MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO: A REVISTA DO ENSINO DO ESTADO
DO RIO GRANDE DO SUL (1939 – 1942)
Carlos Augusto Ferreira Kopp
Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC
Resumo: Publicada entre os anos de 1939 e 1942, a Revista do Ensino do Estado do Rio
Grande do Sul foi uma importante plataforma de comunicação entre o Estado e os
professores gaúchos. Nesse contexto, o periódico irá constituir-se como o principal fio
condutor dos interesses estado-novistas, propagando e subjetivando os professores de
acordo com as diretrizes estabelecidas pelo Ministério da Educação e Saúde Pública.
Problematiza-se aqui como a medicina e a educação foram articuladas pelo Estado
visando a constituição de um novo corpo-espécie populacional, a partir de um
governamento biopolítico que teve como um de seus dispositivos a Revista do Ensino.
Palavras-chave: Medicalização da Educação; Revista do Ensino; História da Educação
Introdução
Este artigo visa problematizar o processo de medicalização da educação durante
os anos de 1930 e 1940 a partir da análise de artigos veiculados na Revista do Ensino do
Estado do Rio Grande do Sul, publicados entre os anos de 1939 e 1942. Nesse sentido,
problematiza-se aqui como a emergência do saber médico irá influenciar o campo
pedagógico, bem como, a medicalização da educação constituiu-se como um dispositivo
de governamento biopolítico do Estado.
Para tanto, este trabalho foi sistematizado em três seções. Na primeira delas,
discorro sobre a Revista do Ensino e seu papel como articuladora entre o discurso
pedagógico estado-novista e os professores gaúchos. O papel da imprensa pedagógica
enquanto propagadora da pedagogia “oficial” também é problematizado, na medida em
que através do discurso médico presente da Revista do Ensino, o Estado conduzia o
ensino público ao encontro de seu projeto de nação.
Na segunda seção do texto, traço uma breve trajetória do surgimento das teses
biodeterministas e sua chegada ao Brasil. Nessa direção, analiso aqui como estes
movimentos científicos irão influenciar o cenário político brasileiro desde a Primeira
República até o Estado Novo, sobretudo a partir da criação dos movimentos eugenista e
higienista, no início do século XX.
Na terceira e última seção do texto, analiso artigos veiculados na Revista do
Ensino. A análise dos mesmos será realizada a partir dos conceitos de medicalização,
biopolítica e governamento, desenvolvidos pelo filósofo Michel Foucault. Assim,
utilizando as ferramentas conceituais foucaultianas, procuro pensar nos números da
Revista do Ensino do Estado do Rio Grande do Sul como dispositivos de governamento
biopolítico, que tinham como objetivo agir sobre o corpo-espécie da população
brasileira.
I – A Revista do Ensino do Estado do Rio Grande do Sul
Criada por um grupo de professores gaúchos, a Revista do Ensino foi um
importante periódico pedagógico no cenário regional, tendo sido publicada em duas
fases: a primeira teve início em 1939 e durou até o ano de 1942. Nos anos 1950, a
Revista do Ensino volta a ser publicada, sendo editada até o ano de 1992. Para este
artigo, foram analisados apenas artigos da primeira fase da revista, devido ao contexto
político no qual ela estava inserida.
A Revista do Ensino foi o principal periódico da imprensa pedagógica gaúcha,
servindo como condutor do projeto educacional estado-novista e consolidando-se como
uma importante plataforma de comunicação entre o Estado e os professores gaúchos.
Assim, a Revista do Ensino veicula as ideias postuladas pelo Estado Novo, de
"reconstrução nacional" e "renovação educacional" (BASTOS, 1994). Essa função
“redentora” da educação apresenta-se no editorial do primeiro volume da Revista do
Ensino:
“Damos corpo e forma ao velho ideal de servir à
coletividade, colaborando [...] na solução do problema da
formação da inteligência nacional, obra da educação
organizada que se reveste de importância máxima
sobretudo na fase atual, caracterizada pelo nacionalista e
patriótico da reconstrução do país, e afirmação de sua
existência como nação livre e soberana no conceito
internacional” (REVISTA DO ENSINO, 1939, p. 7).
