:: Verinotio - Revista On-line de Educao e Cincias Humanas. N 4, Ano II, Abril de 2006, periodicidade semestral Edio Especial: Dossi Marx ISSN 1981-061X.
A EXTERIORIZAO DA VIDA NOS MANUSCRITOS ECONMICO-
FILOSFICOS DE 1844*
Mnica Hallak M. da Costa**
Resumo
Os Manuscritos de 44 so freqentemente compreendidos como textos
superados pelo suposto Marx maduro e cientfico, sendo, portanto, retratados
como uma curiosidade do passado filosfico do autor. O presente artigo pretende
demonstrar que a superao fundamental com o idealismo j havia se
concretizado por ocasio da redao dos Manuscritos, assim como colocar em
evidncia a categoria central e fio condutor desses rascunhos: aquela da
exteriorizao da vida - tanto em seus aspectos abstratos, quanto na configurao
da vida social nos marcos do capitalismo.
Palavras-chave: apropriao humana, exteriorizao, ser social.
The exteriorization of life in Karl Marxs 1844 Economic and Philosophic Manuscripts
Abstract
Karl Marxs 1844 Economic and Philosophic Manuscripts are frequently
regarded as outdated texts if compared to other works written by a more mature
and scientific Marx. Economic and Philosophic Manuscripts are thus seen as a
curiosity from Marxs philosophical past. This paper aims at demonstrating that
Marxs idealism had already been consolidated at the time Manuscripts was written.
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http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn1#_edn1http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn1#_edn1http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn2#_edn2
It also aims at highlighting Marxs Manuscritps most important feature: the
exteriorization of life in its abstracts aspects as well as in the configuration of social
life as a part of Capitalism.
Key-words: appropriation of human life, exteriorization, social being.
Trazer tona os Manuscritos de 44 significa retomar questes que se
perderam no cenrio contemporneo: qual a razo de ser da propriedade privada
(do capital), qual a necessidade de existncia desta forma social de produo?
Quando, em 1859, no prefcio Para a Crtica da Economia Poltica,
Marx revela os motivos que o levaram a se dedicar ao estudo de economia
poltica, ele identifica como base de anlise as relaes materiais de vida
(MARX, 1974:135), afirmando, assim, que a sociedade civil que determina o
estado. Mas o politicismo que dominou crescentemente a esquerda do sculo XX
fez com que esta se esquecesse das razes materiais da vida e se dedicasse a
buscar unicamente na poltica a resposta para as questes humanas. Assim, em
tal esfera estaria a soluo para o problema da liberdade circunscrito
liberdade de expresso e expanso das liberdades democrticas, como o direito
ao voto e a livre associao. Na poltica estaria tambm a chave para o
tratamento da desigualdade entre os homens que seria, por esta via, superada,
ou amenizada, pela distribuio da riqueza atravs de polticas sociais pblicas e
outras aes governamentais. No este o momento de nos voltarmos para as
bases materiais da produo da prpria vida humana sem estarmos aprisionados
por esta ou aquela tendncia poltica? No seria hora de repor a
discusso explicitada por Marx nos Manuscritos na qual ele situa o trabalho como
produtor da propriedade privada? De fato, a centralidade do trabalho na produo
e reproduo da existncia humana a grande novidade e fio condutor dos
Manuscritos de 44. Da anlise dos economistas clssicos discusso com Hegel,
todas as formulaes se atm a esta descoberta: o homem como produtor de si
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mesmo atravs da atividade sensvel. Atividade que envolve objetividade e
subjetividade, entrelaadas na produo material, que faz da vida do homem uma
forma radicalmente nova de existncia, distinta e mais complexa do que todo
movimento da natureza. esta riqueza analtica que ainda fascina os leitores dos
Manuscritos. E esta compreenso que pretendemos trazer luz neste artigo.
Em 1932 vem a pblico os textos conhecidos hoje como Manuscritos
Econmico-Filosficos. Redigidos no decorrer do ano de 1844 formam, com
alguns outros trabalhos, um conjunto que compreende a fase decisiva que
marcar todo o itinerrio posterior de Marx. Com efeito, o pensamento prprio de
Marx se instaura enquanto tal a partir de trs crticas ontolgicas desencadeadas
pela crtica poltica, resultado de uma reviso da Filosofia do Direito de Hegel
empreendida por Marx em meados de 1843[1]. No prefcio de 1859 a Para a
Crtica da Economia Poltica, Marx resume os resultados deste estudo de 43 no
qual situa a verdadeira relao entre estado e sociedade civil, rompendo com a
especulao ao denunciar a inverso que esta opera quando parte da "idia como
origem ou princpio de entificao do multiverso sensvel" (CHASIN, 1995:357).
Em 1843 clara a ruptura com a especulao que se desenvolveu a
partir dos primeiros delineamentos da crtica poltica que se tornar evidente em
Sobre A Questo Judaica e nas Glosas Crticas ao artigo O Rei da Prssia e a
Reforma Social por um Prussiano, nas quais a afirmao da ontonegatividade da
poltica explcita[2].
A terceira crtica se estabelece, segundo o prprio depoimento de Marx,
em consonncia com as duas anteriores: "Minha investigao [de 43] desembocou
no seguinte resultado: relaes jurdicas, tais como formas de estado, no podem
ser compreendidas nem por si mesmas, nem a partir do chamado
desenvolvimento geral do esprito humano, mas pelo contrrio, elas se enrazam
nas relaes materiais da vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome
de 'sociedade civil', seguindo os ingleses e os franceses do sculo XVIII, a
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anatomia da sociedade civil dever ser procurada na economia poltica" (MARX,
1974:135).
Os Manuscritos so o primeiro trabalho em que Marx se debrua sobre o
vasto e denso terreno da sociedade civil, estendendo "o mbito da anlise desde a
raiz ao todo da mundaneidade, natural e social, incorporando toda gama de
objetos e relaes"(CHASIN, 1995:379). No so, portanto, anotaes arbitrrias
sem relao com o conjunto de seu pensamento. Ao contrrio, se configuram ao
mesmo tempo como resultado e ponto de partida de um modo peculiar e original
de reflexo sobre a vida humano-social.
Estas poucas linhas, que pretendem contextualizar minimamente o lugar
dos Manuscritos no itinerrio de Marx, so certamente insuficientes para trazer
para o leitor atual uma idia, genrica ao menos, do impacto causado
pelo descobrimento destes escritos na dcada de 30 do sculo XX. Para este fim,
a transcrio do depoimento de um dos decifradores dos Manuscritos, , sem
dvida, mais eficaz. Vejamos como se expressa Lukcs a respeito destes
rascunhos: "pela primeira vez na histria da filosofia, as categorias econmicas
aparecem como categorias da produo e reproduo da vida humana, tornando
assim possvel uma descrio ontolgica do ser social sobre bases materialistas"
(LUKCS, 1979:14-5). De fato esta descrio que encontramos nos Manuscritos
e preciso que se registre aqui o reconhecimento da contribuio de Lukcs na
elucidao das bases ontolgicas do pensamento de Marx. O trabalho do grupo
de pesquisa responsvel pela publicao dos artigos desta coletnea no seria
possvel sem os seus indicativos, o que no significa que se limite s
argumentaes do filsofo hngaro. Ao contrrio, as pesquisas mais recentes do
grupo, bem como as publicaes da ltima dcada de J. Chasin, apontam
discordncias e superaes em relao a Lukcs. De todo modo, o texto
apresentado a seguir fruto em primeiro lugar de suas indicaes, em segundo,
da tenacidade do professor Chasin que dedicou sua vida redescoberta de Marx
e, com o qual tive o privilgio de trabalhar.
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Apesar dos resultados divergentes, as diretrizes bsicas do artigo que se
segue so as indicadas por Lukcs na citao acima. Tanto assim que a anlise
de abertura diz respeito exatamente aos lineamentos mais gerais encontrados nos
Manuscritos sobre a produo e reproduo da vida humana.
1) A EXTERIORIZAAO DA VIDA HUMANA
especialmente na crtica especulao que se pode encontrar os
lineamentos gerais daquilo que Lukcs chamou de ontologia do ser social. No
terceiro manuscrito, dedicado crtica da Fenomenologia de Hegel, Marx trata do
carter objetivo de toda ao humana denunciando a absurdidade do ser abstrato
presente na especulao. Suas palavras so claras: "Um ser que no tenha sua
natureza fora de si no um ser natural, no faz parte da essncia da natureza.
Um ser que no tem nenhum objeto fora de si no um ser objetivo. Um ser que
no por sua vez objeto para um terceiro ser no tem nenhum ser como objeto
seu, isto , no se comporta objetivamente, seu ser no objetivo. Um ser no
objetivo um no-ser (137/578)[3].
Marx se reporta imediatamente objetividade[4] enquanto fundamento de
todo ser, situando o seu carter relacional como a primeira evidncia desta
determinao, e no deixa dvidas sobre a identidade entre ser e objetividade ao
afirmar que "um ser no objetivo um no ser". Essa identidade se traduz no
reconhecimento da objetividade como categoria primria de toda entificao. Marx
procura demonstrar como esta determinao se apresenta na existncia concreta:
"A fome um carecimento natural; precisa, pois, de uma natureza fora de si, um
objeto fora de si para satisfazer-se, para acalmar-se. A fome a necessidade
confessa que meu corpo tem de um objeto que est fora dele e indispensvel
para sua integrao e para sua exteriorizao essencial(137/578). Situa, portanto,
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em primeiro lugar, a identidade entre ser e objetividade demonstrando o carter
relacional de toda entificao sensvel.
