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Universidade de So Paulo
Instituto de Psicologia
Abenon Menegassi
O CONCEITO DE DESTITUIO SUBJETIVA NA OBRA DE JACQUES LACAN
SO PAULO - 2010
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Universidade de So Paulo
Instituto de Psicologia
Abenon Menegassi
Sobre o Conceito de Destituio Subjetiva na Obra de Jacques Lacan
Dissertao apresentada aoPrograma de Ps- Graduao emPsicologia Clnica do Instituto dePsicologia da Universidade de SoPaulo, como parte dos requisitospara obteno do grau de Mestreem Psicologia.
rea de Concentrao: PsicologiaClnica.Orientador: Prof. Dr. ChristianIngo Lenz Dunker
So Paulo 2010
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Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por
qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa,
desde que citada a fonte.
Catalogao na publicao
Servio de Biblioteca e Documentao
Instituto de Psicologia da Universidade de So
Paulo
Menegassi, Abenon.O conceito de destituio subjetiva na obra de Jacques
Lacan / Abenon Menegassi; orientador Christian Ingo LenzDunker. So Paulo, 2010.187 p.Dissertao (Mestrado - Programa de Ps-Graduao em
Psicologia. rea de Concentrao: Psicologia Clnica) Institutode Psicologia da universidade de So Paulo.
1. Destituio 2. Sujeito 3.Lacan, Jacques 1900-1980,4. Psicanlise.
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FOLHA DE APROVAO
Sobre o Conceito de Destituio Subjetiva na Obra de Jacques Lacan
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia Clnica doInstituto de Psicologia da Universidade de So Paulo, como parte dos requisitos
para obteno do grau de Mestre em Psicologia.
Abenon Menegassi
Banca Examinadora
Prof. Dra. Ana Laura Prates Pacheco
Instituio____________________Assinatura___________________________
Prof. Dr. Daniel Kupermann
Instituio__________________ __Assinatura__________________________
Prof. Dr. Christian Ingo Lenz Dunker (orientador)
Instituio_____________________Assinatura__________________________
Realizado em: ____/_____/_________
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Agradecimentos
Agradeo ao meu orientador, Prof. Dr Christian Ingo Lenz Dunker.
Prof Dr Ana Laura Prates e ao Prof. Dr. Daniel Kupermann, pelas idias e
sugestes apresentados no exame de qualificao.
Aos Professores do Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo, pelas
idias e sugestes levantadas durante as aulas das disciplinas cursadas.
Ao Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo, pela oportunidade de
realizao deste curso de mestrado.
Aos amigos do curso, Letcia, Marcelo, Jonas, Ronaldo, Ana Paula, Dulce,
Leandro, Tatiana. Obrigado pelas inmeras horas de interlocuo.
minha esposa, Branca. Aos meus filhos Nadja e Abenon jr.
Ao meu neto Lenin Daniel.
Ao meu sogroIn memorian: Emilio Estevez Otero
Aos meus pais e irmos.
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Resumo
O objetivo deste trabalho estudar o conceito da destituio subjetiva tal como
Jacques Lacan a define com relao ao final de anlise a partir dos anos sessenta.
A partir da considerao do personagem Jacques Maast do livro O GuerreiroAplicadode Jean Paulhan de 1917, apresentado por Lacan como referncia para a
destituio subjetiva, levantamos a questo sobre como se sustenta a vivncia
desse personagem no lao social, uma vez que aps o final da anlise o sujeito
desejante, em sua negatividade, ainda assim est exposto constante interpelao
do Outro da Ideologia (no caso de Jacques Maast, a guerra).
Palavras-chave: Destituio, Sujeito, Lacan.
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Abstract
The objective of this work is to study the concept of the subjective destitution
such as Jacques Lacan defines it with relation to the end of analysis from the
Sixties. From the consideration of the personage Jacques Maast of the book TheApplied Warrior of Jean Paulhan of 1917, presented for Lacan as reference for the
subjective destitution, we raise the question on as if it supports the experience of
this personage in the social bow, a time that after the end of the analysis the
wishes subject, in its negativity, still thus is displayed to the constant
interpellation of the Other of the Ideology (in the case of Jacques Maast, the war).
Word-key: Destitution, Subject, Lacan
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Sumrio
Introduo...........................................................................................................10
1. Instituio e Destituio do Sujeito em Psicanlise ..................................17
1.1.O Problema da Formao de Psicanalistas aps 1963.......................17
1.2.A Formao do Analista e o seu Desejo...............................................20
1.3. A Escola de Lacan: a Destituio Subjetiva e o Passe .......................23
2. Destituio Subjetiva e Intersubjetividade ..................................................30
2.1. Incidncias da Destituio Subjetiva ..................................................30
3. Aspectos Clnicos da Destituio Subjetiva.................................................. 40
3.1. Destituio Subjetiva e Problemtica do Reconhecimento ...............40
3.2. A instituio do sujeito em psicanlise................................................42
3.3. Destituio Subjetiva e Final do Tratamento Psicanaltico...............52
3.4. Jacques Maast e Ernst Junger: contrastes e semelhanas na
destituio subjetiva......................................................................................60
3.5. Destituio subjetiva e sujeito suposto saber.......................................73
4. Jean Paulhan e o Guerreiro Aplicado exemplo de destituio subjetiva
........................................................................................................................... 86
4.1. Jean Paulhan e Jacques Lacan.............................................................86
4.2. A Destituio Subjetiva de Jacques Maast ........................................97
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5. Concluso: O Guerreiro Aplicado como Modelo para a Destituio
Subjetiva..........................................................................................................102
6. Anexo 1: Resumo com comentrios do livro O Guerreiro Aplicado de
Jean Paulhan...................................................................................................109
7. Anexo 2:Traduo de O Guerreiro Aplicadode Jean Paulhan...............135
8. Bibliografia................................................................................................177
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Introduo
O objetivo deste trabalho estudar o conceito de destituio subjetiva na
obra de Jacques Lacan. Trata-se de um conceito que tem apario tardia nesta
obra, mas que ocupa um lugar estratgico na definio do escopo e objetivos do
tratamento psicanaltico, notadamente nos anos 1960. Pretendo mostrar que a
idia de destituio subjetiva encontra-se ligada a uma srie de preocupaes em
torno da formao de psicanalistas, bem como do lugar da psicanlise no campo
social. Desse modo, o nosso propsito maior responder a seguinte pergunta:
como podemos caracterizar a experincia da destituio subjetiva tendo em vista
que o sujeito, aps o tratamento psicanaltico, continua a se encontrar com
interpelaes ideolgicas e com o empuxo alienao. Em outras palavras, qual adensidade, a pretenso e a periculosidade tica e poltica da noo de destituio
subjetiva?
Segundo Safatle (2003), na dcada de sessenta Lacan promove uma virada
conceitual na sua obra no que concerne aos fins da anlise. Esta virada acontece
em relao ao programa at ento elaborado por ele quanto ao estatuto da
intersubjetividade pertinente prxis analtica e seus possveis desenlaces. O que
fundamenta esta virada o relativo abandono do que havia marcado o ensino deLacan por trinta anos: a idia de uma experincia intersubjetiva no interior da
anlise mediante a qual o desejo se faria reconhecer simbolicamente. No que
concerne aos fins da anlise, tal como compreendida por Lacan neste interstcio,
o seu desenlace deixa de ser entendido como reconhecimento intersubjetivo do
desejo e ganha a expresso da destituio subjetiva.
No captulo 1 abordarei o tema da destituio subjetiva em relao com a
formao de analistas na Escola de Lacan atravs do dispositivo do cartel e dopasse, por entender que esta forma institucional que Lacan privilegia para dar
continuidade tica do tratamento que ele elucida em sua clnica. tica esta que
transposta para o circulo institucional ser capaz de combater os efeitos
degradantes da concepo terico clnica da psicologia do ego tal como difundida
particularmente pelos psicanalistas da Associao Psicanalitica Internacional
(IPA) . Quanto ao tema da formao de analistas, considero pertinente que se
recorra a uma maior compreenso do problema da mediao por entender que este
o fio condutor desde o qual se pode distinguir os mecanismos envolvidos na
formao de analistas em contraposio com a outras modalidades de formao.
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Trabalharei, portanto, o que est em jogo no processo de formao de
psicanalistas, e como a destituio subjetiva aparece neste terreno fazendo parte
crucial da formao e do desejo do analista. Os acontecimentos verificados em
1963, que culminaram na excluso de Lacan da IPA, geraram um novo problema.
Tal problema gira em torno de se saber que tipo de lao social alternativo seriacorrelato de um redimensionamento dos fundamentos da formao psicanaltica
em funo de uma institucionalizao e insero social do sujeito analisado. Esse
um problema relevante e incontornvel para Lacan tendo em vista sua crtica
sistemtica s prticas de hierarquizao, docilizao e instrumentalizao
institucional da formao do psicanalista. Ou seja, no contexto de sua excluso,
ele teria que oferecer uma alternativa real aos seus alunos e psicanalisantes no que
toca ao lao social esperado no quadro de uma Escola de Psicanlise. Nossahiptese de que o conceito de destituio subjetiva cumpre esta funo de ser ao
mesmo tempo um prolongamento sinttico das discusses de Lacan sobre o desejo
do psicanalista e a tica da psicanlise e uma forma de tematiza o lao social
condizente com a formao como psicanalista (dentro de uma instituio), bem
como o lao social condizente com algum que tenha passado pela experincia de
uma psicanlise (dentro do campos social).
Para que o termo da destituio subjetiva possa ser compreendido no
interior da obra de Lacan, e qual sua dimenso no seu projeto clnico, terico e
formativo, considero necessrio um levantamento das passagens em que Lacan se
refere a esta noo em seus textos. Para entendermos o conceito preciso retomar
a exposio do que vem a ser o sujeito para Lacan e como ele articula este
conceito em relao sua instituio, sua retificao e sua destituio no decorrer
do processo analtico. Ser necessrio tambm retomar a noo de ser, para
entender o emprego reiterado da noo des-ser em associao com a idia de
destituio. Desta maneira espero conseguir estabelecer um espao que permita o
entendimento do que seja a destituio subjetiva bem como seu papel poltico na
trajetria historicamente dada de Lacan.
No captulo 2 abordo a noo de destituio subjetiva tendo em vista suas
relaes com a concepo de intersubjetividade. A idia aqui discutir a novidade
e a ruptura representada pela noo de destituio tendo em vista a primeira
concepo lacaniana da intersubejtividade como reconhecimento reflexivo.