Cabe destacar também que apesar da iniciativa da criação do periódico ter
partido de um grupo de professores da Universidade de Porto Alegre, o mesmo contava
com o apoio da Secretaria de Educação e Saúde Pública do Estado do Rio Grande do
Sul, entretanto, tal apoio tinha apenas uma colaboração técnico-pedagógica da
Secretaria (BASTOS, 2005). A Revista do Ensino era financiada a partir da renda obtida
com assinaturas mensais e anúncios publicitários, que incluíam a divulgação de
livrarias, cursos, colégios, farmácias, lojas, entre outros.
Durante os anos de 1939 e 1942, a Revista do Ensino foi organizada em seções
diversas, que englobavam a divulgação de artigos oriundos de diferentes instituições de
ensino e áreas do conhecimento. Apesar do periódico ter como principal eixo de
circulação o estado do Rio Grande do Sul e divulgar principalmente as pesquisas e
resultados obtidos pelos professores da Universidade de Porto Alegre, o mesmo contou
com a colaboração de intelectuais de diversas áreas, incluindo, além de professores,
médicos, jornalistas, militares e padres.
As seções da Revista do Ensino atendiam necessidades diversas. A seção
“Consultas”, por exemplo, serviu como um importante eixo de comunicação entre os
docentes e a revista, onde os editores da Revista do Ensino respondiam perguntas e
buscavam auxiliar os professores na solução de problemas comuns, uniformizando
assim a prática destas soluções. A comunicação entre o periódico e as escolas também
era realizada de forma presencial, através de visitas realizadas pelos editores da revista
às instituições de ensino. Assim, além de construir uma relação mais próxima dos
professores e da realidade escolar, a Revista do Ensino divulgava as transformações e
experiências vividas por estes profissionais em suas escolas na seção “Nossas
realizações escolares”, incentivando outros professores e escolas com relatos positivos
que reforçavam a necessidade de renovação do ensino.
A partir da edição de número 10, a Revista do Ensino foi dividida duas partes,
uma dedicada à educação e outra à saúde. Os textos, escritos majoritariamente por
médicos e servidores do Departamento Estadual de Saúde, abordavam temas como a
identificação de sintomas de doenças, o ensino de hábitos de higiene, a criação de
ambientes escolares a partir de padrões sanitários, a alimentação saudável, entre outros,
transformando o professor em um aliado dos profissionais da saúde. A atuação conjunta
da educação e da saúde justifica-se na medida em que “a melhoria da raça brasileira era
considerada uma atribuição escolar, cabendo à escola formar o homem “novo” para o
Estado Novo” (BASTOS, 2005).
O periódico contava também com a seção “Legislação estadual e federal”, onde
eram divulgados decretos-lei e outros atos administrativos. A publicação destes
documentos atendia a necessidade de regulamentar e unificar politicamente as escolas.
Tomando os artigos da Revista do Ensino como corpus discursivo desta
pesquisa, faz-se necessária uma reflexão acerca do papel da imprensa pedagógica como
veiculadora de um projeto pedagógico e sua utilização enquanto dispositivo de
governamento biopolítico, bem como os movimentos científicos que serviram como
base na construção do projeto de nação estado-novista. Conforme Bastos:
a imprensa pedagógica é composta por jornais, boletins, revistas etc.
editados por professores, para professores, que contêm e/ou oferecem
perspectivas para a compreensão das representações da educação e da
escola, resgatando o discurso de uma época, analisando as ideias
veiculadas e sua trajetória no cenário educacional 1
Nesse sentido, a Revista do Ensino constitui-se como uma importante fonte no
que se refere à história da educação no estado do Rio Grande do Sul e também do
Brasil, visto que os artigos por ela divulgados compõe a pedagogia “oficial” e serviram
como condutores para os docentes e escolas gaúchos.