Em sua explicitao da especificidade da objetividade humana Marx
identifica primeiramente o ser em geral e a natureza. Nessa linha de reflexo, a
relao objetiva entre os seres uma relao de reciprocidade e essa interao
objetiva, segundo Marx, se realiza a partir da sensibilidade, pois "to logo eu
tenha um objeto, este objeto me tem a mim como objeto", ou seja, "ser sensvel,
isto , ser efetivo, ser objeto dos sentidos, ser objeto sensvel, e, portanto, ter
objetos sensveis fora de si, ter objetos de sua sensibilidade. Ser sensvel
padecer" (137-8/579). V-se que Marx procura centrar sua posio no
reconhecimento do ser enquanto objetividade sensvel afirmando, no entanto, que
na vida humana, o carter relacional da objetividade transforma-se no motor que
a impulsiona atividade. Nesse sentido, ele afirma: "O homem imediatamente
ser natural. Como ser natural, e como ser natural vivo, est, em parte, dotado de
foras naturais, de foras vitais, um ser natural ativo; essas foras existem nele
como disposio e capacidade, como instintos, em parte como ser natural,
corpreo, sensvel, objetivo, um ser que padece, condicionado e limitado, tal
qual o animal e a planta; isto , os objetos de seus instintos existem exteriormente
como objetos independentes dele, entretanto (grifo meu), esses objetos so objetos de seu carecimento, objetos essenciais, imprescindveis para a efetuao
e confirmao de suas foras essenciais (136/578). Portanto, em comum com a
natureza, o homem um ser corpreo, sensvel, objetivo, ou seja, "condicionado
e limitado". Como qualquer outro ente natural, ele necessita de objetos exteriores,
"como objetos independentes dele". Mas, em seguida, Marx salienta que "esses
objetos so objetos de seu carecimento", ou seja, "objetos essenciais", sem os
quais ele no se efetiva como homem.
A subsuno natural aparece como determinante apenas pelos seus
limites, pelo condicionamento objetivo que, no entanto, no aprisiona o ser
humano. Ao contrrio, "como ser natural ativo", ele transforma o carecimento em
"confirmao de suas foras essenciais". Assim, Marx situa o ser ativo como
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entificao peculiar que transcende os limites naturais, pois capaz de se pr
como uma objetividade sensvel que apresenta atributos especficos.
A identidade entre ser e objetividade aparece nos escritos de Marx, j em
44, como forma peculiar da existncia dos homens, numa reconfigurao que
transforma a necessidade de objetos exteriores na confirmao das foras
essenciais humanas. Mas esta reconfigurao s possvel em sociedade. Nas
palavras de Marx: A essncia humana da natureza existe somente para o
homem social, pois somente assim existe para ele como vnculo com o homem,
como existncia sua para o outro e do outro para ele, como elemento vital da
efetividade humana, s assim existe como fundamento de sua prpria existncia
humana. S ento sua existncia natural se torna para ele sua existncia
humana e a natureza se torna para ele o homem. A sociedade , pois, a plena
unidade essencial do homem com a natureza, verdadeira ressurreio da
natureza, o naturalismo realizado do homem e o humanismo realizado da
natureza(89/537-8). Portanto, somente para o ser social o vnculo com a
natureza ao mesmo tempo sua relao com os demais homens e apenas desse
modo a inter-relao entre os homens se realiza na relao com a objetividade
natural que, assim, reemerge como objetividade social.
Na vida humana essa reconfigurao se traduz em primeiro lugar na
produo dos prprios homens: "Um ser s se considera autnomo, quando
senhor de si mesmo, e s senhor de si, quando deve a si mesmo seu modo de
existncia. Um homem que vive graas a outro se considera a si mesmo um ser
dependente, vivo, no entanto, totalmente por graa de outro, quando lhe devo no
s a manuteno de minha vida, como tambm o fato de que ele alm disso criou
minha vida; e minha vida tem necessariamente o fundamento fora de si mesma
quando no minha prpria criao" (97/544-5).
A prpria vida humana, portanto, a confirmao da interdependncia
efetiva que a caracterstica de toda objetividade. Ou seja, a recriao contnua
dos homens a prova cabal de que "minha vida tem necessariamente o
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fundamento fora de si mesma". Marx, citando Aristteles, afirma "tu foste
engendrado por teu pai e tua me, isto , o coito de dois seres humanos, um ato
genrico dos homens, produziu em ti o homem. Vs, pois, que inclusive
fisicamente o homem deve ao homem sua existncia" (98/545). A gerao do
homem fsico se apresenta como ato natural. No entanto, para o ser ativo, a
procriao se converte em confirmao da vida humana e no uma determinao
cega da natureza.
Tal evidncia se manifesta no fato de que a prpria relao humana que
perpetua a espcie uma atividade que distingue os homens da mera reproduo
natural. Assim, segundo Marx, "a relao imediata, natural e necessria do
homem com o homem a relao do homem com a mulher. Nesta relao
genrica natural, a relao do homem com a natureza imediatamente sua
relao com o homem, do mesmo modo que a relao com o homem
imediatamente sua relao com a natureza, sua prpria destinao natural. Nesta
relao aparece pois de maneira sensvel, reduzida a um fato concreto, em que
medida a essncia humana se converteu para o homem em natureza ou a
natureza tornou-se a essncia humana do homem (86/535).
Ademais, Marx vai identificar na relao concreta entre o homem e
mulher a medida da humanidade do homem, j que esta relao a mais simples,
natural e espontnea relao do homem com o homem e "nela se mostra em que
medida o comportamento natural do homem tornou-se humano, ou em que
medida a essncia humana tornou-se para ele essncia natural, em que medida a
sua natureza humana tornou-se para ele natureza" (86/535). Vale dizer, como
relao mais natural do homem consigo mesmo, a relao homem-mulher
demonstra em que medida o homem "em seu modo de existncia mais individual,
, ao mesmo tempo, ser social " (87/535), pois somente para o ser social, a vida
individual ao mesmo tempo vida genrica.
Justamente com o propsito de demonstrar o carter social da existncia
individual, Marx considera: "A vida individual e a vida genrica no so distintas,
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por mais que, necessariamente, o modo de existncia da vida individual seja um
modo mais particular ou mais geral da vida genrica, ou que a vida do gnero
seja uma vida individual mais particular ou mais geral" (90/539). Ou seja, cada
existncia concreta pode ser uma forma mais ampla ou mais restrita de vivenciar
a generidade. Do mesmo modo, a vida do gnero pode se reproduzir atravs da
existncia individual voltada para um mbito limitado da generidade ou para
dimenses mais extensas do ser social. Nessa direo, preciso assinalar que "o
homem - por mais que seja um indivduo particular, e justamente sua
particularidade que faz dele um indivduo e um ser social individual real - na
mesma medida, a totalidade, a totalidade ideal, a existncia subjetiva da
sociedade pensada e sentida para si, tanto como contemplao e gozo da
existncia social, quanto como totalidade de manifestao de vida humana
(90/539), pois cada individualidade a expresso efetiva, sensvel da totalidade
da vida humana. Vale dizer, cada ser social individual, real, em sua especificidade,
ao mesmo tempo essncia genrica sensvel, a expresso singular que
concentra em si a complexidade de seu ser plural - o gnero humano.
Por este motivo, Marx adverte: deve-se evitar antes de tudo fixar a
'sociedade' como outra abstrao frente ao indivduo. O indivduo o ser social. A
exteriorizao da sua vida - ainda que no aparea na forma imediata de uma
exteriorizao da vida coletiva, cumprida em unio e ao mesmo tempo com outros
- , pois, uma manifestao e confirmao da vida social" (90/538-9). E
exemplifica: "mesmo quando atuo cientificamente, etc., uma atividade que
raramente posso levar a cabo em comunidade imediata com outros homens,
tambm sou social porque atuo enquanto homem. No s o material de minha
atividade - como a prpria lngua na qual o pensador ativo - me dado como
produto social, porque o que eu fao de mim o fao para a sociedade e com a
conscincia de mim enquanto ser social" (89/538).
Assim, a exteriorizao da vida humana produz a totalidade do ser social
em sua expresso bipolar, na forma do indivduo e do gnero. A relao entre
estes dois plos do ser pode se manifestar sob diversos modos, mas enquanto
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unidade esto sempre em condicionamento recproco: "O carter social , pois, o
carter de todo movimento; assim, como a prpria sociedade que produz o
homem enquanto homem, assim tambm ela produzida por ele (89/537).
Para Marx, portanto, somente a partir da compreenso do carter social
de toda ao humana se pode pensar a prpria relao do homem com a
natureza. Para ele, esta nova relao entre os homens e a natureza, que gera o
ser genrico como modalidade peculiar de entificao, uma realizao concreta,
pois, a "produo prtica de um mundo objetivo, a elaborao da natureza
inorgnica, a confirmao do homem como ser genrico consciente, ou seja, um
ser que se comporta em relao ao gnero como sua prpria essncia ou em
relao a si mesmo como ser genrico" (63/516-7).
O carter genrico da vida humana emerge desde logo na resposta
necessidade de reproduo da existncia. por essa razo que Marx afirma: "a
atividade vital, a vida produtiva mesma aparecem ao homem apenas como meio
de satisfazer uma necessidade, a necessidade de conservar a existncia fsica
(62/516). De todo modo, j nesse momento, ela a realizao do humano em sua
marca peculiar que produzir o mundo e a si enquanto generidade. Assim, pode-
se dizer que o gnero humano qualitativamente distinto da natureza em geral
mesmo no mais primrio estgio de sua gerao, visto que mesmo neste
momento sua produo genrica. Ou, nas palavras de Marx: "no tipo de
atividade vital reside todo carter de uma espcie, seu carter genrico, e a
atividade livre consciente, o carter genrico do homem" (62/516); isto significa
que sua atividade "no uma determinao com a qual ele se confunde
imediatamente" (63/516) como nos animais, pois a atividade humana livre,
consciente. Desse modo, "o animal imediatamente uno com a sua atividade vital.
No se distingue dela. essa atividade. O homem faz de sua atividade vital
objeto de sua vontade e de sua conscincia. Possui atividade vital consciente"
(63/516). Em sua atividade, o homem no se reproduz enquanto mero ser natural,
mas enquanto ser genrico, pois sua atividade possui outra legalidade, outro
estatuto que no o simplesmente natural. Melhor dizendo, sua atividade no se
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realiza segundo as leis naturais, na medida em que como ser genrico " O
homem faz de sua atividade vital objeto de sua vontade e de sua conscincia ".
Ou ainda, sua atividade "no uma determinao com a qual ele se confunde
imediatamente. A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da
atividade vital dos animais, s por essa razo ele um ser genrico. Ou melhor,
s um ser consciente, quer dizer, sua vida constitui para ele um objeto,
precisamente porque um ser genrico (63/516).
