Download - Memria, Identidade e Nacionalidade
Memória e Iden
(comunicação apresent
Núcleo de Estudos em S
publicar por Edições Af
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Instituto de Ciências Sociais Universidade de Lisboa
www.ics.ul.pt
Working Papers
tidade Nacional: considerações de carácter geral e o caso português
José Manuel Sobral
ada ao Colóquio “Nação e Estado: entre o local e o global”, organizado pelo
ociologia da Universidade do Minho e inserida nas respectivas Actas, a
rontamento)
-06 2006
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Memória e Identidade Nacional: considerações de carácter geral e o caso português (comunicação apresentada ao Colóquio “Nação e Estado: entre o local e o global”, organizado pelo Núcleo
de Estudos em Sociologia da Universidade do Minho e inserida nas respectivas Actas, a publicar por
Edições Afrontamento)
José Manuel Sobral∗
1 - Introdução
Na era da globalização, caracterizada por um intercâmbio sem paralelo de
mercadorias, valores e representações e por diásporas que dispersam populações outrora
ancoradas de modo durável a um dado território, a nação continua ainda a ser uma forma
preeminente de identificação (Castells 1997)1. E, como ocorre em todas as formas de
identificação, pertencer-se a uma nação implica partilhar referências a um passado
comum – uma memória – e acreditar que esse colectivo possui características próprias:
uma identidade.
Neste texto iremos tratar da memória e identidade nacionais. Começaremos por
uma breve análise conceptual relativa ao que entendemos serem a memória e a identidade
nacionais. Iremos procurar mostrar como ambas são indissociáveis, sendo o produto,
sempre reactualizado, de processos que têm lugar no tempo. O caso português, a que nos
reportaremos com maior detalhe, servirá como ilustração do que afirmamos em termos
mais genéricos, embora não esqueçamos que os processos de construção da nação
apresentam uma grande diversidade.
2- O carácter social da memória
A atenção dada à memória social data dos finais de Oitocentos e princípios do
século XX (Middleton e Edwards 1992: 17-37; De Rosa e Mormino 2000: 453-454). O
∗ Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. 1 Um estudo recente que comparava a identificação com uma entidade supranacional – União Europeia – e a nação em países europeus mostrava como a identificação com a UE se fazia, sobretudo, em termos institucionais, burocráticos e económicos, e estava vinculada ao presente, enquanto à nação estavam associadas narrativas mais enraizadas na memória social, uma maior referência ao passado, à história, a valores éticos e dimensões culturais, ao sentido da “identidade colectiva como nós” (De Rosa e Mormino 2000: 471-472).
2
sociólogo Maurice Halbwachs, um discípulo de Durkheim, o mais influente estudioso da
memória nas ciências sociais, defendia que a memória possuía sempre um carácter social.
Não havia uma memória que fosse estritamente individual. Como escreveu, “ (…)
qualquer lembrança, por mais pessoal que seja (...) mesmo a de sentimentos que não
chegamos a expressar, encontra-se relacionada com todo um conjunto de noções que
muitos de nós possuem, com pessoas, lugares, datas e formas de linguagem, com
raciocínios e ideias, quer dizer, com toda a vida material e moral das sociedades de que
fazemos ou de que fizemos parte (Halbwachs [1925] 1994: 38). Halbwachs destacava o
papel de determinados quadros sociais – como a família, o grupo profissional ou a classe
social – enquanto matriz da memória (Halbwachs 1994 [1925]; 1950)2.
Para o sociólogo francês, a memória não era um vestígio simples do passado, algo
que resistisse à erosão da passagem do tempo, ao esquecimento. Também não constituía
uma mera reminiscência de factos passados. Muito pelo contrário. Era uma reconstrução
– e uma representação – do passado elaborada no presente (Halbwachs 1994 [1925]: 34)3.
Pouco depois de Halbwachs ter publicado os Quadros Sociais da Memória, o psicólogo
Bartlett defenderia uma concepção sócio-cultural da memória com muitas afinidades com
a deste. Em seu entender, a recordação revelava os padrões sócio-culturais fundamentais
de um determinado grupo. Os costumes, instituições e tradições constituíam as tendências
persistentes de um grupo, eram o “esquema” social persistente que orientava o trabalho
de construção com sucesso em matéria de recordação4. No mesmo sentido, mas
2 Halbwachs utilizou a expressão “memória colectiva” – para se referir à memória de grupos, como a família ou a classe. Entre os que a aceitam o facto de toda a memória ser social tal há quem defenda que tal não significa que ela seja necessariamente colectiva; esta última designação só deveria aplicar-se a casos em que haja uma convergência profunda, ou mesmo fusão, entre consciências individuais. Cf. Candau (1998: 45-47); ver igualmente Namer (1987). Para uma visão de enquadramento da abordagem da memória de Halbwachs em relação com a sociologia de Durkheim, Prager (2001). Fentress & Wickham (1994: 7-89) preferem a designação de memória social, pois a qualificação de colectiva implicaria ver no indivíduo um simples autómato portador de uma vontade colectiva interiorizada. Mantemos neste texto o uso do termo memória colectiva para designar dimensões supra-individuais da memória, embora tenhamos em devida conta considerações como as mencionadas acima. 3 Esta concepção da memória – em que, em termos genéricos, o presente, o grupo, o conhecido, molda a recordação do passado e aquilo que é novo - tem grandes afinidades com a perspectiva do psicólogo Bartlett e com a teoria das representações sociais de Moscovici, como foi sublinhado por Rosa, Bellelli e Bakhurst (2000: 72-76), Sá e Vala (2000: 442-445), De Rosa e Mormino (451-475). 4 Bartlett, que recusava ter produzido uma “teoria social da memória”, afirmava existir uma “determinação social da memória”. Criticava a noção de memória colectiva em Halbwachs, pois, segundo ele, o sociólogo francês tinha mostrado a existência de memória no grupo – isto é, que o grupo condicionava o processo de recordação – e não do grupo (quer dizer, que este tinha uma memória própria). Cf. Bartlett (1995 [1932]: 239-314); sobre Halbwachs especificamente pp. 294-296). Não é este o lugar para uma abordagem
3
debruçando-se genericamente sobre o desenvolvimento da espécie humana, o
paleontólogo Leroi-Gourhan sublinharia que a memória individual no homo sapiens
depende de uma “memória virtual cujo conteúdo pertence à sociedade.” Só o homem
possui essa “propriedade única” que “consiste em colocar a memória no exterior de si
próprio, no organismo social”. Esta memória social – ou colectiva, pois este autor usa
ambos os termos indistintamente – consiste no conjunto de práticas e conhecimentos
adquiridos no seio do grupo em que se nasce e depositados no exterior do corpo humano,
nomeadamente através da linguagem (Leroi-Gourhan 1965: 22-34)5. O neurocientista
Steven Rose defende uma opinião afim. Fala da “memória artificial” – a memória
exterior do paleontólogo – como algo específico da espécie humana, que transcende o
indivíduo, impondo representações partilhadas e ideologias (Rose 1995 [1993]).
A memória – conceito que abrange, entre outros, os significados de meio de
recordar e de mensagem (recordação) – possui um carácter colectivo porque os
indivíduos são socializados no âmbito de conjuntos sociais, adquirindo assim um passado
inerente à sua biografia. Para a maioria dos indivíduos, o aprendizado social inicia-se no
seio da família, para depois prosseguir em outros espaços, à medida que se cresce. Como
observou um dos mais recentes investigadores da memória colectiva, pertencemos a
comunidades mnemónicas – comunidades de memória –, que podem ser de âmbito
micro-social como as famílias ou macro-social como as nações (Zerubavel 2003a: 4, 8-
9)6.