II – A “cura” do brasileiro: eugenia e movimento higienista
O século XIX foi marcado por uma série de deslocamentos no campo científico. O
desenvolvimento de teorias como o lamarckismo e o darwinismo foram fundamentais
para a quebra de paradigmas no que se refere à evolução dos seres vivos, sobretudo os
da espécie humana. Influenciado por esse contexto de ebulição das teorias
biodeterministas, o intelectual inglês Francis Galton desenvolveu sua própria “ciência”,
a qual batizaria de eugenia, que tinha como objetivo o aperfeiçoamento da espécie
1 BASTOS, 1997 apud GIL & MELLO, 2015, p. 2
humana a partir de intervenções que visavam seu aprimoramento genético. A eugenia
atendeu uma importante demanda política, na medida em que auxiliou os estados-nação
na construção de suas narrativas identitárias. Como nos aponta Schwarcz:
Transformada em um movimento científico e social vigorosos a partir
dos anos 1880, a eugenia cumpria metas diversas. Como ciência, ela
suponha uma nova compreensão das leis da hereditariedade humana,
cuja aplicação visava a produção de “nascimentos desejáveis e
controlados”; enquanto movimento social, preocupava-se em
promover casamentos entre determinados grupos e – talvez o mais
importante – desencorajar certas uniões consideradas nocivas à
sociedade (1993, p. 60).
Nesse sentido, para os adeptos desse movimento científico, a manipulação dos
genes através da intervenção eugênica (ou da proibição da miscigenação) resultaria no
surgimento de homens geneticamente superiores. A eugenia difundiu-se em diversos
países, destacando-se o projeto eugenista dos Estados Unidos, onde “a separação das
raças “superior” e “inferior” era sistema muito bem institucionalizado” (SKIDMORE,
1976, p. 45).
A influência do evolucionismo e a hierarquização das raças em mais ou menos
“evoluídas” também ecoou em trabalhos como a obra Ensaio sobre as raças humanas
(1855), escrita por Joseph Arthur de Gobineau (1816). Partidário de um determinismo
racial absoluto e favorável à condenação do arbítrio do indivíduo (SCHWARZ, 1993), o
Conde de Gobineau via a miscigenação como um problema, na medida em que a
mistura de etnias diferentes acabaria gerando seres degenerados. Em visita ao Brasil no
final do século XIX, Gobineau concluiu que o país estava fadado ao fracasso em
consequência de sua população miscigenada. Conforme Skidmore:
Malgrado o clima e os recursos naturais favoráveis, pensava
ele que a população nativa estava fadada a desaparecer, devido à sua
“degenerescência” genética. Com um pouco de curiosa matemática,
calculou que levaria “menos de duzentos” anos... o fim dos
descendentes de Costa-Cabral (sic) e dos emigrantes que os seguiram”
A única maneira de evitar esse dénouement seria, para a população
remanescente, o fortalecer-se com a ajuda dos valores mais altos das
raças européias... (1976, p. 46).
Nesse sentido, para os intelectuais europeus, o Brasil era uma nação cujo
desenvolvimento seria impossibilitado devido a sua composição populacional híbrida e,
segundo o biodeterminismo, degenerada.
A transição dos séculos XIX e XX foi um importante momento para o Brasil,
onde o país foi atravessado pelo fim do Império e da escravidão, estruturas seculares da
história brasileira. Esse contexto de rupturas foi fundamental para a inserção da
identidade nacional brasileira como uma das principais pautas da Primeira República.
Nessa direção, a figura do mestiço torna-se central em um país onde a população era
composta majoritariamente por negros e ex-escravos. A chegada das teorias
biodeterministas ao Brasil projetará novas luzes nas discussões acerca do que é ser
“brasileiro”. Reproduzidas pelas faculdades de medicina (destacando-se a produção
acadêmica da Faculdade de Medicina da Bahia e da Escola de Recife), as teorias
biodeterministas basilaram as discussões em relação ao mestiço enquanto problema
social brasileiro. Segundo Schwarcz:
Autores como Nina Rodrigues, da Escola de Medicina da Bahia;
Sílvio Romero, da Escola de Recife; e João Batista Lacerda, do Museu
Nacional do Rio de Janeiro, entre tantos outros, destacaram “as
mazelas da miscigenação racial” e, informados por teorias
estrangeiras, condenaram a “realidade mestiça local” (2001, p. 24).
