MONOGRAFIA
INSTITUTO A VEZ DO MESTRE
UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES
NOME: TATIANE OLLÉ COLMAN
MATRÍCULA: K201286
CURSO: PÓS-GRADUAÇÃO - DIREITO PÚBLICO E TRIBUTÁRIO (K039)
SUMÁRIO
I. Int rodução ........................................................................................................................3
II. A inversão de fases no ordenamento brasi leiro ......................................3
1. Histórico ............................................................................................4
2. Situação atual no âmbito f ederal .......................................................................6
3. Situação atual no âmbito l ocal ...........................................................................7
II I. A repartição consti tucional de competências ..........................................9
1. Notas gerais ........................................................................................10
2. Lici tação e contrato administrativo: especificidades .........................12
IV. A previsão da inversão de fases em lei regi onal ou local ..............16
1. Procedi mento como norma geral .....................................................................16
2. Impossibi l idade de inversão de fases ..........................................................17
V. A inconveniência da inversão como solução ..........................................20
VI. Conclusão ...................................................................................................................22
I. INTRODUÇÃO
A Administração Pública tem se deparado com
dificuldades na realização de lic itações que sejam rápidas e atendam
efetivamente ao interesse público. De fato, a análise de boa parte
das lic itações em qualquer dos entes políticos de todo o País
demonstra que não raro os interesses efetivos da Administração na
busca pela proposta mais vantajosa são preteridos pelo emprego de
procedimentos lentos e burocráticos. Um dos motivos para tal desvio
seria a exigência meramente formal de comprovação de capacidade
jurídica, econômica e técnica, o que não ter ia o condão de
efetivamente assegurar a seriedade da proposta ou do concorrente,
mas, em sentido contrário, poderia exc luir da lic itação concorrentes
capazes.
Uma das alternativas cogitadas para sanar, ao
menos em parte, tal situação, é a de se estabelecer a inversão de
fases como regra geral para os procedimentos licitatórios. Apreciar-
se-iam, inicialmente, as propostas econômicas dos particulares, para
então verif icar as condições de habilitação tão somente daquele que
tivesse a proposta mais vantajosa. Essa inversão – já experimentada
em algumas localidades e em procedimentos específicos, como, por
exemplo, o procedimento de pregão ou, em alguns casos, o
procedimento para a contratação de parcerias público-privadas.
No entanto, a inversão de fases não é o
procedimento padrão nos processos de contratação da Administração
Pública. A Lei de Lic itações e Contratos Administrativos (Lei nº
8.666/93) tem como regra que o certame se inic ie com a verif icação
dos documentos de habilitação de todos os lic itantes, para depois
confer ir suas propostas econômicas.
Cabe indagar, então, se seria possível à lei
estadual ou municipal, incorporar a inversão de fases nas licitações
em seu âmbito federativo. Ou seja, enquanto não for reformada a lei
federal, pode o legis lador local inovar nesta questão e estabelecer
nova ordem das fases nos certames licitatórios?
Para responder esta questão, o trabalho
discorrerá sobre o atual regramento da inversão de fases no processo
lic itatór io (item II) . Em seguida, tratará da repartição constitucional
de competências entre as instâncias federativas no que tange às
lic itações e contratos administrativos ( item III) . Es tabelecidas as
bases da análise, a inversão de fases será analisada à luz do
regramento de competências ( item IV) , concluindo-se pela
impossibilidade de sua previsão por lei local como procedimento
padrão de contratação (item V) .
II. A INVERSÃO DE FASES NO ORDENAMENTO
BRASILEIRO
1. Histórico
A questão da inversão de fases no
procedimento licitatório é tema há muito discutido no Direito
brasileiro. Sua capacidade de agilizar as contratações públicas tem
chamado a atenção de gestores públicos e dos legis ladores. Já no
ante-projeto de reforma da Lei de Licitações, divulgado pelo MARE
em 1996, esta medida tinha posição de destaque.
O primeiro procedimento de contratação a
incorporá-la foi o pregão da ANATEL, introduzido pela Lei Geral de
Telecomunicações – Lei nº 9.472/971. Foi criada uma modalidade de
lic itação específ ica para aquela Agência, cuja pr inc ipal característica
era o julgamento das propostas comerciais antes da habilitação dos
lic itantes.
