PRISCILA VALENTE LOLATA
MAREPE:
MEMÓRIA, DEVANEIO E COTIDIANO NA ARTE CONTEMPORÂNEA DA BAHIA
.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Artes Visuais. Orientador: Prof. Dr. Roaleno Ribeiro Amâncio Costa
Salvador
2005
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L 837 Lolata, Priscila Valente Marepe: memória, devaneio e cotidiano na arte contemporânea da Bahia / Priscila Valente Lolata. – 2005. 243 f.: il Orientador: Prof. Dr. Roaleno Amâncio Costa Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia. Escola de Belas, 2005. 1. Arte contemporânea – Bahia. 2. Artistas baianos. 3. Marepe. I. Costa, Roaleno Amâncio. II. Universidade Federal da Bahia. Escola de Belas Artes. III. Título.
CDU 7.036 (814.3)
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A todos os que possuem vontade construtiva.
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AGRADECIMENTOS Ao meu amor e companheiro Luís, que em vários momentos participou das minhas dúvidas, angústias e incertezas, dando-me força e argumentos que não me deixaram fraquejar. Ao meu filho Ítalo, que mesmo ainda muito pequeno, participou de todo meu processo no mestrado, sendo sempre um incentivo. A minha família, pai, mãe e irmãos, que mesmo em alguns momentos não compreendendo a minha falta, sempre acreditaram em mim e apoiaram-me. A Daiane e a Jaci que participaram de vários momentos de aflição, mas mantiveram a ordem doméstica. Ao Mestrado em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA, ao coordenador Luiz Freire e a secretária Taciana, aos professores do mestrado, ao meu orientador Roaleno Costa, ao programa de bolsas da CAPES e aos colegas que ingressaram junto a mim no mestrado. A todos que concederam entrevistas e depoimentos, pela presteza e atenção: Marepe, Ieda Oliveira, Maxim Malhado, Gaio, Almandrade, Paulo Brusky, Paulo Darzé, Heitor Reis, Paulo Sérgio Duarte, Fernando Cocciaralle, e Lisette Lagnado. A Drª Glória Pabst, pela ajuda essêncial. A Ludmila e a Neila, pela colaboração especial nas transcrições, a Eduardo, pela gentileza e pela capacidade na tradução do resumo e a Rosane, pela fundamental revisão da dissertação. Aos amigos e colaboradores: Jamile Do Carmo, Giovanna Dantas, Ana Porciúncula, João Ramos, Dilberto de Assis, Afrânio Simões, Marco Aurélio, Irney Brito, Alice Santos, Floriana Breyer, Juciara Barbosa, Walter Mariano, Dona Nita e Geisa, Justino Marinho, Leda e funcionários da biblioteca da EBA, Reinaldo Botelho (Cosac & Naïfy), Gabriela e Cris (Galeria Luisa Strina), Dalton Maziero (Fundação Bienal de São Paulo), Juciléia (MAM-BA) e UNE, por facilitarem a construção desse trabalho. Aos companheiros e cúmplices do GIA: Everton, Tiago, Pedro, Ludmila, Cristiano e Mark, e do Programa Humanidades: Goli, André, Cláudio, Pepito, Marconi, Denise, Albano e Marcelo. A todos, eu agradeço de coração.
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O melhor seria anotar os acontecimentos dia a dia. Manter
um diário para que estes possam ser percebidos com
clareza. Não deixar escapar as nuanças, os pequenos fatos,
ainda que pareçam insignificantes (...).
A náusea, Jean-Paul Sartre, 1938
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RESUMO Este trabalho buscou entrar no universo da produção do artista plástico baiano Marepe. Para compreender melhor a inserção de sua obra num patamar de grande reconhecimento internacional - sendo este artista jovem, presente, aproximadamente, há quinze anos no meio artístico e, ainda, residindo em uma cidade do interior da Bahia -, foi fundamental uma breve trajetória da história da arte, a qual partiu de um universo macro, do início do século XX, e afunilou até chegar à arte brasileira dando ênfase ao movimento Neoconcreto carioca. Através da produção dos artistas neoconcretistas, como Lygia Clark e Hélio Oiticica, e do pensamento gerado neste contexto, foram verificadas semelhanças de propostas entre esses e os artistas contemporâneos da Bahia, como Ieda Oliveira, Maxim Malhado e Marepe. Adentrou-se mais na obra de Marepe e foram encontradas relações importantes, principalmente, entre o “Esquema Geral da Nova Objetividade”, de Hélio Oiticica, que em vários textos adaptou as teorias do filósofo francês Merleau-Ponty, sobre fenomenologia, para o contexto das artes plásticas. Com uma adaptação semelhante, também, as teorias de outro filosofo francês ligado à mesma corrente, Gaston Bachelard, foram facilmente relacionadas às propostas de Marepe, que, no geral, carregam lembranças e devaneios de sua infância, da casa vivida. Como forma de contextualizar a trajetória desse artista, traçou-se um panorama histórico do Salão do Museu de Arte Moderna da Bahia, como um referencial para o crescimento da arte contemporânea no referido Estado, no qual o artista está inserido. Utilizou-se análise comparativa de textos críticos e de imagens e, também, foram feitas comparações entre trabalhos artísticos, com parâmetros teóricos já bem definidos. Registrou-se uma série de entrevistas com artistas e com personalidades do meio da arte, o que gerou um respaldo às análises. Com a produção de Marepe tendo alcançado grande visibilidade entre a produção nacional, realizou-se uma pesquisa sobre o desenvolvimento da sua poética, o que confirmou a força regional e a linguagem universal que sua produção propõe, além da retomada de características desenvolvidas por alguns neoconcretos, precursores do experimentalismo, com ênfase no fim da dicotomia entre sujeito e objeto. Palavras-chave: Arte contemporânea; Museu de Arte Moderna da Bahia; Marepe.
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ABSTRACT This work tried to penetrate the universe of production of the artist Marepe from Bahia. In order to better understand the context of his works at the level of great international recognition - this artist being young and present in the artistic world for approximately fifteen years, and still, living in a countryside town in Bahia -, it was important to discuss briefly about history of art, starting from a wider context at the beginning of the twentieth century and narrowing it down to the Brazilian art, focusing it on the Neoconcrect movement from Rio de Janeiro. Through the production of artists from the Neoconcrect movement, such as Lygia Clark and Helio Oiticica, and the thinking generated in this context, some similarities of propositions were found between these and the contemporanean artists from Bahia, such as Ieda Oliveira, Maxim Malhado and Marepe. The works of Marepe were studied more in depth and important links were observed, mainly between the "General Outline of the New Objectivity", by Hélio Oiticica, who in various texts has adapted the theories of the French philosopher Merleau-Ponty about phenomenology to the context of the arts. With a similar adaptation, the theories of Gaston Bachelard, another French philosopher also linked to the same trend, were also easily found to be connected to the propositions of Marepe, which, in general, carry recollections and fantasies of his childhood, of his past experiences. As a way of contextualizing the paths of Marepe, a historical view of the Exhibition of the Museu de Arte Moderna da Bahia was taken, as a reference to the growth of the contemporanean art in Bahia, where the artist lives. Comparative analyses of critical texts and of images were used and also, comparations with other artistic works, with already well defined standards were made. A series of interviews with artists and arts personalities was registered, what substantiated the analyses. Having the production of Marepe reached great visibility among the Brazilian production, a research on the development of his poetry was done, what confirmed the regional strength and the universal language that his production proposes, beside the revival of characteristics developed by some neoconcrete artists, predecessors of the experimentalism, with emphasis on the end of the dicotomy between the subject and the object. Key words: Contemporanean Arts; Museu de Arte Moderna da Bahia; Marepe
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SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS
14
1 INTRODUÇÃO
119
2 UMA COMPREENSÃO HISTÓRICA: OS MOVIMENTOS MODERNOS QUE CULMINARAM EM TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS.
24
2.1 MODERNIDADE: UMA NOVA RELAÇÃO ENTRE O ARTISTA E A SOCIEDADE.
24
2.1.1 Construtivismo: a arte explorando materiais e meios diversos de expressão (uma nova proposta para o objeto artístico)
25
2.1.2 Duchamp e o Dadaísmo: a renúncia de técnicas especificamente artísticas (ou a contestação de todos os valores).
26
2.1.3 Dada e Construtivismo: a dessemelhança convergente.
28
2.2 A ARTE BRASILEIRA E A RELAÇÃO COM A IDENTIDADE/REALIDADE NACIONAL.
29
2.2.1 As novas conotações da arte brasileira a partir da I Bienal de São Paulo.
34
2.3 ARTE CONTEMPORÂNEA: UMA NOVA PROPOSTA DE PARTICIPAÇÃO.
36
2.3.1 Mecanismo interno: o desenvolver da arte brasileira.
39
2.4 NEOCONCRETISMO: UMA NOVA OBJETIVIDADE NA ARTE BRASILEIRA DE VANGUARDA.
41
2.5 O “ARMENGUE” COMO OPÇÃO PARA A SOLUÇÃO: AS RESSONÂNCIAS DE UMA ESTÉTICA NEOCONCRETISTA.
57
3 ARTE CONTEMPORÂNEA NA BAHIA: DAS FENDAS DA TRADIÇÃO CULTURAL, NOVOS MECANISMOS E EXPRESSÕES DE RECONHECIMENTO DA CULTURA.
59
12
3.1 ARTE CONTEMPORÂNEA NA BAHIA: UMA BREVE TRAJETÓRIA.
59
3.2 O SALÃO DO MAM, A CRÍTICA E O INCENTIVO FINANCEIRO: O ACELERAMENTO DO EXPERIMENTAL E O DESAPARECIMENTO DO QUADRO.
62
3.2.1 I Salão da Bahia – 1994/1995: a vontade do novo. 62 3.2.2 II Salão do MAM – 1995/1996: a proposta é quebrar
parâmetros. 64
3.2.3 III Salão do MAM – 1995/1996: entre a estagnação e a experimentação.
65
3.2.4 IV Salão do MAM – 1997/1998: a evidência da linguagem contemporânea.
67
3.2.5 V Salão do MAM – 1998/1999: novos campos de ação das artes visuais
68
3.2.6 VI salão do MAM: uma configuração contemporânea. 68 3.2.7 VII Salão – 2000/2001: um projeto de inserção, uma agulha
no palheiro. 70
3.2.8 VIII Salão da Bahia – 2001/2002: consenso ou carência, um meio de arte passivo.
73
3.2.9 IX Salão do MAM – 2002/2003: critérios de seleção “parciais e heterogêneos”, a fluência do acesso à arte.
74
3.2.10 X Salão da Bahia: a projeção efetivamente possibilitada. 77 3.2.11 Projetos de envergadura contemporânea.
79
3.3 UM MEIO QUE EXISTE. 80
3.3.1 Memória, experimentação e metáfora, características contemporâneas no trabalho de Ieda Oliveira.
82
3.3.2 Maxim Malhado: Ibirapuera, ou madeira velha; o agreste do cotidiano como poética artística.
90
3.4 IDENTIDADE: A BUSCA DO SIMPLES.
96
4 MEMÓRIA, IMAGINAÇÃO E COTIDIANO NA ARTE CONTEMPORÂNEA.
97
4.1 A SITUAÇÃO NOS ANOS NOVENTA, UM CONTEXTO REGIONAL.
97
4.1.1 Herdeiros do neoconcretismo: o Nordeste inserido no âmbito da arte contemporânea.
98
13
4.2 ABRIGO, MEMÓRIA E VIVÊNCIA: O UNIVERSO POÉTICO DE MAREPE.
100
4.3 RECÔNCAVO: ANTROPOFAGIA E VIDA COTIDIANA NO TERCEIRO MUNDO.
102
4.4 O ABRIGO COMO METÁFORA
136
5. CONCLUSÃO
150
REFERÊNCIAS 155
ANEXOS
167
Anexo A – Súmula Curricular de Marepe
169
Anexo B – Entrevistas 172 B.1a Marepe 172 B.1b Marepe 179 B.2 Ieda Oliveira 194 B.3 Almandrade 208 B.4 Heitor Reis 221 B.5 Paulo Darzé 233
Anexo C – “Esquema Geral da Nova Objetividade” - Hélio Oiticica
239
Anexo D – Índices de inscrição, seleção, premiação e linguagem, do primeiro ao décimo Salão da Bahia – Museu de Arte Moderna da Bahia (1994).
249
14
LISTA DE FIGURAS Figura 1 - El Lissitzky, “História de dois quadrados” (páginas do livro
impresso em 1922).
25
Figura 2 - Marcel Duchamp, “Nu descendo a escada”, 1912 27
Figura 3 - Man Ray, “Cadeau”, 1921 28
Figura 4 - Tarcila do Amaral, “Religião Brasileira”, 1929 31
Figura 5 - 1ª Bienal de São Paulo (cartaz), 1951 34
Figura 6 - Max Bill, “Unidade Tripartida”, 1948-49 35
Figura 7 - Alfredo Volpi, “Composição c.”, 1958 36
Figura 8 - Lygia Clark, “Bichos”, 1960 42
Figura 9 - Hélio Oiticica, “Parangolé P4, Capa 1”, 1964 42
Figura 10 - Hélio Oiticica, fotos de rua, Rio de Janeiro, 1965 44
Figura 11 - Lygia Clark, “Caminhando”, 1964 47
Figura 12 - Lygia Clark, “Caminhando”, 1964 47
Figura 13 - Lygia Clark, “Caminhando”, 1964 47
Figura 14 - Hélio Oiticica, PN2, PN3 “A Pureza é um Mito” e
“Imagético” em “Tropicália”, 1966-67
48
Figura 15 - Hélio Oiticica, P15, Capa 11, “Incorporo a Revolta”, 1967 52
Figura 16 - Artur Barrio, “Situação T/T, 1 (2ª parte)”, 1970 56
Figura 17 - Cildo Meireles, “Inserções em Circuitos Ideológicos:
Projeto Cédula”, 1970
57
Figura 18 - Rubem Valentin, “Emblema Relevo 1”, 1967-68 59
Figura 19 - Almandrade, Projeto “Pense o Jogo”, 1979-82 60
Figura 20 - Almandrade, “Objeto”, 1977 61
Figura 21 - Juraci Dórea, “Ambientação”, 1988 61
Figura 22 - Marepe, “Trouxa 03”, “Trouxa 04”, “Trouxa 05”, 2000 64
Figura 23 - Marepe, “O Casamento”, 1996 65
15
Figura 24 - Marepe, “Jaca Nécessaire”, 1997 66
Figura 25 - Paulo Pereira, S/ título, 1997 67
Figura 26 - Iuri Sarmento, S/ título, 1999 69
Figura 27 - Yoko Ono, “Saída e/ou ex-isto”, 1997 70
Figura 28 - Floriana Breyer, “Faixa de descalços”, 2004 75
Figura 29 - Paulo Pereira, S/ título, 2002 77
Figura 30 - Vauluizo Bezarra, S/ título, 2002 77
Figura 31 - Rosana Palazyan, “Realejo”, 2003-04 78
Figura 32 - Ieda Oliveira, “Aqui se planta, aqui se colhe”, 2000 81
Figura 33 - Ieda Oliveira, “Milagres”, 2002 83
Figura 34 Ieda Oliveira, “Milagres”, 2002 83
Figura 35 - Ieda Oliveira, “Apaga-Dor”, 2000 85
Figura 36 - Ieda Oliveira, “Peca-Dor”, 2004 86
Figura 37 - Hélio Oiticica, “Edém”, 1969 87
Figura 38 - Ida Oliveira, “Farinha do Mesmo Seco”, 2001 88
Figura 39 - Ida Oliveira, “Farinha do Mesmo Saco” (detalhe), 2001 89
Figura 40 - Maxim Malhado,”Sobressalto”, 2001 91
Figura 41 - Maxim Malhado, revés de um out door 92
Figura 42 - Maxim Malhado, “Amarras” (lona de caminhão) 92
Figura 43 - Maxim Malhado, “Aparadouro” 93
Figura 44 - Artur Barrio, “4 Movimentos” 1974 94
Figura 45 - Maxim Malhado, “Amarras”, (cartela de ovos) 95
Figura 46 - Gaio Matos, Série “Desvios”, 98
Figura 47 - Marepe, “Recôncavo”, 2003 99
Figura 48 - Marepe, S/ título, 1994 104
Figura 49 - Lygia Clark, “Máscara Abismo – Nostalgia do Corpo”,
1965-88
106
Figura 50 - Marepe, “Cabeça Acústica”, 1995 107
Figura 51 - Marepe, “Lasque um Nome Aí”, 2001 108
Figura 52 - Marepe, “A Bica”, 1999 110
16
Figura 53 - Marepe, “Trouxa 03”, 1995 113
Figura 54 - Pierre Verger, Crianças, ajudando as lavadeiras, carregam
trouxas de roupas, Dique do Tororó, Salvador, 1948
113
Figura 55 - Diego Velásquez, “Retrato do Bufão Dom Ruam da
Áustria”, 1650
114
Figura 56 - Camelô no centro de Salvador 116
Figura 57 - Marcel Duchamp, “Fonte”,1917 116
Figura 58 - Marepe, “Banca de Bijuteria”, 1996-98 117
Figura 59 - Filtro de barro em um contexto doméstico 119
Figura 60 - Marepe, “Os filtros”, 1999 120
Figura 61 - Andy Warhol, “Fechar Antes de Ascender (Pepsi-Cola),
1962.
121
Figura 62 - Pintor de propaganda em atividade, Salvador-Ba 121
Figura 63 - Pintura de propaganda em um muro de Santo Antonio de
Jesus, BA
122
Figura 64 - Marepe na retirada do muro para a 25ª Bienal de São
Paulo, “Tudo no Mesmo Lugar Pelo Menor Preço”, 2002
124
Figura 65 - Marepe, “Palmeira Doce”, 2001 129
Figura 66 - Marepe, “Doce Céu de Santo Antonio”, 2001 130
Figura 67 - Marepe, Projeto “Quietude da Terra: Vida Cotidiana, Arte
contemporânea e Projeto Axé”, 1999
132
Figura 68 - Marepe, “Cabeça Acústica” com crianças do projeto Axé,
1999
132
Figura 69 - Debret, imagem do livro “Voyage Pithorésque au Brésil,
1834-39
134
Figura 70 - Marepe, crianças do Projeto Axé, 1999 135
Figura 71 - Marepe, “O Casamento”, 1996 136
Figura 72 - Marepe,’O Telhado”, 1998 140
Figura 73 - Marepe, “O Presente dos Presentes”, 2002 142
Figura 74 - Marepe, “Cajueiro com Neve de Algodão”, 2002 143
17
Figura 75 - Marepe, “Embutidinho”, 2002 145
Figura 76 - Hélio Oiticica, “Penetable PN 16, Nada, 1971 145
Figura 77 - Marepe, “Os Embutidos”, 1999 147
Figura 78 Marepe, “Banca de Fichas e Cartões Telefônicos”, 1996 167
18
19
1. Introdução
Desde meu ingresso na Escola de Belas Artes da UFBA em 1997, meu
interesse já direcionava-se a tendências da arte contemporânea. As que possuíam
maior experimentalismo, abordando questões sociais, sempre impressionaram-me
mais, deixavam-me com mais indagações.
Com a vinda ao Museu de Arte Moderna da Bahia, em 1999, da exposição
Árvore do desejo para o Brasil, de Yoko Ono, onde vivenciei e participei da
exposição de forma orgânica, sensorial e ativa, hoje, com uma visão distanciada
do momento, percebo que foi aquela exposição que, definitivamente, mostrou o
caminho que trilhei nas artes visuais, na prática e na teoria até o momento, sem
pretensão de desviá-lo.
Após conversar com artistas que correspondem ao que eu já interessava-
me, Artur Barrio, Cildo Meireles, Tunga, Cabelo e Jarbas Lopes, entre outros, e
conhecido melhor a história e a obra de Hélio Oiticica e Lygia Clark, percebi que a
história da arte recente do Brasil era muito interessante, e que a atuação de
nossos artistas, há poucas décadas, formara uma história riquíssima, com muitos
ainda produzindo e outros tantos começando a produzir na mesma linha de
comprometimento com o universo social de cada um.
Comecei a observar cada vez mais a produção que acontecia no Nordeste
e as referências de décadas. Paulo Bruscky, pernambucano, por exemplo, desde
a década de 1960, participa da história da arte brasileira como importante artista
conceitual e precursor, no Brasil, de várias possibilidades para minimizar os custos
da arte, sem perder sua inteligibilidade: postal art, fax art, art door, entre outras.
Pretendia, a princípio, fazer uma análise da produção contemporânea do
Nordeste, com uma retrospectiva a partir dos anos 1960, tendo como parâmetros
as teorias do movimento Neoconcreto. Porém, percebendo a extensão da
pesquisa, a idéia do projeto teve que ser mais delimitada.
20
A delimitação não estava suficiente para ser cumprida em apenas dois
anos, e a produção da Bahia, que já interessava-me demasiadamente e era parte
do objetivo inicial, foi tornando meu foco principal.
Devido ao que já vinha desenvolvendo na EBA/UFBA, independente das
aulas (produção prática e leitura), e ao interesse explícito em arte contemporânea,
percebi que eram escassos, ou mesmo inexistentes, os registros e os materiais
impressos, meios para se conhecer e pesquisar artistas contemporâneos da
Bahia, e conseqüentemente, suas produções. Sabendo, ainda, ser Marepe um dos
grandes nomes da representação baiana nos centros hegemônicos do circuito da
arte brasileira (Rio de Janeiro e São Paulo), não concebia a idéia de ser ele,
praticamente, um desconhecido, até mesmo para os alunos de arte. E a produção
de Marepe tornou-se meu objeto, contextualizado pela dinâmica desenvolvida,
principalmente, pelo Salão do Museu de Arte Moderna da Bahia, sob análise de
teorias contemporâneas, provenientes do neoconcretismo.
Na tentativa de esclarecer o que significa nesta dissertação “arte
contemporânea”, ou mesmo o sentido de contemporaneidade, muito utilizado nos
capítulos a seguir - não foi encontrado definições diretas em livros, artigos, textos
críticos -, mas em vários momentos, deixado claro o sentido da expressão. É
sabido que contemporâneo é o que faz parte da mesma época, do mesmo tempo.
Mas, no campo da arte, ou pelo menos o conceito adotado nessa pesquisa, é
dada a possibilidade de decodificar o sentido cronológico, ou seja, um artista do
meados do século passado, de 40 anos atrás, que não está mais vivo, pode ter
uma produção contemporânea. E um artista que está produzindo hoje, nesse
exato momento, pode não ser contemporâneo. Como?
O que defini esse adjetivo é a não especificidade dos meios utilizados na
produção artística, tendo, exatamente, a amplitude de possibilidades de meios e
materiais como uma característica marcante. E o meio de arte, além de aceitar a
amplidão de materiais ou a inexistência dele (arte conceitual), acatou a introdução
de artistas de regiões periféricas nas rotas dos pesquisadores, críticos, curadores
e imprensa especializada, a valorização do contexto em que o artista vive e
produz.
21
A modernidade que rompeu com linhas rígidas da conduta artística, no
início do século XX, dá maior autonomia ao artista, e começa a extrapolar, ainda
que em movimentos isolados, o suporte tradicional - a pintura, por exemplo. O ato
de apropriar de objetos e propô-los como arte, por Marcel Duchamp, na década de
1910 e as propostas construtivistas abrem precedentes que, na década de 1960,
são levadas a cabo. De um ponto de vista mais específico, a arte “perde as
rédeas”. O objeto, inspirado nos dadaístas e nos construtivistas, foi levado a
conseqüências extremas. Tornam-se características comuns o hibridismo, o
posicionamento político-social, a visão não universal, valorizando a diferença,
apesar do poder da comunicação universal da arte. Os artistas de regiões
periféricas têm a possibilidade de participar do circuito de arte falando de seu meio
social, sem sair do seu habitat. A comunicação tem influência direta nessa nova
configuração, não só da arte, mas da sociedade como um todo.
Conheceremos a produção de Marepe e de onde veio o respaldo que o meio de
arte brasileiro dá para trabalhos tão inusitados: uma banca de camelô com veneno
pra ratos e baratas à venda, tendo como atrativo baratas mortas e ratos
dissecados, ou uma espécie de mesa com um pano branco e um cartaz onde se
lê: deixe aqui o seu piolho, entre outros, não menos intrigantes.
Serão abordadas teorias da arte contemporânea nacional, e a
descentralização dela, a partir da década de 1990. Se, a abertura recorrente tem
precedentes em teorias como as de Hélio Oiticica, que mesmo desconhecidas por
muitos artistas, respaldam as instituições. Será analisada a iniciativa do Museu de
Arte Moderna da Bahia, focando, principalmente, seus Salões de Arte, de como e
porque colocaram a Bahia no circuito nacional e, até mesmo, internacional da arte,
e se isso ajudou o desenvolvimento da arte contemporânea nesse Estado. Toda
essa análise é para evidenciar teorias adotadas e criadas pela produção de arte
nacional e um contexto baiano que justifique o respaldo alcançado por Marepe.
Este Trabalho está dividido nos seguintes capítulos: Uma compreensão
histórica: os movimentos modernos que culminaram em tendências
contemporâneas; Das fendas da tradição cultural, novos mecanismos e
22
expressões de reconhecimento da cultura e Memória, imaginação e cotidiano na
produção de Marepe.
No capítulo, Uma compreensão histórica: os movimentos modernos que
culminaram em tendências contemporâneas, faremos uma compreensão histórica
da trajetória da arte brasileira, a partir do movimento modernista e suas
implicações, que chegaram às teorias contemporâneas, tendo como laboratório o
neoconcretismo de Lygia Clark e Hélio Oiticica, utilizando, por vezes, as teorias
fenomenológicas de Merleau-Ponty. Veremos que o amadurecimento - tardio - da
arte moderna nacional ocorre só na década de 1950, não impedindo a posição de
frente, na arte contemporânea, mesmo não tendo sido reconhecida, ainda, pela
história da arte universal. E ainda, como a arte contemporânea brasileira da
década de 1960 e 1970 deixou herdeiros expressivos, na década de 1990,
alicerçando produções como a do artista baiano Marepe.
Em, Das fendas da tradição cultural, novos mecanismos e expressões de
reconhecimento da cultura, será traçado um panorama dos Salões promovidos
pelo Museu de Arte Moderna da Bahia, verificando, principalmente, suas
transformações, a participação de artistas baianos e a representação gradual no
circuito da arte nacional, como tornou-se uma importante referência para esse
circuito. E como é também uma importante referência para os artistas baianos,
não só das novas tendências como de uma atuação profissionalizante, pagando
pró-labore e prêmios de grande valor financeiro. Ainda daremos ênfase a dois
artistas baianos que participaram da última Bienal de São Paulo, Ieda Oliveira e
Maxim Malhado, que possuem conexões diretas com o trabalho de Marepe.
E o capítulo, Memória, imaginação e cotidiano na produção de Marepe, é
todo sobre a produção de Marepe. Sai de uma perspectiva da vida pessoal do
artista, partindo para a compreensão de suas propostas artistas.
Será observado que seus trabalhos não possuem uma linearidade na
forma, nem nos tipos de materiais utilizados, o que gera uma diversificação rica
também no conteúdo. Perceberemos que a precariedade dos materiais é um
ponto muito comum em sua arte, caracterizando a situação de Terceiro Mundo,
porém, não a estereotipando.
23
Estudaremos a obra de Marepe e como ela insere-se no “Esquema Geral
da Nova Objetividade”, escrito por Hélio Oiticica, de grande importância para a
compreensão das características vigentes na arte contemporânea brasileira.
Conheceremos o processo e a trajetória de Marepe que não só é compatível com
o texto de Oiticica, como no início de sua carreira passou por uma deglutição,
digestão e eructação do processo vivido na primeira viagem ao exterior - como
prêmio da I Bienal do Recôncavo -, sentindo a realidade da teoria antropófaga de
Oswald de Andrade.
Dentro da poética de Marepe, também daremos ênfase às colocações dos
filósofos franceses Merleau-Ponty e Gaston Bachelard, fenomenólogos que tem os
conceitos e as palavras certas para definir ou justificar muitos trabalhos desse
artista, proporcionando uma riqueza na amplitude da poética na produção desse
santantoniense1.
Através de textos e colocações de Oiticica, Ponty e Bachelard vamos
imergir em acontecimentos da vida de Marepe, que são refletidos em seus
trabalhos. Vamos entender como a produção desse artista reflete a poesia de seu
contexto sócio-cultural.
1 Santantoniense, originário da cidade de Santo Antonio de Jesus, BA.
24
2. Uma compreensão histórica: os movimentos modernos que culminaram em tendências contemporâneas.
2.1. Modernidade: uma nova relação entre o artista e a sociedade.
Do ponto de vista acadêmico, referindo-se a uma escola artística específica,
analisar o Modernismo é remeter-se aos vários movimentos que compunham
tendências artísticas produzidas a partir do início do século XX. Essas tendências
tinham por características principais o número de pesquisas distintas,
acontecendo em uma mesma época e região, resultado de transformações de
ordem social ocorridas desde o século XIX, tornando-se mais complexas com o
desaparecimento das encomendas da igreja e dos príncipes (BOURDIEU e
HAACK, 1995, p. 87).
Nos séculos XIX e XX, a autonomia do artista é afirmada. O artista passa a
falar do tema e produzir da forma que lhe convém. Argan observa que:
Exatamente no momento em que se afirma a autonomia da arte, coloca-se o problema de sua articulação com as outras atividades, isto é, de seu lugar e sua função no quadro cultural e social da época. Afirmando a autonomia e assumindo a total responsabilidade do seu agir, o artista não se abstrai da realidade histórica; declara explicitamente, pelo contrário, ser e querer ser do seu próprio tempo, e muitas vezes aborda, como artista, temáticas e problemáticas atuais (ARGAN, 1992, p.11-12).
A partir do século XIX, passa a existir um número maior de movimentos
artísticos paralelos e são mais freqüentes as inovações temáticas e as inovações
técnicas (ainda que, principalmente, nos limites formais da pintura e da escultura),
quando encontramos o Cubismo, o Fauvismo, o Futurismo, o Dadaísmo, o
Surrealismo, o Construtivismo, dentre muitos outros.
Em outrora, os “estilos” afirmavam-se de forma linear e por longos períodos,
os quais depois, na modernidade, passaram a ser “movimentos” múltiplos e
simultâneos. A noção de vanguarda é atribuída ao experimentalismo, que se
tornou um método tanto paras as tendências racionais quanto para as tendências
“irracionais”, adeptas de questões antitradicionais e antiautoritárias (STANGOS,
2000, p.8). Como é o exemplo do construtivismo, um movimento que utilizou
25
diversas linguagens propondo abrangência da arte à grande massa populacional
da sociedade.
