Download - Marieta de Moraes Ferreira
Imigração italiana do século XIX:
o grande marco da vitivinicultura Rio-Grandense e Brasileira
MARIETA DE M. FERREIRA e VALDINEY C. FERREIRA
1. Introdução
Nas últimas décadas do século XIX uma forte corrente migratória deixou o norte
da Itália com destino ao Brasil. Em sua maioria seus integrantes se fixaram em São Paulo,
porém a partir de 1875 um grande número seguiu para fazer a colonização da Serra
Gaúcha no Rio Grande do Sul. Eram majoritariamente vênetos, lombardos, e um número
menor de trentinos. Essa corrente migratória durou até 1894, quando o governo brasileiro
interrompeu a concessão gratuita de bilhetes transoceânicos. Àquela altura já tinham
chegado ao Rio Grande do Sul mais de 60.000 italianos.
Assentados na região da Serra Gaúcha em lotes coloniais comprados a longo
prazo, esse grupo de italianos dedicou-se tenazmente ao desbravamento da terra. Para
sobreviver praticava uma agricultura de subsistência com gêneros de primeira
necessidade como milho, batata, feijão, e criava animais domésticos como cabras, porcos,
vacas e mulas entre outros.
Afeiçoados à viticultura na sua região de origem, não se encontra registro de que
os primeiros imigrantes trouxeram mudas de videiras. Mas em 1879 já se tem notícia de
que foi possível elaborar os primeiro vinhos da colônia italiana, e a partir daí foi incluída
nas suas atividades a vitivinicultura, com a produção do vinho colonial. Essa atividade
logo passou a ser aquela em que os colonos colocavam seus maiores esforços porque
gerava os melhores resultados. Poder-se-ia acrescentar que a possibilidade da prática da
vitivinicultura tornou-se um fator importante e decisivo para fixar o imigrante italiano na
Serra Gaúcha.
Existem registros de que em 1886, passada pouco mais de uma década da chegada
dos primeiros imigrantes italianos, alguns daqueles estabelecidos no Campo dos Bugres
(Caxias do Sul) importaram variedades viníferas europeias como Barbera, Trebbiano,
Traminer, Vernaccia, e as plantaram no sistema de condução em espaldeira, iniciando
um movimento que iria contribuir fortemente para a evolução da nascente vitivinicultura
brasileira.
Entre as colônias estabelecidas merecem destaque Conde d’Eu (Garibaldi), Dona
Isabel (Bento Gonçalves) e Campo dos Bugres (Caxias do Sul), por sua importância
decisiva no processo de desenvolvimento da atividade da vitivinicultura naquela que se
transformaria na maior região vinícola brasileira.
1.1- Surgem as primeiras vinícolas brasileiras
Nas décadas seguintes a produção de uvas se expandiu gerando excedentes que
precisavam ser comercializados. A produção iniciada em 1879 excedeu o consumo
familiar e as sobras de vinhos começaram a circular inicialmente em trocas por
mercadorias com os vizinhos e com os comerciantes que chegavam à colônia em busca
dos produtos coloniais para levar à cidade. Algumas poucas famílias desde o início do
século XX reuniram condições para exercer comercialmente as atividades da viticultura
e a vinicultura. No entanto, a grande maioria continuou dedicada apenas à produção da
uva.
No limiar do século XX o cenário da vitivinicultura no Rio Grande do Sul era de
expansão. Entre 1900 e 1928 grandes acontecimentos ocorreram na Serra Gaúcha até a
primeira grande crise do setor, que teve o seu ápice em 1928. Podemos destacar nesse
período o início da vinificação industrial, com o surgimento de várias empresas
vinícolas,1 e a primeira tentativa, entre 1911 e 1913, sob a liderança de Stefano Paternó,
de criação do movimento cooperativista resultante da união dos esforços agrários dos
pequenos produtores. O movimento cooperativista ressurgiria em 1929.
1.2 - A grande crise do setor vinícola de 1928
No inicio da década de 1920 havia no mercado vitivinicultor do Rio Grande do
Sul um excessivo número de agentes comerciais, cantinas vinícolas, e uma multiplicação
de colonos produtores. A razão maior desse excessivo número de agentes comerciais era
a facilidade para financiar seus negócios usando como capital de giro o dinheiro retido
dos colonos, que sem se aperceber estavam financiando os negócios dos empresários do
comércio. Com o aumento sem controle da produção, as dificuldades do setor foram se
acumulando, com grande ameaça para a sobrevivência dos seus atores.
Em 1927 a situação ficou dramática com a falência de vários comerciantes que
arrastavam os colonos, pondo em risco sua sobrevivência. Somava-se a essa situação a
desvalorização do vinho gaúcho decorrente do excesso de produtos de baixa qualidade,
da falta de escrúpulos de parte dos comerciantes, e da falsificação dos vinhos nas regiões
consumidoras do Rio de Janeiro e São Paulo. Nesse contexto, parte dos empresários e
dirigentes com interesses comuns reuniu um grupo estratégico de comerciantes e donos
de cantinas em torno de uma entidade de classe para defender seus interesses, criando o
Syndicato Viti-Vinícola do Rio Grande do Sul, instituição privada protegida pelo estado,
para controlar toda a movimentação de seus associados e evitar as práticas de especulação
e concorrência predatória. Seus principais objetivos seriam disciplinar a qualidade dos
produtos e controlar a comercialização da produção. Nesses objetivos estavam os pontos
críticos da intervenção, porque o Sindicato foi transformado pelo estado no único canal
legítimo de comercialização do vinho gaúcho.
Na prática, mesmo os que aderiram continuaram com as ações predatórias,
jogando cada um por si, numa concorrência fratricida e desleal, particularmente contra
aqueles que não participavam do órgão. A consequência foi que o governo, que tinha na
Presidência do estado Getulio Vargas, e na Secretaria da Fazenda Osvaldo Aranha,
interveio novamente no setor criando em 1929 a Sociedade Vinícola Rio Grandense,
braço comercial do Sindicato.