Assim, sendo a miscigenação a origem das mazelas locais, o mestiço passa a ser
considerado um obstáculo civilizatório. A “recuperação” do povo brasileira só seria
possível através da extinção do mestiço, dando origem a uma série de medidas adotadas
pelo Estado com a finalidade de invisibilizar esta parcela da população através da
diminuição de sua representação nos censos com o incentivo à vinda de imigrantes
brancos ao Brasil. Schwarcz discorre que
paralelamente ao processo que culminaria com a libertação dos
escravos, iniciou-se uma política agressiva de incentivo à imigração
europeia, ainda nos últimos anos do Império, marcada por uma
intenção também evidente de ‘tornar o país mais claro’ (2001, p. 43).
A intelectualidade nacional vai, aos poucos, vendo a eugenia como a salvação
para o “problema” da miscigenação. Esse caráter salvacionista da eugenia estará
presente na criação das primeiras sociedades e ligas de eugenia do Brasil, como a
Sociedade Eugênica de São Paulo, fundada pelo médico eugenista Renato Kehl em
1917. O desejo de Kehl era de que o Brasil se povoasse de “gente sã e física
moralmente”, à exemplo da Grécia Antiga, que no seu entender havia encontrado o
equilíbrio do corpo e do espírito expressos na civilização ideal (DIWAN, 2013, p. 126).
Entretanto, apesar do número significativo de associações pró-eugenia fundadas no
Brasil, o Estado não elegeu a eugenia como prioridade nacional (SILVA, 2007, p. 47-
48).
A primeira metade do século XX representou um processo de “redescobrimento”
no que se refere à ideia de população brasileira. A partir da publicação das obras Os
Sertões (1902), de Euclides da Cunha, ou Urupês (1918), de Monteiro Lobato, o Brasil
passou a perceber-se como um país doente, cuja população vivia em condições de
abandono e baixa salubridade. Há deslocamento discursivo na medida em que a
população, antes considerada degenerada por consequência da miscigenação, passa a ser
percebida como doente devido a suas condições de vida. Nesse contexto, a inserção do
saber médico na esfera política tem por objetivo intervir não apenas nos indivíduos
doentes, mas na sociedade. A medicina social irá atuar na melhoria dos padrões de
higiene e sanitarismo através da reeducação da população e na prevenção de doenças.
Desenvolve-se, portanto, a crença de que a medicina e o saber médico entendem mais
sobre as ações humanas e seus fundamentos do que as próprias pessoas em questão
(OLIVEIRA, 2003, p. 3).
A Revolução de 1930 e a ascensão de Getúlio Vargas ao poder marcam um novo
contexto político brasileiro. A partir da criação do Ministério da Educação e Saúde
Pública inicia-se um amplo processo de medicalização da sociedade no qual a Medicina
e o Estado firmaram um compromisso de higienização das cidades e das populações,
pois o Estado reconheceu que a ordem e o progresso sociais dependiam da higienização
destas (ZUCOLOTO, 2007, p. 139). Nessa direção, a educação básica teve como função
educar os alunos a partir de padrões normativos estabelecidos pelo saber médico, que
visava transformar a população (até então degenerada) em um corpo-espécie saudável.
Este processo de medicalização da educação intensificou-se com a
implementação do Estado Novo (1937 – 1945), regime marcado pelo nacionalismo e
centralização do poder. O então Ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo
Capanema, foi responsável por uma série de reformas educacionais que visavam a
construção de novas escolas (agora construídas a partir de parâmetros sanitários), a
inserção de conteúdos relacionados à educação higiênica no currículo, a regulamentação
do tempo e da alimentação dos alunos, bem como, a criação da disciplina de Educação
Física. A escola passa a ser o campo de atuação de novos profissionais, principalmente
pela participação ativa de especialistas que intervinham no processo educacional e
foram essenciais para o controle da individualidade infantil; pois a inadaptação aos
padrões escolares não era um dilema a ser resolvido apenas pelos professores (VILELA;
BONTEMPI JR., 2008, p. 4).