Toda a memória colectiva possui dimensões discursivas e não discursivas. No que
respeita às primeiras deve-se sublinhar a importância diferenciada que tem o facto de o
seu suporte ser oral ou escrito. As tradições orais constituem um sustentáculo
fundamental da transitividade mnemónica (Zerubavel 2003a: 6) entre gerações, incluindo
as que não tiveram contacto entre si: um avô pode contar a um neto feitos de um bisavô
desenvolvida das diferenças entre ambos, que se prendem com o modo diferenciado como abordam o binómio indivíduo/sociedade, pois não estamos a tratar da memória colectiva em termos gerais, mas tão só de um tipo muito específico de memória ligada a um tipo muito específico de identidade; para uma comparação entre as suas perspectivas ver De Rosa e Mormino (2000: 454-455). Veja-se também a este respeito Candau (1998: 24-47). 5 Citamos apenas estes autores clássicos, enfatizando o que têm em comum, pois as suas posições estabelecem os fundamentos dos estudos posteriores e são suficientes para se entender o enfoque deste ensaio. 6 O objectivo do autor, na obra a que nos reportamos, consiste precisamente em revelar a estrutura fundamental da memória social ao nível micro, macro e intermédio e revelar a sua similitude.
4
ou trisavô com quem lidou directamente, e que o segundo nunca conheceu. No entanto, a
memória oral tem características próprias; não consiste numa repetição de um conteúdo
fixo, sendo este dependente do contexto e de quem reproduz a lembrança. Não é uma
memória verbatim, mas uma “reconstrução generativa” do memorizado no âmbito de um
esquema determinado (Goody 1987: 167-190). A escrita, pelo contrário, permite a
transmissão de um “corpus” – religioso, jurídico, literário, científico, historiográfico –
formalmente inalterável. È passível, por certo, de leituras distintas, mas as suas
características intrínsecas de texto colocam limites à interpretação. A ligação milenar
entre a escrita e o poder, como se verifica no caso das organizações religiosas – nas
chamadas “religiões do Livro”, que assentam em códigos escritos – e estatais assenta
nestas peculiaridades (Goody 1986).
A separação entre o oral e o escrito, em sociedades em que coexistem, pode gerar
uma disjunção extrema, nomeadamente quando o escrito público é submetido a um
monopólio por parte de um poder, que censura a dissidência, e a oralidade – juntamente
com o escrito clandestino – se torna um espaço de refúgio e resistência. Nessas situações,
ao passado do escrito oficial contrapõe-se a expressão do “registo escondido” (Scott
1990), manifestação de dissidência e registo de uma memória alternativa7. Mas pode
suceder, quando há tópicos que reúnem maior consenso, que o registo oral esteja em
maior consonância com o escrito, servindo de veículo à propagação do seu conteúdo. No
caso de colectivos como os estados-nações é vulgar a memória oral reproduzir tópicos
introduzidos em primeiro lugar pela escrita. Tal sucede no caso das narrativas da história
nacional, aprendidas na escola. A circulação das narrativas nacionais no registo oral não
reveste as características de reprodução de um discurso estruturado sobre o passado,
como o é o dos professores, capazes de estabelecerem um fio de sentido contínuo entre o
passado e o presente. As reminiscências orais são relativas a eventos – batalhas – e
personagens – reis ou chefes lendários – a que a maioria reporta a sua recordação (Sobral
1995: 289-290). Mas as dissonâncias que possam existir em torno da valorização do
passado não se reduzem à clivagem entre grupos mais associados à oralidade ou à escrita.
Será necessário ter em conta que no desenvolvimento da memória pública se confrontam
7 Nós próprios estudámos essa dissonância, confrontando o escrito da monografia local que abrangia uma freguesia por nós estudada, e o registo oral que íamos ouvindo e recolhendo. Cf. Sobral (1995, 2004).
5
elementos das visões do passado de uma cultura oficial – ligada às autoridades, ao poder
– que aspira à hegemonia, com os oriundos de culturas vernáculas, subordinadas8.
Para além das suas formas orais ou escritas, as práticas memoriais operam por
outros modos como os rituais e as comemorações. Os rituais são uma via de aprendizado
e reprodução social tanto nas sociedades desprovidas de escrita, como nas sociedades em
que a mesma constitui um referente memorial. Ritos que sancionam geração após geração
a passagem de estádios da vida – de jovem a adulto, de solteiro a casado, de estudante a
licenciado, etc. – e a aquisição de novas identidades sociais. Ritos que enfatizam a
pertença ao colectivo nacional, como o acto de ir “tirar” o bilhete de identidade, ou o
“juramento de bandeira” no serviço militar. As comemorações servem para invocar o
passado no presente, pontuando regularmente o calendário, tanto o da família -
aniversários familiares – como o das nações: feriados nacionais. Os objectos também
servem como dispositivos mnemónicos (Csiksentmihalyi e Rochberg- Haton 1981;
Radley 1992), que condensam a recordação, quer sejam uma mera presença do passado
que perdura – roupas, móveis, um relógio, livros, discos, etc. – quer tenham como
objectivo fazer recordar algo, como sucede com sepulturas, monumentos ou itens
depositados em museus. O aparecimento da fotografia, do rádio e dos processos de
gravação, do cinema, do vídeo e do arquivo digital, ampliou de modo incomensurável o
campo dos meios que servem como dispositivos memoriais.
Ao abordar um domínio tão complexo como a memória deve-se ter em conta se existe
intencionalidade na memorização e rememoração (Radley 1992: 65). Muito do que
constitui a memória é o produto de experiências individuais ou colectivas, que,
incorporadas – operando pelos sentidos, como a visão, a audição, o paladar, o olfacto…
(Linke 2001) – constituem uma matriz do agir e podem ser objectivadas como
recordação. Esse domínio é o do habitus de que falam Mauss (1973 [1950]: 363-386),
Elias (1975 [1939]), Leroi-Gourhan (1965: 28) e Bourdieu (1972: 178), o hábito de
8 Bodnar utiliza a distinção para capturar práticas de memória em Cleveland, EUA, durante os dois últimos séculos, em que mostra como os valores simbolizados por elementos defendidos por uma e outra podem ser distintos. A mesma celebração de um acontecimento passado pode ser vivida de modo diferente: o acontecimento exaltado em termos patrióticos pelos meios oficiais, pode ser um pretexto para reivindicar, ou então vivido como um momento de lazer pelo comum das gentes (Bodnar 1994: 74-89). Temos poucas dúvidas de que, para a maioria dos portugueses, os feriados nacionais (na actualidade, pelo menos) são fundamentalmente vividos como tempo de lazer, e não como tempo de exaltação da comunidade nacional. Mas só uma investigação adequada nos permitiria ser mais precisos.
6
Benedict (1972 [1946]) e de Young (1988: 75-128), a memória-hábito de Connerton
(1989: 22-23), a proto-memória de Candau (1998: 12-14), a tradição segundo Shils
(1981) ou Zerubavel (2003a)9. Escreve o último: “o modo como organizamos a nossa
alimentação, a etiqueta interpessoal e a higiene pessoal são essencialmente padrões
habituais perpetuamente continuados como parte de uma tradição social” (Zerubavel
2003a: 37). Estes habitus, inscritos no próprio funcionamento do corpo, formam-se,
como afirmou repetidamente Bourdieu, em primeiro lugar no seio da família, depois na
escola e nos diversos espaços sociais em que se inserem as trajectórias individuais São
muito influenciados pela actuação do estado.
