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Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil
MEMRIA E CRIAO NO SERTO DA BAHIA:RELATO DE UMA EXPERINCIA COM PROFESSORES EM FORMAO
Giovana DantasInstituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia da Bahia
RESUMO
Este artigo relata a construo e a aplicao da oficina Processos Criativos, que foirealizada com professores da rede estadual de ensino da cidade de Senhor do Bonfim eregies vizinhas, que esto cursando Licenciatura em Artes pelo PROESP um programada Universidade do Estado da Bahia para qualificao docente. Existiam princpios eobjetivos especficos a serem cumpridos, mas o xito do trabalho dependeria tambm deativar nos alunos fatores como percepo, sensibilidade, imaginao criativa, acolhimento
dos acasos, ateno s pr-disposies internas e pesquisa de materiais disponveis. Oobjetivo era fazer com que cada professor em formao vivenciasse seu prprio processode criao e desenvolvesse um produto artstico. Todos os trabalhos foram individualmenteorientados.
Palavras-chave: professor-formao-processo criativo
ABSTRACT
This article reports on the construction and implementation of the workshop "Creative
Processes" for teachers in state schools in the city of Senhor do Bonfim and neighboringareas who are pursuing a Bachelor in Arts from PROESP a program of the University ofBahia for teaching qualification . There were principles and specific goals to be achieved, butthe successful outcome also depended on the development of perception, sensitivity,creative imagination, openness to contingent events, emotional self-awareness, and theability to explore available materials. The goal was to help every teacher in training live his orher own process of creation and develop an artistic product. All projects were individuallysupervised.
Keywords: teacher-training-creative process
INDAGAES SOBRE UMA OFICINA DE CRIAO
Viajei algumas vezes ao serto da Bahia em 2009, especificamente para a cidade de
Senhor do Bonfim. Levava na bagagem a tarefa de ministrar o mdulo Processos
Criativos para uma turma de Licenciatura em Artes do PROESP um programa de
qualificao de professores da Universidade do Estado da Bahia, que possibilita a suagraduao, fazendo com que se atualizem nas suas respectivas reas de atuao.
Pelo caminho de asfalto cortando a terra seca, ia refletindo sobre o perfil da turma que
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me aguardava. Mirava a paisagem buscando uma justa e necessria aproximao com
as diversas cenas, da natureza, ou de pessoas que iam mostrando seus afazeres,
enquanto passavam por mim. A construo da metodologia de uma disciplina como
esta, tambm concebida como processo. Existiam princpios e objetivos especficos a
serem cumpridos no programa, mas o xito do trabalho dependeria de conseguir ativar
nos alunos fatores como percepo, sensibilidade, imaginao criativa, acolhimento
dos acasos, ateno s pr-disposies internas e pesquisa de materiais disponveis.
Naquele momento, eu viajava e refletia sobre esta tarefa. Resolvi, ento, que a
abordagem dos contedos deveria acontecer atravs de uma linguagem simples e
precisa, criando inicialmente um campo de compreenso sobre os possveis caminhos
a se seguir para a construo da obra de arte, e isto implicava tambm conhecer umpouco da sua histria, dos seus conceitos, tcnicas, elementos construtivos, sua leitura
e suas manifestaes contemporneas etc. Esbocei uma ementa inicial, que
propiciaria uma reflexo acerca do processo de criao como uma rede de relaes,
cujo percurso englobaria diferentes fases. O objetivo era fazer cada professor em
formao vivenciar o seu prprio processo, de modo que desenvolvesse um produto
artstico, ao mesmo tempo em que deveria refletir sobre os conceitos relativos ao tema,
investigar autores, estudar alguns casos. Vi que seria importante focar uma atenoespecial nas possibilidades tcnicas, materiais e simblicas que se ofereciam ao
trabalho que seria desenvolvido naquela regio. Outro ponto a ser observado era a
experincia pessoal de cada pessoa do grupo, como tambm as suas imagens
coletivas. Ainda inseri no programa o exerccio da reflexo sobre a experincia do
processo criativo atravs da elaborao de um memorial, e aulas expositivas para a
compreenso da emergncia de sistemas artsticos. Lembrei da necessidade de
abordar questes relativas transdisciplinaridade, s motivaes poticas vindas deoutras reas de conhecimento, e constatei que estava diante de um desafio. Sabia que
parte do contedo viria no fluxo da prpria construo do conhecimento que se daria
ao longo daqueles dias, por isso deixei um espao de tempo em aberto, algumas
pginas em branco neste caderno de anotaes.