Examinarei aqui aspectos da leitura que Lacan faz da dialtica de Hegel
apresentando ao final, de modo comentado, as principais incidncias da expresso
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na obra de Lacan
No captulo 3 abordo as implicaes clnica da noo de destituio
subjetiva tendo em vista noes correlatas dotadas de implicaes clnicas diretas.
Considerando-se o trajeto do tratamento psicanaltico destaco a importncia de
noes como a de retificao subjetiva, de sujeito suposto saber e de des-ser comonoes que ao seu modo retratam o que se pode esperar da posio do sujeito no
incio, no meio e ao final da anlise. A idia de que a psicanlise revela a
condio do sujeito como corte e permite uma separao nova com relao ao
objeto fundamental ao qual este se encontra alienado, o objeto do fantasma, torna-
se assim um crivo de comparao para a noo de destituio subjetiva. A
pergunta que orienta este captulo diz respeito localizao das insuficincias
destes conceitos para descrever o que se espera do tratamento psicanaltico.No captulo 4, adentrarei na novela de 1917 de Jean Paulhan, O Guerreiro
Aplicado para, a partir da considerao do personagem Jacques Maast,
apresentado por Lacan como ilustrao da destituio subjetiva em sua
salubridade. A afirmao de Lacan bastante clara: h algo do conceito de
destituio subjetiva que este romance permite localizar. Menos clara a
interpretao desta afirmativa. Qual ter sido o ponto de correlao levado em
conta nesta tese? Estamos falando de Jacques Maast, personagem principal do
livro de Jean Paulhan, ou seja, um campons do interior da Frana que se engaja
voluntariamente na guerra de 1914-1918, atravesando-a de modo bastante
peculiar. Circunstanciada que est pelo momento histrico do incio do sculo XX
europeu, que tem como um de seus traos predominantes a cultura da belle
poque,a obra de Paulhan, possui vrias caractersticas intrigantes e instigantes
quando correlacionadas com o conceito de destituio subjetiva. Trata-se de um
texto semi-autobiogrfico com tons testemunhais que retoma a prpria experincia
do autor na Primeira Guerra Mundial. Trata-se de um texto que procura tematizar
a emergncia de um tipo de subjetividade dcil e quase aptica que retoma a
preocupao de seu autor com o colaboracionismo francs durante a ocupao
alem na segunda guerra mundial. Trata-se ainda de um texto que contm uma
srie de novidades formais, como o uso de provrbios (rcits), variaes
narrativas e microhistrias que renovam a literatura francesa. Finalmente tais
novidades formais so apresentadas no contexto de uma problemtica homloga
da destituio subjetiva para a psicanlise, a saber, a relao entre literatura e vida
social, ou entre literatura e poltica. Apresentamos ento nossa hiptese: estaria
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Lacan empregando a destituio subjetiva, exemplificada em Jacques Maast,
personagem de O Guerreiro Aplicado, para falar (irnica ou literalmente) da
posio do psicanalista no mundo? Seria o qualificativo salubre, presente na
afirmao de que Jacques Maast a ilustrao da destituio subjetiva em sua
salubridade, uma afirmao irnica? Caso contrrio, o que seria uma destituiosubjetiva em sua face insalubre?
O objetivo mais genrico deste trabalho estudar o conceito de
destituio subjetiva propondo estabelecer como ele aparece em decorrncia da
reformulao empreendida por Lacan quanto aos paradigmas da intersubjetividade
no interior da psicanlise ao invs de simplesmente abandon-los. No que diz
respeito aos objetivos tericos este trabalho pretende mostrar como os limites de
uma nova modalidade de compreenso para a relao intersubjetiva, levam Lacana recuperar, depois de 1960, a problemtica separao entre as categorias de ser e
de sujeito como forma de enfrentar os paradoxos que levada sua teoria do
reconhecimento do outro. O reconhecimento da falta-a-ser,em seu efeito de ser,
constitutiva do sujeito descentrado e desejante torna-se assim uma alternativa para
ultrapassar os limites lingsticos nos quais se aprofunda sua concepo de
sujeito. Pretendo demonstrar como a noo de destituio subjetiva precisa
retomar esta dimenso do ser para poder incluir uma reflexo do sujeito no
interior do lao social. S a partir de ento possvel a tese que prope um novo
vnculo no lao social aps o final de uma psicanlise. A importncia deste estudo
resulta da pertinncia que a questo da intersubjetividade adquire no interior do
tratamento analtico. De fato, no se pode pensar a direo do tratamento seno a
partir de uma concepo de relao do sujeito com a falta em torno do qual giram
os aspectos envolvidos na transferncia, as concepes de poder, o projeto de
erigir a tica da psicanlise. Um objetivo secundrio desta pesquisa contribuir
para o entendimento da formao de psicanalistas levando-se em conta a
dimenso poltica do lao social da advinda. No se pode pensar a evoluo
conceitual de Lacan, com suas reviravoltas tericas, estabelecendo-se esta
evoluo abstrada do contexto histrico em que ocorre, particularmente no que se
refere ao movimento de institucionalizao da psicanlise na Frana. Nesta linha
nosso objetivo mostrar que o conceito de destituio subjetiva possui uma face
clnica e uma face social.
sabido que durante mais de uma dcada Jacques Lacan torna se o piv
de uma negociao entre a Sociedade Francesa de Psicanlise (SFP) e a
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Associao Internacional de Psicanlise (IPA). Como, desde 1953 a SFP, na
ocasio Sociedade Psicanaltica de Paris (SPP), estava banida da IPA, Lacan passa
a ser moeda de troca para que a SFP volte a fazer parte dos quadros da IPA. O
preo a ser pago pela SFP justamente a proscrio de Lacan uma vez que este
representava uma ameaa aos padres vigentes sobre a tcnica psicanaltica.Proscrito, Lacan funda a Escola Freudiana de Paris, em 1964, e d
continuidade ao seu ensino agora acrescido da necessidade de estabelecer um
programa concreto para a formao de psicanalistas. Este ensino tem, portanto, a
envergadura de uma subverso sustentada em relao quela normatividade
institucional que desviara a psicanlise de seu papel no mundo, o que se pode
notar tanto no tom crtico como nos argumentos dos chamados textos
institucionais de Lacan, notadamente anteriores 1963 (Situao da Psicanliseem 1952, A Psicanlise e seu Ensino). Dentro deste contexto, o tema da poltica
do tratamento, no interior da psicanlise, e o tema do final da anlise, no mbito
da poltica da psicanlise tornam-se interligados. So centrais porque possibilitam
a Lacan a promoo da rearticulao das formas institucionais que mantinha o
exerccio de um poder que se colocava a servio da obedincia cega dos analistas
em formao em relao aos seus analistas didatas. Diante da estrutura
institucional vigente, Lacan no hesita. Sua poltica procura extrair da prtica
clnica os elementos tericos que deveriam rearranjar a organizao institucional
dos psicanalistas e da sua formao.
O tema do tratamento e do final da anlise so, assim, os eixos em torno
dos quais Lacan erguer esta reorientao. O seu passo decisivo propor que
tratamento e final de anlise devem ser pensados enquanto campos que imbricam
visceralmente a tica da psicanlise em contraste com outros mtodos de
tratamento. Exerccio de poder e modos de subjetivao constituem o cerne
daquilo que est em jogo no campo analtico neste momento. Estamos falando,
portanto, da posio da psicanlise em relao ao quadro social mais amplo.
Diante das acusaes de que a psicanlise seria mais uma disciplina
normatizadora e adaptativa, que usina os sujeitos e os reinsere adequadamente no
liame coletivo a servio de uma sociedade alienada, preciso promover uma tica
que faa frente a estas acusaes e estabelea um campo que seja capaz de
responder a estas crticas.
O ponto alto desta crtica reside na objeo de que a psicanlise concebe a
cura como adaptao de sujeitos alienados. Ela repararia os fracassos da alienao
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devolvendo e produzindo sujeitos para uma sociedade baseada na alienao, na
reificao e na expropriao social do trabalho e do desejo. Ao readapt-los, a
psicanlise se poria a servio do Estado positivo que tem a coero como meio de
manter os indivduos sob julgo em nome de uma totalizao impossvel. A
psicanlise seria assim, como sugerem certas anlises crticas de Foucault, nadamais que uma extenso do Estado, uma variante do dispositivo de poder
psiquitrico. To clssista e domesticante quanto os demais aparelhos ideolgicos
que reproduzem os meios de produo s custas da segregao e do controle,
como sugere a crtica de Lucien Sve. To familiarista e conformista quanto as
prticas mais conservadoras em termos de produo da subjetividade, como
aponta a crtica de Deleuze e Guatarri. Diante deste problema, a formalizao da
psicanlise que Lacan ambiciona deve passar por uma concepo de relaointersubjetiva que no reproduza nem em seus meios e nem em seus fins, os
modos de produo que estruturam e reproduzem as relaes das sociedades
alienadas e alienantes. atravs desta concepo de relao intersubjetiva que
Lacan poder refazer o caminho trilhado pela psicanlise s objees sobre o
papel da psicanlise no mundo. O terceiro objetivo deste trabalho expor o
conceito de destituio subjetiva um exame crtico do ponto de vista das
objees imediatas que ele pode suscitar. Afinal em princpio o que nossa poca
precisa de verdadeiros sujeitos, de pessoas capazes de se implicar, se
responsabilizar e fazer valer seu desejo, ou seja, capazes de subejtivar seu desejo.
Falar em destituio do sujeito soa, neste contexto, como algo muito contra-
intuitivo.
Esta formalizao deve estipular para o sujeito um lugar na estrutura mas,
deve, antes de tudo, negativiz-lo em relao a esta estrutura. Includo na estrutura
e negativizada em relao a ela o modo que Lacan encontrou para reinserir um
sujeito capaz de estar no lao social sendo, ao mesmo tempo, capaz de se
posicionar diante dos modos de produo de alienao que esta sociedade cria.
Diante desta tarefa, que compreendo a apario do termo da destituio
subjetiva. E, para mostrar qual o caminho terico que Lacan percorre para forjar
este termo, to preciso e importante face tarefa que Lacan enfrenta, abordarei
alguns termos conexos que formam uma constelao coerente com a destituio
subjetiva e que, junto com ela, embasam o percurso de Lacan. So estes: objeto
pequeno a, des-ser, falta-a-ser (manque-a-ltre), fantasma, salubridade, efeito de
ser, destituio e sujeito.
