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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA E CULTURA RUSSA
MIKHAIL VASSLIEVITCH LOMONSSOV:
Uma apresentao.
Rafael Nogueira de Carvalho Frate
Verso Corrigida
So Paulo, 2016.
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA E CULTURA RUSSA
MIKHAIL VASSLIEVITCH LOMONSSOV:
Uma apresentao.
Rafael Nogueira de Carvalho Frate
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Literatura e Cultura Russa, do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Letras.
So Paulo, 2016.
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, ,
.
Pndaro. stmica 7.
4
Agradecimentos.
A meus pais, sem os quais, nada.
A minha irm, meus avs e familiares, meu lastro para o mundo.
A meu mestre, Tatiana Serguievna Lrkina pelo russo.
A meu orientador, Mrio Francisco Ramos pela entrada na poesia russa e por me fazer
descobrir que eu sou capaz de alguma coisa.
Aos professores Bruno Barreto Gomide e Elena Nikolevna Vssina pelo incentivo,
sugestes e puxes de orelha na qualificao deste trabalho e, antes, pela formao.
Aos professores Marcos Martinho dos Santos, Paulo Tadeu Ferreira, Alexandre Pinheiro
Hasegawa, Joo ngelo de Oliva Neto, Paula da Cunha Correa, Jos Marcos Macedo
por seus ensinamentos: animae dimidium meae.
Aos queridos brderes: Tadeu Andrade, Pedro Baroni Schmidt, Mrcio Mau Chaves,
Fernando Schirr, irmos na comunho das Clssicas; Joo Paulo Cyrino, irmo na do
Logos; Leonardo Zucaro, Vicente Ferreira Sampaio, Pedro Iacovini, na da Fineza;
Ticiano Lacerda, caro Gatti, Tarsila Don, Tatiana Lima Faria, Bia Boissou, na do
RocknRoll.
A Henrique Elfes e Martim Vasques da Cunha, por tudo que h alm.
CAPES, quae sera, pela bolsa.
5
RESUMO
O presente trabalho se prope a esboar a primeira apresentao em lngua
portuguesa de uma das mais importantes figuras do pensamento, letras e educao da
Rssia, absolutamente central em seu desenvolvimento tcnico, cientfico e literrio,
Mikhail Vasslievitch Lomonssov. Nele, juntamente com uma introduo provendo uma
contextualizao geral do sculo XVIII russo, seguida de um panorama biogrfico do
polmata centrado em sua produo literria e findada em um relato sobre sua
contribuio para a formao da lngua russa moderna, so apresentadas as tradues
integrais de quatro obras suas na rea das letras, duas das quais poemas longos
acrescidos de comentrios, bem como outras tradues secundrias ilustrativas da
primeira parte.
Palavras-chave: Mikhail Vasslievitch Lomonssov, sculo XVIII, classicismo russo,
Pedro, o Grande, lngua russa, ode, versificao, mtrica.
ABSTRACT
The goal of the present work is to provide a sketch presenting for the first time in
Portuguese language one of the most important individuals in Russian thought, language
and education, who played a fundamental role in the technological, scientific and literary
development of the country, Mikhail Vasilievitch Lomonosov. Here, along with an
introduction containing a general outline of 18th century Russia, followed by a biographical
overview of the polymath and ending in an account of his main contributions to the
shaping of the modern Russian language, four full translations of his works in the realm
of letters are presented, two of which duly commented long poems, as well as minor
secondary translations, illustrating the first part.
Keywords: Mikhail Vasilievich Lomonosov, 18th century, Russian classicism, Peter the
Great, Russian language, ode, versification, metrics.
6
ndice.
Introduo. 05
Captulo I. Panorama Biogrfico de Mikhail Vasslievitch Lomonssov. 12
Captulo II. Lomonssov e a Lngua.
A lngua antes de Pedro. 61
As Primeiras Reformas. 66
Os Poetas. 77
A Contribuio de Lomonssov. 90
Captulo III. Duas odes de Lomonssov. 118
Carta sobre as Regras de Versificao Russa. 183
Prlogo sobre a Utilidade dos Livros Eclesisticos em Lngua Russa. 203
Bibliografia. 215
7
Introduo.
Se uma revoluo se define por ser, uma mudana abrupta, que foram
conscientemente planejadas, ao menos por uma minoria ativa, que ocorreu de maneira
relativamente sbita, marcando uma fase ps-revolucionria de modo prontamente
distinto da pr-revolucionria, que foi assim reconhecida por seus contemporneos e que
produziram transformaes que perduraram, como prope James Cracraft,1 o incio
sculo XVIII na Rssia foi um momento revolucionrio. O chamado sculo de Pedro, o
Grande, o Tsar, depois Imperador, que promoveu uma reestruturao social de seu pas
dificilmente vista na sua histria do mundo, definiu a Rssia moderna. Durante seu
reinado o estado russo, viu reformas que o impulsionaram a uma modernizao e uma
reorientao cultural em um ritmo, uma pujana e uma violncia talvez sem precedentes
at ento na histria humana. A burocracia estatal, as foras armadas, a religio, a
educao, a cultura, a lngua do pas, foram reformadas, transformadas ou recriadas, de
modo a imprimir-lhes uma dupla natureza que para bem e para mal foi essencial na
formao de seu carter nico. As reformas revolucionrias de Pedro I criaram as bases
do moderno estado russo que foram a terra frtil a partir de onde todas as grandes figuras
russas mundialmente conhecidas puderam florescer e produzir seus feitos. Aps sua
morte, a corte e o governo estavam irrevogavelmente mudados e a Rssia havia se
tornado um Imprio, que emulava todo o esplendor e glria da Roma de Augusto
trasladada na cidade construda no desague de um rio na extremidade oriental do mar
Bltico, ento no mais que um delta pantanoso esparsamente habitado por uma
pequena vila de pescadores. So Petersburgo serviu de capital a todo o Imprio at seu
fim, em fevereiro de 1917, e demonstrou em suas magnficas construes e terrveis
tragdias todas as contradies resultantes de uma reorientao forada das estruturas,
dos valores e da cultura.
Durante o sculo, que teve outro monarca intitulado Grande, Catarina II, outras
personalidades de influncia decisiva para o pas surgiram e contriburam para seu
desenvolvimento e grandeza. Generais, homens de estado, cientistas, educadores,
literatos apareceram em uma escala ainda no imaginada na histria do pas e sua
1 Cracraft, 2004, pg. 12.
8
determinao direta ou indireta na construo do novo Imprio foi essencial. Pegue-se,
como apenas um exemplo, Grigri Potimkin (1739 1791), general que participou do
golpe que levou Catarina II ao poder e foi crucial na vitria contra o Imprio Otomano na
guerra de 1768-74, que deu ao Imprio definitivo domnio sobre o norte do Mar Negro,
foi formado nas fileiras da Guarda Imperial formada por Pedro, o Grande. Se formos para
o campo da cultura e letras, tomemos os literatos e poetas Vassli Kirlovitch Trediakvski
(1703 1768) e Alexander Petrvitch Sumarkov (1717-1777), o primeiro, que comeou
seus estudos na Academia de Cincias ideada por Pedro, estudou na Frana e ao voltar,
foi uma das principais personagens nas discusses de como seriam compostos versos
russos dali em diante e contraponto fundamental para o que definitivamente
estabeleceria a poesia russa moderna; o segundo, que foi um importante poeta em sua
poca, e seu principal dramaturgo, formando o maior corpus dramtico em nmero de
peas do pas. O que no dizer de Gravrila Derjvin, o maior poeta do sculo, que
representou a primeira grande sntese da poesia russa, a um passo anterior do poeta
que definitivamente a universalizaria, Alexander Pchkin?
O XVIII foi o sculo das bases do pas. As bases da modernidade foram-lhe
lanadas nesse momento e o que pode ser mais fundamental do que a lngua na qual
seus cidados se comunicam? Pode-se dizer que a prpria lngua russa, a lngua
civilizacional em que o Estado, seus sditos e seus literatos, falando ou escrevendo, se
comunicam e que conhecemos hoje foi fundada e desenvolvida ao longo do sculo.
Estabeleceram-se ento os marcos que a permitiram adquirir autonomia frente lngua
mais antiga, ou melhor dizendo, o espectro lingustico, que analogicamente guardava as
diferenas entre o grego antigo e o moderno, ou forando um pouco mais, o latim e o
italiano. Esse conjunto de dialetos era o quase milenar eslavnico, lngua
fundamentalmente eclesistica, que era a nica lngua de cultura disponvel para a
Rssia antes das reformas petrinas. O pas ganhou ento uma voz autnoma e
perfeitamente comparvel s outras lnguas ocidentais que, dependendo do caso, j
haviam adquirido autonomia desde o sc. XIII. Alm disso, foi nesse sculo que a nova
lngua ganhou uma literatura antes impensada no pas, introduzida diretamente pelas
tendncias europeias da poca, cujo desenvolvimento posterior permitiu que todos os
9
grandes nomes universalmente reconhecidos dos sculos XIX e XX nela se
inscrevessem tornando-a uma das mais relevantes do mundo.
O sculo tambm foi o momento de um tipo particular de gnio sem o qual outros
maiores que ele simplesmente no poderiam existir. O influente crtico do sculo XIX,
Vissarion Belnski prope em um artigo que gnios podem ser classificados em dois
graus: Alexandres, Csares, Napolees, Carlos, Luteros so todos gnios que agem
diretamente em toda a humanidade e do outra orientao aos assuntos do mundo
inteiro; j um Henrique, um Colbert, um Pedro, agem na humanidade e em seu destino
futuro no diretamente, mas por meio de seu povo, preparando nele um novo realizador
na cena mundial.2 H gnios de feitos grandiosos particulares, e h gnios de feitos
grandiosos, mas basilares. Mikhail Vasslievitch Lomonssov foi um gnio da segunda
classe, algum sem o qual seria muito difcil imaginar quais seriam os rumos do pas.
Lomonssov foi um tpico polmata do sculo XVIII, que no raramente se encontraram
nas universidades alems, um dos beros do Iluminismo, capaz de se dedicar com
excelncia s mais variadas reas do saber, explorando-as e desenvolvendo-as com
uma incansvel voracidade e sede por um conhecimento que h no muito comeara a
revelar-se. Lomonssov foi o primeiro grande cientista da Rssia, responsvel no
apenas por feitos como a descoberta de que o planeta Vnus possua uma atmosfera ou
a proposio de uma lei de conservao da matria antes que Lavoisier, mas foi o
responsvel pela formao de centenas de jovens futuros cientistas, engenheiros e
poetas, pela construo do primeiro laboratrio de qumica profissional, pela fundao
da primeira universidade do Imprio que vicejava e pela reorganizao de suas
instituies educacionais. Da qumica engenharia, da fsica metalurgia, da histria
geografia, no fcil encontrar um campo do saber a que Lomonssov no se dedicou.