Com o governo e as grandes empresas de um lado, nada mais natural que surgisse
o outro lado reunindo os que ficaram de fora. E quem eram eles? Viticultores,
comerciantes, pequenos cantineiros, que se aperceberam da necessidade de se organizar
para sobreviver no novo cenário do setor vitivinícola do Rio Grande Sul. Assim ressurgiu
1 Destaques para: Antônio Paganelli & Filhos (1907); Antônio Pieruccini & Filhos (1898); Antônio Rossato
& Filhos; Armando Peterlongo (1913); Augusto Pasquali & Irmãos (1885); Cantina Allegretti & Cia
(1896); Cantina Costamilan (1917); Cantina Giuseppe Mandelli (1921); Carlos Dreher Filho & Cia (1908);
Dal Molin Irmãos (1885); De Carli & Paganelli (1918); Granja Pindorama Irmãos Maristas (1911); Guido
D’Andrea & Vitali (1914); L. Mônaco & Cia (1916); Lourenço & Horácio Mônaco (1920); Luiz Antunes
& Cia. (1917); Michielin, Menegassi & Cia Ltda; Michielon, Mottin & Cia. (1905); Milani & Simoneto;
Oreste Braghirolli & Cia (1907); Oreste Franzoni & Cia (1913); Paulo Salton & Irmãos (1910).
o movimento cooperativista, com a união dos pequenos produtores independentes que
não faziam parte do Sindicato e estavam numa situação de extrema dificuldade. Esses
produtores desenvolveram um aguerrido espírito de luta que acabou criando condições
para a reabilitação do movimento cooperativista, que tinha encerrado um primeiro ciclo
em 1913.
Entre 1929 e 1936 foram criadas mais de 50 cooperativas. Os anos de 1931 a 1933
foram marcados por uma grande a luta entre as Cooperativas Vinícolas recentemente
criadas e o Sindicato Vitivinícola junto com seu braço comercial, a Sociedade Vinícola
Rio-Grandense. O clima adverso ainda recebia uma boa contribuição dos órgãos
governamentais porque a Viação Férrea criava dificuldades para o embarque dos vinhos
das Cooperativas Vinícolas,2 e os laboratórios governamentais condenavam os produtos
dos colonos. Estava claro que o Sindicato tinha esgotado os objetivos pensados por
Osvaldo Aranha e se transformado num órgão gerador de desentendimentos constantes
no setor vitivinícola.
1.3 - A Sociedade Vinícola Rio Grandense Ltda.
Fundada em 1929 para ser o braço comercial do Sindicato dos Vitivinicultores do
Rio Grande do Sul pelos mesmos fundadores do Sindicato e mais alguns novos aderentes,
a Sociedade reuniu de início 49 sócios. Entre eles estavam vinicultores importantes da
Serra Gaúcha, como José Moraes Vellinho (idealizador), Armando Peterlongo, Carlos
Dreher Filho, os irmãos Mônaco, Paulo Salton & Irmãos. E com ela o Sindicato se
desobrigaria de atuar diretamente nas desgastantes brigas comerciais.
É importante destacar que os negociantes do setor privado não estavam sozinhos
nesta empreitada. O governo do estado, que já tinha apoiado a criação do Sindicato, deu
apoio explícito ao projeto através do Secretário de Fazenda Osvaldo Aranha. Havia
interesse em criar o mesmo modelo sindical predominante na Europa que verticalizava as
estruturas profissionais.
Na década de 1940 a Vinícola Rio Grandense inovou com a implantação
estratégica de engarrafadoras fora do Rio Grande. Criou unidades na Bahia, Paraná, Rio
de Janeiro e São Paulo, além de Porto do Rio Grande (RS). No seu auge a Sociedade
chegou a ter 25% da produção vinícola do estado e foi peça-chave para melhorar a
comercialização dos vinhos brasileiros. Sua política de regulagem de estoques para evitar
desabastecimento ou excesso de oferta ao mercado foi importante para evitar oscilações
desastrosas de preços.
Com a chegada ao Brasil na década de 1950 da Martini & Rossi, a Vinícola Rio
Grandense se posicionou como sua fornecedora exclusiva de vinho-base para a produção
dos seus vermutes em São Paulo e Recife. Quando em 1968 a multinacional decidiu lançar
um vinho engarrafado no Brasil (Château Duvalier) foi ela que forneceu o produto. Desta
parceria surgiu a decisão estratégica, que alguns consideram fatal, de deixar que a Martini
se encarregasse de atender ao mercado nacional com o Château Duvalier, e a Rio
2 Entre elas podemos destacar: Cooperativa Vinícola Forqueta (Caxias do Sul – 1929), Cooperativa
Vinícola Nova Milano (Farroupilha – 1929), Cooperativa Vinícola São Victor (Caxias do Sul- 1929),
Cooperativa Vitivinícola Otávio Rocha (Flores da Cunha – 1929), Cooperativa Vitivinícola Tamandaré
(Garibaldi – 1930), Cooperativa Vitivinícola Aurora (Bento Gonçalves – 1931), Cooperativa Vitivinícola
Garibaldi (Garibaldi – 1931), Cooperativa Vitivícola Aliança (Caxias do Sul –1931).
Grandense se mantivesse no mercado regional com a linha de produtos da Granja União.
Nesse acordo coube à Sociedade todo o processo de produção desde a compra das uvas
até o engarrafamento, e à Martini & Rossi o marketing e a comercialização.
Foi com esta decisão de atuação no mercado que na década de 1960 a Vinícola
Rio Grandense lançou vários rótulos novos de vinhos, chegando a controlar em torno de
70% do mercado vinícola no Rio Grande do Sul. Em 1964 tornou-se uma sociedade
anônima ao abrir seu capital. Dado importante é que, entre seus mais de 200 acionistas,
havia uma sociedade formada por 79 de seus empregados que chegou a controlar 11% do
capital da empresa.
Com o fim em 1979 do acordo comercial com a Martini, e como consequência,
entre outras razões, do baixo consumo de vinho no Brasil, a Rio Grandense vivenciou
uma rápida queda livre na sua participação de mercado para um patamar abaixo de 10%.
Em 1986 essa participação já era inferior a 5%, inviabilizando a continuidade de suas
operações no setor vinícola.
Enfraquecida e pressionada pela grave crise econômica dos anos 1990, a
Sociedade Vinícola fechou suas unidades industriais pelo Brasil e diversificou sua
atividade buscando novas oportunidades de negócios fora do ramo, como o segmento
imobiliário. Parte do grande patrimônio vitivinícola da Granja União foi loteado pela
proximidade com o perímetro urbano de Flores da Cunha.
Em 1997 ocorreu o já inevitável desmonte da Companhia Vinícola Riograndense,
com o encerramento da pessoa jurídica e a venda da sua razão social. As marcas de sua
propriedade, como os rótulos Granja União, foram vendidas para a Vinícola Cordelier. O
acervo imobiliário, equipamentos e estoques foram transferidos para a Companhia
Castelo, a nova firma dos acionistas, que passou a administrar a venda do que restava do
patrimônio.