A Revista do Ensino insere-se em um contexto de construção não apenas do
projeto de nação, bem como, da identidade brasileira. A publicação de artigos assinados
por médicos e outros profissionais da saúde evidencia a importância da articulação
conjunta da educação e da saúde na constituição de um “novo homem” brasileiro, agora
higienizado e apto ao desenvolvimento nacional.
III – A Revista do Ensino como dispositivo de governamento biopolítico
Tomando os volumes da Revista do Ensino do Estado do Rio Grande do Sul
como um dos dispositivos de governamento responsáveis pela propagação do projeto de
nação estado-novista, este artigo foi instrumentalizado por três conceitos de matriz
foucaultiana, sendo eles os conceitos de medicalização, biopoder (biopolítica) e
governamento. Nessa configuração teórica, é importante destacar que o conceito de
medicalização aqui utilizado perpassa questões mais abrangentes do que a utilização de
medicamentos por parte dos educandos, na medida em que envolve a inserção do saber
médico no discurso pedagógico, abrangendo assim um processo de medicalização da
sociedade. Segundo Cruz, Ferreira e Cardoso Jr.:
A partir dos estudos realizados por Michel Foucault (2001; 2006;
2010), podemos entender o processo de medicalização como uma
forma da medicina, através da utilização de um conjunto de
tecnologias e estratégias que irão determinar regras de higiene,
condutas morais e costumes sexuais, alimentares e de comportamentos
sociais, governar o modo de vida dos homens num processo de
disciplinamento dos corpos e de controle populacional biopolítico
(2014, p. 211).
O processo de medicalização aqui analisado irá compreender fenômenos que
envolvem a construção de um novo currículo (a partir da criação da disciplina de
Educação Física e a adição de temas relacionados ao asseio e à higiene nos conteúdos
previstos), a criação de escolas e espaços intraescolares a partir de parâmetros médico-
sanitários, compreendendo assim um arranjo discursivo que teve como objetivo o
desenvolvimento de um novo corpo-espécie populacional brasileiro. A importância do
saber médico no processo de constituição de sujeitos justifica-se na medida em que,
conforme Foucault:
A medicina é um saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre o
corpo e sobre a população, sobre o organismo e sobre os processos
biológicos e que vai, portanto, ter efeitos disciplinares e efeitos
regulamentadores (2005, p. 302).
Desta forma, a medicalização da sociedade procedeu-se não apenas pela
intervenção do médico em determinados lugares, mas pela incorporação dos referenciais
médicos na organização das ideias, na forma de se apreender o mundo (RODRIGUES,
2001, p. 94), passando assim a normatizar o comportamento humano.
O conceito de biopolítica foi desenvolvido por Michel Foucault no final dos
anos 1970, utilizado pela primeira vez na obra História da Sexualidade I: a Vontade de
Saber (1976), período no qual o autor ministrava aulas no Collège de France
(compreendidas posteriormente nos livros Em Defesa da Sociedade e Segurança,
Território e População). Este conceito refere-se a um deslocamento nas técnicas de
poder, cujo “debloqueio” só ocorre no século XVIII, correlato à invenção do conceito
de população (VEIGA-NETO; LOPES, 2007). Como nos aponta Judith Revel,
a fim de governar não somente os indivíduos por meio de um
certo número de procedimentos disciplinares, mas o conjunto
dos viventes constituídos em população: a biopolítica - por
meio dos biopoderes locais - se ocupará, portanto, da gestão
da saúde, da higiene, da alimentação, da sexualidade, da
natalidade etc., na medida em que elas se tornaram
preocupações políticas (2002, p. 26).
Nessa direção, o biopoder é centrado na manutenção e na promoção da vida dos
sujeitos, compreendidos agora como um único corpo-espécie. O biopoder tornou-se
uma possibilidade no momento em que os habitantes de um território passaram a ser
governados enquanto população. Isso ocorre porque o biopoder
centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela
mecânica do ser vivo e como suporte dos processos
biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o
nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas
as condições que se podem fazê-los variar; tais processos são
assumidos mediante toda uma série de intervenções e
controles reguladores: uma bio-política da população
(FOUCAULT, 2013, p. 152).
