os filósofos escolásticos, que abandonaram totalmente a experiência. (BACON, 1984, livro I, p. 33).
Enfim, o que se pode dizer desta concepção de lógica é que ela submetendo
uma determinada concepção de racionalidade, contribuiu para ofuscar outras
culturas e, em nome de uma cultura que tradicionalmente valorizou e priorizou o
126
conceito, ocultou as mais diversas vivências. O conceito distanciado da realidade,
tornou-se mais real que as próprias vivências, culminando na divisão daquilo que
deveria ser considerado na sua unidade, separando aquilo que é inteiro em essência
e existência priorizando a primeira encerrada no conceito e perdendo, portanto, a
dimensão humana das vivências e da totalidade que consiste todo o ser.
Paiva (2007) resume bem as decorrências deste pensamento Ocidental e
busca resgatar uma nova compreensão do ser:
Totalidade, aqui, não é um conceito abstrato: explicita o ser existente, que é uno e indiviso; designa precisamente tudo o que o ser é. A cultura ocidental está arraigada à visão essencialista, acreditando em uma essência, fixa e imóvel, pré-requisito e suporte das contingências. Quero tomar o ser na sua realidade, na sua existência concreta afirmando que tudo o que ele é se
explicita na sua unidade. (PAIVA, 2007, p. 08).
Heidegger foi um dos grandes críticos da metafísica clássica e sua análise
ajuda a entender sob outros aspectos, as características e implicações deste
pensamento. O autor de Ser e Tempo, afirma que esta metafísica ao identificar o ser
com a objetividade, acabou por criar um pensamento que não é senão uma física
absorvido pelas coisas. O ser, portanto, na metafísica tradicional é apresentado por
meio de estruturas imutáveis. Por isso, justifica-se a construção da lógica, bem
como, a rigorosidade da ética.
Propõe Heidegger, recuperar a subjetividade oculta nesta objetivação
proposta pela metafísica tradicional. Para ele, cabe resgatar uma nova visão de ser,
caracterizado pela consciência de finitude e de ser localizado no mundo, e que não
se reconhece como substância que se identifica com sua essência. Em Heidegger, o
ente aparece para designar justamente este ser-aí, concreto. O ser humano,
portanto, só pode ser entendido desta maneira, como ser no mundo, existindo, e por
isso mesmo, nunca identificado por uma essência que o define previamente. Pelo
contrário, é o ser um ser de projeto, de abertura as novas possibilidades.
Neste sentido, admitindo sua finitude, ou seja, por ser ele um ser para a
morte, sua relação com o mundo que o cerca só poderá ser autentica se reconhecer
como um ser finito e como ser no mundo. Isto significa que, a consciência da sua
condição de ser finito e da possibilidade de possuir inúmeras possibilidades,
inclusive a possibilidade da morte, desarticulam o ser humano impossibilitando
127
qualquer tentativa ou possibilidade de uma definição prévia, como era o objetivo da
metafísica tradicional clássica.
Segundo Heidegger, no mundo contemporâneo, marcado pelo controle da
técnica, desenvolveu-se uma racionalidade instrumental que desconsidera a visão
do homem como um ser de projeto, impossibilitando suas escolhas nas mais
diferentes possibilidades e limitando o homem na sua ação autônoma e criativa.
Esta racionalidade colabora para uma acomodação do ser e revela subjacente, uma
fundamentação metafísica que legitima uma concepção de humanidade que
desconsidera o ser como ser-aí e de projeto. Por isto, o que Heidegger propõe é um
resgate ontológico. Um ser que não se adequa a categorias estáveis e permanentes,
já que é um ser de escolhas e, portanto, indefinido, se fazendo à medida que existe.
Como ser de projeto e como ser indefinido que esta se fazendo como ser no mundo,
não se identifica com sua essência mas, pelo contrário, o que o define é o fato de se
fazer existindo, como ser se pondo no mundo.
Diante desta concepção antropológica, Heidegger dirá que o ser não poderá
ser compreendido com um simples exercício de pensar. Afirma ele logo no inicio da
Carta sobre o Humanismo: “Estamos longe de pensar com suficiente radicalidade, a
essência do agir”. (HEIDEGGER, 1983, p. 149). Isto porque a essência do agir para
Heidegger é o consumar e consumar significa desdobrar alguma coisa até a
plenitude de sua essência. O pensar para ele, consuma a relação do ser com a
essência do homem. Deve-se dizer que o pensar não produz nem efetua esta
relação, mas apenas oferece-a ao ser como aquilo que a ele próprio foi confiado
pelo ser. Esta oferta consiste no fato de, no pensar, o ser ter acesso à linguagem.
Dirá Heidegger que a linguagem é a casa do ser. Portanto, o pensamento se traduz
na linguagem.
Na sua obra Ser e Tempo, Heidegger (2008) dirá que compreender é um
existencial fundamental que constitui o ser, a abertura do ser-no-mundo. Dirá que o
compreender guarda em si a possibilidade de interpretação, apropriando-se do que
se compreende. O enunciado torna visível um derivado da interpretação. A
linguagem se radica na constituição existencial da abertura da presença e o
fundamento ontológico-existencial da linguagem é a fala. Assim, dirá Heidegger
(2008) que a compreensibilidade já está sempre articulada e a fala é a articulação da
compreensibilidade. Por isso, a fala se acha à base de toda interpretação e todo
enunciado e o que pode ser articulado na interpretação, é o sentido dado a alguma
128
coisa. Heidegger chama de “totalidade significativa” aquilo que se estrutura na
articulação da fala. E esta pode desmembrar-se em significações. Enquanto aquilo
que se articula nas possibilidades, todas as significações sempre terão sentido.
Portanto, a compreensibilidade do ser no mundo, pronuncia-se como fala e a
“totalidade significativa” da compreensibilidade vem à palavra. Dos significados
brotam as palavras, que, no entanto, não são dotadas de significados. A fala é a
articulação significativa da compreensibilidade do ser-no-mundo e esta convivência
está sempre falando já que falar é sempre falar sobre. O referencial da fala é sempre
‘endereçada’ dentro de determinados limites e numa determinada perspectiva.
Afirma Heidegger, toda fala tem algo sobre que fala.
Por isto que para Heidegger (2008) o fenômeno da comunicação deve ser
compreendido num sentido ontologicamente amplo, rompendo com a concepção de
linguagem característico da metafísica tradicional que identifica o enunciado com o
objeto de forma definitiva. Dirá que a comunicação de enunciados é um caso
especial de comunicação, apreendida fundamentalmente como existencial. É ela
que cumpre a ‘partilha’ da disposição comum e da compreensão do ser-com. Neste
sentido, para Heidegger, a comunicação nunca é a transposição de vivencias, por
exemplo, de opiniões e desejos, do interior de um sujeito para o interior de outro
sujeito. Em outros termos, isto quer significar que o ser-com já é, só que ainda não
partilhado porque não apreendido e apropriado. Toda fala sobre alguma coisa
comunica através daquilo sobre que fala e sempre possui o caráter de pronunciar-
se. Na fala, a presença se pronuncia e, complementa Heidegger, que o nexo da fala
com o compreender torna-se claro a partir de uma possibilidade existencial inerente
à própria fala, que é a escuta. A escuta é constitutiva da fala, já que o escutar é
estar aberto enquanto ser-com os outros. Somente onde se dá a possibilidade
existencial de fala e escuta é que alguém pode ouvir. O silêncio é outra possibilidade
constitutiva da fala e possui o mesmo fundamento existencial. Silenciar não significa
ficar mudo. Ao contrário, o mudo é a tendência para dizer. Quem nunca diz nada
também não pode silenciar num dado momento. Silenciar em sentido próprio só é
possível numa fala autentica. Pra poder silenciar, a presença deve ter algo a dizer,
isto é, deve dispor de uma abertura própria e rica de si mesmo. Pois só então o estar
em silêncio se revela e, assim, abafa a falação.
A presença significa então: como ser-no-mundo, a presença se pronunciou
como ser-em uma fala. A presença possui linguagem o que significa dizer que o
129
homem mostra-se como um ente que é uma fala. Heidegger recorda os gregos que
na reflexão filosófica, o logos foi sempre visualizado, sobretudo, como enunciado. A
elaboração das estruturas básicas das formas e dos integrantes da fala se deu de
acordo com este logos. Ou seja, o enunciado, fundado na razão, determinava a
estrutura lógica e seu conteúdo de forma definitiva. Dirá Heidegger:
A gramática buscou seus fundamentos na “lógica” deste logos. Esta, por sua vez, se funda na ontologia do simplesmente dado. O acervo das “categorias semânticas”, herdado pela lingüística posterior e ainda hoje decisivo em seus princípios, orienta-se pela fala entendida como enunciado. Tomando, porém, esse fenômeno em toda a originalidade fundamental e em todo o alcance de um existencial, será necessário transpor a lingüística para fundamentos mais originários do ponto de vista ontológico. (HEIDEGGER, 2008, p. 228-229).
Heidegger sugere que para se libertar a gramática da lógica necessita de uma
compreensão preliminar e positiva da estrutura a priori da fala como existencial. Esta
libertação está reservada como tarefa para o pensar e o poetizar. No entanto, para
ele, o pensar é muito mais que engajamento na ação. Dirá Heidegger:
O pensar é engajamento através do ente, no sentido do efetivamente real da situação presente. O pensar é engajamento através e em favor da verdade do ser. Sua história nunca é passado, ela sempre está na iminência de vir. A história do ser sustenta e determina cada condição e situação humana. (HEIDEGGER, 2008, p. 149).
Ao sugerir a fala como existencial, Heidegger relativiza o enunciado tirando
dele qualquer possibilidade de um significado já dado a priori. A fala é existencial e,
portanto, em construção com os outros seres. É a história deste ser em relação com
os outros que determina a compreensão que se terá da realidade e, sua expressão
através do enunciado, será resultado deste processo histórico construído
existencialmente.
5.3 Pensamento hindu: outro olhar
Ao se expor uma introdução do pensamento oriental, tendo como referência a
filosofia hindu, não se deseja apresentar uma análise profunda da cultura oriental,
mas discorrer sobre algumas características mais gerais que são próprias desta
130
cultura e, que contribuem para visualizar, formas alternativas de se conceber os
conceitos e as palavras.
De início, cabe dizer que são várias escolas de pensamento de uma tradição
oral de especulação e de seu desenvolvimento de filosofias sistemáticas dos
primeiros séculos da era Cristã. Segundo Cooper (2002) trata-se de oito escolas que
são convencionalmente divididas em seis escolas “ortodoxas” e duas
“heterodoxas”87. O que torna “ortodoxas” as escolas é sua aceitação como fonte os
textos conhecidos como Veda. O que se sabe está no Vedas, que significa
conhecimento (“livro do conhecimento”). Durant (1995) o compara à Bíblia já que o
considera mais uma literatura que propriamente um livro. Quatro ainda existem:
O Rig – veda, que são considerados hinos de louvor;
O Sama – veda que são as melodias;
O Yajur – veda que são as fórmulas sacrificiais e mágicas;
O Atharva – veda que são as consideradas fórmulas mágicas.
Cada um desses livros se divide, por sua vez, em quatro seções:
Os Mantras que são hinos;
Os Brahmanas que são manuais de ritual para os sacerdotes;
Os Aranyaka que são textos da floresta;
Os Upanishads que são os escritos para os filósofos.
A palavra Upanishads, onde se encontram os escritos filosóficos dos hindus,
é composta. “Upa” quer significar próximo e “Shad” significa sentar. Portanto, seu
significado é sentar próximo.
São 108 discursos, discutindo questões complexas que envolvem a realidade
e sua multiplicidade, bem como questões sobre nossas origens e nosso destino. No
entanto, as respostas a estas questões caminham numa direção bastante diversa
daquela escolhida pela cultura Ocidental, começando pela constatação da
insuficiência do intelecto na busca de respostas. Por isso, não será nas palavras que
os hindus entendem que se encontram as respostas, mas numa percepção direta,
numa visão interior. Como dirá Zimmer:
a filosofia da Índia é fundamentalmente cética em relação às palavras; não acredita que sejam apropriadas para exprimir o tema principal do pensamento filosófico e, portanto, usa de cautela quando procura traduzir
87
As ortodoxas são Samkhya, Yoga, Vaisesika, Nyaya, Vedanta e Mimamsa. As heterodoxas são o budismo e o jainismo
131
em fórmulas puramente intelectuais a resposta ao enigma do Universo e da existência humana. (ZIMMER, 1986, p. 33).
Assim, apesar dos volumes que existem escritos sobre a filosofia Oriental,
uma das ideias mais encontradas nestes volumes é que a verdadeira sabedoria não
pode ser expressa em palavras escritas. As palavras têm suas limitações. Elas são
insuficientes para definir de uma vez por todas a realidade, porque esta inclui tudo.
As palavras não passam de uma pequena parte do todo. As definições, embora
sejam úteis, tendem a impor limitações e distinções desnecessárias às coisas.
Zimmer referindo-se aos conceitos e as palavras na cultura Oriental, resume esta
ideia de maneira muito significativa e precisa:
Os conceitos e as palavras são símbolos assim como as visões, os rituais e as imagens; igualmente, usos e costumes da vida cotidiana (...). Os símbolos conduzem a mente à verdade, mas não são a verdade, daí ser enganoso adotá-los. Cada civilização, cada época deve fecundar e conceber seus próprios símbolos. Assim temos de seguir o difícil caminho de nossas próprias experiências, produzir nossas próprias reações e assimilar nossos sofrimentos e realizações. Só então a verdade que manifestamos será tão nossa quanto uma criatura o é de sua mãe, e a mãe, apaixonada pelo pai, regozijar-se-á com seu filho em quem verá o fiel retrato d’aquele (...). Não podemos pedir Deus emprestado. Temos que efetivar sua nova encarnação a partir de nossas próprias entranhas. O divino deve, de algum modo, descer na matéria de nossa própria existência e participar neste peculiar processo vital. (ZIMMER, 1986, p. 19-20).
Pensa-se que este ensinamento seja bastante significativo como contribuição
para uma análise das letras, especialmente se comparada à cultura do Ocidente,
que tem nas palavras, a grande característica de expressão às grandes respostas,
seja em relação à existência humana ou as questões que envolvem o universo. Na
cultura letrada hindu, este propósito não seria possível, já que o pensamento
revelado pela linguagem está limitado à abrangência desta própria linguagem
disponível. Na verdade, a grande finalidade do pensamento indiano não é descrever
a realidade visível e sim, desvendar e integrar na consciência, o que as forças da
vida recusaram e ocultaram.