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ela opera e como ela opera, ou seja, se o que pretende curar pessoas neurticas,
ento qual o seu mtodo de tratamento. Freud afirma que a psicanlise uma
parte da psicologia e no um ramo especializado da medicina. Mesmo assim, a
finalidade da psicanlise continua sendo de cunho mdico no sentido de que ela se
prope a obter uma cura partindo de um diagnstico e realizando um tratamento.Neste sentido, o que a psicanlise entende por cura deve ser bem explicitado, pois
disso depende o seu mtodo de tratamento.
Nesta via, por ser parte da psicologia, a psicanlise tem como nico tema
os processos mentais dos seres humanos, e para o estudo desses processos
mentais, que s podem ser estudados nos seres humanos, que a formao deve
preparar o analista. Lembremo-nos que os estudos de Freud sobre os processos
mentais levaram-no a construir uma metapsicologia. Desse modo, o que Freudprope que o objetivo do analista, para o qual ele deve ser preparado mediante
uma formao, a "anlise mais completa e mais profunda possvel de quem quer
que possa ser nosso paciente"(FREUD,1925-26).Esta anlise, conforme o que ele
expe emAnlise terminvel e interminvel (1937), visa a remover os sintomas,
angstias e inibies do paciente, prevenir suas reincidncias e fortalecer o eu de
forma a que este consiga uma posio melhor diante das exigncias da pulso.
Para que o analista esteja preparado para operar esta anlise em seus pacientes no
basta adquirir in ctedrao conhecimento da metapsicologia freudiana.
Para que o analista esteja em condies de exercer a psicanlise e analisar
seus pacientes tal como Freud orientou, preciso que a formao deste analista o
prepare adequadamente. Em se tratando de psicanlise, segundo Freud, esta
formao deve ser especial. O que nos obriga a perguntar se ela difere ou no das
formaes liberais que encontramos na cultura em geral.
Segundo Dunker, "Freud ope a experincia da psicanlise experincia
da formao no sentido da Bildung como prtica cultural educativa" (DUNKER,
2002, p. 73). O conceito de formao, caro ao idealismo alemo, aparece como
"Bilden e Bildung e enfatiza o resultado da educao" (INWOOD, 1992: p. 85)ao
passo que as palavras erziehen e Erziehung enfatizam o processo da educao.
Deste modo, aBildungsignifica cultura conquanto esta seja a soma de realizaes
acabadas da civilizao, ao passo que o verbo erziehene o substantivo Erziehung
indicam mais o movimento de construo ou o processo destas realizaes.
Ainda de acordo com o mesmo dicionrio, a palavra Bilden tambm
significa formar, moldar, modelar, cultivar. Enquanto Bildung remete
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apenas educao como resultado de um processo, a palavra Bilden, tal como o
verbo erziehene o substantivoErziehung,remete tambm ao processo mesmo da
formao em andamento. Assim, no movimento exercido est o sentido daBilden;
na realizao do acabamento ou finalizao do movimento est o sentido da
Bildung. Portanto, distintamenteBildenindica o processo eBildungo resultado daeducao ou formao.
Como dissemos, tendo em vista que a prtica da psicanlise requer do
analista uma posio subjetiva muito especfica, preciso perguntar se
suficiente a esta formao (Bildung e Bilden) a passagem por uma educao
franqueada pelos processos de desenvolvimento pedaggicos comuns s outras
profisses vistas como liberais. Como a psicanlise possui uma metapsicologia,
faz parte da formao do analista tomar conhecimento do saber prprio teoriapsicanaltica. A maneira que Lacan props para se institucionalizar a transmisso
e a aquisio deste saber nos grupos de analistas na Escola da Freudiana de Paris
enfatizava o dispositivo do cartel e depois o passe. No interior da Escola, a funo
do cartel tentar evitar, ou ao menos minimizar, as propenses de grupo a se fazer
do coletivo analtico, que deveria ser um lugar de trabalho com o real da
psicanlise, um lugar de transmisso e circulao de gozo e de poder.
Mas, felizmente, desde Freud, a formao do analista em psicanlise no
se limita aquisio de um saber terico e prtico, nos moldes liberais. Diante
desta realidade, a experincia clnica em psicanlise vem trazer luz a riqueza de
sua prpria especificidade prtica. Desse modo, a exigncia de uma formao
especial que possa preparar o analista para exercer esta prtica impe aos
formadores em psicanlise que se toque no problema da mediao inerentes aos
processos de formao.
Em seu artigo, em conformidade com a Bilden hegeliana, Dunker foca o
problema da formao afirmando que: "A formao no uma meta a ser
atingida, mas um percurso, um caminho, uma experincia a ser realizada. Neste
percurso, o que o sujeito torna real justamente o carter da mediao"
(DUNKER, 2002, p. 69).Como se v, formao e mediao so processos que,
por seu carter de experincia histrica quase se tornam sinnimos, no sentido de
que formar realizar, dar forma, ou passar pelos processos de mediao que
levam dialetizao com a alteridade. Em Anlise Terminvel e Interminvel
(1937), possvel perceber que Freud quase toma a palavra anlise como
sinnimo de formao e mediao. Neste sentido, o elemento fundamental da
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tratamento psicanaltico. Desse modo, o desejo do analista o operador necessrio
que o analista tem, e deve ter, para cumprir bem a sua funo. Como diz Cottet, "o
desejo do analista uma funo que opera" (COTTET, 1989, p. 183). Por isso, ele
deve ser certa maneira que o sujeito analista tem de se relacionar com o seu
desejo. Esta maneira aquela que mantm o analista na posio de objeto.Se o que funda o analista o seu desejo enquanto funo que opera no
interior do tratamento analtico, ento, a formao do analista visa ser a condio
para que o desejo do analista advenha, e esta condio no se verifica mediante
apenas a formao escolar do individuo adquirida nos bancos de uma ctedra
qualquer, no obstante Freud tenha insistido na importncia de universitas
literarum, e da cultura mais ampla possvel, como condies desejveis para a
prtica da psicanlise. No se extrai o objeto prprio ao analista a partir deaquisio de informaes. De fato, a relao do analista ao saber, relao
necessria para que advenha um analista e sua funo prpria, s a anlise pode
garantir. Dessa maneira, para que o sujeito obtenha um modo de se relacionar com
o seu desejo, condio necessria para que este advenha desejo do analista,
preciso que este sujeito entre em contato com as formaes inconscientes atravs
das quais ele submete e nas quais ele se aliena. Para isso, ele precisa entrar em
contato com estas formaes inconscientes que expressam as trilhas pelas quais o
seu desejo se deformou ao longo de sua existncia. Feita esta operao, o sujeito
estar em condies de redefinir o que prprio de seu desejo separando-o do
desejo do Outro que o habitava.
Dado este passo, temos o que essencial para que o desejo do analista
opere: a renncia ao poder. Desde Freud o problema da renncia ao poder a ser
exercido sobre o outro que permeia a formao do analista. A especificidade da
prtica psicanaltica reside na necessidade de uma posio subjetiva que tenha
passado pela capacidade de se relacionar com o saber de modo a no constitu-lo
como promotor da verdade e, logo, de poder. por isso que s o contato com as
formaes inconscientes mediante a anlise pode dar ao sujeito o desejo do
analista. apenas em parte que a formao do analista recorre a um saber sobre a
teoria psicanaltica para se apropriar de sua poltica e de sua tica. Neste aspecto,
o dispositivo do cartel, formalizado por Lacan, uma proposta que tenta dar
contornos prprios aos modos de produo deste saber na relao que tem com o
poder e com a verdade. Cumpre lembrar que o desejo do analista no est
desvinculado da tica e da poltica do analista, ao contrrio, em psicanlise s se
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pode falar em desejo enquanto tica. Deste modo, a tica da psicanlise depende
profundamente do processo de anlise que constitui o desejo do analista.
Se quisermos dar ao termo formao do analista um sentido adequado
no interior da psicanlise, devemos entender esta formao como um processo
pelo qual o sujeito re-aprende a se relacionar com o seu inconsciente. deste re-aprendizado, ou ps-aprendizado, que pode advir o desejo do analista enquanto
funo que opera.
Em Sobre o passe (LACAN, 1975), Lacan afirma que sua proposta sobre a
experincia do passe obtm algo que no da ordem do discurso do mestre, muito
menos ainda algo que partiria da idia de formao. O que ele enfatiza que no
h formao analtica, mas, sim, formaes do inconsciente. Lacan suprime a
idia de um didatismo para a anlise afirmando que s h psicanlise pura. Comisso, ele afasta qualquer possibilidade de se pensar que a psicanlise possa ser
transmitida mediante a teorizao ou qualquer outro meio que no a experincia
de anlise. Desse modo, a formao do analista deve passar fundamentalmente
pela experincia do inconsciente.
Como vimos, a formao do analista no se limita apenas aquisio ou
apropriao de um saber constitudo pelo discurso da cincia que apaga o sujeito,
mas, avana no sentido de um saber de si singular, o que inclui o real.
Afirmei a pouco que a formao de analistas deve se comprometer em
forjar sujeitos que tenham sido capazes de renunciar ao poder. Isto significa que
tal renncia s pode estar assegurada em pessoas cuja subjetividade se destituiu
do poder. Todavia esta formulao presume um certo entendimento do que vem a
ser o poder pois em certo sentido impossvel destituir-se de relaes de poder,
pois elas so inerentes ordem social. Contudo, h o poder como dominao,
como servido, como opresso e sobretudo como exerccio. Trata-se de uma
recusa, cuja negatividade, implicada na relao com o falo, que faz com que o
analista, sinnimo de sujeito, suporte o des-ser. Desse modo, s a destituio
subjetiva, garantida pela formao analtica, pode dar ao analista a condio
rigorosa para que ele possa autorizar-se ao exerccio desta prtica e de sua tica.
Como se trata de uma formao especfica, Lacan precisou fundar uma escola
singular.
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1.3. A Escola de Lacan: A Destituio Subjetiva e o Passe
Em conseqncia de sua conturbada relao com a IPA (International
Psichoanalitical Association), que culminou em 1963, aps dez anos de
perseguio sua prtica e ao seu ensino, com sua excomunho Jacques Lacanviu-se no decorrer dos anos seguintes diante da necessidade de criar um novo
modo institucional que cuidasse da convivncia em grupo de analistas com
objetivos de recrutamento e formao de candidatos a analistas.