O PERFIL DA TURMA
A turma era formada por professores do estado, que atuavam nas escolas deSenhor do Bonfim e de regies vizinhas. Estes no possuam qualquer referncia de
contedo artstico, com raras excees. No conheciam museus, galerias de arte;
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no possuam repertrio em arte, nem noes do sistema no qual circula a produo
artstica. Tive que partir quase do zero.
Minha primeira ao foi tentar descobrir o que seria arte na sua viso. Percebi que amaioria deles tinha uma nica resposta o objeto de arte como algo bonito e agradvel.
Muitos falavam do artesanato. Nada sabiam sobre processo criativo e, na verdade,
esperavam que o curso oferecesse algumas novas tcnicas para aplicao imediata em
sala de aula, compondo o contedo passado para seus alunos, como vem ocorrendo
nos programas de qualificao de docentes em arte, nos quais o aprendizado se d de
forma fragmentada, sendo centrado exclusivamente na prtica, ou na tcnica, sem
nenhum tipo de reflexo. Para estes professores em formao, a concepo do
produto artstico dependeria da famosa inspirao, da habilidade conquistada ou de um
dom divino. Percebi que havia resistncia em relao proposta, pois os objetivos do
curso estavam bem distantes das expectativas ali reveladas. No entanto, alguns alunos
afirmaram compreender a arte como sendo uma possibilidade de expresso de idias e
sentimentos, e a tive um ponto de partida. Pedi que falassem mais sobre o que seria
arte. Discutimos a no necessidade da obra acabada, ou que agradasse. Falamos
sobre a obra que no se enquadrava nos padres tradicionais de beleza, sobre a
instituio que a abriga, sobre o no compromisso do uso utilitrio ou decorativo da
obra de arte. Vi muitos olhares surpresos ao se depararem com exemplos da arte
contempornea durante as projees de imagens. Procurei, ento, diversificar o modo
de passar os contedos aplicando aulas expositivas com material visual, propondo a
discusso de textos previamente indicados para leitura, promovendo uma exposio
participativa, abordando tpicos relativos linguagem artstica passando por diferentes
pocas e contextos culturais. Como prioridade da exposio do contedo geral, tive o
cuidado de trazer para discusso a questo da espacialidade na pintura e,
posteriormente, das novas configuraes espaciais da arte contempornea, como
tambm questes relativas percepo visual e ao processo criativo em especial.
DIRECIONAMENTOS INICIAIS
A experincia da arte no processo de ensino aprendizagem contempla aes que
passam pela fruio e construo da obra, e pela sua reflexo, integrando diversos
aspectos que devem ser abordados atravs de conexes mltidirecionais, com
interpenetrao de contedos, que no se alinham necessariamente nesta ordem,
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mas estabelecendo ligaes em rede. Lembro que na leitura da obra de arte certas
aes so convocadas, como: a apreciao livre da obra; a investigao dos seus
elementos e tcnicas; o contexto no qual aquela manifestao est inserida; a
relao da obra visual com textos literrios, msica, teatro, e outras reas do
conhecimento, sem permitir, claro, que a obra seja usada apenas como ilustrao.
Quanto construo artstica (processo criativo), pode ter seu ponto de partida nas
provocaes poticas, estmulos de curiosidade, em situaes de estranhamento.
Pode-se tambm promover o estabelecimento de relaes, causais ou no, que
incluam situaes do campo da arte, tomando referncia de imagens do cotidiano e
da experincia vivida pelo aluno. necessrio incentivar a experimentao de
materiais, a liberao da imaginao criativa, colher informaes, permitir sensaesque colaborem com o agenciamento do processo criativo.
O memorial descritivo do trabalho, por sua vez, tambm deve ser concebido como
processo. Na verdade, ele um texto autnomo, cujos parmetros estticos de sua
construo e fruio podem at estar desvinculados da obra realizada. Como objeto
em processo, sua escrita no pode ser concentrada aps a finalizao do trabalho.