Um dos aspectos mais importantes que distinguem o pensamento oriental do
pensamento ocidental é a ideia de que a realidade é harmoniosa e unificada que
todas as coisas estão interligadas. Essa totalidade tem importantes implicações para
a natureza e o propósito da filosofia oriental. Diferente do pensamento do Ocidente,
o pensamento Oriental tende a não se situar fora daquilo em que se está pensando.
132
Afinal, como estar fora de tudo que existe? Em vez disso, ele tende a aceitar as
formulações verbais apenas como verdades parciais e a reconhecer os limites da
compreensão humana e trabalhar dentro deles. Ou seja, o que se exprime com
palavras é, na melhor hipótese, apenas parte da história e, na pior, uma falsa pista
no caminho para a sabedoria. O que é verdadeiro sob um conjunto de circunstancias
deixa de sê-lo em novas situações. Quase sempre, as afirmações dogmáticas são
enganosas. Stevenson (2002) afirma que por isto, o conhecimento para o
pensamento Oriental não pode ser reduzido a palavras, mas é um estado da mente
e uma abordagem da vida. Os ensinamentos da filosofia podem orientar, mas em
ultima análise a verdade deve ser experimentada e praticada para que seja válida.
Stevenson reproduz a seguinte história sobre um filósofo taoísta para ilustrar este
pensamento:
conta que um homem destruiu algumas cabaças por serem grandes demais, o que impediria que se bebesse delas. Chuang Tzu criticou o homem, dizendo que as cabaças poderiam ter sido usadas na confecção de uma balsa para transpor as águas. A história mostra como devemos lidar com grandes ideias filosóficas que estão além de nossa capacidade de compreensão. Se nossos planos forem limitados, elas não funcionarão. (STEVENSON, 2002, p. 36).
Assim como as ideias filosóficas são apenas parciais e limitadas em relação à
unidade da realidade maior e indescritível, o eu individual é muitas vezes limitado na
capacidade de conhecer e agir por si próprio. Mas em conexão e harmonia com toda
a realidade, o eu se dissolve fazendo com que a compreensão e a ação se tornem
profundas e poderosas. Por isso, o pensamento oriental tende a não se preocupar
tanto com a definição da realidade; o importante é transpor as barreiras que isolam o
eu do todo. O propósito é conduzir a experiência e a conquista de harmonia com a
unidade. Tal harmonia pode ser difícil, porque a existência como a percebemos está
em estado constante de mudança. Tudo muda com frequência o tempo todo em
círculos. Zimmer (1986) diz que no pensamento hindu, tudo o que conhecemos e
expressamos pertence à esfera da impermanência, a esfera do tempo e do espaço.
O que a filosofia indiana tem buscado é conhecer o eu que é, para eles, imutável por
todo o sempre. Esta seria uma das grandes diferenças que marcam o pensamento
Oriental em relação ao pensamento Ocidental. Da mesma maneira que a filosofia do
Ocidente, também os indianos refletem sobre a psiquê, sobre a lógica, a
epistemologia, estabelecem métodos e discutem sobre valores éticos. No entanto, a
133
preocupação fundamental do pensamento Oriental, foi sempre com a transformação
do indivíduo e não com a informação, característica esta muito presente na cultura
ocidental. Concentram-se, os indianos, numa gradual importância ao problema da
descoberta e assimilação do eu. Segundo Zimmer (1986), os diálogos filosóficos das
Upanishads revelam que por volta do oitavo século a.C., houve uma mudança na
orientação dos valores, deslocando a atenção dos hindus, do universo exterior para
o universo interior88.
A filosofia oriental tende a ser holística e mais preocupada com o quadro geral
do que com as particularidades. Esta é outra grande característica do pensamento
oriental. Há uma totalidade constituída de coisas que estão interligadas de maneira
que nem sempre conseguimos compreender. Quando se começa a tentar definir as
coisas, acaba obtendo-se apenas parte do quadro. Fixar-se em pequena parte do
todo pode ser problemático, à medida que se começa a ignorar ou aceitar
cegamente o resto da realidade. Como resultado, não se vive mais uma realidade,
mas uma ilusão criada. Esta unidade que permeia, une ou transcende as coisas, não
pode ser explicada por conceitos, mas pode ser intuída ou experimentada.
Stevenson (2002) argumenta que o pensamento oriental tem um grande respeito
pela complexidade da existência e se preocupa em não reduzi-la a definições. O
propósito não é definir a verdade, mas viver em harmonia com ela.
Por focalizar a totalidade, a filosofia oriental tende a aceitar, mesmo os seus
próprios ensinamentos, como parciais e limitados. Grande parte do seu pensamento
adota a atitude de que é perda de tempo usar palavras para dividir a realidade em
pedaços. Análises e provas não costumam ser especialidades dos sábios orientais.
Pelo contrário, a ênfase recai com frequência na experiência interior, vivida, não
definível em palavras. Como resultado, o silêncio fala alto na história do pensamento
oriental. Da mesma maneira que para Heidegger, o silêncio também tem um espaço
importante no processo de comunicação entre os homens no pensamento Oriental.
Neste caso, o silêncio serve para transmitir discernimentos profundos. A meditação
geralmente é praticada em silêncio. O silêncio para os orientais, é uma forma de
concentrar-se no absoluto, fundir-se com ele.
88
Cabe aqui a observação de que as letras podem ter diferentes significados mesmo dentro de uma determinada cultura. Epicuro, pensador nascido na ilha grega de Samos em 341 a. C., tendo como pano de fundo histórico, a conquista da Grécia por Alexandre Magno, desenvolveu toda uma reflexão sobre a importância do domínio do homem do seu “universo interior”, na busca de sua felicidade.
134
No Ocidente, a compreensão passou a ser fixar-se em um conceito e analisá-
lo para ver o que é e como funciona. Para o pensamento Oriental, quando se adota
esta prática o que se está fazendo é tomando uma pequena parte de um enorme
quadro mutável e tentando transformá-lo no que não é. O silêncio ajuda a focalizar a
experiência interior em vez de formulações dogmáticas. Isto remete a outra
característica do pensamento oriental, ou seja, os filósofos orientais tendem a evitar
o dogma. Stevenson (2002) afirma ser este o motivo que os levam a recorrer a
parábolas, aos enigmas, as analogias e mitos para transmitir seus ensinamentos, e
este seria um dos motivos que torna difícil de distinguir a filosofia da religião. No
ocidente costuma-se distinguir a diferença entre religião e filosofia em termos de
prática devocional e intelectual. Como visto anteriormente, esta distinção vai
ganhando corpo desde que o conceito passou a constituir as religiões
transformando-as em religiões de conversão, possibilitando o advento da teologia.
Já no Oriente, religião e filosofia são complementares. Se para a história do
pensamento Ocidental, a passagem do pensamento mítico para o lógico-racional
representa um progresso, para o pensamento oriental, o pensamento mítico significa
condição necessária para expressar as experiências intuitivas entendidas como
inacessíveis à linguística. As imagens podem abarcar e manifestar com clareza e
coerência o caráter paradoxal da realidade. Portanto, a filosofia indiana serve-se de
símbolos e das imagens do mito para sua expressão89.
Segundo Zimmer (1986), ao contrário de uma disputa entre mito e a razão, o
que se construiu no pensamento hindu, foi uma cooperação do mais recente com o
mais antigo. Foi isto que fez deste povo, portador de relatos que circulam no saber
comum e são conhecidos desde a infância, e permanecem até hoje fazendo parte do
imaginário das pessoas e que faz da Índia, uma das grandes pátrias da fábula
popular.90
89
Campbell (2000) em relação ao pensamento do Ocidente dirá que “nosso pensamento é predominantemente discursivo, verbal, linear. Há mais realidade numa imagem do que numa palavra” (página 64).
90 Costa (2012) conta que em 2007, uma polêmica histórico-mitológica mobilizou o país. Nacionalistas
hindus entraram na justiça para impedir a construção de um canal entre a Índia e o Sri Lanka. Sem o canal, os navios teriam que contornar o Sri Lanka aumentando o percurso em 650 quilômetros para chegar à Índia. O canal não saiu do papel graças a Rama, personagem da mitologia de milhares de anos. Alegavam que o canal destruiria a ponte criada por Rama (banco de areia de 30 quilômetros entre a Índia e Sri Lanka) para tentar resgatar sua mulher que havia sido raptada. Protestos contra o canal ocorreram pelo país a fora.
135
As letras, como se pode observar é um dos gestos que expressam muitas das
culturas mais remotas e continua a ser uma das características muito presente da
civilização Ocidental. Mas como visto, esta não foi uma característica gestual
apenas da cultura Ocidental. O caso da cultura hindu é bastante emblemático para
ilustrar como as letras terão sentidos diferentes daqueles dados na cultura
Ocidental. O que caracterizou a sociedade grega teria sido sua valorização da
escrita, através do alfabeto, como meio de divulgação de seus resultados na busca
por um conhecimento objetivo. Esta busca contribuiu para a estruturação de uma
linguagem que pudesse expressar a realidade, a ponto de considerar o conceito
como idêntico ao real. Ao pensador, portanto, caberia conhecer o mundo visível e
descrevê-lo através dos conceitos.
A questão é que cada vez mais há um interesse pelo pensamento oriental por
parte do ocidente. A ênfase na unidade, na harmonia e na adaptação à mudança,
tende a representar um contraste evidente com o pensamento cientifico que busca a
certeza, a objetividade e contrasta com a própria existência dinâmica e mutável. A
ciência tradicional no Ocidente elabora definições e distinções rigorosas entre os
objetos e os absolutizam com conceitos que expressam o próprio real. Este pensar
tem por objetivo conhecê-la para então, dominá-la. Cabe relembrar Francis Bacon já
citado anteriormente neste estudo e sua afirmação contundente: “Saber é Poder”.
Contudo, a visão de mundo cientifica, embora tenha levado ao triunfo da tecnologia,
se revela cada vez mais incompleta. Não é sem sentido que a física newtoniana foi
repensada nestes últimos tempos por teorias como da relatividade e da mecânica
quântica. Stevenson (2002) lembra que vários livros argumentam que as
descobertas dessas novas abordagens são compatíveis com a sabedoria do
oriente91
Portanto, um aspecto significativo e característico da ciência ocidental é a
busca pela objetividade. As ideias científicas são passiveis de serem verificadas e
duplicadas e qualquer cientista que seguir os mesmos caminhos traçados por
outros, chegará aos mesmos resultados. Dirá Stevenson (2002) isto permite que
todos os cientistas desenvolvam uma compreensão da realidade independente do
seu estado moral, espiritual ou emocional. Depende apenas das características
previsíveis e observáveis dos objetos. No entanto, a ciência se mostrou incapaz de
91
Entre estes livros estão O Tao da Física, de Fritjof Capra, e A dança dos mestres Wu Li, de Gary Zukav.
136
dar conta das grandes questões da existência que, como visto, a cultura oriental
pode ajudar a compreender.
137
CAPITULO 6 – AS LETRAS E O MERCANTIL
6.1 O grande comércio e as letras no ocidente
Como já se disse, as bases do alfabeto grego foram herdadas das culturas
semitas, provavelmente dos fenícios que praticaram o comércio na extremidade
oriental do mar mediterrâneo. Foi sobre este comércio que se alicerçaram o
crescimento e a expansão da Grécia clássica. Modificado, este alfabeto encorajou a
acumulação rápida de um conhecimento agora possível de ser registrado, já antes
estimulado pelo contato com o Oriente formado por civilizações que tinham atingido
uma evolução mais complexa. O alfabeto foi fundamental para o favorecimento do
comércio, permitindo o registro das contas dos lucros e das perdas.
As primeiras importações conhecidas da Grécia antiga, provenientes do
Próximo Oriente, eram sírias. Os gregos, portanto, voltavam-se também para o
Oriente, avançando até as Costas da Ásia fundando colônias em Poseidon, por
exemplo. A importância das relações dos gregos com o Oriente não derivam apenas
da presença na Ásia Menor, mas também das constantes guerras que conduziram,
nos finais do século VIII, à conquista de Chipre pelos Assírios. Depois da conquista
de Alexandre, os gregos chegaram até o Norte da Índia. Mais tarde, o Império
Romano ocupou estas cidades e fez uso das mesmas rotas comerciais, voltando a
ligar a Inglaterra à Índia e ao Sudeste asiático e a China.
O comércio de Roma e da Europa de um modo geral, com o Oriente
abrandou drasticamente após o declínio do Império Romano. Os grandes centros de
comércio caíram em ruína e as rotas comerciais foram obstruídas pelas guerras. No
entanto, Pirenne (1968) considera que o declínio econômico da Europa já havia
começado desde finais do século III. Certo comércio com o Oriente continuou até as
conquistas islâmicas no princípio do século VIII, depois dos quais a economia
atingiria um colapso regredindo ao estado de região exclusivamente agrícola,
extinguindo a vida urbana e conduzindo ao desaparecimento do grande comércio,
em beneficio de um comércio local. Pirenne (1968) dirá que do ponto de vista
econômico, o fenômeno característico desta civilização é o latifúndio92.
92
No feudalismo, a população era dependente do Senhor, pois cada feudo formava uma unidade judicial e uma unidade religiosa. Isto significa que o latifúndio não era somente uma instituição econômica, mas também social e os direitos senhoriais eram obstáculo à atividade comercial. Se
138
O comércio deixa de ser uma atividade social, a tal ponto que cada latifúndio
acabava por bastar-se em todas as suas necessidades. Não se encontram mais
comerciantes, a não ser entre os judeus que mantiveram um comércio com alguma
regularidade, importando pimenta, esmalte e marfim destinados a uma clientela
muito reduzida constituída pela aristocracia. De qualquer modo, o que caracteriza
esta sociedade é uma economia rural tendo o comércio um papel apenas
secundário. Portanto, nesta sociedade que possuir terras, possui poder e, por isto, o
lugar mais importante pertence à igreja. Por ser uma sociedade agrária, a instrução
foi perdendo espaço tornando a sociedade marcada pela ignorância em relação a
escrita e a leitura. Quem dominava a leitura e a escrita era a Igreja o que fazia dela
detentora de toda a administração, em especial, dos séculos IX ao XI. Só a Igreja
seria capaz de levantar registros e calcular as receitas. Por isso mesmo, era esta
instituição portadora de grande autoridade moral e de grande poder financeiro.
Pirenne (1968) diz que o ideal a aspirar era de acordo com a renúncia característica
de um monge. Buscar a riqueza é cair no pecado da avareza. A usura, por exemplo,
será proibida ao clero e ao leigo93.