2.1.1. Construtivismo: a arte explorando materiais e meios diversos de expressão (uma nova proposta para o objeto artístico).
O construtivismo foi uma escola russa que, de uma forma geral, pode ser
observada como uma das primeiras tentativas de construção de uma linguagem
que procurava romper com cânones da arte acadêmica, não significando que os
artistas envolvidos neste movimento estavam fora do espírito de sua época e de
seu contexto: o modernismo.
Devido à situação política da Rússia, no início do século XX, o
construtivismo pretendia ser um estilo para a formação intelectual na nova era, ou
seja, a era do socialismo.
O construtivismo não pretendia ser um estilo abstrato em arte nem mesmo uma arte, per se. Em seu âmago, era acima de tudo a expressão de uma convicção profundamente motivada de que o artista podia contribuir para suprir as necessidades físicas e intelectuais da sociedade como um todo, relacionando-se diretamente com a produção de máquinas, com a engenharia arquitetônica e com os meios gráficos e fotográficos de comunicação. Satisfazer as necessidades materiais, expressar as aspirações, organizar e sistematizar os sentimentos do proletariado revolucionário – eis o objetivo: não a arte política, mas a socialização da arte (SCHARF in STANGOS, 2000, p. 116).
Segundo Ronaldo Brito, “A ligação dos
construtivistas, com formas geométricas de cores
puras, estava relacionada ao interesse por um
racionalismo que pretendiam estender para a
sociedade” (1999, p.15). Os artistas construtivistas experimentaram o quanto lhes
foi possível, explorando materiais e meios diversos como a produção gráfica
(Figura 1), design de mobiliários e obras de arte, pintura e escultura. Entretanto,
acreditavam no fim da hierarquia na representação artística, que delegava valor
maior à pintura, escultura e arquitetura:
Figura 1
26
Como aspiravam à unificação da arte e da sociedade, os construtivistas expurgaram de suas mentes e de seu vocabulário as classificações arbitrárias que tradicionalmente haviam imposto à arte uma escala hierárquica, sendo a supremacia conferida à pintura, escultura e arquitetura. A idéia de que as Belas Artes são superiores às chamadas “artes práticas” perdera para eles toda a validade (ibidem, p.118).
As dificuldades técnicas e os problemas políticos fizeram com que os
artistas construtivistas e suprematistas russos fossem para outros países da
Europa Ocidental, onde puderam desenvolver suas pesquisas conhecidas como
“cultura dos materiais”. Esse programa tornou-se mais tarde, o protótipo para
partes do curso da Bauhaus2 alemã que recebeu influências da Art Nouveau e a
herança de William Morris, que conseguiu aproximar a figura do artista e do
artesão “na tentativa de reconciliar os dois momentos principais do processo
produtivo: o criativo e o material” (CARISTI in DE MAISI, 1999, p. 229).
Do ponto de vista da história das artes visuais, os artistas da vanguarda
russa, fizeram a primeira tentativa organizada de instituir outros parâmetros para o
objeto de arte, onde as novas tecnologias funcionavam como parceiras na criação
artística. O arquiteto e artista El Lissitzky cunhou um termo que poderia ser usado
atualmente: “proun” (a abreviação de uma frase em russo que significa “novos
objetos da arte”). “Proun era, simplesmente, um método de trabalho, em total
harmonia com os modernos recursos tecnológicos” diz Scharf (in STANGOS,
2000, p.118).
Neste período aconteceram transformações, mesmo que com outras
conotações, em movimentos paralelos ao construtivismo, como no dadaísmo.
2.1.2. Duchamp e o Dadaísmo: a renúncia de técnicas especificamente artísticas (ou a contestação de todos os valores).
2Escola alemã de artes visuais e arquitetura, fundada em Weimar pelo arquiteto alemão Walter Gropius (1883-1969). Primeira escola de desenho industrial moderno. Funciona de 1919 a 1933 com o objetivo de formar artistas capazes de ligar a arte à produção industrial. A Bauhaus (casa da construção) propõe uma arte funcional, e não apenas decorativa, que atenda às necessidades da sociedade industrial e torne mais harmonioso o cotidiano das pessoas. Posteriormente, o nome passa a identificar toda obra criada de acordo com os princípios da escola.
27
Na década de 1910, ocorreu um fato que foi chave para uma transformação
nos conceitos de arte em âmbitos muito mais amplos do que os artistas da época
puderam imaginar: a recusa de uma pintura de Marcel Duchamp no Salão dos
Independentes de Paris (Figura 2). O que o próprio artista relata:
Há um incidente em 1912 que me deixou meio “alterado”, se posso assim dizer; quando trouxe o Nu Descendo uma Escada para os Independentes, e me pediram para retirá-lo antes da abertura. No grupo mais avançado da época, havia pessoas com escrúpulos incríveis, eles mostravam uma espécie de medo! Pessoas como Gleizes, que era, mesmo assim, extremamente inteligente, acharam que o Nu não tinha a ver com a linha que já haviam previsto. O Cubismo não tinha ainda dois ou três anos de existência, e eles já tinham uma linha de conduta absolutamente clara, estabelecida, prevendo tudo que deveria acontecer. Eu achei muito ingênuo. Isso me esfriou a tal ponto que, como uma reação contra tal comportamento, da parte de artistas que eu acreditava livres, arrumei um emprego. Tornei-me bibliotecário na Biblioteca Sainte-Geneviève em Paris. (...) então veio a guerra, que transformou tudo, e parti para os Estados Unidos (CABANNE, 1987, p.26-27).
Sem constrangimentos, os dadaístas não
hesitaram em utilizar materiais e técnicas
industriais ao renunciarem técnicas
especificamente artísticas. Esses artistas
“brincavam” com os valores da obra de arte. “A
intervenção desmistificadora atinge, ainda com
mais razão, os valores indiscutidos, canônicos,
geralmente aceitos e transmitidos” (ARGAN,
1992, p. 356). Ao colocar bigodes na Mona Lisa,
Duchamp não quis interferir em uma obra-prima, e
sim contestar um senso comum, que a venera
passivamente. E com a possibilidade da
reprodução, brinca com a dificuldade em ser
distinguida, entre o original e o que foi
reproduzido, negando, dessa forma, “as técnicas como operações programadas
com vistas a um fim” (ibidem, p.356) tendo seu ápice no ready-made.
Figura 2
28
Essa idéia é uma das mais exploradas pelo próprio Duchamp, declarando
que, a escolha por aqueles ready-mades nunca foi conduzida por uma apreciação
estética, e sim baseada em uma “reação de indiferença visual” (ADES in
STANGOS, 2000, p.87). “Não existe problema, não existe solução. A obra existe,
e sua única razão de ser é existir. Não representa nada além do desejo do cérebro
que a concebeu” disse Gabrielle Buffet, citada por Picabia (ibidem, p.87).
Em meio ao espírito contestador e irônico dos dadaístas em relação ao
meio artístico e em relação à arte versus mercado, Duchamp lança a idéia para o
trabalho do também dadaísta Man Ray, Cadeau (1921)
– um ferro de passar roupa com uma fileira de pregos
despontando da base (Figura 3): “Ready-made
recíproco: Use um Rembrandt como tábua de passar
ferro” (ibdem, p.83).
Em 1917, a atitude de Marcel Duchamp, que já
vivia em Nova York, ao transformar conceitualmente
um urinol em obra de arte, criou um ícone na ruptura
da representação artística, inconcebível para seu meio
até então. Esse ato abriu precedente, não só para
outros trabalhos com a mesma contundência crítica
como para tendências na história da arte, que tiveram
maior expressão só a partir dos movimentos artísticos
dos anos de 1960.
2.1.3. Dada e Construtivismo: a dessemelhança convergente. Apesar de, em um contexto mais geral, a história da arte atribuir ao
movimento dadaísta e aos princípios do construtivismo russo conceitos distintos,
existiram pontos convergentes como coloca Haroldo de Campos:
Artistas tão caracteristicamente marcados pela rebeldia Dada, como o poeta-pintor-escultor Kurt schwitters, por exemplo, já nos primeiros anos da década de 20 começariam a ligar-se aos neoplasticistas holandeses e aos construtivistas russos, numa evidente demonstração de que evoluíam para um endereço comum (in ANDRADE, 1998, p. 21).
Figura 3
29
Outra convergência foi a do artista dadaísta Jean Arp que expôs com os
construtivistas, demonstrando assim, que num plano isolado as obras de
determinados artistas poderiam ter ligações com movimentos artísticos distintos e,
até mesmo, contrapostos, como é o caso do dionisíaco Dadaísmo e do apolíneo
Construtivismo. Devendo ser estabelecida a distância entre os movimentos, “a
partir de considerações mais amplas, da ordem de uma política cultural” (BRITO,
1999, p.27).
2.2. A arte brasileira e a relação com a identidade/realidade nacional.
Enquanto na Europa e nos Estados Unidos algumas vanguardas artísticas
já transcendiam o plano pictórico ou hierarquias entre a “arte maior” e a “arte
menor”, no Brasil a ruptura dos parâmetros da arte pré-moderna aconteceu nas
artes plásticas ainda no plano pictórico e escultórico figurativo, a partir da década
de 1920, pontualmente, com a Semana de Arte Moderna em 1922.
O processo da arte contemporânea brasileira que vem da Semana de 1922,
passa pelo Manifesto Poesia Pau-Brasil de 1924, se alimenta do Manifesto
Antropófago de 1928, ambos escritos por Oswald de Andrade, seguindo em busca
de uma arte com conotações intrínsecas à cultura nacional, passando pelo evento
“com repercussões culturais incalculáveis” para o Brasil (PEDROSA, 1981, p. 40),
como para a Europa, a I Bienal de São Paulo em 1951, quando, ainda segundo o
crítico Mário Pedrosa, “o público brasileiro tem assim, pela primeira vez, contato
com o que se convencionou chamar de arte moderna” (ibidem, p. 40).
Nem tudo o que foi produzido na mesma época do modernismo pode ser
enquadrado como moderno, levando em conta as transformações estilísticas
daquele movimento. Estar produzindo na mesma época de qualquer movimento
artístico não significa fazer parte de seus postulados. Dentro do próprio
modernismo mundial podem ser observadas situações desta natureza.
(...) pintores tão enaltecidos como Rouault e Chagall nada mais faziam do que retornar a uma concepção representacional, a uma idéia da arte como expressão de conteúdos subjetivos que agiam de modo
30
manifestamente conservador. O que não impediu, por certo, que fossem chamados de modernos (BRITO, 1999, p.36).
Se dentro da própria estrutura cultural européia existem contradições, no
Brasil pode-se perceber que a Semana de 22 apenas abre precedentes para uma
assimilação mais rápida das correntes modernas, sem que, com isso, tenha-se
desenvolvido e levado a cabo as pesquisas, no campo da representação visual, as
premissas de um cubismo, por exemplo. Os artistas brasileiros estavam apenas
servindo-se da “refeição” modernista, faltava a fagia e a ezia, como coloca
Ronaldo Brito:
(...) Tarsila, Di Cavalcante, Cícero Dias, Guignard, Portinari são a rigor pintores pré-cubistas (...) Estavam aquém da radical transformação proposta pelo cubismo, permaneciam presos, independentemente da qualidade e do interesse de seus trabalhos, aos antigos esquemas de representação. E uma leitura não anedótica da história da arte moderna é algo que deve se dar ao nível dos conceitos e das rupturas produzidas nos esquemas de representação, e não ao nível de uma seqüência cronológica ou das transformações aparentes (ibidem, p.35).
O Movimento de 1922 aconteceu quando, na década de 1920, um carioca,
Di Cavalcanti, juntou-se a intelectuais paulistas da classe média e da elite para
que acontecesse um evento de cultura e arte que estremeceu os pilares da
tradição acadêmica. Foi em tom rebelde o caráter dos espetáculos literários,
musicais e da exposição de artes plásticas da Semana de Arte Moderna no Teatro
Municipal de São Paulo, em 1922.
O marco da introdução da arte moderna no Brasil é considerado a Semana
de 22, porém havia a existência de outros grupos paralelos, menos favorecidos
financeiramente, que já se organizavam e, muito mais próximos dos movimentos
de classe - em São Paulo a divisão de classe era muito acentuada,
conseqüentemente, os movimentos também, surgindo, assim, a Família Artística
Paulista que foi formada pela união de dissidentes dos Salões de Maio - que
reuniam senhoras da alta sociedade, amadores em artes plásticas e um pouco do
espírito de 1922 - com os integrantes do Grupo Santa Helena, que na sua maioria,
31
já tinham sido operários. Havia, entre eles, desde pintores de paredes, como
Alfredo Volpi, a jogador de futebol aposentado, como Francisco Rebolo.
Tratando do modernismo brasileiro como o “entrelugar”3 da cultura nacional,
Fernando Cocchiarale diz:
Quase duzentos anos de tenso esforço em igualar-se aos padrões europeus, terminou resultando, não no sucesso dessa empresa imaginária, mas em um modo brasileiro de assimilar, recusar e sintetizar as influências internacionais (modelo que aparece, por exemplo, na antropofagia modernista de Oswald de Andrade) (in HOLLANDA e RESENDE, 2000, p. 101).
No que concerne identidade nacional, os artistas modernos são colocados
como precursores dessa busca, quando se propõem a produzir arte com tema
social e, de certa forma, representam o povo e a cultura brasileira.
Nessa nova percepção nacional ocorrida com o modernismo, vai acontecer
uma reformulação de conceitos e
valores recorrentes à identidade
nacional (Figura 4).
Dentre essas
reformulações, por exemplo, há o
descobrimento do morro da
Favella4 no Rio de Janeiro pelos
modernistas, sob a influência do
poeta francês Blaise Cendrars
(JACQUES, 2001, p.18). Em
1924, Tarcila do Amaral pinta a
tela “Morro da Favela” e a
oferece a Cendrars, mesmo ano
3 Termo utilizado por Mario de Andrade na “Carta pra Icamiabas” onde fala do entrelugar como sendo o momento para o discurso do dominador e a cultura erudita darem o lugar para a legítima expressão brasileira. 4 Hoje, Morro da Providência. O termo favela, originalmente, denomina uma planta existente no Sertão e chegou ao Rio de Janeiro através dos soldados que lutaram em Canudos (JACQUES, 2001, p. 18).
Figura 4
32
em que Oswald de Andrade lança o “Manifesto Pau Brasil”, que, segundo
Fernando Cocchiarale, é o texto inaugural da questão da brasilidade modernista
(in HOLLANDA e RESENDE, 2000, p.102), já demonstrando o potencial estético
das favelas: “A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos
verdes da favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos”. E, em outros
momentos, ele desdobra: “O Carnaval. O Sertão e a Favela. Pau-Brasil. Bárbaro e
nosso. (...) E a sábia preguiça solar. A reza. A energia silenciosa. A hospitalidade”
(ANDRADE, 1998, p.65-66). Essas referências já demonstravam a linha de uma
arte relacionada diretamente com a identidade brasileira.
No “Manifesto Antropófago”, Oswald de Andrade propõe a superação da
submissão nacional e a composição de uma identidade cultural brasileira inspirada
no primitivo nacional: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente.
Filosoficamente”. E ainda declara a refeição da civilização que nos colonizou:
“Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que
estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti”.
Dentro de um processo de transformação do ritmo de desenvolvimento das
sociedades da América Latina e tratando sobre cosmopolitismos periféricos na
modernidade, Ângela Pryston, considerando o referido Manifesto um dos marcos
da “concepção brasileira modernista de cosmopolitismo”, trata do surgimento de
uma concepção mais crítica:
A cópia cultural praticada durante as primeiras décadas do século XX serve como princípio para ocultar superficialmente as disparidades e os descompassos de um país subdesenvolvido como o Brasil em relação ao ideário e ao concreto progresso industrial europeus (2002, p.45).
Essa posição unilateral fez com que as diferenças sociais e econômicas,
desprezadas pela elite, fossem realçadas diante da dura realidade de opressão à
maioria dos brasileiros. Ou seja, vieram à tona a incompatibilidade de idéias,
costumes, arquitetura e artigos de luxo parisiense, com a realidade social do
Brasil. O que acabou despertando a consciência moderna das contradições
brasileiras, diz Pryston.
33
Só com o passar do tempo e com desenvolvimento urbano e da
comunicação, que artistas brasileiros passam a ter informações mais significantes
das produções e dos conceitos dos países da Europa ocidental. Também, o
público passa a ter contato com estes meios, e com esta conjunção de fatores, o
os artistas brasileiros passam a desenvolver uma produção artística mais nivelada
em relação a outros centros irradiadores de cultura.
Entre as décadas de 1940 e 1950, surgem no Brasil as vertentes da arte
abstracionista. Até então,
(...) a produção cultural do país gravitou em torno de questões essencialmente ideológicas, como a brasilidade e o regionalismo, que terminaram por eclipsar a possibilidade de uma polêmica estética similar à que ocorria na Europa. Não seria impróprio dizer que a politização e a conseqüente desestetização do debate sobre a arte brasileira foi um fator que adiou, até o final da década de 40, sua efetiva modernização estética (COCCHIARALE in HOLLANDA e RESENDE, 2000, p.104).
Assim, em contrapartida à “arte quase temática”, surgiu uma nova
tendência na arte brasileira, o abstrato concreto.
Pode-se afirmar, então, que foi na década de 1950, que chegamos a uma
maturidade moderna, “No Brasil pensamos, a arte moderna, em seus conceitos
fundamentais, só veio de fato a ser compreendida e praticada a partir da
‘vanguarda construtiva’” (sic BRITO, 1999, p.36).
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e o fim da ditadura de Getúlio
Vargas no Brasil, foi propiciado aos artistas brasileiros, que gozavam da
reconquista dos direitos civis, a possibilidade de “divergir para renovar”. E os
primeiros grupos de artistas abstrato-concretos do Brasil surgem no Rio de Janeiro
e em São Paulo.
Pela primeira vez e tardiamente a arte brasileira pôde, enfim, produzir suas primeiras vanguardas, desde logo envolvidas, por divergências teóricas e práticas, em uma intensa polêmica, que se estendeu durante os anos 50 e teve por pólos principais os grupos concretistas de São Paulo (Grupo Ruptura, 1952) e do Rio de Janeiro (Grupo Frente, 1953), e, secundariamente, o informalismo que por privilegiar a expressão individual, não chegou a formar grupos organizados (COCHIARALE in HOLLANDA e RESENDE, 2000, p.105-106).
34
Simplesmente, por emergir o
abstracionismo geométrico e informal no
cenário da arte brasileira, naquele momento,
esse movimento já possuía um sentido mais
politizado e contundente, por ser capaz de
romper com o monopólio da arte dominante,
diz Cocchiarale (ibidem, p.105).
Os grupos concretistas de São Paulo,
André Sacilotto, Waldemar Cordeiro, Geraldo
de Barros dentre outros, seguiam os
princípios do Concretismo internacional,
criteriosamente. Princípios expressos por
Theo Van Doesburg desde a década de
1930.
O Concretismo atacava o obsoleto “poder humanista tradicional no
ambiente cultural brasileiro”, conforme diz Ronaldo Brito (1999, p.59). Porém,
apesar de citarem Marx e Engels, não alcançavam a proposta benjaminiana de ,
politizar a arte. Segundo Brito, “os concretos estavam fora de dúvida muito mais
perto de estetizar a política” (ibidem, p.60).
A arte concreta esteve polarizada com o que se designa formalismo
expressionista, duas tendências fundamentais da arte contemporânea da época,
como coloca Mário Pedrosa (1981, p. 43), na I Bienal de São Paulo.
2.2.1. As novas conotações da arte brasileira a partir da I Bienal de São Paulo.
Figura 5
35
A I Bienal de São Paulo foi
inaugurada em 1951 (Figura 5). A partir
dela é possível observar como a
influência construtiva tomou corpo e
possibilitou o surgimento de um projeto
construtivo brasileiro que via na obra de
Malevitch e Mondrian e do então
contemporâneo Max Bill, uma nova
“perspectiva” para as pesquisas
plásticas, além disso “O prêmio da
Bienal de São Paulo de 1951 concedido
à peça de Bill Unidade Tripartida (Figura
6) foi sintoma do entusiasmo local pelos
postulados racionalistas da arte
concreta” (BRITO, 1999 p.36). A
primeira Bienal serviu de contato
próximo a algumas das diversas maneiras plásticas de se expressar, sob a
proteção do conceito de moderno, “o público brasileiro tem assim, pela primeira
vez, contato com o que se convencionou chamar de arte moderna” disse Mario
Pedrosa (1981, p.40). Pedrosa ainda fala desta primeira bienal:
Duas tendências fundamentais polarizam a grande exibição internacional. De um lado a arte realmente moderna, constituída pelos não-figurativos de todas as nuanças. Do outro, as diversas variantes objetivistas e figurativistas. Há também os bastardos de Picasso, Matisse ou Braque (...) (1981, p.41).
Não se deve considerar esta Bienal representante da implementação de um
conjunto de ações que culminaram em uma produção nacional naquele momento
específico. Mas foi através destas mostras, da primeira às decorrentes, que
possibilitaram o acesso às obras que influenciariam o questionamento das
expressões formais, que desmembraram, em possibilidades cada vez mais
híbridas, a discussão em torno das possibilidades do objeto.
Figura 6
36
Ronaldo Brito (1999, p.12) reforça que artistas ligados ao movimento
moderno brasileiro, mesmo os que participam da fase pós Semana de 1922, como
Portinari, Segall, Di Cavalcanti, Pancetti, entre outros, continuaram presos ao
molde tradicional da representação. E dentre os reconhecidos pintores da época,
Mário Pedrosa diz que por ter “evoluído”, diferente de Segall, Portinari e Di, no
contexto da II Bienal de São Paulo, com a pintura de planos coloridos surgindo e
enxotando os “modelados” que Volpi (Figura 7) deveria ser consagrado “como o
mais autêntico dos mestres de
sua geração” (1981, p.53).
Com o surgimento de um
meio de arte bem menos
periférico que nas décadas
anteriores, o Brasil vê-se diante
de um novo modo de produção de
arte. E sua maturação não tarda,
o processo de transformação
social do país, a partir da década
de 1950, torna-se cada vez mais
rápido. Em pouco tempo
nasceram núcleos complexos de
produção e discussão sobre as
novas possibilidades da arte, culminando numa proposta diferenciada, a arte
contemporânea.
2.3. Arte contemporânea: uma nova proposta de participação. Ao falar de arte contemporânea, é necessário imergir-se na
contemporaneidade, que anula a noção linear da história como sucessões de
fatos, não existindo uma continuidade de teorias. Ronaldo Brito fala da não
existência de uma teoria da contemporaneidade, que o próprio desta
contemporaneidade é a existência de um “amontoado” de teorias que coexistem
em tensão.
Figura 7
37
Mas, no geral, as maneiras “contemporâneas”, os procedimentos de
construção da obra de arte, rompem com idéias como as do crítico Clement
Greenberg5, conforme coloca a crítica de arte Cristina Freire, em seu livro
Poéticas do Processo:
As poéticas conceituais materializam, freqüentemente, através da chamada desmaterialização da obra, uma crítica às instituições e sua lógica de operações excludentes. A crítica formalista, centrada nos princípios da hegemonia da pintura e do papel autônomo da arte que alicerçou os discursos de críticos importantes como Clement Greenberg, por exemplo, não se sustentava mais ante a Arte Pop, ante a Minimal Art ou poéticas de artistas como Josef Beuys e John Cage (1999 p.30).
O que se pode visualizar é uma profunda transformação na maneira de
dizer as coisas através do objeto de arte, pois este já não possui uma forma
definida, categorizada, há uma transformação, vale dizer que não só nas artes
plásticas, mas nas linguagens artísticas. Através do objeto de arte, o artista
começa a propor novas possibilidades para o espectador, o que é colocado pelo
filósofo e crítico italiano Umberto Eco, em seu livro a Obra Aberta. Eco fala do
redirecionamento da análise da obra, oferecendo uma nova forma de relação,
fruição entre espectador e obra.
Precursor de idéias de vanguarda, o brasileiro Haroldo de Campos, três
anos antes de Umberto Eco escrever sobre a obra aberta, publicou o artigo “A
Obra de Arte Aberta”, no Diário de São Paulo em 03, jul. 1955. Na “Introdução à
Edição Brasileira” de seu livro, Eco fala de como, no Brasil, são precedidas suas
idéias:
A nova escola crítica de São Paulo debate há tempos, o problema da aplicação dos métodos informacionais à obra de arte, e as contribuições de muitos críticos, e estudiosos brasileiros foram-me úteis nestes últimos anos para levar adiante minhas pesquisas. É mesmo curioso que alguns anos antes de eu escrever Obra Aberta, Haroldo de Campos, num
5 Para Greemberg, a obra de arte não deveria ter nenhuma influência de seu meio. A melhor percepção da obra vinha de um rígido treinamento do olhar pois, os critérios de qualidade seriam intrínsecos a ela. Na soberania da pintura, Greemberg coloca quatro princípios eptomizados: a objetividade material, a autonomia da obra, conforme fala Cristina Freire (2005, p. 63).
38
pequeno artigo, lhe antecipasse os temas de modo assombroso, como se ele tivesse resenhado o livro que eu ainda não tinha escrito, e que iria escrever sem ter lido seu artigo (ECO, 1997, p.17).
Essa nova relação entre sujeito-objeto existente na produção artística, e na
produção teórica, caracteriza o termo “arte contemporânea”.
O importante crítico de arte brasileiro Mario Pedrosa escreveu muitos
artigos sobre essa transformação da arte. E em 1960, escrevendo o texto
Significações de Lígia6 Clark, Pedrosa fala que nas exposições e mostras
européias e, até mesmo, na Bienal de Veneza, é notável a decadência da
escultura, supondo que essa tendência deve-se à perda total de autonomia dessa
linguagem. Atribui ao fato de novamente a escultura querer seguir a rota da
pintura, como aconteceu com a escultura cubista, que os mestres da escultura do
século XX - Gabo, Pevsner, Arp, detre outros - tiveram participação no
construtivismo e no dadaísmo respectivamente, e pouco, ou nada no cubismo.
Pedrosa fala ainda das pesquisas e descobertas de Lygia Clark, obras que
propõem ao espectador a participação na criação, ou no desdobramento da obra.
E sobre essa transição da arte, Mario Pedrosa ainda fala:
(...) em face da crise cada vez mais pronunciada das artes tradicionais da pintura e da escultura - os gêneros já não apresentam as velhas delimitações (pintura tendendo à escultura, escultura imitando a pintura) e a cada momento nascem coisas, inventam-se objetos híbridos, que estão a indicar estar a arte, tal como a tivemos até agora, em estado transicional, como uma crisálida (1981 p.200).
Sendo correta a afirmação de que só alcançamos uma maturidade em
relação aos conceitos modernistas na década de 1950, como afirma o crítico
brasileiro e então curador do Museu de Arte Moderna de Nova York, Paulo
Herkenhoff, como pode ser afirmado o aparecimento de tendências que
caracterizam os estilos contemporâneos sem defasagem temporal? Seria possível
6 Sic, o correto seria Lygia.
39
desenvolver uma produção com características que possibilitassem este
acontecimento?
A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, o Brasil, à medida que abre suas fronteiras econômicas e sociais formando algumas manchas urbanas mais desenvolvidas tecnologicamente, abre-se para uma assimilação mais rápida das produções artístico-culturais dos centros irradiadores de cultura, seja através de mostras internacionais (as Bienais de São Paulo, sobretudo), seja a partir do aparecimento paulatino de um número maior de publicações especializadas (CHIARELLI in BASBAUM, 2001, p. 262).
Porém, a recíproca não condiz. Mesmo o Brasil tendo pensamento e
produção de vanguarda, isso não era repercutido com o mesmo grau de
importância que se observa hoje, como Herkenhoff afirma em 1997, no texto
“Brasil/Brasis”: O Brasil inventa a discussão e o termo “arte pós-moderna” (a condição pós-moderna foi discutida em 1966 pelo crítico Mário Pedrosa, com motivos, argumentos, substratos filosóficos semelhantes aos que ocupariam o pensamento europeu e norte-americano nos anos 1970 e 1980). Pedrosa, no Rio de Janeiro, falava no gueto – isso equivale a dizer que não falava para o mundo (in BASBAUM, 2001, p.360).
Provavelmente, pela questão da localização periférica, o Brasil não tenha
destaque na produção artística contemporânea apresentada nos livros de história
da arte, isso quando aparece um artista “tupiniquim” nessas publicações.
2.3.1 Mecanismo interno: o desenvolver da arte brasileira.
De uma forma ou de outra, falando dentro de sua própria estrutura social,
existia no Brasil um ambiente propício para o desenvolvimento de uma produção
artística contemporânea, que contava com setores importantes para este
desenvolvimento. A produção em si, o pensamento teórico sobre esta produção e
a ascensão do mercado. Sobre a produção artística concomitante com a produção
teórica, Eduardo Coinbra e Ricardo Basbaum falam no texto Tornando Visível a
Arte Contemporânea:
40
Pode-se dizer que o papel da crítica foi fundamental para a articulação e eclosão do movimento neoconcreto, momento raro em que crítica e produção caminharão juntas. Todas as possibilidades que se seguiram, experimentadas pela arte dos anos 1960, no Brasil, têm origem na consistência e sofisticação desse embate: idéias e conceitos, em arte são sempre formados verbal e plasticamente, de modo que não é possível existir criação desvinculada de um contato direto com as obras, assim como é ingênuo supor que se pode produzir arte sem pensamento. O suplemento Dominical do Jornal do Brasil foi um espaço, na imprensa, que permitiu o desenvolvimento de uma discussão deste tipo (in BASBAUM, 2001, p.345).
Em relação ao mercado de arte, além de tentativas por parte de galerias, de
fato um mercado representativo de arte no Brasil só implementou-se na década de
1970. Com a inflação acelerada entre 1970 e 1973, no mercado de capitais, o
mercado de arte representou uma boa alternativa.
Do ponto de vista da linguagem, os artistas estavam levando o objeto de
arte para uma fronteira cada vez mais próxima da vida. A proposta de levar o
espectador a participar da obra foi uma das características marcantes da
implementação da arte contemporânea.
A constante nesta produção era uma preocupação com a maneira em que
as coisas seriam ditas. E é da relação entre literatura e artes plásticas que surge
as bases do movimento Neoconcreto que direcionou a produção contemporânea
local, desligada já dos pressupostos construtivos. E alguns de seus integrantes
são os indicativos do surgimento da poética contemporânea na arte brasileira.