Alm de possuir significado prprio, o memorial colabora com a compreenso tanto
do resultado individual quanto do resultado em grupo daquela realizao, revela
como se conectou contedos diversos no decorrer do processo. Tambm vale a
pena refletir sobre os modos de exposio do trabalho realizado, o planejamento da
expografia, o projeto do material grfico de divulgao etc. Todos os links possveis
vm colaborar com a expanso do conhecimento, com o contexto de aplicao dos
processos criativos no ambiente de ensino e aprendizagem. Todos esses pontos
significavam um diferencial, pois a oficina se destinava a um grupo de professores,
que deveria saber reproduzir em sala de aula no s o conhecimento adquirido, mas
todo o aprendizado da construo.
CONTEDOS ABORDADOS
A maior parte das questes levantadas nas diversas reas que discutem aspectos e
conceitos das artes visuais est relacionada ao envolvimento do espectador com o
objeto artstico. Conhecer as variaes existentes na concepo da espacialidade no
campo da arte colabora com a sua compreenso e a sua leitura, proporciona o
conhecimento de seus novos artistas e obras, alimentando um repertrio artstico.
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Por este vis tambm possvel entender as mudanas que vieram com as
modificaes tcnicas, a questo do belo na arte, a valorizao do processo e do
inacabado. Esta base de conhecimento tambm incentiva o projeto criativo, pois
esclarece sobre as novas formas expressivas da contemporaneidade. Segue um
breve resumo do contedo central dado e discutido no curso, e que foi
acompanhado por um extenso material visual, para exemplificar a diversidade das
produes artsticas e promover uma introduo histria da arte.
O espao plstico na pintura, na escultura, na instalao, na fotografia e no cinema, ou
seja, no campo das artes visuais em geral, tem sido concebido com o propsito de
envolver o espectador, fazendo-o interagir com a obra e modelando, assim, a
qualidade da experincia que emerge da sua relao com esta. Por este motivo, o
estudo do espao vem sendo alvo de constantes reformulaes nas prticas e teorias
estticas contemporneas. Ao se abordar o termo "pintura", no entanto, devem ser
consideradas todas as modificaes que sofreu e sua hibridizao com outros gneros
artsticos. A pintura, como meio de expresso simblica, alm de ter cdigos
diferenciados nas vrias culturas do planeta, ao longo da histria, no permaneceu
esttica nas suas concepes tcnicas e estticas. A construo de uma espacialidade
na pintura j se verifica a partir do seu nascimento, ou seja, no Paleoltico Superior da
Pr-Histria (30.000 a 10.00 a.C.). O desenho da "mo em negativo" nas paredes das
cavernas, uma das primeiras manifestaes da imagem na histria da humanidade,
possui a sua referncia de espacialidade. O contato direto do corpo do artista com o
suporte ( a pedra) deixa documentado no s a imagem, mas tambm o gesto. Essa
experincia, que entrelaa o sujeito criador e a obra, se aproxima, em termos de
conceitos espaciais, da prpria arte moderna e contempornea, em que o valor
esttico do objeto depende, e muito, do processo e do mtodo da sua construo. O
envolvimento corporal que o artista mantm com seu objeto nesse tipo de pintura, nos
remete a procedimentos da arte do sculo XX, como por exemplo, ao trabalho de
Jackson Pollock. Ele pinta atravs de movimentos impetuosos, anda sobre a tela,
aplicando a tinta num ato quase dramtico, utilizando-se do seu deslocamento corporal
sobre esse suporte, onde ele, o seu corpo e a sua emoo influenciam os resultados
da sua pintura. O contato dos alunos com o trabalho de Pollock acentuou a velha
indagao: Isto arte? Foi um bom incio, e uma brecha para falarmos deperformance, pintura gestual, arte abstrata, processo etc.