1.4 - As crises de 1935 e 1958: a criação do Instituto Rio Grandense do Vinho e o início
das exportações
Duas grandes safras nos anos de 1935 e 1936, grandes oscilações de preços na
compra da uva, o surgimento de novos centros de produção no estado provocam outra
grande crise no setor vinícola, gerando a necessidade de se criar uma entidade reguladora
do comércio e produção de vinho. Em 1936 o Sindicato Vitivinícola encerrou suas
atividades e se criou o Instituto Rio-Grandense do Vinho. Seus associados tomaram
caminhos diversos, com muitos se concentrando nessa nova empresa. Outros preferiram
dinamizar suas próprias atividades, fortalecendo assim o nível da empresa privada e
consolidando a estrutura empresarial do setor, que ficou então dividido em três blocos:
Sociedade Vinícola (José Moraes Vellinho), Cooperativas (Humberto Lotti) e dissidentes
industriais (Fernando Scalzilli).
Na segunda metade do ano de 1957 o cenário da indústria vinícola do Rio Grande
do Sul era bem semelhante àqueles vividos nos anos 1928/1930 e 1935/1936: previsão de
uma grande safra para 1958, baixo volume de vendas, estoques elevados ocupando
praticamente toda a capacidade de estocagem, associados a um baixo consumo do
mercado interno e à queda nos preços dos vinhos.
Em janeiro de 1958 este cenário se confirmou, instalando uma nova grande crise
na vitivinicultura da Serra Gaúcha e obrigando principalmente as grandes empresas, como
a Companhia Vinícola Rio Grandense e as Cooperativas Garibaldi e Aurora, a se
movimentar para encontrar soluções. Em situação oposta, na Argentina era alta a
demanda de vinhos importados por conta das grandes exportações que fizeram para a
França, que enfrentava uma crise de escassez. Uma saída encontrada pelas empresas
brasileiras foi a exportação de 4 milhões de litros de vinho a granel para a Argentina, 2
milhões de litros para a Suíça, e para a França 15 milhões de litros de vinho.
1.5 - A chegada das multinacionais e seu impacto na vitivinicultura brasileira
Foi nos anos de 1973 e 1974 que ocorreu efetivamente a entrada no Brasil das
multinacionais Martini & Rossi – De Lantier, Heublein, Provifin – Moët & Chandon,
Seagram’s do Brasil – Maison Forestier, National Distillers – Almadén.
A entrada dessas grandes empresas no mercado nacional melhorou
consideravelmente a qualidade dos vinhos brasileiros. Com sua força econômica, elas
impulsionaram o desenvolvimento vitivinícola no país com políticas importantes na
viticultura, com a introdução de novos equipamentos e tecnologias na vinicultura, e com
estratégias inovadoras de atuação no mercado, tais como: preços diferenciados e
bonificações para os viticultores que produzissem uvas de qualidade diferenciada;
incentivos à reconversão dos vinhedos do sistema de condução de latada ou pérgola, para
espaldeira; plantio de castas europeias finas que permitiram melhorar a qualidade dos
vinhos; introdução de tecnologias avançadas que viabilizaram a produção de vinhos
brancos superiores; campanhas de marketing agressivas para a ampliação do mercado
consumidor.
A atuação dessas empresas provocou uma reação forte entre os produtores
brasileiros, que não tiveram alternativas a não ser evoluir na qualidade dos seus produtos.
Foram feitos investimentos tecnológicos nas instalações industriais, na viticultura
(vinhedos) e na formação em enologia dos membros das famílias. O vinicultor prático
começou a ser substituído pelo enólogo com formação técnica e científica.
Ao longo das décadas de 1970 e 1980, surgiram muitas vinícolas novas
produzindo vinhos finos no rastro do sucesso das multinacionais: Jota Pe/Perini (1972),
Luiz Valduga fornecendo vinhos para a Dreher (1973), Monte Lemos/Dal Pizzol (1974),
Wizard/Monte Reale (1975), Courmayer (1976), Provino (1978), Cave de
Amadeu/Vinicola Geisse (1979), Don Giovanni (1982), Boscato (1983), Adegas
Domecq/Allied Domecq (1985), Casa Valduga (1985), Giacomin (1985), Dom Cândido
(1986), Cavalleri (1987), Cordelier (1987). Algumas vinícolas mais antigas como a
Marco Luigi (1946) e Cave Marson (1970) também passaram a produzir vinhos finos.
A revolução pela qualidade sensibilizou empresas já estabelecidas como a Salton
(1910), que também partiu para a produção de vinhos finos, contratando para seu quadro
um enólogo oriundo da Heublein.
A abertura do mercado brasileiro na década de 1990 aos vinhos importados
provocou de imediato uma melhoria na qualidade dos produtos oferecidos, mas ao mesmo
tempo trouxe dificuldades para a permanência das multinacionais. Como consequência,
todas deixaram o Brasil, ou deixaram de atuar no mercado de vinhos finos. Sua saída
provocou imediatamente uma grave crise na viticultura brasileira, ao deixar sem
compradores grandes produtores de uvas da Serra Gaúcha. A única multinacional que
permaneceu foi a Moet & Chandon.
Outra consequência foi o surgimento de vinícolas de pequeno e de médio porte
com propostas de produzir vinhos finos de uvas viníferas para competir com os
importados.3 Vários de seus proprietários eram pequenos e médios viticultores que
tradicionalmente vendiam uvas para as grandes vinícolas. Para melhorar a qualidade de
seus vinhos, eles elevaram o grau de instrução dos seus filhos, enviando-os para estudar
enologia no Brasil e no exterior. A estratégia principal foi construir pequenas vinícolas,
lojas varejistas e instalações hoteleiras para atrair o turismo rural, dando início ao já
sofisticado enoturismo da Serra Gaúcha.
O grande destaque do grupo é a Miolo, que no período entre 1990 e 1998 deixou
de ser uma pequena vinícola para fazer parte do grupo dos maiores produtores de vinhos
em geral, e se transformou no maior produtor de vinhos finos do Brasil. No período entre
1979 e a criação da vinícola em 1990, a família Miolo já era reconhecida pelas grandes
vinícolas estabelecidas no mercado, como Salton, Dreher, Martini & Rossi, Maison
Forestier, para as quais vendia as uvas que produzia. A crise na comercialização das uvas
em 1989 fez com que os Miolo partissem para a elaboração de seus próprios vinhos.