Os agentes neoconcretos prescreviam, assim, o terreno de sua prática e se dispunham a analisar os seus elementos de modo autônomo: a arte não podia ser instrumentalizada, e sim compreendida como atividade cultural globalizante, que envolvesse o conjunto de relação do homem com seu ambiente (BRITO, 1999 p.65).
O neoconcretismo resgata conotações da ideologia romântica. O culto à
marginalidade está inserido nessa ideologia, o que já é contraditório ao projeto
construtivo. A aproximação de alguns artistas das idéias dadaístas definiu, por
vez, uma tendência muito própria e de características diferenciadas de qualquer
outra tendência artística brasileira. Seguiu-se a velocidade experimental dos
dadaístas, a flexibilidade que criaram novos esquemas e que fizeram e fazem com
41
que o artista contemporâneo tenha uma necessidade de colocar seu trabalho a
frente do mercado e das possíveis transformações ideológicas de sua atividade.
2.4. Neoconcretismo: uma nova objetividade na arte brasileira de vanguarda. No “Esquema geral da Nova Objetividade” escrito por Hélio Oiticica, no Item
4, é tratada a “Tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e
éticos” pelos artistas (1996, p.115). No texto é tratada a necessidade urgente de
formular os problemas de abordagem no campo criativo. A relação político-social
está presente na linha da “arte participativa”, uma polêmica que inclui aqueles
artistas que procuram criar alicerces para uma cultura brasileira típica, com
características e personalidades autênticas. Nesse sentido, Ferreira Gullar tem
grande importância pela quantidade de idéias e obras produzidas naquele período.
Hélio Oiticica esclarece:
O que Gullar chama de participação, é no fundo essa necessidade de uma participação total do poeta, do artista, do intelectual em geral, nos acontecimentos e nos problemas do mundo, conseqüentemente influindo e modificando-os; um não virar as costas para o mundo para restringir-se a problemas estéticos, mas a necessidade de abordar esse mundo com uma vontade e um pensamento realmente transformadores, nos planos ético-político-social (ibidem, p.116).
Segundo Gullar, o artista não deve deter-se em transformações no campo
estético. Deve tratar de questões mais amplas, que criem bases para uma
totalidade cultural transformadora da consciência humana. Que transforme o
homem, de espectador passivo diante dos acontecimentos a um participador
ciente, agindo como lhe for possível (apude OITICICA, ibidem, p.116).
Persistindo na velha posição esteticista, o artista está fadado a uma posição
gratuita e alienadora. A tomada de consciência torna-se imprescindível diante de
duas vertentes: tomar consciência ou estar fadado a permanecer sob um
panorama cultural limitado a modificações insignificantes de idéias ultrapassadas.
No “Esquema Geral da Nova Objetividade”, é essencial discutir a chegada
ao objeto e, para não se cair em uma discussão esteticista, criar fundamentos
para uma vontade político-ético-social. Com processo de chegada ao objeto,
42
verificou-se um novo olhar diante do mundo, uma visão mais humanizada. A
vanguarda naquele momento, segundo Oiticica, não se restringia a um grupo de
elite isolado, mas tentava uma ação cultural mais ampla que chegasse às
soluções coletivas. Nesse contexto de busca, a proposição de Gullar que mais
interessava naquele momento para Oiticica, sendo também a mais motivadora
para o próprio Gullar, era a que não bastasse:
(...) à consciência do artista como homem atuante, somente o poder criador e a inteligência, mas que o mesmo seja um ser social, criador não só de obras mas modificador também de consciências (no sentido amplo, coletivo), que colabore ele nessa revolução transformadora, longa e penosa, mas que algum dia terá atingido o seu fim – que o artista “participe” enfim da sua época, de seu povo (sic, apud OITICICA, ibidem, p.117).
As obras coletivas, como pensava
Oiticica, são importantes para a
transformação do espectador ingênuo,
passivo à arte. Para o espectador
participante da criação fenomenológica da
obra, esta é uma proposta aberta à total
participação.
Lygia Clark, no neoconcretismo, foi
quem primeiro solicitou a colaboração do
espectador a ativar a obra. Partiu de um
casulo, para criar bichos (Figura 8)
inventivos que abriam a discussão do papel
do artista na fruição da obra. Seus
ambientes que propunham ativações da
memória fetal e suas “nostalgias corporais”
fazem sentir esta ambiência de ninho, de abraço. Já Hélio Oiticica partiu da pintura
para questioná-la, enquanto manifestação ambiental, e jogou com as mãos suas
obras para o mundo. Impulsionou o tornado com os movimentos dionisíacos dos
Figura 8
43
parangolés (Figura 9) e propôs uma noção de ambiente que possibilitava ao
espectador se deparar com uma obra, a partir da aceitação da proposta por parte
do mesmo, de repente, em um parque ou em uma rodovia iluminada por tonéis de
estopa e óleo diesel, vivenciar o que já estava ali, dando valor e sentido poético
Figura 9
44
naquela interferência ambiental (Figura 10).
Como agentes transformadores da linguagem plástica no Brasil, os dois
artistas são os indicativos de pesquisas que chegaram a uma linha artística que
Mario Pedrosa denominou pós-modernismo. Embora Hélio Oiticica tenha
declarado um posicionamento contrário ao Pop e à Op Art, isso não anula a
inserção destes artistas brasileiros em um território mais amplo de produção de
arte contemporânea.
Se uma das
características da
transformação das
linguagens
artísticas é a
desmistificação do
suporte pictórico,
podemos tomar
como ponto de
partida a trajetória
de Lygia, como
princípio do
questionamento das
expressões pictóricas e da chegada ao plano sem suporte ou apoiando-se em si
mesmo. Sobre esse processo de transformação, Mário Pedrosa conclui em 1967:
Lígia Clark foi no Brasil a primeira a tirar daí as implicações, ao tentar desmoldurar o quadro pictórico para que o mesmo, flutuando no espaço real, se identificasse com aquele, ou a redução final de todo conceito representativo no mundo plástico. Desse passo seguiram-se os outros que fizeram passar da superfície plana pictórica ao espaço real, onde, dando articulação aos planos por meio de uma dobradiça, chegou ao movimento com os “bichos” (1986, p.163).
Lygia Clark é apontada como a pioneira, junto a Hélio Oiticica, da
desmistificação da obra, pois ela traz à tona a questão da durabilidade, da aura da
obra de arte tida como intocável, rara como um quadro de borboletas, mortas,
Figura 10
45
imóveis. O percurso até os Bichos surge deste questionamento sobre o espaço
pictórico. “Se se liquidava o espaço pictórico do plano criava-se um ‘objeto’ ou
‘neo-objeto’ ou ‘objeto artificial’ (no domínio das teorizações estruturais) ou o ‘não
objeto” (ibidem, p.163-164).
Estas investidas de Lygia Clark e Hélio Oiticica fizeram o crítico Mário
Pedrosa analisar suas obras como um novo momento da produção plástica, que já
não podia ser absorvido pelos dogmas do modernismo, disse ele em 1966:
“Estamos agora em outro ciclo, que não é mais puramente artístico, mas cultural,
radicalmente diferente do anterior” (1981, p.205). Neste momento, antecipando o
uso do termo pós-moderno em relação à produção artística visual, declara que,
com as descobertas de Lygia e Hélio, o Brasil colocava-se na posição de
enunciador das linguagens pós-modernas.
A esse novo ciclo de vocação antiarte chamaria de “arte pós-moderna” (...) os jovens do antigo concretismo e sobretudo do neoconcretismo, com Lígia Clark à frente, sob muitos aspectos anteciparam-se ao movimento do Op e do Pop. Helio era o mais jovem do grupo (ibidem, p.205).
Dentro do emaranhado de conceitos que surgiram, das possibilidades que
despontavam na maneira de propor o trabalho de arte, a dupla de artistas estava
totalmente a par das transformações mais significativas. Vistas de um âmbito
geral, o crítico inglês Guy Brett fala:
O significado de Oiticica é que ele viu todas estas áreas e questões7 como sendo interligadas, e que ele fazia isso dentro de outra estrutura, uma que dava o lugar de honra ao “espectador” participante, em vez de ao objeto. Coisas semelhantes poderiam ser ditas sobre a arte e o pensamento de Lygia Clark (in CENTRO DE ARTE HÉLIO OITICICA, 1998, p.223-224).
Com a transformação na dinâmica das comunicações globais, um ambiente
propício foi instalado, surgindo um levante, pelo menos europeu e estadunidense,
7 Arte cinética, arte processo, monocromo, arte ambiental, body art, participação; performance – ou como assuntos polêmicos e contestados: o status do objeto enquanto comunicação ou bem de consumo; noções de autoria e as relações do artista com o público; a defasagem entre belas artes e cultura popular; questões de identidade, sexualidade, descolonização e diferença cultural; a relação entre arte e vida.
46
além de japonês, para compreender e desenvolver questões da inserção do
trabalho de arte no ambiente social. As profundas transformações dos anos de
1960 e 1970 fizeram com que muitos artistas, internacionalmente, colocassem em
pauta questões sociais, de um modo visionário, através de sua produção artística.
Como herdeiros da tradição da antropofagia8, os neoconcretistas
suprimiram as influências externas e introduziram novas questões e focos de
atenção, no intuito de possibilitar ao outro uma experiência mais plena.
Sobre essas novas questões, Lygia Clark sempre é citada como pioneira
nos textos de críticos que incluem a produção artística brasileira em seus estudos,
como é o caso de Guy Brett, quando diz que Lygia:
(...) introduziu meios extremamente importantes e sutis de distinguir seu trabalho do de muitos de seus contemporâneos europeus e americanos, com quem ela tinha, em termos formais, alguns pontos em comum. A proposta do objeto “incorporado” pelo espectador deu a ela uma posição conceitual diferente tanto da escultura de vanguarda emergente nos anos 1960, quanto da posterior ‘body art’, apesar do fato de Lygia poder ser vista tanto como uma inovadora em termos puramente escultóricos quanto como uma pioneira do ‘retorno ao corpo’, descrito como uma das mais marcantes da arte recente. A Obra Mole, por exemplo, antecipou em vários anos obras como as esculturas flexíveis de feltro de Robert Morris e a elásticas Rosa Esman’s piece, de Richard Serra (fato ignorado pela História da Arte européia e americana) (in BASBAUM, 1998, p.41).
As relações corporais propostas por trabalhos de participação de Lygia e
Hélio, não tem sentido sem a manipulação ou o suporte do outro. Elas questionam
a divisão sujeito-objeto perpetuada no corpo do artista, seguindo a noção
tradicional de objeto de arte, comum nos trabalhos dos “body artists” posteriores,
principalmente a Lygia.
8 Definição do processo cultural discutido a partir do modernismo brasileiro nos anos 1920, tendo Oswald de Andrade como mentor e principal agitador.
47
A participação na obra de Hélio
Oiticica e Lygia Clark é proveniente de um
questionamento do sujeito e sua relação
com o objeto, surgida com a influência da
fenomenologia, a partir do neoconcretismo.
Os neoconcretistas começavam a se
preocupar com a relação do sujeito com a
obra, tendo grande importância a influência
do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty
sobre o movimento. A filosofia humanista,
ao separar a consciência do mundo,
acaba por também separar o sujeito
do objeto. A fenomenologia, sendo um
modo de pensamento que rompe a
dicotomia tradicional sujeito/objeto,
visa manter o sentido metafísico do
mundo. Merleau-Ponty, ao
questionar as filosofia e ciências
modernas, acabou por propor uma
reformulação para o problema da
anulação do Sujeito, do Sujeito
estabelecido pelo Objeto, ou seja, coloca
que a percepção da consciência é que
funda a representação consciente.
Esta questão é central na obra de
Hélio e Lygia. Foi a proposição de
trabalhos que ativassem o corpo, não
como mero impulsionador, mas como
participador ativo, que esteve sempre
presente na obra destes artistas (Figuras
11, 12, 13).
Figura 11
Figura 12
Figura 13
48
Não cabe aqui analisar se os artistas brasileiros, Hélio Oiticica, Lygia Clark
e seus companheiros de neoconcretismo são os pioneiros desta relação, mas o
que deve ser apontado é a absoluta coerência interior das suas pesquisas e
pensamentos quando alcançou a noção ou necessidade de uma relação nova
entre o artista e o sujeito, como coloca Pedrosa.
Exemplificar nas obras de Oiticica e Clark as relações e desenvolvimentos
deste vínculo, artista-sujeito, é objeto de uma nova pesquisa. Entretanto, é
necessário analisar alguns pontos, para a compreensão de quais elementos são
privilegiados nas propostas desses artistas. O que pode ser observado é que,
propondo ao espectador mexer na obra, para dela participar como co-autor, - nos
“Bichos” de Lygia Clark, nos “Bólides” de Hélio Oiticica, na participação espacial
no ato de penetração dos ambientes (Penetráveis,
Tropicália (Figura 14), Éden) – gera-se uma experiência do corpo sensorial e táctil,
podendo ser ainda olfativa e auditiva. Isso é uma tendência a liberar o indivíduo
dos condicionamentos culturais e sociais.
Figura 14
49
Ao levar o participante, o espectador a ativar a obra, fazer com que ela
exista, já que muitas das propostas para concretizarem-se precisavam do outro,
não se trata do corpo meramente como suporte, “pelo contrário é a total
incorporação. É a incorporação do corpo na obra e da obra no corpo” como trata
Guy Brett no texto “O Exercício Experimental de Liberdade”9 (in Hélio Oiticica,
1998, p.227). Esta seria a noção geral da participação na obra de Hélio Oiticica e
Lygia Clark. O crítico inglês fala da participação do “outro” nos trabalhos de Lygia:
A trajetória do trabalho de Lygia Clark esclarece o “processo pelo qual o “outro”, que formalmente tem sido o espectador de arte, pode redescobrir sua própria poética (expressividade, criatividade) em si mesmo e vir a ser o sujeito de sua própria experiência. Essa era a essência do convite à participação do espectador (in BASBAUM, 2001, p.32).
O convite à participação era um convite a experimentar uma de suas obras
participativas, a fazer um caminho de conscientização de si, do seu lugar no
espaço, absorvendo os elementos como poesia sensorial, apreendida pelo corpo,
pelos olhos, às vezes narinas, mas no geral de uma experiência total de libertação
dos sentidos. A noção de obra, nesse caso, só pode ser resgatada se partir do
pressuposto de que as proposições, procedendo do artista, são a essência da
obra, pois sua totalidade está na união da proposta com a execução da mesma.
Mario Pedrosa explana claramente esta relação ao falar sobre os penetráveis de
Oiticica:
Invadia-se de cor, sentia o contato físico da cor, ponderava a cor, tocava, pisava, respirava cor. Como na experiência dos Bichos de Clark o espectador deixava de ser um contemplador passivo, para ser atraído a uma ação que não estava na área de suas cogitações convencionais cotidianas, mas na área das cogitações do artista, e destas participava, numa comunicação direta, pelo gesto e pela ação (1981, p.207).
Essas tentativas de produzir um trabalho de arte que explorasse as
sensações, em uma totalidade, resolve as questões sujeito/objeto. Levaram estes
9 O título corresponde a uma frase utilizada pelo crítico Mário Pedrosa para descrever os objectivos da avant-gard brasileira na década de 1960. Era freqüentemente citada por Hélio Oiticica (sic BRET in CENTRO DE ARTE HÉLIO OITICICA, 1998, p.222).
50
artistas a questionar a noção de espaço. Hélio Oiticica desenvolveu um programa
no qual denominou uma série de propostas como arte ambiental.
Este sentido de exploração do espaço, do ambiente, também é uma das
preocupações provenientes da herança construtivista. No manifesto construtivista,
Gabo-Pevsner já havia atentado para as questões do espaço e do tempo. Este
tempo, fator de emoção passava a ser encarado como substância da construção.
Eles afirmavam, com convicção, que só as estruturas espaciais iriam tocar o
coração das massas humanas futuras. Estes artistas, de fato, investiram em
construções escultóricas de grande escala. Entretanto, suas proposições ainda
não conseguiam fundir expectador e obra, já que a relação ainda era retiniana. No
caso de Lygia, a obra não está mais estática, ela se move e já não mais só o
espectador em torno dela.
Quando a noção de diluição da linha que separa a arte da vida passa a ser
um fator importante dentro dos conceitos artísticos, - depois de Joseph Beuys10 e
os neo-dadas, sobretudo John Cage11, a imersão do artista contemporâneo no
cotidiano e as experiências em processo tornam-se significativas - um outro
importante aspecto emerge da obra de Hélio Oiticica: a sua relação com a
comunidade do Morro da Mangueira.
Hélio, “Russo” para os moradores da Favela da Mangueira, levou sua
experiência com a comunidade, o sítio que vivia, para a linguagem universal da
arte, sem clichês folclóricos ou estetização da pobreza. O artista não se inspirou
nas condições daqueles indivíduos, de suas peculiaridades, ele viveu seu dia a
dia, ele imergiu na “comunidade marginal do morro da Mangueira, na quadra de
ensaio da escola de samba Estação Primeira de Mangueira“ diz Waly Salomão
que continua, “Onde o samba é madeira e vem balançando o galho da velha
MANGUEIRA, aprendendo com Miro a virar passista” (in BASBAUN, 2001 p.59).
10 Joseph Beuys, artista e filósofo alemão, criou o conceito de que pensar é esculpir. Participou do grupo Fluxos. 11 John Cage, inovador músico estadunidense, na década de 1950 concebeu uma escola com inovador pensamento artístico, a Black Mountain College, de onde surgiu o grupo Fluxus.
51
Essa descoberta, por Hélio, da comunidade da Mangueira, fascinou-o
porque o fez conhecer um meio social completamente distante de sua criação e
formação. Em um debate12 em São Paulo (mar. 2005), o então curador-geral da
Bienal do Mercosul, Paulo Sergio Duarte, fala que Hélio Oiticica praticou uma
antropofagia dupla, conhecendo não só o estrangeiro que está além de nossas
fronteiras, mas o estrangeiro de outra camada social. Oiticica, disse Duarte, subiu
o morro e aprendeu a sambar num tempo em que ninguém fazia isso.
A relação com outro universo de referências, sobretudo do samba,
possibilitou diversos rumos ao trabalho do artista.
Foi durante a iniciação ao samba, que o artista passou da experiência visual, em sua pureza, para uma experiência do tato, do movimento, da fruição sensual dos materiais, em que o corpo inteiro, antes resumido na aristocracia distante do visual, entra como fonte total da sensorialidade (PEDROSA, 1981, p.207).
Como seus anseios em relação ao ambiente tornaram-se uma forte
característica, Hélio vai trabalhar em uma direção que cada vez mais dilui a
própria noção de objeto. Então surgiam propostas coletivas, desejos de inserção
de objetos no cotidiano, nas praças e parques, numa posição cada vez mais
contundente em uma direção oposta às definições de arte, até então
sistematizadas, “E quanto mais a arte confunde-se com a vida e com o cotidiano,
mais precários são os materiais e suportes, ruindo toda a idéia de obra”, diz
Frederico de Morais (in BASBAUM, 2001, p.169).
A união destas características é importante para analisar boa parte da
produção de arte nos anos 1970 no Brasil. A inclusão da obra/idéia/ação na vida,
ou seu reflexo em trabalhos mais “formais” será considerável na poética de
artistas como Cildo Meireles, Artur Barrio, Antonio Manuel, dentre outros, e nas
exposições organizadas no MAC, de São Paulo, pelo professor Walter Zanini. A
desmistificação da aura da obra de arte, sua desmaterialização física, o acento
12 Nesse debate, que tinha como tema “A arte contemporânea na América Latina: o característico e o não regional” a autora compunha a mesa que ainda tinha a participação do diretor do MAM-RJ, Fernando Cocchiarale e o artista Ivens Machado.
52
político, as tenções sociais, influenciaram alguns artistas no que diz respeito ao
valor e aos materiais que compõem o trabalho de arte. E esta raiz pode estar na
arte parangolé de Hélio Oiticica (Figura 15), “O PARANGOLÉ quando gira no
espaço real encarnado por um corpo pulsante dispara e presentifica camadas e
camadas e camadas de sinais. Sem artepoverismo e nem embelezamento da
miséria” escreveu Wally Salomão (in BASBAUN, 2001, p.61).
Figura 15
53
A imersão na vida cotidiana, fator importante para uma análise mais
profunda das teorias sobre a transformação da definição de objeto de arte
contemporânea, deve-se levar em conta as propostas de transformação do objeto,
desde Duchamp às inserções da Internacional Situacionista13 e as decorrências
das experiências de grupos como o Fluxus14, o Provos15 e o atual levante das
propostas coletivas, e de assimilação das tecnologias populares.
Apesar de, no Brasil, ter-se registros de uma ação da década de 1930 que,
inserida num contexto, questionando-o de forma provocativa, porém inusitada,
acarretando um descondicionamento de comportamento paradoxal, a Experiência
nº 2 de Flávio de Carvalho16 ainda não consta na maioria dos livros de arte como
uma intervenção artística.
Artur Barrio, que utiliza materiais que se inserem com o meio, com o
contexto no qual são apresentados, seja nas ruas de uma grande cidade, numa
vila de pescadores, num parque público ou em uma renomada instituição de arte,
causando provocação, questionamento e a inserção (participação) na obra,
mesmo que seja inserção conceitual, possui semelhança na provocação acionada
por Flávio de Carvalho.
13 Internacional Situacionista (IS) foi fundada por Guy Debord em 1958 e tinha como projeto a crítica radical da vida cotidiana no capitalismo. A IS negava a prática da arte alienada, assim, recusando a arte voltada para seus propósitos estilísticos e formais. Dissolveu-se em 1972. 14 Fundado na Alemanha , em 1962, o Fluxus era um grupo de artistas, com um viés sócio-político mais intelectualizado, preocupados com música e linguagem , e não com pintura e ambientes. 15 Provos, abreviação de "provocadores", foi criado no início dos anos 1960. Eles tinham a intenção de debochar a tradição monárquica da Holanda e sua burguesia consumista. Eles propunham formas diferenciadas de implantarem uma ação política. 16 O artista multimídia vestiu um chapéu verde no rosto cobrindo os olhos e partiu em direção contrária a uma procissão de Corpus Christi, em São Paulo, dividindo a procissão ao meio. A multidão de fiéis que acompanhava o cortejo revoltou-se e exigiu que aquele indivíduo descobrisse o rosto. Como não o fez, os mais exaltados ficaram furiosos e o perseguiram com a intenção de linchá-lo. Conseguindo escapar do furor do povo, foi levado pela polícia quando declarou que vinha se dedicando, há algum tempo, a estudos sobre a “psicologia das multidões” e que para uma orientação mais considerada, resolveu fazer uma experiência com “a capacidade agressiva de uma massa religiosa à resistência da força das leis civis, ou determinar se a força da crença é maior do que a força da lei e do respeito à vida humana”, esta declaração saiu em um jornal da época (O ESTADO DE SÃO PAULO, 9 jun. 1931), onde disse, ainda, que não pretendia ofender a religião do povo, e que aquela reação já era esperada.
54
A questão dos materiais utilizados por Barrio e outros tantos artistas
brasileiros (e de países subdesenvolvidos principalmente) é relevante. É um
diferencial considerável no modo e no conceito da produção artística em relação
aos considerados centros irradiadores da arte (Estados Unidos e Europa).
Enquanto europeus e norte-americanos usam computers e raios lasers, nós brasileiros (Oiticica, Antônio Manuel, Cildo Meireles, Lygia Pape, Lygia Clark, Barrio, Vergara etc.) trabalhamos com terra, areia, borra de café, papelão de embalagens, jornal, folhas de bananeiras, capim, cordões, borracha, água, pedra, restos, enfim, com os detritos da sociedade consumista (MORAIS in ibidem, 2001, p.176).
A precariedade dos materiais é mais evidente desde a década de 1960.
Esses materiais emergiram na produção brasileira por diversas razões, além de
ser por estarmos no Brasil. Pesquisas sensoriais, Lygia Clark; inserção no Morro
da Mangueira, Hélio Oiticica; contrastes do Primeiro e Terceiro Mundo, Barrio e
assim por diante.
O fato de ter nascido em Portugal, ter vivido na África e se erradicado no
Brasil, tornou Barrio herdeiro de paradoxos expressamente refletidos em seus
trabalhos. O artista diz que jamais esquecerá a África, pela sua “poética densa e
majestosa” e “por toda a tragédia que ela vive há séculos”, que hoje continua
como “chaga viva”. E segundo Paulo Herkenhoff, o artista sofreu um choque
epistemológico ao descobrir a rica diferença cultural da África e ver pela primeira
vez pessoas acorrentadas (in PAÇO DAS ARTES, 2001, p.26).
As contradições vivenciadas por Barrio elucidaram o condicionamento que
o artista, em geral, sofria (sofre), ao utilizar materiais que não correspondem à
condição a qual o Terceiro Mundo é submetido. “A arte de Barrio expõe o
constrangimento econômico do Terceiro Mundo” (ibidem). E em 1969, o artista
lança: “MANIFESTO: contra as categorias de arte, contra os salões, contra as
55
premiações, contra os júris, contra a crítica de arte”17. Herkennhoff ainda coloca
que:
Seu Manifesto compõe as discussões sobre produção de linguagem autônoma em economias subdesenvolvidas, com Mário Pedrosa, Ferreira Gullar, Glauber Rocha e Haroldo de Campos. Pedrosa enuncia a “lei de aceleramento das experiências artísticas contemporâneas”. Estava impressionado como no pré-capitalismo do Terceiro Mundo, o regime de produção em massa, sob o capitalismo de monopólio, impunha novo condicionamento ao artista. Barrio recrudesceu o paradoxo entre trabalho ‘produtivo’ e ‘improdutivo’ nas tensões da obra com o mercado (ibidem, p. 25).
A imersão na vida cotidiana, o que caracteriza muitos artistas e seus
trabalhos, principalmente a partir da década de 1960 é um ponto preponderante
do trabalho que implica a participação de um co-autor.
“Da adversidade vivemos”, conclui Hélio Oiticica em ‘Esquema geral da nova objetividade’ (1967). Esta adversidade do contexto brasileiro e, nesse caso, carioca, aproximou o trabalho de Barrio de Hélio Oiticica, Lygia Pape, Cildo Meireles e Antônio Manuel. O gesto toma o sentido da ação a ser francamente compartilhada através de obras, um ativismo que se faz pelo envolvimento das pessoas, subvertendo, definitivamente, a idéia institucionalizada e passiva de público de arte (FREIRE in ibidem, 2001, p. 22).
17 O Manifesto: Devido a uma série de situações no setor das artes plásticas, no sentido do uso cada vez maior de materiais considerados caros para a nossa, minha realidade, num aspecto sócio-econômico do 3º mundo (América Latina inclusive), devido aos produtos industrializados não estarem ao nosso, meu, alcance, mas sob o poder de uma elite que contesto, pois a criação não pode estar condicionada, tem de ser livre. Portanto, partindo desse aspecto sócio-econômico, faço uso de materiais perecíveis, baratos, em meu trabalho, tais com: lixo, papel higiênico, urina, etc. É claro que a simples participação dos trabalhos feitos com materiais precários nos círculos fechados da arte provoca a contestação desse sistema em função de sua realidade estética atual. Devido ao meu trabalho estar condicionado a um tipo de situação momentânea, automaticamente o registro será a fotografia, o filme, a gravação, etc. – ou simplesmente o registro retiniano ou sensorial. Portanto, por achar que os materiais caros estão sendo impostos por um pensamento estético de uma elite que pensa em termos de cima para baixo, lanço em confronto situações momentâneas com uso de materiais perecíveis, num conceito de baixo para cima.
Rio de Janeiro, 1969 (in PAÇO DAS ARTES, 2001, p.100).
56
Barrio propõem maneiras inusitadas de fragmentar o condicionamento
humano. Em muitos de seus trabalhos, como ele mesmo denomina, provocam
“situações”.
Sobre as intervenções públicas, o artista explica como se dá o fragmento do
condicionamento do transeunte, a partir de seu trabalho:
No momento em que são colocadas em praças, ruas, etc, automaticamente tornam-se independentes, sendo que o autor inicial (EU), nada mais tem a fazer no caso, passando esse compromisso para os futuros manipuladores/autores do trabalho (FUNDAÇÃO SERRAVALES, 2000, p.18).
Como na Situação T/T, 1 (2ª parte) (1970), o contexto em que Barrio
interfere com suas “Trouxas Ensangüentadas”18 - possuidoras de elementos
descartados e repudiados pelas pessoas - insere a percepção do expectador em
um questionamento, mesmo que inconsciente, à condição do meio psicológico
vivenciado, no caso, em plena ditadura militar (Figura 16).
As radicais experimentações de Barrio despertam o cidadão para a situação
política-social na qual ele está inserido. Levam a cabo as condições de uma
expressão libertária na produção da arte. Ricardo Basbaum fala sobre isso:
18 “Situação...Orhhhh...ou 5.000....T.E...em...N.Y...City... – 1969. Salão da Bússola, MAM-RJ e SITUAÇÃO T/T, 1 (2ª PARTE). Trabalho realizado em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 20 de abril de 1970. LOCAL: em um rio/esgoto, colocação de 14 T.E. no Parque Municipal.” (BARRIO in FUNDAÇÃO SERRAVALES, 2000, p. 76 e 102)
Figura 16
57
É claro que este posicionamento impõe outro compromisso estético, como se, de fato, fosse Barrio – ainda que como herege da herança neoconcreta – quem tivesse levado às últimas conseqüências a famosa máxima de Mário Pedrosa, da arte como “um exercício experimental de liberdade” (ibidem, p.23).
Enfim, as contradições entre Primeiro e Terceiro Mundo, os problemas
econômicos sociais, passam a ser refletidas com mais ênfase na arte brasileira,
desde a década de 1960. A condição política compartilhada pelo restante da
América Latina refletiu-se na arte conceitual produzida nos países
correspondentes (Figura 17). Enquanto os Estados Unidos e Europa tratavam de
problemas existenciais do homem, aqui a situação política era contestada. A
precariedade do material utilizado na produção artística acaba sendo uma
característica da arte contemporânea, e na América Latina, uma alternativa
financeira e uma excelente forma de expressão da realidade política social.
Dentro da produção da arte
contemporânea brasileira, os materiais
precários aparecem
concomitantemente até à mais nova
geração.
2.5. O “armengue” como opção para a solução: as ressonâncias de uma estética neoconcretista.
Com a possibilidade das regiões
periféricas terem a oportunidade de
mostrarem suas produções nos centros
hegemônicos, esses materiais de fácil
acesso e/ou dessas regiões (de uso
doméstico, do mercado informal, matéria prima local, etc.) obtiveram um
sobressalto de diversidade. Um exemplo é a nova geração de artistas
contemporâneos da Bahia, como Marepe que com a Banca de Fichas, Cartões
Figura 17
58
Telefônicos19 (1996) e Cabeça Acústica (1996), foi premiado na Mostra Antártica
Artes com a Folha, em 1998.