Mas, se este tipo de memória é inerente à própria vivência humana e não pressupõe
intencionalidade em muitas das suas operações, há que ter em conta o papel da intenção
nos actos de preservar e transmitir determinados objectos e narrativas – e de esquecer
outros. Transmitem-se apelidos de família – e mesmo nomes próprios – símbolos da
pertença a um colectivo. Transmite-se património (propriedade) em famílias – da
aristocracia ou da burguesia – para quem o mesmo constitui formas de capital económico
e simbólico, uma garantia de posição social. Transmitem-se histórias de família quando
se julga que essa história de família constitui um valor (Sobral 1995: 300-308; Sobral
2004). Transmite-se oralmente o saber ou o saber fazer, em ocupações – no campesinato,
no mundo dos ofícios, incluindo os domésticos (cozinhar, costurar, etc.) – onde o
aprendizado não é (ou era) feito pela via escolar. É olvidado ou encoberto o que
envergonha e é fonte de estigma, como a maternidade e a filiação ilegítimas em contextos
rurais (no passado tal era muito mais forte). Como sucede nestes casos, também a
memória nacional é o resultado, por uma parte, de experiências de vida num espaço
definido como nação; mas também o é da produção intencional de determinado passado
como memória10. E da ocultação, esquecimento, ou, por qualquer modo, acomodação do
9 Há diferenças no modo como estes autores definem os conceitos que usam de que não se cuida aqui, procurando-se em vez disso explorar as convergências existentes entre eles. 10 Pierre Nora postula mesmo uma separação entre a “memória verdadeira, social e intocada, a das sociedades ditas “primitivas” ou “arcaicas”, ou de meios como o camponês, feita de “gestos, hábitos, saberes do corpo, saberes do ofício”, e a nossa memória, que não seria natural, passaria a ser “história” e “voluntária”, produtora de dispositivos mnemónicos – os lugares – sobre a qual opera a reflexão e a reflexividade. E concebe a passagem do predomínio de uma ao de outra no contexto francês contemporâneo. Cf. Nora (1984: XVII-XLII). Embora discordemos da sua ideia de fim da chamada “memória verdadeira”, concordamos com o que se refere à intervenção intencional do estado na chamada memória nacional.
7
que é tido como inconveniente no presente11. É uma memória ideológica, uma
representação do que se supõe ser uma memória comum aos membros do grupo, uma
metamemória (Candau 1998: 115).
A memória é um processo (Olick & Robbins 1998: 122), sempre em revisão, sendo
reactualizada em cada presente. Mas, se é revista, não é uma criação caprichosa. Ao
contrário da imaginação, a memória ambiciona a “veracidade” (Ricoeur 2000: 26). O
passado molda o presente, mesmo que se admita a possibilidade de uma libertação das
suas malhas (Shils 1981: 46-52) e coloca limites à manipulação em matéria de elaboração
da memória (Olick e Robbins 1998: 128-130). Certos factos são incontornáveis na
configuração da memória, como sucede com o caso do Holocausto, em particular, em
questões de memória nacional, para os alemães e os israelitas.
3 – Memória e Identidade Nacionais
Como assinala Anthony Smith” (...) poderíamos quase dizer: sem memória não há
identidade; sem identidade, não há nação” (Smith 2004: 75). Por isso vamos referir-nos
brevemente a cada uma destas entidades que se encontram de tal modo interligadas que já
se definiu a nação como “uma comunidade imaginária formada pelos mortos, pelos vivos
e pelos que ainda não nasceram, que se mantém unida graças a uma cola chamada
memória “ (Ash 2005).
Concebemos a memória nacional como o produto de uma comunidade
mnemónica específica, a nação, que ela, por sua vez, contribui para reproduzir. Por isso,
o processo da sua formação e reprodução funde-se com a história da própria formação da
nação. Esta última não se deve confundir com o estado – o que só sucede no caso dos
estados-nações de que Portugal é exemplo –, o “aparelho político (instituições
governamentais e funcionalismo público) que governa um dado território, cuja autoridade
11 A referência ao esquecimento e aos erros (de um ponto de vista historiográfico) como “factores históricos da criação da nação” é feita por Renan no seu célebre texto de 1882 “Qu’est-ce qu’une nation?”(Renan 1992 [1982]). Reportava-se a factos como o domínio violento do Sul da França pelo Norte que teve lugar com a perseguição aos Cátaros ou Albigenses. Em Portugal, a reprodução da sua história nacional silencia ou subavalia factos tidos como condenáveis, como o tráfico de escravos: basta consultar qualquer manual de história do ensino secundário.
8
assenta na lei e na capacidade para usar a força (Giddens 2004 [2001]: 691). A nação é
“um grupo formado a partir de um ou vários grupos étnicos, e normalmente identificado
por uma literatura própria [que] possui ou reivindica o direito à identidade e à autonomia
políticas enquanto povo, bem como o controlo de um dado território…” (Hastings
1997:3)12.
A definição razoavelmente minimalista que aqui acolhemos está longe de ser
aceite pacificamente. Há enormes diferenças na interpretação do facto nacional, que
implicam visões distintas do que é a nação – envolvendo, por exemplo, a sua relação com
o factor étnico –, da sua ligação com o Estado ou do momento histórico em que se situa a
sua emergência. Podemos agregá-las, para feitos de síntese, nos seguintes conjuntos:
primordialistas – como Van den Berghe (1995) –, que retratam a nação como algo
inerente à própria natureza humana concebida em termos sócio-biológicos; perenialistas,
que aceitam a existência de nações nos tempos pré-modernos, como John Armstrong
(1982); modernistas, para quem, pelo contrário, a nação é algo de moderno, dependente
de factores económicos, como a industrialização, como Gellner (1983), o
desenvolvimento de noções de soberania popular em ligação com o estado, no caso de
Hobsbawm (1994 [1990]), ou do impacto de dinâmicas de difusão e uniformização
culturais resultantes da conjunção entre capitalismo e tipografia (Anderson 1983); etno-
simbolistas, como Anthony Smith (1991, 2004) ou John Hutchinson (2005), que
concebem a nação como um colectivo moderno, mas pensam que ela tem como suporte
comunidades étnicas anteriores; e, finalmente, pós-modernistas como Homi Bhabha, que
vêm no facto nacional o produto do discurso de poder do estado-nação (Bhabha 1990)13.
A convicção de que o nacionalismo é anterior à nação atravessa, de uma forma ou de
outra, a argumentação modernista e pós-modernista14.
A posição do autor a este respeito permanece foi descrita num estudo anterior
(Sobral 2003). Por um lado, comunga do cepticismo quanto à validade de qualquer teoria
geral sobre o fenómeno nacional, dada a sua diversidade (Smith 2004: 78). Por outro, 12 O mesmo autor define grupo étnico – no original ethnicity – como um “grupo de pessoas que partilha uma identidade cultural e uma linguagem falada” (Hastings 1997: 3). 13 Para uma apreciação das diversas teorias Smith (2000), que expõe aqui de forma resumida o seu ponto de vista. 14 Remetemos o leitor para a definição de Anthony Smith do nacionalismo: “(...) o movimento ideológico que procura alcançar e manter a autonomia, unidade e identidade para uma população que alguns dos seus membros pensam constituir uma ‘nação’, actual ou potencial” (Smith 1991: 71-73).
9
reconhece-se nas propostas que valorizam o carácter processual do fenómeno e que
postulam a importância dos aspectos ditos pré-modernos para a génese das nações. É o
caso dos etno-simbolistas, e dos que, reportando-se a contextos europeus, não
reivindicam o desenvolvimento de um paradigma particular, como sucede com as
abordagens relevantes de Llobera (1994), Hermet (1996) ou Hastings (1997). Ao insistir-
se no carácter processual da formação da nação pretende-se sublinhar ligações históricas
que tendem a ser negadas quando se opera em termos narrativos com uma periodização
histórica como a implicada na divisão entre pré-moderno e moderno15. A nosso ver, esse
é um problema básico com que se confronta o chamado paradigma modernista na
abordagem das nações.