Com o avanço dos árabes na região do mar Mediterrâneo a partir do século
VII, fechou-se o mar ao Ocidente. Pirenne dirá que, no entanto, isto não ocorreu
para todos como, por exemplo, a Itália Meridional, o Adriático e o mar Egeu. As
cidades do Sul da Itália não temeram a expansão islâmica. A cidade de
Constantinopla de cerca de um milhão de habitantes, mantinha intenso comércio
com os italianos que, por sua vez, quiseram reatar suas antigas relações comerciais
com a África e a Síria. Os venezianos, por exemplo, exportavam para os haréns da
Síria e do Egito escravos, madeira e ferro. Os lucros comerciais produziram uma
classe de comerciantes ricos e o progresso econômico manifesta-se de forma
indiscutível pelo emprego da escrituração, que é indispensável a qualquer
movimento de negócios de certa importância. Pirenne (1968) lembra que um clérigo
sempre fazia parte da tripulação de cada barco que rumava para as relações
mercantis. É de se supor que os próprios mercadores foram aprendendo a executar
suas contas.
considerarmos do ponto de vista da sua superfície, os latifúndios medievais tinham em média 4000 hectares em terras descontínuas, tamanho que justifica o nome que recebe.
93 Segundo Le Goff (1986) entre os ofícios condenados pela mentalidade medieval, alguns eram
condenados em certos casos de acordo com as circunstâncias. No caso da usura e da prostituição, foram condenados sem restrição.
139
Também no mar do Norte e no mar Báltico que banham as costas da Europa
Setentrional encontra-se uma atividade marítima e comercial bastante intenso, com
relações com a Inglaterra, Escócia, Irlanda, exportando especiarias, vinhos, sedas,
etc.
Veneza vendia a seus vizinhos do continente sal e pescado em troca de trigo,
vinho e carne. As cruzadas contribuem para a reabertura do Mediterrâneo para a
navegação ocidental, dando um novo animo ao comércio dos venezianos, pisanos e
genoveses. Esta é a grande contribuição das cruzadas, possibilitar às cidades
italianas o domínio do Mediterrâneo. Começa a surgir uma indústria que congrega o
campo e a cidade. O campo com a produção de vinho e trigo e as cidades com
tecidos de linho e lã, todos orientados para a exportação. O surgimento de
mercadores, somado aos riscos, contribuem para o aparecimento de centros
mercantis que aparecem paralelos aos castelos feudais. A atividade comercial e
industrial transformou-se em profissões independentes e ao concentrar-se nas
cidades, a indústria abasteceu a exportação aumentando o número de mercadores e
possibilitando o surgimento de grandes fortunas.
Pirenne (1968) destaca que, ao se constituir como classe social, a burguesia
nascente, em especial, nas cidades, vai se constituindo também como classe
jurídica. Os anseios da nova classe conflitavam com os interesses da nobreza, tanto
do ponto de vista material, como, do ponto de vista espiritual, avessos ao
comércio94. Inevitavelmente vai se criando de acordo com as necessidades um
código comercial favorável aos anseios mercantis. Este código consolida-se também
e passa a ser reconhecido pelo poder público. As novas demandas decorrentes das
cidades, levam à necessidade de se estabelecer a instituição de recursos,
calculados de acordo com os bens de cada habitante.
Uma das primeiras reivindicações da burguesia era justamente acabar com os
impostos feudais. No dizer de Huberman (1986) os comerciantes opunham-se à
municipalidade dos impostos porque num mundo em evolução serviam apenas para
aborrecer, “eram irritantes”. Somado a estes encargos e mais o mau estado das
estradas, resultou que o comércio se fazia principalmente pela via fluvial e o tráfico
94
Huberman (1986) lembra que as terras da cidade pertenciam aos senhores feudais, bispos, nobres, reis e a princípio não faziam distinção das outras terras que possuíam. Por isso, queriam também arrecadar impostos, criar taxas e dirigir tribunais de justiça. Mas as leis feudais eram fixadas pelo costume, já o comércio, dinâmico, exigia liberdade e resistência às barreiras e, portanto, novos padrões tinham que ser criados.
140
marítimo tornou-se mais importante que o fluvial. Destacavam-se na Europa, o porto
de Veneza, ao Sul, e o de Bruges, ao Norte, como os mais seguros e preparados
para o comércio.
Quanto a moeda, ela sempre esteve presente, inclusive na Idade Média, da
mesma forma que a troca sempre esteve presente nas relações sociais. Portanto, a
moeda mesmo na Idade Média serviu de medida dos valores e instrumento de
compras. Sempre que houve intercambio comercial, também houve intercambio
monetário. Mas sendo o comércio insignificante, a circulação de mercadorias
correspondia à da circulação de moedas. A questão é que diante do quadro
retratado até aqui sobre o desenvolvimento mercantil, dirá Pirenne (1968) que
considerar o período do século IX ao XII, como um período de economia natural
pode ser considerado certo, mas também errado. Dirá este autor, errado se por ele
se entende que a moeda deixou de ser instrumento normal de intercâmbios, pois na
verdade não deixou de sê-lo nas transações comerciais. É certo, se se quiser
mostrar que sua circulação ocorreu de forma muito limitada. Somente nos fins do
século XI a moeda retomaria a sua mobilidade, viajando com os mercadores95.
Destaca-se ainda, que com os progressos da circulação monetária, os príncipes
passaram a utilizá-la em proveito próprio.
Quanto ao crédito, também esteve em todas as épocas, e isto pode ser
atestado na exposição neste trabalho, de comunidades antigas, como, por exemplo,
a Mesopotâmia, que fazia largo uso das cartas de crédito. Mesmo na Idade Média
sua utilização era visível. A Igreja, por exemplo, era uma grande emprestadora da
época. No século XII, nas cidades mercantis da Itália, as letras de crédito são de uso
corrente. Os atos obrigatórios que estão vinculados com a origem da letra de câmbio
eram redigidas por notários, na Itália e no Sul da França e por escrivães municipais,
em Flandres.
Cabe aqui uma observação sobre a maneira paradoxal como se desenvolve o
mercantil numa cultura marcada pelo controle hierárquico através das tradições e
dos costumes. A Igreja reproduz este conflito já que é uma emprestadora de dinheiro
e o empréstimo supõe-se o pagamento de juro por parte do devedor. No entanto, a
95
Segundo Le Goff (2014) os principais acontecimentos que impulsionaram o uso da moeda são a passagem do mercado itinerante para o mercado sedentário, o progresso urbano, a volta à moeda de ouro, o desenvolvimento do lucro e as primeiras tentativas para justificar a lenta passagem da condenação da usura acera indulgencia a respeito do lucro e do juro; a difusão da moeda e sua regulamentação pelos poderes públicos, em especial, monarquias; a promoção da imagem do trabalho e a ascensão do ensino e da prática do direito.
141
Igreja proibia que um credor cristão cobrasse esse juro de um devedor cristão96.
Segundo Le Goff a Igreja baseava-se em textos bíblicos e o código de direito
canônico no século XIII retrata bem a atitude da Igreja: “a usura é tudo aquilo que se
pese em troca de um empréstimo em si mesmo; pedir isso é um pecado proibido
pelo Antigo e o Novo Testamento; a só esperança de um bem de retorno para além
do bem emprestado é um pecado”. (LE GOFF, 2014, p. 109).
No entanto, Huberman (1986) dirá que o que a Igreja dizia e o que fazia eram
duas coisas bem diferentes. Reis, bispos tomavam empréstimos ou os faziam, a
juros. Banqueiros italianos quando emprestavam dinheiro em grande escala e não
pagavam seus juros, o próprio papa ia cobrá-los.
A questão fundamental que interessa diretamente é que o desenvolvimento
dos instrumentos de crédito supõe necessariamente que os mercadores sabiam ler e
escrever e leva a crer que a atividade comercial foi a causa da criação das primeiras
escolas para os filhos dos burgueses cujos mestres eram nomeados por autoridades
municipais97.
Já no século XIII, Pirenne (1968) dirá que o latim passa a ser substituído
pelas línguas vulgares nos documentos privados e, em especial, em regiões de
maior progresso econômico como é o caso da Itália e se Flandres. Na Itália a prática
da escrita já era tão presente à vida comercial que a escrituração dos livros parece
ter sido muito geral no século XIII. No século XIV, já era difundido por toda Europa.
O francês era a língua mais comum nas relações econômicas, ao lado do latim,
ainda uma língua internacional. Deve-se dizer que os progressos da instrução
aparecem intimamente ligados ao crédito.
Observa-se, portanto, que o comércio medieval desenvolveu-se desde o
princípio sob um comércio de exportação fazendo surgir uma classe de
comerciantes essencial no processo de transformação econômica e cultural dos
séculos XI e XII. Nas regiões da Europa onde teve inicio, o impulso vem do comércio
de longa distância. As especiarias são os primeiros produtos deste comércio e vão
promover a riqueza de Veneza e de todos os grandes portos do Mediterrâneo
Ocidental. A princípio, pode-se dizer que este comércio foi caracterizado por ser se
luxo, já que trabalhava com especiarias, ou seja, produtos caros. No entanto, a
96
Quando o emprego do dinheiro urbanizou-se, os judeus passaram a emprestadores e a igreja autorizava o empréstimo a juro entre judeus e cristãos.
97 Le Goff (1988) dirá que o intelectual, ou seja, um homem cuja profissão seja escrever e ensinar
somente irá aparecer, no Ocidente, com o surgimento das cidades.
142
intensificação das relações entre Ocidente e Oriente promove uma variedade cada
vez maior de produtos sejam eles naturais ou fabricados, como o arroz, laranja,
damasco, figo, passos, perfume, remédios e o algodão. Também os tecidos orientais
farão parte dos carregamentos dos barcos. Em troca, o Ocidente enviava madeira,
armas e escravos.
Para se ter uma ideia da amplitude das relações mercantis, em princípio os
italianos adquiriram, nas feiras de Champanha, o conhecimento da qualidade
superior desses tecidos. Porém, a partir do século XIII, a sua indústria perde espaço
para às de Flandres e Brabante, cabendo aos italianos o monopólio para o Sul. As
grandes companhias da península vão instalar em Bruges feitores encarregados que
comprarão tecidos dos flamengos e brabanções. Já a indústria flamenga e
brabançana tomavam parte destacada no comércio com o Mediterrâneo e
mantinham constantes relações com Bruges. Desde o século XIII, venezianos,
florentinos, catalães, espanhóis, bretões e os de Hansa, possuíam em Bruges
barracas e feitorias.
Para os hanseáticos, a indústria têxtil foi a causa das relações mercantis com
Bruges e gozou no norte da Europa, um florescimento comercial comparado as
cidades italianas da bacia do Mediterrâneo e como eles, desenvolveu um comércio
de exportação e importação com o Oriente. Quanto a Inglaterra, abastece com lã os
Países Baixos. A França, por sua vez, ao Sul participa do comércio com o
Mediterrâneo, tendo o vinho como produto principal.
Destaca-se que no decorrer do século XIII, toda Europa achava-se aberta ao
grande comércio e que desde o século XII, o capitalismo já se firmou e produziu
grandes riquezas, Cada vez mais, o clero aparece deslocado. Quanto a nobreza,
manteve-se nos castelos, já que as cidades vão se tornando cada vez mais
burguesas e novas demandas vão aparecendo. A primeira delas será dar conta da
alimentação desse povo98. Por isto, recorreram aos campos próximos e ao grande
comércio.
Para Pirenne (1968) pode-se considerar o princípio do século XIV como o fim
do período de expansão da economia medieval. Vários fatores contribuíram como a
fome de 1315 1317, a peste negra, lutas civis italianas, a guerra dos cem anos.
Contudo, Pirenne entende que a causa principal está na própria organização
98
A média das populações das cidades mais importantes, no século XIV, era em torno de 50.000 a 100.000 habitantes. A grande maioria das cidades, giravam em torno de 5.000 e 10.000 habitantes
143
econômica, o que leva os capitalistas dos séculos XIV e XV a pedirem ajuda aos
príncipes. Entre eles se estabelece uma verdadeira solidariedade de interesses. Os
príncipes necessitam cobrir os gastos públicos e privados e para isto contam com a
riqueza dos mercadores. Já os mercadores contam com os príncipes para a
proteção e garantia da circulação do dinheiro e mercadorias. A medida tende a
aumentar o poder do rei, dando origem ao poder monárquico absolutista, que
resistirá interferindo na economia até que a burguesia assim o queira.
Viu-se, portanto, que em termos comerciais, ocorre desde a antiguidade uma
ascensão dos gregos, depois um declínio radical do comércio e, em seguida, um
novo renascimento no decurso das revoluções marítima e comercial do século XIII.
Todo este processo ocorre paralelamente a uma difusão da escrita.
Este renascimento foi acompanhado pelo desenvolvimento de métodos de
leitura e da aritmética necessários à contabilidade, as sociedades comerciais e às
atividades bancárias. Goody (2000) dirá que já nos séculos XI e XII, o comércio
europeu atingiu um nível que os mercadores que não soubessem ler e escrever
estariam seriamente desfavorecidos. Este conhecimento, portanto, irá ser essencial
para que se correspondesse com outros mercadores e para realizar os cálculos de
suas contas. Esta crescente necessidade fez nascer uma contabilidade comercial na
Europa neste período. Ocorre para que o comerciante não perca de vista o rastro
dos créditos e débitos, ou seja, para calcular a posição de cada um diante de
terceiros e para conservar a memória das operações conduzidas pelas sociedades
comerciais. A complexidade das transações não permite mais uma memória sem o
registro, mesmo por que, o lucro depende de cálculos precisos. Não há mais espaço
para a memória que não considere a escrita como é a característica das sociedades
orais. Evidente que estas memórias ainda existam como história nas mentes das
pessoas, mas elas vão perdendo espaço numa cultura em que o valor de uma
memória é contabilizado pelo quanto ela vale em dinheiro. A frieza da memória
documental que almeja a exatidão, ocupa o espaço e desvaloriza a memória que
resgata a história dos sentimentos, ainda presentes mesmo nas culturas letradas,
mas contida por uma mentalidade que valoriza o lucro.
As associações comerciais começaram a surgir na Itália antes mesmo das
cruzadas e o livro mais antigo de contabilidade conservado data de 1211 e pertencia
a banqueiros florentinos. Não apenas as práticas de crédito foram promovidas pela
contabilidade, mas também a lei passou a reconhecer os livros de contabilidade
144
como prova de débito. A utilidade imediata para o mercador e para o seu cliente era
complementada pela preferência concedida pelos tribunais ao testamento escrito.
Também neste aspecto, vai se moldando uma mentalidade na qual o texto terá mais
credibilidade que o testemunho e a palavra empenhada valerá menos que o
conteúdo expresso no texto. Considerando o valor documental do registro para o
comércio e que cada vez mais a burguesia vai consolidando um código comercial
que atenda seus interesses como classe jurídica, é compreensível o valor
documental cada vez maior dos textos escritos, em especial, nos centros urbanos.