A característica da estética da gambiarra vem se afirmando. No texto “O
Malabararista e a Gambiarra”, a crítica Lisette Lagnado coloca: “Há uma
ressonância do Parangolé, pelo fato de abranger toda uma rede de subsistência a
partir de uma economia informal, com soluções de baixo custo e de puro
improviso”. A relação de Hélio Oiticica com os artistas da contemporaneidade tem
sido constante, como o comentário da então curadora da galeria londrina
Gasworks, Fiona Boudy, durante a exposição “Gambiarra – New Art from Brazil”20,
em 2003. Ela disse que nos trabalhos de artistas brasileiros das décadas de 1960
e 1970, como Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica, e na produção de artistas
brasileiros da atualidade, como Efraim Almeida e Marepe, há uma forte energia.
Através desse tipo de colocação e do título da exposição, pode ser dito que essa
“estética da gambiarra”, já passa por um reconhecimento internacional.
19O trabalho é semelhante às bancas dos trabalhadores informais de Salvador. È composta por madeira papelão, fichas e cartões telefônicos, ferro e espuma. 20 Os participantes são: Jarbas Lopes, Efrain Almeida, Marepe, Ducha e Capacete Entretenimentos.
59
3. Arte Contemporânea na Bahia: das fendas da tradição cultural, novos mecanismos e expressões de reconhecimento da cultura.
3.1. Artes plásticas baiana, o deslocamento rumo a um efetivo reconhecimento.
No Brasil, se a década de 1960 foi o território da experimentação, das
tendências conceituais, isso pode ser afirmado com um foco bastante restrito ao
eixo Rio e São Paulo, com exceção de um ou outro artista que tenha destacado-
se no cenário nacional, proveniente de regiões periféricas. Caso como o do Paulo
Bruscky21 de Pernambuco, citando o Nordeste como exemplo.
Salvador, que participou ativamente do cenário cultural de vanguarda desde
a década de 1950, principalmente com a literatura, o cinema, e a música, não
possui um movimento nas artes plásticas que tenha sido enfático na produção
nacional. Heitor Reis, atual diretor do Museu de Arte Moderna da Bahia, constata:
(...) a Bahia sempre foi um Estado de vanguarda, mais em outras linguagens do que nas artes plásticas, nós sempre tivemos um academicismo que esteve muito presente nas artes plásticas da Bahia. Através da formação acadêmica, que veio da escola francesa que ainda estava presente há alguns anos atrás (2005, s/p).
Diante do fato de que o modernismo baiano configura-se num processo de
aprimoramento tardio, o artista plástico Almandrade fala
que “Se a modernidade chegou atrasada no Brasil, na
Bahia chegou mais atrasada ainda” (2005, s/p).
Analisar os processos que possibilitaram surgir
uma produção de arte contemporânea na Bahia trata-se
de um objeto complexo, que inclui análise da construção
da história recente das artes visuais nesse Estado. Para
fazer um retorno, circundando uma época, pode-se
retomar as Bienais Nacionais ocorridas na Bahia. Na 1ª
21 Paulo Bruscky insere a cidade do Recife na história da arte conceitual brasileira. Foi precursor ou grande atuante nas linguagens de Arte Postal, Fax Arte, Xerografia Artística, Arte Urbana e Arte Classificada (em jornais), como veículos de expressões artisticas.
Figura 18
60
Bienal Nacional de Artes Plásticas22 (1966), por exemplo, somente três trabalhos
possuíam características claras de mudança da relação sujeito-objeto: uma
instalação de Hélio Oiticica, um relevo de Lygia Clark e um objeto de Waldemar
Cordeiro, e, levemente, essas características eram encontradas nas obras de
Emanuel Araújo e Rubem Valentin (Figura 18). O neoconcretismo não foi
absorvido por aquela geração baiana, com exceção do Grupo Etsedron23 (que
possuía sua própria expressão) e de Almandrade24, ambos já na década de 1970.
A produção de Almandrade
tem clara e conscientemente, por
parte do artista, influência do
neoconcretismo. As pinturas e
esculturas desse artista mexem com
o equilíbrio do olhar, num
geometrismo indagador (Figura 19).
Seus objetos põem a relação dos
materiais, dentro de um
questionamento de possibilidades e simbologias (Figura 20). Almandrade teve
convívio com muitos artistas neoconcretos. Após um evento em Recife, com vários
artistas da vanguarda brasileira, entre eles Paulo Brusky e Hélio Oiticica, recebeu
uma carta do último, num trecho, lê-se:
22 Artistas como Hélio Oiticica, Lygia Clark – premiada , e Vergara participaram. Os críticos Mario Schemberg, Mario Pedrosa e Walter Zanini são convidados. Esta Bienal colocou os artistas locais em contato com artistas de todo o país, evidenciando o que havia de mais novo na linguagem estética. No final de 1968, mesmo com o clima tenso daquele período, foi organizada a 2ª BNAP. O governador do Estado saudou o evento declarando que “a obra de arte é o mais legítimo instrumento da democracia” (REVISTA DA BAHIA, setembro de 1988, nº 10, p.24). Muitos dos trabalhos apresentados são críticos à ditadura Militar e a favor da revolução. No dia seguinte à abertura, contrariando o declarado poder democrático da arte, o AI-5 é decretado e a Bienal fechada. Juarez Paraíso e Luiz Henrique Tavares, organizadores, foram presos e Chico Liberato, premiado com um trabalho que homenageava Che Guevara, não recebeu o prêmio. 23 Grupo que surgiu em 1969, com propostas artísticas polêmicas, e acabou em 1979 com importante atuação. Apesar da importância, ainda é pouco conhecido e existem poucas publicações sobre sua história. 24 Almandade nasceu em São Felipe, Recôncavo baiano. Vive e trabalha em Salvador e tem uma produção artística ativa que não se resume às artes plásticas. É poeta e crítico de arte, tendo seus textos publicados em jornais, sites, cadernos, etc. O artista também participa de debates, faz palestras, além de oficinas e workshops sobre arte.
Figura 19
61
Ho Rio 1979 Caro Almandrade, Só agora de volta ao Rio (via Manaus), com calma olhei o material/texto que você me passou naquele calor tropical do festival de inverno de Recife. Gostei de ver o seu trabalho criativo que deve ser uma coisa solitária aí na Bahia. Achei genial aquele objeto: uma lâmina de barbear suspensa por um fio dentro de um frasco. (...) Hélio Oiticica (ALMANDRADE, 2000).
Conhecido por artistas e críticos contemporâneos ao
início de sua produção, talvez não seja reconhecido pela
história da arte brasileira recente, por ter optado permanecer
na Bahia. O próprio artista desabafa: “É, eu fiquei aqui. Foi
um erro meu, um equivoco ter ficado, deveria ter saído.
Paguei caro por isso” (2005, s/p).
Nas décadas de
1980 e 1990, alguns
artistas conseguiram uma
projeção internacional
como Juraci Dórea, que participou da 43ª
Bienal Internacional de Veneza, em 1988
(Figura 21), e Washington Santana, da 10ª
Documenta de Kassel (1997), na Alemanha.
Mas, do ponto de vista profissional da
formação de um mercado dinâmico, da
organização de salões, poucas iniciativas
foram bem sucedidas na implementação de
um meio de arte de projeção nacional e
internacional. Falando de um terreno sólido, de um espaço consolidado dentro da arte
baiana e brasileira, o Salão do Museu de Arte Moderna da Bahia tornou-se a
referência da produção baiana e sua interlocução com a produção nacional.
Figura 20
Figura 21
62
3.2. O Salão do MAM, a crítica e o incentivo financeiro: o aceleramento do experimental e o desaparecimento do quadro.
A partir de 1991, com a mudança de direção do MAM-BA, foi implantada
uma política de fomento da arte contemporânea. Heitor Reis, seu diretor desde
então, fala dessa proposta do Museu:
(...) em 91 foi a nossa chegada, quando o museu passou por uma transformação física, estrutural, adaptando às novas tendências, as novas possibilidades de apresentação, de montagem. Dentro da proposta de transformar isso aqui num espaço dinâmico, não só das artes plásticas, mas também para outras linguagens. De uma certa forma isso era um pensamento inicial que a abertura, a ampliação do museu para outras linguagens era a forma que nós víamos naquele momento de traçar uma política, incrementar uma política voltada para a arte contemporânea, e é aí onde tudo começou (2005, s/p).
Em 1994, acontece o 1º Salão da Bahia no MAM, dando início a uma das
principais referências institucionais do Estado na arte contemporânea.
3.2.1. I Salão da Bahia – 1994/1995: a vontade do novo Os Salões do MAM surgem com um sentimento nostálgico de um tempo
que foi de grande relevância para a arte nacional. No catálogo do primeiro Salão,
Heitor Reis, comparando alguns movimentos da cultura baiana, escreve:
Nas artes plásticas tivemos movimentos importantes como o movimento modernista, a Galeria Oxumaré, as Bienais de 66 e 68 e mais recentemente, os Salões Universitários, o Baiano e a Bienal do Recôncavo (1994).
Neste momento, faz-se necessário perceber as transformações que
sofreram o Salão do MAM para analisar os caminhos que seguiram alguns artistas
baianos. O primeiro Salão mostrou uma gama de possibilidades que partem das
obras mais convencionais, como o quadro de cavalete, até instalações. Heitor
Reis ainda fala:
63
Sabemos que todos estes bons momentos, por motivos diversos, não se repetiram criando hiatos culturais que afetaram fortemente nossos artistas, que, salvo exceções, ficaram sem conhecer os processos e a expressão global das artes plásticas contemporâneas (ibidem).
O salão possibilitou ao público o acesso a uma variedade de possibilidades,
com uma preponderância da pintura tradicional. Os artistas baianos tiveram boa
representatividade. Artistas que participaram desse 1º Salão, em menos de dez
anos, já estão inseridos no circuito de arte contemporânea nacional e
internacional, com destaque para Marepe que, já neste primeiro momento propõe
uma instalação interativa.
Por mais que predominassem trabalhos tradicionais, o discurso passado no
catálogo afirma uma vontade de sempre apresentar novas possibilidades, de
ampliar o repertório do público, como o então coordenador técnico, Raul Córdula,
escreveu:
Jamais um Salão atenderia uma formação de ponto de vista acadêmico pois ele corre no sentido contrário, ele anda para a frente tendo em mira as possibilidades criativas de futuro. Na verdade o que o Salão proporciona é a formação de jovens artistas dentro do universo das relações humanas, da prática das estratégias sociais, do adestramento do olhar do público, e no território dos artistas, da chave das dimensões poéticas que envolvem suas obras (1994).
A relação entre a academia e o critério de Salão não condiz. As estratégias
de ruptura em relação à parcialidade dos salões existem desde o século XX. A
atitude de Marcel Duchamp, ao inscrever “Fonte” (1917) no Amory Show, em Nova
York, é um exemplo disso. Entre os artistas não premiados no 1º Salão do MAM,
além de Marepe, estava Ayrson Heráclito, com uma instalação composta por
materiais perecíveis, já dialogando com a efemeridade.
Outros artistas baianos de grande importância participaram da mostra com
obras na linha da arte contemporânea: Almandrade, Florival Oliveira, Eckenberger,
Vauluizo Bezerra e outros que, apesar de caminharem pelo formalismo,
demonstraram posteriormente forte tendência à contemporaneidade, como
Caetano Dias, Edgar Oliva e Iuri Sarmento.
64
Esse primeiro Salão ainda não avança em direção ao experimentalismo, já
que, apesar de diverso na mostra, foi tímido e conservador na escolha dos
premiados. O juri optou pela hegemonia da pintura, provavelmente pelo alto índice
de inscrição desta linguagem, o que caracteriza que, neste momento, o salão
atraiu mais artista ligado às pesquisas modernas. Foram 64 pinturas, 16
esculturas e 15 instalações participando da mostra, citando as linguagens mais
numerosas.
3.2.2. II Salão do MAM – 1995/1996: a proposta é quebrar parâmetros.
No II Salão do MAM, a linha da exposição continua a mesma, forte
tendência da pintura. Heitor Reis declara que o Salão não tem uma linha
conceitual fechada, comum às seleções por júri, já que, explora a diversidade e a
falta de regra como princípios, “onde a transgressão seja a regra e não a
exceção”, diz o diretor no texto do catálogo. O Salão é colocado como uma forte
alternativa para o artista e o público ampliarem o repertório em relação à arte,
“uma resposta efetiva à necessidade do artista de ter um espaço livre, mais
voltado à arte contemporânea, de vanguarda” (MAM, 1995).
Apesar da declaração do diretor sobre a tendência transformadora, “É
nesse sentido que tem fundamental importância o aval do MAM a um Salão que é
nitidamente contemporâneo” (ibidem), não se pode perder de vista que este
formato de salão, onde o artista inscreve a obra, que passa por um júri, restringe-
se a uma linha de raciocínio, já que as propostas são analisadas e sofrem a
delimitação do gosto, fator extremamente subjetivo.
Na exposição, havia trabalhos de artistas que hoje despontam no cenário
nacional da arte
contemporânea como Carla
Gagliard e Efrain Almeida,
premiados; Janaína Tschape
e Rosana Palazyan, que
receberam menção. Entre os baianos, Marepe estava presente, expondo sua série
Figura 22
65
de trouxas de 1995: “A Trouxa 03”, “A Trouxa 04” e “A Trouxa 05” (Figura 22), a
mesma que no ano de 2000 integraram a participação do artista na Mostra do
Redescobrimento.
De 106 trabalhos selecionados, a pintura ainda foi a mais representativa,
sendo 38 pinturas, 23 instalações e 16 esculturas, entre outras linguagens.
3.2.3. III Salão do MAM – 1996/1997: entre a estagnação e a experimentação.
A terceira versão do Salão do MAM mantém a mesma tentativa de
representação nacional da produção contemporânea, diz Heitor Reis no texto do
catálogo: “O III Salão MAM-Bahia apresenta mais um panorama da arte
contemporânea brasileira”. O número de inscrições aumenta a cada versão
fazendo com que o salão tenha uma representação nacional maior. Foram
recebidas 1007 inscrições, tendo 69 artistas selecionados, ou seja, aumentaram
as inscrições, diminuíram os selecionados.
Figura 23
66
Há evidência de uma tomada de posição em relação à experimentação e à
tridimensionalidade, apesar do número ainda superior de pinturas participando,
pois são 18 pinturas, 14 instalações e 14 esculturas.
Alguns artistas conseguem transformar a linguagem de sua produção, do
ponto de vista da mensagem e de sua propagação, e outros trilham uma linha de
pesquisa extremamente voltada para a concepção moderna, grinbergniana, de
arte. Neste III Salão percebe-se uma tendência maior para a experimentação dos
meios, como o de Edgar Oliva, e o de Marepe, premiado com a instalação “O
casamento” (1996) (Figura 23).
Nesse mesmo ano, o MAM organiza o Workshop 97, uma proposta para
que artistas alemães e brasileiros convivessem e produzissem, no intuito de
promover uma reflexão dos trabalhos, em conjunto. O MAM foi o responsável pela
seleção dos artistas brasileiros e seguiu o seguinte critério, segundo Heitor Reis:
(...) convidamos para o evento artistas brasileiros cujas obras haviam sido premiadas nos salões MAM-BA, e que compõem um grupo representativo no panorama da arte contemporânea nacional (MAM, 1997).
Entre os baianos estavam
Ângela Cunha , Cristian Cravo,
Márcia Abreu, Paulo Pereira e
Marepe, que demonstra, entre
os artistas locais, a maior
contundência na tomada de
posição em relação às
configurações da arte
contemporânea. Sobre isso, diz
o curador alemão da mostra, Dr.
Friedrich Meschede:
Figura 24
67
Os temas de Marepe são do cotidiano. Ele adquiriu em Salvador um carrinho de um comerciante ambulante no qual se tem todas as espécies de mercadorias úteis e inúteis, um cúmulo de peças que parece ser uma resposta contemporânea à “arte povera” italiana. Na parte lateral da igreja, Marepe pendurou na parede uma caixa, feita de casca de jaca, um objeto estranho que está entre uma peça industrializada e uma de arte (MAM, 97).
Marepe mostra “Jaca Nécessaire” (1997) (Figura 24), familiar à Bahia pela
composição de casca de jaca, e estranho pelo formato geométrico, já que rompe
com a organicidade das curvas da fruta.
3.3.4. IV Salão do MAM – 1997/1998: a evidência da linguagem contemporânea.
No IV Salão, a linha da arte contemporânea fica mais
evidente.
Dos 1143 inscritos, 58 foram selecionados, e, desta
vez, com uma predominância das instalações, pois foram 23
delas, 13 pinturas, e 06 esculturas. Percebe-se, também, que
a participação de artistas com maior projeção aumenta. Entre
os premiados, além de artistas de gerações anteriores, como
Vauluizo Bezerra, encontram-se Daniel Acosta, José
Damasceno, Caio Reisewitz e entre os que ganharam
menção, Marcos Chaves e Tatiana Grinberg. Os baianos
selecionados são: Edgar Oliva que se afirma na linguagem
fotográfica, explorando suas possibilidades de montagem e
efeitos de revelação, ou seja, saindo das questões meramente
retinianas. Iuri Sarmento e Luís Marcelo utilizam a pintura
como linguagem, João Danneman com uma instalação,
Mônica Simões com vídeo-instalação e Paulo Pereira, com
escultura. São apenas 07 artistas baianos que participam
dessa mostra, menos da metade em relação ao Salão anterior.
Figura 25
68
3.2.5. V Salão do MAM – 1998/1999: novos campos de ação das artes visuais.
No V Salão, o número de artistas baianos selecionados cai para 06, em um
universo de 50 participantes, de um montante de 1816 inscrições. Levando em
consideração os textos e atas, publicados nos catálogos, percebe-se sempre que
a tentativa é a de valorizar os novos campos de ação das artes visuais. Entre os
baianos participantes, a pintura fica isolada e Paulo Pereira é premiado com uma
de suas esculturas de madeira (Figura 25).
No mesmo ano, 1998, acontece a XXIV Bienal Internacional de São Paulo,
sob curadoria de Paulo Herkenhof. Nenhum artista da Bahia participa da mostra
“Arte contemporânea brasileira: Um e/Entre outro”, dedicada ao tema da
antropofagia. Expôs Hélio Oiticica e Lygia Clark, além de Artur Barrio e Cildo
Meireles, apontando para a clareza de que a arte da década de 1990 é muito
influenciada pelo experimentalismo dos anos 1960 e 1970.
3.2.6. VI salão do MAM – 1999/2000: uma configuração contemporânea.
Apesar de todas as dicotomias do início dos Salões da Bahia, da falta de
representatividade no campo da arte contemporânea, o Salão do MAM-BA
alcançou em seis edições um nível de aprimoramento que repercutiu
nacionalmente, contribuindo para uma predominância nas linguagens
experimentais da arte, como a fotografia, a instalação e o hibridismo dos materiais.
O crítico de arte e atual diretor do MAM-RJ, Fernando Cocchiarale, em Novembro
de 1999, escreve sobre o Salão da Bahia:
Em apenas seis edições, o salão MAM-BA tornou-se um dos mais significativos eventos de difusão da arte contemporânea brasileira. Se nos restringirmos ao circuito estrito dos salões de arte, é bem provável que o Salão da Bahia seja o que maior interesse desperte na comunidade artística. O valor de suas premiações e pró-labore, assegurado a todos os artistas e participantes, a oportunidade de integrar uma exposição de caráter nacional e, no caso dos premiados, integrar o acervo do MAM Bahia, vem exercendo uma atração crescente sobre os artistas dos vários
69
centros de produção contemporânea que ora se delineiam no Brasil (MAM, 1999).
Cocchiarale fala ainda sobre o nível profissional do salão, da ampliação e
da adequação de seus espaços, da formação de técnicos especializados. O que
deixa um saldo positivo para a Bahia, pois um projeto de arte e o meio de arte
funcionam em sua plenitude, se aliados à produção artística e à produção técnica,
que vai desde os montadores até a crítica. Também assinala o fato de fazer parte
do acervo de um museu importante como o MAM-BA. Todas estas questões
influenciam no aprimoramento do Salão. Além disso, a comunidade baiana é
enriquecida com o crescimento da arte contemporânea em Salvador e pelo
enriquecimento cultural, através do intercâmbio gerado pelo contato com trabalhos
de artistas de todo Brasil e esporadicamente, do exterior.
Sobre o pró-labore garantido pelo
Salão da Bahia, Cocchiarale comenta o
significado do “reconhecimento do artista
profissional em um país onde mercado de
arte é exíguo e localizado e que, talvez por
isso, considere sua arte como diletantismo”
(ibidem). Esta versão obteve 1944 inscrições
e, no entanto, diminuiu-se o número de
artistas participantes e extinguiu-se as
menções.
É a primeira vez que nos catálogos
são publicados textos mais consistentes.
Fernando Cocchiarale explana, em seu texto para o VI Salão, reflexões sobre o
modelo ultrapassado de salão:
A estrutura dos salões de arte vem sendo criticada internacionalmente e mesmo no Brasil, há várias décadas. Tida em sua dimensão original, delineada no século XIX, essa estrutura já estaria defasada desde o modernismo, tanto nos seus métodos de seleção por inscrição, como
Figura 26
70
pelo caráter competitivo emprestado a estes pela premiação. As bienais e posteriormente a Documenta de Kassel, representam, do ponto de vista institucional, uma superação desse modelo (ibidem).
E mesmo defrontando-se com novas questões sobre a democratização dos
bens culturais, ressaltando a ineficácia do modelo de salão, ele ainda afirma: “O
Salão é, no caso da Bahia, o grande responsável pela inserção da cidade de
Salvador no circuito nacional de exposições” (ibdem).
Nessa edição, apenas 04 artistas baianos participaram. O caráter
contemporâneo do Salão é evidente. Entre os seis premiados, Iuri Sarmento
demonstra um salto em sua linha de pesquisa, explorando a tridimensionalidade e
a apropriação sem, necessariamente, fugir de sua linha visual (Figura 26). Entre
os não premiados estavam, Edgar Oliva, centrado nas pesquisas fotográficas,
Emanuel Blamont e Mônica Simões com instalação. Em números, o Salão
apresentou: 12 instalações, 05 objetos e 05 pinturas.
3.2.7. VII Salão – 2000/2001: um projeto de inserção, a amplitude de linguagens.
A partir do VII Salão do MAM-BA, é
vista, com exatidão, a existência de um
projeto voltado para a contemporaneidade,
já que sua linha está traçada e sua
importância afirmada nacionalmente pela
ação do Museu como um todo, inclusive,
com importantes exposições
internacionais, como a de Jesus Rafael
Soto e “Árvores do desejo para o Brasil”
de Yoko Ono (Figura 27). O crescimento
simbólico do Salão não é isolado, pois em
paralelo surgem novos artistas e eventos
que refletem o crescimento da arte contemporânea na Bahia.
Figura 27
71
O VII Salão da Bahia assume, assim, esta evidência, ou pelo menos a sua
importância. Uma das curadoras, Denise Mattar, chega a transcrever um texto de
Hélio Oiticica no qual o artista argumenta a favor do fim da pintura de cavalete, do
quadro, sem que isso signifique, segundo a curadora, sua morte, ao contrário,
seria sua permanência. Hélio fala que a morte da pintura é justamente ficar
limitada pelo quadro. Este questionamento é levantado por Mattar, que reflete
sobre o que é pintura? “A discussão sobre o assunto vem quase sempre
associada ao não discernimento entre pintura e quadro. Entre o conteúdo e seu
suporte” (MAM, 2000, p. 11). Mattar ainda constata a ligação das teorias de
Oiticica e os participantes desse Salão:
Os caminhos trilhados aos últimos quarenta anos mostraram que Hélio estava certo, e o conjunto de artistas deste Salão que discute questões à pintura, passa por muitas formas, a maior parte delas sem tinta, telas, pincéis ou cavaletes (ibidem).
São inúmeros os caminhos que fazem a arte contemporânea ter muitas
possibilidades de definição. Em diversos posicionamentos, os vários pontos de
vista levam a crer que a influência de Hélio Oiticica e Lygia Clark, na arte
contemporânea brasileira, visivelmente observada na vasta hibridação dos meios,
é de grande importância. Luiz Camillo Osório diz que,
Nesse aspecto, podemos perceber alguns pontos de comunicação entre o que está acontecendo agora na arte brasileira e o que ocorreu na década de 70. Ambas são décadas que vêem na crise dos meios tradicionais e na experimentação uma abertura de horizontes para a criação artística, além de assumirem a dispersão poética como um dado positivo (MAM, 2000, p.31).
Esta versão do Salão teve 1912 inscrições e apenas 30 selecionados. A
configuração de categoria passa a não fazer diferença para os artistas, nem
mesmo para os curadores. O crítico Marcus de Lontra, no catálogo do VIII Salão
diz que: “A própria definição do conceito de Belas Artes e a necessidade
72
subseqüente de dividir a produção artística pela técnica escolhida entram em
choque direto com a ação artística herdada do modernismo” (MAM, 2001).
No VII Salão, dois artistas baianos participaram, Caetano Dias, premiado, e
Ieda Oliveira. Caetano Dias utiliza a fotografia como modo de inserção de seu
trabalho no campo da arte contemporânea. Através de interpretações fotográficas
do corpo humano, insere sua pesquisa em um campo mais aberto, reabre as
possibilidades da representação. Caetano Dias, premiado por suas fotografias,
vai encontrar nesta linguagem a possibilidade de transcrever o diálogo entre a vida
cotidiana e a simbologia religiosa do povo, sua ingenuidade. Daniella Bousso
comenta sobre seu trabalho:
A série Santos Populares de Caetano Dias também remete ao convívio entre cultura e indústria cultural. Ao trabalhar com a imagem fotográfica desfocada, Dias opera no território da ambigüidade de sentido já presente no título da obra – Santos Populares I, II, III / série banheiros – e expandida no resultado das imagens onde o espectador se pergunta se são mesmo santos populares ou se “santos” foram criados a partir de um olhar erotizado em banheiros... tanto fazem os meios, nesse caso. Importa é o resultado final que traz à tona essas questões contidas na gênese da obra. As imagens desfocadas são a referência com a qual dialogamos e a prospecção dos corpos espectrais de Dias pode nos remeter a um desejo – velado ou não – de se estar redimido num mundo sacro-profano onde noções de corpo e integridade física estão prestes a serem dizimadas pelo ritual antropofágico do consumo (MAM, 2000, p.58-59).
Sobre o trabalho de Ieda Oliveira, no catálogo desse Salão, Denise Mattar
comenta:
Ieda Oliveira também discute as questões do acúmulo e da repetição, porém sua escolha recai sobre objetos do cotidiano que povoam sua infância e sobre jogos de palavras propiciadas por estes objetos. “Descanso” é sua cama construída com dezesseis mil espirais, conhecidas pelo nome de “Sentinela”, e utilizadas no interior para propiciar uma noite tranqüila. A plasticidade deste objeto tão simples e sua multiplicação e ordenação, resulta numa obra de grande impacto visual, onde o monocromatismo acentua a vibração dos espirais em seu aparente movimento (ibidem, p. 24-25).
73
No trabalho de Ieda pode-se perceber algo bastante semelhante à poética
de Marepe. Analisando sob os aspectos levantados pela fenomenologia de
Bachelard, as lembranças de infância como devaneios poéticos conseguem a
capacidade de comunicação que a arte contemporânea possui.
3.2.8. VIII Salão da Bahia – 2001/2002: consenso ou carência, um meio de arte passivo.
A Partir do VIII Salão já não há dúvidas do formato escolhido. As únicas
dicotomias se formam em torno dos critérios excludentes e um ou outro fato sem
importância, ou seja, nada que ocasionasse, em uma ação concreta, organização
de mostras paralelas, posicionamentos críticos contrários, provenientes de alguma
publicação especializada, dentre outros posicionamentos.
É provável que isso se deva pela carência de críticos baianos
especializados. A falta de uma discussão mais conceitual, da tomada de posição
teórica, de uma contestação embasada com grande repercussão, é o que pode ter
gerado o consenso que aprova a linha trilhada pelo MAM. O próprio Museu sente
essa carência de crítica de arte, observa Heitor Reis:
E para ser sincero, todas as vezes que eu coloquei um crítico da Bahia no Salão, um crítico profissional, é um distanciamento imenso em relação aos críticos de fora, vergonhoso até. Pela falta de embasamento teórico, infelizmente não temos crítica (MAM, 2005).
Os Salões seguintes serão marcados pelo crescimento considerável de
fotografias. No VIII Salão, cinco baianos foram selecionados: Caetano Dias,
Márcio Lima, Vauluizo Bezerra e receberam prêmio Maxim Malhado e Mônica
Simões juntamente com Nicolau Vergueiro. O trabalho de Maxim foi a instalação
“Sobressalto”, a mesma que dois anos depois integrou a 26ª Bienal de São Paulo.
74
Em relação às linguagens mais numerosas, de 30 artistas, 13 entraram com
fotografias, 09 com instalação e 03 com pinturas. O total de inscrições foi 1738.
3.2.9. IX Salão do MAM – 2002/2003: critérios de seleção “parciais e heterogêneos”, a fluência do acesso à arte.
No IX Salão, com 1697 inscritos, menos que a versão anterior, vale citar o
posicionamento do crítico e diretor do Museu de arte Contemporânea de Niterói,
Luiz Camillo Osório, componente da comissão julgadora, em relação aos critérios
de seleção:
Os salões de arte são uma instituição tradicional. Eles são sempre parciais e heterogêneos, produtos de uma seleção um tanto ao quanto arbitrária, realizada por uma comissão de jurados que negocia entre si “critérios” em busca de um consenso difícil e precário (MAM, 2002).
O Salão do MAM inicia seu projeto com a busca de representação das
tendências contemporâneas e depara-se com sua desestabilidade, sobretudo em
um território carente de crítica e público especializado. Se, de fato, as intenções
do MAM foram capazes de gerar empreitadas paralelas de produção, discussão, e
difusão de bens visuais, isso seria matéria para uma nova pesquisa, centrada em
movimentos paralelos, ambientes próprios. Do ponto de vista institucional, nem a
Bienal do Recôncavo25, nem os Salões Regionais26 conseguiram gerar uma
seqüência objetivada, capaz de aperfeiçoar público, pessoal e mercado.
Pode-se constatar que o Salão do MAM, ainda não é capaz de possibilitar
um conjunto de ações que culmine num número considerável de indivíduos
discutindo, produzindo e potencializando público. O setor educativo tem um
programa de monitoria para estudantes, e segundo Heitor Reis, muitas escolas
marcam visita, porque os jovens gostam de ver arte contemporânea.