Seus feitos deixaram uma marca no pas a partir da qual tornou-se muito mais fcil para
que outros vivessem suas vidas e fizessem sua parte. Foi um gnio basilar.
Mas talvez seu maior feito, o feito que definiu e orientou as tendncias do ofcio a
partir do que quase todos os seus artfices vindouros produziriam, foi no campo das
letras. Lomonssov no apenas foi o terico que escreveu a primeira gramtica e a
primeira retrica da lngua russa, mas tambm foi o mais destacado poeta de seu tempo.
2 Belnski, 2014a.
10
No apenas ele criou obras modelares para a literatura russa, como tambm estabeleceu
o sistema de metrificao no qual poemas deveriam ser compostos e, com efeito, foram
at hoje, excetuados talvez os experimentos das Vanguardas. Foi, de acordo com outro
artigo de Belnski, o Pedro, o Grande, da literatura russa,3 que foi o modelo, positivo ou
negativo para poetas do primeiro escalo de genialidade, que comporiam mais tarde
obras como Queda dgua, ou Eugnio Oniguin4. A Gramtica Russa foi a primeira
gramtica da nova lngua, nica por 40 anos, cuja traduo para o alemo foi o primeiro
contato que um estrangeiro pde ter com ela e serviu de fundamento para gramticas
subsequentes. Suas Retricas, ainda que no totalmente originais, foram o guia de
eloquncia e composio textual por todo o resto do sculo XVIII, contendo os preceitos
e regras que lhes deram uma direo mais clara, que, apesar de abandonadas
posteriormente, foram a chave sem a qual era difcil orientar-se pelas letras do perodo.
Com o documento fundacional Carta sobre as Regras da Versificao Russa, foi trazida
luz a proposta que nunca mais seria mais abandonada ao se compor versos na lngua.
So esses feitos que fizeram com que Belnski o chamasse fundador e pai da poesia e
literatura russa. Indo mais alm, so esses feitos que permitiram que o crtico sequer
existisse.
Se suas obras hoje so pouco lidas e estudadas na Rssia e seu nome quase
que absolutamente desconhecido fora dela, talvez se deva ao fato de que gnios
basilares por no agirem diretamente, no costumam deixar uma marca reconhecvel
por feitos particulares. As odes de Lomonssov e boa parte do resto de sua produo
potica soa-nos hoje, em um ambiente democrtico, totalmente liberal nos costumes e
centrado na individualidade em detrimento do decoro e tradio, como pomposas,
enfadonhas, ridculas at, por tratar de uma matria totalmente estranha, em um modo
que simplesmente deixou de ter sentido e uma elocuo cuja primeira reao que pode
nos causar o riso e a chacota. Sua poesia , portanto, circunscrita, e se j na poca de
Belnski ela soava empolada e bombstica, hoje em dia ela dificilmente vai ter alguma
aceitao fora dos crculos de especialistas ou aficionados por poesia. A base do estudo
de um gnio basilar deste calibre, em um contexto em que ele simplesmente no existe,
3 Belnski, 2014b. 4Magna opera de Derjvin () e Pchkin ( ).
11
entretanto, faz-se necessria, pois estudar um poeta como Pchkin ou Derjvin sem o
conhecimento de seu predecessor e fundamentador, a figura sem a qual eles no
existiriam, resultar em uma compreenso incompleta de seu objeto e o estudo
decorrente corre o risco de se tornar sem fundamentos. Que este breve estudo sirva de
uma modestssima base a futuras investigaes em terras brasileiras sobre uma das
figuras mais importantes do sc. XVIII e uma das mentes mais brilhantes que a Rssia
j produziu.
12
I Panorama Biogrfico de Mikhail Vasslievitch Lomonssov.
A 8 (19, Juliano) de novembro de 1711, em uma vila de pescadores na aldeia de
Mishninskaia, distrito de Kurstrov, provncia de Arkhngelsk, no extremo norte da parte
ocidental do futuro Imprio, nascia uma criana que seria um sculo depois chamada o
singular (samobytny) companheiro do iluminismo entre Pedro I e Catarina II e a primeira
universidade do pas, por seu maior poeta.5 Mikhail Vasslievitch Lomonssov nasceu
em uma regio bastante particular e de fundamental importncia para o pas, pelo menos
desde o reinado de Ivan IV, o Terrvel. No desague no Mar Branco, uma antessala do
Oceano rtico, o rio Dvina do Norte se fragmenta em ilhas esparsamente habitadas
tendo como centro populacional a cidade de Arkhngelsk, o nico acesso ao mar que a
Rssia possua at as conquistas iniciais no Bltico durante a Grande Guerra do Norte.
At ento, ele era praticamente a nica via de comunicao com as potncias europeias
ocidentais consistindo no nico porto por onde se poderiam fazer negcios com elas. Foi
por onde Pedro, o Grande conheceu o mar e partiu para suas primeiras navegaes e
permaneceu uma via comercial importante aps a fundao de So Petersburgo. A
aldeia natal do polmata ficava em uma dessas ilhas com seus habitantes se ocupando
sobretudo da pesca, do comrcio e do famoso artesanato herdado dos primeiros
habitantes provenientes de Nvgorod em meados do sculo XII.
Seus habitantes eram nicos em toda a Rssia. L, as terras pertenciam
diretamente ao estado, no tendo sido delegadas aos nobres boiardos, senhores feudais
que geralmente tinham a posse das terras no resto do pas. Dessa forma, a fria regio
com suas terras pobres no conheceu a lei da servido, o conjunto de normas que
estabeleciam o regime feudal de servido para o resto do reino. Seus camponeses,
chamados tchornoschnie,6 no pertenciam propriedade de nenhum senhor feudal,
5 Pchkin, em sua Viagem de Moscou a S. Petersburgo, reflexes dedicadas ao livro de Radschev Viagem de S. Petersburgo a Moscou, elabora as opinies crticas do escritor a respeito de Lomonssov, a elas acrescentando as suas. O elogio feio ao grande homem inicia sua reflexo, mas uma ressalva. Aps isso, ele dir que ele no um poeta, mas um funcionrio decente no departamento de eloquncia dessa universidade e que sua influncia nas letras foi danosa e at agora nelas repercute. Pchkin, 1950, pg. 213. 6 A palavra um adjetivo composto do adjetivo tchrny, negro, e o substantivo socha, arado. Eram, ao contrrio dos Krpostnye Krestiane, os servos que viviam sob as leis de servido russa pertencendo a um determinado senhor feudal e, portanto, presos terra, servos que viviam em terras negras, isto , pertencentes diretamente ao estado russo. Cf. a entrada Tchornostchie Krestiane em Skharev, Krtskikh, 2003.
13
mas estavam diretamente subordinados ao estado, o que lhes garantia maior autonomia
e, principalmente, liberdade de movimento. A condio jurdica de seus habitantes fez
surgir um grupo tnico-religioso parte na regio chamado pomor, falando uma variao
dialetal prpria e normalmente se afiliando s faces da Igreja Ortodoxa Russa que
rejeitaram as reformas nikonianas em sua f e mantiveram os costumes antigos.7 Suas
ocupaes, diferentes das praticadas nas glebas do resto da Rssia, eram associadas
antes de tudo pesca, comercio e o pouco de navegao que havia no pas at a
construo da Marinha Imperial por Pedro I. Essas ocupaes garantiam-lhes melhores
condies de vida, inclusive provendo certa prosperidade para alguns, a ponto de eles a
repassarem para a construo de templos e outras melhorias pblicas. Este era o caso
de Vassly Dorofievitch Lomonssov, um desses camponeses cujo enriquecimento deu
a oportunidade de construir um barco prprio, adquirir um pedao de terra e dar parte de
seu dinheiro para a construo de um templo no vilarejo prximo de Densovka. A relativa
prosperidade de Vassli lhe possibilitou o casamento com a filha de um dicono local,
Elena Ivnovna Sivkova, de cuja unio, nasceu Mikhail Vasslievitch. Elena no viveria
alm da infncia do menino e seu pai se casaria ainda duas vezes, primeiro com Fidora
Mikhilovna Uskova, moa que no sobreviveria trs anos aps seu casamento, e, logo
em seguida, com a viva Irina Seminovna Korilskaia, mulher de quem Mikhail
guardava no muito ternas recordaes.
Desde a infncia, Vassli levava o jovem Mikhail para o mar, ensinando-lhe tudo
o que seu trabalho envolvia. O garoto teve contato com a spera e grandiosa natureza
dos mares do Norte, aprendendo a controlar o barco em momentos crticos causados
pelo tempo sempre instvel que acomete a regio e que quase matou Pedro, o Grande.
Ao mesmo tempo, a exuberncia natural da regio com sua fauna, com seus recursos
naturais, como salinas e reservas de mbar, com fenmenos estupefacientes como a
aurora boreal, somada diversidade tnica encontrada pela regio, deu curiosidade
7 As reformas promovidas nos anos 1650-60 pelo patriarca Nikon que modificavam uma srie de mudanas na liturgia e organizao da Igreja Ortodoxa Russa, visando sua aproximao com a ortodoxia grega de ento, causaram um cisma (em russo Raskol) na instituio, com uma parcela dos fieis renegando as modificaes, exigindo que todas as tradies se mantivessem inalteradas. Os membros dos diversos grupos que no aceitaram a reforma nikoniana, perseguidos e postos em apostasia pelo estado, ficaram conhecidos por staroobridtsy, velhos crentes. Aps isso fundaram comunidades em localidades afastadas dos grandes centros, tendo especial fora no norte do pas. Na poca de Pedro I, a represso a esses grupos diminuiu, permitindo que vivessem em maior tranquilidade.
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do garoto o alimento necessrio para que se tornasse uma das mais insaciveis mentes
j vistas no pas at ento, talvez apenas comparvel de Pedro, o Grande. Nos anos
de alfabetizao, quando tinha por volta de 12 anos, sua curiosidade e vontade de
aprender deu as primeiras mostras do que se tornariam mais tarde. No demorou at ele
ser capaz de copiar livros paroquiais e ter contato com toda a literatura disponvel l
ento.8 Aos 14 era considerado o melhor recitador dos Salmos da parquia, escrevendo
quase sem erros. Isso atestado por um de seus primeiros autgrafos, um contrato para
a construo de uma igreja em seu vilarejo, firmado em nome de seus habitantes. Nesta
poca, viu na casa de um vizinho os dois livros que teriam sido chamados por ele as
portas da minha instruo: a Gramtica Eslavena de Meliti Smotrtski, e a Aritmtica
de Lenti Magntski. Aps a morte desse vizinho, Lomonssov herda os to preciosos
livros e d incio ao seu caminho pela cincia e pelas letras. Juntamente com esses
livros, outra grande influncia para o garoto, com a qual teve contato ainda nos anos de
adolescncia, foi o Saltrio Rimado de Simeon Plotski, que definitivamente deixou sua
marca em seus poemas espirituais.