O crescimento do comércio europeu no contexto internacional exigia
instituições bancárias capazes de assegurar a troca de uma moeda por outra, de
forma a conferir os créditos e a fazer depósitos, operações que dependiam da
escrita. A letra de câmbio não era apenas uma ordem de pagamento, mas um
instrumento combinado de câmbio e de troca. As letras de câmbio implicavam a
existência de correspondentes vivendo em outras cidades.
Os atos escritos eram particularmente úteis no caso das sociedades
mercantis, que desempenhavam um papel considerado nas primeiras grandes
operações comerciais. Goody (2000) considera que, sejam elas formais ou
informais, de longa ou curta duração, estas sociedades eram frequêntes e muito
importantes para a organização comercial. Desde seu inicio, seus arquivos
apresentavam sistemas bem avançados de administração.
Segundo Paiva (2012) o renascimento mercantil europeu que começou a
tomar corpo por volta do século X, trará mudanças que transformarão toda a
civilização europeia. O comércio, com a compra e a venda de mercadorias, desperta
no mercador uma nova maneira de pensar e entender a realidade. Todo este
universo mercantil o levará a adotar novas maneiras de viver e que se traduzem em
novas interpretações da realidade que vive. E todo este processo, tem um objetivo
claro para o mercador. Sua intenção é o lucro individual, levando-o seguidamente a
romper cada vez mais com uma concepção social anterior ao processo mercantil,
que se caracterizava por uma sociedade entendida como corpo social, onde cada
pessoa desempenhava sua função atendendo aos interesses da comunidade. Agora
com o advento do comércio, o mercador se distância da comunidade como corpo
social instituindo o individualismo e este vai se estabelecendo como um padrão de
vida social.
145
Paiva (2012) destaca que neste cenário, as pessoas vão desaparecendo para
darem lugar aos indivíduos. As pessoas passam a ser vistas pela sua função e as
coisas pela sua mercabilidade. O mercador se vê obrigado a aprender a calcular e a
planejar. Seu pensar se transforma em cálculo. A razão é o nome que designa o
pensar mercantil.
Este racionalismo99 e o individualismo teriam plasmado a nova civilização
europeia e esta experiência de indivíduo racional, no dizer de Paiva, foi estendida a
todos os gestos criando novos padrões de comportamento, bem como, uma nova
linguagem transformando-a tanto na forma, como no conteúdo. Paiva (2012) destaca
o campo religioso como um bom exemplo de como o mercantil se fez presente. A
religiosidade, antes marcada por uma relação de comunhão e participação agora
aparece conformada com o mercantil. Através de um esforço individual, a pessoa
busca agradar a Deus imitando a Cristo. A própria expressão do divino e adesão do
fiel à Igreja, não será mais como ação coletiva, mas como adequação pessoal às
doutrinas estabelecidas pela instituição, através de uma construção teológica
sistemática100 baseada no conceito de racionalidade moderna.
A partir da contribuição de Paiva, cabe retomar duas ideias desenvolvidas
anteriormente, para realçar a influência decisiva da escrita neste processo de
construção de uma mentalidade mercantil. A primeira, como a prática mercantil
contribuirá para um distanciamento cada vez mais pontual entre mito e a razão. A
razão instrumentalizada a serviço do mercador como indivíduo na busca do lucro, se
contrapõe a leitura mítica da realidade, que se caracterizaria por ser uma leitura
imprecisa, marcadamente oral, coletiva e destituída do registro. Fazendo este
contraponto e entendendo o comércio como progresso, resta ao mito ficar restrito às
culturas entendidas como primitivas, enquanto as culturas entendidas como mais
avançadas, evoluíram para uma cultura marcada pelo uso da razão. A segunda ideia
a destacar, é como a escrita será fundamental para o mercador na sua prática
99
Goody (2000) destaca que a ascensão do Ocidente tem sido com frequência associada, pelos Ocidentais, à posse de uma racionalidade não acessível aos outros povos. Segundo este autor, esta noção assumiu duas configurações principais. Uma que considera herdeira da racionalidade grega e a outra, herdeira do Renascimento ou do Iluminismo. Seja de uma ou de outra, considera-se que estas formas de racionalidade permitiram ao Ocidente liderar os desenvolvimentos econômicos e intelectuais dos tempos modernos.
100 Comblin (1986) comenta que se deve já ao helenismo a formação na Igreja de uma classe de intelectuais e que a teologia ocidental assimilou todos os métodos de raciocínio e argumentação recebidos da antiguidade e desenvolveu-os. E acrescenta ainda Comblin que com a teologia se aprofunda a separação entre a vida cristã e a teoria. A teologia se distancia dos pobres, e os teólogos acabam se aproximando mais das classes dirigentes.
146
devocional. Até então, a manifestação religiosa ocorria em relação de comunhão a
uma sociedade que exigia a participação do crente cumprindo sua função como
corpo social. Desestruturada esta sociedade pelas novas práticas mercantis e com o
advento do individualismo como característica dessa nova mentalidade mercantil, a
pessoa agora, busca através de um esforço individual, agradar a Deus. Isto, porém,
não é mais uma prática coletiva, mas se baseia na adequação às doutrinas
estabelecidas pela instituição, através de um conjunto sistemático de regras,
doutrinas e ritos, estabelecidos por escrito e que serão critérios a serem seguidos
pelo crente.
6.2 O grande comércio, as letras e a modernidade
Todo este processo de constituição histórica do comércio europeu, alicerçado
pelo processo paralelo de difusão da escrita, fará com que nasça na Europa, o
período denominado de Modernidade. Dussel (1993) dirá que, embora este
fenômeno já venha ocorrendo dentro das cidades europeias medievais, ele se
constituirá historicamente com a expansão colonial da Espanha e Portugal, rumo à
América na busca de novos territórios. Complementa este autor que foi a primeira
experiência europeia em constituir o “outro” como dominado, ou seja, a Europa se
constitui, pela primeira vez, como centro101 do mundo sobre a periferia ameríndia,
culminando não só com o nascimento da Modernidade, mas dirá Dussel, com a
origem de um grande “Mito”. O mito da modernidade. E isto só será possível, à
medida que for se constituindo, não apenas como um fato material, mas também
espiritual, um processo de constituição da subjetividade moderna europeia e que
traz no seu bojo uma visão de mundo determinada e sustentada no que Dussel
chama de uma “falácia desenvolvimentista”, conceito que vai sendo construído por
grandes e influentes pensadores europeus. Kant, por exemplo, ao ser indagado
sobre o significado de ilustração, responde o seguinte: “Ilustração é a saída por si
mesma da humanidade de um estado de imaturidade culpável... A preguiça e a
covardia são as causas pelas quais a grande parte da humanidade permanece
perigosamente nesse estado de imaturidade” (DUSSEL, 1993, p. 17).
101
Dussel (1993) argumenta que no século XV até a chegada à América, a Europa Ocidental não passava de um mundo periférico do mundo muçulmano. Territorialmente, não ia além de Viena, ao leste e de Sevilha ao oeste. Sua população não passava de cem milhões de habitantes, inferior ao império chinês sozinho.
147
Nota-se como sua definição está impregnada de uma generalização comum
ao pensamento europeu que é estendido para o restante dos habitantes do mundo.
O conceito de humanidade, por exemplo, é um conceito considerado a partir de uma
visão restrita de seu significado, mas estendido para toda humanidade em geral.
Quem não se adequar ao conceito europeu, está excluído do conjunto dos que
pertencem à humanidade.
Na mesma direção de raciocínio, Dussel reproduz outro pensador que será
decisivo na construção de um ideário metafísico europeu e de grande influência no
pensamento contemporâneo europeu e mundial. Trata-se de Hegel e sua
surpreendente obra Lições sobre a Filosofia da História Universal onde dá
indicações sobre a ilustração, questão anteriormente proposta a Kant. Responde
Hegel com as seguintes palavras:
A história universal representa... o desenvolvimento da consciência que o Espírito tem de sua liberdade e também a evolução da realização que esta obtém por meio de tal consciência. O desenvolvimento implica uma série de fases, uma série de determinações da liberdade, que nascem do conceito da coisa, ou seja, aqui, da natureza da liberdade ao se tornar consciente de si... Esta necessidade e a série necessária das puras determinações abstratas do conceito são estudadas na Lógica. (DUSSEL, 1993, p. 18).
Neste trecho de sua obra, Hegel sinaliza que a História Mundial caminha em
direção à sua auto-realização em um processo rumo à Ilustração. Para construir este
processo, Hegel revela ontologicamente, um conceito fundamental em sua teoria, ou
seja, a ideia de desenvolvimento, responsável, segundo ele, pelo movimento do
conceito até se tornar saber absoluto. Destaca-se ainda, que este conceito é
fundamentalmente uma categoria ontológica e seu movimento rumo ao saber
absoluto é percorrido dialeticamente e sempre de forma linear. Contudo, é
fundamental destacar que para Hegel, a História Universal onde o desenvolvimento
da consciência ocorre, é restrita a uma leitura espacial característica dos europeus
no período Moderno, delimitando o movimento da História, excluindo da História
Mundial a África e América Latina. Dussel reproduz outro trecho significativo nas
Lições sobre a Filosofia da História Universal:
A história universal vai do Oriente para o Ocidente. A Europa é absolutamente o fim da história universal. A Ásia é o começo... O mundo se divide em Velho Mundo e Novo Mundo. O nome Novo Mundo provém do fato de que a América... não foi conhecida até há pouco pelos europeus. Mas não se acredite que a distinção é puramente externa. Aqui a divisão é
148
essencial. Este mundo é novo não só relativamente, mas também absolutamente; o é com respeito a todos os seus caracteres próprios, físicos e políticos... O mar de ilhas, que se estende entre a América do Sul e a Ásia, revela certa imaturidade no tocante também a sua origem... A Nova Holanda também não deixa de apresentar características de juventude geográfica pois se, partindo das possessões inglesas, penetramos em seu território, descobrimos enormes rios que ainda não abriram seu leito... Da America e de seu grau de civilização, especialmente no México e Peru, temos informação a respeito de seu desenvolvimento, mas como uma cultura inteiramente particular, que expira no momento em que o Espírito se aproxima dela... A inferioridade destes indivíduos é, em tudo, inteiramente evidente. (DUSSEL, 1993, p. 18-19).
Novamente Hegel desenvolve uma explicação ontológica para justificar
culturalmente as diferenças entre as culturas. A distinção entre os mundos, dirá ele,
ocorre fundamentalmente por uma diferença essencial. As diferenças são absolutas,
estão na gênese do ser e não relativas às experiências históricas vividas pelas
pessoas e, portanto, relativas às vivências. E disto, decorrem todos os outros
caracteres próprios dos seres, como, por exemplo, as características físicas e
políticas. Em relação as culturas do México e Peru, sua observação é sintomática.
Primeiro, seu conceito de civilização aparece com um significado dado e, portanto,
referência para determinar o “grau” civilizatório destes povos. Em seguida,
constatado um determinado desenvolvimento, este não passa de um desvio em
relação a ideia absoluta de desenvolvimento. No momento em que esta cultura
particular se confronta com a ideia absoluta de cultura (o Espírito), ela se expira. Por
isso, para Hegel, a América fica fora da História Mundial.
Com relação à África, Hegel também a desqualifica demonstrando com toda a
frieza característica do pensamento europeu do início do século XIX. Dussel (1993)
dirá que as páginas que Hegel escreveu sobre a África, devem ser lidas com muito
senso de humor, pois estão carregadas de ideologias racistas e uma infinita
superioridade. Entende-se, que sua leitura, no entanto, deve ser compreendida
como resultante de um contexto histórico que o cercava e sob um fundo ontológico
que justifica sua fala objetiva. Sob o ponto de vista ontológico, não há preconceitos,
mas uma base teórica fundada numa leitura de mundo vista como referência de
análise. Sua precisão deve ser a oportunidade para se compreender com
profundidade, a força da crença europeia em uma cultura que acreditava estar
portando a expressão do real em seus conceitos. Por isso, antes de um julgamento,
cabe uma compreensão do homem europeu do século XIX, herdeiro de uma cultura
149
que mostra suas características de forma muito clara e objetiva. Assim também pode
ser entendida a seguinte leitura de Hegel sobre a África:
A África é em geral uma terra fechada, e conserva este seu caráter fundamental. Entre os negros é realmente característico o fato de que sua consciência não chegou ainda à intuição de nenhuma objetividade, como, por exemplo, Deus, a lei, na qual o homem está em relação com sua vontade e tem a intuição de sua essência... É um homem em estado bruto... Este modo de ser dos africanos explica o fato de eles serem tão extraordinariamente facilmente fanatizados. O Reino do Espírito entre eles é tão pobre e o Espírito tão intenso que basta uma representação que lhes é inculcada para levá-los a não respeitar nada, a destroçar tudo... A África... não tem propriamente história. Por isso abandonamos a África para não mencioná-la mais. Não é uma parte do mundo histórico; não representa um movimento nem um desenvolvimento histórico... O que entendemos propriamente por África é algo isolado e sem história, sumido ainda por completo no espírito natural, e que só pode ser mencionado aqui, no umbral da história universal”. (DUSSEL, 1993, p. 19-20).
Na certeza das palavras de Hegel, é que se pode compreender a consistência
da cultura europeia. Segundo a ontologia, representada aqui pelo testemunho de
Hegel, os africanos estavam de fato distantes de uma teologia sistematizada como
aquela europeia construída ao longo de séculos, bem como, distantes de um
conhecimento objetivo, elemento fundamental para a elaboração do registro dos
acontecimentos, critério necessário para que se considere uma sociedade com
história, já que o texto para o cientista, é o documento chave para entender o
processo evolutivo de uma determinada sociedade, em especial, naquele contexto
do século XIX. Por isso, cabe a África, no máximo, ser mencionada na história
universal.
Quanto a Ásia, acaba por também desempenhar um papel introdutório no
desenvolvimento da História Universal. Goody (2000) em seu livro O Oriente no
Ocidente dirá que um sentimento de superioridade com explicações circunstanciais
se tornará uma superioridade de longa data, uma verdade quase biológica. Ou seja,
a ideia de superioridade dos europeus em relação a outros povos baseado no
desenvolvimento do comércio, no avanço da renascença, na revolução científica e
no iluminismo, restritos ao período moderno, será justificativa para os europeus
alimentarem uma ideologia de superioridade quase que eterna e isto com
justificativas históricas. Por exemplo, na história do pensamento Ocidental, o Oriente
sempre foi depreciado e como justificativa basta recuperar um acontecimento na
antiguidade conhecido como as “guerras médicas”, que marcou o confronto entre os
150
gregos e persas102. Segundo a compreensão da grande maioria dos historiadores do
Ocidente, este confronto teria sido vencido pelos gregos culminando em 449 a.C.
com a assinatura de um acordo de paz (paz de Calias) pelo qual os persas
derrotados, abandonaram o mar Egeu103. Segundo Goody (2000), esta versão da
história fez com que os asiáticos, em contraste com a democracia grega, fossem
associados ao modelo de uma autoridade despótica e bárbara, visão que prevalece
até os dias atuais e continua sendo útil na depreciação dos povos do Oriente.