Observa-se, portanto, que Marx situa ao mesmo tempo (1) generidade e
(2) atividade consciente como marcos que distinguem o homem da natureza em
geral. Essas duas determinaes, ainda segundo ele, se realizam e se expressam
em condicionamento mtuo, como sntese que desloca o humano para um novo
patamar na escala do ser. Essa reciprocidade entre generidade e atividade
consciente transparece tambm no fato de a vida humana se constituir como
objeto para o homem, ao contrrio do que acontece no movimento da natureza,
onde as objetividades se reproduzem perpetuando a circularidade natural. Em
outras palavras, a produo humana produo genrica porque no est restrita
aos limites naturais, pois o homem s produz verdadeiramente na liberdade
(64/517) da necessidade fsica imediata. Deste modo, o animal apenas se
produz a si, ao passo que o homem reproduz toda a natureza(64/517). E isso
porque o produto do homem pertence ao gnero, no imediatamente consumido
pelo corpo fsico. Assim como sua produo constitui um ato de liberdade, visto
que no se realiza como resposta direta a necessidade fsica imediata, do mesmo
modo o homem livre diante do produto.
Por via de conseqncia, a liberdade humana deriva do fato de o homem
se reproduzir como ser social. Sendo assim, pode-se dizer com Marx que ele "no
apenas ser natural, mas ser natural humano, isto , um ser genrico, que
enquanto tal deve atuar e confirmar-se tanto em seu ser quanto em seu saber
(138/579).
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Na citao acima, a determinao do homem no recai sobre a natureza,
mas sobre a generidade. Desse modo, no ato humano, a produo genrica
porque implica a produo do mundo humano para si num movimento que se
supera atravs da construo de novas objetividades que aproximam o homem
de si enquanto ser social. A atividade que assim se realiza envolve, portanto, o
ser que vive e se reproduz como outra objetividade distinta da natural e a
sensibilidade peculiar que o torna capaz para a apropriao e produo genricas.
Esse atributo Marx chama, na passagem acima, de saber. O homem, ao se
apropriar da natureza sensvel e de si mesmo em sua sensibilidade prpria,
transforma a objetividade natural em objetividade social, em objetos da produo
e reproduo do ser social, do gnero humano. Esta transformao se realiza a
partir da atividade social, pois como Marx afirma: "nem os objetos humanos so
os objetos naturais, tais como se oferecem imediatamente, nem o sentido humano
tal como imediata e objetivamente sensibilidade humana, objetividade
humana" (138/579). Natureza e sentido, portanto, se transfiguram em novas
objetividades ao se tornarem humanos.
Vejamos como a anlise de Marx se desenvolve a este respeito, tomando
como ponto de partida a exposio feita por ele, j no primeiro Manuscrito, acerca
do carter da apropriao humana da natureza. Ele afirma: "A vida genrica, tanto
do homem quanto do animal, consiste de incio, do ponto de vista fsico, no fato de
que o homem (como o animal) vive da natureza inorgnica e quanto mais
universal o homem em relao ao animal, tanto mais universal o mbito da
natureza inorgnica de que ele vive" (61-2/515).
O carter universal da produo humana aparece imediatamente a partir
da universalidade da natureza inorgnica que o homem tem como seu objeto,
pois "Fisicamente o homem no vive seno dos produtos naturais que aparecem
sob a forma de alimento, calor, vesturio, habitao, etc. A universalidade do
homem aparece na prtica precisamente na universalidade que faz de toda
natureza seu corpo inorgnico, tanto por ser 1) um meio de subsistncia imediato
como por ser 2) a matria, o objeto e o instrumento de sua atividade vital (62/515-
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6). Desse modo, mesmo a satisfao da necessidade imediatamente fsica , para
o homem, atividade genrica, portanto universal, na qual toda natureza se reverte
ao mesmo tempo em meio de subsistncia e matria de sua atividade vital.
A universalidade da apropriao humana se manifesta, pois,
precisamente no fato de toda natureza aparecer ao homem como instrumento e
matria de sua atividade genrica. Em outras palavras, enquanto ser social, o
homem transforma continuamente a natureza em ser para si, em natureza para o
homem, emergindo (a natureza) desse modo enquanto objetividade social. A este
respeito Marx afirma: "Da mesma forma que as plantas, os animais, os minerais, o
ar, a luz, etc. constituem do ponto de vista terico uma parte da conscincia
humana, seja enquanto objeto da cincia da natureza, seja como objetos da arte
sua natureza inorgnica espiritual, meios da subsistncia intelectual, que ele deve
primeiramente preparar para o gozo e a assimilao assim tambm constituem
do ponto de vista prtico uma parte da vida e da atividade humanas (62/515).
Desse modo, os elementos naturais so constitutivos da conscincia,
justamente porque so objetos da vida e da atividade humanas. Mas, enquanto
tais, precisam ser preparados pelo homem para sua prpria assimilao. Nesse
preparo, os elementos naturais se convertem para o homem em parte da
conscincia terica, o que significa que eles se transformam em objeto da cincia
da natureza e da arte. Assim, nas mos humanas, a objetividade natural se
transfigura em objetividade social a partir da atividade genrica na qual "o homem
se apropria de seu ser multilateral de forma multilateral, isto , como homem total"
(91/539).
Tal apropriao se realiza atravs dos atributos sensveis do homem.
Segundo Marx: "Cada uma de suas relaes humanas com o mundo - ver, ouvir,
cheirar, saborear, sentir, pensar, observar, perceber, querer, atuar, amar - em
resumo, todos os rgos de sua individualidade, como rgos que so
imediatamente sociais em sua forma, so em seu comportamento objetivo ou em
seu comportamento para com o objeto, a apropriao deste. A apropriao da
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efetividade humana, seu comportamento frente ao objeto a manifestao da
efetividade humana, eficcia humana e sofrimento humano, pois o sofrimento,
humanamente entendido, o gozo prprio do homem (91/539-0).
O pensamento, portanto, no a primeira nem a nica forma de
apropriao da objetividade sensvel. Ao contrrio, o comportamento do homem
frente ao objeto algo "to mltiplo como so as determinaes essenciais e
atividades humanas" (91/540 - nota). Em sendo a apropriao humana atividade
social, os prprios rgos dos sentidos so "imediatamente sociais em sua
forma", ou seja, se produzem na relao dos homens entre si. Desse modo, a
sensibilidade se converte continuamente em sensibilidade universal, em
sensibilidade humana, "pois o sofrimento humanamente entendido o gozo
prprio do homem", j que, enquanto ser sensvel, o homem um ser que padece,
mas seu sofrimento direciona sua sensibilidade ao universo humano que o
determina como forma especfica de ser.
Resumidamente, pode-se dizer que a apropriao humana universal
porque o sofrimento do homem universal, na medida em que a vida em
sociedade abre um campo de possibilidades de carecimentos, e satisfaes de
carecimentos, infinitos. No entanto, esse campo de possveis orienta a
apropriao por uma via dada socialmente pelo desenvolvimento histrico e ao
mesmo tempo se pe enquanto tal como resultado do conjunto das aes dos
indivduos particulares. Esse caminho de mo dupla a j mencionada unidade do
ser social consigo mesmo em seus plos individual e genrico.
Retomando a argumentao de Marx, faz-se necessrio acompanhar a
sua anlise em que situa a apropriao como ato genrico, que produz a
objetividade social na forma da exterioridade sensvel e da sensibilidade humana.
Ele o faz em estilo direto: "O olho se fez um olho humano, assim como seu objeto
se tornou um objeto social humano, vindo do homem para o homem (92/540),
pois o objeto apropriado pelo homem se converte em objetividade social. Do
mesmo modo os rgos dos sentidos humanos, nessa apropriao, transformam-
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se continuamente em sentido universal. "Os sentidos fizeram-se assim
imediatamente tericos em sua prtica. Comportam-se para com a coisa por amor
da coisa, mas a coisa mesma um comportamento humano objetivo para consigo
mesma e para com o homem e inversamente (92/540), pois, em sua prtica, os
sentidos sabem concretamente de si e da coisa. E a relao entre ambos se
realiza na necessidade de apropriao, isto , "s posso me relacionar na prtica
de um modo humano com a coisa quando a coisa se relaciona humanamente com
o homem (92/540 - nota), ou seja, s quando a coisa desperta a necessidade
humana e se torna apropriao humana de si e da objetividade exterior.
Desse modo, "carecimento e gozo perderam sua natureza egosta e a
natureza perdeu sua mera utilidade, ao se converter a utilidade em utilidade
humana" (92/540). O objeto exterior como relao humana objetiva se converte
em vida e no apenas em algo que sacia uma necessidade imediata, pois o
carecimento humano se satisfaz na apropriao humana e, portanto, multilateral,
no somente para o ser individual, mas para o gnero. Assim, "o sentido e o gozo
dos outros homens se converteram em minha prpria apropriao " (92/540),
propiciando para a atividade e para os sentidos um vasto campo de atuao
concreta tanto individualmente como em conjunto, pois "alm destes rgos
imediatos se constituem, por isso, rgos sociais, na forma da sociedade, assim,
por exemplo, a atividade imediatamente na sociedade com os outros etc. se
converteu em rgo de exteriorizao de vida[5] e um modo de apropriao da vida
humana" (92/540).
Sendo assim, o sentido e o gozo dos outros homens, a vida social,
aparece ela mesma como apropriao de cada homem, pois posso me apropriar
do modo de apropriao do outro: posso ouvir com os outros, ver com os olhos
dos outros, constituir assim meus prprios rgos dos sentidos a partir da
sensibilidade do outro.
Por outro lado, a prpria vida social, a atividade social torna-se rgo por
excelncia da exteriorizao da vida humana, pois, para alm dos rgos dos
15
http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn7#_edn7
sentidos imediatamente fsicos (que so sociais em sua forma), o sentido e o gozo
do conjunto dos homens a forma do humano se expressar.