Mas para que esse caminho pudesse ser trilhado em sua poca, Mikhail precisaria
deixar seu torro natal e ir para os centros culturais de ento. Moscou, So Petersburgo
e Kev eram os nicos lugares em que se poderia alcanar uma educao superior no
pas. O garoto decidiu pela primeira com sua Academia Eslavo-Greco-Latina, localizada
no mosteiro fundado no incio do sc. XVII, o Zaikonospsskie Monastyr, como o passo
inicial em sua caminhada e o local onde ele melhor poderia aprender a lngua franca
cientfica e filosfica de ento, o latim. Aos 19 anos, extenuado por sua situao
domstica, com sua madrasta implicando com o fato de ele inutilmente s sentar-se
atrs de livros,9 e com a presso cada vez maior de seu pai para cas-lo e tocar os
negcios da famlia, desviando-o assim de seu grande sonho e obsesso, a incessante
aquisio de conhecimento, escondido de todos, Lomonssov parte para Moscou,
viajando em uma caravana de pescados com trs rublos no bolso e um cafet herdado
de um amigo. Para a viagem, o garoto precisou da ajuda de conterrneos para forjar um
8 Alm das escrituras, havia na igreja paroquial de Kurstrov vidas de santos, sermes de Padres da Igreja, textos exegticos e outros escritos eclesisticos que formavam o grosso da produo eslavnica. 9 Plnoe Sobrnie Sotchinnii (Obras Completas, doravante PSS). Tomo X. Carta 29. pp. 480-483.
15
passaporte e uma nova identidade, uma vez que na Academia s se aceitavam filhos de
clrigos. Assim ele se passou por filho de dicono, sendo aceito ao chegar instituio.
Esse segredo se manteria ainda por dois anos, at ele ser descoberto, mas o fato no
lhe causou tantos problemas por conta de sua excepcional performance e, talvez, pela
interveno direta da maior autoridade eclesistica do Imprio, o principal idelogo do
poder do primeiro Imperador de Todas as Rssias, Feofan Prokopvitch.10
Lomonssov passou cerca de cinco anos na Academia Eslavo-Greco-Latina,
durante os quais tornou-se proficiente em latim, aprendeu grego antigo, recebeu
formao retrica e potica com a leitura dos principais oradores e poetas romanos, teve
os fundamentos filosficos e teolgicos nos moldes escolsticos vigentes na instituio
e tomou contato com uma biblioteca relativamente grande para a Rssia do incio do
XVIII. O curso da Academia era previsto para durar 13 anos, que foram esgotados por
Mikhail durante sua estada. Seu ingresso aos 19 anos lhe ps na incmoda situao de
estudar latim com crianas de 12. Suas memrias atestam a inconvenincia de ser alvo
das chacotas e ofensas de seus colegas, mas pior do que isso era sua situao
financeira. Com um soldo de apenas trs copeques por dia, o jovem subsistia com no
mais que um copo de kvs e uma bisnaga de po. Se restasse algum dinheiro, ele
serviria para adquirir materiais de estudo indispensveis ou roupas para se proteger do
frio.11 Some-se a isso que, aps descobrir onde o filho se encontrava, Vassli
Dorofievitch continuamente mandava-lhe cartas implorando pelo seu regresso,
oferecendo-lhe regalias e facilidades com que ele sequer poderia sonhar em sua atual
condio, dentre as quais uma mulher de boa famlia. Nada, no entanto, demoveu o
jovem de seu caminho e sua sede de saber foi seu princpio e sua finalidade de
existncia.
10 Feofan Prokopvitch (1681-1736), clrigo formado pela Academia de Kiev, posteriormente o religioso mais importante da corte de Pedro I, chegando a se tornar Arcebispo de Nvgorod, foi uma pea central na legitimao ideolgica da pessoa e das reformas promovidas pelo monarca. Sua atividade com o clero, seus sermes, suas obras filosfico-jurdicas foram elementos tericos que deram a defesa intelectual necessria para que se justificasse a nova orientao cultural e poltica que se iniciou no pas durante o reinado de Pedro. Lembremo-nos que em 1721 o pas passou de um Tsarado, um estado governado por um Tsar, a um Imprio, encabeado por um Imperador, o primeiro dos quais foi Pedro I, o Grande. 11 PSS. Tomo X. Carta 28. pp. 478-480.
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No primeiro ano, Lomonssov completou o que levaria trs para se concluir. Com
dois anos de estudo, j compunha seus primeiros versos em latim e, ao final do terceiro,
completaria a instruo mediana que compreendia potica e retrica, passando para a
superior, o ensino de filosofia e teologia. A capacidade do jovem chamou a ateno de
seus professores abrindo a ele oportunidades raras no Imprio Russo. Uma delas foi
uma expedio ao mar Cspio ideada em 1734 com o fim de buscar novas reservas de
minrio e estender a soberania do Imprio a novas terras. Havia a necessidade de um
clrigo para servir de capelo expedio, que foi pedido Academia. Este teria sido
Lomonssov, se no fosse descoberto em sua artimanha de se passar por filho de
dicono. A descoberta o privou dessa empreitada, mas, como dito, devido ao seu
desempenho e a provvel interveno de Prokopvitch, foi perdoado e pde prosseguir
com seus estudos. Presume-se que seja desta poca a primeira composio literria sua
que chegou at ns, um poemeto de 8 versos pentasslabos, fabular, que fazia
significativo uso de eslavonicismos, em que moscas sentindo o cheiro do mel, nele
pousam e l acabam presas por sua voracidade impensada.12
Em 1734, talvez por influncia de Prokopvitch, Lomonssov decide a ir ao outro
centro educacional mais renomado do pas, a Academia de Kiev. L ele passar um ano,
regressando aps seu desapontamento com os mtodos de ensino e com o fato de que
a escola no tinha muito mais a oferecer-lhe. A cosmoviso escolstica, aristotlico-
ptolomaica, encontrada l no satisfez a Mikhail, que aproveitou os meses que passou
na instituio para aperfeioar seu grego e seu latim, e tomar contato mais aprofundado
com a filosofia escolstica e os grandes nomes da aurora intelectual do cristianismo,
como Joo Crisstomo, Baslio Magno, Joo de Damasco e outros padres da Igreja.
Alm disso aqui ele teve um contato mais amplo com a primeira literatura dos eslavos
orientais, pela leitura das primeiras crnicas, dos documentos oficiais que restaram das
invases mongis e dos monumentos literrios da poca, dando-lhe uma formao
histrica que seria bastante aproveitada mais tarde. Ao voltar a Moscou em meados de
1735, Lomonssov inicia o penltimo grau de formao na Academia Eslavo-Greco-
12 Provavelmente o poema se tratava de uma espcie de castigo comumente empregado em pedagogias jesuticas bastante difundidas por via da Academia de Kiev, que estipulavam que o aluno que cometesse faltas gramaticais teria de pagar com uma composio. PSS, Tomo VII, poema 1, pg. 872.
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Latina, o de filosofia, permanecendo a por alguns meses at o final do ano, quando, em
novembro, uma ordem do Senado chega escola para escolher doze de seus melhores
alunos afim de que continuassem seus estudos na Academia de Cincias de So
Petersburgo. O pomor se encontrava entre eles e no incio de 1736 apresentava-se
instituio de ensino mais alta do pas. Sua relao com a instituio duraria at o final
de sua vida e seu papel dentro dela seria decisivo para seu desenvolvimento.
O incio da estada na Academia de Cincias para os alunos recm-chegados da
Academia de Moscou no foi sem dificuldades. No primeiro ms no havia alojamentos
para todos eles e tiveram que se ajeitar como pudessem.13 Ignorando as adversidades,
Lomonssov aplicou-se com total afinco aos novos conhecimentos que lhe eram
oferecidos. Durante este perodo, foi apresentado a modelos cientficos ainda no
divulgados na Rssia, comeou a aprender o alemo, praticamente a lngua oficial da
instituio depois do latim e tomou contato com as ltimas tendncias e discusses a
respeito da produo potica russa, principalmente pela aquisio do Novo e Breve
Mtodo para a Composio de Versos Russos do poeta mais influente da dcada de
1730, Vassli Trediakvski. O exemplar adquirido por Mikhail foi preservado, e, pelas
glosas e anotaes nele feitas, veem-se diversos questionamentos que seriam um pouco
mais tarde centrais na composio da obra que seria uma resposta a esse Mtodo, a
Carta sobre as Regras da Composio de Versos Russa. Nas glosas notam-se
divergncias com respeito a questes lingusticas, semnticas, escolha dos exemplos
e prpria proposta formal apresentada por Trediakvski. Elas mostram de maneira
clara quo importante era a questo lingustica russa para Lomonssov e como ele deu
incio a sua decisiva contribuio a ela.14 Passado menos de um ano, a Academia de
Cincias escolhe trs de seus melhores alunos para, entre outras coisas, estudarem
metalurgia e minerao, durante um perodo de quatro anos em terras alems, no
Eleitorado da Saxnia, primeiro em Marburgo, onde receberiam formao universitria
geral, depois em Freiberg para o estudo especfico das disciplinas mencionadas e aps
13 No final dos anos 50, em um relatrio sobre a necessidade de reformar a Academia de Cincias, Lomonssov lembra do episdio em sua vida e na de seus companheiros vindos da Academia Eslavo-Greco-Latina, para atentar para a necessidade de prover melhores condies de moradia, alimentao e vestimenta de seus alunos. PSS, Tomo X, doc. 400, pg. 37. 14 Birkov, 1936. Pp. 54ff.
18
o qual, ao regressarem a So Petersburgo, teriam direito a postularem por uma vaga de
professor nos quadros da Academia de Cincias. Os trs eram Gustav lrich Reizer, um
alemo que depois daria sua contribuio qumica, Dmtri Ivnovitch Vinogrdov, o
futuro fundador da porcelana russa, e o pomor Mikhail Vasslievitch Lomonssov.
Os trs estudantes partem de Petersburgo no dia 8 de setembro de 1736 de barco
em direo ao porto de Travemnde, de onde iriam por terra at Marburgo. Chegando
l, puseram-se sob a direo e orientao do renomado aluno de Leibniz, Christian Wolff,
e estudaram aritmtica, geometria, trigonometria, qumica, desenho, lngua francesa e
alem.15 Atendendo s ordens da Academia de formar-se no apenas em cincias, mas
tambm em lnguas,16 por volta de outubro de 1738, Lomonssov envia-lhe sua primeira
traduo que nos chegou. A traduo de uma ode do padre francs Franois de Salignac
de la Mothe Fnelon (1651-1715) foi sua primeira experincia literria relevante no
apenas por apresentar uma j slida concepo tradutolgica, mas tambm por ser uma
das primeiras amostras de um poema escrito totalmente no sistema mtrico que seria
desenvolvido na Carta sobre as Leis de Versificao Russa um ano mais tarde. A ode
de Fnelon,17 escrita no metro mais comumente usado na Frana para a composio de
odes, o heptasslabo, foi vertida no tetrmetro trocaico russo, uma sequncia de quatro
ps tnicos cuja primeira slaba uma tnica e a segunda, uma tona. Alm disso,
manteve-se a alternncia entre rimas femininas e masculinas e o mesmo esquema
estrfico do original (a dcima em aBaBccDeeD), fornecendo desse modo uma primeira
amostra de um dos pontos de sua futura carta que se oporiam viso defendida por
Trediakvski em seu mtodo de que s deveriam ser empregadas rimas femininas nas
composies poticas em lngua russa, inaugurando, assim, um princpio formal que
seria posteriormente adotado como cannico no pas.