Também na filosofia encontramos um exemplo desta associação ainda na
antiguidade quando na obra a Política, Aristóteles afirma que os “povos não
civilizados, incluindo os asiáticos, são mais servis do que os Gregos ou os
Europeus”. (GOODY, 2000, p. 11).
E este pensamento segue pela história, ainda com grandes pensadores do
mundo Ocidental. Montesquieu, por exemplo, é outro autor que na sua obra Espírito
das Leis opôs o gênio de liberdade que caracteriza o europeu e ao “espírito” de
servidão que caracteriza o asiático. Assim se manifesta o autor:
Na Ásia, sempre encontramos grandes impérios; na Europa, eles nunca puderam subsistir. É que, na Ásia que conhecemos, estão situadas as maiores planícies; e é cortada em maiores porções pelos mares e, como está localizada mais ao sul, as fontes aí secam mais facilmente, as montanhas são menos cobertas de neve e rios menos caudalosos formam barreiras menores. Na Ásia, o poder deve sempre ser despótico, pois, não sendo a servidão tão extremada, ocorreria logo uma divisão que a natureza da região não poderia suportar. Na Europa, a divisão natural forma vários Estados de extensão média, nas quais o governo das leis não é incompatível com a manutenção do Estado, sendo, pelo contrário, tão favorável, que, sem elas, este Estado cairia na decadência e tornar-se-ia inferior a todos os demais. Foi isso que originou um espírito de liberdade que torna cada parte muito difícil de ser subjugada e submetida a uma força estrangeira, a não ser pelas leis e pela utilidade de seu comércio. Pelo contrário, na Ásia reina um espírito de servidão que nunca a abandonou e, em todas as histórias desse continente, não é possível encontrar um só traço que marque uma alma livre; aí nunca se verá senão o heroísmo da servidão. (MONTESQUIEU, 1985, p. 242).
102
Segundo Vicentino (1997) enquanto Atenas fortalecia sua estrutura democrática, os persas, que dominavam grande parte do Oriente, avançaram ao oeste em território grego, dando início as Guerras Médicas de 490 – 479 a.C.
103 Vidal no seu livro Criação relata outra versão da guerra, a partir de um sacerdote persa educado segundo a disciplina militar da corte persa, chamado Ciro Espítama. Dirá ele: “Sou cego, mas não sou surdo. E por não ser total a minha desgraça, fui obrigado, ontem, a ouvir durante quase seis horas um pretenso historiador cujo relato daquilo que os atenienses costumam chamar “As Guerras Persas” era tão disparatado que, fosse eu menos velho e mais favorecido, me teria levantado do assento no Odeon e escandalizado toda a cidade de Atenas com minha resposta”. (VIDAL, 1987, p. 15).
151
Smith na sua obra A riqueza das Nações segue um raciocínio muito
semelhante a de Montesquieu e também reforça o mesmo conceito em relação aos
povos orientais. Diz o seguinte:
As regiões interiores da África, como aliás toda a parte da Ásia que se encontra consideravelmente ao Norte da ponte Euxino e do mar Cáspio e a antiga Cítia, a moderna Tartária e a Sibéria, parecem ter permanecido, em todas as épocas da história, num estado tão bárbaro e pouco civilizado como o que apresentam hoje. (SMITH, 1984, p. 19).
Como podem atestar os textos anteriores, a Ásia desempenhará, no processo
do desenvolvimento da História Mundial, um papel, no dizer de Dussel, introdutório e
até, infantil. Por exemplo, o despotismo permite somente ao imperador ser livre. Os
povos estão condenados a um espírito de servidão. Montesquieu, como vimos, dirá
que é comum encontrarmos na Ásia os grandes impérios e isto porque a geografia
do lugar não permitiria nada diferente. O poder deve sempre ser despótico para
assegurar a servidão extremada, já que sem ela, ocorreria uma divisão que a
natureza da região não suportaria. No caso da Europa, a divisão natural possibilitou
o surgimento de vários Estados menores e compatíveis com as leis. Isto possibilitou
o espírito de liberdade característico do europeu. Na Ásia, ao contrário, reina um
espírito de servidão.
Dussel recupera mais um trecho da obra de Hegel nas Lições sobre Filosofia
da História Universal que ajuda a entender como para ele não existe dúvidas quanto
a superioridade europeia e seu alto grau de desenvolvimento em relação a qualquer
outra cultura. Dirá ele sobre os povos germânicos:
A significação ideal superior é a do espírito, que volta a si mesmo, desde o embotamento da consciência. Surge a consciência da justificação de si mesmo, mediante o restabelecimento da liberdade cristã. O princípio cristão passou pela formidável disciplina da cultura; e a Reforma lhe dá também em seu âmbito exterior, com o descobrimento da América... O princípio do Espírito livre se fez aqui bandeira do mundo, e a partir dele se desenvolvem os princípios universais da razão... O costume e a tradição já não valém; os diferentes direitos precisam se legitimar como fundados em princípios
racionais. Assim se realiza a liberdade do Espírito. (DUSSEL, 1993, p. 21).
Para Hegel, portanto, a Europa está plena e não só não necessita, como
também, nada tem a aprender com relação as outras culturas. No dizer de Dussel,
“tem um princípio em si mesma e é sua plena realização” (DUSSEL, 1993, p. 21). Na
verdade, é esta cultura onde se desenvolvem os princípios universais da razão, que
152
possui o direito de propagá-los para outros povos de culturas consideradas
atrasadas. Assim se pronuncia Hegel com relação a este direito na sua obra
Enciclopédia, citada por Dussel:
Porque a história é a configuração do Espírito em forma de acontecimento, o povo que recebe um tal elemento como princípio natural... é o povo dominante nessa época da história mundial... Contra o direito absoluto que ele tem por ser o portador atual do grau de desenvolvimento do Espírito mundial, o espírito dos outros povos não tem direito algum. (DUSSEL, 1993, p. 22).
É tentador, num primeiro momento, ao entrar em contato com a obra destes
pensadores representantes da cultura do Ocidente, fazer uma análise valorativa do
conteúdo dos textos apresentados até aqui. Mas é justamente o que se tem que
evitar, para se entender com clareza o que se quer destacar neste momento. A fala
contundente de Hegel, por exemplo, retrata um pensador muito seguro de suas
convicções, na medida em que, reproduz o pensamento do homem europeu do
início do século XIX, de uma Europa em plena expansão industrial e de conquista de
novos territórios. Do ponto de vista teórico, suas ideias estão alicerçadas por uma
ontologia de séculos que se caracteriza por acreditar na identidade do real com o
conceito. Portanto, da mesma forma que expande seu comércio para outros
territórios, tem também o direito e o dever, de contribuir para o desenvolvimento da
cultura de povos que ainda vivem na barbárie e no obscurantismo. E neste momento
histórico, o povo dominante nessa época, portadores do grau mais elevado de
desenvolvimento do espírito, não são outros que os europeus.
153
CAPÍTULO 7 - O DESENCANTAMENTO DO CONCEITO
“O desencantamento do conceito é o antídoto a Filosofia.” (ADORNO, 2009,
p. 19).
Deseja-se neste momento, resgatar duas ideias trabalhadas anteriormente: a
contribuição antropológica de Heidegger e a teoria do pensamento oriental quanto
aos conceitos e palavras. Quanto ao primeiro, deseja-se destacar sua concepção
antropológica que compreende o homem como ser no mundo e ser de projeto.
Decorre desta concepção, a impossibilidade de se pensar uma essência que se
identifique com a existência, ou seja, pré-determinada. Portanto, o ser se faz
existindo, realizando suas diferentes possibilidades. Segundo esta visão
antropológica que deve ser compreendida a linguagem. Também ela deve ser
entendida como construção existencial onde o enunciado não é dado a priori, mas é
resultado de uma construção com os outros seres. E esta história com os outros
seres, que vai sendo construída, determina a compreensão que se terá da realidade
e sua expressão através do enunciado, será resultado desta história. Já com relação
ao pensamento oriental, muito menos se teve a pretensão de buscar compreendê-lo
com alguma profundidade, mas sim, destacar a leitura que faz especificamente
sobre as palavras e o conceito. Estes são vistos como símbolos que conduzem à
verdade, mas, o que é fundamental, não são a verdade, já que entende-se que cada
civilização, cada época deve conceber seus próprios símbolos. Por exemplo, não se
pode pedir Deus emprestado, já que sua encarnação deve ser efetivado a partir das
próprias entranhas. Deve descer na matéria de nossa própria existência.
Estas duas teorias, entende-se, só são possíveis a medida que estejam
baseadas em uma concepção metafísica diversa daquela que se baseia Hegel, por
exemplo, para se fundamentar na construção de uma visão histórica como vista no
capitulo anterior deste trabalho.
É neste momento que se busca a contribuição de Adorno104, importante
pensador contemporâneo. A escolha deste pensador se justifica por sua contribuição
no questionamento a duas grandes referências que deram direção ao pensamento
104
Theodor Wiesengrund-Adorno nasceu em 1903, em Frankfurt, cidade onde se graduou em filosofia. Em Viena estudou música. Escreveu entre outras obras, a Dialética do Esclarecimento, em colaboração com Horkheimer, Dissonâncias, Dialética Negativa, Teoria Estética e Três Estudos sobre Hegel. Em 1933, fugindo dos nazistas, refugiou-se na Inglaterra e, depois, Estados Unidos. Em 1950, retornou a Frankfurt, onde morreu em 1969. (Coleção Os Pensadores, 1996).
154
Ocidental ao longo dos séculos e que foram desenvolvidas neste trabalho, estando
presentes o tempo todo como pano de fundo de nossas reflexões. Trata-se,
primeiramente, da relação entre o mito e a razão e a maneira como o pensamento
Ocidental administrou esta relação, construindo uma racionalidade que
aparentemente se distanciava do mito, mas que acaba por retornar a ele. Adorno
com a colaboração de Horkheimer, através da obra “Dialética do Esclarecimento”,
vai desenvolvendo o processo de sistematização de uma racionalidade que, a
princípio, visava a emancipação dos indivíduos e o progresso social, mas que
resultou numa razão instrumental que terminou por levar a uma dominação maior
das pessoas. Em segundo lugar, trazer à luz sua reflexão sobre o conceito, que,
segundo Adorno, é o grande instrumento de atuação da filosofia. Numa cultura que
tem a escrita como referência, o documento escrito adquire uma importância
fundamental na construção do conhecimento, seja na filosofia, na história, ou em
qualquer outra área do saber. A reflexão sobre o conceito, portanto, ganha
importância fundamental e Adorno ao propor a dialética insistindo na sua negação,
evidencia o “outro”, o não-conceitual como elemento fundamental no processo de
construção do conhecimento. O que para Dussel, representou o “ser negado” na
história, para Adorno, será a negação necessária para que o “outro” seja respeitado
por aquilo que é.
Adorno, produziu em parceria com Horkheimer105, a obra Dialética do
Esclarecimento106 (1947), onde fazem uma dura crítica ao iluminismo que estimulou
o desenvolvimento de uma razão instrumental a serviço da dominação e não da
emancipação do homem. Começam expondo de maneira muito objetiva, qual a
grande proposta do esclarecimento, tocando numa questão complexa e que marcou
e ainda marca a história do pensamento Ocidental e se tornou objeto de grandes
debates. Dizem eles: “o programa do esclarecimento era o desencantamento do
mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 17). O conhecimento que o homem vai
105
Max Horkheimer (1895-1973) desenvolveu em parceria com Adorno, uma crítica às promessas de libertação contidas no iluminismo e como foram transformadas em instrumentos de dominação. Escreveu também Teoria Tradicional e Teoria Crítica (1937) e Filosofia e Teoria Crítica (1937). (Coleção Os Pensadores, 1983)
106 O titulo original é Dialética do Iluminismo, mas na edição brasileira, optou-se por “esclarecimento”
na tradução da palavra alemã “Aufklärung”. Entende o tradutor que a expressão “esclarecimento”, é mais fiel ao significado histórico-filosófico, bem como, ao sentido mais amplo que o tema encontra nos autores e na língua alemã (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 07)
155
adquirindo sobre o mundo que o cerca, vai vencendo a superstição e possibilitando
o domínio sobre uma natureza cada vez mais desencantada pela razão:
A técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o capital(...). O que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente a ela e aos homens. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 18).
Esta seria a marca do homem e o que determina sua superioridade, ou seja, a
sua capacidade de saber. Poder e conhecimento107 passaram a ser sinônimos. A
matéria agora deve ser dominada e o que não se submeter ao critério do cálculo e
da utilidade, características que vão adquirindo consistência com a expansão
mercantil, torna-se suspeito: “No trajeto para ciência moderna, os homens
renunciaram ao sentido e substituíram o conceito pela fórmula, a causa pela regra e
pela probabilidade.” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 18).
E a lógica formal de Aristóteles, será a grande escola da unificação já que
oferecia o esquema da calculabilidade, tão importante para os homens de negócios
naquele momento em particular. Com as ideias de Platão, também os deuses serão
incorporados pelo logos filosófico. Vale realçar a referência aos dois grandes
pensadores da antiguidade clássica grega como modelos para a construção de uma
racionalidade que entende ter o poder elaborar uma teoria que possa conduzir a
verdade na sua totalidade, ou seja, possa ser válida universalmente, por que
representa conceitualmente, a verdadeira realidade:
Doravante, a matéria deve ser dominada sem o recurso ilusório a forças soberanas ou imanentes, sem a ilusão de qualidades ocultas. O que não se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 19).
Em outras palavras, o esclarecimento tende a deduzir tudo e cada coisa,
reduzindo a multiplicidade em ordem, a história ao fato e as coisas à matéria.
Mesmo o mito, entendido como contraponto ao pensar lógico, será visto neste
contexto histórico como produto do próprio esclarecimento:
107
Talvez nenhum pensador moderno tenha expressado melhor esta ideia como Francis Bacon. Dirá em sua obra Novum Organum: “Ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frustra-se o efeito. Pois a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece. E o que à contemplação apresenta-se como causa é regra na prática”. (BACON, 1984, p. 13).
156
No cálculo cientifico dos acontecimentos anula-se a conta que outrora o pensamento dera, nos mitos, dos acontecimentos. O mito queria relatar, dominar, dizer a origem, mas também expor, fixar, explicar. Com o registro e a coleção dos mitos, essa tendência reforçou-se. Muito cedo deixaram de ser um relato, para se tornarem uma doutrina. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 20).