A identidade social é uma propriedade dos indivíduos enquanto seres sociais. Há
uma multiplicidade de identidades sociais – de classe, género, ocupacional, religiosa –
sendo a identidade nacional uma delas. Quando falamos em identidade nacional não nos
referimos a atributos fixos, que possuam sempre a mesma capacidade vinculativa, mas a
processos de identificação que só podem ser entendidos no tempo (Jenkins 2003: 274). A
identificação pressupõe auto-identificação, similitude – Nós – e constatação da diferença
– os Outros. Auto-identificação e percepção da diferença inscrever-se-ão de modo
distinto na duração temporal. Como escreve Jenkins, “ (…) a similaridade da identidade
colectiva (‘Nós’) parece estar estabelecida, pelo menos em grande medida, no aqui e
agora de algum tipo de co-presença (…), no entanto, a diferença colectiva, embora
implique igualmente a co-presença colectiva, encontra-se presumivelmente enraizada, por
definição, numa história de relações colectivas no tempo (idem: 276)16. Este
enraizamento é reivindicado no caso das identidades nacionais.
Identidade e memória são indissociáveis, pois “ (…) o significado nuclear de
qualquer identidade individual ou colectiva, que consiste principalmente no sentido de se
permanecer o mesmo no tempo e no espaço, sustenta-se pela recordação; e o recordar é
15 Este é um argumento de Zerubavel (2003: 86-88), que mostra como a periodização do passado, uma das bases em que assenta a construção da memória colectiva, afecta a nossa concepção do mesmo; períodos próximos em termos de tempo físico, por exemplo, metamorfoseiam-se em algo de muito distante em termos de tempo social. 16 Sobre a temporalidade das identidades colectivas, ver o estudo clássico de Norbert Elias sobre uma cidade britânica (Elias 1997 [1965]), em que o caso específico das nações é mencionado. O papel da contraposição binária entre “Nós” e os “Outros” tem sido destcado por diversos autores na abordagem da “identidade nacional”. Ver, por exemplo, Bloom (1990), Eisenstadt & Giesen (1995), Billig (1997).
10
definido pela identidade assumida” (Gillis 1994: 3)17. A manutenção das identidades
colectivas depende de procedimentos como os que Zerubavel denominou como colagem
mnemónica, colhendo inspiração no modo como agimos ao trabalhar um documento num
processador de texto (ou na montagem cinematográfica). São eles que permitem
estabelecer uma “quase contiguidade” entre pontos não contíguos no tempo, imaginar
uma continuidade histórica para uma entidade em mutação, como sucede com as
nações18.
As identidades nacionais são formas específicas da identidade colectiva. Há vários
aspectos presentes na identidade nacional, que importa destacar. Em primeiro lugar,
reporta-se a colectivos em que a absoluta maioria dos membros é constituída por
desconhecidos que são socialmente distantes (estão divididos em termos de classe e
género, atitudes políticas, morais e religiosas, estilos de vida, etc.); porém, essa distância
não implica a inexistência de amplos contactos, o inter-conhecimento e o convívio entre
diversas gerações, geradores da experiência de se pertencer a uma e à mesma entidade ao
longo do tempo (Zerubavel 2003a: 60). Depois, para a sua génese e perpetuação concorre
uma enorme intervenção das agências de doutrinação – em particular do estado, através
da escola, do exército e de outros meios de propaganda. Deve-se sublinhar o papel das
elites intelectuais na criação das identidades nacionais, complementar ou em oposição ao
estado (consoante a apreciação que fazem da relação entre a nação, de que se proclamam
arautos, e o estado). São quem estuda a língua e elabora o corpus literário que virá a ser
definido como literatura nacional. São produtores das narrativas históricas que
estabelecem a continuidade entre o passado mais distante e o presente, ligam o cidadão
anónimo aos “grandes personagens”, instituem relações imaginadas de parentesco entre
antepassados e contemporâneos19. São esses intelectuais quem anima a pesquisa
17 Esta indissociabilidade é defendida igualmente por Candau (1998: 10). 18 Como o mesmo sociólogo refere, concebemos diversas entidades como ininterruptas, apesar destas estarem em mudança constante. Achamos que um corpo (biológico) é sempre o mesmo, apesar da sua composição celular ter inteiramente mudado, referimo-nos a uma equipa de futebol como se permanecesse idêntica apesar dos seus jogadores mudarem, identificamos uma nação como se ela fosse sempre a mesma, tal como indicado pelo nome, apesar da sua composição se estar a modificar constantemente. São tudo exemplos de Zerubavel (idem: 38), cuja obra constitui um guia precioso para o estudo dos procedimentos da memória colectiva. 19 Zerubavel sublinha a importância das referências biológicas – a consanguinidade, o “sangue” – na construção das identidades sociais (Zerubavel 2003: 56). É conhecido também o recurso feito aos idiomas da família e do parentesco para definir a pertença a uma nação: esta é a “mãe pátria”, os nacionais são
11
arqueológica à procura dos antecessores mais distantes, e a etnográfica, em busca do mais
genuíno de cada cultura nacional. O seu papel é relevante, como agentes do estado ou em
concorrência com o mesmo, nos rituais e cerimónias comemorativas que asseguram a
rememoração e a identificação nacional numa temporalidade cíclica que recorda a
permanência – a imortalidade – dos factos e do colectivo celebrado. São finalmente os
intelectuais quem desenvolve o discurso sobre o conteúdo das identidades nacionais. Este
é objecto de afrontamento entre definições distintas e contraditórias. As nações são
“zonas de conflito”20.
A fixação de um território é um aspecto fulcral na formação das identidades
nacionais, pois, a constância de lugar fornece um sentido de se permanecer o mesmo ao
longo do tempo, não obstante a mudança (Zerubavel 2003a)21. A relação com o espaço
possibilita aquilo a que Anthony Smith chama a “territorialização da memória”, a
transformação do território no referente fundamental da recordação (Smith 2004: 75). A
demarcação de um espaço determinado como nacional acarreta múltiplas consequências.
Definem-se fronteiras – políticas, económicas, simbólicas – entre o que é nacional e o
que é estrangeiro. As fronteiras são limites constitutivos da identificação colectiva
assente na diferenciação dicotómica entre nós e eles (Elias, 2001 [1965]; Barth 1969).
Haverá uma língua hegemónica nesse território, um espaço económico definido como
nacional, uma moeda também ela nacional. A guerra, companhia frequente da formação
das nações, ajuda a cimentar o fosso entre colectivos (Bloom 1990).
Se existe um espaço que identificamos como nacional, há igualmente tempos
investidos de um simbolismo nacional. Contam-se entre estes as chamadas “idades do
ouro”, momentos tidos como culminantes da construção de gestas nacionais (Smith 1997:
36-59), como a época da expansão marítima portuguesa do século XVI, exaltada como
tempo excepcional desde então aos nossos dias (Boxer 1977 [1969]: 405-416; Catroga
1998: 226-304). Há uma estruturação da narrativa identitária nacional que opera com a
“filhos” e “irmãos”, os antepassados são “avós”, etc. Sobre a importância das tradições nacionais, e em particular o papel dos historiadores na sua exaltação, ver Shils (1981: 57-62). 20 Este facto foi posto em relevo recentemente por Hutchinson (2005). 21 Já Maurice Halbwachs (1997 [1950]: 193-236) havia chamado a atenção para a importância do papel do espaço na memória colectiva, sublinhando que os lugares sofrem a marca dos grupos, mas também os marcam a estes.