O tema da ode de Fnelon fundamentalmente descritivo, apresentando a
paisagem circundando o Priorado de Carennac, um mosteiro localizado no sudoeste
francs, como um idlio primaveril sublime cheio de vida e fertilidade, em que o poeta
toca a sua lira acompanhando o murmrio das guas enquanto pastores tocam seu
15 PSS. Tomo X. Doc. 500. pg. 362. 16 PSS. Tomo VIII. Pg. 866. 17 Ode labb de Langeron. Description de Prieur de Carennac. Fnelon, 1835. pg. 258 ff.
19
rebanho pelos montes e os deuses Ceres e Baco proveem suas ddivas em abundncia.
Esse modo descritivo sublime foi muito utilizado nas obras subsequentes de
Lomonssov, como veremos em suas Meditaes. No mesmo ano, outra traduo foi
composta, desta vez de um poema grego. Tratava-se do poema anacrentico ento
popularmente chamado Lira18. O poema foi traduzido aps a leitura do artigo do retor
alemo Johann Christoff Gottsched Tentativa de traduo de Anacreonte em versos
brancos,19 no qual este era um dos poemas traduzidos, vertendo o metro original, o
hemiambo simples20 (x v v x), em um trmetro imbico russo, com trs sequncias
de tona/tnica, tambm em versos brancos, como Gottsched. Essa experincia seria
reaproveitada vinte anos mais tarde, na composio de um de seus maiores feitos
literrios, a Conversa com Anacreonte.
A estada em Marburgo foi um perodo muito ativo e alegre para Mikhail. Destacou-
se bastante nos estudos enviando, durante o perodo em que esteve na cidade, trs
dissertaes, duas de fsica, uma de qumica. Foi tambm o momento em que conheceu
sua futura esposa, Elizabeth-Christina Zilch, a filha da dona da penso onde ficou
durante esses anos. O casamento se daria mais tarde, quando regressasse a Marburgo,
com todas as atribulaes e problemas que se vero a seguir, mas nesse momento ele
a engravida pela primeira vez, gerando sua nica filha que sobreviveu, Elena. De
qualquer modo, Marburgo era uma cidade predominantemente estudantil, girando em
torno da Universidade, com uma vida bastante agitada pelo grande nmero de jovens
estudantes. A viso de liberdade que l tiveram os jovens russos sados de uma
academia eclesistica, em uma sociedade ainda bastante pautada em valores religiosos
estritos, foi imensa, e eles trataram de aproveitar o mximo que puderam. Os gastos, no
entanto, decorrentes das muitas vezes em que pediram fiado dos comerciantes alemes
foi imenso. No tempo em que l estiveram deviam uma soma gigantesca de 1370
Reichstaler. Por pedido de seu professor e muitas vezes protetor, Christian Wolf, para
que os gastos no os atrapalhassem mais durante sua estada em Marburgo, os trs
18 Poema 23. West, 1993. 19 Versuch einer Ueberzetzung Anakreons in Reimlose Verse, 1736, in PSS. Tomo VIII, pg. 871. 20 West, 1993. Pg. XIV (Praefatio).
20
jovens foram mandados prematuramente para os estudos de mineralogia e metalurgia
em Freiberg, o lugar onde receberiam sua formao completa.
Em 1739, Lomonssov parte ento para a segunda fase de sua estada na
Alemanha, onde estudaria sob a orientao do renomado professor de mineralogia e
metalurgia Johann Friederich Henkel, a maior referncia do assunto na poca. A cidade
tambm era uma das maiores da Saxnia e um dos maiores polos de minerao da
Europa. L o aprendizado recebido foi predominantemente prtico, com visitas s minas
e metalrgicas da regio, acompanhadas de detalhadas explicaes sobre os processos
de minerao e produo de metal. Entretanto, apesar de este ser o momento em que
Lomonssov funda a literatura russa com sua Ode sobre a Tomada de Khotin e sua Carta
sobre a Versificao Russa, escritas em dezembro de 1739, a estada em Freiberg lhe foi
amarga e breve. Desde seu incio, no se deu com Henkel, no qual, segundo ele, apesar
de todas as tentativas de agrad-lo e respeit-lo, s transpareciam maldade,
mesquinharia e safadeza. Henkel segurava o dinheiro mandado para ele da Academia
de Cincias e simplesmente deixava os estudantes russos sob seu comando sem nada,
ao mesmo tempo que avisava a todos na cidade a no fazerem fiado para os russos l
residentes. s vezes os jovens no tinham sequer meios de subsistncia. Alm disso,
Lomonssov ficou totalmente insatisfeito com os posicionamentos tericos de Henkel,
que segundo ele desprezava toda filosofia racional e as posies cientficas modernas
que contrastassem com sua concepo peripattica. A relao do pomor com o saxo
chegou ao limite e, aps alguns confrontos, Henkel o expulsou, dando incio a uma fase
de muitas dificuldades e aventuras para Lomonssov. Como Henkel mantivera seus
documentos, o jovem vagou por muitas alemanhas sem dinheiro, sem identificao, sem
explicao oficial para sua permanncia nos estados que percorreu.
Ele foi primeiro a Leipzig, a oeste, ainda na Saxnia, onde morava o baro
Hermann Karl von Keyzerlingk, membro do conselho oculto da Imperatriz Ana Ionovna
e um dos principais representantes diplomticos do Imprio, mas foi em vo. O baro
tinha se ausentado, ido para Kassel, a oeste, para onde foi o jovem, com a ajuda de
alguns amigos. L chegando, outra vez viu que ele no estava l. Sua situao se
complicava. Volta a Marburgo onde consegue um pouco de dinheiro e parte para
Hamburgo, no Noroeste, prximo do Mar do Norte, para ir Holanda e tentar de l voltar
21
a Petersburgo. Aps falhar no contato com o corpo diplomtico russo no pas e passar
por algumas cidades, chega a Amsterdam, onde encontra russos da Pomria. Eles, no
entanto, o dissuadem de fazer a viagem, por conta de todos os perigos que envolvia
viajar sem documentos e voltar a Petersburgo sem pretexto. Retornando a Marburgo da
Holanda, ele fez uma parada prximo a Dsseldorf e l se deparou com um oficial do
exrcito prussiano, que o ludibriou, o embebedou e raptou o jovem para o servio militar.
Quando ele acordou, estava de uniforme na caserna e simplesmente no tinha o que
fazer. Passou cerca de trs semanas servindo dissimuladamente, at que um dia,
quando todos dormiam, conseguiu escapar da fortaleza e correu at a fronteira da
Westflia com Hessen, a regio de Marburgo. Exceto por esta ltima parte, toda a
aventura est narrada em uma carta ao acadmico Schumacher, ento presidente da
Academia de Cincias, enviada de Marburgo datada de 16 de novembro de 1740,
justificando sua desapario de Freiberg.21
Lomonssov l passou cerca de cinco meses. Nesse nterim conheceu sua filha
Elena, casou-se com Elizabeth no dia 6 de junho de 1740 e a engravidou pela segunda
vez. Enquanto esperava a resposta de Schumacher, continuou com os estudos
exercitando-se sem superviso e trabalhando no que podia. Cerca de 4 meses aps a
carta, Schumacher enviou uma ordem para que o jovem voltasse. Sem dinheiro, ele teve
de esperar mais dois meses antes que pudesse partir da Alemanha. Por todas as
complicaes, entre elas o fato de ter se casado na Igreja Luterana, Mikhail teve de
deixar Elizabeth-Christina grvida em Marburgo com sua filha Elena. Os dois ficariam
separados por dois anos, at que a situao de Lomonssov se estabelecesse na
Rssia. Durante esse tempo ele escondeu completamente o fato de que tinha se casado
e quase no se comunicou com Christina, deixando-a em uma situao bastante
delicada. Eliza daria luz um menino, morto a um ano de idade, que Lomonssov jamais
conheceria.
O estudante volta a So Petersburgo em 8 de junho de 1741, bem no meio da
crise sucessria ocorrida aps a morte de Ana Ionovna. A situao teria fim em
dezembro de 1741, quando por um golpe palaciano, a filha de Pedro, o Grande, Elizabete
Petrovna, frente do destacamento de granadeiros do batalho Preobrajnski, fundado
21 PSS. Tomo X. Carta 5. pp. 421-431
22
nos anos de adolescncia do primeiro Imperador, e atual corpo de elite do exrcito russo,
toma o poder das mos do beb Ivan VI e de sua me, a cada vez mais impopular regente
Ana Leopldovna. Ivan passaria o resto de sua vida em um calabouo at ser
assassinado durante uma tentativa de libert-lo na poca de Catarina II, a Grande. Todas
essas tribulaes refletiram-se na Academia e, durante esses anos, Lomonssov l
permaneceu oficialmente como estudante, vivendo nas moradias a eles assignadas e
passaria assim pelos prximos sete meses, apesar dos constantes pedidos de incluso
nos quadros. Trabalhou muito, no entanto. desse perodo que datam seus primeiros
trabalhos oficias pela Academia, como a catalogao de minrios pedida pelo professor
de cincias naturais Johann Aman, que foi bastante importante como base para
investigaes posteriores na rea de mineralogia no pas. Outros trabalhos relevantes
foram os Elementos de Qumica Matemtica, o Comentrio sobre O Instrumento
Catadiptrico, em que delineia os pontos sobre a combinao do uso de lentes e
espelhos convexos para gerar luminosidade, e as Reflexes Fisico-Qumicas sobre a
Correspondncia entre a Prata e o Mercrio. Todos esses foram trabalhos apresentados
Assembleia da Academia de Cincias com bastante sucesso, mas ainda no lhe
garantiram um posto de professor. Data de janeiro uma carta endereada Imperatriz
recm empossada, considerando todos esses trabalhos, com o pedido para que ela
expedisse um ukaz, uma ordem imperial, que o inclusse nos quadros da Academia. O
pedido foi aceito e em fevereiro, Lomonssov era efetivado como professor adjunto da
Academia de Cincias, ocupando o cargo subalterno na Ctedra de Qumica, subseo
da Faculdade de Fsica, com um salrio de 360 rublos anuais, podendo participar das
assembleias acadmicas, sem direito a voto nas deliberaes. Ainda no era o que lhe
prometeram quando partiu para a Alemanha, mas era um comeo. J nesse ano, ele
pela primeira vez faz um pedido que levaria ainda seis para ser atendido, mas que era
essencial a qualquer instituio de ensino superior, a construo do primeiro laboratrio
de qumica do pas, sem o qual no haveria como fazer todos os experimentos
necessrios para qualquer postulao terica cientfica moderna. O pedido
acompanhava um projeto, contendo todos os elementos que Lomonssov julgava
necessrios para o pleno desenvolvimento das cincias em benefcio da ptria.22 A
22 PSS. Tomo IX. pg. 9.
23
proposta nesse momento no recebeu a ateno devida e o agora professor precisaria
ainda de muita insistncia para que o laboratrio fosse construdo.