Outro destaque é a Casa Valduga, atualmente umas das empresas integrantes do
grupo Famiglia Valduga Co. Fundada em 1985, na década de 1990 a vinícola migrou
efetiva e definitivamente para o segmento de vinhos finos, numa evolução que a colocou
entre as líderes do mercado brasileiro. Em 1992 ampliou suas atividades visando ao
enoturismo com a implementação de restaurantes e pousadas. Foi a primeira a construir
no Brasil um complexo enoturístico.
1.6 - Em busca da modernidade
As vinícolas brasileiras tradicionais e os produtores de uvas que resistiram ao
furacão das multinacionais e aos investidores não tiveram outra alternativa senão ir à luta.
Deram início, assim, a investimentos na viticultura (tecnologia no campo), na formação
em enologia dos membros da família, que precisavam deixar de ser práticos e curiosos
para se transformar em profissionais com bases científicas, e também na sua organização.
Em 1995, numa iniciativa dos produtores, o Brasil aderiu como país-membro à
Organização Internacional da Uva e do Vinho (OIV), entidade que regula e arbitra as
principais questões relativas ao vinho entre os países produtores de todo o mundo.
No final de 1997, após um longo processo de maturação iniciado lá na década de
1980, foi criado em Bento Gonçalves o Instituto Brasileiro do Vinho (IBRAVIN). Este
órgão representa cerca de 13.000 famílias de viticultores, e mais de 600 unidades de
vinificação só no estado do Rio Grande do Sul. Estes entes estão organizados como
produtores de uva, produtores de vinho e cooperativas. O papel fundamental do Instituto
é unificar e manter coeso o setor vitivinícola, garantindo a participação igualitária, em
suas decisões, dos produtores de uva, dos produtores de vinho e das cooperativas.
3 Podemos citar: Vinícola Dom Cândido (1986), Vinicola Miolo (1990/2006), Vinícola Don Laurindo
(1991), Cantina Strapazzon (1992), Vinícola Monte Rosário (1993), Famiglia Tasca (1994), Vinícola
Salvati & Sirena (1994), Vallontano Vinhos Nobres (1995), Terrasul (1996), Adega Esplendor (1997-
desativada), Lovara Vinhas e Vinhos (1967/1997), Vinícola Valmarino (1997), Velha Cantina (1997), Cave
de Pedra (1997), Lídio Carraro (1998), Vinicola Pizzato (1998), Luís Argenta Vinhos Finos (1999), Vilmar
Bettú (final 1990s), Vinícola Salvador (1998), Cristófoli Vinhedos e Vinhos Finos (1998), Máximo Boschi
(1998), Angheben Adega de Vinhos (1999), Cordilheira de Santana (1999), Vinho Laurentis (2000).
Em 1999 a Escola Agrotécnica Federal Presidente JK (fundada em 1959 como
Escola de Viticultura e Enologia, nome alterado em 1964 para Colégio de Viticultura e
Enologia – CVE), que oferecia curso técnico de enologia, passou a oferecer também curso
superior. Suas instalações são constituídas de fazenda-escola, diversos laboratórios, e
uma cantina completa de vinificação. Em 2002 a escola trocou novamente o nome para
Centro Federal de Educação Tecnológia (CEFET). Nessa escola é que se formaram a
quase totalidade dos enólogos brasileiros em atividade. Atribui-se também à entrada
desses enólogos no mercado o aumento do número de pequenas e médias empresas
vinícolas.4
2. O projeto de Historia Oral do Vinho Gaúcho
O projeto de História Oral do vinho gaúcho tem como objetivo produzir um banco
de entrevistas que permita o registro de informações que, de outro modo, acabariam
perdidas. Os depoimentos reunidos no projeto oferecem um extraordinário instrumento
de reflexão sobre as origens e a trajetória de famílias descendentes de imigrantes italianos
que se estabeleceram na Serra Gaúcha. Pela própria riqueza das trajetórias de vida dos
entrevistados, tomadas em conjunto as entrevistas constituem também um instigante
painel altamente representativo das múltiplas transformações econômicas, sociais,
políticas e culturais vividas pelo Brasil ao longo do século XX, particularmente na sua
segunda metade.
A proposta de realização de entrevistas de caráter histórico e documental sobre a
trajetória de descendentes de imigrantes italianos que se dedicaram à atividade vinícola
não somente amplia o conhecimento sobre a diversidade de elementos que compõem a
sociedade brasileira, como também oferece subsídios para um importante setor de
atividades econômicas do Sul do país.
Como sabemos, as narrativas autobiográficas são impactadas pelo presente e
como tal recuperam memórias de maneira selecionada, em que alguns elementos são
supervalorizados e outros esquecidos ou omitidos. É muito comum a crítica que destaca
a subjetividade dos depoimentos e as possibilidades de distorções que os relatos
memoriais carregam. No entanto, é nas diferentes versões e muitas vezes nas formas
contraditórias ou mesmo opostas que reside a riqueza desse tipo de abordagem.
Este projeto começou a ser desenvolvido em maio de 2015, e conta hoje com 32
depoimentos relacionados a 17 empresas, e cerca de 40 horas de gravação.
4 A partir do ano 2000 foram criadas mais de 100 (cem) vinícolas produtoras de vinhos finos. Destas, apenas
4 (quatro) encerraram suas operações. Segue a relação de algumas destas novas vinícolas. 2000:
Cordilheira de Sant’Ana, Don Bonifácio, Don Guerino, Ouro Verde, Quinta Ribeiro de Mattos (desativada),
Vinhedos Hood, Villagio Grando; 2001: Décima X, Hermann, Larentis, Terragnolo, Villa Francioni (SC);
2002: Campos de Cima, Cave Ouvidor (desativada), Don Miguel, Don Pedrito, Dunamis, Routhier &
Darricarrère, Sanjo, Sozo, Terras Altas; 2003: Copetti & Czarnobay, Don Guerino, Pericó, Peruzzo, Santa
Augusta, Villa Bari, ViniBrasil; 2004: Adolfo Lona, Antonio Dias, Coopernatural, Dezem, Ducos (SF),
Monte Azurro, Quinta Santa Maria, Santo Emilio; 2005: Abreu Garcia, Aracuri, Bella Quinta, Don Abel,
Estrada Real, Estrelas do Brasil, Generoso (desativada), Pirineus, Villagio Bassetti; 2006: Almaúnica;
2007: Batalha, Era dos Ventos, Kranz; 2008: Arte da Vinha, Bellavista Estate, Élephant Rouge, Quinta da
Figueira, Ravanello, Vicari, Villagio Conti, Wine Park; 2009: Camponogara, Guatambu; 2011: Leone di
Venezia, Villa Cristina; 2014: Negro Ponte Vigna, Vinha Unna; 2015: Casa Ágora.