Neste momento de sua trajetria intelectual e prtica como psicanalista, ele
sente a urgncia de extrair da sua experincia clnica alguns elementos que
pudessem contribuir como referncia para a construo de uma instituio de
formao de analistas que subvertesse os modos de operar daqueles agrupamentosprprios da IPA, e que estavam baseados numa hierarquia reprodutora de
identificaes e de segregao dado o lugar de mestria que seus lderes ocupavam
no interior de sua estrutura. A esta nova instituio que, segundo Lacan, poderia e
deveria dar testemunhos de uma garantia de formao suficiente, ele deu o nome
deEscola.
A palavra hierarquia origina-se de uma conjuno de dois termos gregos:
hieros, que significa sagrado e arch, que quer dizer mandamento (PORGE,
2006, p. 319).Fcil entender que hierarquia remete a sagrado mandamento. Por
outro lado, a palavra grau deriva do latim gradusque significa grau na hierarquia.
Para sabermos como funciona a escola de Lacan, preciso identificar a diferena
que h entre a hierarquia e o grau. O gradus o grau na hierarquia, mas alm de
marcar a posio, marca tambm o movimento, a progresso, quer dizer, a
situao de passagem de um ponto a outro. Para Porge, o gradus a posio do
combatente e o "passo de marcha (gradum facere)" (PORGE, 2006: 319).
Segundo este autor, a distino que Lacan faz entre graduse hierarquia tem como
meta combater o fracasso gerado pelas confirmaes do ttulos "das figuras
notveis que ocupavam funo de direo no inicio da criao da escola freudiana
de Paris"(PORGE, 2006, p. 319).
Desse modo, a Escola de Lacan tem a incumbncia de estatuir um modo de
participao coletiva que no seja hierarquizado, mas orientada pelo gradus, e que
esteja "fundada sobre o trabalho de pesquisa, o ensino e a didtica" (PORGE,
2006, p. 319). Lugar de uma experincia inaugural, a Escola no designa para
Lacan apenas um lugar, mas tambm um conceito, o conceito de um certo lao
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social a ser inventado. o refgio que possibilita ao sujeito pr-se prova
enquanto suporte de um discurso, o do analista, frente aos discursos do mestre e
da universidade. Lugar onde o sujeito se submete mais " escola da experincia da
psicanlise do que de proclamar-se titular de um saber estabelecido" (PORGE,
2006, p. 312).Da dizer-se que a Escola uma aposta de Lacan na proposta de uma
comunidade de analistas, onde este pr-se prova acontece nas diferentes
modalidades de transferncia de trabalho que estariam ligada possibilidade de
"operar os deslocamentos de investimentos, de interesses, de pessoas e de lugares
de trabalho" (PORGE, 2006, p. 313).
O que destacamos em nossa prpria leitura do Ato de fundao
(LACAN, 2003), texto de Lacan de 1964, que a Escola um organismo que fazcom que a psicanlise retorne aos princpios originais de Freud. O trabalho da
Escola indissocivel da formao porque pela via da formao que a escola
pode estabelecer o seu movimento de reconquista deste campo. Segundo Porge, a
escola adquire uma dimenso de combate, por tratar-se da reconquista do campo
freudiano "colonizada indevidamente pela IPA" (PORGE, 2006, p. 312). Trata-se,
portanto, de um lugar onde se exercita a "crtica assdua aos desvios e concesses
que amortecem seu progresso, degradando o seu emprego" (LACAN, 1964/2003,
p. 312). Lacan quer, com a sua Escola, combater os sintomas institucionais
apresentados pelos modos de aglutinao dos dirigentes da IPA. "O termo Escola
deve ser tomado no sentido de que, em tempos antigos, significava certos lugares
de refgio, ou bases de operao contra o que j ento se podia chamar de mal-
estar na civilizao. uma tomada de partido, a mais clara, contra e
extraterritorialidade da psicanlise" (PORGE, 2006, p. 312).
No texto da Proposio de 9 de Outubro de 1967, Lacan aborda mais
diretamente o problema relativo instituio e reconhecimento coletivo de
algum como psicanalista. Neste momento delimita-se com maior clareza a
proposta de duas formas de nomeao: os Analistas de Escola (AE) e os Analistas
Membros de Escola (AME). V-se claramente em que reside a aposta de Lacan ao
fundar a Escola, a suaescola - e este qualificativo no deixa de ser problemtico -
dever centrar-se na questo do desejo do psicanalista, o que leva questo da
formao. Seria a partir deste desejo que se pode instituir a posio de correo
em relao hierarquizao. Porge coloca que a proposio "articula a teoria do
final de anlise e a do ato...com a garantia de um procedimento coletivo de
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reconhecimento do desejo do analista"(PORGE, 2006, p. 318).Trata-se, portanto,
do problema do desejo do analista que deve estar articulado ao discurso
psicanaltico, tanto em teoria quanto em ato, recortando o seu estilo. Segundo
Porge, a Proposio, afirma que se trata de "uma verdadeira proposio de
escola, naquilo em que articula a letra (a teoria) e a experincia; o individual e ocoletivo; o privado e o pblico" (PORGE, 2006, p. 318).
Para Lacan, o conjunto destas articulaes pode ser sintetizado em dois
termos: intenso e extenso; a primeira refere-se singularidade da cura e a
segunda "relativa a ao que se ensina a partir da primeira direta ou indiretamente,
aos seu interesses, pesquisa, ideologia que ela acumula" (PORGE, 2006, p.
318).
H uma articulao de Lacan entre a psicanlise em intenso e apsicanlise em extenso, a saber, o conceito psicanaltico que equivalente sua
prtica ou seja, o conceito de transferncia. Ao forjar a experincia analtica em
extenso no vivo da experincia analtica em intenso e fazer desta a base
daquela, Lacan articula a verdadeira proposio de uma Escola. Aqui no
podemos esquecer do sentido antigo que uma escola guarda: o sentido de uma
comunidade. A IPA no fazia suas escolhas a partir da experincia analtica, nem
permitia objees. Suas decises eram de cunho sociolgico. De fato, ali as
votaes levavam em conta apenas critrios polticos, desconsiderando-se a
formao recebida. Contrariamente a essas prticas, a Escola de Lacan formaliza-
se no sentido de ser um dispositivo que neutraliza essas aes por parte de seus
integrantes. Na escola de Lacan, a critica permanente escolhe os melhores a partir
da experincia e no da reunio ideolgica de grupos que visam o exerccio de um
poder.
Diante do exposto, quero enfatizar que o objetivo perseguido neste
trabalho o de tentar esclarecer sob que moldes o termo da destituio subjetiva
aparece no interior da psicanlise. Estes moldes, podero ser melhor visualizados
se considerarmos o termo da destituio subjetiva em dois tempos. Um como
pertencendo ao campo da psicanlise em intenso. O outro, ao campo da
psicanlise em extenso.
No campo da psicanlise em intenso, podemos falar em destituio
subjetiva a partir da singularidade da experincia da cura. O conceito responde,
neste caso, aos desenvolvimentos e desenlaces que se pode esperar no decorrer de
uma anlise. Por outro lado, ao falarmos de destituio subjetiva como algo
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pertencente ao campo da psicanlise em extenso, estamos compreendendo o tipo
de experincia que se d aps o final de anlise, na comunidade de trabalho, nas
transferncias formativas e que supe o sujeito no lao social. Aqui, seguimos de
perto as coordenadas dadas por Lacan quanto articulao que ele faz sobre o
desejo do analista na prtica clnica e na Escola. Deste modo, assim como ostermos da psicanlise em intenso, temos que considerar aqueles correlatos que
foram empregados de modo a qualificar esta experincia antes da introduo da
noo de destituio subjetiva, notadamente a noo de falta a ser. Notamos que
h uma espcie de retomada deste qualificativo para referir-se ao que se passaria
na psicanlise me extenso, aps a introduo da noo de destituio subjetiva,
notadamente efeito-de-ser e salubridade. Transferncia e desejo de analista
so os conceitos que fazem a rotao entre extenso e intenso.Lacan introduz o termo destituio subjetiva justamente no momento em
que funda um espao comum de trabalho para os analistas. Assim, destituio
subjetiva o termo que Lacan cunha para, no interior da Escola, portanto, no
campo da psicanlise em extenso, promover a possibilidade de uma garantia
coletiva entrincheirada no combate quilo que comum ao mal-estar da
civilizao, ou seja, as hierarquias calcadas na identificao imaginria.
Para compreendermos como Lacan verifica se aps o final de anlise h no
sujeito o desejo de analista, ser preciso entender o dispositivo do passe. Garantir
o desejo do analista essencial porque preciso saber se o sujeito em questo se
dispe a se engajar numa prtica coletiva que no se exera a partir de uma sada
cnica de sua anlise. A pertinncia do passe de escola tal como Lacan pressupe
reside no fato de que o passe institui a possibilidade de verificao desta garantia,
quer dizer, da garantia do desejo de analista, dentro dos critrios que ele estatui.
No texto da Proposio, Lacan explicita que o passe um modo de
investigao que se articula com o discurso analtico visando isolar, por
reconhecimento comum, o analista que se candidata a ser membro da Escola.
Pode-se inferir que a estratgia de isolar o analista no incorre em excluso ou
segregao. O que em si se tenta isolar o seu desejo, isolar para melhor
reconhecer o que de analista h no sujeito. Isto implica submet-lo a um filtro de
verificao que encontre ali se houve ou no uma destituio tal que ele possa vir
a ser membro da Escola.
No texto Sobre o passe, ele diz que a experincia do passe, exposta na
Proposiovisa o recrutamento e seleo de pessoas (AE e AME) para agreg-las
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numa escola onde seres reais se situariam "nesse real [...] em nome de princpios
que so completamente diferentes daqueles que constituram anteriormente uma
classe" (LACAN, 1975: p. 185-193).Neste mesmo texto, continua ele, uma classe
"habitada por um outro tipo de diferentes indivduos, susceptvel de transformar
inteiramente, no certas estruturas fundamentais, mas a natureza do discurso"(LACAN, 1975: p. 185-193). Destes recortes inferimos que Lacan aposta muito
na caracterizao de um desejo de Escola, no sentido de um desejo formado pela
Escola. importante distinguir este desejo de um desejo cujo objeto seria a
Escola, neste caso uma demanda, no um desejo em acepo mais rigorosa.
preciso entender o experimento de Lacan como uma tentativa de superar
as experincias anteriores, no seu entender fracassadas, em torno da formao de
analistas. Os grupos anteriores ao passe e Escola funcionavam segundo as leisordinrias do mestre e da universidade. O essencial da aposta de Lacan, tal como
est exposto em Sobre o passe, que este dispositivo teria a incumbncia de
funcionar como o lugar que verifica e garante que houve por parte do candidato a
analista a vivncia, na sua anlise, de uma experincia que lhe permitiu apropriar-
se de um saber-fazer algo com aquilo que Lacan enuncia como mais-de-gozar
alojado no interior do sintoma.