12
dimensão linear do tempo e que situa as gerações presentes num continuum
intergeracional mais ou menos longo – no caso português, consoante as interpretações da
formação de Portugal, pode-se remontar aos habitantes do Condado Portucalense, aos
Lusitanos, etc. (Peres 1970). Produz-se um tempo cíclico estruturado no calendário pela
celebração dos feriados relativos a eventos mais ou menos distantes e que, para além de
recordar algo, assegura a sincronização mnemónica em todo o espaço nacional
(Zerubavel 2003a; Zerubavel 2003b: 315-337).
A aquisição de uma identidade e de uma memória nacional opera-se em múltiplos
espaços, das esferas geridas pelo estado ao universo familiar. Viver no âmbito de um
estado determinado, estar submetido no tempo longo à sua acção implicará mesmo a
aquisição de habitus – ou hábitos – nacionais específicos, como foi referido por Benedict
ao tratar do Japão anterior à Guerra de 1939-45 (1934), Norbert Elias ao abordar a
sociogénese das identidades inglesa, francesa ou alemã (1975 (1939 II) e posteriormente,
em termos mais genéricos, por Pierre Bourdieu. Em sua opinião “ [...] o Estado molda as
estruturas mentais e impõe princípios de visão e divisão comuns, formas de pensamento
[...] contribuindo por esse modo para construir aquilo a que se chama habitualmente a
identidade nacional – ou, numa linguagem mais tradicional, o carácter nacional”
(Bourdieu 1994: 114-115).
A identidade e a memória nacional são algo incessantemente aprendido e
reproduzido no quotidiano, através dos processos pelos quais os indivíduos identificam –
e se identificam – com o nacional, lendo o jornal, contemplando a bandeira, repetindo
estereótipos, estabelecendo uma familiaridade quotidiana com o meio que nos rodeia
(Edensor 2002). São os processos através dos quais opera o nacionalismo banal (Billig
1997 [1995]), que leva a que a pertença a um determinado colectivo de génese social seja
encarada como algo de natural e dotado das maiores consequências, para a própria
identidade pessoal. Morrer – e matar – pela pátria é uma delas.
Por conseguinte, quando falamos em identidade nacional, não nos estamos a
referir a algo que possa ser descrito como um conjunto substantivo interiorizado de
crenças e discursos sobre o colectivo, mas a práticas, experiências, estereótipos, discursos
reiterados e amiúde em conflito entre si, que se reportam ao facto nacional e que só
podem ser explicados de modo cabal se este for tido em conta (Sobral 2003: 1116-1117).
13
Ou, nas palavras de Smith, a algo que é mais vivido, sentido e querido do que imaginado
ou descrito (Smith 2000: 59).
4 – Uma visão sintética do processo de formação e consolidação da identidade
nacional portuguesa.
Como afirmámos anteriormente, a concepção da identidade nacional que
perfilhamos concebe-a como processo histórico que remonta ao período medieval.
Portugal é um estado da Reconquista, que se formou no âmbito das lutas dinásticas entre
os sucessores de Afonso VI de Leão e Castela no Ocidente medieval. Esta concepção,
que é, nos seus traços básicos, a do historiador romântico Alexandre Herculano, é
também acolhida por dois historiadores que se ocuparam com um destaque especial dos
problemas da génese da identidade portuguesa, Martim de Albuquerque (1974) e José
Mattoso (1985 I e II). As reflexões mais detalhadas sobre os momentos iniciais desse
processo são da sua responsabilidade.
O estudo histórico do fenómeno nacional em Portugal é incipiente e aborda de
modo muito desigual épocas distintas. Há um grande enfoque nos primeiros séculos –
justamente os que dizem respeito aos “começos” da nação, de grande importância para as
narrativas identitárias nacionalistas. Segue-se a atenção dada aos últimos dois séculos,
aqueles em que o nacionalismo goza de uma importância inegável enquanto matriz
político-cultural. Em contrapartida, o estudo do fenómeno nacional na pluralidade das
suas formas nos períodos intermédios está em larga medida por fazer, o que não significa
que não tenha havido obras que tenham contemplado dimensões significativas do mesmo.
Existem – como as relativamente recentes de Torgal (1981, 1984) – e nelas colhemos
apoio para a nossa síntese interpretativa (Sobral 2003).
Um outro problema com que se debate este estudo é o do conhecimento desigual da
população portuguesa a que temos acesso. Conhecemos melhor o mundo dos dominantes
do que o mundo dos dominados. Os primeiros estão associados à escrita e ocupam as
posições do poder; a sua vida é registada por múltiplas agências. Os segundos, tão
destituídos de poder como de importância para o mundo escrito, escapam em grande
14
medida a esse registo. São número, anónimos na multidão, raras vezes sendo
identificados, como sucede quando protestam ou mesmo se revoltam pondo em causa o
estabelecido. Esta questão de ausência de informação sobre as classes populares é de
grande importância para a investigação da problemática da identidade nacional. Por um
lado, porque, se encontramos sinais (testemunhos escritos de carácter bastante explícito)
de a mesma ser assumida por parte de grupos da elite, não podemos presumir que ela é
partilhada pela maioria, ou que ela o faz nos mesmos termos22. Mas também não
podemos presumir o contrário. Isto é, existindo uma enorme separação – espacial, social
e cultural – entre o universo da elite e o popular, daí não decorre que, se a primeira se
apresenta como nacionalista (no sentido preciso em que se auto-identifica em termos
nacionais), a segunda não possa identificar-se com um colectivo a que pertença a
anterior. Como sabemos, a importância das fracturas de classe não anula a dos vínculos
nacionais. Os conflitos do século XX, em particular as duas guerras mundiais, estão aí
para o comprovar.
O que propomos constitui uma mera síntese da problemática da formação da
identidade nacional portuguesa, que já abordámos anteriormente (Sobral 2003). Ao
contemplarmos a formação da identidade nacional portuguesa como processo,
pretendemos articular aquilo que é novo com o que é passado, o descontínuo com o
contínuo, sem conceber estas ligações em termos teleológicos, em que cada etapa
prefigura necessariamente uma determinada subsequente. Pelo contrário, a história
nacional portuguesa poderia ter sido bem diferente, se, por exemplo, à imagem do
sucedido na Catalunha, os portugueses revoltosos em 1640 tivessem sido derrotados. O
nacionalismo – uma simplificação, pois há múltiplos nacionalismos e não um único
discurso ou movimento – tem um enorme papel na criação da nação moderna. Todavia,
ele não operou no vazio; apoiou-se, pelo contrário, em topoi, memórias e mitos anteriores
(Smith 2004: 78).
Na nossa perspectiva, podemos distinguir três grandes fases num processo que vai do
surgimento à proclamação da hegemonia – sobre quaisquer outras identidades – da
identidade nacional portuguesa. A primeira dessas fases reporta-se aos primeiros séculos
22 O facto de haver uma enorme distância entre a religião dos clérigos e a religiosidade popular, ou entre o discurso especializado dos teólogos e o discurso e práticas da maioria dos leigos, também não impede que todos se reconheçam como membros da mesma Igreja (Católica).
15
do Reino de Portugal. A sua formação territorial tem lugar no contexto da expansão dos
núcleos cristãos do norte da Península. As fronteiras de finais do século XIII são
basicamente as que ainda hoje delimitam o território português. Com a fixação das
fronteiras começa a haver consciência de uma separação entre o nacional e o estrangeiro,
que se aplica a pessoas, a coisas, à moeda (Mattoso 1985 II: 194-195). Poderia falar-se
em área económica nacional a partir do reinado de D. Afonso III, que impôs a sua própria
moeda (id., ibid. 46).
São da maior importância os factores de ordem cultural e simbólica que
particularizam o Reino de Portugal. Antes do mais a língua com que se identificará a
comunidade de falantes: o romance (língua vulgar, de matriz latina) é a língua oficial
com D. Dinis (Mattoso 1985 I: 74). Outros elementos simbólicos fundamentais
pertencem a este primeiro período. O reino possui um nome próprio – Portugal – e surge
a designação de portugueses para designar o conjunto étnico formado pelos seus
habitantes (id., ibidem).