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A idia da pintura como representao mimtica da realidade, que oculta as
convenes de sua construo, faz parte de uma tradio que se inicia no
Renascimento e se estende at o sculo XIX. Essa idia vai ser contestada pela arte
moderna. A representao espacial na pintura, que tem como princpio a perspectiva
geomtrica, passa por significativas transformaes no incio do sculo XX. Iniciar o
aluno no exerccio de ver a pintura e no s o que ela representa uma das grandes
dificuldades na formao de professores em arte. Em geral, a disciplina solicitada
para ilustrar outros assuntos como de histria, geografia, sem haver o mnimo de
esforo para que se concretize a leitura da imagem, de modo que este texto visual
possa colaborar com a construo do conhecimento. De fato, a perspectiva confere ao
espao a iluso do real, mas no podemos esquecer que se trata de uma visohistrica, ou seja, uma mera conveno para compreenso do espao naquele
determinado contexto social. A criao da perspectiva linear no Renascimento italiano
foi um processo complexo, que se estendeu por sculos. Cada perodo desenvolve seu
prprio mtodo de "ver" o mundo, seja sob influncia cientfica, tecnolgica ou religiosa.
A arte barroca, por exemplo, abandona o esquema de viso esttico, racionalizado e
preso a um ponto central e fixo, quando introduz o princpio formal da concha como
possibilidade compositiva. O ponto de fuga se desloca para fora do centro, fora doquadro, ou at se multiplica, criando assim instabilidade e ambigidade na composio.
O universo torna-se assimtrico, irregular, dinmico e autnomo. Para exemplificar
estes dois conceitos de espacialidade, apresentei aos alunos duas pinturas citadas por
Fayga Ostrower (1991), que mostram as imagens da ltima Ceia, de Leonardo da Vinci
e a de Jacopo Tintoretto. Nesta, a posio de Cristo entre os discpulos, deslocado para
a lateral, dinmica, faz parte de uma viso geral em que Tintoretto descentraliza todo o
espao figurado, introduzindo eixos diagonais, e desloca os pontos de fuga para oslados, submetendo assim o espao a uma movimentao transversal. Se nos quadros
de Leonardo da Vinci o universo visto como um invlucro simtrico e regular, cujas
tenses espaciais so contrabalanadas por ritmos, em Tintoretto o universo assume
forma assimtrica, irregular, acelerando-se em recuos diagonais e fortes tenses.
Partindo da leitura destas imagens, consegui abrir um espao de curiosidade e
investigao da arte nos perodos do Renascimento e do Barroco. Mesmo que eles
ainda no dominassem este contedo, a pedra de curiosidade havia sido lanada.
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A representao do espao com base na perspectiva geomtrica alcana sua
automatizao com o advento da fotografia, quando a pintura perde a sua funo
primordial de retratar o mundo e comea a sofrer uma profunda modificao nas
suas bases estticas, comparvel s mudanas que a perspectiva linear dos sculos
XV e XVI tambm provoca na forma de perceber o universo. Neste momento,
introduzi na explanao os trabalhos de Czanne e Van Gogh, preparando os
olhares para a arte moderna. A pintura moderna no mais opera com a iluso de
profundidade, mas emprega vrios meios que indicam outros princpios de
espacialidade, como o uso constante das superposies, rebatimentos,
transparncias, deformaes, gradao de tamanho, de tonalidade, diluio da
figura. No sculo XX tambm aparecem as instalaes, performances, land art,intervenes, e as mais diversas maneiras de inserir o espao na construo
artstica. Apresentei para a turma alguns artistas e obras.
As aulas aconteceram sempre com espao aberto para as indagaes, e no foram
poucas. Houveram muitos estranhamentos, mas no final, perceberam que naquele
momento se abria um mundo de possibilidades na construo do objeto artstico.
Seus olhos brilharam.
O PROCESSO ARTSTICO
No terceiro dia de aula iniciei a orientao para a construo de um trabalho prtico,
que seria finalizado no prximo encontro. Conversei individualmente com cada um
deles, com o objetivo de fazer aflorar experincias, imagens, incmodos que
pudessem ser transformados em ganchos poticos. Os alunos foram incentivados
elaborao de um produto artstico, acompanhado de memorial, como trabalho final.