A expresso mais-de-gozar criada por Lacan a partir da expresso mais-
valia de Marx. Marx introduz este termo para designar o mbil essencial do
discurso capitalista no interior do discurso do mestre. Em Sobre o passe, Lacan
diz que o que o discurso analtico revela que o mais-de-gozar advm no lugar da
mais-valia, como uma funo muito mais radical que a da mais-valia no seio do
discurso capitalista. A funo do mais-gozar ocupa um lugar de fundamento,
ligada que est dependncia do homem em sua relao com a linguagem. O que
o discurso analtico permite entrever que atravs da linguagem que o homem
se separa, e assim permanece de tudo o que concerne relao sexual (LACAN,
1975: p. 185-193), sendo por a que ele entra e faz falta no real.
Ocorre que ao mesmo tempo que o homem faz falta no real, ele tem,
atravs do discurso analtico, uma pequena chance, pelas vias "que lhe so abertas
em direo a um certo nmero de pontos que testemunham da presena do real na
origem de seu discurso" (LACAN, 1975: p. 185-193). Ele tem a chance de se
posicionar no lugar do objeto pequeno a, como substituto ao S1, que ocupa o lugar
de agente no quadrpode do mestre.
situado neste ponto que o analista pode funcionar como deve. Se o
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analista funciona na anlise como objeto a, na Escola no deve ser diferente. E a
funo do passe a de verificar se o analista funciona. O passe permite a algum
que quer sustentar o desejo de ser analista na prtica, se autorizar a partir de sua
comunicao do que fez ele se decidir por se engajar no discurso analtico e a
partir deste engajamento ser o sujeito suposto, ou seja, o suporte deste discurso. Opasse verifica e d garantias sobre se o sujeito conquistou este intento, este desejo.
A Escola ento lugar de por prova, atravs do passe, o sujeito candidato a
analista para verificar se ele suporta o discurso psicanaltico no interior da anlise
como analista e no interior da prpria escola como membro.
Note-se que o passe um dispositivo que interliga o espao pblico de
uma instituio voltada para a formao de psicanalistas com a experincia
privada de um tratamento psicanaltico. O passe interliga a experincia pessoal deum tratamento com a experincia coletiva de um grupo de pessoas que passaram
por algo anlogo. Finalmente, o passe permite que uma experincia de dissoluo
dos modos neurticos de demanda de reconhecimento e alienao, como a
experincia da anlise, seja ela mesma reconhecido por um grupo que tem acesso
a ela apenas pelas vias de um relato indireto. Lembremos que o passe consiste em
cinco momentos:
(a) Apresentao do candidato ao passe.
(b) Relato da experincia de anlise feita pelo passante a dois passadores, eles
mesmo indicados por seus analistas (Analistas Membros de Escola AME) como
analisantes em fim de anlise.
(c) Transmisso deste relato da experincia dos passadores para o Cartel do
Passe que avalia ou verifica a presena de um final de tratamento, do desejo de
analista e da destituio subjetiva.
(d) Nomeao do candidato como Analista Membro de Escola (AE)
Observe-se o nmero de pessoas envolvidas na realizao de um passe.
Ressalte-se como no interior desta experincia esto em jogo condies e
exigncias distintas. H as habilidades necessrias para falar da prpria
experincia de anlise, h a atividade de compilao, escuta e transmisso do qu
se escutou e h o ato de constatar certos traos que o relato guardaria da
experincia efetivamente ocorrida. O passe foi o desencadeador da primeira ciso
dentro do movimento lacaniano e at hoje representa um ponto de discrdia entre
os analistas desta orientao. O que no se pode discordar que o passe uma
experincia comunitria, que envolve e introduz no interior da prtica
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psicanaltica variveis at ento jamais consideradas de forma direta
(reconhecimento inter-pares, a narrativa da experincia, a nomeao como ato, o
juzo coletivo sob forma de funcionamento em cartel).
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2. Destituio Subjetiva e Intersubjetividade
2.1. Incidncias da Destituio Subjetiva
A palavra destituio origina-se do latim destituo; [de-+ statuo](CUNHA, 1989: p. 257), e indica ao ou processo e constri-se com sujeito
agente causativo. Significa em seu aspecto jurdico, principalmente: privar algum
de seu cargo, de seu emprego, de sua funo; ex.: destituir a um funcionrio.
Inversamente instituirrefere-se a: "1. dar comeo a; estabelecer; criar; 2. Marcar,
aprazar,3. Nomear ou declarar por herdeiro" (FERREIRA, 1993: p.36).
Tradicionalmente, o termo destituio designa a deposio de uma
pessoa enquanto essa passa a ser privada de sua autoridade, de sua dignidade oude seu emprego. Neste sentido, o termo figura como sendo a exonerao ou
demisso de um cargo ou posto onde sua autoridade ou dignidade so subtradas
por outrem por ter, o destitudo, cometido uma falta ou provocado uma carncia.
Interessante constatar que as trs regies semnticas que encontramos no emprego
do termo por Lacan aparecem indicadas pela filologia:
(1) A autoridaderefere-se dimenso de poder e de ato concernida na idia
de ato analtico e da crtica do exerccio do poder e ainda invertida na tese de que
o analista no se autoriza seno de si mesmo.
(2) A dignidade uma noo que vimos aparecer, nas passagens de Lacan,
associada s noes de ingenuidade e indiferena. Trata-se do veio tico da noo
ao qual devemos reunir problema da dignidade.
(3) O trabalho uma categoria que vimos aflorar de forma inusitada nas
referncias ao publicitrio e ao universo social do trabalho e da criao. Trata-se
aqui da vertente social ou cultural da noo de destituio subjetiva.
Se compararmos, por ex., as palavras abolir e destituir fica claro que a
diferena entre ambas reside no fato de que abolir no deixa restos, tratando-se de
uma erradicao, enquanto que destituir, apesar de operar a extrao de alguma
A palavra instituiraparece no dicionrio com o seguinte sentido: Instituir: Dar comeo a;estabelecer; criar; 2. Marcar, aprazar, 3. Nomear ou declarar por herdeiro (FERREIRA, 1993, p.36).
A palavra abolir tem como sinnimo 1. afastar: cortar, banir, largar, tirar, 2. anular: ab-rogar, cancelar, revogar < leis > 3. suprimir: eliminar, extinguir,suspender < velhos hbitos >, e como antnimo 1. manter, restabelecer, restaurar (HOUAISS,2003).
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coisa de algum lugar, ainda assim, deixa uma poro intacta. Isto porque, se, por
um lado, em latim, statuo indica por de p, destituir no indica derrubar no
sentido de eliminar mas, tirar do lugar. Trata-se de um por de p no real, uma
esttua que tenha cado ou sido derrubada, por exemplo, e de um derrubar
simblico (metafrico). Por exemplo, na Roma antiga tinha-se a missio que era operdo concedido aos perdedores nas arenas. A missio permitia aos perdedores
colocarem-se novamente em p mas, era ao mesmo tempo seguida de uma perda
de lugar moral, a honra. Neste sentido, statuo refere-se tanto construo (de
uma esttua) quanto sua manuteno em p num certo lugar. A palavra status
tambm conserva este sentido mas, referindo-se ao lugar ocupado pelo objeto em
seu meio. Por outro lado, destitu-la apenas tir-la do lugar e no destru-la, o
que estaria mais prximo de aboleo, abolir ou do francs gomme,
apagar.Como j dissemos acima, a palavra destituio possui tambm um
cunho jurdico. Neste mbito, Destituio aparece em conformidade com vrias
acepes jurdicas, onde, em geral, significa: ato ou efeito de destituir. Assim, no
Direito Administrativo ela aparece como sendo uma medida interna de
distribuio de servio correspondendo a um rebaixamento na situao do
funcionrio no servio. Este rebaixamento uma medida punitiva que consiste em
privar o funcionrio da funo que vinha exercendo. Desse modo, segundo o
Estatuto do Funcionrio Pblico, artigo 206, a destituio de funo uma medida
disciplinar que tem por fundamento a falta de exao, ou seja, de retido e
exatido quando o funcionrio est imbudo no cumprimento do dever.
Obedecendo a critrios legais e hierrquicos, ainda segundo o Estatuto do
Funcionrio Pblico, art. 210, pargrafo nico, aaplicao da pena de destituio
de funo cabe autoridade que houver feito a designao do funcionrio para
Estatuir: a palavra estatuir deriva do latim Statuo, que significa 1. Pr dep, numa posio determinada. 2. Colocar, fixar, estabelecer, dispor, levantar,erigir (FERREIRANO, 1973/1989). Em Houaiss (2003), aparece a palavraestatuir que significa 1. decretar; prescrever, regulamentar, 2. instituir:determinar, estabelecer, fixar, marcar. (antnimo) desmarcar, indeterminar. EmFernandes (1997/2002), Estatuir aparece como: Estabelecer, ordenar,determinar, deliberar, decretar, resolver, preceituar. Na lngua francesa, acondio social da pessoa indicada com a palavra etat, que significa estado.(estado social. Status social). No latim, a raiz para estado statuere. Portanto,destituir ope-se a estatuir, que significa em portugus: determinar em estatuto;
estabelecer.Lacan usa o termo gommeno artigo O engano do sujeito suposto saber( In: Outros Escritos:p.334) enquanto borracha, onde a funo do inconsciente, entre outras, apagar o sujeito.
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aquele cargo ou funo. Assim tambm no direito processual em que, por
exemplo, a destituio se d como ato legal do juiz mediante o qual este afasta o
funcionrio de uma funo para a qual ele foi nomeado judicialmente. Este
afastamento da funo acontece ao ter, a pessoa, se tornado incompatvel com ela
por ter procedido com improbidade, negligncia, falta de cumprimento de seusdeveres ou por quaisquer outras causas pelas quais este funcionrio se torne
indigno de continuar exercendo a funo que lhe foi designada.