25 A Bienal do Recôncavo, acontece desde 1991, realizada no Centro Cultural Dannemann, na cidade de São Felix, no Recôncavo baiano. 26 Os Salões Regionais da Bahia acontecem desde 1992, nos Centros Culturais do Estado, localizados em diversos municípios do interior baiano.
75
As escolas primárias, primeiro e segundo grau, vêm porque o menino gosta. Não adianta trazer para ver o acervo, falar do modernismo brasileiro, da importância da Semana de 22. Nada, zero, não tem mais concentração. Agora ele vai querer saber aquilo que ele acha estranho, a estranheza que bate porque o mesmo questionamento intelectual que um adulto tem, que isso é transformado na arte contemporânea, a criança tem esse questionamento em cima de tudo. Ela quer saber o que é a máquina, o que é a luz, o que é a camisinha (2005 s/p).
Ao tratar da arte contemporânea, estes aspectos levantados pelo atual
diretor da instituição, a educação reflexiva e questionadora propiciada pelo Museu,
devem gerar um resultado a médio e a longo prazo, em um público específico.
A existência de eventos como o “Festival da Livre Expressão Sexual”
(2003), a primeira e a segunda edição do “Salão de Maio: interferências urbanas”
(2004 e 2005) (Figura 28), o “Atack +” (2004), pode ser considerada a oxigenação
de determinadas
propostas das
linguagens
contemporâneas, que,
para existirem,
não necessitam
do cubo branco
na sua
apresentação.
Propostas que
aproximam a arte
do público, alheio às tendências
artísticas, que proporcionam uma relação
direta entre artista e transeunte, porque
na maioria das vezes, tem a cidade como suporte. Talvez uma forma mais
democrática de gerar uma relação estética e suas implicações extra-estéticas.
Figura 28
76
Em relação aos tradicionais salões de arte, é possível dizer que possuem
uma lógica bastante desgastada, antiga e que sempre foi terreno de
experimentações. Essa lógica, às vezes, é foco de atenção de alguns artistas,
como o do paranaense Newton Goto que executa um trabalho em processo,
chamado “Arte para Salão” (2000), onde o artista constrói, ao longo do tempo,
uma espécie de manual para que se consiga entrar nos salões. Levanta questões
como conhecer o curador ou, ao menos, seu gosto, seus artistas preferidos, etc.
Outro exemplo é “Cura dor” do grupo pernambucano ALEPH. O trabalho consiste
em todos os trabalhos recusados por um determinado salão que ficam dentro de
pastas, em um arquivo de ferro para pastas suspensas. Até mesmo estas
operações serão absorvidas por algumas curadorias. No texto para IX Salão do
MAM, Camillo Osório, questiona se:
(...) teria sentido um salão sem rejeitados? Do mesmo modo que só se faz arte porque não se sabe defini-la, só há salão na medida em que há possibilidade da recusa e o desconforto diante dela. De certo modo a graça dos salões é existir uma tensão entre a razão dos selecionados e aquela dos excluídos. Deste desentendimento nasce alguma fagulha para se continuar a pensar e a fazer arte (MAM, 2002).
Ainda que o Salão da Bahia não estimule eventos paralelos, eles existem
em outras configurações que não as de uma mostra institucional. Camilo Osório,
talvez, estivesse referindo-se a um determinado trabalho que tem como título,
“Rejeitados”. Não há obra, apenas uma rede de artistas que rejeitaram a autoria
ao renegar a identidade dos membros, disponibilizando apenas um blog para os
expectadores que, diante de um computador ligado à rede, poderiam entender
algo mais do trabalho: http://geocities.yahoo.com.br/rejeitadosnonono. No entanto,
ao acessar o blog, os grupos estão todos revelados através das mensagens
comuns a esse tipo de meio de comunicação. São revelados, inclusive, nomes dos
integrantes dos grupos que formaram os “Rejeitados”. Controvérsia ou estratégia
de marketing?
77
Entre os baianos participantes desse Salão, dois são premiados: Ayrson
Heráclito e Paulo Pereira,
observando que este último
adquire o prêmio pela terceira
vez, com um trabalho que
demonstra um diferencial dos
trabalhos apresentados
anteriormente: pintura no I e II
Salão; escultura no III, IV e V,
sendo premiado no III, V e no IX
Salão, quando participa com
uma instalação. Enquanto sua
produção apresentada, até
então, era, na maioria das vezes,
esculturas delicadas e
primorosamente trabalhadas, o último trabalho, que foi premiado, é uma espécie
de apropriação do formato de caixotes de feira, empilhados, como são
encontrados, normalmente, quando estão vazios (Figura 29).
Outros baianos participantes
são Gaio, com uma instalação
bidimensional de pintura presa à
parede, Neyde Lantyer com
fotografia, e Ieda Oliveira com uma
instalação de 8m², em forma de um
imenso jacaré, coberto com casca de
jaca.
3.2.10. X Salão da Bahia – 2003/2004: a projeção efetivamente
possibilitada. Figura 30
Figura 29
78
No X Salão, as inscrições continuaram diminuindo, foram 1535. Com 05
baianos selecionados, Eriel Araújo - premiado, Grupo Moral, Tonico Portela, Zélia
Nascimento, e Vauluizo Bezerra – premiado com uma instalação de participação
conceitual, ou seja, a indagação do expectador sobre a forma do elemento
apresentado, modificado e inviabilizado, um piano fora de suas proporções (Figura
30). Com o trabalho “O artista precisa de sorte?”, com a pergunta feita em cartões
de jogo da sorte, como Loto, Sena, etc., o Grupo Moral ironiza com sutileza e
questiona os critérios de seleção de um salão, tema abordado no tópico do IX
Salão.
O nível das participações nos salões, em relação ao reconhecimento,
aumentou. Em geral, os artistas já possuem um currículo amplo, e se ainda não
têm uma produção já reconhecida, têm a oportunidade de deslanchar, de ter a
carreira projetada.
É importante ressaltar a
qualidade das montagens, da
manutenção do acervo, e a
responsabilidade na
profissionalização do corpo
técnico. Marcus Lontra coloca
no texto do catálogo do X
Salão:
Figura 31
79
(...) o Museu de Arte Moderna equipou-se adequadamente, de acordo com os padrões determinados pela museologia contemporânea, principalmente no que se refere à conservação e restauração das obras que integram o acervo, à construção de reservas técnicas adequadas e à capacitação e valorização dos profissionais envolvidos.em todos o setores e atividades da instituição (MAM, 2003).
As informações, aqui relatadas, são provenientes dos catálogos do Salão
da Bahia, realizado pelo MAM, não significando que estes são os únicos pontos de
vista sobre as atividades do Museu, nem que o MAM promova as únicas
atividades importantes que oxigenaram a produção e discussão relativas à arte
contemporânea na Bahia. Entretanto, por um motivo já expresso, os Salões do
MAM são um conjunto de atividades que possibilita analisar o surgimento de uma
produção de importância no cenário nacional.
Muitos artistas que participaram dos Salões, hoje, estão compondo mostras
importantes, como Rosana Palazyan, que participou do III Salão do
MAM, com três aquarelas, e participou do V com uma instalação, onde bonecas
de pano branco eram bordadas com cabelo humano e intituladas “O que você
quer ser quando crescer?”, e, recentemente, a artista participou da XXVI Bienal
Internacional de São Paulo (2004/2005), com a instalação “O Realejo” (2003-
2004) (Figuras 31), e, no mesmo período expunha seus trabalhos em uma mostra
individual no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo. Houve, também,
processos precoces de alguns artistas, como os baianos Maxim Malhado e Ieda
Oliveira, por exemplo, que participaram de versões mais recentes do Salão do
MAM, e ambos também participaram da última Bienal de São Paulo.
3.2.11. Projetos de envergadura contemporânea.
Independente dos Salões, o Museu de Arte Moderna da Bahia desenvolve
oficinas teóricas e técnicas que fazem um estreitamento dos jovens artistas com
as novas possibilidade da arte contemporânea. Vale citar que em 1991, Marepe
freqüentava as oficinas do Museu e, como ele, outros artistas freqüentaram estas
80
oficinas, as quais vieram a participar de Salões, fazendo, assim, um percurso mais
completo, unindo processo e apresentação.
Entre um Salão e outro, o Museu promoveu exposições importantes,
citando algumas da atual década: “Quietude da Terra: Vida Cotidiana, Arte
Contemporânea e Projeto Axé”27 e “Fluxos” de Artur Barrio em 2000 , em 2001,
Cildo Meireles e o Panorama da Arte Brasileira, e recentemente, em 2005, a
“Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea”.
3.3. Um meio que existe.
Além do Salão do MAM, há outros eventos institucionais que ajudam a
amadurecer o processo da produção contemporânea baiana. Não priorizam a
linguagem contemporânea, porém ela não deixa de ter um destaque. São eventos
como a Bienal do Recôncavo, que acontece desde 1991, tendo Marepe como o
primeiro ganhador do Grande Prêmio, recebendo uma viagem à Alemanha. Em
1998, Ieda Oliveira também recebe o prêmio. Premiações que abrem diversos
caminhos conceituais sobre a produção dos artistas premiados e, também,
caminhos profissionais. A viagem à Alemanha mostrou a poética de Marepe e de
Ieda para uma escala internacional de crítica e curadoria da arte.
Observando os grandes prêmios oferecidos pelo Centro Cultural
Dannemann, nota-se que houve uma tendência a ser premiado trabalhos que
possuíssem uma linguagem contemporânea.
27 Artistas nacionais e estrangeiros, de projeção internacional, ministraram oficinas de arte contemporânea para crianças do Projeto Axé. Para finalizar o projeto, foi apresentada uma exposição tão poética quanto comovente no Museu de Arte Contemporânea. Da Bahia, participaram os artistas Mário Cravo Neto, que trabalhou principalmente com o registro fotográfico, e Marepe, trabalhando com a história e a auto-estima cultural das crianças.
81
Os Salões Regionais da Bahia, que acontecem em várias cidades do
interior, desde 1992, funcionam mais como um meio de incentivo e
reconhecimento da produção artística, em um nível estadual, pois eles
acontencem em diversas cidades: Alagoinhas, Feira de Santana, Valença,
Itabuna, Porto Seguro, Vitória da Conquista e Juazeiro. Em geral, há uma
diversidade de linguagens, sendo aceitos também, trabalhos conceituais com
propostas contemporâneas, como o trabalho de Ieda Oliveira, “Aqui se planta, aqui
se colhe” (2000) que consiste em tapetes de grama natural com dentes de alho
plantados, que brotaram e cresceram durante o XXVII Salão Regional de Valença
(Figura 32).
Há instituições privadas que, esporadicamente, promovem exposições e
discussões. O Goethe Institut Salvador é um bom exemplo, pois além da
Figura 32
82
apresentação de trabalhos contemporâneos, promove debates, workshops, entre
outras maneiras de formar público e levantar questionamentos pertinentes às
propostas expressas nas exposições.
Assim, artistas da Bahia que possuem uma projeção considerável no meio
da arte contemporânea, em seus processos de aprimoramento e produção,
participaram da Bienal do Recôncavo, dos Salões Regionais, de exposições
coletivas ou individuais no Goethe Institut Salvador, como é o caso de Ieda
Oliveira e Maxim Malhado, que foram os baianos a estarem entre os artistas do
mundo inteiro na 26ª Bienal Internacional de São Paulo.
3.3.1. Memória, experimentação e metáfora, características contemporâneas no trabalho de Ieda Oliveira.
Ieda pode ser citada como uma artista de grande importância para o
contexto contemporâneo baiano. Ao receber o prêmio da III Bienal do Recôncavo,
premiação que possibilita aos artistas estudarem durante um período na
Alemanha, Ieda causou interesse de curadores e críticos estrangeiros, tendo
participado de diversas exposições na Alemanha e na Argentina, por exemplo. E
em meados do ano de 2005, Ieda irá para a China através de uma bolsa de artes.
(...) agora eu estou indo para China, fazer um intercâmbio. (...) se eles se interessam eles procuram, eles não esquecem. E aí vieram atrás e procuraram a Fundação Sacatar28 (...), e aí rolou essa história. Vou pra uma instituição em Taiwan passar dois meses trabalhando e fazer uma exposição no final (OLIVEIRA, 2005, s/p).
A ênfase em Ieda nesse capítulo possui uma carga extra que está
relacionada à capacidade intrínseca de seu trabalho, participação, características
que nos remetem às experiências participativas dos anos 1970.
Hélio Oiticica afirma que uma das principais características da “Nova
Objetividade” é a participação do espectador, incluindo a “participação semântica” 28 Fundação Sacatar fica localizada na Ilha de Itaparica, Bahia.
83
(1986, p.110-119). Isso significa que a palavra pode dar uma outra proposição
para o espectador. Este pode, através da assimilação da palavra do conjunto da
obra, absorver detalhes não revelados a priori e que estes detalhes abrem
margem para uma participação mais efetiva, na obra.
(...) desde as proposições semânticas da “palavra pura” às da “palavra no objeto”, ou às de obras “narrativas” e as de protesto político ou social, o que se procura é um modo objetivo de participação. Seria a procura interna fora e dentro do objeto, objetivada pela proposição da participação ativa do espectador nesse processo: o indivíduo a quem chega a obra é solicitado à completação dos significados propostos na mesma (CENTRO DE ARTE HÉLIO OITICICA, 1986, p. 115).
A metáfora não é uma
representação passível apenas de contato retiniano e semântico, pois propõe uma
Figura 33
Figura 34
84
possibilidade real de sentimento, de ação sobre a proposta. Os títulos escolhidos
pela artista quase sempre fazem referência ao material utilizado para a construção
do trabalho, ou uma alusão à determinada situação, sendo este parte integrante
da obra, já que a leitura do título pode abrir precedentes para novas percepções.
Em “Milagres” (2002), Ieda participa, com o expectador, seu devaneio,
literalmente, não só simbolicamente, propondo uma história de parte da sua vida
(Figura 33).
E uma das salas da galeria do Goethe Institut Salvador, coloca vários
cavalos de madeira infantis, em cima de um gramado verdadeiro, num tamanho
que acolhe um adulto. Este, tendo acesso livre, pode se balançar como uma
criança no espaço interno da galeria. A artista organiza uma ação na abertura da
exposição, quando canta um repente de autoria própria, acompanhada por
músicos, vindos do interior, tocando sanfona, zabumba e triangulo. A música conta
a história da artista junto à tradição da cidade de Milagres29, onde, normalmente,
após a visita à Nossa Senhora, o devoto leva, entre outras coisas, melancia para
casa. Assim, justifica-se a um desavisado o porque da distribuição de melancias
ao público (Figura 34). Na parede são projetadas imagens de fotos de sua
infância, na cidade que deu nome à exposição. Estas mostras caracterizam-se
como propostas de vivências de situações vividas e experimentadas em vários
níveis. Táticas de imposição à participação, à instauração do contato em níveis
mais significativos entre sujeito e objeto. Assim, retorna ao questionamento da
ramificação do acontecimento que caracteriza a instalação “Milagres”.
29 Cidade do interior da Bahia que recebe a visita de devotos de Nossa Senhora dos Milagres.
85
Esses trabalhos possuem relação com a participação descrita no “Esquema
geral da Nova Objetividade” de Hélio Oiticica, considerando a possibilidade de
uma participação semântica e destacando a relação do tema com o material
utilizado.
Muitos trabalhos de Ieda trazem uma palavra em comum: dor. “Escorre-
Dor” (2000), “Emborca-Dor“ (2000), “Enxágua-Dor” (2001), “Peca-Dor” (2004),
dentre outros, com relação à dor e sua personificação no cotidiano como uma
cama de borrachas escolares emparelhadas, que, através do título, dá vazão à
imaginação do espectador, “Apaga-Dor” (2000) (Figura 35).
Figura 35
86
No projeto de Ieda que foi montado na
26ª Bienal de São Paulo (2004), “Peca-Dor”
(Figura 36), a relação de dor e pecado foi
projetada na construção de um ambiente
interativo, que possui elementos que
relembram os castigos da educação cristã,
que ainda hoje, pode ser encontrada em
algumas localidades do interior do país. Ieda
transfere um confessionário de uma cidade30
do interior da Bahia e o leva para a metrópole, colocando o relicário sobre uma
tonelada e meia de milho, emitindo a música “Os sete pecados capitais” do Pe
Zezinho: - a artista escutava a mesma música na Paróquia de Varzedo, quando
criança: “não deixe o coração se escravizar / Nas garras da soberba, / Da avareza,
da luxúria / E da ira e da Gula / E da avareza e da preguiça. / Não deixe o coração
se extraviar / No labirinto dos pecados capitais”.
30 Varzedo, cidade do interior da Bahia, onde a artista passou sua infância, e cujo confessionário, emprestado pela Paróquia de Varzedo, recebeu sua 1ª confissão.
Figura 36
87
No catálogo da 26ª Bienal de São Paulo, o crítico alemão Peter Anders fala
do trabalho:
Ieda torna presente uma práxis operando com meios simbólicos, a qual aponta para além da mera coletividade regional. Justamente o recurso aos objetos do cotidiano, muitas vezes objetos de culto, e à sua reconstrução possibilita ao observador transformar as próprias feridas psíquicas. O fato de isso acontecer sem qualquer lamúria e com a devida dose de ironia é o que torna seu trabalho tão penetrante (2004, p. 178).
A alusão à dor, à culpa, foi desconstruída, quando a estrutura tradicional foi
decodificada. No chão, os grãos de milho que podem remeter à dor nos joelhos,
penalidade pelos pecados, possibilitaram os desejos de quebra de padrões, os
desejos de infância. As crianças visitantes daquela Bienal são as que mais
potencializaram essa idéia. Elas se jogaram
no milho, confrontando o símbolo da dor
com uma brincadeira divertida embutida em
uma proposta de arte, próxima ao Éden31
projetado por Oiticica em 1969, onde, por
imagens (Figura 37), pode-se ver uma
criança muito à vontade jogando as palhas
31 Na versão “Whitchapel Experince”, realizada na Whintechapel Gallery - Londres, em fevereiro de 1969 (Hélio Oiticica, 1996, p. 132-133 e 136-138).
Figura 37
88
para o alto de uma das ambiências da instalação.
Outra instalação, “Farinha do Mesmo Saco” (2001) tomou toda a galeria da
Associação Cultural Brasil-Estados Unidos – ACBEU com quase meia tonelada de
farinha de mandioca (Figura 38). A princípio, as pessoas não entravam no espaço
da instalação, tinham receio de pisar na farinha esparramada pelo chão, depois,
pisaram sem maiores constrangimentos. Na ocasião, o coquetel, normalmente
servido nas aberturas das exposições, foi cachaça comprada a granel e mantida
nas garrafas pet’s. A estranheza à falta de requinte, normalmente existente nessas
ocasiões, pode ser o motivo da cachaça não ter sido bebida. Este fato confirma o
irônico título da exposição “Farinha do Mesmo Saco”, um ditado popular que
iguala determinado grupo de pessoas, sem distinção. E Ieda tornou seu trabalho
tão acessível, que quem quis possuir parte dele, adquiriu, por modesto R$1,00 um
pequeno saco de farinha (igual aos de 60kg), contendo, em média, 200g, com a
inserção da frase “Farinha do Mesmo Saco”. O dinheiro era recolhido em uma cuia
Figura 38
89
de queijo do reino, muito conhecido na Bahia como “queijo cuia”. Essa cuia é,
normalmente, utilizada por mendigos, para pedir esmolas (Figura 39).
E a relação que Ieda faz é que os artistas ficam pedindo esmola, quando
propõem uma exposição ou são convidados a expor. A artista contextualiza sua
proposta:
Eu criei um grupo que não existe, que foi justamente quando cheguei da Bienal do Mercosul. Vim de lá sabendo que tinha o APIC e o PEADA32, e aí eu criei um aqui e chamei de “Esmola”. Falei para alguns artistas, mas o povo é tão covarde que teve medo porque podia se queimar com fulano de tal. Eu mesma fiz um trabalho lá na ACBEU, chamado “Farinha do mesmo saco”, onde fiz a performance “Esmola”. Fiquei com uma cuia de queijo cheia de moedas, sacudindo para as pessoas comprarem o saquinho de farinha por um real. Era uma forma de comprar o trabalho. Porque a ACBEU não me deu nada, me convidou para participar (...) E, na época não deram dinheiro nenhum para comprar a farinha e por fim, me deram R$250,00, eu me lembro, e por isso fizeram o convite preto e
32 Grupos que contestam a falta de recurso oferecido aos artistas, pelas instituições que ganham valor simbólico com as exposições. APIC - Artista Patrocinando Instituições Culturais, e PEADA - Patrocínio E Apoio De Artistas.
Figura 39
90
branco. E aí as pessoas compravam essa esmola, que era o saco de farinha. Eu vendi 45 sacos na noite da exposição, foi tão engraçado! (2005, s/p).
Em um outro trabalho, Ieda coloca várias forminhas de bolo (iguais às de
empada) ordenadamente, com uma mão pintada dentro de cada uma, uma
palmatória ao lado, intitula a obra de “Bolos de Mainha” (1999). A dubiedade se
faz mais presente, quando a palavra “bolo” ganha seu duplo sentido, muito
utilizado no interior da Bahia, o do bolo comestível e o de tapa, palmada... Assim,
mesmo não utilizando a palavra “dor”, a dor está inserida, lembrando da infância
que, dificilmente, passa sem “bolos” da mãe, e cada um que vê aquele objeto,
provavelmente busca uma memória particular, sua própria vivência ou a
experiência alheia assimilada. Neste caso, os bolos de palmatória eram recebidos
pela mãe de Ieda e divididos entre suas tias, em proporções quantitativas
conforme a idade: a mais velha tomava nove, a do meio seis, e a mais nova, três.
As forminhas eram utilizadas pela sua mãe para fazer bolinhos e depois vendê-los
em cima de um tabuleiro, ao lado da igreja, durante a infância da artista.
Em geral, os trabalhos de Ieda Oliveira são a mistura de memória e
devaneios de sua infância e das histórias ouvidas durante toda sua vida. A artista
consegue absorver a importância dos fatos e vai à essência dos termos e
expressões dúbias. Ao transformar essa absorção em um trabalho artístico,
exterioriza seus valores, ativa a lembrança do espectador, atinge os arquivos da
memória. “Para ir aos arquivos da memória, importa reencontrar, para além dos
fatos, valores” (BACHELARD, 1988, p. 99).
Essa exteriorização dos valores presentes em objetos e em fatos do
cotidiano, também está presente no trabalho de Maxim Malhado.
3.3.2. Maxim Malhado: Ibirapuera, ou madeira velha; o agreste do cotidiano como poética artística. O Curador geral da 26ª Bienal de São Paulo, no texto “A Bienal como
território livre”, apresentado no catálogo das representações nacionais da referida
Bienal (2004, p. 23-29), fala do fato de Ibirapuera, que significa madeira velha,
coincidir com uma bienal onde muitos trabalhos foram confeccionados com
91
madeira. Particularmente, os brasileiros Ives Machado, com toras de madeira
empilhadas, Tiago Bortolozzo, com a forma de madeira para construção “Vital
Brasil” (2002-2004), os galhos de árvore do Chelpa Ferro, “Nadabhrama” (2003), e
a jangada cearense de Artur Barrio. No trabalho “Sobressalto” (2001) de Maxim
Malhado (Figura 40), fazia-se presente esta característica.
Seu trabalho era um desmembramento da primeira montagem do
“Sobressalto”, uma idéia que se concretiza em uma instalação de travas de
madeira, no estilo das que são construídas para se fazer obras em tetos, mas
Maxim toma todo o ambiente, gerando a dúvida se é obra de reforma, ou uma
proposta artística, como aconteceu no Goethe-Institut Salvador em 2001, onde
toda a grande sala para exposição foi tomada pela instalação, gerando, pelo
menos a princípio, o questionamento, “como pode o ICBA33 fazer exposição de um
33 ICBA - Istituto Cultural Brasil-Alemanha, como é popularmente conhecido o Goethe-Institut Salvador.
Figura 40
92
lado e reforma do outro?”, e depois o encantamento com a interatividade
involuntária que o trabalho conseguiu provocar34.
Na montagem da 26ª Bienal, muito perdeu-se do potencial do trabalho, pois
estava em um vão livre, ocupava uma área que ia de uma coluna a outra,
configurando a forma geométrica quadrangular, e não alcançava o teto.
Há uma constante nos trabalhos desse artista, sua ligação com as
estruturas de madeira e com as
linhas do cotidiano (Figura 41).
Maxim privilegia as linhas
além da funcionalidade real. São
diversas as formas de existência
do trabalho do artista. Além dos
suportes para obras da construção
civil, as amarras em carroceria de
caminhão, que fazem com que a
lona fique presa à carga, em os
“Embrulhos” (2003) (Figura 42), também fazem parte do repertório de trabalhos do
artista. Ele apropria-se,
fotografa e mostra como um
trabalho de sua autoria.
Apropria - se de bandejas
ou, como chama-se
“Aparadouror” (2002)
(Figura 43), estruturas de
madeira que são feitas em
construções.
Certas apropriações
de Maxim podem ser
questionadas, afinal, o artista não desloca o objeto, a construção, a instalação
34 Esse questionamento e a conclusão foram da autora ao deparar-se com a enorme intervenção no espaço onde fora ver uma exposição.
Figura 41
Figura 42
93
apropriada. Mas, por que não considerar um trabalho do artista? Por não ser
exposto numa instituição de arte? E por que não manter o trabalho apropriado em
seu local de origem, como as amarras de uma lona de caminhão e no
“Aparadouro”.
Ao conhecer a história da arte brasileira, verifica-se que, sobre artistas com
reconhecimento e importância, são apontados sentidos de apropriações que
fogem da condição proposta por Marcel Duchamp, no início do século XX. Hélio
Oiticica aponta em seu texto “Posição e Programa”, escrito em julho de 1966, o
sentido ético da apropriação:
Não existe pois o problema de se saber se arte é isto ou aquilo ou deixa de ser – não há definição do que seja arte. Na minha experiência, tenho em programa e já iniciei o que chamo de apropriações: acho um objeto ou conjunto-objeto formado de partes ou não, e dele tomo posse como algo que possui para mim um significado qualquer, isto é, transformo-o em obra (...) essa compreensão da maleabilidade significativa de cada obra é que cancela a pretensão de querer dar à mesma premissa de diversas ordens: morais, estéticas, etc. a característica fundamental da criação artística é que impera como algo fixo, inalienável: a própria criação dada pelo ato de criar e sua conseqüência ao realizar-se: propor uma atitude também criadora. Só isso basta para definir o propósito e justificar a razão de ser de tais proposições (ibidem, p.100).
Neste âmbito, Hélio
Oiticica promoverá uma
série de apropriações que
alteram o sentido do ready
made criado por
Duchamp. Em uma de
suas apropriações, tomou
posse de um concerto no
centro do Rio de Janeiro,
estabelecendo um contato
entre a manifestação
sonora e plástica como
Figura 43
94
uma proposta de arte ambiental. Para ele, esses concertos são muito importantes
como manifestação e criação de ambientes e explica no texto “Programa
Ambiental”:
Tenho em programa, para já, “apropriações ambientais”, ou seja, lugares ou obras transformáveis nas ruas, como p.ex.: a obra-obra apropriação de um concerto público nas ruas do Rio, onde não faltam, aliás – como são importantes como manifestação e criação de “ambientes”, e já que não posso transportá-las, aproprio-me delas ao menos durante algumas horas para que me pertençam, e dêem aos presentes a desejada manifestação ambiental. Há aqui uma disponibilidade enorme para quem chega; ninguém se constrange diante da “arte” (ibidem, p.104).
Daí sua célebre frase “Museu é o mundo”.
A apropriação por tempo determinado também pode ser encontrada entre
os trabalhos de Artur Barrio, como em “4 movimentos” (1974), quando o artista se
apropria dos movimentos de uma vendedora de peixes em Portugal (Figura 44). O
trabalho é registrado por fotos, que não são consideradas pelo artista como obra,
mas como documentação. No texto sobre o trabalho, Barrio declara:
No trabalho cotidiano da vendedora de peixe (quer chova quer faça sol) vejo o condicionamento secular de uma parte do povo português no trabalho do mar e da sobrevivência, em conseqüência, pela venda do peixe. Da mão que oferece e da outra que, retraída pelas asperezas da vida, ...recebe.
Figura 44
95
Do relacionamento cultural Do relacionamento econômico Do relacionamento político Do relacionamento social
(2000, p.126).
Apesar de distintas as situação apropriadas, o que funde as propostas é a
tentativa de propiciar um pensamento mais humano a quem passa por um
concerto em espaço público, por uma vendedora de peixes em Portugal, por uma
construção ou por um caminhão com carga. Maxim vê, na bandeja de construção
ou nas amarras da carga de um caminhão, a poética da coisa ali, como ela é feita
e como permanece até o fim de sua
função. Ao passar isso para um
público, ele transfere essa poesia, a
percepção da beleza das linhas. É ver
o mundo, o cotidiano com mais
atenção, a simplicidade que possui
complexidade na empírica formulação
das soluções.
De fato, as soluções populares para
problemas cotidianos cercam a
poética de Maxim. Seu olhar está na
vida cotidiana - apreendendo com
maior afinco as artimanhas do
construtor, do caminhoneiro, do
jardineiro, ou do vendedor de ovos -,
em direção à poesia, que as amarras
de uma cartela de papelão, para
protejer os ovos possuem (Figura 45). Sua poética vislumbra os fatos como arte.
Figura 45
96
3.4. Identidade: a busca do simples. Com um panorama dos Salões do MAM-BA, é possível ter noção do
desenrolar da arte contemporânea da Bahia, a partir da década de 1990. Nas
fendas dos Salões, avalia-se a trajetória de alguns artistas que fizeram sua história
nessa década. A produção de Ieda Oliveira e Maxim Malhado é compatível com as
formulações que elucidam o caminho de um grande expoente da arte
contemporânea baiana: Marepe. O Diretor do MAM-BA, diz que Marepe é uma
referência:
(...) porque essa valorização da apropriação do cotidiano, principalmente do popular, reforçou da seguinte forma, têm muitos artistas que em algum momento não valorizaram esse tipo de intervenção e a partir do sucesso de Marepe passaram a tê-lo como referência (REIS, 2005, s/p).