O mundo, enfim, é submetido ao domínio dos homens. O mito é transformado
em esclarecimento e a natureza, por sua vez, em objetividade108. A expressão que
os autores acabam utilizando é que o esclarecimento comporta-se com as coisas
como o ditador com os homens. Este os conhece na medida em que pode manipulá-
los. Assim, a essência das coisas revela-se como substrato da dominação.
Mas se de um lado, os mitos já levam a cabo o esclarecimento, Adorno e
Horkheimer dirão que também o esclarecimento fica cada vez mais enredado na
mitologia: “Todo conteúdo, ele o recebe dos mitos, para destruí-los, ao julgá-los, ele
cai na órbita do mito” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 23). Na obra Dialética
Negativa, Adorno diz que a doutrina das ideias de Platão foi fundamental para a
desmitologização, mas que quando Platão eterniza as essencialidades, necessárias
para o processo de dominação da natureza, ele repete o mito. Portanto, para não se
retornar ao mito, se faz necessário estender a desmitologização a essa dominação.
Compreender esta fala de Adorno significa voltar às origens do pensamento
Ocidental, já que o corte epistemológico realizado pelos gregos ao romperem com o
mito, é que garantiu ao Ocidente, através do método científico, a possibilidade do
saber objetivo. Dizer que o esclarecimento está envolvido na órbita do mito, é um
duro golpe na tradição Ocidental. E continua os autores:
Assim, a universalidade dos pensamentos, como a desenvolve a lógica discursiva, a dominação na esfera do conceito, eleva-se fundamentada na
108
René Descartes, na sua obra Discurso do Método, expressa, de maneira bem precisa, um método na busca pelo saber científico. Propõe no seu método quatro passos: “O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida. O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las. O terceiro, o de conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros. E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada omitir.” (DESCARTES, 1983, p. 37-38).
157
dominação do real109
. É a substituição da herança mágica, isto é, das antigas representações difusas, pela unidade conceptual que exprime a nova forma de vida, organizada com base no comando e determinada pelos homens livres. O eu, que aprendeu a ordem e a subordinação com a sujeição do mundo, não demorou a identificar a verdade em geral com o pensamento ordenador(...). Juntamente com a magia mimética, ele tornou tabu o conhecimento que atinge efetivamente o objeto. Seu ódio volta-se contra a imagem do mundo pré-histórico e sua felicidade imaginária. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 25).
Se até então o homem vivia com medo porque desconhecia, a partir de agora
está o homem liberto, já que o desconhecido não lhe assusta mais. O
esclarecimento seria, portanto, a radicalização da angústia mítica. A herança mágica
ligada ao mito é vista como difusa e desorganizada. Caberia ao pensamento lógico,
organizar e subordinar leituras mágicas ao discurso racional ordenador. Isto quer
significar, a superação de um mundo considerado pré-histórico e desorganizado.
Fica evidente neste raciocínio que caracteriza o pensamento moderno, a maneira
como as ideias vão sendo construídas. A leitura mítica esta diretamente relacionada
a uma realidade marcada pela desordem, em oposição a um pensamento
estruturado logicamente e organizado, o que sugere ser o pensamento das
sociedades distantes da lógica ordenadora, como pré-lógicos. A escrita, como já
discutido anteriormente, entra neste “pacote” como mais um elemento de distinção já
que o texto possibilita explicitar objetivamente, se um discurso conserva sua
característica lógica, fato este, que não permite, porém, deduzir a inexistência da
lógica nas sociedades sem a escrita.
É neste contexto que se entende a nova função das palavras. Inicialmente,
tinha a função de imagem, função esta, transferida, posteriormente, aos mitos. Com
a separação da ciência e da poesia, a palavra chega à ciência como signo e
enquanto signo, a linguagem deve-se resignar-se ao trabalho ordenador e ao
cálculo. Adorno e Horkheimer afirmam que o abismo entre o signo e a imagem, a
filosofia enxerga na relação conceito e intuição e que na maioria das vezes a
filosofia se colocou do lado do conceito110: “Platão fez questão de banir a poesia com
109
Bachelard dirá que: “Nada prejudicou tanto o progresso do conhecimento científico quanto a falsa doutrina do geral, que dominou de Aristóteles a Bacon, inclusive, e que continua sendo, para muitos, uma doutrina fundamental do saber. [...] Diríamos mais: a filosofia tem uma ciência que é só dela, a ciência da generalidade. Vamos procurar mostrar que a ciência do geral sempre é uma suspensão da experiência, um fracasso do empirismo inventivo. Conhecer o fenômeno geral valer-se dele para tudo compreender, não será semelhante à outra decadência, gozar, como a multidão, do mito inerente a toda banalidade?” (BACHELARD, 1996, p. 69).
110 Segundo Havelock (1996) esta mudança nos meios de comunicação social entre os seres
humanos tornou-se o meio de introduzir um novo estado mental, a mente alfabética. O alfabeto
158
o mesmo gosto que o positivismo baniu a doutrina das ideias.”111 (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 28).
Adorno era músico e via no campo da arte112, um reduto autêntico para uma
crítica ao esclarecimento. Por isso tinha na teoria estética um refúgio na busca por
uma razão emancipatória. Já o mundo burguês, dirão Adorno e Horkheimer, quando
limitava-se o saber, abria-se espaço não para a arte, como propuseram muitos
outros pensadores como, por exemplo, Schelling113, mas sim, para a fé: “Só muito
raramente o mundo burguês esteve aberto a semelhante confiança na arte. Quando
ele limitava o saber, isso acontecia via de regra, não abria espaço para a arte, mas
para a fé.” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 29). Será através da fé que se
tentará reconciliar o espírito e a vida. Mas sendo a fé dependente da limitação do
saber, ela própria ficará limitada. Assim, a tentativa da fé de encontrar o princípio da
verdade que a transcende teve como preço a obediência à palavra114. Palavra esta,
que deu ao discurso teológico uma sistematização, possibilitando criar uma teoria
religiosa descontextualizada e universal.115 Dirão Adorno e Horkheimer (1985) que
quando a linguagem penetra na história, quem violar os símbolos fica sujeito às
converteria a língua grega falada num artefato separando-a do locutor e tornando-a uma linguagem disponível para análise. Dirá Havelock que se fosse possível designar o novo discurso por uma palavra, o termo seria conceitual. Enquanto a fala iletrada favoreceria o discurso descritivo da ação, a pós-letrada alteraria o equilíbrio em favor da reflexão. Para, Havelock, o espírito integral da literatura e da filosofia ocorre como uma tensão dinâmica entre os dois, mas concorda que depois de Platão, a balança pendeu para a escrita.
111 Em todas as suas observações, para Platão a arte é uma imitação das realidades sensíveis.
Como as coisas sensíveis são imitações das ideias originais, logo a arte será imitação da imitação e, portanto, mais distante da verdade. Para saber mais sobre a arte em Platão, ler o livro décimo de A República.
112 Para uma leitura agradável sobre as tensões entre a poesia e a metafísica, na busca de exprimir o
inexprimível, ler o artigo de Pucci (2010): Para Rosa com Adorno: a luta agônica da palavra e do conceito em busca do ‘quem’ das coisas.
113 Adorno dirá que a arte como expressão da totalidade, reclama a dignidade do absoluto. Isto teria
levado às vezes a filosofia a atribuir-lhe prioridade em face do conhecimento conceitual. É o que ocorre com Friedrich Von Schelling (1775-1854) geralmente apontado como a mais pura expressão do romantismo e que sugere que é a arte que entra em ação quando o saber desampara os homens. Para Schelling, a separação da imagem e do signo é totalmente suprimida por cada representação artística.
114 Comblin (1986) destaca que apesar da resistência consciente e voluntária, ocorre uma grande
penetração do helenismo no cristianismo. Foi uma helenização do cristianismo e uma cristianização do helenismo. Esta foi a condição para a evangelização. Dirá este autor que não podia ser diferente, já que o cristianismo somente pode existir incorporado numa cultura. Jesus encarna no povo de Israel e mostra que nem mesmo ele, juntamente com a vivência da palavra, poderia estar fora de uma cultura.
115 Hinkelammert alerta para o seguinte: “A suspeita foi que se o sistema capitalista pode aparecer
envolto num ‘aroma religioso’ é justamente por sua capacidade de produzir e reproduzir não só mais-valia e classes sociais, mas também seu próprio universo simbólico, sua própria espiritualidade, sua própria religião. Essa religião, e não outra, é a que passa a ser a religião dos Estados, a religião oficial com seus próprios mistérios e virtudes, com sua própria ética, prêmios e castigos.” (HINKELAMMERT, 1983, p. 08)
159
potências terrenas. É o que acontece com a religião o que a torna o instrumento
preferido nos tempos modernos116 para impor a verdade117:
Não foi como exagero, mas como realização do próprio princípio de fé que se cometeram os horrores do fogo e da espada, da contrarreforma e da reforma. A fé não cessa de mostrar que é do mesmo jaez que a história universal, sobre a qual gostaria de imperar; nos tempos modernos, ela até mesmo se converte em seu instrumento preferido, sua astúcia particular. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.29).
Os símbolos assumem a expressão de fetiche e a forma dedutiva da ciência
reflete a hierarquia e a coerção. Os conceitos filosóficos nos quais Platão e
Aristóteles expõem o mundo, dirão os autores, exigiram com sua pretensão de
validade universal, as relações por elas fundamentadas como a verdadeira e efetiva
realidade. A própria linguagem conferia ao que era dito, isto é, às relações de
dominação, aquela universalidade que ela tinha assumido como veículo de uma
sociedade civil:
A unidade de coletividade e dominação mostra-se antes de tudo na universalidade que o mau conteúdo necessariamente assume na linguagem, tanto metafísica quanto no científico(...). Na imparcialidade da linguagem cientifica, o impotente perdeu inteiramente a força para se exprimir, e só o existente encontra aí seu signo neutro. Tal neutralidade é mais metafísica que a metafísica. O esclarecimento acabou por consumir não apenas os símbolos, mas também os seus sucessores, os conceitos universais. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.31).
Com relação à linguagem, Adorno, na parte I, da obra Dialética Negativa, em
diálogo com Heidegger, manifesta a dificuldade em se discutir esta questão: “tudo
aquilo que é pensado também é linguístico, o nominalismo irrefletido é tão falso
quanto o realismo que entrega à linguagem falível os atributos da linguagem
116
Dussel dirá que “todo o sistema (desde as formações sociais primitivas, até as nações ou impérios atuais) chega a um momento em que se totaliza, se estrutura auto-suficiente. A religião como conjunto de mediações simbólicas e gestos rituais, como doutrina explicativa do mundo e referência ao absoluto (seja qual for), vem a ser um momento essencial deste ‘fechamento’ do sistema sobre si mesmo(...) A totalização do sistema é um processo de divinização(...) Na modernidade, por sua parte, o ego cogito cartesiano é interpretado por Spinoza como um modalidade da Única substancia do próprio Deus; Em Hegel o cogito absoluto é Deus como Wissen, trazido pelo Império de turno (em seu tempo o império anglo-germano)”. (DUSSEL, 1980, p. 119).
117 Comblin (1986) diz que a modernidade deixou de lutar contra as Igrejas e descobriu que é muito
mais rentável penetrá-la e adaptá-la, por dentro, ao seu espírito. Um exemplo foi o desenvolvimento da doutrina do purgatório a partir dos séculos XII e XIII. Não aceitando a dicotomia, ricos para o inferno e pobres para o céu, foi preciso inventar uma via para eles. À ética contrária aos juros, pagava-se pelo purgatório, ou pelas obras que reduziam as penas a quase nada. Conclui Comblin, a contabilidade das obras relacionadas com o purgatório convinha com a mentalidade mercantil.
160
revelada” (ADORNO, 2009, p. 101). E complementa destacando a compreensão que
Heidegger dá a linguagem: “Heidegger tem a seu favor o fato de não haver nenhum
em si sem linguagem; portanto, de a linguagem estar na verdade, e não esta na
linguagem como algo meramente designado por ela” (ADORNO, 2009, p.101).
De posse de desta universalização do conceito utilizada segundo os
interesses de dominação, quanto mais o pensamento subjuga o que existe, tanto
mais cegamente ele se contenta com essa reprodução, regredindo à mitologia da
qual o esclarecimento jamais soube escapar, porque, como já se falou, teria que
refletir sobre seus próprios interesses de dominação para poder desmitologizá-la.
Com a difusão da economia mercantil burguesa, o horizonte sombrio do mito vai
sendo incorporado pela da razão calculadora. E concluem Adorno e Horkheimer:
Pensando, os homens distanciam-se da natureza a fim de torná-la presente de modo a ser dominada. Semelhante à coisa, à ferramenta material – que pegamos e conservamos em diferentes situações como a mesma, destacando assim o mundo como caótico, multifário, disparatado do conhecido, uno, idêntico – o conceito é a ferramenta ideal que se encaixa nas coisas pelo lado por onde se pode pegá-las. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 43).
É este conceito instrumentalizado a serviço da dominação que carrega
consigo o princípio de identidade entre o pensamento e a realidade, que será objeto
de Adorno na sua obra Dialética Negativa. Já no prefácio, explicita o seu grande
objetivo:
A expressão ‘dialética negativa’ subverte a tradição. Já em Platão, ‘dialética’ procura fazer com que algo positivo se estabeleça por meio do pensamento da negação; O presente livro gostaria de libertar a dialética de tal natureza afirmativa, sem perder nada em determinação. Uma de suas intenções é o desdobramento de seu titulo paradoxal. (ADORNO, 2009 p. 07).
Adorno, nesta obra, faz uma opção pelo Hegel dialético em oposição ao
Hegel sistemático. Como visto no capítulo anterior, Hegel revela ontologicamente um
conceito de desenvolvimento, responsável pelo movimento dos conceitos rumo ao
absoluto. Este desenvolvimento ocorre segundo uma explicação ontológica que é
restrita ao desenvolvimento do continente europeu. A diferença entre os mundos é
fundamentalmente essencial e, portanto, não histórica. Logo, as diferenças são
absolutas, estão na gênese do ser e não relativas às experiências históricas. Neste
sentido, a tendência da dialética da síntese é voltar-se para si, adequando o
161
conceito no momento da síntese. Em a Dialética Negativa, Adorno fará uma opção
de dialogar com Hegel, no entanto, recusando-se a aceitar sua proposta de dialética
sistemática.
Contra a dialética da síntese, Adorno baseia-se na dialética da negação, ou
seja, na dialética que não reconhece a identidade entre a realidade e o pensamento
e que, portanto, exclui as pretensões da filosofia de captar a totalidade do real.