Os critérios adotados para a escolha dessas empresas5 e dos entrevistados
seguiram algumas diretrizes que permitiram formar um painel representativo do que foi
o desenvolvimento da vitivinicultura na Serra Gaúcha, onde ainda hoje são elaborados
quase 90% de toda a produção vitivinícola brasileira. As empresas são originárias de
famílias italianas; são de diferentes portes em termos de volume de produção de vinhos;
são de diferentes localidades e foram criadas ao longo do século XX em diferentes fases
do desenvolvimento da vitivinicultura; as entrevistas sempre que possível foram feitas
com diferentes gerações de uma mesma empresa.
Um primeiro olhar sobre esses depoimentos nos permite perceber que dois marcos
temporais se destacam: a chegada dos imigrantes italianos na Serra Gaúcha, narrada como
uma saga heroica em que os pais fundadores plantaram as bases para a construção de uma
identidade que iria marcar as gerações seguintes, e a saída das grandes empresas
multinacionais compradoras de uvas, que deixaram a região no início dos anos 1990. Este
último fato colocou um grande desafio para aqueles agricultores que até então tinham se
dedicado prioritariamente à produção de uvas, e então decidiram passar a vinicultores,
isto é, produtores de vinhos.
No longo período intermediário entre aquele momento fundador e os anos de 1990,
as lembranças são difusas, sem exaltação de eventos que merecessem destaque. De toda
forma deve ser mencionada a valorização da memória, onde são elementos centrais a
imigração italiana e a importância das famílias.
3. Recortando o nosso objeto - os depoimentos selecionados
Para este trabalho selecionamos oito depoimentos de proprietários e diretores de
três importantes e representativas empresas produtoras com origem na cultura do vinho.
Isto significa que são empresas com proprietários oriundos da imigração italiana iniciada
em 1875, e que seus empreendimentos vitivinícolas se localizaram originalmente na Serra
Gaúcha.
As empresas selecionadas foram Miolo Wine Group, Grupo Famiglia Valduga
Co, e Lidio Carraro Vinícola Boutique. Os critérios utilizados para sua escolha foram o
tamanho da sua produção atual e sua estrutura de capital.
Uma empresa de grande porte tradicional de origem familiar que abriu seu
capital para investidores;
Uma empresa de médio porte de origem familiar que permanece sob o
controle da família;
Uma empresa de pequeno porte de origem familiar.
Os depoimentos coletados estão apresentados através dos relatos dos proprietários
das empresas e suas famílias, e nos permitem destacar alguns pontos bastante importantes.
3.1 - Um passado distante
5 Adolfo Lona Vinhos e Espumantes; Angheben Vinhos Finos; Boscato Vinhos Finos; Cooperativa
Vinicola Aurora; Dal Pizzol – Vinícola Montes Lemos; Instituto Brasileiro do Vinho – Ibravin; Lidio
Carraro Vinícola Boutique; Luiz Argenta Vinhos Finos; Grupo Famiglia Valduga Co; Miolo Wine Group;
Pedrucci Vinhos e Espumantes; Pizzato Vinhas e Vinhos; Viapiana Vinhos e Vinhedos; Vinhos Don
Laurindo; Vinícola Don Giovanni; Vinícola Salton; Vínicola Valmarino Vinhos Finos e Espumantes.
Partindo da premissa acima, procuramos identificar nas entrevistas realizadas com
gerações mais velhas e novas, que elementos eram fundamentais na recuperação do
passado. Foram marcas importantes dessas narrativas valores como disciplina, educação,
família, religião, trabalho. As leituras dos depoimentos de diferentes personagens nos
indicam como esses valores foram fundamentais para a construção de suas identidades
pessoais e a formatação dos negócios da família.
No relato de Juarez Valduga, presidente do Grupo Famiglia Valduga, sobre sua
passagem pelo seminário onde estudava para ser padre, podemos observar como são
importantes os valores da disciplina e família: “O que me fazia comportar assim, eu acredito, foi o fato da minha base, que é a família, ser de
simplicidade, modéstia, e trabalho. Foi isso que me orientou para o seminário. No seminário tinha muita
disciplina, mas eu já era disciplinado na família. E sou assim até hoje.”
A empresa Domno do Brasil, atualmente um dos pilares do Grupo Valduga, é
dirigida por Jones Valduga, um dos membros da geração mais nova da família à frente
dos negócios. Na sua entrevista verificamos como eram e permanecem fortes valores
como educação e trabalho:
“Nós tínhamos que trabalhar. Do céu, mal vinha chuva. Claro que na época do colégio a prioridade era
estudar. Estudar e trabalhar. A gente percebia que o nono Luiz mal sabia escrever o seu nome e sobrenome.
Daí o primeiro objetivo da família foi fazer o quê? Pegar os filhos e colocar para estudar no seminário. O
nono falava assim: “Primeiro vocês tem que estudar, porque eu não consegui; então eu quero que vocês
estudem.” Com certeza, os nossos pais nos deram a grande oportunidade de estudar e fazer um curso
superior.”
Tais conceitos são reforçados pelo depoimento de Alexandre Miolo, diretor
comercial do Miolo Wine Group, que ao relatar seu dia a dia na colônia evidencia como
eram importantes os valores da educação e do trabalho em toda a família:
“Todos da família trabalhavam direto na colônia desde pequenos. Nós morávamos próximo de onde é hoje
a vinícola, na Linha Leopoldina. Quinhentos metros para baixo, naquela estradinha. Ainda tem as casas
lá. Meu pai e meus tios moram atualmente na cidade de Bento e vão lá eventualmente. Mas era lá que
todos moravam. Nós estudávamos ali de manhã, ou de tarde, dependendo da série. Se estudássemos de
manhã, à tarde trabalhávamos na colônia; se estudássemos de tarde, trabalhávamos de manhã. Depois fui
estudar em Bento e mais tarde fui para Caxias. O trabalho era de roça mesmo. No vinhedo fazíamos a
poda, a colheita, os tratamentos fitossanitários. No mais, plantava-se milho, cana, e produzia-se todo o
necessário para nossa subsistência. E o principal negócio era a uva, que era onde se ganhava dinheiro.