Compreendida como um único corpo-espécie, a população passa a ser analisada
e qualificada a partir de índices quantitativos, como taxas de natalidade e mortalidade
ou cálculos de probabilidade enquanto medidas de prevenção. O surgimento da
estatística auxilia o governamento biopolítico, pois, conforme se intensifica o
conhecimento da população pelo Estado, intensifica-se seu governamento.
O conceito de governamento aqui utilizado tem como objetivo designar todo o
conjunto de ações de poder que objetivam conduzir (governar) deliberadamente a
própria conduta ou a conduta dos outros ou, em outras palavras, “que visam estruturar o
eventual campo de ação dos outros” (LOPES; VEIGA-NETO, 2007, p. 952).
Assim, compreendo a medicalização da educação como um fenômeno oriundo
da biopolítica que, sustentado pelo saber-poder médico irá acentuar o governamento da
população a partir do estabelecimento de normas de saúde, o controle do
desenvolvimento dos corpos, transformações no espaço físico escolar, bem como, a
implementação de um novo currículo.
Nessa configuração teórica, lançando a Revista do Ensino do Estado do Rio
Grande do Sul como um dispositivo de medicalização da educação, os enunciados
presentes nos artigos por ela divulgados inserem-se em um processo de governamento
biopolítco dos corpos, visto que a partir deles o Estado construía novos regimes de
verdade acerca da escola “saudável”, os parâmetros que iriam qualificar os alunos
enquanto normais ou anormais, bem como, os procedimentos a serem adotados pelos
professores na identificação de doenças ou problemas no processo de escolarização e
asseio. Destarte, o problema da escola não é apenas o combate direto ao analfabetismo.
Tem uma direção muito maior dentro dos seus postulados de ação formativa da
nacionalidade (REVISTA DO ENSINO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL,
1940, p. 5).
A importância da Revista do Ensino como condutora do projeto de nação estado-
novista no Rio Grande do Sul já aparece no editorial do primeiro volume do periódico,
lançado em setembro de 1939:
Através das nossas secções – Doutrinária, Legislação,
Transcrições, Informações, Consultas – nos integraremos
dentro dos problemas comuns que enfrenta o professor, para
trazer-lhes os resultados das pesquisas dos técnicos
especializados, as normas legais interessantes ao ensino,
observações e conclusões de inquéritos, iniciativas
aconselháveis e para esclarecer suas dificuldades (1939, p. 2).
Apresentando-se como um periódico pedagógico e de divulgação científica, a
Revista do Ensino exerceu a função de dispositivo normatizador do Estado, visto que o
conhecimento por ela divulgado era concebido como “especializado”, ou seja, como
verdadeiro.
No artigo Higiene Mental da Criança, também do primeiro volume da revista, o
professor Raúl Moreira aponta para a importância do saber-médico na educação:
3º) Cabe ao médico pediatra estabelecer os princípios da harmonia,
resultante do laço íntimo entre a higiene mental e educação. No seio
das famílias, no contacto da clínica, no interior das escolas, pode
exercer a nobre missão de sondar os tipos normais e separar os que
necessitam assistência especial àparte (1939, p. 26).
Destaca-se aqui o papel atribuído ao médico pediatra na classificação dos alunos
entre normais e anormais (referido no artigo como “missão de sondar”), regulando
assim os discentes que necessitariam de uma assistência “especial”. Além disso, o
professor defende a atuação do médico dentro do ambiente familiar, legitimando assim
a interferência do saber médico na esfera privada.
Na edição de outubro de 1939, o Departamento Estadual de Saúde assinou o
artigo Alimentação do pré-escolar. A importância da nutrição no desenvolvimento
saudável dos corpos é reforçado pelo órgão público, que visa corrigir problemas como o
número ideal de calorias por refeição, a preparação higiênica dos alimentos, bem como,
a mastigação correta. Conforme o Departamento:
Mães e Mestres devem empenhar-se em estudar os problemas
transcendentais da alimentação e portanto da saúde.