Pode-se dizer, então, que sua obra é um diálogo com Hegel, ao mesmo tempo, que
é uma contraposição. Dialoga com Hegel ao utilizar a negação como mediação na
passagem de um processo a outro na constituição do conhecimento. Mas contrapõe
Hegel, ao adiar a síntese por tempo indeterminado. Também com Hegel, reconhece
que é através dos conceitos que o sujeito conhece o objeto, mas se distancia
quando recusa a identidade entre conceito e real. Ao conceito não é possível captar
o objeto em sua plenitude. Isto quer significar que, embora a filosofia se utilize do
conceito para sua expressão, ela deve renunciar à ilusão de que seria possível pela
força do pensamento, captar a totalidade do real.
O menor resíduo ôntico nos conceitos em torno dos quais a filosofia regular se agarra em vão obriga-a a introduzir de maneira reflexiva o próprio ser-aí, ao invés de se contentar com o seu mero conceito e de arrogar sob o abrigo daquilo que ele designa. O pensamento filosófico não tem por conteúdo depois da suspensão do espaço e do tempo nem restos, nem descobertas genéricas sobre algo espaciotemporal. Ele se cristaliza no particular, em algo determinado no espaço e no tempo. O conceito do ente enquanto tal é apenas a sombra do conceito falso de ser. (ADORNO, 2009, p. 121).
Por isso, não cabe mais à filosofia a pretensão de querer alcançar o objeto na
sua plenitude por que será sempre um desejo frustrado. Somente afirmando a não
identidade entre o ser e o pensamento é que se pode garantir a não camuflagem da
realidade. Somente afirmando a não-identidade entre ser e pensamento é que se
pode esperar desmascarar os sistemas filosóficos que tentam eternizar a realidade.
Assim se expressa Adorno na segunda parte da Dialética Negativa: conceito e
categorias: “na medida em que o caráter fundamental de todo conceito universal se
dissolve ante o ente determinado, a filosofia não tem mais o direito de esperar pela
totalidade” (ADORNO, 2009, p. 120).
E não só é impossível ir à busca deste conceito universal, mas também diante
da fragilidade em não se alcançar a totalidade do objeto, terá ainda o sujeito o
desafio de buscar o que foi reprimido no processo do conhecimento, já que o
162
conceitual esconde, omite o não conceitual. “Para o conceito, o que se torna urgente
é o que ele não alcança, o que é eliminado pelo seu mecanismo de abstração, o que
deixa de ser um mero exemplar do conceito” (ADORNO, 2009, p. 15). Daí a função
da dialética negativa, subverter as falsas seguranças dos sistemas filosóficos que se
iludem no desejo de alcançar a totalidade do real, trazendo para a reflexão aquilo
que elas omitem, ou seja, o não-idêntico, explicitando o diferente que foi
subestimado.
Para a realização deste trabalho, no entanto, a filosofia só terá como arma, a
utilização do próprio conceito para o combate ao conceito. Pucci (2012, p. 5-6), em
seu artigo A dialética negativa enquanto metodologia de pesquisa em Educação:
atualidades, destaca que esta é a expressão chave que sustenta os aforismos da
Dialética Negativa, ou seja, o fato de que a filosofia só pode realizar o
empreendimento de superar o conceito através do próprio conceito. Sugere o autor
algumas citações da obra Dialética Negativa que confirmam esta tese: o conceito
pode ultrapassar o conceito e assim aproximar-se do não-conceitual (2009, p. 16); A
utopia do conhecimento seria abrir o não-conceitual com conceitos (...). (2009, p.
17); Os conceito – mesmo o de Ser da lógica hegeliana – visam algo para além de si
mesmos. (2009, p. 18); A reflexão filosófica assegura-se do não-conceitual no
conceito (2009, p. 19); Na nostalgia ( que anima a arte como algo não-conceitual –
bp) reside o esforço de ir além do conceito por meio do conceito (2009, p. 22); Lá
onde o pensamento se projeta para além daquilo a que, resistindo, ele está ligado,
acha-se a sua liberdade (2009, p. 24); Verdadeiros são os pensamentos que não se
compreendem a si mesmos (2009, p. 48); Somente os conceitos podem realizar
aquilo que o conceito impede (2009, p. 53).
Isto quer significar que os conceitos não-idênticos não conciliados com a
identificação, ou seja, que permanecem como elementos negados, tornam-se os
motores de sua própria desmistificação. Na síntese, o que ocorre, é a ilusão de que
o dessemelhante possa tornar-se idêntico, semelhante, e, portanto dominado. Por
isso, a dialética negativa não se caracteriza por ser idealista, já que o real não se
identifica com o ideal, com a razão. Pelo contrário, a tendência é a direção do objeto,
do real que, por sua vez, não pode ser plenamente racionalizado.
Adorno em conceito e categorias dirá que, por isto, a necessidade de: “se
opor à totalidade, imputando-lhe a não-identidade consigo mesma que ela recusa
segundo o seu próprio conceito” (ADORNO, 2009, p. 128–129). Assim o que propõe
163
Adorno é que a realidade possa ter voz contra a abstração subvertendo os
esquemas organizados pela tradição filosófica que tentam incorporar o não-idêntico
e torná-lo semelhante através da síntese. Portanto, insiste Adorno na negação para
salvaguardar aquilo que é diferente em oposição ao idêntico. Daí a importância do
particular que se determina no espaço e no tempo. Para escapar do heterogêneo, a
ontologia fundamental tende a mantê-lo afastado de toda determinação.
Como visto anteriormente na Dialética do Esclarecimento, a lógica formal
colabora para a unificação construída por uma racionalidade que entende poder
alcançar a verdade na sua totalidade. Viu-se que o esclarecimento tende a reduzir a
multiplicidade, encarada como desordem, em ordenação. No caso da história,
Adorno fará a seguinte observação:
O fato de a história passar por cima de certas posições só é honrado como um juízo sobre o seu conteúdo veritativo por aqueles para os quais a história é o tribunal do mundo. Com muita frequência, aquilo que é eliminado sem ter sido teoricamente absorvido só libera mais tarde o seu conteúdo veritativo. Esse conteúdo torna-se a fraqueza da saúde dominante. (ADORNO, 2009, p. 126).
Este conteúdo a que se refere Adorno significa a coisa não-reconciliada, que
na história é plena de contradições e por isto mesmo, avessa a qualquer tentativa de
uma interpretação que seja unívoca. O real não cabe no conceito. Este propósito
insistente na ordenação, pois tende a levar o historiador, que busca identificar o real
ao conceito, tornar o fato histórico, compreensível através do conceito. Nasce a
ilusão, de definir a história através do texto escrito, relatando tão precisamente o
acontecimento, que o texto fica mais real que a própria realidade ocultada pelo
conceito.
E se a filosofia enfrenta o desafio de ter que enfrentar o conceito se utilizando
do próprio conceito, na história isto não será diferente. Para isto, é que Adorno
propõe uma metodologia que pode significar para a história e sua concepção de
documento, uma contribuição importante. Adorno entende que um conceito deve
sempre ser abordado, no mínimo, em um registro bidimensional, onde os pólos
opostos permaneçam em constante tensão, ou seja, os dois lados do conceito são
expostos e confrontados entre si na tentativa de pensar o que lhe escapa. É manter
a tensão no confronto de um contra o outro, já que um não pode se manter sem o
outro, e no confronto entre eles, a possibilidade de se perceber as lacunas que cada
164
um dos polos carrega revelando sua ideologia na incapacidade de realizar sozinho
seu desejo de ser idêntico.
Pensa-se que para a história este elemento metodológico possa contribuir de
maneira significativa para se refletir o conceito de documento. Como já visto
anteriormente neste estudo, na visão tradicional de história, a definição de
documento está basicamente restrita aos documentos registrados por escrito e o
historiador passou a fazer deles seu testemunho. A elaboração do documento
textual possibilitou a constituição de arquivos que fornecem os fundamentos do
estudo científico, distanciando-se de tudo que não está registrado por escrito. O
texto passou a ser a expressão da realidade em sua totalidade. Fortalece-se a ideia
de que a história não pode ser feita sem a erudição e como a escrita é um elemento
fundamental neste processo, tende-se a pensar que a história não existe se não
houver o registro dos acontecimentos.
Retomando Foucault, este autor afirma em sua obra Arqueologia do Saber,
que os historiadores analisam seus documentos como a linguagem de uma única
voz. Contudo, há a necessidade de se alterar e ampliar a visão que se tem de
documento. Isto provocaria a transformação da concepção de documento, até então,
como matéria inerte através do qual o historiador tenta reconstruir o passado, para
uma compreensão que considera o documento, e, por sua vez, a história, como
constituída também de documentos literários e artísticos, válidos como materiais
históricos reveladores das vivências de sociedades que tem diferentes modos de
expressarem seus agires. Seria a transformação do documento em monumento.
Considerando que na visão tradicional da história, o documento é basicamente o
texto escrito e que fornece ao historiador elementos na busca da objetividade do fato
histórico, o monumento se caracterizaria por aquilo que o cientista da história tende
a ocultar, ou seja, o não-reconciliado. Portanto, o monumento seria o pólo oposto ao
conceito de documento.
Confrontando, portanto, os polos opostos do conceito de documento, será
possível, através da dialética, elaborar críticas à noção tradicional de documento que
restringe a história à sua expressão escrita como retrato fiel da realidade. A tensão
entre os polos garante a ampliação do conceito e a crítica à noção de fato histórico,
reconhecendo outras realidades históricas ocultadas pela historiografia tradicional,
resgatadas a partir de documentos ligados, não só ao texto escrito, mas as palavras,
aos gestos, ao imaginário, etc. Cabe destacar que, na tensão bidimensional, o que
165
vale é a crítica permanente do cientista no confronto dos conceitos. A ambiguidade
do conceito “documento” é que é o motor da crítica. Esta não pode deixar de existir,
pois caso contrário, mesmo o conceito monumento estaria sob risco de ser
incorporado ao discurso totalitário, dominante. Portanto, a questão não é tanto se é
documento ou monumento, mas a concepção metodológica que adota o historiador,
e nisto, a dialética negativa tem muito a contribuir. Em “Conceitos e Categorias”,
Adorno afirma:
A dialética visa, segundo seu lado subjetivo, a pensar de tal modo que a forma de pensamento não mais torne seus objetos coisas inalteráveis que permanecem iguais a si mesmas; a experiência desmente que eles o sejam. O quanto a identidade daquilo que constitui o elemento sólido para a filosofia tradicional é frágil, isto é passível de ser aprendido a partir do que lhe dá garantia, a consciência humana singular. (ADORNO, 2009, p. 134).
Percebe-se nesta tensão entre o conceito que deseja ser universal e a
realidade que é particular, que o papel do historiador é fundamental em revelar,
através do próprio conceito, o que o conceito ocultou no momento de sua abstração
e para isto, buscará o real priorizando o objeto. Esta dialética, porém, que dá ênfase
ao objeto e revela a fragilidade do conceito, o faz se utilizando do conceito. Portanto,
necessita insistentemente do sujeito, o que coloca em confronto e, por isso mesmo,
em tensão de polos, com uma ideia corrente, também já discutida neste estudo, de
que a objetividade necessita de menos sujeito, ou seja, quanto menos o sujeito
interferir na construção do fato histórico, mais objetivo ele será. Ao contrário, na
proposta da dialética negativa, a objetividade do conhecimento não esconde que
precisa de mais sujeito e não menos. É através do conceito que o historiador
ultrapassa o conceito e se aproxima do não-conceitual. Novamente esta
interpretação da participação do sujeito na construção da história, aproxima uma vez
mais o cientista do conceito de monumento e não de documento que, como vimos,
se caracteriza pela visão tradicional de que a história objetiva é possível e
diretamente proporcional ao afastamento do sujeito na assimilação dos fatos, como
se os fatos estivessem prontos e acabados.
Esta consciência da participação do historiador como protagonista no
processo de construção da história, através de sua interferência, é fundamental para
não se permitir a mitologização do estudo da história, processo que o
esclarecimento desejava superar com a universalização do conceito mas acabou
166
que dele nunca se livrou. Pucci, em seu artigo A dialética negativa enquanto
metodologia de pesquisa em Educação: atualidades, dirá que:
O esclarecimento, que se desenvolve enquanto o triunfo da razão sobre o mito, transforma-se, com o progresso da razão, em mito a serviço da dominação do homem e da natureza, tendo como instrumento de ação o procedimento eficaz, o cálculo, a fórmula, o número. (PUCCI, 2012, p. 06)
E conclui citando Adorno: “Quanto mais a maquinaria do pensamento subjuga
o que existe, tanto mais cegamente ela se contenta com essa reprodução. Desse
modo, o esclarecimento regride à mitologia da qual jamais soube escapar” (PUCCI,
2012, p. 06 apud ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 34).
167
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para início destas considerações finais, serão retomadas duas observações
do historiador Le Goff (2003) ao sugerir que a passagem do oral ao escrito foi
fundamental para a história. A primeira é a de que a oralidade e a escrita coexistem
em geral nas sociedades, e esta coexistência é fundamental para a história. A
segunda, é que a história, se tem como etapa decisiva a escrita, não é anulada por
ela, pois não há sociedade sem história.
Conclui-se que estas duas observações de Le Goff, foram duas questões que
acompanharam o tempo todo o desenvolvimento deste estudo. Partindo da segunda
observação, procurou-se mostrar como a história está presente em todas as
sociedades humanas, tendo estas vivências sido registradas por escrito ou não.
Comunidades marcadas pela oralidade, manifestam seus agires a partir de
características que lhes são próprias e conservam sua tradição através desta
mesma oralidade. Já as comunidades que desenvolveram a escrita, fizeram
determinando seus agires de forma diferente. No entanto, destaca Le Goff, o fato de
se introduzir a escrita, não determina o início da história para estas comunidades e
muito menos, que os povos que não registraram seus agires através da escrita, não
possuam história.
Esta questão é fundamental, pois nos remete a pensar sobre uma ideia muito
comum e que se desenvolveu bastante neste trabalho, ou seja, a visão binária que
marcou a história Ocidental, reforçada ainda mais, com advento da escrita. A visão
científica que vai sendo construída desde os gregos, começa a delimitar o
conhecimento construído a partir da reflexão que o distancia cada vez mais do
conhecimento do senso comum, da “doxa”, como diria Platão. Isto remete a outra
observação de Le Goff. Considerar que a oralidade e a escrita coexistem nas
sociedades, parece um tanto óbvio, mas alerta para uma reflexão muito importante.
O quanto esta leitura binária impossibilita compreender a história como uma
construção muita mais abrangente do que aquela que existe nos registros escritos,
ou seja, existe história além do texto escrito e, de como, em nome desta leitura
binária, a história do Ocidente, através da expansão mercantil, justificou seus
domínios econômicos e culturais.