Ao longo das prticas criativas, surgiram novos questionamentos e outros contedos
foram sendo inseridos. Conhecimento implica construo, ao, trabalho. Por isso,
todo contedo inicial oferecido nos primeiros encontros estava compondo um terreno
aprazvel para o incio do processo criativo. Procurei, assim, valorizar o repertrio
pessoal de cada indivduo, suas referncias e imagens, vocabulrio, diferentes ritmos,
na busca de motivaes internas e possveis ligaes que pudessem deflagrar a
tenso criativa, a vontade de realizar, ou melhor, os devaneios da vontade, to bem
discutidos por Gaston Bachelard. Em A terra e os devaneios da vontade, ele nos
oferece um espao confortvel de reflexo quando nos possibilita compreender que
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Experimentando no trabalho de uma matria esta curiosa condensao das imagens
e das foras, viveremos a sntese da imaginao e da vontade. E complementa:
Mas, evidentemente, a realidade material nos instrui (2008:21). Entendo, neste caso,
que as materialidades se concretizam no plano das coisas e no plano simblico
Bachelard coloca o indivduo em posio de construtor em ao. Solicitei, ento, a
leitura do texto A potica do espao (1993), o que gerou nos alunos um misto de
incompreenso, surpresa e estranhamento, mas tambm de aproximao e
identificao. Lanar um olhar diferente para tudo que pudessem ver foi uma
solicitao ou provocao posta para a turma. Alguns processos de trabalho tiveram
a o seu ponto de partida. Durante a oficina, foram abordados tpicos como: o
processo criativo e a construo da obra de arte; criao como rede; fases doprocesso criativo; a intuio e a tenso criativa; memria e referncias pessoais; os
primeiros ganchos poticos; a funo dos erros e acasos. Para exemplificar o
resultado desta oficina, selecionei trs obras, de diferentes linguagens, que
evidenciam o caminho percorrido pelos alunos. So elas: o trabalho de Raimunda de
Souza (Runas do Passado), que desenvolveu uma instalao ao ar livre, no meio da
caatinga; o ensaio fotogrfico de Ailton Ribeiro e Euzilar Cedraz (Bom incio e fim de
feira), que registrou flagrantes da feira de Senhor do Bonfim, realizando a partir desteolhar, um texto de cordel; e as esculturas de Maria Cerilene e Celeste Duarte (A
mulher e o barro), que juntas vivenciaram a tcnica de manufatura da cermica local,
tirando desta experincia o seu objeto de arte. Todos os trabalhos foram orientados
individualmente. Acompanhei o processo de cada um e tentei suprir as necessidades
de informaes sobre tcnicas ou referenciais tericos, exemplificando aes
similares realizadas por outros artistas. Acompanhava-os de perto, encorajando-os.
RUNAS DO PASSADO
No trabalho de Raimunda, as primeiras imagens (lembranas da infncia na caatinga,
a casa de taipa em runas) conduziam o processo para uma instalao. Passei-lhe
alguns conceitos desta forma de expresso, bem como de artistas e obras. Senti sua
inquietude ao compreender as possibilidades que existiam para a construo do
objeto de arte. Trazia com ela uma forte carga da sua histria, de sua memria.
Percebi um desejo, anterior mesmo a qualquer tipo de instruo, de dar um novosignificado quelas imagens que faziam parte da sua vida. Para isso, Raimunda foi
em busca de todas as relquias (utenslios, objetos, ferramentas, fragmentos de cartas
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e documentos) do passado, s quais pudesse ter acesso, muitas vezes emprestadas
dos velhos parentes, e com estas lembranas materiais montou uma instalao,
tomando como suporte a runa da casa onde ela havia morado quando criana. O
trabalho foi registrado em fotografias e ficou por alguns dias exposto no meio da
caatinga, interagindo com os passantes daquele local. Relata Raimunda:
Para chegar at o local, convenci os meus familiares a me acompanharem,pois para eles no era interessante esse processo de criao artstica.Chegando l, fiz toda uma preparao do trabalho nas paredes querestaram da minha antiga casa. Montei uma instalao ao ar livre, tomandocomo espao a velha runa. Foi um trabalho muito emocionante, pois revivitodos os momentos marcantes do passado, e as lembranas afloraram emminha mente. Lembrei-me de um papagaio sabido e fofoqueiro, que contavapara a mame tudo que aprontvamos na sua ausncia; o mesmo morreu