Ieda Oliveira, conviveu com Marepe, vivenciou os primeiros momentos em
que o artista teve seu trabalho reconhecido. Ieda fala de quando Marepe ganhou o
prêmio da 1ª Bienal do Recôncavo e da importância da pluralidade de linguagens:
(...) e eu via o conflito que ele ficava, porque diziam que ele tinha sido premiado, e eu nem sabia o que era Bienal do Recôncavo na época. “Disseram que eu fui premiado”, e era aquela história toda, e a partir disso, do trabalho dele na Bienal do Recôncavo, que se tratava de uma escova de enceradeira com uma escultura em cima, ele foi desenvolvendo outras coisas dentro do cotidiano, da linguagem do regional e acho que abriu mais a cabeça das pessoas, porque se a gente vivesse num ambiente que só se fizesse pintura, dificilmente alguém ia ver novas experiências de outros artistas, e vendo ele fazer um trabalho daquele e ser premiado na Bienal do Recôncavo aí já começa a despertar mais o olhar das pessoas, ele fez um trabalho diferente (2005, s/p).
Diante do percurso que ajudou a inserir a Bahia, ainda que timidamente, no
circuito da arte contemporânea, nota-se a evidência da importância da produção
de Marepe para a arte baiana, sendo necessário um capítulo de reflexões sobre
essa produção.
97
4. Memória, imaginação e cotidiano na produção de Marepe.
4.1. A situação nos anos noventa, um contexto regional.
A contemporaneidade torna a troca de bens simbólicos mais horizontais,
incorporando e absorvendo tendências múltiplas. Assim, o experimentalismo tem
sido observado, desde a última década, com mais atenção.
Se nos 80 houve uma preponderância da pintura, nos anos 90 se experimenta a retomada de algumas questões de meios e suportes característicos da arte dos 70. Menos do que fazer pintura, escultura, desenho e gravura, esses formatos tradicionais, os artistas dos 90 passam a trabalhar com novas mídias, como a fotografia, o vídeo, as instalações, que ampliam o raio de ação da obra no espaço (BARROS in REVISTA BRAVO, 1999).
Outra característica da contemporaneidade, indiferente a sua legitimidade
como fator positivo ou negativo, é a possibilidade de inserção de artistas
provenientes de regiões periféricas dentro de um quadro geográfico de atuação
mais amplo.
Dentro deste quadro, algumas peculiaridades podem ser observadas nas
características da produção contemporânea do Nordeste brasileiro. Isso significa
atentar para um tipo de produção que rompe com questões da forma em relação
ao objeto de arte, sem filtrar seus pressupostos extra-estéticos, conforme a visão
do crítico modernista Greenberg, absorvendo suas peculiaridades sem respaldar
exotismos. Conforme confirma o crítico pernambucano Moacir dos Anjos, no texto
Desmanche de Bordas:
Apesar dos temores apregoados, o contato e a colisão entre discursos e imagens diversos sobre o mundo têm gerado respostas de afirmação ou reconstrução identitária e desenvolvido um generalizado fascínio pela diferença. O resultado mais paradoxal da intensificação dos fluxos mundiais de informação tem sido, de fato, o de frustrar expectativas de homogeneização de culturas e de fraturar a noção, implícita no ideário modernista, de hierarquia entre elas (...) (in BUARQUE DE HOLLANDA e RESENDE, 2001, p.51).
98
O Nordeste, dentro de suas peculiaridades, tem produzido e alcançado
reconhecimento internacional, e seus artistas participam do circuito nacional,
talvez, ainda não no mesmo fluxo dos centros hegemônicos das artes – Rio de
Janeiro e São Paulo - mas equiparando-se no nível de reconhecimento qualitativo.
4.1.1. Herdeiros do neoconcretismo: o Nordeste inserido no âmbito da arte contemporânea.
Existe no neoconcretismo um ponto de partida de extrema importância para
a análise do experimentalismo e da diversificação de linguagem na arte brasileira,
produzida principalmente a partir dos anos 1990. Nesse contexto contemporâneo,
a arte produzida no Nordeste insere-se de uma forma bastante representativa na
produção nacional e internacional, ao ter artistas participando da Bienal de Veneza
com Marepe (Figura 47), da Bienal
Internacional de São Paulo, com Marepe, Ieda
Oliveira, Maxim Malhado, da Bienal do
Mercosul com Marepe, Ieda Oliveira, Ayrson
Heráclito, Gaio (Figura 46), da Bienal das
Américas, Gaio, da Bienal de Pontevedra,
Marepe, entre outros eventos de repercussão
mundial.
A introdução de determinadas
características do movimento Neoconcreto
possibilitou, também, aos artistas de regiões
periféricas explorarem o campo da relação
sujeito-objeto na arte.
Aliados aos fatores de cunho geográfico
e às influências externas possíveis, os artistas
do Nordeste terão características bastante peculiares em relação a uma grande
parte da produção do Sudeste. Mas a linguagem contemporânea consegue, de
alguma forma, sintonizar essas produções e incluí-las em um mesmo discurso,
Figura 46
99
apesar das obras terem, intrínsecas, características da vivência pessoal do artista.
Sobre a influência do contexto em que vive o artista, em sua produção artística,
Moacir dos Anjos coloca:
Através da progressiva introdução de ruídos e impurezas no até então bem definido campo da arte moderna, a arte contemporânea questiona e relativiza, por sua vez, o interesse ali nutrido pelas características puramente formais do objeto artístico; deixa-se contagiar pelo imaginário da cultura popular e de massa e passa a fundar-se – temática e materialmente – em questões relacionadas à memória e à vivência do artista (in SESC-PONPÉIA, 1999).
O artista plástico baiano Marcos Reis Peixoto, ou, como é conhecido,
Marepe, traz questões que envolvem o imaginário da cultura popular, a sua
memória e a vivência na terra natal. Possui uma percepção da “tecnologia”
popular, das ruas, das feiras. Há em Marepe um interesse pelo trabalho informal,
fruto de observações do artista, apoiado em suas experiências pessoais. Em sua
produção artística é demonstrada a linha de possibilidades de linguagem e temas
observados na maioria de seus trabalhos: participação do expectador, devaneios
da infância e o contexto do Terceiro Mundo.
Figura 47
100
Ao ter respaldo de críticos nacionais e, sobetudo, do meio de arte baiano,
curadores e galeristas, Marepe desponta como o principal artista contemporâneo
da Bahia. “Existem diversos, mas quem está se sobressaindo mais, com uma
carreira brilhante, é Marepe” declara o galerista Paulo Darzé, proprietário de uma
das principais galerias do Brasil, segundo a organização da “SP Arte – Feira
Internacional de Arte Moderna e Contemporânea de São Paulo”, organizada em
2005. Heitor Reis, diretor do Museu de Arte Moderna da Bahia, considera que os
temas e a maneira como o artista apropria-se das simplicidades do cotidiano, o
tornaram uma referência para a Bahia (2005, s/p).
Dessa forma, torna-se evidente a grande importância de Marepe para a
nova geração de artistas baianos, o “abrir de portas” para a atual produção de arte
contemporânea na Bahia.
4.2. Abrigo, Memória e vivência: o universo poético de Marepe.
A memória visual e a memória poética fazem parte do universo de criação
de Marepe. Sua visão de mundo, voltada para os objetos do cotidiano, pode ser
facilmente relacionada com o “devaneio do poeta”. O filósofo Gaston Bachelard,
em seus escritos, narra o encontro despretensioso com imagens do mundo.
Quando uma imagem é absorvida pelo poeta, ela pode ser configurada, tornando-
se vulnerável à construção de um ou mais objetos poéticos, ou a uma metáfora
que gera várias configurações de uma imagem matriz. “Nas horas de grandes
achados, uma imagem poética pode ser o germe de um mundo, o germe de um
universo imaginado diante do devaneio de um poeta” (BACHELARD, 1988, p. 01).
As noções de memória, de casa, de abrigo são também passíveis de relação com
o trabalho de Marepe. Sua relação com o mundo, de onde tira suas imagens a
serem transformadas em “arte” é absorvida por “um estar no mundo”. A maneira
que imerge no cotidiano do vendedor ambulante, do pintor de muro ou de crianças
da periferia de Salvador, pode ser relacionada com a experiência de Hélio Oiticica
ao produzir bólides, penetráveis, apropriações com o surgimento do trabalho “a
partir dos mais concretos elementos da realidade: cores, materiais, estruturas e
101
construções precárias das paisagens urbanas e suburbanas”, diz a curadora
Catherine Davi no texto “O Grande Labirinto” (in CATÁLOGO HÉLIO OITICICA,
1998, p. 255).
Há possibilidades de serem feitas outras relações da produção de Oiticica e
da trajetória de Marepe até então. Levando em conta o deslocamento histórico,
algumas relações serão apenas no campo formal. Mas pode ser tomada como
exemplo a análise de Catherine David sobre a obra de Hélio Oiticica:
Aquilo que pertence à autobiografia, à memória e às lembranças pessoais, se mistura imperceptivelmente com as imagens de domínio público, num vai e vem permanente entre microcosmos e macrocosmos. Haroldo de Campos evocou a “recuperação proustiana da infância” existente em certas peças que parecem restituir os espaços secretos, íntimos e protegidos que abrigam os jogos e os sonhos da criança (...) (ibidem).
Nos meados da década de 1990, iniciaram muitos acontecimentos artísticos
de cunho periódico, como o Arte/Cidade, em São Paulo, e o Salão da Bahia, no
Museu de Arte Moderna, assim como eventos de menor representatividade num
contexto nacional, porém de grande importância para parâmetros regionais, como
a Bienal do Recôncavo em São Felix35, Bahia.
Questões ligadas à desmaterialização do objeto de arte são abordadas na
22ª Bienal de São Paulo (1994), deixando claro a herança dos movimentos de três
décadas anteriores e confirmando as principais tendências da década de 1990.
Em suma, a arte pós-anos 60 não quer ser referente; não usa seus meios para falar do mundo, mas se apropria do que existe nele. Essa contestação da linguagem humana é o tema central da filosofia contemporânea: a linguagem tradicional sempre será interpretação da realidade e, portanto, sempre limitada, sempre relativista (FOLHA DE SÃO PAULO, 17 nov. 1994, Caderno Especial, p.03).
35 Cidade situada na região do Recôncavo baiano que cedia o Centro Cultural Dannemann, onde acontece a Bienal do Recôncavo.
102
Como referência da produção dessa década, acontece no Paço Imperial do
Rio de Janeiro em 1999, a exposição “Os 90”. Nesta mostra participam artistas de
destaque - que tiveram sua primeira exposição individual na referida década -,
projetando um “esboço parcial” da produção de arte que caracterizou os anos de
1990. Luiz André Barros escreveu no texto “Fragmentos de uma década”,
publicado na Revista Bravo (1999): “Se há uma marca indiscutível da arte
brasileira na década de 90 é a multiplicidade de propostas e tendências”. Marepe
foi uma das revelações que participou dessa mostra.
4.3. Recôncavo: antropofagia e vida cotidiana no terceiro mundo.
Vera Cruz de Itaparica, 20 de dezembro de 1647.
O caboco Capiroba apreciava comer holandeses. De início não fazia diferença entre holandeses e quaisquer outros estranhos que aparecessem em circunstâncias propícias, até porque só começou a comer carne de gente depois de uma certa idade, talvez quase trinta anos. E também nem sempre havia morado assim, no meio das brenhas mais fechadas e dos mangues mais traiçoeiros, capazes de deixar um homem preso na lama até as virilhas tempo suficiente para a maré vir afogá-lo lentamente, entre nuvens cerradas de maruins e conchas anavalhadas de sururus. Isto só aconteceu depois dos muitos zumbidos e assovios que sua cabeça começou a dar, no ver de alguns porque era filho de uma índia e de um preto fugido que a aldeia acolheu, o qual, de medo, nunca saiu de casa a não ser pela noite para se mudar quando era preciso, tendo por esta razão desenvolvido uns certos parentescos com morcegos e bacuraus e deixando de enxergar à luz do dia (RIBEIRO, 1984, p.37)36.
As condições, que possibilitaram Marepe trilhar o caminho da diversidade
de linguagens e materiais, são diversas. Muito de sua prática é sua própria
vivência, sua relação com o mundo. Muito cedo ele percebeu que a obra de arte
poderia ser para o outro, o espectador, algo a mais que uma experiência retiniana
nos moldes convencionais. Aos dezessete anos cursava a Escola de Agronomia
da Universidade Federal da Bahia, em Cruz das Almas37, e, aos dezoito,
Licenciatura em Desenho e Plástica na Escola de Belas Artes, também da UFBA,
36 Trecho do livro “Viva o povo brasileiro” de João Ubaldo Ribeiro. 37 Cidade localizada na região do Recôncavo baiano.
103
em Salvador. Agraciado com o “Grande Prêmio Viagem à Europa” da I Bienal do
Recôncavo, em 1991, o artista passa uma temporada na Alemanha. Lá vivência
uma nova experiência em relação ao objeto de arte e suas relações com a
criação, com a maneira de criar. O próprio artista diz que a estadia em outro país,
possuidor de outra cultura, mas que, por um fio imaginário, poderia ser observado
horizontalmente, livre da sensação de hierarquia cultural, possibilitou uma reflexão
de si e do outro. Marepe fala de sua vivência na Alemanha:
Eu fui para Europa e me deparei com uma cultura, que não acho superior, acho que tem muita superioridade aqui na nossa cultura, na resistência, existem muitas mazelas, muitas questões mal resolvidas, mas existem muitas coisas positivas. Na Bahia, que é o lugar que eu observo, a existência acontece de uma forma menos veloz, está tudo muito mais rápido. (...) Então eu tive contato com a Europa, e eu tive que descobrir uma beleza nas coisas aqui (...) esse choque com a cultura tecnológica, racional. Eu fui ver coisas positivas também, as pessoas são muito mais politizadas e conscientes em um nível macro (MAREPE, 2003, s/p).
Em um sentido formal, esta possibilidade de distanciamento de sua própria
cultura proporcionou ao artista analisá-la de um outro ponto de vista, além de
perceber mecanismos de transformação da arte, em um local onde estas
transformações tiveram uma contundência maior em um nível cultural mais amplo.
Na verdade, eles passaram por todas as etapas, quando eles dizem “somos pós-modernos” é por que eles são pós-modernos, passaram pelo moderno, como as estações do ano, as etapas da vida, a infância, adolescência, maturidade, velhice, e a gente não passou por essas etapas. Descobriram um dia desses aí, um regime de escravidão, então é muito arriscado, é complicado. Pra mim, foi necessário conhecer minha cultura (MAREPE, 2003, s/p).
Esta colocação reflete alguns pontos importantes no trabalho de Marepe
que podem dar uma referência inicial para a reflexão de características
contemporâneas em sua obra. A participação do espectador, a desmistificação do
suporte tradicional e a proposta para uma arte coletiva, por exemplo.
Gaston Bachelard fala do espaço da imaginação e o espaço vivido, que em
Marepe, gera o objeto vivenciado:
104
O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração do geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação. Em especial, quase sempre ele atrai. Concentra o ser no interior dos limites que protegem. No reino das imagens, o jogo entre o exterior e a intimidade não é um jogo equilibrado (BACHELARD, 2003, p.19).
Marepe produz muitos trabalhos, talvez a grande maioria, pensando no
público, e não diferencia essa intenção do sujeito iniciado em arte, do não iniciado,
do adulto e da criança. Sendo assim, é possível perceber a relação intimista do
expectador com a obra, mesmo que sua percepção questione se o que está diante
de si é arte ou não. Esse questionamento ainda é muito freqüente, principalmente,
diante de trabalhos com linguagens contemporâneas. Mas quando Marepe
convoca a participação do outro, este quase sempre não resiste e vivência a
proposta evocando a imaginação.
Para o I Salão da Bahia, realizado pelo Museu de Arte Moderna em 1994,
Marepe envia uma instalação s/ título (Figura 48). O artista já demonstrava a
relação de contato entre arte e público, que circunda seus trabalhos até hoje. A
instalação consistia num desenho de “zoofitomorfos”38 na parede, uma grande
forma orgânica no chão a qual o expectador interagia inflando-a com uma bomba
anexa ao trabalho.
Ao verificar a primeira
experiência, com o que se
pode chamar de linguagem
contemporânea, na sua
primeira exposição, fora do
circuito das artes, quando
ainda cursava Agronomia,
Marepe faz o relato, em
entrevista, de como foi o
processo que o fez despertar
38 Desenhos que relacionam “bicho+planta+gente”, relações que aparecem em outros trabalhos do artista.
Figura 48
105
para a arte e que já direcionava sua principal forma de expressão, dentro do
universo das artes plásticas, “(...) eu encontrei um colchão de mola e resolvi levá-
lo para casa39, ainda tinha um resto de tecido, eu só queria levar a armação de
mola”. Sua experiência com aquele objeto gerou uma percepção para outras
possibilidades “(...) eu larguei agronomia quando me vi rasgando um colchão.
Quando vi aquela cena, percebi que alguma coisa estava errada, despertei” (2002,
s/p).
Sobre a primeira exposição, Marepe relata sua experiência ainda em Cruz
das Almas, “(...) foi minha primeira individual, em que aconteceu minha primeira
instalação também, no Centro Cultural de lá, a Casa da Cultura40. Na época ,
recebi uma grande força do Nelson Magalhães41” (2002, s/p).
Em relação ao trabalho apresentado no I Salão do MAM, a participação
abre precedentes para outras experiências que terão como ponto central a relação
sujeito-objeto, foco primordial das transformações operadas pelo neoconcretismo.
O neoconcretismo baseou-se em teorias da fenomenologia, o que ajudou
no conceito da diluição, da distância do espectador em relação ao objeto de arte,
na produção de artistas deste movimento. Em outros trabalhos de Marepe, esta
relação entre sujeito–objeto tem grande importância, e uma grande aproximação
dos conceitos neoconcretos.
Em uma análise geral das características do trabalho de Marepe, a relação
com a sua cidade é quase uma constante, remetendo-nos a hábitos e tradições de
qualquer cidade do Recôncavo baiano. Seu olhar diferenciado para o universo dos
trabalhadores informais também é freqüente. Em alguns de seus trabalhos, que
exigem a participação do espectador, é muito clara a presença da consciência de
seu universo social, principalmente em “Deixe Aqui o Seu Piolho” (1995) e
“Palmeira Doce” (2001).
Aparentemente, em um grau menos evidente de seu cotidiano, “Cabeça
Acústica” (1995) (Figura 50) traz consigo uma relação forte com as experiências
39 A casa a que o artista refere-se é a república em que morava. 40 Centro Cultural Galeano D’Avelírio. 41 Nelson Magalhães Filho, artista plástico que nasceu e vive em Cruz das Almas.
106
de Lygia Clark, sobretudo em “Nostalgia do corpo - Máscaras Abismo” (1965-
1988) (Figura 49).
Esta proposta de
Marepe possui semelhança
com a série “Máscaras” de
Lygia Clark. Guy Brett, ao
falar do trabalho de Clark, é
como se ilustrasse esta
analogia. Brett fala do
trabalho de Lygia Clark, as
“Máscaras”, através da
possibilidade do outro poder
ver algo naquele que “usa” o
trabalho. “Embora para
aquele que põe uma das
máscaras, a experiência seja
interna, elas ainda tem um
aspecto externo para quem
olha” (in CENTRO
CULTURAL HÉLIO
OITICICA, 2001, p.36).
Nestes trabalhos, bem como
em muitos outros da artista, “o corpo é o motor da obra” em seu estado pleno.
Brett fala mais especificamente: “com ‘Máscaras Abismo’, não há aspecto externo
exceto uma vaga monstruosidade. Como o nome sugere, elas são radicalmente
internas” (ibidem).
Já do ponto de vista da construção, “Cabeça Acústica” assemelha-se aos
“Bichos”, material metálico, dobradiças, formas simples. Traz à tona o
questionamento da relação do corpo na obra de arte, sua importância para a arte
contemporânea. Merleau-Ponty fala do papel do corpo para a percepção do
mundo: “Meu corpo é a textura comum de todos os objetos, e é, pelo menos em
Figura 49
107
relação ao mundo percebido, o instrumento geral de minha ‘compreensão’” (1999,
p.315). No evento Arte Construtora (1996), Marepe propõe uma música para ser
cantada com a “Cabeça Acústica”, desdobrando na performance “A ilha, o
castelinho de pólvora”: Todo mudo pode ser uma ilha Todo mundo pode ser um castelinho de pólvora Todo mundo pode ser Uma ilha com um castelinho de pólvora
“Lasque um nome aí” (2001) é outro trabalho que tem o corpo no papel de
participador, sendo sua existência ligada diretamente a esta participação (Figura
51). No item três do “Esquema Geral da Nova Objetividade”, Hélio Oiticica trata da
participação, definindo duas maneiras preponderantes, “uma é a que envolve
‘manipulação’ ou ‘participação sensorial-corporal’, a outra que envolve uma
participação ‘semântica’” (Oiticica, 1998, p.115). Gritar uma palavra, ao mesmo
tempo em que rasga-se um pedaço de pano com vigor, faz com que a participação
Figura 50
108
do corpo e a participação semântica exerça uma força única no indivíduo que
promove a ação.
A participação do espectador no caso de “Lasque um Nome aí” pode atingir
o outro pela surpresa, utilizando-se da segunda pessoa para viabilizar a totalidade
do projeto. Marepe, centrado em sua vida cotidiana, inscreveu em pedaços de
pano palavras como “graxeira”, “estopô”, “nigrinha”, “porra”, etc., numa alusão ao
palavreado popular de sua região. Propõe ao espectador que rasgue um pano e
esbraveje a palavra inscrita nele, remetendo-se a uma expressão muito usual
naquela região, onde “lascar um nome” significa falar palavrão. No catálogo do
Panorama da Arte Brasileira de 2001, Nicolau Sevcenko descreve o processo do
trabalho:
Marepe montou uma barraquinha de feira na qual o que se oferece ao público é a possibilidade de uma descarga emocional, uma síncope catártica como um espirro, em que as criaturas têm a feliz oportunidade de escolher e descarregar um palavrão, a plenos pulmões, enquanto dilaceram com as mãos um pedaço de tecido, completando o prazer dessa somatização dos impulsos indignados (SEVCENKO, 2001, p.128).
Figura 51
109
De fato, a palavra “estopô”42 poderia causar uma experiência
desconcertante a quem não conhecesse as diferenças lingüísticas coloquiais do
Recôncavo. E mesmo assim, para uma pessoa que tenha vivido em Salvador ou
Santo Antonio de Jesus, escutar alguém soltar em altos berros esta palavra, seria
uma experiência de ampla possibilidades.
No ponto central de uma aproximação das características contemporâneas
e da “tradição” brasileira, a participação do corpo é um aspecto importante. A
palavra toma uma conotação primordial no trabalho, “a palavra lida não é uma
estrutura métrica em um segmento de espaço visual, ela é a apresentação de um
comportamento e de um movimento lingüístico em sua plenitude dinâmica”, diz
Bachelard (1999, p.316).
O corpo do expectador toma uma posição de co-autor, pois sem sua
intervenção o trabalho não acontece, como os Parangolés nas exposições em que
eles estiveram pendurados e isolados do contato do público. Paola Jacques, em
seu livro “Estética da ginga”, narra o acontecido na Documenta de Kassel de 1997,
sob curadoria de Catherine David:
As capas, tendas e bandeiras, imóveis, vazias, penduradas num cabide, são literalmente despidas de sua característica de Parangolé. (...) em Kassel, não foram os passistas os impedidos de entrar no museu43: a própria obra é que foi esvaziada de seu sentido. Não podia mais ser experimentada pelo público, que voltara, assim, a seu status original de simples espectador, sem direito a qualquer participação (2001, p.37-38).
Para artistas como Laura Lima, Jarbas Lopes, Cabelo, Ieda Oliveira,
Marepe, etc., o corpo pode tomar um sentido de objeto no mundo, sensível a este
mundo. Ponty coloca:
Em suma, meu corpo não é apenas um objeto entre todos os outros objetos, um complexo de qualidades entre outros, ele é um objeto sensível a todos os outros, que ressoa para todos os sons, vibra para
42 A palavra “estopô” é utilizada popularmente significando coisa do mal, diabo, nome feio para chamar coisa/pessoa ruim, ou de aparência tétrica, com expressões como “virado no estopô”. 43 A autora refere-se ao que aconteceu em 1965, na mostra Opinião 65, no MAM do Rio de Janeiro, quando Hélio Oiticica chegou com amigos da Escola de Samba Mangueira, vestidos com Parangolés, e foram impedidos de entrar no museu.
110
todas as cores, e que fornece às palavras a sua significação primordial através da maneira pela qual ele as acolhe (1999, p, 317).
A palavra tem um tom confessional, ela faz
relação com o universo simbólico do artista. E
talvez por sua crueza, a crueza do próprio universo
do nordestino seja tão adequada em determinadas
circunstâncias, como nos trabalhos: “Tudo no
Mesmo Lugar pelo Menor Preço” (2002), exposto na
25ª Bienal de São Paulo, e “Lasque um nome aí”
(2001), como já dito, participou da mostra do
Panorama da Arte Brasileira de 2001. Mas em um
trabalho mais antigo do artista já percebe-se a
relação com a incorporação da linguagem escrita,
sem uma alusão leviana à plasticidade, mas a seu
significado intrínseco, como nas Trouxas (1995), e
“A bica” (1999) (Figura 52), entre alguns outros.
Mas em “Deixe aqui seu Piolho”, através da palavra, ele argumenta com o
espectador a possibilidade da tomada de posição, um embate com uma condição
que poderia incomodar esse indivíduo. O próprio artista relata:
Era uma espécie de urna onde se vota. A idéia era você devolver o piolho, você pôr na urna seu voto, seu piolho. Eu estava muito pesado na época, eu achei pesado este trabalho, ainda acho. Eu me coloco também na figura de um piolho em lençóis, desenhado de carvão, e coloco meu rosto em xérox, como se fosse um grande piolho. Já era uma situação em que eu queria que as pessoas se chocassem com a própria realidade delas, no final eu também queria descobrir, queria assumir minha realidade. É muito comum na rua do interior ver, na porta das casas alguém catando piolho de alguém. E o que é que tem de beleza nisso, o que é que tem de tristeza nisso também (2003, s/p).
Esses posicionamentos nos trabalhos de Marepe são parte de um processo
de criação que não está ligado à técnica. Sua prática consiste em uma análise do
mundo, de seu processo de vida, da observação e da captura de alguns
Figura 52
111
acontecimentos da vida cotidiana dos habitantes de determinada região,
sobretudo do Recôncavo Baiano. Sua relação com o corpo assemelha-se ao
processo de imersão na vida de determinada comunidade, em muitos casos, de
Santo Antonio de Jesus e dos ambulantes de Salvador. Lisette Lagnado comenta
uma dessas imersões de Marepe em um determinado cotidiano. “Seu olhar
engloba origens e evoluções dos materiais físicos, formas ‘menores’ de
subsistência, truques da economia alternativa” (GALERIA LUIZA STRINA, 2002).
A captura de imagens/objetos de Marepe dá-se por uma entrega ao fluxo do
mundo, a sua velocidade específica. Merleau-Ponty fala sobre a percepção do
objeto no mundo:
Apoiada na unidade pré-lógica do esquema corporal, a síntese perspectiva não possui o segredo do objeto, assim como o do corpo próprio, e é por isso que o objeto percebido se oferece sempre como transcendente, é por isso que a síntese parece fazer-se no próprio objeto, no mundo, e não neste ponto metafísico que é o sujeito pensante, é nisso que a síntese perceptiva se distingue da síntese intelectual (1999, p.312-313).
Essa experiência imersiva de Marepe será ponto de apoio para análise de
outra característica do Esquema Geral da Nova Objetividade: a tomada de posição
em relação ao objeto e a negação do quadro de cavalete. Na observação da vida
dos moradores de sua cidade, O artista encontra imagens poéticas de um
universo específico. Diferenciado do conceito de ready made, os objetos de
Marepe são como ele mesmo diz, “nécessaire”, não trata da aquisição de resíduos
no sentido do exótico.
A absorção do mundo, para Marepe, não está na captura de objetos
industrializados, é fruto de sua relação com o universo, num vai e vem de trocas
simbólicas. Lagnado fala da sensibilidade de Marepe à adversidade do mundo
envolta, do improviso popular da riqueza da “gambiarra” diversificada pelo
comércio informal:
É uma homenagem contínua à capacidade de improviso, a imaginação criativa dos comerciantes das ruas de Salvador. Minha pergunta é: como ser colportor dessa sensibilidade sem cair no exotismo do turismo cultural
112
que vem fascinando uma certa má consciência? Gostaria que essa preocupação servisse para separar o joio num saco dentro do qual são aceitas ações oportunistas que estetizam o regionalismo. “Da adversidade vivemos!” significa também “luxo para todos”. Artistas fazendo exercícios de deambulação urbana estão na moda. Nostalgia do Situacionismo? Se Oiticica não tivesse andando tanto pelas ruas do Rio de Janeiro, não teríamos toda a conceituação que derivou de Delirium ambulatoriun, nem o que veio antes de Tropicália. Trata-se de dar continuidade à crise da representação (GALERIA LUIZA STRINA, 2002).
Marepe, no II Salão de Arte da Bahia, participou com três objetos,
possuindo os seguintes títulos: A Trouxa 03 (Figura 53), A Trouxa 04, A Trouxa
05 (1995). Lisette Lagnado faz relação com “um tipo de Merzbau, tropical e
transportável”, ainda diz, “É afeto em estado bruto”. E observa a memória que o
artista tem das simplicidades do cotidiano: “Há em todo o seu trabalho um
‘prestar atenção’ aos encontros, salvaguarda de uma memória, sobretudo do
‘feito a mão’ (servir cafezinho ou mingau de milho)” (ibidem).
A série de Trouxas, é composta por objetos tirados de imagens do
cotidiano, de um espaço onde tudo que circunda o objeto é um referencial dele
próprio. O artista vê o objeto, valoriza seu contexto, adormece-o e descobre nele
um impulso de captura. Percebe seus aspectos físicos, seu material e os lugares
onde podem ser adquiridas as matérias-primas. E mesmo transferindo a trouxa
de seu espaço original, ela não perde as conexões com seu contexto, com a
roupa suja com, a roupa passada, ou com o bóia fria - o homem ou a mulher que
carrega a trouxa na cabeça, ou o trabalhador que leva seu prato de comida para
o trabalho (Figura 54).
Em relação ao mundo percebido e ao espaço e seu potencial em conexões,
Merleau-Ponty escreve:
O espaço não é o ambiente (real ou lógico) em que as coisas se
dispõem, mas o meio pelo qual a posição das coisas se torna possível.
Quer dizer, em lugar de imaginá-lo como uma espécie de éter no qual
todas as coisas mergulham, ou de concebê-lo abstratamente com um
caráter que lhes seja comum, devemos pensá-lo como a potência
universal de suas conexões (1999, p.328).