Algumas figuras jurdicas que, de acordo com o cdigo civil, so suscetveis de
sofrer a pena de destituio so: o tutor, o curador, o inventariante, o
testamenteiro, os liquidantes, o sndico e o comissrio. Existe ainda, segundo o
Cdigo Civil Art. 395, o caso da destituio do ptrio poder imputado ao pai ou
me quando estes, por qualquer motivo, castigarem imoderadamente o filho,deix-lo em abandono ou, por fim, praticar atos contrrios moral e aos bons
costumes.
Em Variantes da destituio subjetiva,Soler condiciona a instituio do
sujeito ao discurso no interior do qual se d esta instituio. Desse modo, segundo
ela, existem vrias respostas para a questo acerca do que seja um sujeito
institudo, uma vez que existem vrios discursos. Seguirei de perto como se d,
para Soler, a instituio do sujeito no discurso comum, no lao social e como se
d a instituio do sujeito na psicanlise (SOLER, 2002, p. 11). Esta autora
afirma que no discurso comum, no lao social, discurso ao qual Lacan d o nome
de avesso da psicanlise, existe uma forma de instituio do sujeito definida
enquanto aquela que d voz e leva em considerao a opinio dos sujeitos.
No nvel sexual isso tambm acontece quando se tem a sensao de ter
sido tratado como objeto a ser consumido. H tambm o tratamento dado no local
de trabalho onde se tratado como mquina e instrumento a ser explorado. Na
democracia, mediante o voto, as pessoas sentem que so sujeitos institudos
quando podem dar a sua opinio enquanto eleitor, cidado, homem ou mulher e,
sentem o contrrio, e se queixam, quando sua voz deixa de ser levada em conta.
Mas, o sentimento de que se sujeito quando se pode dar uma opinio
indica que a h a instituio de um eu (je) e no do sujeito no sentido que
Lacan entende. No discurso analtico, a instituio do sujeito inversa
instituio deste eu que nos percebemos como UM, um eu sou UM (SOLER,
2002, p. 12).
Na obra de Lacan, o termo destituio subjetiva aparece nomeadamente,
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pela primeira vez, no texto da Proposio de 09 de Outubro de 1967, em seguida
reaparece no Seminrio XV, O Ato Analtico, na aula de 17 de janeiro de 1968 e
no resumo deste mesmo seminrio, comunicado em 10 de junho de 1969. Por fim,
aparece emDiscurso na Escola freudiana de Paris, apresentada aos analistas da
Escola em 06 de dezembro de 1967 e tambm em uma verso revista e ampliadaque Lacan redigiu e publicou em 01 de outubro de 1970. As formas pelas quais a
destituio subjetiva aparece nos textos mencionados so as seguintes:
No texto da Proposio de 09 de outubro de 1967, o termo aparece quatro
vezes, e sob as seguintes formas:
a). A estrutura, assim abreviada, permite-lhes ter umaidia do que acontece ao termo da relao transferencial,
ou seja, quando havendo resolvido o desejo que sustentaraem sua operao o psicanalisante, ele no tem maisvontade, no fim, de levantar sua opo, isto , o resto que,como determinante de sua diviso, o faz decair de suafantasia e o destitui como sujeito.(LACAN,1967/2001:p. 257, grifo do autor).
Na citao acima, o termo possui clara conotao clnica naquilo que
acontece com o sujeito ao final de sua anlise. Lacan sugere que a destituio
subjetiva o que acontece com o sujeito aps o seu decaimento em relao sua
fantasia. Ela o resultado, a conseqncia, o efeito do que acontece com a
estrutura no final. Todavia a sequencia da frase admite duas leituras diferentes.
Podemos entender que se trata de uma enumerao de efeitos, todos eles
correlatos entre si e simultneos (a) no ter vontade de manter a aposta (b) decair
da fantasia e (c) destituio como sujeito. Podemos entender, ao contrrio, que se
trata de uma enumerao conseqencial, na qual um elemento condiciona e leva
ao seguinte, ou seja, a resoluo do desejo que anima a transferncia conduz
suspenso da aposta que por sua vez determina o decaimento da fantasia e depoisdisso, e s depois disso, teramos a destituio subjetiva. Remanesce a questo de
saber se esta ltima um evento separado e de envergadura semelhante
suspenso da aposta da fantasia ou se trata do nome dado a este conjunto de
efeitos reunidos? Neste contexto, a estrutura a que Lacan se refere, por se tratar de
relao transferencial, a do sujeito suposto saber, qual ele se indica no texto da
Proposiocomo sendo a que d conta do tratamento analtico.
Como evento isolvel seria a destituio subjetiva particularidade do finaldo tratamento ou antes, haveriam destituies preliminares ou parciais? Neste
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contexto, trata-se de apreender o sentido da destituio subjetiva partir do que se
modifica na fantasia e com o desejo sob a transferncia clnica, tanto no decorrer
quanto no trmino da anlise. Certamente no processo de desenlace da anlise,
em que ocorre a soluo do desejo, ocorrido a partir da estrutura do sujeito
suposto saber, ser fundamental para apreendermos o sentido do termo destituiosubjetiva. Na citao seguinte, o termo aparece na interface da clnica com a
instituio, servindo como critrio de verificao para aceitao do analista na
Escola de Lacan.
b) No haveramos, ao anunci-lo, de desestimular osamadores? A destituio subjetivagravada no bilhete deingresso...no ser isso provocar o horror, a indignao, opnico ou at o atentado, ou, pelo menos, dar um pretextopara a objeo de princpio?" (LACAN,1967/2001: p. 257,
grifo do autor).
Neste caso vemos fortalecida a hiptese de que a destituio subjetiva
admite antecipaes, como sugere a expresso bilhete de ingresso. Todavia aqui o
correlato clnico est no plano dos afetos. Trata-se da angstia, do horror e do
pnico por um lado, mas tambm de um sentimento social muito especfico e
ligado tradio de reflexo tica, a saber, a indignao. Neste contexto, o termo
aparece como referendando a verificao, no dispositivo do passe, do que
acontece com o analisando quando este passa a analista e quer fazer parte do
grupo que se organiza, na Escola, em torno da causa de Lacan. A frase
...destituio subjetiva gravada no bilhete de ingresso... metafrica e indica uma
espcie de portabilidade do sujeito do inconsciente que aceitou a castrao e
organiza o seu desejo a partir desta experincia. Sendo a destituio subjetiva
aquilo que acontece com o sujeito ao final, e sendo ela o bilhete de ingresso,
critrio subversivo em relao a IPA, que adotava outras referncias, denunciadas
por Lacan, para constituir o grupo e a hierarquia. Da ser compreensvel o elenco
de afetos que se pode esperar: horror, pnico e o atentado. Nada mais incomum ao
amadorismo das comunidades analticas daquela poca do que adotar critrios
nascidos do ventre da clnica, do cerne da prtica e da tica analtica para forjar
critrios de acolhimento dos analistas como membros de uma Escola.
Na terceira vez em que o termo aparece no texto da
Proposio, ele adquire a forma seguinte: "No real dacincia que destitui o sujeitode modo bem diferente emnossa poca quando apenas seus partidrios mais
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eminentes, como um Oppenheimer, perdem a cabea"(LACAN,1967/2001, p. 257, grifo do autor).
Lacan indica um modo de destituio subjetiva que, por contraste, mostra
seu alheamento e oposio em relao destituio subjetiva do final de anlise.
Aqui, a destituio subjetiva se refere ao que acontece com o sujeito quando
exposto ao discurso da cincia, onde seus partidrios perdem a cabea. Na
verdade, quanto a este trecho, duas leituras parecem possveis. A primeira, como
dissemos, nomeia o que acontece com o sujeito quando este se torna vtima da
tecnologia aqui representada pela figura do artfice da bomba atmica. A segunda,
tambm, plausvel, se refere ao que aconteceu com o prprio Oppenheimer que
alienado ao discurso da cincia enveredou-se no projeto de construo de um
objeto ignorando as conseqncias ticas desta inveno. Retenhamos destapassagem uma propriedade importante e inequvoca da destituio subjetiva, a
saber, que ela no se aplica exclusivamente experincia do tratamento
psicanaltico. A cincia tambm destitui o sujeito, no da mesma forma que a
psicanlise, mas de forma insalubre. Para Colete Soler o discurso da cincia anula
o sujeito, ou seja, o destitui porque a cincia promove "falsas ideologias pela
liberdade" (SOLER, 1998, p. 123). Contudo esse fragmento refora nossa
interpretao de que o conceito de destituio subjetiva um conceitosimultaneamente clnico e social.
Na quarta e ltima citao de Lacan no texto da Proposio, ele se refere
destituio subjetiva como sendo a recusa do sujeito a participar em grupos que
atravs da indiferena cnica protege a verdade:
d) Com que pretexto abrigamos essa recusa, quando sesabe perfeitamente da indiferena que protege a verdade e
os sujeitos, todos juntos, e se sabe que, ao prometer a estesa primeira, isso s no d na mesma para aqueles que jesto prximos dela? Falar de destituio subjetiva
jamais deter o inocente, que no tem outra lei seno seudesejo. (LACAN,1967/2001: p. 258, grifo do autor).
Reencontramos aqui duas expresses de ampla incidncia no discurso
tico do ocidente: a indiferena e a inocncia.
No Seminrio XV sobre O Ato Psicanaltico, realizado entre 1967 e 1968,
contemporneo aos eventos que deram ensejo segunda verso do texto da
ProposioLacan refere-se destituio subjetiva em estreita ligao com a idia
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de alienao:
a) Preciso ainda lembrar-lhes que a tarefa analtica, namedida em que ela se delineia a partir desse ponto dosujeito j alienado, em um certo sentido ingnuo em suaalienao, aquele que o psicanalista sabe ser definido peloeu no penso, que a tarefa em que ele o coloca em umeu penso que toma justamente todo o seu peso de queele saiba o eu no penso inerente ao estatuto do sujeito?Ele o pe na tarefa de um pensamento que se apresenta, dealguma forma, em seu prprio enunciado, na regra que oinstitui, como admitindo essa verdade fundamental do euno penso: que ele associe e, livremente, que ele noprocure saber se est ou no por inteiro, como sujeito, seele a se afirma. A tarefa qual o ato psicanaltico d seuestatuto uma tarefa que j implica essa destituio dosujeito. E aonde isso nos conduz?...chama se a castrao
que deve ser tomada em sua dimenso de experinciasubjetiva. (LACAN, 1968: p. 97-98, grifo do autor).