Em 1741, escreve trs odes para o pobre beb imperial. A primeira,23 datando do
dia de sua chegada a Petersburgo, a celebrao do primeiro ano do Imperador Ivan
VI, Antonvitch, que seria deposto seis meses mais tarde no golpe palaciano que levou
Elizabete ao poder. A ode foi encomendada por Schumacher para ser recitada em uma
celebrao com fogos de artifcio e espetculos de luzes. Ela foi a primeira publicao
literria de Lomonssov, aparecendo no suplemento da revista publicada pela Academia
Primetchnia k Vidomostiam (Comentrios s Notcias). A ode louva o Imperador
recm-nascido, anunciando uma nova era dourada, com a promessa de tranquilidade s
esperanas do eu lrico (v.16). Dirigindo-se a um beb, a ode tem um tom de ternura no
visto em outras composies, com os beijos dedicados s mozinhas e perninhas do
novo soberano (est. 3 a 6). O poema mantm as tpicas costumeiras, filiando-se
mitologia clssica (est. 7, 8, 11), apresentando a sequncia da histria da Rus (est. 14 a
17), at fechar-se com uma recusa guerra e um louvor me do Imperador e regente
do Imprio, Ana Leopldovna. A segunda, tambm requisitada por Schumacher e
publicada no Primetchnia k Vidomostiam, louva seus primeiros feitos blicos, pela
vitria do exrcito russo contra os suecos na primeira batalha da guerra de 1741-44, um
primeiro episdio de um conflito mais amplo, que envolveu todas as potncias ocidentais
e que precipitou definitivamente o declnio do Imprio Sueco, a Guerra da Sucesso
Austraca. uma ode de guerra, que, aberta com as devidas convenes, mostra em
uma bela alegoria Marte batido na batalha, ferido, ir a uma gruta se recuperar at a
chegada de Vnus e Diana outra vez conclamando-o a lide, depois de curarem-no com
Lrios e a gua do Sena. A referncia ao Imprio Sueco, depois da destrutiva derrota
em 1721, voltar ao ataque 20 anos depois, instado pela diplomacia francesa a declarar
guerra contra a Rssia. Nela abundam perguntas retricas contra os suecos,
provocaes e imagens de sua destruio. No h propriamente uma passagem
histrico-mtica alm de Ana Ionovna olhando do cu a vitria (est. 21), uma
23 Ode, que no Solene Aniversrio do Excelso Nascimento do Sumelevadssimo Soberano, Detentor do Grande Imprio Russo, Ioan Terceiro, Imperador e Autocrata de Todas as Rssias, a 12 de Agosto de 1741, a Regozijante Rssia Celebra. PSS. Tomo VII. pp. 34ff.
24
homenagem ao Pai da Ptria, no diretamente nomeado (22), terminando com uma
orao a Deus pedindo que sempre proteja o pas. uma ode que destoa um pouco do
conjunto da obra lomonossoviana, principalmente por no aplicar com intensidade o
princpio da desordem lrica. Por suas operaes com as perguntas e provocaes ela
se mostra pouco mais experimental e talvez por isso tenha sido criticada no decorrer do
sc.XIX.24 Ambas as odes foram condenadas destruio aps o golpe que levou
Elizabete ao poder, tornando-se uma raridade suas primeiras publicaes.
No mesmo ano, pouco antes da coroao de Elizabete, a Lomonssov
requisitada uma outra ode, celebrando o aniversrio da nova soberana. Seria a primeira
de 8 odes celebrando a nova Imperatriz. Ela uma traduo de uma ode do acadmico
Schtaelin, composta no delicado momento poltico do golpe de Elizabete, principalmente
em se tratando da situao dos alemes ocupando postos altos no poder. uma ode
comparativamente menor, contendo doze estrofes, com nfase na representao da
esperana mediante prosopopias e alegorias. No h propriamente coisas dignas de
nota nela, exceto a estrofe final com o jogo de palavras entre o nome da Imperatriz
(Elizavita) e as palavras slave svita (Glria do mundo).25 No ano seguinte, outra ode
para a Imperatriz, desta vez em tributo a sua coroao. Esta ode tambm uma traduo
do alemo, composta pelo tambm acadmico, Gottlieb Junker. O metro respeita as
escolhas do alemo, sendo vertida em hexmetros imbicos, medida que seria mais
usada em outros gneros, como as Inscries e a inconclusa epopia Pedro, o Grande.
Todas essas odes so geralmente consideradas obras imaturas, frias, sem expresso,
talvez pelo fato de toda a cautela necessria de se demonstrar nesses tempos de crise
poltica. Cabe lembrar tambm que a ode para Elizabete uma traduo de Schtaelin e
serve antes de exemplo das concepes tradutolgicas de Lomonssov que de mostra
significativa de seus princpios poticos dirigentes. So de qualquer modo uma etapa
importante no desenvolvimento de sua expresso e merecem ser considerados.
1742 foi um ano atribulado para a Academia. Pela mudana brusca no poder
Imperial e por diversos descontentamentos com algumas regras institucionais e com a
24 Como fazem os prprios comentrios das Obras Completas: PSS. Tomo VIII, pg. 884. 25 , / / / . PSS, tomo VII. pg. 58.
25
presidncia de Schumacher, alguns acadmicos protestaram contra ele, acusando-o de
arbitrariedade e abuso no tratamento com os acadmicos russos, e desvios para si
prprio da verba dedicada instituio. O professor de astronomia Joseph-Nocols de
LIsle e o inventor, escultor e homem de estado Andrei Konstantnovitch Nrtov enviaram
uma queixa contra o presidente ao Senado Imperial, que formou uma comisso de
investigao, e em pouco tempo Schumacher foi destitudo do cargo e preso por
malversao de dinheiro pblico. Nrtov assumiu a direo da Academia e Lomonssov
recebeu novos encargos, como ministrar palestras separadas sobre geografia fsica e
ensinar composio potica e estilo uma vez por semana. Agradou ao pomor a nova
configurao acadmica e, em princpio, ele tacitamente os apoiou. A comisso de
investigao, entretanto, para a surpresa de muitos membros da Academia absolveu
Schumacher das acusaes, restituiu-o ao cargo e os acusadores acabaram se tornando
acusados. Algumas decises de Nrtov, como o foco dedicado s cincias aplicadas em
detrimento das tericas, bem como seu comportamento ditatorial semelhante ao de
Schumacher, causaram desentendimentos e divises dentro da instituio e
contriburam para que Schumacher fosse restitudo.
Lomonssov, a quem Nrtov havia encarregado algumas atividades burocrticas,
se envolveu em uma srie de conflitos com correligionrios de Schumacher e recebeu
diversas queixas na comisso investigadora. Um episdio que as gerou ocorreu com o
Secretrio de Conferncias da Academia Christian Winsheim, em que houve uma
acalorada discusso que quase chegou s vias de fato. Houve tambm quando em casa
de um dos membros da Academia, o pomor alcoolizado acusou um dos presentes de
terem roubado sua algibeira. A discusso a acabou na ignorncia, com Lomonssov
agredindo a socos e pontaps boa parte dos presentes depois de dizer a seu lacaio para
arrebentar todos at a morte.26 O dono da casa teve de escapar pela janela e chamar a
guarda da cidade para remover o agressor de l. As queixas contra o temperamento do
pomor foram se avolumando. Por conseguinte, um decreto da chancelaria da Academia
o suspendeu do posto de adjunto, foi culpado de conduta indecente pela comisso e
intimado a um interrogatrio. Nele, o polmata recusou-se a responder aos
questionamentos, sendo, assim, por fim foi condenado priso domiciliar.
26 Lvvitch-Kostritsa, Seo 1274.
26
Foram tempos difceis. Ficou preso por oito meses e durante perodo adoeceu e
teve de suportar mais um perodo de necessidades financeiras, uma vez que seu soldo
tambm fora suspenso. Teve dificuldades para comprar alimento e remdios e no
conseguia de ningum dinheiro emprestado.27 Ele s seria posto em liberdade em janeiro
de 1744, ainda que sob uma dura sano: teve de receber por um ano apenas metade
de seu soldo e pedir perdo a todos os professores que ofendera nas querelas ocorridas
um ano antes. Sua situao se complicava, principalmente em vista do fato de que no
fim de 1743 sua esposa finalmente chegara com sua filha. Ele teria mais duas bocas
para alimentar. Mas as dificuldades, como j se viu, no foram as maiores de sua vida e
isso no o impediu de trabalhar. Pelo contrrio, foi um perodo extremamente produtivo
para Lomonssov, que usou o tempo para compor a estrutura geral de seus tratados
retricos e seu mais famoso poema, a Meditao Noturna sobre a Grandeza Divina por
Ocasio da Aurora Boreal junto com seu irmo menos ilustre, mas no menos belo, a
Meditao Matinal sobre a Grandeza Divina. Infelizmente no h espao o bastante aqui
para analis-los em detalhes, mas que pelo menos se lhes dediquem algumas linhas.
Os dois poemas podem ser classificados como odes espirituais, em uma matria
e forma similares a algumas feitas pelos dois grandes poetas contemporneos
Trediakvski e Sumarkov, em que se contempla toda a majestade e esplendor da
realidade, como reflexo da grandeza divina frente a insuficiente inteligncia humana.28 A
grande diferena e o fator que a faz sobressair-se s demais o fato de que elas so
escritas pela mente que mais amplamente atingiu o limite das diferentes reas do
conhecimento de ento e por um dos maiores versificadores do sculo na Rssia. Os
conhecimentos cientficos e o domnio da eloquncia adquiridos pelo jovem polmata (e
talvez sua triste condio no crcere) no decorrer desses anos terminou por criar estas
duas prolas que se tornariam cannicas na poesia russa. So construdos em uma
estrofe de seis versos com um esquema de rimas aBaBCC para a matinal e ABABCC
para a noturna. O esquema desta ltima que emprega apenas terminaes masculinas
nico em Lomonssov e contribui para o sentido de dvida, de exasperao com a
27 PSS. Tomo X. pg. 503. 28 Cf., por exemplo, Trediakvski, 2009, pg. 228: Ode XXVIII Sobre a Impermanncia do Mundo, ou, mais prximas na forma e tom, as odes espirituais de Sumarkov, como a Ode I Sobre a Majestade Divina. (1787. Tomo 1. pp. 115ff.)