Assim, a apropriao humana universal porque a apropriao de todos
os homens se converte em apropriao de cada homem e vice-versa, o objeto de
cada apropriao particular ao mesmo tempo, apropriao universal. Nesse
sentido, Marx afirma: "enquanto de um lado, para o homem em sociedade, a
efetividade objetiva se transforma em geral em efetividade das foras essenciais
humanas, em efetividade humana, e portanto em efetividade de suas prprias
foras essenciais, todos os objetos se tornaro objetivao de si prprio, objetos
que confirmam e realizam sua individualidade, em seus objetos, isto , o objeto
vem a ser ele mesmo (92-3/541). Porquanto toda objetividade social da qual e na
qual o homem vive sua prpria produo, toda ela a expresso sensvel de
que o mundo que ele cria o seu mundo, no qual cada objeto a confirmao de
si mesmo, mas "como vm a ser seu, depende da natureza do objeto e da
natureza da fora essencial que corresponde a ele, pois precisamente a
determinidade dessa relao constitui o modo particular, real da afirmao
(93/541). Ou seja, na realidade concreta, a apropriao uma relao que
envolve o objeto em sua especificidade e a fora essencial humana em sua
capacidade particular de apropriao. Nessa relao, o objeto se afirma enquanto
objeto humano na mesma medida em que a fora essencial que lhe corresponde
for a expresso da universalidade do homem.
Quanto especificidade dessa relao Marx afirma: "o objeto se
apresenta ao olho de maneira diferente do que ao ouvido, e o objeto do olho
diferente do objeto do ouvido A particularidade de cada fora essencial
justamente sua essncia particular, logo tambm o modo particular de sua
objetivao, de seu ser objetivo, real, vivo. Por isso, o homem se afirma no mundo
no apenas no pensar, mas sim com todos os sentidos (93/541). Assim, segundo
Marx, o ser social se manifesta objetivamente atravs de todos os sentidos, sendo
que o pensamento mais uma forma de expresso e apropriao humana, mas
no a primeira nem a nica. A especificidade de cada fora essencial (ver, ouvir,
16
cheirar, sentir, etc.) o que faz dela essncia objetiva, viva, real; pois somente em
sua especificidade essencial o homem real, vivo.
Cada uma dessas foras essenciais uma forma do homem se apropriar
da objetividade exterior, portanto tambm outra face de sua universalidade. Essa
a expresso da sociabilidade onde o sentido e o gozo de cada homem so
apropriados por todos os homens (e vice-versa) e se manifestam, em primeiro
lugar, na universalidade da natureza que se converte em corpo inorgnico do
homem - o que s acontece porque o padecimento humano universal, e se
satisfaz a partir da atividade sensvel na qual cada rgo do sentido uma fora
essencial capaz de se apropriar da objetividade exterior de uma maneira particular.
A esse respeito, Marx afirma ainda: "subjetivamente considerado: primeiramente
a msica que desperta o sentido musical do homem, para o ouvido no musical a
mais bela msica no tem sentido algum, no objeto, porque meu objeto s
pode ser a confirmao de uma de minhas foras essenciais, isto , s pode ser
para mim na medida em que minha fora essencial para si como capacidade
subjetiva, porque o sentido de um objeto para mim (somente tem sentido para um
sentido a ele correspondente) chega justamente at onde chega meu sentido; por
isso tambm os sentidos do homem social so distintos dos do no social
(93/541).
Por um lado, os sentidos se humanizam, confirmam-se enquanto fora
essencial a partir do grau de apropriao da sua capacidade universal. Usando o
prprio exemplo de Marx, o ouvido de cada homem torna-se musical a partir da
apropriao do ouvir humano possvel naquele momento. Sem essa apropriao o
seu sentido no capacidade subjetiva, isto , no tem condies para a
apropriao humana, no tem na "mais bela msica" um objeto, pois suas foras
essenciais no so capazes de fru-la.
Por outro lado, mas na mesma linha de reflexo, " somente graas
riqueza objetivamente desenvolvida da essncia humana que a riqueza da
sensibilidade humana subjetiva em parte desenvolvida, em parte criada, que o
17
ouvido se torna musical, que o olho percebe a beleza da forma, em resumo, que
os sentidos se tornam capazes do gozo humano, tornam-se sentidos que se
confirmam como foras essenciais humanas (93/541). Para Marx, portanto, a
objetividade o solo, o momento preponderante para o surgimento e
desenvolvimento da sensibilidade humana. Essa, por sua vez, torna-se capaz de
engendrar objetividades direcionadas para a realizao humana. Tal
engendramento, por seu turno, torna-se a base de um novo patamar da
sensibilidade e assim sucessivamente, numa contnua interao entre objetividade
que se transforma em sensibilidade que, por sua vez, se transforma em nova
objetividade.
Esse intercmbio , antes de mais nada, intercmbio entre os homens,
pois "no s os cinco sentidos, como tambm os chamados sentidos espirituais,
os sentidos prticos (vontade, amor etc.), em uma palavra, o sentido humano, a
humanidade dos sentidos, vm a ser unicamente mediante a existncia de seu
objeto, mediante a natureza humanizada" (94/541). A objetivao da vida humana,
portanto, produz simultaneamente objetividades sociais exteriores ao homem e o
prprio homem como ser objetivo a partir da relao dos homens entre si com a
natureza humanizada. Esta, enquanto objeto do homem, a prpria sociedade, ,
assim, o homem mesmo em sua expresso genrica. A sensibilidade humana se
constitui somente no interior dessas condies, pois a "A formao dos cinco
sentidos um trabalho de toda histria universal at nossos dias (94/541-2) e
continuar sendo enquanto a humanidade existir.
Marx procura demonstrar essa realidade voltando-se para o modo atual
da produo humana: "V-se como a histria da indstria e a existncia tornada
objetiva da indstria so o livro aberto das foras humanas essenciais, a
psicologia humana sensivelmente presente (94/542). Marx afirma, assim, que a
ao humana genrica se presentifica na indstria, pois este o espao por
excelncia da produo e reproduo da sensibilidade humana concreta.
18
O carter da exteriorizao humana tem, portanto, para Marx, j em 44,
sua figura concreta na indstria, que para ele a sntese das foras humanas
materializadas.
Em resumo, para Marx de 1844, o homem um ser objetivo que,
como toda objetividade sensvel, necessita de objetos exteriores a si para existir.
No entanto, para o homem, estes objetos so objetos de seu carecimento como
homem e no da mera necessidade de reproduo fsica. Sendo assim, em sua
relao com a objetividade sensvel o homem se reproduz como homem e no
como natureza, justamente porque o carter relacional de toda objetividade se
expressa, na vida humana, primeiramente na necessidade dos homens se
relacionarem entre si. Mas, por sua vez, a prpria relao do homem com a
natureza s possvel a partir do vnculo entre os homens. Assim, a partir desse
vnculo, a natureza reemerge como nova objetividade.
A relao do ser social com a natureza diferencia-se da
circularidade do movimento natural em funo da universalidade da apropriao
humana, que faz de toda natureza o corpo inorgnico do homem. Essa
apropriao pode se expressar assim, porque os sentidos humanos tornam-se
continuamente capazes de se apropriar dos objetos sob suas mais diversas
formas (som, imagem, textura etc.). Essa capacidade s possvel, por seu turno,
porque a apropriao de cada homem ao mesmo tempo apropriao de todos os
homens, assim o sentido e o gozo dos homens aparecem como "rgos sociais,
na forma da sociedade" (92/540).
A categoria da exteriorizao aparece nos Manuscritos no interior desta
argumentao. Marx afirma que a "atividade imediatamente na sociedade com
outros etc., se converteu em um rgo de exteriorizao de vida e um modo da
apropriao da vida humana (92/540). Esta categoria est associada
necessariamente ao movimento efetivo, sensvel. Segundo as prprias palavras
de Marx: "que o homem seja um ser corpreo, dotado de foras naturais, vivo
efetivo, sensvel, objetivo significa que tem como objeto de seu ser, de sua
19
exteriorizao de vida, objetos efetivos, sensveis, ou que s em objetos reais,
sensveis, pode exteriorizar sua vida. Ser objetivo, natural, sensvel e ao mesmo
tempo ter fora de si objeto, natureza, sentido, ou inclusive ser objeto, natureza e
sentido para um terceiro se equivalem" (136-7/578). Assim, mesmo quando se
trata do pensar, "o elemento da exteriorizao de vida do pensamento - a
linguagem - natureza sensvel" (97/544). Pois, somente em sua manifestao
efetiva, ela torna real o pensamento.
Pode-se afirmar, portanto, que o que torna o homem homem so suas
exteriorizaes, entendidas como expresses objetivas, como ato sensvel. Neste
sentido, Marx assevera: "o homem rico , ao mesmo tempo, o homem carente de
uma totalidade de exteriorizao de vida humana. O homem no qual sua prpria
efetivao existe como necessidade interna, como carncia" (97/544).
A compreenso da exteriorizao humana enquanto movimento genrico,
presente em qualquer forma social especfica, nos permite analisar a realidade
contempornea luz desta descoberta central do pensamento marxiano: o
trabalho enquanto centro de gravidade da sociedade[6] como Marx dir em 1875.
Vejamos, a seguir como esta exteriorizao se realiza no interior do domnio da
propriedade privada.
2) A EXTERIORIZAO DA VIDA NO INTERIOR DA PROPRIEDADE PRIVADA
O movimento descrito at aqui, da exteriorizao da vida humana, se
desenvolve em toda e qualquer forma social. Ele , portanto, apenas uma
abstrao razovel, no enquanto um tipo ideal, mas como um elemento comum a
todos os modos de ser humano. Vamos nos voltar agora para a compreenso
deste movimento no interior da apropriao privada dos meios de produo. Nos
20
http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn8#_edn8
Manuscritos, depois de anotar vrias citaes de autores da chamada economia
poltica clssica, Marx passa a abordar o tema por sua prpria pena, criticando,
em primeiro lugar, a forma como os economistas empreendem sua anlise. Diz ele:
a economia poltica parte do fato da propriedade privada. No o explica. Concebe
o processo material da propriedade privada, como ele ocorre na realidade, em
frmulas gerais e abstratas, que em seguida valem para ela como leis. No
compreende tais leis, isto , no demonstra como elas derivam da essncia da
propriedade privada. A economia poltica no fornece qualquer explicao sobre o
fundamento da diviso entre trabalho e capital, e entre capital e terra. Por exemplo,
ao determinar a relao entre o salrio e o lucro do capital, o interesse dos
capitalistas vale para ela como fundamento ltimo, quer dizer, pressupe o que
deveria desenvolver(55-6/510).