No comeo de uma anlise o sujeito do eu no penso o sujeito alienado
e ingnuo quanto a esta situao de alienao. Reencontramos aqui o termo
relativo ingenuidade. Neste contexto que aparece a destituio subjetiva, mas
surpreendentemente de forma ambgua do lado do analista, em sua relao com o
ato analtico ou com o efeito deste ato no analisante. A destituio subjetiva a
condio para que o analista possa produzir o ato necessrio que pode causar noanalisante o desejo de anlise. No de qualquer lugar que o analista sustenta o
seu discurso. Estar neste lugar s possvel sob a condio da destituio
subjetiva que permite ao analista subjetivar a castrao e, ao mesmo tempo, situar
o analisante no caminho da associao livre necessria para que ele entre em
contato com sua condio de sujeito dividido atravs do eu penso. Encontramos
aqui um novo sentido para a destituio subjetiva, ou seja, ela refere-se
possibilidade necessria ao analista de que este suspenda ou destitua-se comosujeito para poder fazer falar e ouvir o nico sujeito em jogo no processo
psicanaltico, a saber, o psicanalisante.
Esta leitura se choca com o que se expressa no Discurso na Escola
Freudiana de Paris, pois nele a destituio subjetiva clara e inequivocamente
atribuda ao psicanalisante, o que sugere por sua vez que a ambigidade contida
na formulao anterior tenha despertado dvidas nos alunos de Lacan:
a ) Pois afinal no est o psicanalista sempre merc dopsicanalisante, ainda mais que o psicanalisante de nada
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publicitrio, que se engajam a partir da interveno da guerra para tirar os
dividendos possveis advindas de sua mobilizao. Ele compara estas duas figuras
para melhor contrapor e destacar a figura de Jacques Maast, personagem principal
do livro O Guerreiro Aplicadode Jean Paulhan. Lacan faz isto para ilustrar que
Maast a figura que melhor representa na literatura o sujeito destitudo do final deanlise que enceta um novo lao social. O efeito de ser salubre de Maast supe
que este sujeito encontrou a resoluo do seu desejo e suprimiu as inibies e os
sintomas.
c) Ou ainda ento, imaginem-me em 1961, sabendo queeu servia a meus colegas para que voltassem Internacional, ao preo de meu ensino, que dela seriaproscrito. Continuei esse ensino, no entanto, eu, ao preode cuidar exclusivamente dele, sem sequer me opor ao
trabalho de separarem dele meu auditrio. Essesseminrios, sobre os quais, ao rel-los, algum exclamoudiante de mim recentemente sem outras intenes, ao queme pareceu, que eu tinha de gostar muito daquela gentepara quem sustentava esse discurso, eis outro exemplo dedestituio subjetiva. Pois bem, dou-lhes essetestemunho, somos ser um bocado nesse caso, a pontode parecer gostar, vejam s. (LACAN, 1967/2001: p.279, grifo do autor).
Outro fato raro Lacan nos d seu prprio testemunho, incluindo o conceito em
suas prprias circunstncia biogrficas. Neste trecho ele se refere a si mesmo
como um exemplo de destituio subjetiva em seu efeito-de-ser. Lacan pede que
imaginemos a sua situao em 1961, momento em que sabia que servia aos seus
colegas da Sociedade Francesa de Psicanlise como moeda de troca para que esta
instituio voltasse Internacional (IPA), ao preo de seu ensino, que dela seria
proscrito. Lacan relata que continuou o seu ensino sozinho"... ao preo de cuidar
exclusivamente dele, sem sequer [se] opor ao trabalho de separarem dele o seu
auditrio" (LACAN, 1967/2001: p. 279).Lacan recebe ento o comentrio de que
ele deveria gostar muito daquela gente para quem ele sustentava o seu discurso, ao
que ele considera: ...gostar...vejam s...A situao merece exame detalhado.
Trata-se de Lacan, um psicanalista, mas na situao de ensino e de formao.
Uma pessoa que trada por aqueles a quem se dispe a transmitir algo. A
intuio sugere que alguma gratido devia ser esperada, contudo de forma estica
ele cuida de seu ensino mais alm do que de seu auditrio. Lao social
Resoluo aqui significa extrair o seu desejo puro a partir de uma espcie de depurao quedesaliena o sujeito, e seu desejo, dos liames do fantasma.
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problemtico ou atitude decidida ?
Estes critrios se apresentam como pontos a serem alcanados pelo sujeito
que se cura de suas inibies, sintomas e angstias. Na citao acima, Lacan
explicita que serviu aos seus colegas ao mesmo tempo em que o banimento
poderia ser o preo a ser pago para que a IPA aceitasse os demais. Mesmo assim,Lacan continuou trabalhando, nestes termos, sob as piores condies. Contudo,
ele parece dizer que no o fez por amor, e esta aparente indiferena enquanto um
estar sozinho, mas no sem os outros, um ponto fundamental do efeito de ser da
destituio subjetiva que deveremos abordar adiante.
No resumo do Seminrio XV (1969), sobre o seminrio O Ato
psicanaltico(1967-1968) aparece uma outra vertente importante e congruente
com o exemplo pessoal acima relatado, ou seja, a destituio subjetiva versa sobrea relao do sujeito com o seu prprio ato. Levanta-se ento o problema de saber a
qual gramtica pertence a destituio, a que tipo de posio diante do ato ela se
ope e a que tipo de posio diante do ato ela se aproxima.
a) O ato analtico parece apropriado a reverberar commais luz sobre o ato, por ser ato a ser produzido peloprprio fazer que ele ordena. Por isso ele remete ao em-side uma consistncia lgica, de decidir se possvel darseqncia a um ato tal que, em seu fim, destitui o prpriosujeitoque o instaura. Por a se percebe que o sujeito,aqui, do qual preciso dizer se saber. Ser que opsicanalisante, ao trmino da tarefa que lhe foi atribuda,sabe melhor do que ningum da destituio subjetivaaque ela reduziu justamente aquele que lha ordenou? Ouseja: o em-si do objeto a que, nesse trmino esvazia-se nomesmo movimento pelo qual o psicanalizante cai, por terverificado nesse objeto a causa do desejo. (Lacan,1969/2003, p. 371, grifo do autor).
Seguindo na direo da destituio subjetiva como categoria prxica
vemos que a ltima referncia disponvel sobre este termo indica sua relao com
a criao, com o comeo e o recomeo.
b) "Pois a partir da estrutura de fico pela qual seenuncia a verdade que ele far, de seu prprio ser,estofo para a produo de um ... irreal. [...] no hmenos destituio subjetivapor proibir esse passeque, como o mar, deve ser sempre recomeado."
(LACAN,1969/2001: p. 372-373, grifo do autor).
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3. Aspectos Clnicos da Destituio Subjetiva
3.1. A Destituio Subjetiva e a Problemtica do Reconhecimento
Antes dos anos sessenta, Lacan estabelecia o reconhecimento em termos
de reflexibilidade como a condio que permitiria o desenlace de uma anlise em
trs tempos. No Seminrio sobre As Psicoses (1955), ele fala do final do
tratamento nos seguintes termos: "...o sujeito comea por falar dele, e no fala
com voc a seguir, ele fala com voc, mas no fala dele quando ele tiver
falado dele, que ter sensivelmente mudado neste tempo, com voc, teremos
chegado ao final da anlise" (LACAN, 1955/1997: p. 186).
Estes trs tempos recuperam os momentos da dialtica da conscincia. Emtermos hegelianos, o primeiro tempo o da conscincia em si e para si. Neste
tempo, o sujeito fala de si mediado pelo Outro. O segundo o tempo da passagem
pelo outro. Tempo da alienao na transferncia. O terceiro o tempo da volta a si
enquanto detentor da verdade de si. A se daria o reconhecimento reflexivo do
desejo porque o sujeito passou pela outra conscincia (o analista) e, na volta, se
desalienou desta outra conscincia.
Contudo, podemos perceber que no livro IV da Fenomenologia doEspritoHegel afirma que a conscincia de si s em si e para si quando em si e
para si para uma outra conscincia, ou seja, quando reconhecida por uma Outra
conscincia. Tal , portanto, a maneira pela qual se d o que Kojeve chama de
"desdobramento da conscincia em si, desdobramento este que se d como desejo
de ser reconhecido" (KOJEVE, 2002, p. 49). Lacan, por sua vez, concorda com
Hegel quanto ao fato de que e "... a realidade ... de cada ser humano est no ser do
outro...h uma alienao recproca ...irredutvel, sem sada" (LACAN, 1954/1985,p. 96). V-se neste contexto, tanto em Kojeve quanto em Lacan, que se mantm a
idia hegeliana de reconhecimento, indicativa da alienao fundamental presente
na constituio do ser humano. Se o reconhecimento intersubjetivo o que d as
coordenadas da alienao do homem, como ela pode ser, considerada por Lacan
como aquilo que est no desfecho do final de uma anlise? Temos aqui uma pista
de porque Lacan abandona esta proposta de formalizao da clnica e sente a
necessidade de pensar outra sada para o final de anlise, j que se incorreria numa
contradio pensar o final de anlise enquanto desfecho onde o desejo permanece
alienado. A indicao clara: se a proposta do tratamento psicanaltico
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formalizar a psicanlise de modo a conseguir um lugar para o sujeito na estrutura,
um lugar em que ele no seja aspirado e submetido s coordenadas gerais do
sistema a que pertence em detrimento de sua subjetividade.
Nesta via, o sujeito do inconsciente lacaniano, o sujeito da cincia que
nasce com o cogito cartesiano, diferente de uma individualidade emprica. Ele suporte de saber que, sendo despsicologizado, pontual e evanescente carcateriza-
se por seu descentramento. Sujeito pensante l onde no , e sendo l onde no
pensa, define-se por ser sujeito de fala que marca sua apario atravs de uma
performatividade negativa do enunciado. Isto significa que, para Lacan, subverter
o sujeito cartesiano para fazer emergir o sujeito do inconsciente, preciso fazer
com que "o enunciado transforme-se no contrrio do que se queria enunciar"
(SAFATLE,1997: p. 183). Assim, como ato de fala, o sujeito no se confundecom nada que possa ser integrado pela estrutura. Assim como as relaes entre o
desejo e a linguagem jamais sero plenamente integrativas, as relaes entre o
sujeito e o desejo so de disparidade e apenas temporalmente integrveis.