27
prpria ignorncia em meio a tanto questionamento.29 Nos dois poemas faz-se uso
principalmente da descrio sublime dos fenmenos que esto sendo cantados, com
muitas perguntas retricas para enaltecer essas descries e o frequente uso do
discurso direto. Como o prprio ttulo diz, o poema em princpio uma ode de louvor ao
Criador, e como tal, segundo as regras do gnero, h diversos vocativos de
endereamento laudatrio que se faz a Deus. A Meditao Matinal trata basicamente da
grandeza divina a partir do tema do nascer do sol. O dstico final da primeira estrofe d
o tom dessas odes: Mira quo claro tanto esplendor / E v por ele o prprio Criador
(vv. 5, 6). Cenas descritivas do sol se seguem na est. 3 aps a condio dada na est. 2,
Se a ns mortais pudesse o dom ser dado (v. 7) de voar at o sol sem se queimar, e
impressionam por sua fora imagtica: Batem-se l incessantes gneas vagas / E no
se encontram margens aportveis, / Tormentas l de fogo entrechocadas / Revolvem-se
por eras incontveis. / Pedras l tal como gua em vapor fervem / Chuvas ardentes l ao
lume servem. (vv. 12-18). Tal fria retratada arrematada na estrofe seguinte com a
constatao de que toda esta imensido apenas uma fagulha frente grandeza do
Altssimo, e que por Ele e seu luzeiro que podemos tocar nossas vidas diariamente
dentro de nossa pequena parcela do Cosmo. A est. 5 a descrio do mundo iluminado
pelo sol, descrevendo todo o esplendor da existncia sob essa luz. Mas s teu olhar
penetra o fundo bratro / E no possui limite a tua cincia. / Do teu olhar, da claridade
tua, / Vem a alegria a toda criatura, como diz a est. 6, complementando a cena do
esplendor terrestre e traz a reflexo a respeito da inteligncia divina segundo concepes
geralmente esposadas por alguns nomes do Iluminismo, que prope um criador para o
universo, mas que no age diretamente sobre ele dando-lhe seguir seu curso segundo
as regras que Ele estabeleceu. A questo do chamado desmo de que seriam adeptos
nomes como Newton, Leibniz e o prprio Lomonssov bastante complexa e no pode
ser tratada aqui, mas estes poemas do uma medida, ainda que extremamente parcial,
de como Lomonssov via o fenmeno da criao e da ao de uma entidade metafsica
subjacente realidade.30 A est. 7 fecha o poema com uma invocao: Criador, a mim,
29 O efeito mais ou menos similar ao empregado quase duzentos anos depois por Ana Akhmtova no eplogo (II) de seu Rquiem, ainda que l a exasperao seja bem diferente. 30 A questo das concepes religiosas de Lomonssov extremamente controversa. Ao tratar esse assunto, seus comentadores soviticos so talvez unnimes em afirmar que o polmata era um fervoroso materialista e usava a
28
por trevas encoberto, / Verte todo o saber do teu luzir. / E o que for pelo teu desgnio
certo / Sempre ciente ensina-me a erigir / E, toda a criao a contemplar, / Ensina a ti
louvar, imortal Tsar!
A Meditao Noturna talvez o poema mais famoso do polmata. Sua publicao
inicial, entretanto, no serviu como um fim em si mesma, mas para ilustrar alguns anos
mais tarde um ponto de sua Retrica de 1748, cuja primeira verso, publicada em 1744,
foi principalmente elaborada no momento em que ele estava em priso domiciliar. O
poema, localizado na terceira parte, Disposio (Raspolojinie), serve para ilustrar um
entimema, um silogismo retrico que oculta uma de suas duas premissas, partindo
diretamente para a concluso. No 270, o retor diz que em vez de uma premissa, pode-
se colocar um desenvolvimento da ideia para ilustrar melhor a figura. O poema serve de
ilustrao para o seguinte entimema: No podemos conhecer tudo das criaturas,
portanto, o Criador inatingvel. Ento, usando o tema da noite, do mundo e da aurora
boreal, ele ilustra o desenvolvimento de um entimema na ode, um dos nicos poemas
integrais dispostos na Retrica de 1748.
O pretexto para o louvor a Deus um fenmeno que desde a infncia maravilhou
Lomonssov e que sempre recebeu dele uma grande ateno em suas investigaes
cientficas. A aurora boreal (sivernoe siinie, lit. apario setentrional) tem aqui um dos
mais belos poemas que lhe foram dedicados. Por sua importncia crtica e literria, o
poema entra obrigatoriamente em todas as coletneas poticas de Lomonssov e em
boa parte das crestomatias da poesia russa em geral. Um tema secundrio, ou pelo
menos a postura do sujeito potico que diz, assim eu nesse abismo submergido, / perco-
me em pensamentos, aturdido. (vv.15-16), a pequenez do ser humano frente o
esplendor da realidade e talvez um certo ceticismo com relao a sua capacidade de
conhece-la plenamente. A ode abre com uma estrofe descritiva sublime do crepsculo:
tradio crist como mero embelezamento retrico ou com o fim de evitar problemas com as autoridades. Cf., por exemplo, Pvlova, Fidorov, 1987, pp. 164ff, ou Vasetsky, 1968, pp. 238ff, ou os comentrios das Obras Completas em que se trata do assunto. inegvel, no entanto, que Lomonssov guardava grande respeito pela tradio crist e o fato de ele ter dedicado uma boa parte de sua obra filolgico/potica a ela j parece ser uma evidncia bastante eloquente disso. bvio que sua cosmoviso no era pautada segundo uma observncia estrita das Escrituras, mas tambm no to fcil afirmar peremptoriamente que elas no tinham a importncia que os autores acima a todo momento fazem questo de descartar. Para uma viso alternativa, justamente no tratamento dessas meditaes, cf. Moser 1971. pp. 189ff.
29
O dia vai ocultando sua face, / Aos campos a atra noite est a cobrir, / Nos montes sobe
a sombra num enlace / Curvando-se se foi a luz daqui. / Repleto abriu-se o abismo das
estrelas; / No h fundo nem nmero a cont-las. Passa-se ento na est. 2 descrio
da pequenez humana por meio de uma enumerao de quatro smiles de coisas
minsculas diante de espaos imensos, para ser arrematada no tenor ocupando o dstico
final dos vv. 15-16. A estrofe seguinte d um tom bastante ambguo ao poema, podendo
ser irnico ou no, um pouco ctico, com relao possibilidade de conhecimento
absoluto da realidade, disposta em discurso direto, imitando posicionamentos cientficos
frequentes ento, comeando com o verso: As vozes dos mais doutos asseguram (v.
17). Nelas se diz que l h profuso de outros mundos, com infinitos sois fulgurando e
gente vivendo no entorno desses sois. A posio de que havia outros seres em outros
pontos do universo era bastante polmica e foi proibida por setores da Igreja Ortodoxa
Russa. Alguns afirmam peremptoriamente que Lomonssov aqui estava desafiando
setores reacionrios eclesisticos da sociedade russa pela postulao direta da
existncia de extraterrestres, e sua viso de mundo totalmente materialista,31 mas no
h como descartar que pode haver um tom irnico, que aponte para um certo ceticismo
com relao s possibilidades ltimas do conhecimento humano.32 De qualquer forma, a
ode prossegue com a pergunta talvez mais repetida no decorrer da existncia do
polmata: Mas onde, natureza, est sua lei? A ento comea a bela descrio da aurora
boreal. Na estrofe seguinte h uma nova interpelao a aqueles cuja presena o olhar
ligeiro, grafa no livro as leis da eternidade, cientistas e filsofos da natureza. A pergunta
retrica final continua com um tom sardnico: Conheceis dos planetas cada rota. / dizei
ento o que tanto nos toca? A descrio continua na estrofe seguinte e arrematada na
est. 7 pela enumerao de explicaes que podem ser propostas para o fenmeno, a
bruma se choca com a gua, reflexos do brilho do sol, ondas que se chocam com o ar,
relmpagos sem nuvens de trovo. Uma dessas explicaes, o fato de que a aurora pode
ser causada por movimentaes no ter, foi exposta pelo prprio polmata em seu
trabalho Sobre as Aparies Etreas Eltricas de 1753.33 Essas explicaes, no entanto,
31 Por exemplo, Pvlova, Fidorov, 1987. pp. 227ff. e 298ff.; PSS. Tomo VII. pg. 912ff. 32 Moser, 1971. pg. 196. 33 PSS. Tomo III. pg. 123.
30
so arrematadas na ltima estrofe por Vossas respostas enchem-se de dvida / At
sobre o que est a nosso redor. (vv. 46-47) e prosseguem no tom de certa forma ctico
com relao s possibilidades do conhecimento humano. O dstico final do poema o
momento em que ocorre a concluso do entimema: Qual do ser seu ltimo valor? /
Dizei, por fim, quo grande o Criador? Concluindo seu poema mais famoso com esse
tom de dvida, Lomonssov deu uma grande interrogao e exasperao a boa parte de
seus crticos que tentaram fazer dele uma personalidade que consolidasse seus
princpios ideolgicos. Este um polmico poema em sua recepo posterior e um das
maiores prolas da poesia russa.
A chegada de Christina com a pequena Elena, pe um freio no temperamento
irascvel e conturbado de Lomonssov que lhe causou tantos problemas. A partir de
1744, sua produo intelectual aumenta consideravelmente e a partir de ento que
seus trabalhos mais importantes, tanto nas cincias naturais como nas letras, daro seus
maiores frutos. Nesse ano, escreve trs dissertaes: Sobre a Livre Circulao do Ar nas
Minas, sobre o Efeito dos Solventes Qumicos em Geral e, a primeira verso do mais
importante dos trs, Reflexes Fsicas sobre as Causas do Calor e do Frio, em que o
calor dos corpos consiste em seu movimento interno,34 ressaltando as propostas de
grandes nomes anteriores como Bacon, Boyle e Newton, e dando importantes
contribuies prprias para a teoria cintico-molecular. Aqui pela primeira vez ele opera
com os conceitos gerais da conservao da matria, que seriam mais tarde
desenvolvidos no que na Rssia conhecido por Lei de Lomonssov. As trs obras
ensejaram o pedido do professor adjunto a ser promovido a professor pleno, chamado
Acadmico ento. Em abril de 1745 ele manda uma carta Academia pedindo sua
incluso nos quadros.35 Nela ele lista todos os ramos do saber a que se dedicou, todas
as tradues que fez do alemo, francs e latim e, por fim, seus mais recentes trabalhos
um livro sobre minerao e uma retrica, que mais tarde seria reelaborada no primeiro
grande tratado do gnero em lngua russa. O pedido foi considerado, mas a Assembleia
Acadmica requisitou que ele antes apresentasse um ltimo trabalho, com um tema que
fosse o mais adequado situao atual das cincias, segundo seu juzo. Em 14 de junho,
34 PSS. Tomo I. pg. 127. 35 PSS. Tomo X. pp. 338-339.
31
o adjunto apresenta a dissertao, Sobre o Brilho Metlico, e, ao analis-la, a Assembleia
decidiu que as mostras de sabedoria dadas pelo senhor adjunto, fazem-no digno de ser
elevado ao posto de Professor da Ctedra de Qumica.36 Lomonssov foi um dos
primeiros russos a integrarem os quadros da instituio. Seu soldo, entretanto, demorou
a ser estipulado, continuou sendo pago como adjunto e apenas um ano depois foi
estabelecido que recebesse 660 rublos anuais, uma soma considervel para a poca.