Situando, desde logo, a especificidade de sua anlise, ele afirma: No
nos colocamos, como o economista poltico quando quer explicar algo, num
estado original imaginrio. Um tal estado original nada explica. Apenas desloca a
questo para uma distncia opaca e nebulosa. Pressupe sob a forma de fato, de
acontecimento, o que deveria deduzir, a saber, a relao necessria entre duas
coisas, por exemplo entre a diviso do trabalho e a troca. assim que a teologia
explica a origem do mal pelo pecado original, isto , pressupe como fato, como
histria, o que deveria explicar (56/511). Expe, ento, seu ponto de partida:Ns
partiremos de um fato econmico atual (57/511). Fato este que assim
sintetizado por Marx:O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza
produz, quanto mais sua produo cresce em poder e volume. O trabalhador se
torna uma mercadoria tanto mais barata, quanto mais mercadorias produz. Com a
valorizao do mundo das coisas aumenta em proporo direta a desvalorizao
do mundo dos homens. O trabalho no produz apenas mercadorias produz
tambm a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na
mesma proporo em que produz mercadorias em geral (57/511). Marx, portanto,
toma como ponto de partida de sua anlise a relao entre o produto do trabalho e
o seu produtor: Este fato exprime nada mais que: o objeto produzido pelo trabalho,
seu produto, o afronta como ser estranho, como um poder independente do
21
produtor. O produto do trabalho o trabalho que se fixou num objeto, que se
tornou concreto, que se fez coisa, a objetivao do trabalho. A efetivao do
trabalho sua objetivao. Nas condies da economia poltica, esta efetivao
do trabalho aparece como desefetivao do trabalhador, a objetivao como perda
e servido do objeto, a apropriao como estranhamento, como
alienao[7](57/512). A apropriao aqui no aparece simplesmente como
momento da exteriorizao, pois na produo atual, esse movimento se realiza
sob a determinao do estranhamento, da alienao, visto que a efetivao do
homem que produz - o trabalhador - se reverte em perda e servido dos objetos. E,
isto a tal ponto que "o trabalhador se desefetiva at a morte pela fome. A
objetivao se revela a tal ponto como perda do objeto que o trabalhador fica
privado dos objetos mais essenciais no s vida mas tambm dos objetos de
trabalho" (57/ 512).
Portanto, de fato, a apropriao humana da natureza e das objetividades
em geral, significa para o trabalhador estranhamento, alienao. Nas palavras de
Marx: "a apropriao do objeto se manifesta a tal ponto como estranhamento que
quanto mais objetos o trabalhador produz tanto menos ele pode possuir e tanto
mais se submete ao domnio de seu produto, do capital" (57/ 512).
Desse modo, a produo no tem conexo efetiva com a vida do
trabalhador e, segundo Marx, isso se deve ao seguinte fato: "o trabalhador se
relaciona com o produto de seu trabalho como com um objeto estranho. A partir
desse pressuposto , pois, evidente: quanto mais o trabalhador se exterioriza
tanto mais poderoso diante dele se torna o mundo estranho, objetivo, que ele criou,
tanto mais pobre se torna ele mesmo e seu mundo interior, tanto menos dono de
si prprio" (57/512). Marx parte, portanto, da relao direta do homem que produz
atualmente com o produto de sua produo. E encontra uma inverso na qual o
trabalhador se desapropria de si enquanto homem ao produzir o mundo como
objetividade estranha a ele. Mas esta relao apenas a manifestao objetiva da
forma como se processa o prprio trabalho: "o produto , de fato, apenas a sntese
da atividade, da produo. Se por conseguinte, o produto do trabalho
22
http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn9#_edn9
alienao, a prpria produo deve ser alienao em ato, a alienao da
atividade, a atividade da alienao. O estranhamento do objeto do trabalho
apenas sintetiza o estranhamento, a alienao na prpria atividade do trabalho"
(60/514).
Nesse aparente jogo de palavras, Marx exprime a determinao mtua do
complexo objetividade/subjetividade como fundamento da produo humana, pois
o produto do trabalho ao mesmo tempo objetividade sensvel e subjetividade
efetivada. Para o trabalhador, o produto do trabalho alienao, enquanto algo
fora de si, renncia. Sua atividade, portanto, a realizao da separao entre
ele e o produto, entre ele e a prpria atividade, pois nela (na atividade), o
trabalhador produz essa separao enquanto realidade objetiva. Ou seja, produz o
objeto e a atividade enquanto objetividades estranhas, separadas, alienadas dele
enquanto homem. E assim acontece porque "o estranhamento no se mostra
somente no resultado, mas no ato da produo, no interior da prpria atividade
produtiva. Como poderia o trabalhador se enfrentar com o produto de sua
atividade como algo estranho, se no ato mesmo da produo no se tornasse j
estranho a si mesmo? (60/514).
O estranhamento aparece, portanto, como resultado de um movimento no
qual o trabalhador produz a alienao como forma de sua atividade ou produz sua
atividade como alienao de si.
No entanto, a atividade sensvel que se realiza a partir da relao entre os
homens a verdadeira vida humana, o verdadeiro ato de nascimento do homem,
sua real forma de ser. Assim, se o produto do trabalho humano se encontra numa
relao de oposio frente ao homem que produz, sua prpria atividade aparece
como "passividade, a fora como impotncia, a procriao como castrao, a
prpria energia fsica e mental do trabalhador, a sua vida pessoal - e o que vida
seno atividade? - como atividade dirigida contra ele, independente dele, que no
lhe pertence. O auto-estranhamento[8] como acima o estranhamento da coisa" (61/
515). Desse modo, o homem se encontra em oposio a ele mesmo como gnero,
23
http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn10#_edn10
pois " medida que o trabalho estranhado torna o homem estranho 1) natureza,
2) a si mesmo, a sua prpria funo ativa, a sua atividade vital, assim torna o
homem estranho ao gnero; faz da sua vida genrica um meio da sua vida
individual (62/516), transforma portanto sua realizao humana em meio de
manter sua existncia fsica. Opera-se, assim, uma terceira inverso que
"primeiramente torna estranha a vida genrica e individual, em seguida, faz da
ltima, em sua abstrao, a finalidade da primeira, igualmente em sua forma
abstrata e estranhada (62/516).
Vimos que, segundo Marx, sociedade e indivduo so apenas expresso
plural e singular de um mesmo ser. V-se agora que no interior da produo que
se exerce a partir da alienao, essa unidade entre gnero e indivduo se
manifesta como antagonismo e oposio, o que coloca a vida genrica a servio
da mera sobrevivncia individual. Nas palavras de Marx: " medida que o trabalho
estranhado degrada em meio a atividade autnoma, a atividade livre, igualmente
transforma a vida genrica do homem em meio de sua existncia fsica. A
conscincia que o homem tem do prprio gnero se transforma por meio do
estranhamento de tal maneira que a vida genrica se transforma para ele em
meio" (64/517).
Assim, o seu modo prprio de ser homem aparece somente como um
meio de se manter enquanto indivduo abstrato. A vida individual apartada da
generidade se volta para si mesma enquanto sobrevivncia fsica imediata e toda
produo humana tem apenas o objetivo de manter o homem fsico individual vivo.
A autntica essncia humana transforma-se assim em meio da existncia
individual abstrata. A individualidade separada do gnero uma abstrao porque
transforma em meio a essncia ltima do homem e em fim os meios de
sobrevivncia. Marx conclui afirmando que o trabalho estranhado transforma o
ser genrico do homem, tanto a natureza como suas faculdades intelectuais
genricas, em um ser a ele estranho, em meio de sua existncia individual. Torna
estranho ao homem seu prprio corpo, a natureza fora dele, sua essncia
espiritual, sua essncia humana. - Uma conseqncia imediata do estranhamento
24
do homem em relao ao produto do seu trabalho, sua atividade vital, sua
essncia genrica, o estranhamento do homem relativamente ao homem.
Quando o homem se contrape a si mesmo, contrape-se aos outros homens
(64-5/517-8).
Tm-se portanto quatro determinaes desveladas a partir do carter
exterior e invertido do trabalhador em relao ao seu produto. A primeira se
mostra fenomenicamente: o estranhamento entre trabalhador e produto, sendo
apenas expresso concreta da segunda determinao: o estranhamento do
trabalhador no interior da atividade produtiva, que significa, necessariamente, (3) o
estranhamento do homem em relao ao gnero humano que, por sua vez, se
manifesta efetivamente no (4) estranhamento do homem em relao aos outros
homens. Ou segundo as prprias palavras de Marx: "o estranhamento do homem,
e em geral toda a relao do homem consigo mesmo, se efetiva e se exprime
primeiramente na relao dos homens com os outros homens (65/518).
Nesse sentido, Marx afirma que se o homem "se relaciona com o produto
de seu trabalho, com o seu trabalho objetivado, como com um objeto estranho,
hostil, poderoso, independente, ento se relaciona com ele de tal modo que outro
homem, a ele estranho, hostil, poderoso e independente o senhor deste objeto.
Se ele se relaciona com a prpria atividade como com uma atividade no livre,
ento se relaciona com ela como com uma atividade a servio, sob o domnio, a
coero e o jugo de outro homem (66/519). Bem entendido, o trabalho no
produz apenas objetos externos ao homem, mas tambm ele prprio enquanto
homem e, ao mesmo tempo, a realidade social na qual os homens se relacionam.
Vale dizer: "pelo trabalho estranhado o homem gera no somente sua relao com
o objeto e o ato de produo enquanto homens estranhos e que lhe so hostis;
gera tambm a relao dos outros homens com sua produo e seu produto e
sua relao com estes outros homens. Assim como ele faz de sua prpria
produo sua privao de realidade, sua punio, e de seu prprio produto uma
perda, um produto que no lhe pertence, igualmente ele cria a dominao daquele
que no produz sobre a produo e sobre o produto. Assim torna estranha a si
25
sua prpria atividade, igualmente, atribui a um estranho a atividade que no lhe
pertence (66/519).