A formação dos vínculos da nacionalidade é lenta, gradual e será minoritária. Para
Mattoso, até 1325, há “identidade nacional” – para ele uma unidade política com
fronteiras e os seus habitantes – desde a primeira metade do século XIII, mas os indícios
mais precisos de “consciência nacional” (sentimentos de pertença) encontram-se no meio
clerical próximo da Coroa, como os clérigos do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Tal
“consciência nacional” não se encontraria no seio da nobreza e o historiador medieval é
de opinião que, para a maioria dos habitantes do reino, o rei não seria mais do que um
senhor, em termos feudais (Mattoso, 1985 I). Para Martim de Albuquerque existe desde
cedo uma ligação entre rei, agregado étnico e território. Também surgem expressões que
denotam a existência de vínculos sentimentais com o sangue e a terra. A lenda de
Ourique, que estará em formação no período medieval, implica uma concepção
providencialista dos portugueses: são um povo eleito por Deus (Albuquerque 1974: 340-
348).
A crise e consequente guerra aberta que se segue à morte de D. Fernando não se
reduzem a efeitos de um simples conflito dinástico. É conhecida, sobretudo, através dos
textos do seu cronista, Fernão Lopes. Este pertence à geração seguinte à que viveu os
acontecimentos iniciados em 1383 e foi nomeado para o cargo pelo novo monarca, D.
16
João. Esses factos, bem como a sua formação letrada, devem ser tidos em conta na
análise dos seus textos. Neles descreve os sentimentos dos meios populares hostis aos reis
de Castela e à rainha viúva (Leonor Teles) como amor da terra e afeição natural, a causa
de D. João Mestre de Avis como Evangelho português e identifica os castelhanos como
membros de uma nação contrária. Os castelhanos são identificados de acordo com
estereótipos negativos, como o da falsidade de carácter23. Para António José Saraiva,
apoiado na leitura dos seus textos, os conflitos de finais do século XIV revelam a
existência de um anti-castelhanismo popular exacerbado (Saraiva, 1965, 1993). Ora, este
anti-castelhanismo e a xenofobia devem ser entendidos como elementos constitutivos de
uma identidade nacional – um Nós – cuja génese se faz pela contraposição com o “Outro
Significante” (Triandafyllidou 1998), que é, e será por muitos séculos, o castelhano
(depois o “espanhol”). O padroeiro dos portugueses passa a ser S. Jorge, patrono dos
aliados ingleses, substituindo Santiago, o santo dos cristãos peninsulares, identificado
com Castela (Albuquerque 1974: 349-350).
Numa segunda fase – cujo início podemos localizar grosseiramente no fim dos
tempos medievais – e para a qual muito irão contribuir a educação humanista e a difusão
do escrito pela tipografia, irá assistir-se a uma proliferação de discursos que têm como
referência a nação portuguesa e o que lhe é relativo. A língua é exaltada e estudada,
mesmo num contexto bilingue (com o castelhano) no seio da elite letrada – algo de que é
testemunho a Gramática de Fernão de Oliveira (1536). Divulga-se o mito da ascendência
lusitana dos portugueses, cujas primeiras manifestações datam do século XV e que não
deixou de constituir um tópico da história nacional até aos nossos dias (Albuquerque,
1974: 273-284; Leal 2000). Elaboram-se narrativas em que se inserem os portugueses na
história bíblica – na linhagem de Noé –, como era próprio da época (Kidd 1999) e exalta-
se a autonomia do reino português, tornado independente das histórias leonesa e
castelhana, como na História de Portugal de Fernão de Oliveira24. A exaltação do que é
próprio em confronto com o estrangeiro (castelhano/espanhol) percorre a historiografia, 23 Cf. Fernão Lopes, Crónica de D. João I, Porto, Livraria Civilização, 1990 (século XV). 24 A História de Portugal, bem como o Livro da Antiguidade, Nobreza, Liberdade e Imunidade do Reino de Portugal de Fernão de Oliveira constam de um manuscrito da Biblioteca Nacional de Paris, estando quase totalmente inéditos até ao século XX. Celebram a autonomia de um Reino de Portugal, de matriz bíblica, que teria resistido à dominação romana e nunca teria sido sujeito aos reinos de Leão e Castela. Esse manuscrito foi analisado recentemente por Teyssier (1959) e Franco (2000). O último produziu um estudo desenvolvido destes textos e editou ambas as obras. Ambos os escritos possuem um forte cariz patriótico.
17
mesmo a produzida durante a união dinástica sob os Habsburgo (1580-1640), como foi o
caso da historiografia alcobacense (Le Gentil 1995 [1954]; Albuquerque 1974; Franco
2000)25.
Portugal é caracterizado recorrentemente pela elite letrada como pátria e nação
(Sobral 2003). Camões produz, sob a forma de poema épico, a narrativa histórica mais
divulgada dos portugueses, Os Lusíadas. O seu êxito imediato (Le Gentil 1995 [1954]:
37-123) encontra um eco prolongado na posteridade, nomeadamente no nacionalista
século XIX, quando terão lugar as comemorações do Tricentenário da sua morte. É a
única individualidade portuguesa a estar hoje directamente associada a um feriado. O 10
de Junho, dia da morte do poeta, será celebração da raça nacional sob o Estado Novo,
celebração de novos sentidos propostos para o nacional – honrando personalidades nos
campos económico, político, cultural e científico e em particular a emigração portuguesa
– quando se transformou em Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades
Portuguesas26.
Trata-se, como é evidente, de manifestações discursivas restritas ao pequeno –
conquanto influente – mundo dos produtores intelectuais e dos que possuem competência
para os ler. Não podemos deduzir que houvesse uma partilha de representações com
camadas sociais mais vastas, durante os séculos em que a maioria da população
portuguesa foi analfabeta (quase até ao presente). Além disso, trata-se de uma elite, que
representa o país em termos verdadeiramente “transnacionais”, pois vai buscar os tópicos
que utiliza na sua imagem de Portugal e dos portugueses – como a narrativa mencionada
atrás que insere a história dos portugueses na história bíblica – a um reportório comum a
outros coetâneos que o aplicam nos seus países (Baroja 1992; Kidd 1999). Todavia, não
podemos pensar que existia uma separação completa entre este universo social e
intelectual e as camadas mais amplas da população. A comunicação entre ambos os
sectores operava-se através de mediadores culturais. Entre esses, os membros do clero e
os agentes do poder de estado são os mais importantes. Não se pode esquecer que entre as
25 Ou em obras como ou nas Flores de España, Excelencias de Portugal (1631) do Dr. António de Sousa de Macedo, que, embora dedicadas a Filipe II, exaltam em tais termos a superioridade portuguesa, que Charles Boxer duvidava que alguma vez tivesse “sido publicada uma obra mais histericamente nacionalista” (Boxer 1977 [1969]: 414). A obra conheceu uma reedição recente em 2003. 26 Celebrado em Portugal e entre as comunidades residentes no estrangeiro e regulamentado pelo Decreto-Lei nº 51/92.
18
mais velhas identidades colectivas as religiosas têm lugar de destaque (trate-se do
Judaísmo, do Cristianismo, do Islão, do Hinduísmo, do Budismo, etc.). Deve-se ao clero
a criação da maior comunidade imaginada da Europa – o Cristianismo –, para referir o
qualificativo célebre de Anderson (1983), depois dividida e conflituosa, mas persistente
ao longo de milénios27. Apesar de haver excepções, esse clero teve um papel de primeiro
plano na mobilização popular contra o estrangeiro, através da sua pregação, em
conjunturas com a luta contra a monarquia dos Habsburgo no século XVI e nos
levantamentos contra os exércitos napoleónicos em começos do século XIX (Marques,
1991a, 1991b). E o estado, convergindo com a acção eclesiástica, que sempre procurou
controlar, tem um papel decisivo que atinge múltiplas instâncias da vida social, actuando
através dos seus próprios intermediários como os comandantes das ordenanças, câmaras
municipais, aparelho judicial, etc. (Sobral 2003: 1113-1114).