113
Figura 53
Figura 54
114
Essa busca de um determinado objeto e de suas conexões, acarretaram em
um enorme número de trabalhos feitos para espaços expositivos. São claramente
relacionáveis com a “negação do quadro de cavalete”, e mais precisamente com
a aproximação ao objeto. A maneira que Merleau-Ponty descreve esta procura
do mundo, na tentativa de senti-lo, ilustra esta postura diante do objeto e do
mundo, característico na arte contemporânea brasileira.
Eu sentirei na exata medida em que coincido com o sentido, em que ele deixa de estar situado no mundo objetivo e em que não me significa nada. O que é admitir que deveríamos procurar a sensação aquém de qualquer conteúdo qualificado, já que o vermelho e o verde, para se distinguirem um do outro como duas cores, precisam estar diante de mim, mesmo sem localização precisa, e deixam, portanto de ser eu
mesmo. A sensação pura será a experiência de um “choque” indiferenciado, instantâneo e pontual (ibidem, p.23).
Convivendo com o mundo, Marepe
está usando-o como laboratório, como se o
artista, após a reprodutibilidade técnica na
arte, fosse um arqueólogo de técnicas
manuais, informais. Em alguma cidade do
interior do Nordeste brasileiro, alguém a
usa: um pacotezinho com dois pratos
contendo o almoço de um trabalhador. São
imagens poéticas que dignificam o
trabalhador menos privilegiado. Na
produção de Marepe não há folclorização
do pobre. Seu posicionamento em relação
às imagens do trabalhador do Terceiro
Mundo, neste caso, os trabalhadores
informais de uma determinada região,
ganha um sentido “nobre”, relacionado à Figura 55
115
importância e à dignidade. Metaforicamente, seus trabalhos poderiam ser
associados à maneira que o pintor barroco, Diego Velásquez, representava os
bufões e pessoas simples de seu tempo (Figura 55).
Assim, Marepe recolhe estas imagens através de uma procura que segue o
rastro do homem popular, percorrendo seu caminho, com o objetivo de aprender
com ele os caminhos para a feitura de seu meio de trabalho, ou o seu facilitador.
Marepe fala de suas influências artísticas, de Marcel Duchamp e de Lygia Clark, e
coloca, junto a estes “bens institucionalizados”, os trabalhadores que servem de
foco para seus trabalhos derivados do ambiente urbano, relacionado ao mercado
informal:
(...) mas também existem umas figuras que eu passei muito tempo observando, que são os vendedores ambulantes, os objetos, os utensílios do trabalhado deles. Isso faz parte do meu trabalho, que eu também devo a eles (MAREPE, 2002, s/p).
Essas relações com os ambulantes são bastante contundentes nas bancas
de vendedores (Figura 56) e estão implícitas nas trouxas. O depoimento de Lisette
Lagnado sobre as bancas aponta uma vertente em relação ao processo criativo de
Marepe:
Semana passada, Laura me levou à Feira de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, e foi uma chegada na terra. Continuo chegando na “ciência do concreto” para diminuir minha distância com tuas bancas de camelô, exposta na mostra do Antarctica Artes com a Folha, em 1996. As bases da discussão acerca do transporte de valores já estavam lançadas, naquela época por intermédio do comercio informal, na imagem dos ambulantes de rua. De que modo as barracas dos ambulantes passam a funcionar dentro de um pavilhão de arte, do circuito institucional? Seu procedimento não ficou devidamente explicitado, gerando uma série de ambigüidades. Mais uma vez, “apropriação” seria um conceito inadequado; proponho “edificar”. Você fotografa a cena, seus elementos constitutivos, observa assiduamente detalhes, reinventa o método do outro refazendo aquilo que foi feito sob necessidade. Atua como um pesquisador que vasculha céus a fim de entender o sentido das coisas, onde comprar determinada madeira, onde encontrar os rudimentos que faltam. Enfim trata-se de andar na pegada do homem da rua, rastrear o caminho percorrido por um trabalhador até erguer sua própria barraca, viver um conjunto de gestos, a casa, as ações e o corpo do outro (GALERIA LUISA STRINA, 2002).
116
As bancas não operam no mesmo sentido que os ready mades (Figura 57),
conclui Marepe. Ele fala desta diferença apontando que Marcel Duchamp, ao
pegar um objeto industrializado,
está escolhendo algo que
passou pela mão do design, de
um ser humano, mas que depois
a feitura deixa de ser do humano
e passa a ser da máquina,
sendo um objeto industrial, de
produção em série. O artista,
percebendo a distinção de sua
produção, revê o procedimento
de Duchamp e retraça um outro
conceito, em homenagem ao
artista francês, o de
“nécessaire”. O artista explica,
“eu tirei a palavra ready made e
coloquei nécessaire. Quis fazer
uma homenagem, porque
Duchamp era francês”
(MAREPE, 2002, s/p). E
recoloca um outro objetivo com o deslocamento do
nome, pois, acaba por definir um outro conceito que
estaria mais “ligado à necessidade, do
necessário, do necessitado, então a presença da
mão humana, a presença do homem ali. O objeto
em si revela muito do que está em volta dele”,
reflete o artista (MAREPE, 2002, s/p). Essas
bancas que Marepe edifica para o meio artístico
refletem, entre tantas outras, as soluções que o
trabalhador informal cria para melhor
Figura 56
Figura 57
117
comercializar seus produtos. Priscila Lolata fala, no artigo “Apropriação: do ready
made de Duchamp ao nécessaire de Marepe”, sobre a dinâmica da indústria
capitalista e seus agregados (moda, publicidade etc), ou seja, às necessidades de
consumo do ser humano e as necessidades para a sobrevivência, que se
aproveita das necessidades anterior:
A necessidade incomensurável de criação das necessidades através da fabricação de produtos e objetos em escala muito maior às que realmente necessitamos. Ao mesmo tempo, estamos diante da necessidade de viver, comer, divertir-se, o que leva um número enorme de “cidadãos” a criar situações para reverter outras situações desfavoráveis: a do desemprego e da falta de dinheiro e oportunidades (in CADERNOS MAV-EBA-UFBA, 2004, p.63).
Essa análise revela um fator importante para a compreensão do trabalho de
Marepe: a relação com o mundo a ser percebido. “Mas o objeto visto é feito de
fragmentos de matéria e os pontos do espaço são exteriores uns aos outros. Um
dado perceptivo isolado é inconcebível, se ao menos fazemos a experiência
mental de percebê-lo”, coloca Merleau-Ponty (1999, p.25).
A escolha do material não se dá por questões meramente estéticas. A
essência dessas barracas, ainda que não
sejam as barracas que estavam na rua, o
conteúdo impregnado nelas, revela o seu
contexto, os “fantasmas” da rua também
vão para o espaço institucional através do
ato de Marepe, da ação, desde sua
observação do mundo até a escolha do
objeto. E é nessa absorção do contexto em
que se encontra o objeto escolhido que
reside o conteúdo teórico dos trabalhos. É
difícil ver uma banca sem remetê-la ao seu
local tradicional, à condição de seu dono e,
assim, sucessivamente.
Figura 58
118
(...) por que olhar o objeto é entranhar-se nele, e porque os objetos formam um sistema em que um não pode se mostrar sem esconder outros. Mais precisamente, o horizonte interior de um objeto não pode se tornar objeto sem que os objetos circundantes se tornem horizonte (...) (ibidem, p.104).
O material precário44 está muito presente nessas bancas. A relação do
artista com a desmaterialização do objeto está ligada a esta precariedade, e aos
seus materiais. Uma de suas bancas, a “Banca de Bijuterias” (1996-1998) (Figura
58), participou, em 1997, do Salão do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
e, em 2002, foi exposta na Galeria ACBEU de Salvador, quando se notava a falta
de algumas peças que compunham a banca, o trabalho de arte. O artista relata
que as pessoas pegavam escondidas as bijuterias. Furto? A despreocupação do
artista com o fato remete ao texto “Posição e programa”, de Hélio Oiticica, quando
ele trata do “Programa Ambiental”. Guardando as devidas situações e contextos,
há uma relação entre a Banca de Bijuterias (1996-1998) de Marepe e determinado
“Bólide” de Oiticica, quando o segundo fala da experiência do trabalho ter partes
furtadas, cujo elemento é consumido:
Bólide composto de uma cesta cheia de ovos – estes são perecíveis (ovos reais) logo têm de ser consumidos para a substituição – é, digo eu, segundo Mário Pedrosa, um escárnio ao chamado comércio de arte criado pelas galerias: aqui, o elemento que compõe a obra é vendido a preço de custo, preço acessível a qualquer pessoa (há ainda a simpática possibilidade de se poder roubar um ou mais ovos às escondidas, o que torna maior o escárnio) (in CATÁLOGO HELIO OITICICA, 1998, p.104).
A dicotomia do objeto de arte e de seu valor de origem, está presente no
trabalho de Marepe. A participação do expectador, no caso da “Banca de
Bijuterias”, acontece também via contravenção lícita, já que o artista não vê esse
“furto” de forma negativa. Uma ação que brinca com a aura da “obra de arte” no
cubo branco. Essa banca ainda é toda forrada de veludo vermelho, uma provável
forma de valorizar as peças douradas imitando jóias de ouro, e gera ainda uma
relação barroca, pela riqueza dos detalhes e pela relação do dourado, comum nas
44 Precário adj.1. Que não é definitivo; temporário; provisório. 2. Escasso; falto; insuficiente. 3. Débil; frágil. 4. Incerto; inseguro. (LUFT, 2001, p. 533)
119
inúmeras igrejas barrocas de Salvador, e o vermelho, sempre presente nos
ornamentos e adereços religiosos desse estilo.
“Os filtros” (1999) (Figura 60), trabalho apresentado no Itaú Cultural, segue
a linha do ”nécessaire”. Hoje ainda é comum encontrar entre a população
brasileira, das grandes cidades aos interiores mais remotos, a utilização de filtro
doméstico para água. Este, na maioria das vezes, de barro (Figura 59), sendo
uma das poucas formas possíveis de tornar a água que se tem acesso, própria
para o consumo, em água de beber, principalmente.
Ao querer filtrar, purificar seu próprio momento de vida, Marepe propõe
filtros tradicionais com um diferencial, no geral, mais partes que filtram a água. A
etapa de filtragem, duplicada, até mesmo triplicada, não destrói a função inicial do
objeto, ao contrário, reforça sua função: a transformação de uma água imprópria
para beber em água potável.
Figura 59
120
O título da instalação, em momento algum possui conotação metafórica,
pois é o nome/função que os objetos realmente possuem, “filtros”. É o nome
original do objeto, remetendo à sua função, sem meandros, só reforçando a
estrutura física para o processo de sua função. Lisette Lagnado fala de seu
encanto com a proposta de Marepe, através de sua curadoria:
(...) acho que em 1999, ele mandou outro projeto maravilhoso para mim, o dos "Filtros". Dalí para frente, para mim, ele se tornou um grande amigo, colaborador e criador. Aquela idéia de filtrar a água por várias vezes, em vários filtros superpostos, era uma maravilha. Um Brancusi popular, uma alegoria à vida e ao sertão, tudo sintetizado com poucos elementos. Considero este trabalho um dos melhores que ele já tenha feito. E quando um artista cria num contexto específico para uma "encomenda" de um curador, o curador se sente "possuir" aquela obra. Os "Filtros" foram gerados a partir de um pedido específico meu: "Marepe, a exposição vai tratar do cotidiano e do objeto". E ele me mandou um desenho de uma beleza pura (2004, sp).
Figura 60
121
Mesmo sendo
apresentados objetos
na sua essência,
filtros, inclusive com
copos para que um
expectador curioso
ou sedento pudesse
beber água filtrada,
por estar em um
contexto estranho à
sua origem, geram
entendimentos
relacionados à água
em diversas situações. À sua poluição por indústrias ou esgotos, nas grandes
cidades, à sua falta no sertão nordestino, justificado oficialmente devido à
escassez de chuva etc.. Mas a arte contemporânea aceita isso, o contexto em que
o trabalho está e o repertório pessoal de cada indivíduo permite uma interpretação
diferenciada. Para Marepe, uma referência de
sua casa, da vida doméstica, refletindo o
momento vivido por ele.
Com a característica de observar, Marepe
criou um trabalho com desdobramentos que
surgiram da observação do artista em direção
aos trabalhadores informais, e que também
coloca o objeto de arte tradicional em uma
situação de análise em relação a sua validade
como bem material: é a série de pinturas de
propaganda. Depois das experiências com os
vendedores ambulantes, Marepe enfatizou seu
interesse no trabalho informal dos pintores de
Figura 61
Figura 62
122
propagandas, ainda muito comum nas cidades onde a plotagem não chegou, ou
pelo menos não é acessível à maior parte dos anunciantes. A pintura de
propaganda nesses locais é uma profissão informal, mas a relação com a arte é
significativa, já que estes trabalhadores são considerados artistas e seus serviços
são contratados como um trabalho de arte, por parte dos anunciantes (Figura 61).
Em uma lógica que lembra os procedimentos da Arte Pop, (Figura 62) já
que as pinturas que Marepe leva para as instituições de arte são as mesmas que
os pintores letristas fazem para propaganda de comércios e produtos, valorizando
a publicidade. Entretanto, sua intenção não é o esgotamento de determinada
imagem através de sua exaustão, uma das características da Arte Pop. No seu
processo de criação, Marepe utiliza a mesma lógica das bancas de camelôs,
observa e procura seu realizador. Como no caso dos pintores o produto é
diferente, não tem a estrutura para o comércio, o artista não verifica os materiais
para a “edificação”, seu foco está no trabalho de pessoas que ganham a vida
fazendo pinturas comerciais, no sentido genuíno da expressão.
Para a exposição “Posições.01” (2002), Marepe levou um pintor profissional
para fazer uma de suas pinturas de propaganda (Figura 63) na parede da galeria
do Goethe Institut Salvador. Não é
instrumentalismo, é uma ação que
propõe dignificar o pintor e seu
trabalho. Trata-se de uma
observação do cotidiano e sua
decodificação para a estrutura da
arte. O então diretor do Goethe
Institut Salvador fala dessa
transferência, de pinturas
propagandísticas dos muros
urbanos para a parede de uma
galeria, no catálogo da exposição:
(...) ele sensibiliza tanto a nossa percepção para o cotidiano e questiona seu próprio papel de artista plástico. Marepe cria uma escultura social, na
Figura 63
123
qual ele próprio não figura no centro como criador, mas na qual a concepção intelectual representa o trabalho próprio do artista (GOETHE INSTITUT SALVADOR, 2002).
Observando as pinturas nos muros de Santo Antonio de Jesus, Marepe
gerou uma relação com aqueles artistas, como ele mesmo narra: “eu queria ver
todos os artistas da cidade através do muro pintado, então eu ia passando pela
rua, ficava olhando as pinturas, via o nome deles (...)” (MAREPE, 2003, s/p). E
como além do nome há sempre o telefone do pintor, em um determinado dia
Marepe ligou para um deles, e ficaram amigos. Sobre esse universo das relações
da arte com a rua e com o trabalhador informal, o artista fala:
Minhas investigações desenvolvidas no ângulo do universo popular e suas relações com as questões do trabalho e da sobrevivência despertam em mim um olhar cada vez mais atento para o que está por trás das coisas aparentemente invisíveis (GOETHE INSTITUT SALVADOR, 2002).
Esse despertar desenvolveu uma relação latente na produção artística dos
anos 1960 e 1970 e, muito absorvida pela geração de 1990. Trata-se de uma
tentativa de abarcar o mundo além de suas meras impressões. Como já teorizava
Merleau-Ponty:
Quando vejo um objeto, sinto sempre que ainda existe ser para além daquilo que atualmente vejo, não apenas ser visível, mas ainda ser tangível ou apreensível pela audição, e não apenas ser sensível, mas ainda uma profundidade do objeto que nenhuma antecipação sensorial esgotará (1999, p.291-292).
Dentro desta observação dos pintores de rua, surgiu um outro trabalho que
tomou uma projeção em larga escala, por ter sido proposto para a 25ª Bienal de
São Paulo. Trata-se de “Tudo no Mesmo Lugar pelo Menor Preço” (2002), um
muro pesando 3,5 toneladas, levado de Santo Antonio de Jesus para a
megalópole paulistana (Figura 64).
124
Pelo grau de estranhamento da proposta, este trabalho gerou a
Figura 64
125
construção de uma “situação”45 em seu processo de execução. A idéia
surge da relação que Marepe desenvolveu com as pinturas de propaganda
de Santo Antonio de Jesus, que despertaram um desdobramento que foi
inserido na sua produção artística. Através da forma como ele narra seu
despertar para essas pinturas, é possível perceber a sensível relação com o
mundo ao seu redor e como sua percepção questiona o contraste em que
uma pintura da fachada de uma escola infantil está inserida:
Esse (se referindo a um pintor) tinha feito um painel bem grandão. Era Branca de Neve e os Sete Anões, achei aquilo tão contrastante com o geral das coisas, era em uma escola. Aí, de repente, surgiram dois trabalhos, de querer tirar um muro e levá-lo para uma exposição, e outro foi o trabalho do Jurandir Pintor46 (MAREPE, p. 04).
A 25ª Bienal Internacional de São Paulo, que aconteceu entre os meses de
março e junho de 2002, propôs como tema, “Iconografias metropolitanas”, a
tentativa de projetar produção artística com experiência urbana. Tema
contraditório à Bienal, independente das propostas expostas, pois é um espaço
institucional, fechado e conseqüentemente limitado em relação às experiências
urbanas. Porém, o trabalho de Marepe além de deslocar para o espaço fechado
da 25ª Bienal uma construção de alvenaria, muito comum nos centros urbanos,
um muro, possui uma comunicação excessiva em muitos casos entre as
iconografias urbanas, como a publicidade. No contexto em que este muro é
introduzido, o eslogan da Comercial São Luis passa a ter uma simbologia “Tudo
no mesmo lugar pelo menor preço”, uma relação com instituições de arte, que em
45 Situação: “A construção concreta de ambiências momentâneas da vida e sua transformação em uma qualidade passional superior” e a alteração de dois importantes componentes, “o cenário material da vida; e os comportamentos que ele provoca e que o alteram”, segundo Guy-Ernest Debord. (apud JACQUES, 2003, p. 54) 46 Pintura publicitária executada pelo profissional Jurandir Pintor, em uma parede da galeria do Institut Goethe de Salvador, Bahia, sob o título “Jurandir Pintor 9965.8770”. Exposição coletiva Posições.01, em 2002.
126
alguns casos deturpam ou limitam47 o trabalho de um artista, e, em contrapartida,
o artista aproveita seus espaços para questioná-la.
Certas instituições de arte não estão preparadas para receber determinadas informações, mas em geral, eu me aproveito do fato de estar dentro de uma instituição. Ao deslocar a frase “Tudo no mesmo lugar pelo menor preço” pra Bienal de São Paulo, claro que eu pensei, que eu sabia onde eu estava, e sabia o que esta frase representava (MAREPE, 2003, s/p).
Extrapolando as publicações especializadas e levantando em publicações
generalistas, o polêmico meio mercadológico da arte. A revista Isto É publicou
sobre este trabalho:
Marepe trouxe um muro real, pesando 3,5 toneladas, com uma propaganda feita por um desses pintores anônimos do interior. O slogan “Tudo no mesmo lugar com o menor preço” alfineta com fina ironia a lógica do mercado (ISTOÉ, 2002, p.89).
Retirado da cidade onde o artista nasceu, este muro tem pintado uma
propaganda de uma das mais importantes casas comerciais do Recôncavo48.
47 Em 2001, o Museu de Arte Moderna da Bahia recebeu a mostra itinerante “A metáfora do fluxo” do artista plástico Artur Barrio (passando pelo Paço das Artes, São Paulo e pelo MAM do Rio de Janeiro, anteriormente). Dentro da proposta do artista, havia um grande espaço, uma instalação, onde na parede preta havia inscrições a mão com giz branco, e o chão era forrado de pó de café, com vários materiais e objetos espalhados por toda a dimensão da instalação, proposto pelo artista serem observados pelo público ao momento em que transitavam sobre o café. Porém, em Salvador ocorreu o seguinte fato, a grande instalação aconteceu em sua plenitude somente na abertura da exposição, e no dia seguinte. Após o 3º dia, quando o artista não mais estava em Salvador, a instalação foi interditada. Após muito questionamento, os monitores informaram que o público não podia pisar sobre o café para que não sujasse o restante do espaço onde estava exposto fotos, cadernos-livros e livros de artista. No catálogo, a curadora da Mostra, Vitoria Daniela Bousso escreve: “Não pretendemos organizar uma exposição retrospectiva de Barrio, mas sim uma antologia conjugada a uma grande instalação atual, onde o artista pudesse se expressar livremente, com o mínimo possível de limites” (Artur Barrio-catálogo, 2001, p. 08). Com a interdição ocorrida, a autora desta dissertação, procurou o artista, e por telefone, o mesmo falou que não sabia da modificação e que ela não era autorizada, mas muito tranqüilo, disse que instituição é assim mesmo. O diretor do MAM-BA, Heitor Reis não foi encontrado. O fato é que a exposição permaneceu até o fim com a instalação, que solicitava a interação do público, sem acesso, alterando na plenitude a proposta do artista respaldada pela curadora.
127
Do ponto de vista formal, a relação deste trabalho com “Jurandir Pintor
9965-8770” (2002) é muito grande. São pinturas populares, mas ao contrário da
opinião do jornalista da revista Isto É, não são de anônimos, pelo menos, não para
sua comunidade, já que seus nomes estão em suas pinturas espalhadas por toda
a cidade. Deixam seus telefones e assinam seus trabalhos como uma forma de
autopromoção, de divulgação da autoria daquele trabalho.
Com relação ao tema daquela 25ª Bienal de São Paulo, este trabalho tem
um nexo importante: “Iconografias metropolitanas” não seriam imagens das
cidades? Talvez o mote da mencionada Bienal refira-se à produção de arte
contemporânea, hoje produzida nos quatro cantos do mundo. Mas o que significa
Santo Antonio de Jesus, no interior da Bahia, para este planeta?
Na carta de Lisette Lagnado a Marepe, publicada no primeiro catálogo do
artista, há um trecho onde são abordados questões relacionadas aos prováveis
códigos subliminares, contidos na singela propaganda em Santo Antonio de
Jesus, e seus possíveis significados no local para onde foi transferida com seu
suporte original, o muro.
Já formalmente, parece-me uma atitude meta-pop, veicular a propaganda de uma firma poderosa, a Comercial São Luis, fazendo o comércio do comércio. São de uma beleza, essas letras garrafais azuis sobre fundo amarelo, mas o que significa levar o conteúdo do logotipo “tudo no mesmo lugar pelo menor preço” para o sistema da mega mostra de arte? Seria uma dupla singeleza acreditar em lugar fixo e em preço menor! Estamos em outro território lingüístico quando se fala em apropriação e deslocamento, é a rotação dos signos duchampianos, tudo em outro lugar pelo maior preço. Ora, esse tipo de interpretação não me convence a seu respeito. Há, de sua parte, uma sobra de escrúpulo pelas convenções sociais, que se traduz no cuidado para não modificar o destino dos habitantes da cidade: após a comoção coletiva provocada pela retirada do anúncio publicitário, outro foi providenciado no lugar como se fora uma exigência do sagrado. Existe uma moral nesse zelo ou é despreendido de finalidade? Respeitar as especificidades do meio ambiental. Não retirar a não ser substituindo (GALERIA LUISA STRINA, 2002).
48 Depois de Feira de Santana, Santo Antonio de Jesus é o destino mais freqüente dos moradores da região na intenção de fazer compras, sobretudo, para as festividades juninas e festas de fim de ano.
128
Em outra parte da carta, Lagnado ressalta a relação de apego ao território.
“O transporte de um recorte extraído de um muro, pesando quase três toneladas e
meio, da sua cidade para a Bienal de São Paulo, impõe de modo literal, a medida
da valência do desenvolvimento da tua região” (ibidem). Que neste caso pode ser
relacionado ao seu universo familiar. Marepe possui relação pessoal com a
Comercial São Luis. Seu pai trabalhou lá desde os dezessete anos, e seu avô foi
um dos funcionários fundadores. Esse valor familiar, o reconhecimento da
importância do comércio para a cidade é narrado por Lisette Lagnado:
O lema escolhido, a atitude geral do trabalho, revelam um vínculo entre consciência e empreendimento sólido. Homenagear o “progresso” de uma cidade demonstra apego ao território. Suas fronteiras vão desde a memória da cidade até a construção de famílias, a Comercial São Luis tendo gerado empregos por várias gerações, única fonte de renda de seu pai – cuja ausência deve ser lembrada. A declaração de permanência do lugar é um compromisso básico para quem conhece a instabilidade de ordem política, social ou econômica. Por isso, sua intervenção pertence a um projeto construtivo (ibidem).
Partindo da relação do trabalhador autônomo de Santo Antonio, “Palmeira
Doce” (2001), possui uma outra característica, a efemeridade. Marepe realizou
este trabalho com a cooperação da comunidade. Ele propõe para seus
“conhecidos” um jogo experimental, imprevisível até mesmo para ele. A proposta
como metáfora é simples: “Palmeira Doce” (2001) (Figura 65): muitos algodões
doces, fixados ao redor do caule de uma Palmeira Imperial no centro de Santo
Antonio de Jesus. Este trabalho, no momento da execução gerou outro, uma
espécie de concretização da imagem de infância, “Doce céu de Santo Antonio”
(2001) (Figura 66). Uma série de fotos49 onde Marepe é focalizado comendo um
tufo de algodão doce que se mistura com as nuvens do céu no momento. A
sensibilidade do instante possibilitou “passar, fenomenologicamente, para imagens
não vividas, para imagens que a vida não prepara e que o poeta cria”
(BACHELARD, 2003, p.14).
49 Fotos tiradas pelo artista multimídia baiano Marcondes Dourado.
129
Faz parte de uma imersão na
vida cotidiana de determinada
maneira, que delimitar a exata
posição que constituiu o trabalho é
quase impossível. Quando começou,
e quando acabou? O ponto final é
sempre mais presumível: o fim dos
algodões doces, devorados pelas
pessoas, ou sua digestão? Justa
referência de nossa tradição
antropofágica. Marepe declara que
gosta dos modernos, termina
despejando um caldeirão de
influências que talvez seja aquilo que
Mário Pedrosa chamou de “Exercício
Experimental de Liberdade” tão
presentes nos trabalhos dos anos de
1970 de Oiticica e grande
característica de Artur Barrio.
Hélio Oiticica fala da proposta de arte coletiva referente à nova objetividade:
Há duas maneiras de propor uma arte coletiva: a 1ª seria a de jogar produções individuais em contacto com o público das ruas (claro que produções que se destinem a tal, e não produções convencionais aplicadas desse modo) – outra a de propor atividades criativas a esse público, na própria criação da obra (in CENTRO DE ARTE HÉLIO OITICICA 1998, p.117).
Essa associação se intensifica quando Marepe nos coloca dados preciosos
do processo de construção dos trabalhos. Falando de como surgem alguns
trabalhos, Marepe cita o dia em que “Palmeira Doce” foi levada a cabo:
Figura 65
130
Tem um trabalho que eu fiz “doce céu de Santo Antonio”, na hora eu estava fazendo algodão doce, umas dez horas da manhã, o pessoal já tinha acabado de fazer. Tinham virado a noite fazendo, de repente eu botei o braço pra cima e vi as nuvens no céu e fiz a relação que o algodão parecia com aquelas nuvens (2003, s/p).
Evocando uma simbologia enorme com o ambiente interagido, o contexto e
a carga conceitual que o trabalho possui, desperta devaneios e questionamentos
aos não iniciados em arte. Na mesma época outros artistas estavam executando
suas propostas na cidade, em um evento organizado por Marepe. “Palmeira Doce”
acontece em um clima de festa, para os artistas e para as pessoas envoltas na
tradição de Cosme e Damião, os santos meninos celebrados com guloseimas
como oferendas. Uma fusão de arte e vida que retoma uma proposta de
integração das coisas, dos conhecimentos, das riquezas, sejam quais forem suas
naturezas.
Em carta à Lisette Lagnado, Marepe demonstra suas preocupações com
“contradições sociais, situações subalternas, e subumanas das minorias, o
subdesenvolvimento” (apud LAGNADO in GALERIA LUISA STRINA, 2002), traços
evidentes em trabalhos como as trouxas e as bancas, mas em “Palmeira Doce” é
retomada a proposta da arte coletiva de Oiticica, no “Esquema geral da Nova
Objetividade”:
São, porém programas abertos à realização, pois que muitas dessas proposições só aos poucos vão sendo possibilitadas para tal. Houve algo que, a meu ver, determinou de certo modo essa intensificação para a proposição de uma arte coletiva total: a descoberta de manifestações populares organizadas (Escolas de Samba, Ranchos, Frevos, Festas de
Figura 66
131
toda ordem, Futebol, Feiras), e as espontâneas ou os “acasos” (‘arte das ruas’ ou antiarte surgida do acaso) (in CENTRO DE ARTE HELIO OITICICA, 1998, p.117).
Com necessidade de estar próximo de seu objeto de estudo, Marepe
sempre parece permear a atenção para os menos privilegiados e remete-se ao
popular sem uma atenção assistencialista, há uma troca, ou melhor, uma diluição
da arte no cotidiano. Lagnado coloca a referência de Marepe ao “necessário,
palavra que reúne o imprescindível e a futilidade” e continua:
Palmeira doce sintetiza essas questões. Poderia ser chamado de “acontecimento poético-urbano”, expressão de Oiticica. Realizado em Santo Antonio de Jesus, no dia 27 de setembro de 2001, envolveu a população local. O “Tonho do algodão” ganha a vida com o negócio da guloseima colorida. Juntos, fizeram cerca de quatro mil sacos. Quando foram pendurados ao longo do tronco de uma dessas palmeiras imperiais, evocaram, para mim, releituras da natureza-morta por Gabriel Orozco. Em poucos minutos a obra foi assaltada e devorada duas ações muito eloqüentes do cotidiano cultural, urbano e suburbano, brasileiro (GALERIA LUISA STRINA, 2002).