Homens e mulheres fortes, robustos e sadios só poderão ser
aqueles que vieram desde a infância alimentados racionalmente num
ambiente higiênico.
Dai um tipo racial à altura de um país privilegiado como o
nossos (1939, p. 127).
O papel da educação sanitária (ou higiênica) no desenvolvimento nacional volta
a ser evocado uma vez que, pela nutrição, o brasileiro viria a tornar-se um “tipo racial à
altura”. A participação da família é novamente referida através da figura da mãe,
responsável pelo crescimento sadio de sua prole. O papel da educação no
desenvolvimento racial do Brasil é novamente abordado no artigo A Educação Física
Infantil: um fator de saúde, escrito pelo Capitão Olavo Amaro da Silveira e publicado
na edição de janeiro de 1940 da Revista do Ensino:
O ritmo do corpo é paralelo, por sua vez, ao ritmo da alma.
Da disciplina física, que se consegue pela educação física científica,
resulta portanto um benefício para a educação psíquica.
Assim sendo, é fácil compreender o papel que a educação
física ocupa como fator de saúde na criança, protegendo-a contra os
efeitos das doenças da civilização, que se originam da fraqueza geral,
ao mesmo tempo que, aprimorando suas qualidades físicas e morais,
prepara-a para tornar-se o futuro cidadão, forte e equilibrado, orgulho
de uma raça (1940, p. 36).
Influenciada pelos exércitos e pelo movimento eugenista, a disciplina de
Educação Física surge para atender a “necessidade” de desenvolvimento racial
brasileiro. Através de movimentos seriados, a disciplina intervia diretamente no corpo
(através do seu crescimento muscular) e na alma (através de su disciplinamento) dos
discentes.
O processo de medicalização da educação transformou também o espaço escolar.
Com o objetivo de construir uma escola saudável, o Estado passa a criar ambientes
escolares a partir de pressupostos médicos. Esta preocupação foi tema do artigo Em prol
da saúde de nossas escolas, também da edição de janeiro de 1940:
Como o problema máximo desta questão é a higiene dos
prédios escolares, o Governo do Estado, em seu ótimo plano de ação,
determinou construções novas para todos os grupos escolares de sede
de município.
(...)
Há muito vem se agitando o magistério público para obter uma
reforma no mobiliário escolar, porque “a boa postura é o resultado de
um melhor ajustamento, primeiro das várias partes do corpo entre si e,
segundo, do corpo, como um todo, ao seu meio ambiente, ocupação ou
trabalho”; e assim sendo, não se concebe uma carteira igual para
alunos de altura diferente (1940 p. 37-38).
A preocupação com a arquitetura dos ambientes escolares aparece também no
artigo Refeitório Escolar, escrito por Bonifácio Costa, diretor do Departamento
Estadual de Saúde em janeiro de 1941. O refeitório deveria servir como um espaço
pedagógico de promoção da educação higiênica, suplementando a alimentação
incompleta do lar e corrigindo os chamados “desvios de dietas”. Neste artigo, o papel
do professor e da família como responsáveis no crescimento sadio das crianças é
novamente apontado:
A articulação da ação da professora com a dos pais não
poderá deixar de ser harmônica.
Ambos devem ter conhecimento do que se passa na escola e
no lar, dos recursos da assistência escolar e do lar. Só assim será
eficiente o amparo moral e material à criança. O conhecimento da
ficha social do aluno por parte do médico escolar ou do médico do
dispensário de higiene da criança dos Centros de Saúde ou Postos de
Higiene, por sua vez, permitirá indicar as necessidades do alimento a
ser distribuido pelos diferentes grupos de alunos de acôrdo com as
idades, as suas condições e suas possibilidades domiciliares (COSTA,
1941, p. 98).
Ao adotar a ficha do aluno como critério de assistência, o Estado está utilizando-
se de um dispositivo biopolítico de governamento, uma vez que, através da análise dos
dados coletados pelas escolas, passa a governar os educandos a partir da promoção de
sua saúde.