Sendo suporte de saber, preciso perguntar como, desse modo, este sujeito
pode ser institudo e, depois, destitudo sem, no entanto, deixar de existir.
Tambm preciso perguntar como a formao psicanaltica pode garantir a
existncia de tal desejo . No prximo capitulo tentarei situar o momento terico e
histrico que Lacan vive quando se dispe a responder a estas questes.
3.2. A instituio do sujeito em Psicanlise
Para Soler (2002), na psicanlise existem vrios termos que so usados no
lugar de sujeito. Freud usou, por exemplo, o termo inconsciente. Por sua vez, o
sujeito que Lacan introduziu na psicanlise vem da filosofia. Para ele, o sujeito da
psicanlise o sujeito cartesiano, correlato da cincia. No que se refere a este
sujeito, diz Soler, Lacan tem um postulado bsico: "o que tratado na psicanlise
deve ser homogneo ao instrumento para trat-lo" (SOLER, 2002: p. 12). O que
este postulado indica que o sujeito na psicanlise " definido pela sua
dependncia daquilo que se articula" (SOLER, 2002: p. 12).
Disso se infere que o sujeito o suposto do que se articula, e o que se
articula primeiramente em psicanlise a fala. Logo, o sujeito o suposto da fala.
Para Lacan, lembra Soler, o que se articula no campo da psicanlise dado como
"estrutura de linguagem mobilizada na palavra" (SOLER, 2002: p. 12).
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Contudo, no que se refere ao sujeito de Descartes, h um problema. Na
filosofia de Descartes, o Eu sou um Solus ipse, ou seja, ele no tem um
semelhante, no tem prximo, ele um sujeito institudo em sua solido. O
problema que a fala j implica o outro, quer dizer, implica que este eu que fala
no sem o outro que ouve. No reconhecer isso seria o mesmo que reconhecerque o falante no precisa de um ouvinte para falar para ele. Na sua tese de
mestrado, Vladinir Safatle afirma que na via da crtica antirealista de Lacan est a
idia de que a funo da linguagem no representar os dados naturais ou nos
comunicar os sentidos pr-existentes comunicao, mas, sua funo
representar o sujeito como questo que evoca o outro. (SAFATLE, 1997: p. 126).
Do lado da psicanlise isso vai ter um grande peso para a definio do
sujeito, pois uma das primeiras formas de diviso do sujeito, tal como Lacanconstri, deriva do fato de que o eu no sem o outro. Sendo assim, ouvir o outro
a maneira de instituir o sujeito enquanto aquilo que a fala supe, quer dizer, o
sujeito institudo toda vez que o ouvinte se d palavra daquele que fala.
Mas, ainda assim, h um impasse inerente a esta definio de sujeito
suposto fala. Claro, a psicanlise absolutiza a fala ao abordar o psicanalisante
enquanto sujeito. Contudo, o impasse se d porque cabe a pergunta sobre o que o
sujeito enquanto suposto fala. Um primeiro passo a ser dado que na
psicanlise no possvel se contentar em responder pergunta sobre o ser a
partir da frmula cartesiana. Isto significa que em psicanlise, pergunta o que
sou? no se pode responder cartesianamente dizendo Sou uma coisa pensante.
Isso porque, para alm de ser uma coisa que fala e que, no limite, pensa, o eu
sou uma coisa que porta um sintoma que o faz sofrer. Ademais, uma coisa que
sofre pode faz-lo sem falar. O sintoma prova que se sofre para alm da fala e do
pensamento.
Contudo, para que haja o tratamento, o discurso psicanaltico interroga a
coisa que sofre como coisa que fala. O impasse reside a justamente na medida em
que necessrio saber o que este eu na articulao da fala, bem como na
articulao da cadeia significante. Assim, para se dar conta da frmula sobre a
homogeneidade entre o tratado e o seu instrumento de tratamento, pode-se dizer
que o sujeito, enquanto suposto da fala, portanto, enquanto aquilo que um
significante representa para outro significante, a varivel X no sentido
matemtico do termo, quer dizer, ele um mistrio, uma incgnita de uma
equao. enquanto suposto da fala que a instituio do sujeito ter como
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e fatos de sua histria" (LEITE, 2000: p. 206). Nesta direo, a pretenso de
Lacan era promover o surgimento total do sujeito. Mas, a sua prtica clnica
mostra-lhe a impossibilidade de o sujeito alcanar uma "postura existencial diante
da morte" (LEITE, 2000: p. 206), o que inviabiliza o seu programa de
completude, porque mesmo chegando-se ao limite do dizvel, no se pode dizertudo, inclusive, no se pode dizer o que a morte.
No sendo possvel ao ser falante completar-se na fala, a via do simblico
leva a anlise a um impasse. Este impasse gerado porque sempre haver um
resto que far obstculo a esta completude. Este resto pode ser nomeado com a
noo defalta,que um dos nomes do real. Ser por esta via, a via do real, que
Lacan ir conceber a sua teoria do sujeito.
A proposta de leitura de um outro autor precisa ser tambm aquiconsiderada. Trata-se da leitura que Safatle faz da destituio subjetiva em seu
livro a Paixo do Negativo, especificamente no captulo A destituio subjetiva
como protocolo de amor (SAFATLE, 2005: p. 216).
Neste texto, o autor busca o esclarecimento de pontos obscuros
concernentes ao problema do reconhecimento e suas implicaes na clnica
contidos nos escritos finais de Lacan. Por isso, escreve que o protocolo de
reconhecimento e de subjetivao que Lacan passar a buscar a partir dos anos
sessenta, dever pensar a subjetividade no mais atada "...falta prpria do desejo
puro mas, de construir um modo de subjetivao da opacidade do objeto, deste
objeto no narcsico que se apresentar para alm do quadro fantasmtico de
apreenso". (SAFATLE, 2005: p. 198).
Para Safatle, existe um quiasma que diz respeito a uma articulao central
entre a destituio subjetiva e o destino do objeto no final da anlise. O
aprofundamento desta questo pode contribuir para a compreenso de alguns
aspectos fundamentais sobre a teoria do sujeito em Lacan.
No final dos 50 e comeo dos 60, a clnica lacaniana coloca alguns
problemas que vo aparecer na sua experincia intelectual. Um destes problemas
diz respeito "ao destino da categoria de objeto no final da anlise" (SAFATLE,
2005:p. 198). Tal problematizao permitir fazer um esboo do que pode ser
uma relao ps-analtica de objeto, uma fixao de objeto que nasce a partir da
travessia do fantasma. Desse modo, a pergunta : qual seria a relao ou fixao
de objeto instituda pelo sujeito da destituio subjetiva do ps-anlise?
A primeira resposta que se trataria de um "estranho investimento
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libidinal de um objeto que j no mais suportado por estrutura fantasmtica
alguma" (SAFATLE, 2005: p. 199 e segs).Para compreender o de que se trata
nesta configurao do objeto aps a travessia do fantasma, Safatle recorre a alguns
recursos pontuais da categoria de sensvel que podem incidir como conceito
organizador de certos aspectos da experincia clnica.Para Safatle, a reflexo sobre o destino do objeto no interior da relao
analtica sistematiza o debate em torno da operao da destituio subjetiva. A
destituio subjetiva, termo que Lacan introduz para dar conta da dinmica
prpria do ato analtico, da travessia do fantasma e do amor de transferncia, no
o ndice do abandono do conceito de sujeito psicanaltico. Ao contrrio, a
destituio subjetiva no se confunde com definies que do o fim de anlise
como uma imanncia pr-reflexiva do ser, em que se abandona a categoria desujeito e se privilegiam conceitos como parletre e aparole, nos quais se
hipostasiam a irreflexividade rumo a um plano de imanncia no simbolizvel.
Tais leituras no so autorizadas pelo conceito lacaniano de destituio subjetiva.
Na verdade, a destituio subjetiva em Lacan solidria de um processo de
radicalizao que constitui a noo lacaniana de sujeito descentrado, que a
recusa em se aceitar um vnculo ontolgico entre sujeito e princpio de identidade.
Desse modo, a definio da destituio subjetiva enquanto objetivo vinculado
direo da cura seria justamente a consequncia irredutvel da sustentao do
conceito de sujeito descentrado.
Sobre o sujeito descentrado, Safatle argumenta lembrando que a
psicanlise sempre criticou a idia de uma categoria de sujeito transparente, quer
dizer, que garante a transparncia entre as funes intencionais, as representaes
mentais e a conscincia. Como parte desta crtica, a psicanlise sempre entendeu a
conscincia como sinnimo de alienao. Lacan insiste que a alienao do sujeito
o resultado direto da sua submisso ao universo simblico do significante,
atravs do qual o sujeito s pode falar de si mediante um significante que o
objetifica em uma linguagem reificada e que o faz esquecer sua subjetividade.
Mas, a alienao no completa. Antes, para Lacan, o sujeito o lcus de uma
clivagem fundamental.
Assim, partindo de uma leitura de Lacan, ancorada nas filosofias M.
Pontyana e adorniana, Safatle considera que a destituio subjetiva a posio
subjetiva sustentada "...por um sujeito que capaz de reconhecer o alvo do amor
no ponto de exlio do objeto em relao ao pensamento submetido s coordenadas
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do fantasma" (SAFATLE, 2005: p. 216). Ao falar de amor, trilha-se o problema
que se coloca desde Freud para os destinos da pulso, a saber, sobre de qual
posio subjetiva se investiria libidinalmente os objetos aps o final da anlise.
Uma figura que responde a esta posio, ele entreve no primado da carne como
paradigma da impessoalidade e da despersonalizao.Antes, preciso distinguir o que Lacan entende por amor. A concepo
lacaniana de amor diferente daquela de cunho scio-filosfico defendida por um
Honneth, por exemplo. Para Axel Honneth o amor est atrelado a uma articulao
sobre o processo de reconhecimento social, campo onde se abriria o espao da
promessa de reconhecimento mtuo ou intersubjetivo.
Assim, o amor na teoria de Honneth implica o reconhecimento recproco
onde a confirmao mtua dos sujeitos em prol de suas necessidades concretasaparece como representao primeira. Ao contrrio desta perspectiva de Honneth,
Lacan ins