Nós trabalhávamos, estudávamos, e para a realidade da época vivíamos bem.”
Em outra parte de seu depoimento Juarez Valduga evidencia como a família,
retratada nas figuras de seus pais, teve influência poderosa no seu comportamento de
homem, pai e empresário:
“Sobre meu pai eu diria que no fundamental fui muito influenciado por ele. Mas a minha mãe também me
influenciou muito. Eu diria que meus pais influenciaram no meu comportamento. Eles não falavam muito.
Faziam. Essa atitude deles provavelmente é a coisa mais forte que eu tive. Meu pai não precisava dizer
que tinha que trabalhar. Ele trabalhava. Ele não dizia que tinha que ser honesto. Ele era extremamente
honesto. Ele não foi um homem culto. Para mim ele era mais sábio do que culto.”
A fé religiosa se mistura com a vontade forte de se educar e a falta de recursos
para bancar os estudos. Em alguns relatos são citados os colégio de freiras e os seminários
como alternativas utilizadas para a educação. Vejamos o que diz Isabel Carraro, da Lidio
Carraro Vinícola Boutique:
“Quem realmente sustentou a família foi minha mãe, com a criação de vacas e com a viticultura. Ela é que
estava à frente de tudo, e não meu pai. Seu grande sonho era que os filhos estudassem. Eram seis filhos, e
ela conseguiu que os seis estudassem. Minha mãe tinha uma irmã freira que tinha um carinho muito grande
por nós. Uma vez por ano ela nos visitava e insistia com minha mãe para colocar os filhos nos conventos.
Era a única oportunidade de estudarmos. Eu confesso que fui felizarda, porque fui estudar como interna
no Colégio Sévigné, em Porto Alegre, com o objetivo de ser freira. Fiquei três anos lá, e depois fui
transferida para Montenegro, onde fiquei um ano. Passei minha adolescência pregando os valores
religiosos, mas enfim pude estudar. Na terceira série ginasial tomei a decisão de sair, e minha mãe me
apoiou, para continuar estudando em Bento Gonçalves. Trabalhei como doméstica para poder estudar e
ir atrás dos meus objetivos. Terminei como professora municipal, e com muita luta fiz dois cursos
superiores: um de artes plásticas e outro de administração escolar. Tive uma carreira muito boa como
professora. Fui diretora de escola por seis anos. Criei os meus filhos com esses mesmos valores. Sempre
estudando, ocupados, com atividades de cursos paralelos. Tudo o que eu ganhava investia na educação e
na subsistência da família. Desde o meu casamento foi assim.”
Ainda Isabel Carraro falando de seu avô, ao ressaltar sua fé em Deus, que ela
chama de valores absolutos da família que carrega consigo:
“Meu avô por parte de mãe tinha moinho e também trabalhava com comércio. Ele tinha um grande
bananal, além de vacas leiteiras. Vendia no comércio local, mas também fazia venda na beira de estrada.
Eu acho que herdei muita coisa dele, como alguns valores absolutos que hoje fico com a impressão de que
não existem mais [emocionada]. Como, por exemplo, ter muita persistência ao me lançar numa coisa, e
ter fé muito grande em Deus.”
Como podemos ver, todos os depoimentos, mesmo tratando-se de depoentes de
gerações diferentes e gêneros também diferentes, apresentam alguns elementos comuns,
em meio aos quais a valorização do trabalho, da disciplina e da determinação constituem
elementos importantes. No entanto, podemos perceber algumas nuances no que diz
respeito ao componente religioso quando se trata das gerações mais velhas, representadas
Isabel Carraro e Juarez Valduga, que tiveram experiências de estudos em conventos e
seminários. Já para os mais novos como Adriano Miolo, Jones Valduga e Alexandre
Miolo, que foram educados em escolas laicas, a religião tem peso pouco expressivo.
3.2 - Os desafios do presente
Outro ponto importante que os depoimentos selecionados nos evidenciaram foram
as visões do presente, em que sobressaíram elementos como trabalho, inovação,
planejamento, profissionalização, e a busca obsessiva da qualidade na produção vinícola.
Adriano Miolo, diretor executivo do Miolo Wine Group, em diferentes momentos
de sua entrevista realça a importância desses valores na empresa familiar tradicional que
se tornou uma das maiores da indústria vinícola brasileira; aqui ele relata a motivação
para estudar enologia como forma de evoluir na sua atividade: “O que me levou a estudar enologia foi o óbvio – vivi a vida inteira nos vinhedos com meu pai. Eu
imaginava que avançar queria dizer estudar para conhecer mais, mas sempre na viticultura.”
Ao falar da sua experiência nos contatos com as empresas multinacionais que
vieram para o Brasil na década de 1970, fica evidente sua fixação na educação e na
profissionalização: “Aquele meu tempo de quase quatro anos na Martini & Rossi foi a minha base de viticultura e de enologia.
Aprendi muito. Para um jovem recém-formado, chegar numa empresa top foi realmente muito importante.
Fez toda a minha formação básica. Mas como eu queria entender mais, crescer, decidi estudar em
Mendoza, porque na época não tínhamos escola superior de enologia no Brasil, só o curso da Escola
Agrotécnica. O curso superior mais próximo era Mendoza. Então fui para lá no finalzinho de 1988 e fiquei
até 1995. Foi bastante tempo, e, claro, completei a minha formação.”
Eduardo Valduga, diretor da Casa Valduga, onde divide o timão com seu pai
Juarez, é de uma geração posterior à de Adriano Miolo e seguiu trajetória semelhante na
sua educação e profissionalização, indo para Mendoza concluir os estudos antes de
assumir sua função atual no Grupo Famiglia Valduga: “Eu fui para Novo Hamburgo na Fevale, Faculdade do Vale, mas não gostei. Então resolvi apostar na
tradição familiar e fui fazer o curso de enologia. Quando deixei os outros sonhos, agarrei com unhas e
dentes o sonho da enologia. Despertou um interesse grande, um prazer enorme estudar enologia. E por
influência de outros profissionais brasileiros que já estavam indo para Mendoza – tinha quatro brasileiros
de outras empresas se destacando no mercado do vinho –, surgiu a ideia de aproveitar também essa
oportunidade.”