Data dessa poca tambm a redao do importantssimo Fundamentos da Metalurgia e
Minerao, livro que s seria publicado em 1762, mas que considerado por muitos o
documento terico fundacional da ocupao na Rssia. uma obra enciclopdica, com
a catalogao de todos os minrios ento conhecidos, com slida fundamentao terica
e, principalmente, uma abordagem extremamente didtica para a resoluo de questes
prticas relacionadas disciplina. O manual ilustrado com uma srie de imagens
desenhadas pelo prprio autor, de modo a parecer o mais didtico e formativo possvel.
L encontram-se desenhos dos equipamentos, locais e modos de produo e instalaes
necessrias para o domnio da ocupao, extremamente bem detalhados e explicados.
Este manual, com tiragem inicial da primeira edio de 1225 exemplares enviados a
todas as partes do Imprio, foi uma das obras de maior repercusso do polmata e
serviram como guia de muitas geraes de engenheiros no pas.37
No decorrer do ano, Lomonssov continuou a presso para a construo de um
laboratrio de qumica enviando diversos pedidos para tal. Nesse nterim ele conseguiu
o apoio de outros colegas que adicionaram suas queixas aos seus pedidos. A carta
enviada ao Senado Imperial, assinada por todos os membros da Assembleia datada de
15 de dezembro de 1745 dizia da grande necessidade para o pas de se construir um
laboratrio de qumica, fechando o documento ao afirmar que um professor sem
laboratrio como um astrnomo sem observatrio e seus instrumentos necessrios.38
No ano seguinte o Senado deu a ordem para a construo do primeiro laboratrio de
qumica do pas, segundo um projeto elaborado por Lomonssov, de acordo com o que
ele observou em Marburgo e Freiberg e com todo o conhecimento adquirido na rea at
36 Pvlova, Fidorov, 1987. pg. 96. 37 Ibid. pp. 256ff. 38 PSS. Tomo IX. pp. 28.
32
ento. Ainda demorariam dois anos at que ele fosse concludo, mas era mais uma
contribuio que o pomor dava sua to amada Rssia. Concludo, o laboratrio foi a
principal instituio de pesquisa cientfica experimental do pas enquanto Lomonssov l
trabalhou e um pouco depois quando este passou seus encargos dez anos depois para
o qumico alemo lrich Chistoff Salchow. O laboratrio fechou suas portas no final do
sculo XVIII e durante mais de 70 anos a Academia no disps de um espao para
experincias cientficas satisfatrio, s sendo construdo outro em 1867, com os projetos
propostos por Lomonssov servindo-lhe de base.
Com o posto de professor aumentam no s os encargos e as responsabilidades
sobre o polmata, mas tambm sua autoridade, ainda que demorasse mais um pouco at
ele ser contemplado com uma posio no Quadro de Classes, o sistema de posies e
patentes do funcionalismo pblico e militar desenvolvido por Pedro I. Entre os anos de
1746 e 1751 ele produz trabalhos bastante significativos. Em 1746, publicada sua
traduo mais importante, a Fsica Elementar de seu professor Christian Wolff, uma das
obras mais importantes na formao de jovens cientistas de ento. Indiretamente ela
trouxe contribuies significativas tambm para a lngua russa, uma vez que a
quantidade de palavras novas para nomear elementos, procedimentos, equipamentos,
frmulas etc. acabou por ser um dos documentos mais importantes no estabelecimento
na nomenclatura cientfica da lngua. Palavras como diametr, qvadrat, formula, barometr,
atmosfiera, etc. entraram pela primeira vez no lxico da lngua russa, contribuindo em
muito para a consolidao da cincia no pas. tambm uma defesa clara da concepo
cartesiana de mundo, em muitos pontos polmica contra o aristotelismo escolstico
dominante nas principais instituies de educao russas. Apenas por essa traduo,
v-se o quanto o grande cientista era na mesma proporo um mestre das letras. Seu
estilo claro, simples, vrias vezes inventivo na busca de solues tradutolgicas e
bastante fiel dentro das possibilidades ao original foi responsvel por lhe render um
grande reconhecimento como tradutor. Aps ela a Academia o encarregou no s de
novas tradues, como tambm do servio de revisor de outras enviadas instituio.
Lomonssov era um tradutor completo. Exceleu em todos os campos da atividade, tanto
na traduo potica e na artstica em prosa, quanto na tcnica. Tinha plena conscincia
da srie de registros lingusticos a serem correspondidos entre as lnguas, era de uma
33
grande inventividade na busca pelas analogias formais to necessrias na poesia e tinha
a medida ideal entre o respeito pelo texto e a necessidade de criao muitas vezes
exigida do tradutor. Tinha o decoro tradutrio perfeito.
Tambm toma parte da redao do peridico Sanktpeterburgskie Vidomosti,
Notcias de So Petersburgo, e seus suplementos cientficos, os Komnetarii e os Novye
Komentarii, Comentrios e Novos Comentrios. Esses comentrios publicavam os
principais trabalhos produzidos na Academia e Lomonssov foi um de seus maiores
colaboradores, publicando por eles a maior parte de suas dissertaes. Em 47 termina
a reelaborao de seu primeiro manual de retrica de 1744, batizado de Breve Guia para
a Eloquncia, publicado no ano seguinte, que, como j foi dito e ser ainda ressaltado,
seria o primeiro tratado retrico escrito na lngua russa que se formava. Data do mesmo
ano uma de suas mais famosas e melhores odes solenes, a Sobre a Ascenso ao Trono
de Elizabete Petrovna, um de seus maiores feitos literrios. Este tambm o perodo em
que ele mais trabalhou no que ele prprio chamou Ndpis, como calque Sobrescrito,
como traduo, Inscrio, poemas curtos, de natureza epigramtica,39 que geralmente
eram compostos para cerimnias da corte em que serviam de suporte verbal para
iluminuras, fogos de artifcio e mascaradas, com a representao alegrica do monarca.
Eles serviam tambm para outros fins, como inscries a esttuas e outros
monumentos.40 O poeta escreveu mais de trinta e sete em sua vida sendo esse o gnero
literrio em que mais praticou. Ele no deve ser confundido com o epigrama, que nessa
poca era um poema breve de carter ferino com finalidade ao vituprio ou chacota de
determinada pessoa ou figura pblica. O poeta tambm escreveu uma srie destes, mas
no se comparam em nmero s Inscries.
Em 48, na continuao de suas posies na questo atmico-molecular,
expostas no trabalho sobre as causas do frio e calor, escreve em latim as Experincias
da Teoria sobre a Resistncia do Ar, um trabalho muito comentado e debatido, que fez
com que ele se debruasse na questo, com vrios experimentos no laboratrio por
39 Segundo a definio antiga, alexandrina, de epigrama como consta na Antologia Palatina. 40 A mais famosa, a Inscrio Esttua de Pedro, o Grande (1750), foi inicialmente pensada como suporte verbal para uma esttua equestre do Imperador, que seria construda no Castelo do Engenheiro, atual Castelo de So Miguel em So Petersburgo. Ela no foi construda, mas o poema ficou. (PSS. Tomo VIII. Poema 162. pg. 284).
34
anos.41 Esse trabalho revelava parte da concepo atmico molecular defendida por
Lomonssov, que mais tarde o levaria a concluses a respeito de uma questo muito
debatida at ento, a da lei da conservao da matria. Lomonssov nunca reclamou
para si o ttulo de descobridor ou postulador de uma lei universal nesse sentido como o
fez algumas dcadas mais tarde Antoine de Lavoisier. Mas a noo sempre acompanhou
o polmata, como demonstrado em uma longa carta datada de 5 de julho de 1748 ao
talvez mais clebre de todos os membros da Academia Imperial de Cincia, o
mundialmente famoso matemtico Leonard Euler. A carta uma resposta ao
matemtico, que propusera ao russo escrever uma dissertao e envi-la a um concurso
cientfico em Berlim explicando a origem do salitre. Ela em si um tratado cientfico em
forma epistolar, que celebrada por muitos, principalmente por pesquisadores
soviticos, como a primeira vez na histria cientfica em que mencionada a lei da
conservao da matria e movimento e que a formulao de uma lei geral da natureza
um dos feitos mais importantes de Lomonssov na histria do desenvolvimento de uma
filosofia materialista.42 O polmata faria outros experimentos mais frente que
ressaltariam a proposta. Quem entrou para a histria, entretanto, como o primeiro a
propor a lei foi Lavoisier, talvez pela elegncia com que foi exposta e pela relevncia e
autoridade que o francs adquiriu no desenvolvimento da qumica moderna.
Em 1750, Lomonssov escreve sua primeira epstola em versos ao grande
homem de estado, homem de letras e mecenas do perodo elisabetano Ivan Ivnovitch
Chuvlov. Primo de Alexander e Piotr, duas peas centrais no golpe palaciano que levou
Elizabete Petrovna ao poder, ele depressa se tornou um dos favoritos da Imperatriz,
ocupando posio de destaque em seu reinado. Lomonssov se aproximara deste
amante das belas artes alguns anos antes, como seu professor particular de eloquncia
e potica e logo adentraria em seu crculo de amizades, participando de diversos jantares
e festas em sua casa. Por causa de sua amizade, Lomonssov conseguiu realizar
diversos projetos, deixando-nos por conta dela algumas obras poticas centrais em sua
obra. A Carta ao Excelentssimo Ivan Ivnovitch Chuvlov43 o primeiro exemplar desta
41 PSS. Tomo II. pg. 109. 42 PSS. Tomo II. pp. 662-663. 43 PSS. Tomo VIII. Poema 164. pp. 289-290.
35
correspondncia, que representou o grosso de sua produo no gnero epistolar. Esta
primeira carta um breve poema de 36 versos, que louva o estado russo escabeado
pela Imperatriz. A relao entre Chuvlov e Lomonssov foi uma das mais importantes
amizades da Rssia do sculo XVIII. Por causa dela, algumas instituies que at hoje
fazem parte da estrutura cultural e cientfica do pas foram criadas, bem como algumas
das mais importantes obras poticas de Lomonssov. A insistncia de Chuvlov com
que o polmata se dedicasse mais s humanidades em detrimento da filosofia natural s
foi benfica paras as letras russas, sem prejudicar em nada a parte cientista de
Lomonssov. O homem simplesmente se dedicou igualmente aos dois universos...