“Palmeira Doce” traz implícito em seus materiais a comunhão entre aquilo
que o trabalho apresenta como proposta, onde o espectador não iniciado, tanto na
cultura artística quanto na acadêmica, pode absorver o trabalho, mas também
possui um significado relacionado aos materiais que fazem este vínculo entre
erudito e popular. O algodão doce, feito a partir do açúcar, principal produto dos
primeiros anos de colonização, sendo a Bahia e o Recôncavo regiões importantes
para esta etapa da história do país, as palmeiras imperiais trazidas de Portugal e
símbolo, como o nome exprime, de um “império” instaurado em uma terra
paradisíaca, dita de “selvagens”. Este trabalho nos faz retomar uma parcela de
nossa história. Lagnado continua após seu questionamento:
(...) precisei confundir conceito com afeto, uso público e uso privado da razão; passar da extração do manganês e da lenha à luz elétrica, da cultura do fumo, café e laranja à plantação das palmeiras imperiais, e destas à linha de trem (ibidem, 2002).
132
Mistura contrastes de poder e
fortuna, com popular e barato, o
trabalho de Marepe convida o
espectador a um retorno às bases
culturais da história brasileira.
O algodão doce, ou melhor,
antigas máquinas de fazer algodão
doce (Figura 67) são materiais de
pesquisa e descobertas de uma
atividade processual realizada pelo
artista, com a convivência de crianças do Projeto Axé50.
Em 1999, o projeto
internacional “Quietude da
Terra”, idealizado pela
curadora France Morin,
aconteceu em Salvador,
tendo o subtítulo “Vida
cotidiana, arte
contemporânea, e Projeto
Axé”. A proposta em
Salvador foi da
convivência, por algumas
semanas, entre artistas
contemporâneos, de
50 O Centro Projeto Axé de Defesa e Proteção à Criança e ao Adolescente, conhecido simplesmente como Projeto Axé, é uma organização privada sem fins lucrativos, localizada em Salvador-BA (2.263 mil hab.) que demonstrou ser possível realizar com sucesso um trabalho de defesa e educação da criança e do adolescente em situação de risco, resgatando sua cidadania e devolvendo-lhes condições dignas de vida. O seu êxito está na forma inovadora de valorizar a auto-estima destas crianças, a partir de sua inclusão no programa (http://ederativo.bndes.gov.br/f_irfiscal_dicas.htm).
Figura 67
Figura 68
133
partes distintas do mundo, e crianças do Projeto Axé. Ao término da proposta, o
resultado do material produzido durante a convivência foi exposto no Museu de
Arte Moderna da Bahia. A curadora descreve o projeto:
A Quietude da Terra é o título de um processo que vem desdobrando-se na forma de uma série de projetos inter-relacionados e paralelos nos quais exploramos esta abordagem a partir de perspectivas diferentes. Cada projeto é estruturado para fornecer um marco para a experiência, mas a estrutura é flexível o suficiente para dobrar-se à medida que os projetos se desenvolvem. Para realizar cada projeto, os artistas trabalham, ou convivem e trabalham por um longo período com a comunidade (1999, p.28).
O programa desenvolvido com as crianças do Projeto Axé é um bom
exemplo sobre o tema da investigação dos objetos no mundo. Está implícito no
projeto de Marepe, não só uma vivência superficial que, em geral, acompanha as
relações entre arte e sociedade, demonstrando técnicas artísticas, mas a
possibilidade de oferecer às crianças, através da vivência (Figura 68), uma
experiência diferenciada, em busca de si e dos outros, na tentativa de mergulho
no cotidiano e em suas belezas intrínsecas.
O artista desenvolveu uma série de atividades lúdico-experimentais num
sistema de trocas entre artista e criança, entre cidade e conceito histórico. O início
das atividades de Marepe concentrou-se na observação, onde proporcionou, via
análise de imagens, um pouco sobre as relações entre arte, vida e a história do
país (Figura 69). Morin narra o processo da construção de Marepe, com as
crianças:
Primeiro Marepe apresentou imagens de seu trabalho às crianças. Em seguida mostrou-lhes imagens do trabalho de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), artista francês que viveu no Brasil de 1816 a 1831. Debret fez uma série de pinturas e gravuras, registrando o cotidiano da vida brasileira, com uma combinação de fidelidade e exotismo. (...) Muitas delas refletem as péssimas condições sociais e econômicas dos afro-brasileiros: homens e mulheres vendem mercadorias nas ruas, cuidam das crianças dos senhores brancos, e são açoitados pelos feitores. Depois de olhar as imagens de seu próprio trabalho, e aquelas do trabalho de Debret, Marepe passeou com as crianças pelos seus bairros e pediu-lhes que retirassem temas do cotidiano, concentrando-se na sua
134
vida das ruas. Desenharam várias cenas das ruas, incluindo pipoqueiros, engraxates, vendedores de cafezinho com seus carrinhos, e capoeiristas, dentre outros. O objetivo desse aspecto de seu projeto era não somente oferecer às crianças uma perspectiva histórica mais profunda de seu cotidiano, mas também ajudá-las a enxergar seu dia a dia através de um outro ponto de vista, dar-lhes o poder de criadores e de donos de seus próprios destinos; proporcionar-lhes a oportunidade de agir como agentes da própria transformação, ao invés de ver como objetos de uma contemplação colonialista (MORIN, 1999, p.146).
Em uma segunda etapa do projeto, o artista propôs a desmontagem e
depois a montagem de duas máquinas antigas de algodão doce. Sua prática
remete a um processo de investigação que as crianças possuem em seu âmago, a
necessidade de descobrir como as coisas são por dentro. Gaston Bachelard narra
essa instigante curiosidade que advém da infância:
Figura 69
135
A partir dessa necessidade de olhar para o interior das coisas, de olhar o que não se vê, o que não se deve ver, formam-se estranhos devaneios tensos, devaneios que formam um vinco entre as sobrancelhas. Já não se trata então de uma curiosidade passiva que aguarda os espetáculos surpreendentes, mas sim de uma curiosidade agressiva, etimologicamente inspetora. É esta a curiosidade da criança que destrói seu brinquedo para ver o que há dentro. (...) Para além do panorama oferecido à visão tranqüila, a vontade de olhar alia-se a uma imaginação inventiva que prevê uma perspectiva do oculto, uma perspectiva das trevas interiores da matéria. É essa vontade de ver no interior das coisas que confere tantos valores às imagens materiais da substância (1990, p.07-08).
A agressividade do
cotidiano das crianças, tanto
do ponto de vista real, da
violência das ruas, quanto
da violência social, implícita
na má distribuição de renda
e de bens primordiais como
escola, assistência à saúde
e moradia, foi transformada,
simbolicamente, em matéria
de criação (Figura 70).
Marepe consegue sintetizar
o cotidiano em imagens
poéticas, sem esconder sua crueza, mas também sem fazer apologia à violência,
ou “embelezar a pobreza”.
Proporciona às crianças a oportunidade de investigarem e descobrirem o
segredo interno dos objetos próximos à vida, simples, mas misterioso.
Essa atividade foi projetada não só para ajudar as crianças a entender que as fontes da arte contemporânea estão nos objetos do cotidiano, mas também para lhes oferecer a experiência real de compreender como as coisas funcionam, aplicando nelas o cuidado e a inventividade que os criadores colocam nos objetos comuns, tornando-os extraordinários (MORIN, 1999, p.147).
Figura 70
136
Exteriorizando outro interior, interior em outro sentido, Marepe transporta
devaneios de sua infância para uma realidade subjetiva, claramente perceptível.
Devaneios da casa onde morou, das brincadeiras de infância, e de sua percepção
do mundo. As crianças alcançam essa poética...
4.4. O abrigo como metáfora.
O mundo real apaga-se de uma só vez, quando se vai viver na casa da lembrança. De que valem as casas da rua quando se evoca a casa natal, a casa de intimidade absoluta, a casa onde se adquiriu o sentido da intimidade? Essa casa está distante, está perdida, não a habitamos mais, temos certeza, infelizmente, de que nunca mais a habitaremos. Então ela é mais do que uma lembrança. É uma casa de sonhos, a nossa casa onírica (BACHELARD, 1990, p.75).
Figura 71
137
Marepe apresentou “O Casamento” (1996), no III Salão da Bahia, em 1996
(Figura 71), uma instalação que tem como objeto central um fogão azul de quatro
bocas, característico da década de 1970. A tampa do fogão aberta serve de
suporte para fotografias do casamento de seus pais, e uma mangueira grossa sai
dele até um garrafão de água tombado, sem água, mas com carvão dentro. No
local de dois botões de abrir o gás, um rádio de automóvel que tem vínculo com
um fone de ouvido, de onde pode-se ouvir a história de Dom Ratão e Dona
Baratinha.
Relacionando este trabalho com a memória do artista e seu universo
pessoal, é possível fazer uma associação com o devaneio das imagens de
infância.
Marepe declara esta forte relação com sua memória, suas visões do
passado. O artista fala sobre estas imagens, e as relações com os trabalhos são
evidentes: “O fogão, por exemplo, que eu fiz no MAM, eu lembro de umas coisas,
que eu pegava uns azulejos, fazia tipo um fogãozinho, pegava umas plantas,
colocava uma vela em baixo e ficava vendo a folha modificar” (2003, s/p).
É também evidente, através da narrativa do artista e de suas próprias
declarações, que o universo familiar é de grande importância para o
desenvolvimento do seu trabalho.
Em determinado momento, o artista, em entrevista à autora, ao ser
questionado sobre alguma memória da infância declara “A minha infância, foi uma
infância muito solitária, muito preso dentro de casa” (2003, s/p). Na sua resposta é
perceptível dois indícios que podem ser pontos de ligação com as noções de
imagens poéticas da infância, encontradas em Bachelard. Percebe-se o vínculo
com a casa e a situação da solidão, fator importante para a criação do poeta. Os
objetos de Marepe resgatam uma ou mais imagens fugidias de um passado que
volta em forma de devaneio do pensamento do artista, como esclarece Bachelard:
Mas o devaneio não conta histórias. Ou, pelo menos, há devaneios tão profundos, devaneios que nos ajudam a descer tão profundamente em nós mesmos que nos desembaraçam da nossa história. Libertam-nos do
138
nosso nome. Devolvem-nos, essas solidões de hoje, as solidões primeiras. Essas solidões primeiras, essas solidões de criança, deixam em certas almas marcas indeléveis. Toda a vida é sensibilizada para o devaneio poético, para um devaneio que sabe o preço da solidão (2001, p.93-94).
Marepe traz à tona, nesse trabalho, uma lembrança que fortalece seu
vínculo com a memória da casa, com a importância da casa natal, com a primeira
casa, que é uma fonte de devaneios. ”É no plano do devaneio, e não no plano dos
fatos, que a infância permanece em nós viva e poeticamente útil” (BACHELARD,
1993, p. 35). Marepe fala desta casa: “acho que um acontecimento muito forte
que aconteceu comigo, que me marcou de fato, foi a perda de uma casa, a
primeira casa que eu morei” (2003, s/p). A partir das variações da memória das
casas em que viveu, é possível visualizar as imagens que refletem diretamente no
trabalho do artista. “A casa natal nos interessa desde a mais longínqua infância
por dar testemunho de uma proteção mais remota” (BACHELARD, 1990, p. 80).
Continuando o depoimento sobre a casa natal, o artista demonstra como
seu vínculo com ela é forte:
Eu lembro que, com o tempo, eu voltei a essa casa [a primeira na qual o artista morou] várias vezes, e entrava na casa – ele [o avô] vendeu essa casa pra outra pessoa – e eu entrava e circulava na casa, como se fosse a minha. Eu não tinha essa consciência de que tinha sido minha casa, depois a dona da casa foi me explicando, que ali não era mais a minha casa. Eu lembro que chorei muito (2003, s/p).
Dentro deste contexto da casa, “O Casamento” é uma espécie de explosão
da memória, aliada à imaginação criadora, responsável pela concretização do
devaneio na instalação artística.
Algumas curiosidades intrigam o expectador mais ávido por decifrar este
trabalho. Um galão de água é unido ao fogão, através de um tubo, como se
substituísse o bujão de gás, dentro do galão há carvão. Suas relações com a casa
serão lapidadas e as recordações aparecerão com mais clareza, ligadas a fatos
mais específicos.
139
“O Telhado” (1998) (Figura 72), que também participou da Mostra do
Redescobrimento em 2000, possui a característica da força de converter as
imagens em poesia. Como coloca Bachelard, “A arte é então uma reduplicação
da vida, uma espécie de emulação nas surpresas que excitam a nossa
consciência e a impedem de cair no sono” (1993, p.17)
Se não é possível ver os horizontes que o telhado de Marepe carrega em
sua memória, não se pode fazer esta relação familiar, a casa de Marepe não tem
apenas um cômodo. “O Telhado” é pura poesia, devaneio do artista que oferece
um repouso a um espectador desprevenido em uma mostra com tantas
informações como foi a do Redescobrimento.
Muitos dos trabalhos de Marepe funcionam como catalisadores, provocam
uma abertura de interpretação muito ampla, como no caso de “Tudo no mesmo
lugar pelo menor preço” (2002), inserido no contexto da 25ª Bienal de São Paulo.
Mas no momento que Marepe monta um telhado, ele evoca a simplicidade de uma
casa no interior da Bahia, em Santo Antonio de Jesus. Está implícita a noção de
abrigo, o telhado não é deslocado de uma casa, ele é construído por um
profissional sob o auxílio e comando das idéias do artista. Marepe mostra sua
poética, sua beleza e simplicidade. Inconscientemente evoca Bachelard. “Para
dormir bem não é preciso dormir num grande aposento. Para bem, não é preciso
trabalhar num num reduto” (2003, p. 78), como se, na segunda parte, pudesse
associar a participação de um devaneio de infância.
No catálogo da exposição “Além do arco-íris” (1998), realizada na
Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP em São Paulo, a imagem de um
telhado é associada a uma poesia de Marepe:
...Subirei aos telhados e chegarei à minha casa / Encontrarei pai, mãe, irmã / pegarei meu pai e colocarei num braço / pegarei minha mãe e colocarei no outro e entre as pernas minha irmã / Na boca levarei os amigos / Subirei ao céu e soltarei todos num gesto de felicidade / Felici – Feli – Fé (FAAP, 1998).
140
Então, o telhado demonstra um grau de intimidade com a família, com a
casa. Uma imagem maravilhada que apresenta o artista sobrevoando a pequena
casa de Santo Antonio e anunciando com assopros de amigos a importância dos
laços afetivos com o mundo, assume um gesto de empenho em pensar um mundo
fantástico. É preciso lembrar que o telhado foi o último trabalho do artista feito com
a ajuda de seu pai, que faleceu logo depois.
Na nossa infância, os devaneios nos dava a liberdade. E é notável que o devaneio mais favorável para receber a consciência da liberdade seja precisamente o devaneio de criança, só é um paradoxo quando nos esquecemos de que ainda pensamos na liberdade tal como a sonhávamos quando éramos crianças (BACHELARD, 2001, p.95)
Outro trabalho que possui essa relação com o abrigo, com a casa é o
desenvolvido para a exposição “Terrenos”, realizada no Instituto Goethe Salvador,
em 2000. Uma construção, parecida com rochedos de presépios feitos de papel
amassado, posicionado no nível do chão e tomando o longo de uma parede e seu
Figura 72
141
canto. Tipos diferenciados de papel compunham uma espécie de gruta. A entrada,
em formato irregular, tinha o chão “polvilhado” com pigmentos em pó coloridos.
Levando em conta os materiais e a dinâmica de montagem, é possível
encontrar relação com o fato de sua mãe ter sido professora de educação
artística. O ato de amassar papel, numa maneira lúdica de compreender o
material, com o fim de explorar suas potencialidades, faz parte de muitos dos
recursos usados na educação infantil. Os pigmentos, a necessidade de
construção, podem ser visualizados no pai.
O universo íntimo da casa, neste trabalho, fica explícito na declaração do
artista:
O processo de criação parte da ação do amasso de papéis. Trata-se de um trabalho intimista remetendo à casa, à caverna, ao abrigo; e do passado e do presente da humanidade. Esses papéis já utilizados traduzem uma plasticidade mais primária. Local onde se está, a gruta é um estado emocional, o que está dentro e está fora – luz e trevas (GOETHE INSTITUT SALVADOR, 2000).
Esse sentido de caverna, esta relação com o íntimo, com o abrigo, reflete
uma tentativa de introspecção às suas imagens pessoais. Funciona em sentido
oposto ao “O Telhado”, a gruta agora é metáfora, é sonho de criança que monta
com papéis uma pequena estrutura e projeta-se para aquela dimensão, penetra
nas reentrâncias de um tronco, ou por entre as pedras.
Essas lembranças que vivem pela imagem, na virtude de imagem, tornam-se, em certas horas de nossa vida, particularmente no tempo da idade apaziguada, a origem e a matéria de um devaneio bastante complexo: a memória sonha, o devaneio lembra. Quando esse devaneio da lembrança se torna o germe de uma obra poética, o complexo de memória e imaginação se adensa, há ações múltiplas e recíprocas que enganam a sinceridade do poeta. Mas exatamente, as lembranças da infância feliz são ditas com uma sinceridade de poeta. Ininterruptamente a imaginação reanima a memória, ilustra a memória (BACHELARD, 2001, p.20).
142
Marepe possui uma ética pessoal, um retorno a um tipo de humanismo que
está inscrito na simplicidade do povo do interior, onde a palavra vale muito mais
do que nas trocas dos grandes centros urbanos. Uma ética primitiva que olha o
mundo a partir de sua vivência com o mesmo, antes de qualquer formulação
teórica. Muitos de seus trabalhos surgem de uma relação com sua região, com
localidades freqüentadas por ele, de um retorno a elas em vários fragmentos.
“Nessa região longínqua, memória e imaginação não se deixam dissociar. Ambas
trabalham para seu aprofundamento mútuo. Ambas constituem, na ordem dos
valores, uma união da lembrança com a imagem” (idem, 2003, p.25).
Ao narrar um fato de infância, Marepe dá pistas para a compreensão mais
específica de seu projeto para a Galeria Luisa Strina, em São Paulo, a exposição
titulada “Suplemento manual, é Natal”, em 2002.
Comparando a exposição com seus depoimentos, podemos observar
melhor as conexões entre memória e imaginação.
Tem uma cena comigo em que eu estava na porta de casa: minha mãe comprou pra gente um presente bem bonito, um carro bem bonito, um carro de bombeiro – nós não éramos ricos, mas mainha no final de ano caprichava nos presentes de Natal – e passou uma galera pobre, bem pobre... E eles ficavam olhando aquele meu carro, olhavam com desejo. Não sei, essas coisas, bateram muitas lembranças, de um estado quase de esquizofrenia, de um universo muito particular meu (MAREPE, 2003, s/p).
Fazia parte da exposição “O
presente dos presentes” (2002), vários
presentinhos de argila enfeitados com fitas
de seda coloridas e estrelinhas em papel
laminado (Figura 73). Um misto de
brincadeira infantil que simula alguma coisa
de nosso cotidiano em algo mágico. Pode
também ser associado à imagem do
menino que cobiçou o carro de bombeiros, Figura 73
143
à consciência de que há alguém em uma condição antagônica à sua. Poderia ser
uma equivalência de valores, presentes muito parecidos, da mesma matéria-prima
enfeitados, apesar da pequena diversidade de cores e formas, de igual valor.
Assim, as imagens da infância, imagens que uma criança pôde fazer, imagens que um poeta nos diz que uma criança fez, são para nós manifestações da infância permanente. São imagens da solidão. Falam da continuidade dos devaneios da grande infância e dos devaneios de poeta. (BACHELARD, 1988, p.95).
Com essa
conotação, a projeção dos
trabalhos assume um olhar
de criança que é também
colocada sobre o
espectador. Na mesma
sala dos presentinhos de
argila, “O presente dos
presentes”, estava o
“Cajueiro com neve de
Algodão” (2002), trata-se
de um cajueiro que foi
desmontado e levado para
a galeria, remontado e
enrolado com algodão
(Figura 74). Lisette
Lagnado faz uma
declaração bastante
poética desse trabalho e
reflete possíveis
significados pertinentes a
esse símbolo natalino: Figura 74
144
É Natal e Bienal em pleno março. Para além do ar fora de lugar, a data também é fora de hora – realidade concreta, tempo abstrato. Por aqui neva. Aquele cajueiro macho, abatido por causa da construção de uma nova estrada, está todo branco, imitando o que não temos. Mas você me garante que são bem reais os horizontes agrestes de galho seco e algodão que margeiam o sertão até o recôncavo (GALERIA LUISA STRINA, 2002).
Este cajueiro remete-se ao costume popular de colocar algodão nas árvores
de Natal para simular a neve. Certamente, essa neve não deve ser influência da
estadia do artista na Alemanha, e sim do mesmo lugar de todas as pessoas que
fazem isso. É uma cultura vista na televisão, nos filmes, nos desenhos animados
com renas e trenós de Papai Noel, como de um autêntico habitante do hemisfério
Norte, branco, vestido com roupas de frio. Certamente, características que não
refletem os cajueiros, eles não gostam de frio.
Mas este cajueiro possui uma outra característica por seu tamanho. Para as
crianças, as coisas possuem uma outra dimensão de tamanho. Ao voltar para
algum local de convívio na infância, normalmente a sensação remetida é de que
eram bem maiores. O cajueiro de Marepe é enorme. Sua dimensão parece com a
relação de uma criança com as árvores de Natal, a cada ano, parecem para a
criança, menores.
A abordagem fenomenológica do espaço e do corpo vivido mostra-nos seu caráter de inseparabilidade. Por exemplo, no sono e no sonho, o corpo fantasmado coincide com as diferentes modalidades de semiotização espacial que ponho em funcionamento. A dobra do corpo sobre si mesmo é acompanhada por um desdobramento de espaços imaginários (GUATTARI, 1992, p.153).
Vestido de Natal, o cajueiro, reflete esta relação de valores espaciais
quando nos deparamos com algum ambiente familiar, mas que, certamente, é
maior do que era em nossa época de infância. Felix Gattari narra um
acontecimento, quando em São Paulo, ficou absorto com uma paisagem, e ao
145
tentar fazê-la submergir de sua memória, percebeu sua semelhança com uma
paisagem de infância:
Ao fim de certo tempo, a resposta me veio naturalmente, algo da minha primeira infância me falava do âmago dessa paisagem desolada, algo de ordem principalmente perceptiva. Havia, de fato, uma homototetia entre uma percepção muito antiga – talvez a da Ponte Cardinet sobre
numerosas vias de estrada de ferro que se abismam na estação Saint-Lazare – e a percepção atual. Era a mesma sensação de desaprumo que se achava reproduzida. Mas, na realidade, a ponte Cardinet é de uma altura comum. Só na minha percepção de infância é que eu fora confrontado com essa altura desmesurada que acabava de ser reconstruída na ponte de São Paulo. Em qualquer outra parte, quando esse exagero da altura não era reinterado, o afeto complexo da infância que a ele estava associado não podia ser desencadeado (GUATTARI, 2000, p.154-155).
“Supletivo manual, é
Natal” (2002), nesta mostra havia também outro trabalho que remete à condição
de abrigo, da relação do artista com a
casa, com a questão da moradia, seu
reflexo em uma situação de Terceiro
Mundo: o “Embutidinho” (2002) (Figura
75). Trata-se de um trabalho que faz
parte alguns desdobramentos e que
lembra os projetos dos penetráveis de
Hélio Oiticica, inclusive por sua
configuração também em maquete.
Em uma analogia com os trabalhos de Oiticica, podemos adentrar um
pouco a discussão em relação à casa e suas conexões com os escritos de
Bachelard, sobretudo em “Poética do Espaço”.
Figura 75
Figura 76
146
O sentido de abrigo ganha força na metáfora do ninho, nas maquetes de
Oiticica, ainda que alguns penetráveis tenham uma série de compartimentos, os
ambientes resultantes de seus “labirintos” são pequenos, propõe uma
aproximação das pessoas que penetram no ambiente.
Marepe também parte de uma transformação do objeto. A metáfora da
casa, do abrigo, gerou um trabalho em três etapas, já que três trabalhos foram
constituídos. A proposta básica é um abrigo individual composto de
compartimentos. Primeiro apresentou na exposição “Os 90”, no Paço Imperial,
Rio de Janeiro, em 2000. Sobre o trabalho, Lisette Lagnado explica:
Os Embutidos poetizava a moradia improvisada. Era uma construção de madeirite magenta por fora, com uma organização interna que misturava os ambientes da vida cotidiana (quarto, cozinha, sala, banheiro). O usuário era instruído a interferir na estrutura dessa arquitetura do precário (GALERIA LUISA STRINA, 2002).
Através de imagens das maquetes de Oiticica e de suas propostas de
participação, podemos ver uma semelhança no “Embutidinho”, uma estrutura
geométrica composta de compartimentos com “Penetrable PN 16, Nada” (Figura
76), de 1971, de Hélio Oiticica.
Esse desmembramento do objeto em propostas cada vez mais abertas é
explícito no projeto relacionado à “Os Embutidos” (1999) (Figura 77). Por mais que
pareça um racionalismo geométrico que se apresente, por sua
organização partindo de uma forma geométrica simples, o cubo, ao colocar
os objetos utilitários como utensílios de cozinha, alimentos etc., ao possibilitar ao
espectador a condição de participante, também desmonta a racionalidade
geométrica, presente com mais força em “Embutidinho”. A associação ao sentido
da casa, ao abrigo, também é muito forte, sua simplicidade não diminui seu
aconchego. “Assim, a casa sonhada deve ter tudo. Por mais amplo que seja o seu
espaço, ela deve ser uma choupana, um corpo de pomba, um ninho, uma
crisálida” (BACHELARD, 2003, p.78).
147
Nos escritos de Hélio Oiticica, o artista mostra sua preocupação com a
transformação que a arte deveria propor. Suas propostas possibilitavam ao
espectador uma participação plena, ninguém precisava de conhecimentos prévios
sobre algum assunto para absorver o trabalho. Para Hélio, “a arte já não é mais
instrumento de domínio intelectual, já não poderá mais ser usada como algo
“supremo, inatingível”“. Idéia compatível com a de Bachelard:
Em poesia, o não saber é uma condição prévia; se há oficio no poeta, é na tarefa subalterna de associar imagens. Mas a vida da imagem está toda em sua fulgurância, no fato de que a imagem é uma superação de todos os dados da sensibilidade (BACHEALRD, 2003, p.16).
Em “Os Embutidos” (1999) e, sobretudo, “Recôncavo” (2003), este último
mostrado na Bienal de Veneza em 2003, são propostas que possuem uma
Figura 77
148
organicidade muito freqüente na obra de Marepe, que faz parte de seu método de
trabalho. A relação com a casa ganha um sentido constelar, as cidades à noite
são pontos de luz na escuridão.
Nessa comunhão dinâmica entre homem e a casa, nessa rivalidade dinâmica entre casa e o universo, estamos longe de qualquer referência às simples formas geométricas. A casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico (BACHELARD, 1993, p.62).
Esta citação poderia estar fazendo referência ao processo de
transformação da arte brasileira relacionado à ruptura do neoconcretismo com a
racionalidade do concretismo.
Pode ser resumido grande parte da trajetória de Marepe, no trabalho
“Recôncavo”, a participação, a posição em favor do objeto e suas conseqüências,
e a sua relação com a casa. No trabalho da Bienal de Veneza, a estrutura podia
ser desmembrada, literalmente desdobrada, numa alusão à infância, nos jogos de
dobraduras ou estruturas modulares em cores primárias. “Recôncavo” abre-se em
sua imensidão poética, levando um pouco da memória do artista consigo.
Bachelard fala da relação poética da casa com a liberdade.
Estamos antes diante do fenômeno de libertação pura, de sublimação absoluta. A imagem já não está sob o domínio das coisas, nem tampouco sob o impulso do inconsciente. Ela flutua, voa, imensa, na atmosfera de liberdade de um grande poema. Pela janela do poeta, a casa empreende com o mundo um intercâmbio de imensidade. Também a casa dos homens, como gosta de dizer o metafísico, se abre para o mundo (BACHELARD, 1993, p. 81-82).
A caixa de surpresa pertencente à memória, devaneio e cotidiano de Marepe ou
“moço do muro” já pertence à história da arte da Bahia. Sua sensibilidade e
simplicidade o fazem estar em contato com o mundo a partir de Santo Antonio de
Jesus, cidade com nome de santo franciscano, e de grande popularidade na
Bahia. A rotina, para muitos, tediosa de uma cidade do interior, é para Marepe a
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grande fonte de informações e análises que são transformadas em poesia
concreta (no sentido antagônico a abstrato). Transforma o desapercebido em algo
valoroso, solicita a atenção às meras informações diárias, do catar piolho da
cabeça das crianças nas calçadas à pintura publicitária dos muros privilegiados.
Marepe é um pescador de sonhos, seus devaneios emergem para o deleite
dos apreciadores da poesia cotidiana dos fatos.
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CONCLUSÃO
Em busca da melhor compreensão e justificativa da inserção da obra do
artista plástico Marepe no contexto da arte contemporânea baiana e,
gradativamente, no meio de arte nacional e internacional, fizemos uma
retrospectiva na história da arte universal a partir do início do século XIX. Com
essa trajetória, verificou-se o quão importante foi a afirmação da autonomia do
artista para o processo de enriquecimento dos temas e das linguagens comuns à
arte contemporânea. Linguagens estas oriundas do Dadaísmo e do
Construtivismo.
Em relação à arte brasileira, ao analisarmos a proposta dos modernistas de
1922, apesar de não questionarem o suporte pictórico, percebemos que a idéia de
dar ênfase à cultura nacional, de forma diferenciada, agregou valores que
transcenderam gerações posteriores. Especificamente Oswald de Andrade, com
os “Manifesto Poesia Pau-Brasil” (1924) e “Manifesto Antropófago” (1928), com
observações sobre coisas simples, ressalta a poética dessas coisas, como elas
estão no mundo e propõe a antropofagia: devorar o estrangeiro e digerir o seu
potencial, além de esbravejar uma eructação com nossas características culturais
peculiares. A produção dos artistas brasileiros modernos, do início do século XX,
não transparece uma sintonia de linguagem com as vanguardas européias, por
exemplo, com o cubismo e o abstracionismo geométrico, que chega ao Brasil na
década de 1950 com o Movimento Concreto.
No movimento neoconcreto, na década de 1960, mais especificamente com
atitudes e atuações de Hélio Oiticica, notamos a assimilação da cultura e das
relações culturais brasileira, este artista que realizou a antropofagia de Oswald de
Andrade, em relação ao estrangeiro geográfico e, principalmente, ao estrangeiro
de outra classe social, o da comunidade do Morro da Mangueira. Nesta
comunidade, ele processou uma vivência pessoal que foi transferida para sua
obra. Hélio Oiticica escreveu muitos textos sobre suas concepções artísticas:
diversidade de linguagens, questionamento de valores, propostas conceituais, etc.
Em um de seus textos, o “Esquema Geral da Nova Objetividade”, ele diz que foi a