A essa altura do texto, Marx admite ter partido de um fato econmico, "o
estranhamento do trabalhador e da sua produo", admite ainda ter expressado
"o conceito desse fato como trabalho estranhado, alienado" e que analisou esse
conceito como fato econmico. Ou seja, partindo do fato econmico da relao do
trabalhador com sua produo, Marx analisou as conseqncias e o significado
dessa relao em sua forma abstrata, segundo ele, como conceito. Ele se volta
agora para sua expresso real: "Vejamos ainda como o conceito de trabalho
estranhado, alienado deve expressar-se e revelar-se na realidade". Ento, se
pergunta: "Se o produto do trabalho me estranho e se contrape a mim como
poder estranho, a quem pertencer ento? Se a minha prpria atividade no me
pertence, se uma atividade estranha, forada, a quem pertencer portanto?"
(65/518). A resposta apresentada logo em seguida: "o ser estranho a quem
pertence o trabalho e o produto do trabalho, a cujo servio est o trabalho e a cuja
fruio se destina o produto do trabalho, s pode ser o prprio homem" (65-6/518).
Desse modo, "por intermdio do trabalho estranhado, alienado, o
trabalhador gera a relao com este trabalho de um homem estranho ao trabalho
e que se encontra fora dele. A relao do trabalhador com o trabalho gera a
relao do capitalista, do dono do trabalho se se quiser cham-lo assim com o
trabalho. A propriedade privada , pois, o resultado, a conseqncia necessria do
trabalho alienado, da relao exterior do trabalhador com a natureza e consigo
mesmo (67/519-0). Chega-se, portanto, propriedade privada como resultado "da
anlise do conceito de trabalho alienado, ou seja, do homem alienado, do trabalho
estranhado, da vida estranhada, do homem estranhado (67/520).
Pode-se dizer que, de acordo com Marx, o trabalho alienado anterior ao
estranhamento, enquanto sua base, seu sustentculo. Nas passagens acima,
Marx identifica o trabalho alienado como relao exterior do trabalhador com a
natureza e consigo mesmo e, adiante, afirma que a propriedade privada ,
26
primeiramente, fruto do homem alienado e, em seguida, tambm "do homem
tornado estranho". O homem, o trabalho, a vida tornam-se estranhas a partir da
alienao do produto e da atividade. Nesse sentido, a propriedade privada o
produto da atividade humana apartada do homem.
Marx demonstra, assim, que a propriedade privada conseqncia do
trabalho alienado afirmando, no entanto, que "mais tarde essa relao se
transforma em ao recproca" (67/520). Ou seja, "S no derradeiro ponto
culminante do desenvolvimento da propriedade privada evidencia-se novamente
este seu segredo, a saber por um lado, que ela produto do trabalho alienado, e
por outro, que o meio pelo qual o trabalho se aliena, a realizao desta
alienao" (67/520).
Importa salientar que o trabalho alienado uma forma da exteriorizao
da vida se realizar. Da mesma maneira, a propriedade privada uma expresso
da apropriao humana abstrada das determinaes especficas do objeto.
Portanto, "o trabalho alienado resultou para ns em dois elementos que se
condicionam reciprocamente ou que so apenas expresses distintas de uma s e
mesma relao. A apropriao aparece como estranhamento, como alienao e a
alienao como apropriao, o estranhamento como verdadeira naturalizao"
(69/522).
Vale dizer, a apropriao aparece como estranhamento, como alienao,
justamente porque ela no a apropriao do homem de seu corpo inorgnico (da
natureza), mas apropriao privada da natureza e do trabalho, onde se verifica
uma inverso na qual a propriedade privada se apropria do prprio homem. Na
alienao do trabalho, a prpria atividade uma renncia do trabalhador em
benefcio de outro ser, um ser forjado na produo alienada que retm
os atributos objetivos do homem: a propriedade privada. Assim, a apropriao
privada se sobrepe "apropriao genuinamente humana e social" (68/521), e se
converte no motor do desenvolvimento humano.
27
Para Marx de 44 este movimento se torna real atravs da venda. A
compreenso deste ato se desenvolve nos Manuscritos a partir da seguinte
questo colocada por Marx: "Em que consiste a alienao?"
A resposta aparece logo a seguir: "Primeiramente no fato de que o
trabalho exterior ao trabalhador, ou seja, no pertence sua essncia, que,
portanto, no trabalho ele no se afirma mas se nega, no se sente bem, mas
infeliz, no desenvolve uma livre atividade fsica e intelectual, mas mortifica seu
corpo e arruna seu esprito (60/514).
A alienao do trabalho, portanto, se identifica imediatamente com sua
exterioridade em relao ao trabalhador, na qual o trabalho no sua realizao
enquanto homem, mas sua negao, sua runa fsica e espiritual. Por conseguinte,
continua Marx, "O trabalhador s se sente em si fora do trabalho, e no trabalho se
sente fora de si. Ele est em casa quando no trabalha, e quando trabalha no
est em casa. Assim, seu trabalho no voluntrio, mas imposto, trabalho
forado. No constitui, pois, a satisfao de uma necessidade, mas apenas um
meio de satisfazer outras necessidades exteriores ao trabalho. O seu carter
estranho se evidencia nitidamente no fato de se fugir do trabalho como da peste,
quando no existe nenhum constrangimento fsico ou de qualquer outro tipo"
(60/514). Mas essa reao tem, para Marx, uma razo de ser. Ele afirma: "a
exterioridade do trabalho para o trabalhador transparece no fato de que ele no
seu prprio, mas de outro, no fato de que no pertence a si mesmo, mas a outro
(60/514). Ou seja, no fato de que o trabalho alienado sua runa enquanto homem.
Desse modo, "o homem (o trabalhador) s se sente livremente ativo nas
suas funes animais - comer, beber, procriar, quando muito, na habitao e no
adorno, etc. e em suas funes humanas sente-se como animal. O bestial torna-
se humano, e o humano, bestial" (60/514-5).
Como j se sabe, segundo Marx, o homem, mesmo na satisfao de suas
necessidades de sobrevivncia, se reproduz enquanto ser social e no como
simples ser natural, j que a prpria reproduo e manuteno de sua existncia
28
fsica resultado da atividade sensvel que exercida em interatividade. Mas,
quando o trabalho se realiza como exterioridade, o homem (o trabalhador) se volta
para a reproduo da existncia fsica como expresso autntica de sua atividade
livre. No entanto, afirma Marx, "comer, beber, procriar etc. so tambm certamente
genunas funes humanas. Mas, na abstrao na qual se separam dos outros
campos de atividades humanas e se transformam em fim ltimo e nico, elas so
bestiais (61/515).
Assim, a atividade vital do homem, sua essncia concreta enquanto
gnero humano, transforma-se em meio de sua existncia abstrata. Vale dizer, no
trabalho alienado a objetivao aparece como atividade em troca de sobrevivncia
fsica.
A atividade humana que assim se exerce resulta numa objetividade social
especfica que rege todo movimento da produo humana . Tal resultado a
apropriao privada como forma da vida humana se pr.
A anlise da produo realizada pelos economistas inicia-se a partir deste
ponto de seu desenvolvimento, passando a ser abordada como se a apropriao
privada fosse sua gnese e finalidade, ou seja, como se a produo humana s
fosse possvel no interior da propriedade privada.
Em sua crtica economia poltica, Marx denuncia a operao efetuada
por Adam Smith que incorpora a propriedade privada ao homem, colocando,
assim, o homem sob a determinao da propriedade privada. Segundo Marx: "Sob
a aparncia de um reconhecimento do homem, a economia poltica, cujo princpio
o trabalho, muito mais a conseqente realizao da negao do homem, na
medida em que ele prprio no se encontra numa tenso externa com o ser
exterior da propriedade privada, mas sim tornou-se a essncia tensa da
propriedade privada" (80/530-1). A economia poltica converte o trabalho e,
portanto, o homem, em essncia da propriedade privada. Assim, a propriedade
privada, que "antes era ser-exterior-a-si[9], alienao real do homem, converteu-se
agora em ato de alienao, em venda[10] (80/531).
29
http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn11#_edn11http://www.verinotio.org/revista4_exteriorizacao.htm#_edn12#_edn12
Os homens em sua atividade sensvel, portanto, apenas realizam a
atividade da propriedade privada atravs da venda. Sabe-se j que o trabalho
alienado produz a exterioridade propriedade privada, ou que, atravs da alienao
do trabalhador, a propriedade privada produzida enquanto ser-exterior ao
homem. Mas, para os economistas que reconhecem o trabalho como "essncia
subjetiva da riqueza no interior da propriedade privada", a alienao do
trabalhador que produz um ser exterior a si no mais que uma atividade da
prpria propriedade privada em seu movimento de se auto-pr: o ato de
alienao da propriedade privada, venda.
Mas, j se sabe tambm que, segundo Marx, a propriedade privada
produto da atividade humana que se exerce de uma determinada forma, ou melhor,
fruto do trabalho alienado.
Desse modo, a venda o meio atravs do qual os homens se relacionam
e o seu trabalho se produz. Assim, a relao de compra e venda a forma da
efetivao da troca entre os homens.
No interior desse movimento, "O dinheiro, uma vez que possui a
qualidade de comprar tudo, uma vez que possui a qualidade de se apropriar de
todos os objetos, , pois, o objeto por excelncia. A universalidade de sua
qualidade a onipotncia de seu ser; ele vale, pois, como ser onipotente... o
dinheiro o proxeneta entre a necessidade e o objeto, entre a vida e os meios de
vida do homem (119/563).
O dinheiro , portanto, o objetivo do trabalho, na medida em que ele o
verdadeiro poder capaz de possuir todos os objetos. Nessas condies, o trabalho
se torna um meio para conseguir o dinheiro que paga a alienao do trabalhador.
O dinheiro, como objeto dos objetos, com o qual possvel se apropriar
dos demais objetos , pois, o objeto por excelncia. Portanto, a apropriao dos
objetos no aqui apropriao especfica do objeto especfico.
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Marx desenvolve a seguinte reflexo com a qual torna-se proveitoso
dialogar: "Se as sensaes, paixes etc. do homem no so apenas
determinaes antropolgicas em sentido estrito, mas sim verdadeiras afirmaes
ontolgicas do ser (natureza) e se s se afirmam efetivamente porque seu objeto
sensvel para elas, ento claro, 1) que o modo de sua afirmao no em
absoluto um e o mesmo, mas sim muito mais o modo diverso da afirmao
constitui a peculiaridade de sua existncia, de sua vida; o modo pelo qual o objeto
para elas o modo prprio de seu gozo" (119/562-3).