Há, entretanto, sinais de identificação do conjunto mais amplo da população com as
personagens reais, símbolos do colectivo (Albuquerque 1974: 54-56; Bloom 1990: 61). O
sebastianismo é, a esse respeito, revelador. Esta crença, assente em messianismos
anteriores (Sobral 2003: 1116), ligada à ideia dos portugueses como Povo Eleito,
explicitada nomeadamente na Lenda de Ourique, conhece uma forte intensificação com a
morte do rei na batalha de El-Ksar el-Kebir (Alcácer-Quibir), interpretada como o seu
desaparecimento pelos crentes. O sebastianismo surge associado à contestação anti-
filipina – posteriormente seria utilizado em benefício da nova dinastia brigantina.
Animou a movimentação em torno dos pseudo-sebastiões populares. (Azevedo1917,
1947; Godinho 1968: 262; Boxer, 1977 [1969]; Serrão 1969: 28-29). Aos sentimentos de
pertença associados ao sebastianismo ligam-se os que decorrem do envolvimento de um
bom número de elementos de população na conquista e expansão do império ultramarino
e de uma consequente auto-exaltação da identidade própria (Boxer 1977 [1969]: 415;
27 A comparação entre a identidade colectiva religiosa – como a católica – e a identidade colectiva nacional é de grande utilidade. Em primeiro lugar, é um exemplo de como identidades colectivas se mantêm no tempo, adequando-se a novas realidades históricas, que supostamente as fariam desaparecer (no caso da religião, o desenvolvimento científico, que a destruiriam como visão do mundo, a modernidade em geral, etc.; no caso das nações, a globalização, a hibridação cultural, a perda de poder soberano dos estados, a integração em unidades mais amplas como a EU, etc.). Depois, porque mostram como é possível manter uma identidade comum, mesmo quando existe uma separação cultural muito grande entre a elite e o conjunto dos crentes – como sucedeu no catolicismo, onde a maioria dos fiéis nem lia a Bíblia nem compreendia os actos litúrgicos celebrados em latim até às reformas introduzidas pelo Concílio Vaticano II. O fervor dos católicos – como dos crentes de outras confissões – nem por isso era menor.
19
Marcu 1976: 17-20). Para alguns autores, não há qualquer dúvida que existe uma forte
“consciência nacional” no século XVI em Portugal (Marcu 1976: 17), e mesmo que a
maioria dos portugueses eram “fervorosamente nacionalistas” (Boxer 1977 [1969]: 415)
– entendendo-se por tal o orgulho etnocêntrico e um sentimento de identidade que os
diferenciava dos demais. A oposição à união dinástica das “grandes massas”, em
contraste com a minoria dominante, “amoldava-se a sentimentos colectivos fortemente
enraizados” (Godinho 1968: 262)28.
A luta que se segue ao movimento da Restauração implicará uma forte
mobilização da população em termos militares e uma pesada carga fiscal nas décadas
seguintes, indicia uma forte identificação com o colectivo. No mínimo, ela indiciaria uma
forte xenofobia anti-castelhana, aspecto em que estão de acordo o historiador das
instituições António Hespanha (1986) e o historiador dos movimentos antifiscais no
período filipino António de Oliveira (1990). No entanto, de acordo com Reis Torgal,
existe na época um sentimento de superioridade nacional portuguesa e de nacionalismo
tanto entre os intelectuais como em meio popular (Torgal 1981: 77). Para Vitorino
Magalhães Godinho, o império colonial português, centrado no Atlântico, persistiu graças
à resistência “luso-indígena”. Este autor detecta clivagens sociais importantes nessa
resistência, no apoio à Restauração e à luta que se lhe seguiu. Parte da nobreza e mesmo
do alto clero (como a Inquisição) e alguns grandes mercadores serão partidários da
continuação da união dinástica, mas não as “camadas populares”, que apoiam o golpe de
nobres e letrados (Godinho 1968).
Em nossa opinião, as manifestações designadas por xenofobia e o etnocentrismo
que lhes é inerente são parte integrante da identificação com o nacional, que mostram
uma enorme vitalidade em período de guerra, momento de consolidação, por oposição, da
identidade própria (Bloom 1990: 66-67).
Uma terceira fase do desenvolvimento da identidade nacional em Portugal é marcada
pela difusão e inculcação de representações que lhe dizem respeito. Intelectuais e estado
desempenham um papel fundamental, quer se encontrem em sintonia, quer exista
discórdia ente alguns sectores do campo intelectual e o poder. Não haverá
28 O mesmo historiador refere que, apesar de as camadas dominantes praticarem o bilinguismo muito antes da união dinástica, nas camadas populares havia uma “declarada hostilidade” à mesma (Godinho 1968: 258).
20
homogeneidade nas representações propostas – o debate em torno do sebastianismo é um
sinal disso –, como se constata a um nível bastante básico, pelo modo como se
representam as personalidades históricas. Pombal, o ministro absolutista, será um ícone
liberal e republicano; Nuno Álvares Pereira, beatificado pela Igreja em 1918, ascendente
dos Bragança, será figura querida da aliança monárquico-católica que se opõe à
República laica29.
Essa divulgação e amplificação das representações têm lugar sobretudo ao longo dos
últimos dois séculos, conhecendo uma intensidade crescente que acompanha as próprias
transformações económicas e sociais do país. É o momento de construção das histórias
nacionais – e de entronização da própria história como referente da nacionalidade, como
é patente no estatuto de que gozará a figura de Herculano. Essas narrativas são
propagadas e popularizadas por via do ensino30. A nova imprensa de massas, surgida na
2ª metade do século XIX, torna mais acessíveis as representações sobre Portugal –
históricas ou respeitantes à actualidade – difundidas para todo o país à medida que as
redes ferroviárias e rodoviárias se ampliam. A literatura, ao criar um corpo de leitores
estável, contribui para homogeneizar um certo tipo de representações do país.
O nacionalismo impregna o mundo político – um seu sinal é o aparecimento, desde o
início do século XX em Portugal (Cascão 1992: 325-364) de movimentos que se definem
explicitamente como nacionalistas. E também o mundo cultural. Haverá movimentos
literários assumidamente nacionalistas – Neo-garretismo, Neo-lusitanismo, Renascença
Portuguesa...– a procura de definição de uma arquitectura nacional, como sucede com
Raúl Lino e a sua “casa portuguesa”, de uma arte portuguesa. As disciplinas emergentes
da arqueologia, da etnografia, da antropologia (física) são animadas pelas posições
nacionalistas, que procuram rastrear em artefactos, romances, provérbios e as práticas
mais diversas os elementos de antiguidade e originalidade da nação. Procura-se preservar
o passado – aquilo que hoje conhecemos pela designação abrangente de património –
como prova tangível de nacionalidade (Martins 2003-2004). Os espaços urbanos são
pontuados por monumentos destinados a perpetuar uma gesta nacional.
29 Ver: sobre Nuno Álvares Pereira, (Catroga 1998: 251-254); sobre Pombal (id.,ibid.: 304-309). 30 Ver, sobre o papel da historiografia em geral Muntz (1977: 154); sobre Portugal, Matos (1998) e Torgal, Mendes e Catroga (1998). Mais recentemente Catroga (2001) debruçou-se sobre as relações entre história e memória colectiva.