A obsessão pelo valor qualidade é constante na narrativa e na prática dessas
empresas. Há muito já tinham percebido que sem investimentos na qualidade não iriam
muito longe. Vejamos o que relata Adriano Miolo sobre o projeto de qualidade e o uso
de novas tecnologias ainda na pioneira Vinícola Miolo, anos antes da criação do Miolo
Wine Group: “A partir de 1998 começamos a investir num projeto de qualidade, iniciando pelos vinhedos. Já sabíamos
que com os vinhedos em “latada” não conseguiríamos alcançar aquela qualidade pretendida. Então,
começou a reconversão dos vinhedos de “latada” para “espaldeira” e também a importação de mudas.
Iniciamos a construção da nova vinícola, porque desde 1989 só tínhamos uma vinícola pequena.
Introduzimos tecnologias novas, como osmose reversa e concentração a vácuo.”
Seu irmão Alexandre Miolo também fala dos investimentos feitos em novas
tecnologias na execução do Projeto de Qualidade, como um importante e necessário passo
para melhorar a qualidade dos produtos, particularmente na produção dos vinhos brancos: “Investimos em muitos equipamentos de aço inox, como prensas pneumáticas, desengaçadeiras, tanques
com cinta e com controle automático de temperatura. Compramos os equipamentos mais modernos
daquela época. Quando fizemos o primeiro sauvignon blanc, o controle de temperatura do tanque de
fermentação era feito com uma mangueirinha e a água bem fria de um poço artesiano. Você consegue
imaginar isso? Ainda bem que era um tanque só de três mil litros. Era o possível naquele momento.
Resumindo, eu diria que o Projeto Qualidade consistiu fundamentalmente numa mudança radical na
viticultura para melhorar a qualidade das uvas, e na utilização de equipamentos modernos na planta
industrial.”
O relato se repete na fala de Juarez Valduga quando comenta o posicionamento
radical de sua empresa em relação à elaboração de vinhos tintos tranquilos nas safras mais
difíceis tão comuns na Serra Gaúcha: “Não faço o vinho. Mesmo se for um produto de grande sucesso de vendas, com o qual eu ganharia
dinheiro, mas perderia prestígio, eu prefiro não fazer. Porque lá na frente o consumidor exigente de hoje
irá me penalizar. Alguns produtos meus que inclusive pedem para voltar eu prefiro não fazer.”
Também no depoimento de Jones Valduga, da Domno do Brasil, verificamos que
os temas como profissionalização e qualidade já estavam presentes na geração de seu pai.
Aqui são citados por ele, que está sendo preparado para assumir o bastão, como motivo
de orgulho: “A vontade de evoluir no negócio e começar a fazer um vinho de garrafa com qualidade e com técnicas
modernas sempre esteve presente. O pai estudou e decidiram usar o conhecimento dele para crescer. A
Casa Valduga foi a primeira empresa do Vale dos Vinhedos a produzir em tanques de aço inox e conduzir
processos de fermentação a frio. Em 1988, a Valduga foi a primeira vinícola a utilizar tanques de aço
inoxidável no Vale dos Vinhedos.”
Ao falar da estratégia da Domno do Brasil de diversificação das atividades do
Grupo Famiglia Valduga, partindo para a importação de vinhos e o lançamento de vinhos
espumantes mais competitivos para vender grandes volumes, Jones chega a citar como
um problema a obsessão por qualidade:
“O foco é na qualidade. Não podíamos simplesmente abrir uma importadora e trazer qualquer vinho. Isso
poderia gerar problema com o posicionamento da Valduga de produtos premium. Então a filosofia sempre
foi fazer o melhor também na Domno. Quando iniciamos o projeto da Domno era para fazer produtos
competitivos para vender grandes volumes. Mas temos um problema porque sempre queremos melhorar
um rótulo, utilizar uma garrafa um pouco melhor. E nesse melhorar os produtos ficaram muito bons.”
As novas gerações que estão assumindo os negócios não têm dúvida de que a
qualidade é pré-requisito fundamental para a sobrevivência no competitivo mercado
brasileiro. Mas nem sempre foi fácil o diálogo com a geração dos seus pais, que ainda
participam dos negócios. A entrevista com Giovanni Carraro, filho mais novo de Lidio
Carraro, evidencia isto nas mudanças feitas nos vinhedos da vinícola para melhorar a
qualidade da uva:
“O plantio em espaldeira a gente já tinha adotado, mas o grande diferencial, e que mudou muito o
resultado, foi a forma de trabalhar a videira. A escolha do terreno ideal para o cultivo daquela variedade,
a variedade ideal para aquele terreno, a redução de produtividade por planta em determinados solos, e
para determinados vinhos, isso foi o fundamental para a gente dar um passo na diferenciação da qualidade.
Foi o que mais marcou a vida do Lidio, e as nossas vidas de modo geral. Como viticultor, produzir 10, 12
quilos de uvas por planta seria melhor, porque se ganharia mais. A visão preponderante era produzir mais
uvas por planta, e por hectare, por essa ser para muitos a única fonte de receita. E quando chegou o
momento da produção em espaldeira, em que seria necessário cortar ramos, cortar cachos, eu me lembro
que nas primeiras safras tínhamos que brigar com o Lidio. Mesmo ele querendo fazer diferente, isso o
machucava muito. Afinal era um fruto. Estava lá na planta, algumas vezes já estava ficando maduro, e a
gente cortava e jogava fora. Isso era inadmissível naquela época”.
O mesmo já tinha sido dito por seu irmão Juliano Carraro sobre a importância da
enóloga Mônica Rosseti, a quem seu pai ouvia nos momentos de maior resistência às
mudanças para melhorar a qualidade no vinhedo:
“Porque em família é diferente. Como é que um pai vai ouvir de um filho recém-formado que começou a
estudar viticultura ontem? Quer dar palpite no que eu faço a vida inteira? Nesse momento entrou a Mônica
com sua postura, porque o confronto maior era conosco. O Lidio tinha predisposição em ouvi-la sem entrar
logo numa discussão. Isso ajudou bastante. Na viticultura nós tínhamos mais experiência prática, mas ela
trouxe uma visão teórica fora da nossa realidade, que foi muito importante.”
Se os elementos trabalho, religião e família aparecem como relevantes quando o
foco é o passado, o que muda ou permanece quando os olhares se voltam para o presente
e para o futuro? Os depoimentos analisados continuam colocando o trabalho como um
valor fundamental, mas agora associado com a profissionalização e o planejamento para
conquistar um elevado padrão de qualidade nos negócios.
3.3 – No horizonte expectativas futuras
Um terceiro ponto que pode ser percebido na nossa leitura dos relatos refere-se à
forte crença no futuro, onde novas estratégias empresariais se tornaram o foco principal.