Mas onde cada apropriao, cada momento de objetivao venda, esta
afirmao se constitui somente pelo dinheiro que capaz de se apropriar dos
objetos independentemente de sua peculiaridade prpria. Assim, o sentido
especfico capaz de se apropriar e elaborar o objeto especfico substitudo pelo
gozo de se apropriar do dinheiro que a condio de possibilidade de apropriao
dos demais objetos. Marx acrescenta em seguida: "2) ali onde a afirmao
sensvel supresso direta do objeto em sua forma independente (comer, beber,
elaborar o objeto, etc...), esta a afirmao do objeto (119/563). Mas a
viabilidade de cada afirmao sensvel s real pela mediao do dinheiro, pois
ele o mediador entre a "necessidade e o objeto, entre a vida e os meios do
homem (119/563).
Na mesma medida que cada objeto perde sua especificidade para o
dinheiro, cada homem s na medida do dinheiro. Nas palavras de Marx: "aquilo
que mediante o dinheiro para mim, o que posso pagar, isso sou eu, o prprio
possuidor do dinheiro (121/564). O dinheiro ento a medida da relao do
homem com os outros homens pois "o que media minha vida, media tambm a
existncia dos outros homens para mim. Isto para mim o outro homem (119-
0/563).
Assim, "se o dinheiro o lao que me liga vida humana, que liga a
sociedade a mim, que me liga com a natureza e com o homem, no o dinheiro o
lao de todos os laos? No pode ele atar e desatar todos os laos? No por
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isso tambm o meio geral da separao? a verdadeira marca divisria, assim
como o verdadeiro meio de unio, a fora qumica da sociedade (121/565).
Neste contexto, os homens, a natureza e os produtos elaborados pelo
homem no so determinados pela sua natureza prpria, mas pela fora do
dinheiro. Todas as qualidades humanas e naturais so abstradas de sua
determinidade especfica e convertidas na medida do dinheiro. Marx afirma: "O
que eu sou e posso no determinado de modo algum por minha individualidade.
Sou feio, mas posso comprar a mais bela mulher. Portanto, no sou feio, pois o
efeito da feira, sua fora afugentadora, aniquilado pelo dinheiro (121/564).
O dinheiro pode, portanto, negar a determinao real do ser e convert-la
em seu contrrio. No entanto, a fora do dinheiro no apenas a de abstrair as
entificaes objetivas e reais, mas tambm o poder efetivo de inverter sua
posio concreta: "O dinheiro, enquanto meio e capacidade universais exteriores,
no derivados do homem enquanto homem, nem da sociedade enquanto
sociedade - para transformar a representao efetividade e a efetividade uma
mera representao - transforma igualmente as foras essenciais efetivas
humanas e naturais em meras representaes abstratas e, por isto, em
imperfeies, em dolorosas quimeras, assim como, por outro lado, transforma as
imperfeies e quimeras efetivas, as foras essenciais realmente impotentes, que
s existem no imaginrio do indivduo, em foras essenciais e capacidade
efetivas (122-3/566).
Vrios aspectos da citao acima merecem destaque. Primeiramente, o
dinheiro, ao abstrair as determinaes efetivas das entificaes especficas, acaba
por transform-las em seu contrrio, pois ele passa a ser a possibilidade real de
dotar uma individualidade de algo que ela no tem, "de acordo com esta
determinao, o dinheiro a inverso geral das individualidades, que as
transforma em seu contrrio e que adiciona, s suas propriedades, propriedades
contraditrias (123/566).
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Em segundo lugar, preciso sublinhar que a objetivao humana se
exerce em um movimento objetivo/subjetivo, mas a subjetividade em si mesma
no necessariamente uma fora essencial objetivante, que encontra respaldo
nos seres objetivos para se pr enquanto objeto efetivo. Ao contrrio, ela pode
expressar apenas uma representao imaginria, uma quimera, que no encontra
no mundo social e na natureza efetiva possibilidade de se objetivar. Mas, onde o
dinheiro o verdadeiro poder efetivador, tais representaes, para aquele que tem
dinheiro, transformam-se em verdades efetivas. Marx refere a este respeito a
seguinte situao exemplificadora: "Se tenho vocao para estudar, mas no
tenho dinheiro para isso, no tenho nenhuma vocao, isto nenhuma vocao
efetiva, verdadeira, para estudar. Ao contrrio, se realmente no tenho vocao
alguma para estudar, mas tenho vontade e o dinheiro, tenho para isto uma
vocao efetiva (122/566). Conseqentemente, o dinheiro " a confuso e a troca
gerais de todas as coisas, isto , o mundo invertido, a confuso e a troca de todas
as qualidades naturais e humanas (123/566).
Em suma, o dinheiro - como exterioridade que possui todos os homens e
todas as coisas - inverte as determinaes reais dos seres, transformando os
laos reais e o mundo humano em seu contrrio. De acordo com Marx, portanto,
"O dinheiro no se troca por uma coisa determinada, por um fora essencial
humana, mas sim pela totalidade do mundo objetivo humano e natural 123/566-7).
Vale dizer, o dinheiro atua como "essncia genrica do homem estranhado,
alienando, que se vende. O dinheiro a capacidade alienada da humanidade
(122/565).
Por via de conseqncia, a totalidade de atributos humanos so
transferidos para algo exterior. O prprio destino do homem lhe escapa, pois sua
capacidade de constru-lo est em algo fora de si - no dinheiro. Este aparece
como verdadeira essncia genrica, j que toda possibilidade humana sintetiza-se
em seu poder de se apropriar do mundo humano indeterminadamente, mas tal
essncia se volta contra o homem como um poder estranho que nega sua
determinao real e a transforma em seu contrrio.
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Entretanto, o poder do dinheiro se instaura a partir de uma determinada
relao dos homens entre si com a objetividade social; como j se sabe, a partir
do trabalho alienado. Este, por sua vez, produz a objetividade propriedade privada
que se reproduz a partir da relao de compra e venda.
Em tais condies, o enriquecimento dos sentidos do homem que trabalha
se perde na indeterminao da propriedade privada, para a qual a especificidade
do objeto ou das foras essenciais humanas no tm importncia, mas apenas o
ganho que se ter em troca deles. Em relao ao preo pago pelo trabalho, Marx
afirma: "salrio e propriedade privada so idnticos, pois o salrio como o produto,
o objeto do trabalho, remunera o prprio trabalho, apenas uma conseqncia
necessria do estranhamento do trabalho, e no salrio, o trabalho tambm no
aparece como fim em si, mas como servo do salrio (68/520).
Em suma, a alienao do trabalho que possibilita a efetivao da
propriedade privada, resulta, ao mesmo tempo, na formao de um circuito de
relaes estranhas no interior do seu movimento: "o salrio uma
conseqncia direta do trabalho estranhado e o trabalho estranhado a causa
direta da propriedade privada,. Conseqentemente, o desaparecimento de um
dos termos arrasta consigo o outro (68/521). O que significa, em ltima anlise,
que este circuito no uma necessidade do trabalho. Veremos adiante que sua
superao, sim, necessria para subsistncia do homem.
Por ora, possvel resgatar desta passagem a concluso de que o
trabalho a causa de sua objetivao: "O trabalho estranhado a causa direta da
propriedade privada". Vale dizer, o trabalho estranhado se tornou estranho atravs
da relao exterior do trabalho com o produtor e, no interior dessa situao, o
processo de objetivao que produz e reproduz a propriedade privada se exerce a
partir de tal estranhamento. Assim, o trabalho estranhado o nome do trabalho
que produz propriedade privada e, no interior desse movimento, o homem (o
trabalhador) se aliena em sua produo ao vender sua exteriorizao de vida
como uma mercadoria exterior a si. Neste contexto, "a exteriorizao da vida, a
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alienao da vida e sua efetivao, sua desefetivao, uma efetivao
estranha"(90,91/539). Atravs da venda a exteriorizao se expressa como
alienao que, por sua vez, se transforma em estranhamento.
preciso evidenciar que nos Manuscritos a categoria alienao se refere
mais diretamente a uma relao de separao, enquanto o estranhamento traduz
uma relao de antagonismo. Ambas, no entanto, compem um mesmo
movimento que faz com que o trabalho humano produza e se exera a partir da
propriedade privada. Portanto, nem uma nem outra so uma necessidade do
trabalho. Mas o antagonismo, expresso por Marx como estranhamento, surge da
separao, que ele identifica como alienao. Pode-se afirmar ainda que a venda
seria uma categoria mediadora entre a exteriorizao que se realiza como
alienao e o estranhamento, ou seja, a venda transforma a exteriorizao da vida
em alienao da vida, duas expresses contrapostas.
A venda , pois, o ato prprio da propriedade privada se produzir,
reproduzindo o trabalho como atividade exterior ao homem, como atividade
alienada, estranhada.
3) A NECESSIDADE DA PROPRIEDADE PRIVADA NO PROCESSO DE OBJETIVAO DO HOMEM
O homem, ao produzir propriedade privada, se desproduz, ao mesmo
tempo que efetivamente exterioriza sua vida, engendrando o mundo objetivo
humano que lhe estranho. Marx assim se expressa: "A objetivao da essncia
humana, tanto no aspecto terico como no prtico, , pois, necessria tanto para
tornar humano o sentido do homem, como para criar o sentido humano
correspondente riqueza plena da essncia humana e natural" (94/542).
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Esta objetivao se realiza a partir da propriedade privada e atravs
dela, como afirma Marx, que os sentidos humanos se desenvolvem. Nesse
movimento de constituio do ser do homem em si, a produo se liberta das
determinaes humanas para constituir-se enquanto movimento autnomo,
independente, com determinaes prprias. Neste percurso, "o trabalho aparece
primeiro unicamente como trabalho agrcola para ser reconhecido depois como
trabalho em geral" (83/533). Segundo Marx, a propriedade fundiria a primeira
forma de propriedade privada, oposta, de incio, indstria que seu escravo
liberado.