21
As comemorações são um meio que irá permitir a participação de um número
crescente de portugueses na celebração do facto nacional, e, por esta via, na reprodução
da sua própria identidade. Já anteriormente havia celebrações – como as procissões
comemorativas das batalhas de Toro ou de Aljubarrota – e mesmo as que celebravam
acontecimentos da família real – nascimentos, casamentos, mortes – não deixavam de
implicar a comunidade histórica que os mesmos tutelavam (Bethencourt 1991). Todavia,
a nação é agora o ente supremo ao qual tudo se deve subordinar. As comemorações
públicas de Finais de Oitocentos celebram os homens eminentes e eventos ligados às
chamadas Descobertas – Centenários de Camões (1880), do Infante Dom Henrique
(1894), do descobrimento do caminho marítimo para a Índia (Catroga 1998: 226-243;
Matos 1998: 434-462).
Prolongar-se-ão no século XX – as mais importantes serão as comemorações dos
centenários da Fundação e da Restauração de Portugal em 1940. São uma celebração
colectiva, um enunciado de uma história e de uma identidade (Catroga 1998: 256-280).
Em Portugal, como na configuração das entidades políticas que se representam como
nações, chegara o tempo da nacionalização das massas, na expressão de Georg L. Mosse
(1975). Foi um momento de importância nuclear na difusão de imagens de identificação
nacional31.
5 – A memória e a identidade nacional como processos
A memória e a identidade nacionais são o resultado de processos que desembocam
em efémeros presentes32. Não são redutíveis a uma configuração que apresentam em
determinado momento. Passam por transformações do que era tido por mais essencial,
sem que a maioria dos que se reclamam de ambas sintam que se operou uma ruptura
irreversível.
31 Uma perspectiva genérica sobre o modo como o nacionalismo impregna diversas manifestações sociais e culturais encontra-se em Ramos (1994). No que diz respeito especificamente à história oitocentista Campos Matos (1998) e sobre diversas formas da representação da história – escrita, exibida, filmada, comemorada – ver Torgal, Mendes e Catroga (1998). 32 Como observou Zerubavel (2003a: 37), o passado e o presente não são entidades inteiramente separadas.
22
Como defendemos atrás, a produção de uma identidade nacional obedece em grande
medida à actuação do poder estatal. É sabido que este ficou dotado de meios de grande
eficácia ideológica desde finais do século XIX, através nomeadamente do
desenvolvimento do sistema escolar. Com ele concorriam o crescimento dos jornais
modernos dotados de um público cada vez mais alargado e outros instrumentos de
difusão de imagens sociais como o exército, sociedades culturais, os partidos políticos,
etc. A imagem nacional que vemos difundida pelo poder se Estado nesse período insistia
na sua qualidade de poder colonial, e era partilhada pelo movimento republicano. Por isso
a caracterização de Portugal como Império colonial manteve-se sob a República e
consolidou-se como elemento fulcral da representação da identidade nacional portuguesa
durante o Estado Novo. Com as adaptações necessárias, como ocorreu nos anos 50, em
que, perante a conjuntura da descolonização, se procuraram abolir as conotações de
dominação ligadas ao Império. Portugal não possuía colónias, mas províncias
ultramarinas.
Entre 1961 e 1974 o Estado Novo empenhou-se na defesa dessa identificação,
envolvendo-se em várias frentes numa guerra de guerrilha que acabou por ser o
detonador do seu fim. Depois, as colónias acabaram. Este facto fez-se sentir de modo
muito variável, mas não representou qualquer colapso que pusesse em causa a
continuidade nacional. Os cidadãos portugueses regressados – os chamados “retornados”
–, muitos dos quais profundamente hostis às decisões tomadas, acabaram por integrar-se
na sociedade portuguesa sem grande drama político.
Todavia, a “Idade do Ouro” da narrativa histórica nacional permaneceu a Época das
Descobertas, com as reformulações próprias de uma adaptação à nova situação. A
Exposição de 1998, que marcou a mais importante intervenção no espaço urbano da
capital, invocava – e celebrava – ainda a chegada das naus à Índia. O tempo da
Exposição, que se pretendia um manifesto da modernidade e do cosmopolitismo dos
portugueses, coincidia, em termos de calendário, com (mais) um centenário da
“descoberta” da Índia, que explicitamente comemorava. Vasco da Gama era de novo
celebrado, com torre e uma ponte de grandeza excepcional, certamente à medida da
importância simbólica atribuída ao navegador e à chegada dos portugueses à Índia na
narrativa nacionalista. Mas este passado, outrora orgulhosamente definido como imperial,
23
era entretanto investido de novos sentidos no Portugal pós-colonial. Às imagens bélicas
do conquistador e do navegador aventureiro, enaltecidas intensamente desde finais de
Oitocentos, sobrepuseram-se as da exaltação de um Portugal pioneiro no contacto
cultural33. A imagem nacional continuou, portanto, a apoiar-se num fundo temático
antigo constitutivo de uma memória e de uma identidade nacionais que se vão adequando
a conjunturas distintas e que servem para manter a continuidade entre situações
radicalmente diferentes como o passado e o presente portugueses34.
Mas, como vimos, a perpetuação das identidades nacionais não assenta apenas na
partilha de determinado tipo de representações sobre o conteúdo da sua história. Tem
como primeiro suporte o sentimento de que a colectividade possui uma história e não
depende de qualquer facto em particular (Billig 1992). Assenta na rotina, no quotidiano,
na conversação, em tudo o que assegura a perpetuação não intencional do facto nacional.
Deste ponto de vista, a ruptura trazida pela descolonização, se parecia ter efeitos
dramáticos do ponto de vista da representação oficial da identidade, não os trazia do
ponto de vista da vida social dos seus habitantes. Estes, na sua maioria, nada tinham a ver
com as colónias, que só conheciam da escola ou do serviço militar – consoante a idade. A
sua vida quotidiana prosseguia no mesmo quadro territorial e cultural. Continuaram a
percorrer os mesmos locais, a falar a mesma língua, a consumir em larga medida o
mesmo tipo de cozinha identificada como portuguesa, isto é, nacional. O estado, produtor
ideológico de memória e identidade nacionais, de legislação condicionadora de habitus
fundamentais, persistiu. Os símbolos identificadores – bandeira, hino, língua … –
também. Apesar de os portugueses estarem cada vez mais em contacto com outros e de
serem por eles influenciados – no interior do território nacional, como no seu exterior –
não houve qualquer hiato na sua percepção genérica de serem parte de uma cadeia
contínua que os une às gerações anteriores, como não se alterou o seu entendimento de
33 Os manuais escolares do básico e do secundário reproduzem muitos dos conteúdos da narrativa nacionalista anterior, combinados com novos. A obra de Catroga (1998: 226-304) oferece um tratamento minucioso dos debates e das posições contrastantes ao longo de um século de comemorações, por ele designado como ciclo “nacionalista-imperialista”, que não podemos aqui desenvolver. 34 O tempo simbólico nacional também sofreu mudanças, adequando-se aos novos tempos e exaltando-os. Acabou a celebração do “28 de Maio”, passaram a consagrar-se o “25 de Abril” e o “1º de Maio”.
24
serem um colectivo com características próprias35. Estes elementos constituem o cerne da
memória e da identidade nacional. Os conteúdos destas podem ser revistos – como no
caso da relação entre Portugal e as suas colónias – mesmo em aspectos que muitos têm
por cruciais, sem as pôr em causa.
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35 A própria composição da população nacional mudou, embora em pequena percentagem, com a chegada de cidadãos nacionais portugueses oriundos de países africanos. Mas não cremos que a percepção comum do português como “branco” se tenha minimamente alterado.
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