Valores como diferenciação, ousadia, qualidade, planejamento, profissionalização se
apresentaram como o núcleo básico de organização dos relatos.
Ao explicar como funciona a gestão com os diferentes acionistas no Miolo Wine
Group, Adriano Miolo nos dá insights sobre as intenções para o futuro: “Depois de realizada a estruturação, a empresa também se organizou para abrir seu capital. No futuro,
esperamos abrir para a Bolsa. Pelas análises que temos, não valeria a pena fazer isso agora. Mas de certa
forma já abrimos o capital. Os grupos RAR, Benedetti e Galvão Bueno hoje são acionistas da empresa.
Então, claro que a empresa tem um projeto. É o maior vinhedo do Brasil. Ninguém tem nada próximo dos
mais de 1000 hectares que nós temos. São quatro indústrias, mais de 500 funcionários. Essa empresa tem
que ter uma estrutura forte, inclusive de capital. E ela está organizada para isso.”
Quando perguntado sobre os projetos familiares para dar continuidade à trajetória
de sucesso do Grupo Famiglia Valduga, Eduardo, dirigente da Casa Valduga, demonstrou
preocupação com a profissionalização da gestão: “Em médio prazo o que nos cabe é organizar a família com a ciência da administração. Buscar as melhores
práticas para organizar a empresa em forma de uma sociedade que represente a organização familiar.
Encontrar a melhor forma de organizar as três famílias como uma empresa. Harmonizar e distinguir as
pessoas jurídicas e as pessoas físicas. Talvez seja preciso criar outras empresas, holdings, sociedades,
conselhos, corpo administrativo, corpo dirigente. Enfim, eu acredito que temos essa tarefa. O Jones se
quiser pode complementar. O longo prazo para mim é uma incógnita. A família começou com um pai que
criou a Luis Valduga & Filhos, passou para irmãos que chegaram ao grupo Famiglia Valduga Co. Agora
somos os primos, depois vêm os co-primos e por aí vai. Isso ficará cada vez mais complexo no quesito
envolvimento familiar. Então, cada passo da nossa geração terá que ser na busca de um profissionalismo
efetivo, e eficiente.”
Sobre o mesmo tema, o primo Jones Valduga, que administra a Domno do Brasil,
outra empresa importante do Grupo Valduga complementa:
“Foi uma sucessão de gerações que deram certo. Como eu falei lá no início, o meu avô sabia trabalhar
que nem um maluco, e só sabia assinar o nome dele. Meu pai e meus tios estudaram, construíram uma
empresa, acumularam um capital. E agora depende da nossa geração fazer a perpetuação e consolidação
do negócio. O negócio está consolidado. Mas, cabe a nós criarmos as condições para perenizá-lo.”
[emocionado]
Juliano Carraro, ao comentar como foi o processo decisório para a escolha do
vinho da Copa do Mundo de 2016, relata a postura de ousadia das vinícolas brasileiras,
que em 2011 corriam sérios riscos de perder a oportunidade para uma grande vinícola
chilena. No final a Lidio Carraro ganhou a preferência com a sua linha de vinhos Faces:
“Em 2011 participamos da Soccerex, que foi a Feira Internacional do Futebol, que aconteceu no Rio de
Janeiro, por ser o Brasil a sede da próxima Copa. Já estava certa a participação da Concha y Toro. Ela
seria a patrocinadora exclusiva da feira, e havia muitos boatos de que estava fechando com a Fifa para
elaborar o vinho oficial da Copa. Aí nós nos reunimos setorialmente num grupo de oito empresas – quatro
grandes e quatro pequenas – e assumimos um investimento para comprar uma grande cota dividida em
cinco cotas menores para tirar a Concha y Toro da Soccerex. Nós bancamos um espaço lá dentro para
mostrar o vinho brasileiro, porque embora não fosse uma feira da Fifa, era uma feira do futebol, e todo
mundo da Fifa estaria lá. Teria até um estande deles lá dentro. Então, nós fizemos isso e a repercussão foi
excelente. Eles concluíram que não fazia sentido fechar acordo com uma empresa de fora do Brasil, quando
aqui tinha vinícolas com vinhos ótimos.”
3.4 – O passado como estratégia para o futuro
Apresentada essa visão geral do conjunto de depoimentos, podemos perceber que
alguns dos elementos analisados ganharam mais relevância ao longo do tempo, enquanto
outros ainda, que se tenham mantido, perderam proeminência. De toda forma o leit motiv,
o elemento recorrente é o valor do trabalho associado à qualidade, planejamento e
profissionalização.
Dos oito depoimentos analisados podemos destacar a capacidade narrativa
apresentada com a organização e o encadeamento lógico dos discursos, enfatizando a
união familiar e a importância da imigração italiana como fator explicativo para a
dedicação ao trabalho. A valoração positiva das origens italianas e o vínculo estabelecido
com seu apreço pelo trabalho justificam por que o passado longínquo e o momento
fundador são sempre trazidos à tona como algo que reforça a identidade local. Os conflitos
e as discordâncias não aparecem como elementos importantes, e em contrapartida os laços
familiares ganham relevo. Nesse sentido merece destaque especial o depoimento o de
Isabel Carraro, não só porque é uma das poucas mulheres que deram depoimento para o
projeto, mas também porque se apresenta como tendo um papel central explícito na
empresa; nos demais depoimentos a presença das mulheres aparece como um pano de
fundo, como uma presença silenciosa.
Uma das formas de se firmar a identidade e a memória de lideranças, comunidades
e grupos políticos reside no cuidado com a preservação de sua memória. O passado é
importante, tanto como marca de uma atuação que vem se firmando ao longo do tempo,
quanto como referência para reflexões mais elaboradas sobre os caminhos que se pretende
seguir.
Como sabemos, os depoimentos orais são memórias que representam diferentes
versões do passado e expressam lembranças contraditórias, esquecimentos, distorções,
conflitos, e não podem ser tomados como relatos “verdadeiros” e “objetivos” sobre os
fatos narrados; mas ainda assim, e por isso mesmo, nos permitem o acesso a um rico
material e a informações pouco encontradas em outras fontes.
Os relatos obtidos se revestiram de grande relevância como chave para mapear
questões a serem pesquisadas num emaranhado de documentos dispersos e fragmentados.
Além de preencher muitas lacunas que a documentação escrita não consegue suprir, os
relatos orais são caminhos seguros e ricos para esclarecer as disputas e conflitos de
memórias, e para nos fornecer pistas para compreender as versões construídas sobre a
trajetória das empresas e famílias.
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