Data do mesmo ano a primeira de duas tragdias escritas por Lomonssov,
Tamira e Selim. Com a fama consolidada principalmente pelas odes solenes e pelos
discursos que agradaram muito monarca, a prpria Elizabete requisitou do polmata a
composio de uma tragdia que tivesse a histria da Rssia como pano de fundo.
Tamira e Selim uma tragdia composta nos moldes do teatro clssico francs, em
hexmetros imbicos, com rimas pareadas alternando entre masculinas e femininas em
cinco atos cuja trama tem por base o assassinato de Mamai, o lder dos trtaros da Horda
Dourada que foi derrotado na batalha de Kulikovo por Dmtri Donski, impondo aos
trtaros-mongis sua primeira derrota decisiva e chacoalhando o jugo que cairia
oficialmente um sculo depois em 1480. Aps sua fuga com outros quatro comandantes
para uma cidade na Crimeia, onde ele acaba sendo assassinado por um deles. Antes
disso, o prncipe da Crimeia, Mumiet, cuja filha Tamira estava prometida a Mamai,
enviara seu filho, Narsim, para a campanha mongol na Rssia. A ausncia dessas foras
causou uma guerra entre o prncipe de Bagd, Selim, e Mumiet, que aps sofrer algumas
derrotas, entra em negociaes com seu inimigo e acaba por consolidar uma trgua. A
ao comea a. A tragdia teve um moderado sucesso em sua poca, rapidamente
esgotando a primeira edio e sendo montada duas vezes na corte, pelo corpo de
cadetes do batalho Preobrajnski. Escrita no auge das polmicas literrias contra
Alexander Petrvitch Sumarkov, recebeu deste e de um de seus apoiadores um breve
libreto que satirizava o Racine sem querer, aluso ao polmata-dramaturgo.44
44 PSS. Tomo VIII. pp. 971-975.
36
A outra tragdia, Demofont, publicada um ano depois, escrita no mesmo metro,
tambm em cinco atos, mas tem como tema a Grcia mitolgica com Demofonte, o filho
de Teseu como personagem principal. A histria bastante obscura na antiguidade e o
mais prximo que se encontra dela o raro mito de Filis e Demofonte.45 Filho do rei
ateniense, Teseu, e participante da guerra e destruio de Troia, Demofonte, ao voltar
da expedio acometido por uma tempestade e acaba aportando nas terras da Trcia.
L a princesa Flis, filha do finado rei Licurgo da Trcia, e criada pelo atual regente
Polimnstor, conhece o ateniense e se envolve em uma trrida paixo com ele. O regente
estava ausente por conta de uma guerra contra os Citas, e a princesa prope a
Demofonte casar-se com ele e tomar para si o poder exilando o regente ausente. Antes
disso, entretanto, antes da destruio de Troia, o rei Pramo enviara sua filha Ilona para
a Trcia, de modo a salv-la. Demofonte, ao conhec-la tem sentimentos ambguos para
com a moa, acabando por se apaixonar por ela. Em sua indeciso Polimnstor regressa
e a se tem o incio da ao. Demofonte no recebeu a mesma ateno que Tamira e
Selim e no h notcia de que tenha sido montada. A obra dramtica de Lomonssov
no foi to popular e no to reputada quanto a do maior dramaturgo, tanto em
quantidade como em qualidade do perodo, Alexander Sumarkov. De qualquer maneira,
com as duas tragdias, Lomonssov um dos principais nomes do drama russo do
sculo XVIII e deve ser lido por qualquer um que deseje estud-lo.
Um outro campo das humanidades em que o polmata foi fundamental, tambm
muito incentivado por Chuvlov, foi a histria. Lomonssov sempre teve contato com os
monumentos historiogrficos da antiga Rssia, como as crnicas de Nstor e de
Nvgorod, desde sua infncia e adolescncia no Norte e depois quando estudou tanto
na Academia Eslavo-Greco-Latina e na Academia de Kiev. Os conhecimentos herdados
45 um mito muito pouco atualizado. H a verso apresentada nos comentrios de Srvio Honorato cloga V (v. 10 Phyllidis ignes), em que Flis, filha do rei Sitnio, se envolve com Demofonte, regresso de Troia, que depois a deixa prometendo que voltaria. Com a demora a moa acaba se matando e se converte em uma aveleira. Outra instncia em Apolodoro, que conta o fim de Demofonte. Ao regressar a Atenas, ele abre uma caixa dada por Flis, para ser aberta caso ele no voltasse, e l se depara com um horror tamanho, que sai para galopar, caindo do cavalo e morrendo sobre sua espada. A apropriao mais famosa est em Ovdio: Heroides. II, chama-se Flis a Demofonte e uma epstola dsticos elegacos em que a amante abandonada expe sua pobre condio ao ingrato Demofonte. Lomonssov apropriou-se bastante originalmente do mito, introduzindo uma srie de elementos tirados simplesmente de seu engenho. PSS. Tomo VIII. pg. 993 nos informa que a verso do comentador do sc. XVII Daniel Helvetius, contm uma verso similar usada por Lomonssov. Infelizmente no foi possvel conferi-la.
37
dessa paixo foram requisitados pela primeira vez no final dos anos 1740, quando toma
parte nos primeiros debates historiogrficos envolvendo o historiador e membro da
Academia de Cincias, Gerhard-Friedrich Mller. Mller foi um importante nome da
instituio na poca por ter sido um dos organizadores da primeira expedio a
Kamtchatka, passar dez anos na Sibria por conta dessa expedio, coletar l
importantes documentos historiogrficos para o pas e compor obras historiogrficas
influentes. Essas obras, como a Histria da Sibria, garantiram uma primeira divulgao
da histria do pas no ocidente. Em uma reunio solene da Academia em 1749, Mller e
Lomonssov foram requisitados a apresentar este um panegrico solene para a
Imperatriz, aquele um discurso de contedo histrico. O discurso de Lomonssov, o
Discurso Panegrico Soberana Elizabete Petrovna de 26 de Novembro de 1749, a
aplicao de boa parte dos princpios expostos no manual de retrica escrito dois anos
antes e um dos marcos da oratria no primeiro desenvolvimento da lngua russa, sendo
aclamado inicialmente por seus pares, mas recusado posteriormente como modelo para
a prosa russa em geral.46 O discurso de Mller, Origem do Nome e do Povo Russo, no
entanto recebeu diversas crticas, encabeadas pelo prprio Lomonssov. O discurso de
Mller estava embasado em uma teoria da origem dos russos centrada na ideia de que
estes teriam sido descendentes dos normandos, inclusive devendo o prprio nome das
terras, Rus, a eles. O polmata criticou o discurso de Mller principalmente pelo fato de
ele desconsiderar em grande medida as fontes mais antigas dos cronistas da Rus e se
basear principalmente em trabalhos de historiadores estrangeiros. As opinies de Mller
de que os variagues, os fundadores do estado russo, eram normandos foram rebatidas
por alguns argumentos de Lomonssov de que estes teriam sido de origem eslava e
falado uma lngua eslava e de que o nome Rus era da mesma origem. Esta resenha
crtica foi uma das primeiras obras historiogrficas de Lomonssov, que alguns anos
depois escreveria o primeiro volume de um trabalho mais ambicioso, que no foi
materializado. A Histria da Antiga Rssia um trabalho de cerca de 170 pginas que
pretendeu cobrir o perodo entre as primeiras menes dos habitantes da regio e o final
46 Um dos motivos por que Pchkin entre outros consideraram a influncia de Lomonssov danosa nas letras russas ilustrado neste e em outro panegrico dedicado a Pedro, o Grande, escritos pelo polmata. O uso de uma sintaxe que buscava emular os grandes oradores clssicos, como Ccero em sua lngua original, traa certa naturalidade da lngua, cuja prosa seria posteriormente aperfeioada.
38
do reinado de Iaroslav I, o sbio, neto de Vladimir I, o Grande, o responsvel pela
cristianizao do pas. A obra revela um grande conhecimento dos monumentos
histricos e documentos da literatura russa antiga, bem como um bom domnio das
fontes contemporneas, como o primeiro historiador russo moderno, Vassli Niktitch
Tatschev (1686-1750) e pretendeu ser um documento bem fundamentado teoricamente
e ao mesmo tempo acessvel para um amplo crculo de leitores. Esta no foi a nica obra
historiogrfica importante do polmata. Em 1760 ele publica uma Breve Crnica da
Rssia com uma Genealogia, um resumo sucinto da histria russa a partir da observao
de seus governantes. Alm disso, revisou vrios trabalhos historiogrficos de outros
estudiosos, entre os quais os rascunhos de A Histria do Imprio Russo sob Pedro, o
Grande, obra mais tarde publicada em 1761, que popularizou imensamente a figura do
monarca no ocidente, escrita por um de seus maiores prosadores, Voltaire. A data da
reviso dos rascunhos data de 1757 e l v-se frases como, O sr. V. deveria deixar de
lado tais descries da Rssia, ou, se quiser continuar, que venha at aqui v-la por si
s, colocando-se sob minha superviso. 47 As atividades de Lomonssov no campo da
histria consagraram seu nome em mais uma rea do saber. Suas obras foram
traduzidas e publicadas no estrangeiro e gozaram de uma boa popularidade entre alguns
nomes do final do sc. XVIII e incio do XIX, como Radschev e alguns dezembristas.
1751 foi o ano em que o poeta mais praticou em uma subdiviso do gnero ode,
que representava uma tradio de pelo menos 150 anos na Rssia. A chamada ode
espiritual continha alguns tipos de poemas espirituais cristos, o mais importante dos
quais, a parfrase de textos ditos poticos do Velho Testamento. Principalmente no
ltimo quarto do sculo XVII, com os poemas do monge Simeon Plotski, os Salmos, o
Livro de J, o Cntico dos Cnticos, todos foram parafraseados em metro e rimas,
formando poemas autnomos. No XVIII, a maior parte dos grandes poetas continuaram
essa tradio deixando obras bastante consistentes. Lomonssov foi um deles e de
1751 que datam suas mais importantes composies no gnero. As Parfrases aos
Salmos 1, 26, 34, 7048 so parte da produo de Lomonssov no gnero. Estes poemas
47 PSS. Tomo VI. pp. 92-93. 48 Numerados segundo a tradio greco-eslavnica. A tradio hebraica conta as composies 10 a 148 uma unidade frente. Cf. Bblia de Jerusalm, 2002. pp. 858ff.
39
so compostos em quartetos com um esquema de rimas aBaB, geralmente em
tetrmetros imbicos. O 2