de uma forma muito trgica, raptado pelo gato-do-mato, gritando socorro,Z... Z. O silncio, o vento, a natureza passa uma paz que me levou arefletir e perceber que as coisas mais singelas da vida me deixam muitofeliz. Atrs da minha antiga casa velha tinha uma pedra, em que meu pai,ao chegar do trabalho, sentava comigo no colo e cantava essa cano: Emcima daquela serra, passa boi, passa boiada. Tambm passa aRaimundinha dos cabelos cacheados. Tudo isso so lembranas quejamais vo se apagar. (Raimunda de Souza, 2009)
Raimunda de SouzaRunas do passado Instalao, 2009Senhor do Bonfim - Bahia
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BOM INCIO E FIM DE FEIRA
Ailton e Euzilar investigaram princpios da linguagem fotogrfica, noes de
enquadramento, figura e fundo. Selecionamos artistas de referncia na arte dafotografia. Trabalharam juntos, e ambos j possuam experincia como artistas e
produtores culturais. Logo compreenderam a proposta e iniciaram os trabalhos de
pesquisa, observao, recorte do tema escolhido a feira livre da cidade. Por fim,
produziram um cordel e o ensaio fotogrfico veio acompanhado deste texto popular,
to freqente nas feiras do interior do nordeste. No memorial elaborado por Ailton e
Euzilar, pode-se perceber a sua preocupao em valorizar a cultura local, quando
decidem observar e registrar, com recortes especiais, o cotidiano da feira. O seu
memorial diz:
Surge a partir da (dos conceitos abordados) a idia deste trabalho, no qualbuscamos registrar cenas pitorescas do cotidiano sertanejo revelados nafeira. O trabalho foi realizado sob duas perspectivas: uma viso fotogrfica euma viso descritiva cordelista dos personagens e daquele ambiente. Ocordel fala por si como uma linguagem da cultura popular. Estar com acmera na mo pela primeira vez para realizar um trabalho como este nostrouxe, por um lado, receio, preocupao e angstia, mas, por outro lado,muito prazer. (Ailton Ribeiro e Euzilar Cedraz, 2009).
Ailton Ribeiro e Euzilar Cedraz, 2009Bom incio e fim de feira fotografia
Senhor do Bonfim - Bahia
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Semi-rido bonfinense
Tem uma singularidade
No grande Serto baiano
Terra sem gua e vaidade
Inda produz resistncia
Sertanejos de verdade
Criando bode e galinha
Produz o seu necessrio
No campo ou na cidade
Trabalha de modo vrio
Indstria ou manufaturaOu patro ou operrio.
Se esfora, faz fora, vai a roa
Na tenda ou, ainda na fazenda.
Pega tudo traz pra venda
Pem a roupa se remenda
Traz o ovo e a galinha
O feijo e a farinha
De jerico ou de carroa
Traz goiaba, traz umb
Aipim bolo de puba
Tapioca traz beiju,
Traz o coco, traz corante,
O azeite e o urucum
Tem gente j na festana
Bebendo pinga ou cerveja
Vivendo na contradana
De fazer o que deseja
Se de trabalhar se cansaNa hora de beijar beija
J outros na vaidade
Faz o que muitos queria
Trs vestidos pra Joana
Duas calas pra Malaquias
Cavalo bom para Alfredo
Arreios pra montaria
Jegues pastam ao fim da feira
Ajudando na limpeza
Cachorros em baixo de bancas
Gatos em cima das mesas
Se a feira findar desse jeitoPosso dizer foi beleza
Assim o povo faz compras
Sem pensar no j pensado
Que o homem que fez a feira
Volta pra casa, cansado.
Pra cuidar do seu oficio
E retomar o pesado
Ailton Ribeiro e Euzilar Cedraz, 2009Bom incio e fim de feira Cordel (fragmento)
Senhor do Bonfim - Bahia
Ailton Ribeiro e Euzilar Cedraz, 2009Bom incio e fim de feira fotografiaSenhor do Bonfim - Bahia
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A MULHER E O BARRO
A ao foi realizada na cidade de Jaguarari, prxima a Senhor do Bonfim. Neste
pedao de cho, Dilssa, uma das poucas mulheres que preserva a cultura damanufatura em cermica, desenvolve este trabalho na sua prpria casa,
cultivando um saber que foi herdado dos povos indgenas que viveram na
regio, onde a produo de artefatos usando esta tcnica vem desaparecendo.