O artigo Como compreendemos a higiene escolar, escrito pelo Dr. Radagásio
Taborda e publicado na edição de janeiro de 1941. Neste artigo, o médico relata sobre a
situação das escolas gaúchas, a partir de visitas realizadas pelo Departamento Estadual
de Saúde. Além da realização de exames, tais visitas serviam para a distribuição de
medicamentos e verificação das condições de salubridade das instituições. Taborda cita
também a receptividade da educação higiênica nas escolas, onde os alunos organizavam
grêmios de saúde, peças de teatro, exposições de trabalhos sobre higiene, bem como,
um “Concurso de Asseio”. Conforme Taborda:
Quão diferentes essas escolas, parcelas concientes duma
organização de finalidades de tamanho alcance, das velhas aulas de
ensinar a lêr, escrever e contar, cuja feição se deixava ao critério das
mestras, quase autócratas. Células vivas do que vai ser o Brasil de
amanhã, numa organização assim, já se vê, há lugar, se acolhem, até,
de braços abertos, todos quantos, informados dos mesmos ideais, se
apresentam portadores de contribuição mínima que seja, à maior
eficácia dos empreendimentos e realizações. Fôra absurdo imaginá-las
em tôrres de marfim! Com o repentino surto do que é, hoje, a Escola
Primária no Rio Grande do Sul, coincidiu, em boa hora, êsse climax
de atividades do Departamento Estadual de Saúde. De seu programa
consta, com relêvo primacial, a Propaganda e Educação Sanitária
(1941, p. 101).
Nesse sentido, fica evidente a participação dos profissionais da saúde nas escolas
e como houve uma transformação na rotina escolar, agora atravessada pelo saber
médico. Apesar dos artigos aqui destacados referirem-se sobretudo às escolas gaúchas, é
possível identificar que o processo de medicalização da educação ocorreu em nível
nacional, pois o desenvolvimento do país (e não apenas do Rio Grande do Sul) e
frequentemente evocado. O destaque do papel da família (sobretudo da mãe) na criação
de seus filhos evidencia também a penetração do discurso médico na esfera privada,
interferindo cada vez mais na vida dos sujeitos e atingindo assim o objetivo do Estado
Novo em constituir uma população mais higienizada.
Considerações Finais
Ao assumir a presidência em 1930 e criar o Ministério da Educação e Saúde
Pública, Vargas deu início a um processo de reeducação da população baseado no saber
médico com a finalidade de “curar” o homem brasileiro. Esse governamento dos corpos
intensifica-se com durante o Estado Novo, a partir de 1937. É nesse contexto que os
professores da Universidade de Porto Alegre criam a Revista do Ensino do Estado do
Rio Grande do Sul. O discurso médico vai influenciando cada vez mais a pedagogia
propagada pelo periódico, atuando nas escolas seja a através do seu espaço físico, na
constituição curricular ou examinando seus alunos.
Cabe destacar também que a Revista do Ensino, enquanto dispositivo de
governamento, insere-se em um amplo processo de medicalização da vida. A literatura
dos almanaques de saúde, cartilhas de higiene ou até mesmo a popularização de
produtos como o Biotônico Fontoura revelam uma sociedade que passa a valorizar cada
vez mais a busca pela saúde.
A educação vive hoje o paradigma da proliferação de diagnósticos e utilização
de medicamentos como medidas corretivas do comportamento indesejado por parte dos
discentes. Os estudos que visam compreender esse processo vem se intensificando,
denunciando assim os efeitos negativos da medicalização da educação. Conforme Cruz,
Ferreira e Cardoso Jr.:
Com efeito, os movimentos de resistência, que
ganham força na luta contra o modelo biomédico hegemônico
que dissemina discursos e práticas psicopatologizantes,
também começam a intervir no âmbito político com a
constituição de novas estratégias e dispositivos críticos e de
enfrentamento aos processos de psiquiatrização do social
(2014, p. 228).
Desta forma, lutar contra o processo de medicalização da educação só é possível
a partir do estabelecimento de outros paradigmas, centrados em um saber que não
preciso ir ao encontro do discurso médico e os enunciados por ele legitimados por
periódicos como a Revista do Ensino.
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