A progresso deste movimento - da propriedade fundiria indstria
liberada - segue o caminho do estranhamento, ou seja, o percurso onde cada
entificao se ope a si mesma. Neste movimento, o produto da atividade humana
o capital, "no qual se dissolve toda determinidade natural e social do objeto, em
que a propriedade privada perdeu sua qualidade natural e social (portanto, perdeu
todas as iluses polticas e sociais e no mais se mistura a nenhuma situao
aparentemente humana), em que tambm o mesmo capital permanece o mesmo
nos mais diversos modos de existncia natural e social, totalmente indiferente ao
seu contedo real" (73/525).
Em que, portanto, cada objeto especfico se encontra frente ao capital
como uma abstrao na qual seu ser particular se dissolve na indiferena? Nas
consideraes sobre a venda foi possvel afirmar que esta abstrao de toda
determinao real o primeiro passo da inverso total que coloca o homem em
oposio a si mesmo.
Subjetivamente considerado, neste percurso tambm desaparecem "as
iluses romnticas do proprietrio fundirio, sua pretensa importncia social e a
identidade de seus interesses com os da sociedade" (73/525), para transform-lo
"em capitalista inteiramente ordinrio e prosaico" (74/525). Objetivamente, "A
terra enquanto terra, a renda fundiria enquanto renda fundiria perderam sua
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distino de casta e se converteram em capital e interesse mudos, ou melhor, que
s dizem dinheiro" (74/525).
A liberao da propriedade , pois, necessariamente (como tudo que
humano) um processo objetivo/subjetivo. Mas, ao se libertar do homem, a
propriedade j aparece como sujeito do movimento. Este o caminho do estra-
nhamento que os economistas polticos bem conhecem, mas consideram
todas as suas contradies e antagonismos como imanentes ao homem:
medida que convertem em sujeito a propriedade privada em sua figura ativa,
portanto ao mesmo tempo fazem tanto do homem um ser, como do homem como
no-ser um ser, ento a contradio da realidade corresponde perfeitamente
essncia contraditria que fora reconhecida como princpio. A realidade dilacerada
da indstria, muito longe de refut-lo, confirma o prprio princpio dilacerado em si.
Seu princpio justamente o princpio desta dilacerao" (81/531).
Os economistas s conhecem o homem no interior do estranhamento,
pois so, segundo Marx dos Manuscritos, os porta-vozes do movimento da
propriedade privada e tm um papel a desempenhar neste processo. Por um lado
so o "produto da energia real e do movimento da propriedade privada,
um produto da indstria moderna, assim como por outro lado, acelera e enaltece
a energia e o movimento dessa indstria, transforma-a numa fora da conscincia"
(79/530).
Neste sentido, no contexto de liberao da propriedade das amarras da
propriedade da terra, a economia poltica desempenha uma funo de vanguarda.
Mas ela situa propriedade fundiria e indstria como opostas uma outra. No en-
tanto, esclarece Marx: "a distino entre capital e terra, entre lucro e renda da terra,
e a distino entre os dois e o salrio, a indstria, a agricultura, a propriedade
privada imvel e mvel, ainda uma distino histrica, no como diferena
fundada na essncia das coisas" (74/525).
Trata-se, portanto, no de uma verdadeira distino ontolgica, mas de
alteraes histricas de um mesmo ser, que aparece a cada momento em nova
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roupagem. uma oposio que se faz necessria em um determinado momento
do movimento, mas no subsiste enquanto tal. Segundo Marx: "Esta diferena s
subsiste como um tipo especial de trabalho, como uma diferena essencial,
importante, vital, enquanto indstria (vida urbana) se forma em contraposio
propriedade rural (vida aristocrtica feudal) e leva ainda em si mesma o carter
feudal de seu contrrio na forma do monoplio, o grmio, a corporao etc. No
interior de cujas determinaes, o trabalho tem ainda uma aparente significao
social, tem ainda o significado da comunidade real, no progrediu ainda at a
indiferena em relao ao seu contedo, at o pleno ser para si mesmo, ou seja,
at a abstrao de todo outro ser, e por isso no se tornou ainda capital liberado"
(74/525-6).
Portanto, em consonncia com Marx, a progresso do ser da propriedade
privada at sua forma plena exige, a cada passo, no somente a negao de sua
forma anterior como algo a ser superado, mas o estabelecimento de uma oposio
que coloca o velho e o novo enquanto entificaes antagnicas.
Nesta situao de aparente oposio, os economistas se dividem entre os
dois plos e no percebem que este apenas o antagonismo de um nico ser em
seu processo de constituio. Marx conhece o vencedor deste jogo: "Do curso real
do desenvolvimento (...), resulta a vitria necessria do capitalista, ou seja, da
propriedade privada desenvolvida sobre a propriedade indefinida no
desenvolvida, sobre o proprietrio fundirio, da mesma forma que, em geral, o
movimento vence a imobilidade, a baixeza aberta e consciente a baixeza oculta e
inconsciente, a ambio, a avidez de prazer, o egosmo totalmente declarado e
desenfreado do iluminismo, o egosmo da superstio local, prudente, bonacho,
preguioso e fantstico, assim como o dinheiro vence qualquer outra forma de
propriedade privada" (77/528). E o dinheiro, j se sabe, a abstrao de toda
determinao real, a propriedade liberada de toda entificao efetiva.
Em sntese: "A propriedade fundiria, diferentemente do capital, a
propriedade privada, o capital ainda preso a preconceitos locais e polticos, que
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ainda no se livrou inteiramente de seu emaranhado com o mundo para chegar a
si mesmo, o capital ainda no acabado. No decurso de seu desenvolvimento
universal, ele deve alcanar sua expresso abstrata, ou seja, pura" (78/528-9).
Este movimento, portanto, um processo de explicitao da propriedade
privada, ou ainda, do ser do homem que se perdeu em seu objeto e ainda no se
conhece como ser para si.
Entretanto, neste movimento que o homem se constitui, pois "Na
indstria material costumeira (...) temos perante ns as foras essenciais
objetivadas do homem sob a forma de objetos sensveis, estranhos e teis, sob a
forma de estranhamento " (95/542-3).
Atravs da indstria, o homem pode reconhecer-se a si enquanto homem,
enquanto gnero efetivo que produz seu prprio mundo a partir da atividade
genrica. A produo do mundo humano atravs do movimento da propriedade
privada fornece, assim, ao homem a medida efetiva, concreta de sua
potencialidade, pois "tanto o material do trabalho como o homem enquanto sujeito
so, ao mesmo tempo, resultado e ponto de partida do movimento (e no fato de
que tem de ser este ponto de partida reside justamente a necessidade histrica da
propriedade privada)" (89/537).
Ou seja, para o homem iniciar o movimento humano, no qual ele sujeito,
necessrio um processo em que ele se constitua enquanto homem. Este movi-
mento em si se processa como movimento autnomo, independente dele. Da
mesma forma, o material do trabalho enquanto possibilidade objetiva de libertao
do homem se produz tambm neste contexto. Desse modo, em consonncia com
a reflexo marxiana, a propriedade privada a mediao necessria da auto
construo humana, pois "a sociedade em vir-a-ser se encontra, por meio do
movimento da propriedade privada, de sua riqueza e de sua misria - ou de sua
riqueza e de sua misria espiritual e material, - todo o material para esta
formao" (94/542).
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A nova sociedade portanto, no simplesmente a negao da atual,
tambm, num certo sentido, sua continuidade, ou seja, verdadeira superao da
forma de produo vigente sem negar as conquistas reais gestadas a partir do
movimento da propriedade privada.
Em suma, o movimento efetivo das foras essenciais humanas que se
exerce como atividade estranha produz objetividades que aparecem ao homem
como objetos estranhos. Este movimento, como vimos, produz a objetividade
propriedade privada - "expresso material, sensvel da vida humana estranhada.
Seu movimento - a produo e o consumo - a manifestao sensvel do
movimento de toda produo at o presente, isto , da efetivao ou efetividade
do homem" (88/537).
A objetividade propriedade privada manifesta, portanto, a um s tempo, a
apropriao efetiva do mundo sensvel e a desapropriao do homem como seu
produtor. Ela "apenas a expresso sensvel do fato de que o homem se torna
objetivo para si e, ao mesmo tempo, se converte efetivamente em um objeto
estranho e inumano, do fato de que sua exteriorizao de vida a alienao de
sua vida, sua efetivao sua desefetivao, uma efetividade estranha" (90-
1/539).
Numa forma social onde homem e objeto se encontram numa relao de
oposio, onde o homem no se realiza no objeto mas se nega, onde o objeto ao
fazer-se humano nega o homem e converte-o em seu escravo, toda unidade - que
se realiza verdadeiramente na diferena,- so tomadas como oposio, como
antagonismos.
No campo das cincias tal antagonismo se expressa na oposio entre
cincias naturais e cincias humanas. Eis a tematizao de Marx a respeito: "As
cincias naturais desenvolveram uma enorme atividade e se apropriaram de um
material que aumenta sem cessar. A filosofia, no entanto, permaneceu to
estranha para elas como elas para a filosofia" (95/543). Pois, a apropriao e
transformao efetivas do mundo efetivo no so objeto da filosofia, do mesmo
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modo que as cincias naturais se expandem efetivamente na liberdade do
compromisso com o homem: "Quanto mais praticamente a cincia natural, por
meio da indstria, se introduziu na vida humana, transformou-a e preparou a
emancipao humana, tanto mais teve que consumar diretamente a
desumanizao" (95/543).
Esta a prova decisiva da necessidade da propriedade privada para o de-
senvolvimento das foras produtivas: atravs da propriedade privada, a indstria
se torna "a relao histrica efetiva da natureza, e, por isso, da cincia natural
com o homem", mas somente de forma estranhada, pois as cincias naturais
(atravs da efetivao da indstria) so a base da vida humana efetiva em
oposio filosofia. Mas somente a base efetiva da vida humana pode ser a base
real da cincia do homem, j que "supor uma base vida e outra cincia de
antemo uma mentira" (96/543).
Em sntese, toda riqueza produzida pelo trabalho humano aparece como
autnoma e independente do homem e, no campo das cincias, este antagonismo
manifesta-se no est