Este recorte da cultura local chamou a ateno de Cerilene e Celeste, que
buscaram a vivncia com o barro, praticando juntamente com Dilssa. A idia era
conhecer o trabalho desta ceramista na sua essncia, conhecer o material e
buscar a sua relao com o corpo feminino. No seu memorial, elas escrevem:
Expomos a idia do trabalho que era confeccionar peas, sendo que ela(Dilssa) seria nossa modelo. Ela se mostrou bastante feliz com a idia,ainda mais quando dissemos que iramos tirar o molde de seu prpriocorpo. Ela sempre se preocupou em fazer algo de barro querepresentasse sempre outras coisas e agora ns iramos represent-la.No dia combinado estvamos l entusiasmadas para realizar tal tarefaque aos nossos olhos era muito fcil. A idia do trabalho perpassava ouso dos quatros elementos da natureza, o que j proporciona muitoprazer. A terra seca ganha um elemento essencial: a gua, fundamentalpara tornar o barro algo malevel, passvel criao de novas formas,alm de possibilitar o alisamento das peas produzidas. Depois vem o ar
e o fogo. (Cerilene e Celeste, 2009)
Imediatamente apresentei-lhes artistas do barro, escultores como Rodin e
outros, ps-impressionistas, com suas esculturas inacabadas, e a possibilidade
expressiva na representao do corpo. Elas se empolgaram com as imagens e
resolveram experimentar o barro na sua essncia.
Todo esse processo, da retirada do barro da lagoa at a queima dapea, foi difcil de ser executado, pois nos exigiu no s tempo, mas
muita criatividade, pacincia, persistncia, amor, dedicao e o maisimportante, inspirao, principalmente se a pea no for apenas umaarte utilitria, como potes, vasos etc, peas que seguem um modelo. Sefor algo que transcende, mais complicado, pois a inspirao se faznecessria, e a pea torna-se impar. O nosso desejo de fazer do barronosso instrumento de trabalho foi por ele ser passvel de transformao.Possibilitou-nos erros e acertos sem preocupaes, alm do mesmofazer parte de nossas vivncias e ser bem presente em objetos denossa comunidade. (Cerilene e Celeste, 2009)
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Maria Cerilene e Celeste Duarte, 2009
A mulher e o barro EsculturasJaguarari Bahia
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CONCLUSO
Por muito tempo, a criatividade foi entendida como um dom, um talento divino.
Porm, sabe-se que todos podem desenvolver-se criativamente no seu cotidianoou pela educao. Envolver os alunos em um clima de estranhamento foi
essencial para o comeo de uma compreenso acerca do que seria trabalhar na
escola aderindo a esta prtica. E isto se deu atravs da vivncia do processo de
criao. Estamos falando do afloramento da viso mltipla, necessria a
qualquer rea do saber. No ambiente da escola, refletir sobre a educao e a
criatividade afeta diretamente a qualidade das aes pedaggicas. No entanto,
nos deparamos com a precariedade das prticas artsticas que so aplicadas no
processo de ensino, o que colabora para ofuscar a importncia da arte no
currculo. O professor pede aos alunos que faam releituras de artistas
consagrados; repassa tcnicas artesanais descontextualizadas do seu ambiente
de origem; coloca seu trabalho a disposio das festinhas de calendrio e
apresentaes estereotipadas, criando representaes bonitinhas e vazias da
fora que poderiam ter se houvesse a busca das motivaes internas, pessoais
e coletivas. Expresses contemporneas como performances, objetos,
instalaes, arte tecnolgica raramente participam deste repertrio. Por isto,
entendo que, para haver uma mudana de cenrio, necessrio que o professor
tenha conhecimento do que seja uma construo em processo. Ele mesmo deve
vivenciar esta experincia, e este foi o principal objetivo desta oficina.
Referncias
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7/29/2019 MEMRIA E CRIAO NO SERTO DA BAHIA
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Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil
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Giovana Dantas
Explora fotografia, objetos, instalaes. Trabalha com materiais orgnicos como couro de
porco retirados da Feira de S. Joaquim, e tambm do mar, resultado da sua passagem pelaResidncia Artstica, Instituto Sacatar, ilha de Itaparica, cujo resultado foi apresentado noMAM-BA (abril/20080). Graduada em Artes Visuais e Doutora em Artes Cnicas pela UFBA.Professora do Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnolgica da Bahia.