Do ponto de vista teórico, destaca-se a criação do que Dussel denominou de
“mito da modernidade” e como este elemento foi se constituindo não só como um
168
fato material, mas também espiritual. É bastante significativa a fala de Cunha (1992)
que recorda que quando os portugueses chegaram às costas brasileiras, os
navegadores pensavam ter chegado ao paraíso. Os portugueses sentiram-se como
Adão e a cada lugar conferiam um nome. Antes de batizarem as pessoas, batizou-se
a terra encontrada. O Brasil foi, assim, simbolicamente criado. Nomeando-se
tomaram posse dele, como se ele fosse virgem.
Dussel (1993) dirá que este mito criado que justificou uma prática de violência
contra as outras culturas, pode ser assim descrito: a civilização moderna europeia se
autocompreende como mais desenvolvida e superiora a todas as outras e esta
superioridade obriga, como exigência moral, levar desenvolvimento aos povos mais
primitivos. O caminho a ser seguido para a execução do referido processo educativo
de desenvolvimento, deve ser o seguido pela Europa. Mas como é comum existir por
parte daquele que deve ser civilizado segundo as regras europeias, uma resistência,
a práxis moderna deve exercer, em último caso, a violência se for necessário para
destruir os obstáculos de tal modernização. Esta violência é culpa, portanto, dos
próprios povos avessos ao processo civilizatório. Isto permite que a modernidade se
apresente não só como inocente, mas também como emancipadora da culpa de
suas próprias vítimas. Todorov (1993) destaca que a religião neste processo de
conquista, que também se deu espiritualmente, teve sua contribuição. Recorda que
a religião sempre esteve ao lado dos colonizadores no processo de conquista, mas
que esta religião carrega consigo uma especificidade em relação às religiões da
América; é o fato de ela ser universalista e, por entender-se universal, é intolerante.
Importante recordar, que esta característica de pretensa universalidade, está
diretamente relacionada ao processo de desenvolvimento da escrita. Uma religião só
poderá ser universal, à medida que, através do texto escrito, possa espalhar pelo
mundo suas doutrinas. Só assim o outro poderá ser convertido, seguindo os
preceitos previamente estabelecidos. Isto faz do Deus cristão, segundo Todorov,
não uma encarnação que poderia juntar-se às outras, mas um modo exclusivo e
intolerante de ser.
Por tudo isto, Dussel (1993) dirá da urgência de se negar o mito da
modernidade para que o outro, e aqui cabe uma referência a Adorno, o não-
conceituado, o excluído, o oculto, seja o polo oposto, conflitante ao dominante.
Deve-se ainda destacar que, diante da impossibilidade de se ocultar historicamente,
169
as atrocidades cometidas118 a que foram vítimas milhões de pessoas, a história
Ocidental acabou por relatar os fatos, mas ainda assim, segundo uma compreensão
reducionista. Cunha (1992) dirá que por má consciência e boas intenções, perdurou
a noção de que os índios foram apenas vítimas de um sistema mundial que os
destruiu. Alerta a autora, que esta visão carrega um fundamento teórico de que a
história movida pelo capital, só teria sentido em seu epicentro. A periferia do capital
era o lixo da história. As decorrências desta postura, foram a eliminação física e
étnica dos índios. Eliminá-los como sujeitos históricos. Cabe, portanto, o resgate de
uma consciência histórica que compreenda os índios como sujeitos, criadores de
palavras e não apenas vítimas da história. Dirá Cunha, que devemos respeitá-los
como sociedades que pensaram o que lhes acontecia em seus próprios termos.
Estes termos, negligenciados, omitidos, não-idênticos que explicitam o que foi
subestimado, são eles que devem polarizar com o conceituado. Por isso, na
dialética, Adorno insistir na teimosia da negação, por ser ele o não-idêntico. Ao se
reportar aos povos indígenas, ao outro, como vítimas apenas, o que se faz é
incorporar o não-conceitual ao conceito, através da síntese, adequando mais uma
vez o real ao conceito.
Paulo Freire é um pensador que pode colaborar com a proposta de um
diálogo que de fato respeite o outro como diferente. Freire (2005) sugere que a
palavra possui duas dimensões: a ação e a reflexão. Como já visto anteriormente, a
cultura Ocidental, especialmente, a partir de Platão, privilegiou a dimensão da
reflexão e atribuiu também à palavra escrita um desequilíbrio em relação a estas
duas dimensões. A reflexão preponderou em relação à ação. Dirá Freire (2005) que
a dicotomia que se estabeleceu entre seus elementos constituintes, resultará no que
ele chama de palavra inautêntica. Esgotado de sua dimensão de ação, a reflexão se
transformará em apenas verbalismo. Da mesma forma quando se enfatiza a ação, a
palavra se converterá em ativismo. Tanto num caso, como no outro, o que se tem de
decorrência é a inviabilidade do diálogo. E a existência, dirá Freire, não pode ser
118
Eduardo Galeano no seu importante livro As veias abertas da América Latina diz o seguinte sobre esta questão: “A violenta maré de cobiça, horror e bravura não se abateu sobre estas comarcas, senão ao preço do genocídio nativo: as mais bem fundadas e recentes investigações atribuem ao México pré-colombiano uma população que oscila entre os 30 e 37,5 milhões de habitantes. Calcula-se uma quantidade idêntica de índios na região andina: a América Central contava com 10 ou 13 milhões de habitantes. Os índios das Américas somavam entre 70 e 90 milhões de pessoas, quando os conquistadores estrangeiros apareceram no horizonte; um século e meio depois tinham-se reduzido, no total, a apenas 3,5 milhões”. (GALEANO, 1985, p. 50).
170
muda, nem tampouco nutrir-se de falsas palavras. A palavra deve se realizar na
ação-reflexão.
No entanto, o diálogo nunca se realiza sozinho, é sempre com o outro. E se o
encontro das palavras ocorre nas suas dimensões de reflexão e ação, os sujeitos
envolvidos devem ter o direito de se pronunciarem, proclamando os significados
atribuídos às ações e às suas reflexões, contidos nas palavras. Como dito
anteriormente, respeitar a palavra do outro nos seus próprios termos. Por isso, Freire
(2005) não entende o diálogo que não seja solidário. A imposição de ideias, de um
sujeito no outro, não pode caracterizar-se como diálogo. Em outras palavras, não
haverá diálogo se não houver das partes dialogantes humildade. A arrogância
inviabiliza o verdadeiro diálogo. A autossuficiência é incompatível com o diálogo, já
que quando ele ocorre não se pode admitir a existência de ignorantes absolutos,
sem instrução, da mesma forma, que não existe os que sabem de maneira absoluta.
Questiona Freire (2005), como pode existir diálogo se uma das partes se
sente dono da verdade e do saber e todos aqueles que não compartilham deste
saber estão fora e são considerados “nativos inferiores”.119 O que ocorre neste caso
é uma ação antidialógica na ação de conquista, transformando o outro num objeto
conquistado. Esta ação de domínio não se dá, portanto, somente economicamente,
mas também culturalmente, roubando do oprimido sua palavra, ou seja, sua
expressividade. Ocorre uma penetração dos invasores no contexto cultural dos
invadidos, impondo a estes sua visão de mundo, transformando os invadidos em
objetos.120
A questão central não é propriamente se fazer uma crítica à escrita, já que
esta também é uma das formas pela qual as pessoas manifestam seu modo de ser.
A crítica, no entanto, é dirigida a uma mentalidade que fundamenta o conceito
119
Do ponto de vista da história esta é uma questão fundamental, pois não passa só pelo conteúdo, mas também pela forma daquilo que se comunica. Todorov (1993) destaca que os índios e espanhóis no período de invasão da América, praticavam a comunicação de maneiras diferentes e que este postulado da diferença leva facilmente ao sentimento de superioridade. Enquanto os espanhóis concebem somente uma comunicação inter-humana, pois o mundo não sendo sujeito, o diálogo será assimétrico, para os ameríndios, além de incluir a interação de indivíduo a indivíduo, existe também, a interação entre pessoa e seu grupo social, a pessoa e o mundo natural e a pessoa e o universo religioso. Segundo Todorov, é este tipo de comunicação que desempenha papel predominante na vida do homem ameríndio.
120 No seu livro original e instigante, Tible (2013) na introdução, destaca que a antropologia tem sido marcada por três fortes polaridades: primitivo e civilizado, o indivíduo e sociedade, natureza e cultura. Mas que estas formas do grande divisor foram instrumentos para a conquista (oposição pagão-cristão) exploração (selvagem-civilizado) e administração (tradicional-moderno).
Cabe à antropologia buscar na linguagem alternativa, originando, segundo Tible, o conceito de simetria frente à distinção nós/eles.
171
expresso através da palavra escrita, que dá a ele o poder de revelador único de uma
realidade que aparece como universal e, portanto, abstrata. Entende-se que este
conceito enrijecido pelo uso da escrita, que carrega o mito da suficiência do real,
deve ser entendido como conceito insuficiente para evidenciar sua condição de
impotente diante de outras manifestações humanas das vivências.
O homem e o mundo devem ser compreendidos como organismos vivos,
como vivências e na expressão conceitual do homem como manifestação dessa
realidade viva, o conceito só poderá ser compreendido na sua dimensão de
acontecimento. O conceito não pode, porque se assim fosse, não seria autêntico ser
compreendido como uma estrutura estável e previamente determinada, já que está
se fazendo, o que faz dele, um conceito perecível. O conceito como idêntico
desaparece. Qualquer tentativa de identificar o conceito de maneira absoluta com a
realidade deveria ser entendida como um “pré-conceito”.121 A tentativa de qualquer
diálogo, sem respeitar o outro na sua condição de sujeito, será sempre um ato de
imposição ou de depositar, no dizer de Freire, ideias de um sujeito no outro. E isto
pode ocorrer tanto de uma cultura sobre a outra, como também, no desenvolvimento
de um processo pedagógico. Em se tratando das culturas letradas, é recuperar a
cultura da oralidade, que se diga desde já, não significa excluir as letras, mas buscar
o equilíbrio que a cultura ocidental perdeu ao longo da sua história.
Havelock (1996) diz que a escrita possibilita preservar sem a necessidade do
recurso à memória, e que se a fala iletrada favoreceu o discurso descritivo da ação,
a pós-letrada alterou o equilíbrio em favor da reflexão. Isto contribuiu para o grego
uma possibilidade crescente de enunciar preposições, no lugar de descrever
eventos. Esta diferença marcante na cultura grega, fará com que se estimule o
hábito de considerar a prática oral e a letrada como mutuamente exclusivas. O
próprio Havelock (1996) dirá que mesmo Ilíada e Odisséia são construções
complexas, que refletem uma parceria entre o oral e o escrito. Conclui este autor,
que o espírito integral da literatura e da filosofia se dá como uma tensão dinâmica
nessa parceria. A questão é que, com o regime da escrita, afirma-se também a
consciência letrada e o intelectual vai perdendo a simpatia pelos ouvintes não
letrados.
121
Neste caso, um conceito universal, que antecede a historicidade e sua multiplicidade.
172
Retomar a cultura da oralidade não quer dizer aqui desprezar a cultura
letrada, mas repensar a consciência letrada de que trata Havelock. Para tanto é que
se propõe, mesmo mergulhado no interior de uma cultura marcada pelas letras,
atribuir o papel ao educador e ao educando, de “oralizar” o conceito, tornando-o, um
conceito “afetivo”.122 O professor e o aluno, nesse caso, têm o papel de “ternalizar” o
conceito, ressignificando e dando às palavras valor no seu uso, este que se faz e se
realiza no diálogo. As palavras nutrem-se de sentido, porque estão vinculadas com a
realidade123. São palavras verdadeiras e não “falsas palavras”, no dizer de Freire
(2005).124
Não caberá ao conceito estático e, portanto, “insuficiente”, expressar a
realidade, o conhecimento, mas, ao homem na sua práxis, interpretando o conceito,
através da dinâmica entre a oralidade e a escrita, sem que uma elimine a outra ou
se sobreponha a outra. Resgatar a oralidade não significa excluir a escrita, mas
estabelecer equilíbrio com ela, recuperar o conceito vivo, aberto, que se faz no
processo dos agires humanos. O conceito só oculta sua dimensão “afetiva” quando
isolado e distanciado de seu contexto, de seu portador. A dimensão “afetiva”
recuperada pela presença do educador no diálogo com o educando, dá significado
ao conceito e às palavras escritas. Portanto, se não há educação verdadeira sem o
diálogo, não há também processo educativo que compreenda a palavra, escrita ou
não, sem a presença do professor e do aluno em permanente diálogo.
No caso da história, o grande desafio que se coloca é a afirmação da
alteridade do outro, ocultada por uma visão totalitária e dominadora. Esta
racionalidade totalitária, particular, dirá Adorno, foi ditada historicamente de forma
ameaçadora. Este pensamento identificador que iguala o desigual que deverá ser
curado pela própria razão125. Este é o grande desafio do mundo globalizado e
122
Afetivo – “afficere” = tocar, comover o espírito. “Affectivas” = Diz do texto, narrativa, discurso ou tipo de expressão linguística, em que os sentimentos do escritor ou do interlocutor se infiltram na sua linguagem ou na comunicação de ideias.
123 GUTIÉRREZ (1984) tem uma expressão que revela o significado profundo quando se diz que as
palavras devem estar mergulhadas na realidade e que deu o título a um dos seus livros. A expressão é: “Beber do próprio poço”. No caso da educação, exercitar uma experiência de fé, de amor e de esperança que nasce da prática educativa e saciar-se dela.
124 Todorov lembra que Bartolomeu de Las Casas enalteceu a ausência de duplicidade dos índios e
pelo fato dos espanhóis nunca respeitarem a própria palavra, mentiroso e cristão acabaram se tornando sinônimos. A ponto de quando os espanhóis perguntavam aos índios se eram cristãos, respondiam: “Sim, senhor, já sou um pouco cristão, pois já sei mentir um pouco; um dia saberei mentir muito e serei muito cristão.” (TODOROV, 1993, p. 86-87).
125 Adorno (1995, p. 15) faz a seguinte provocação: “Como um mundo tão desenvolvido
cientificamente apresentar tanta miséria?” Este é o problema central, insiste o nosso autor: o
173
caracterizado pelas diferenças e pela multiplicidade. Olhar para o outro e respeitá-lo
na sua diferença, seja numa sala de aula, ou num outro continente, este é o caminho
para se construir uma sociedade verdadeiramente humana, no mais amplo sentido
do conceito. Dirá Adorno (2009, p. 149): “Se o estranho não estivesse há muito
proscrito, quase não haveria alienação”.
confronto com as formas sociais que se sobrepõem às soluções ‘racionais’. O problema maior é julgar-se esclarecido sem sê-lo, sem dar-se conta da sua própria condição. E conclui Adorno: “O caminho tradicional para a autonomia, a formação cultural pode conduzir ao contrário da emancipação, à barbárie.”
174
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