Alguns anos depois, a uti lização do pregão foi
estendida para todos os órgãos da Administração Pública federal, por
meio da Medida Provisória nº 2.026/2000. Apesar de não contemplar
Estados e Municípios, diversos administradores locais alegaram a
inconstitucionalidade da restr ição, e passaram a lançar mão do
pregão para realizar suas contratações2.
Cabe lembrar que houve um novo anteprojeto
de lei para substituir a Lei nº 8.666/93, em que a inversão de fases
era adotada como procedimento padrão nas lic itações públicas3.
Contudo, as inovações trazidas no bojo do refer ido projeto foram
severamente cr iticadas pela comunidade jurídica, e nunca foram
efetivamente implementadas.
1 Conferir artigos 55, inciso VIII, 56 e 57 da Lei Geral de Telecomunicações.2 Fato noticiado por Vera Scarpinella, “Licitação na Modalidade Pregão", São Paulo, Malheiros, 2003, p. 45.3 Texto disponível no site http://www.comprasnet.gov.br/publicacoes/Anteprojeto_lei/anteproj_lei.pdf, consulta em 08.02.2006. Conferir, em especial, os artigos 52 e seguintes.
2. Situação atual no âmbito federal
Atualmente, a inversão de fases é prevista na
Lei nº 10.520/2002, que estendeu a aplicação do pregão para todos
os entes federativos, como principal característica dessa modalidade
de licitação. Mas não é esse o único diploma legal que prevê a
análise das propostas comerciais antes da habilitação.
O regime de contratação das Parcerias
Público-Pr ivadas4 institui a possibilidade de inversão das fases de
habilitação e julgamento, a cr itér io da Administração Pública. Assim,
ao contrár io do pregão, o Administrador não é obrigado a inverter as
fases – trata-se de uma faculdade sua.
A Lei nº 8.987/95, que disciplina as
concessões comuns, sof reu algumas alterações recentes. A pr incipal
alteração diz respeito justamente ao procedimento de lic itação nela
prevista. Por meio da aprovação da Lei nº 11.196/05, foi introduzido o
artigo 18-A na Lei nº 8.987, que transpõe o regime de contratação
das PPPs para as concessões comuns, em termos idênticos.
4 Confira-se o teor da Lei nº 11.079/04:Artigo 13. O edital poderá prever a inversão da ordem das fases de habilitação e julgamento, hipótese em que:I – encerrada a fase de classificação das propostas ou o oferecimento de lances, será aberto o invólucro com os documentos de habilitação do licitante mais bem classificado, para verificação do atendimento das condições fixadas no edital;II – verificado o atendimento das exigências do edital, o licitante será declarado vencedor;III – inabilitado o licitante melhor classificado, serão analisados os documentos habilitatórios do licitante com a proposta classificada em 2o (segundo) lugar, e assim, sucessivamente, até que um licitante classificado atenda às condições fixadas no edital;IV – proclamado o resultado final do certame, o objeto será adjudicado ao vencedor nas condições técnicas e econômicas por ele ofertadas.
Ante esse panorama, é possível concluir que a
adoção da inversão de fases, seja como padrão procedimental, seja
como faculdade do Administrador, é uma tendência. Contudo, o artigo
43 da Lei nº 8.666/93 determina expressamente que o r ito da lic itação
será iniciado pela abertura das propostas de habilitação.
Assim, a lei federal é clara ao determinar a
ordem das fases nos procedimentos lic itatór ios. Portanto, enquanto
não for reformada, a Lei nº 8.666 afasta a inversão de fases. Esta
seria admitida apenas nos pregões e nos certames que visem à
celebração de concessões e parcerias público-pr ivadas, conforme
apontado acima.
Ainda que este entendimento seja
absolutamente inquestionável no âmbito federal (ainda que se possa
ver nele alguns r iscos e insuf ic iências), sua aplicação nas demais
esferas federativas merece ser objeto de abordagem mais detalhada.
Isso porque a Constituição Federal reservou aos Es tados e
Municípios margem para legis lação própria em matéria de lic itações e
contratos públicos. Cabe verif icar, assim, se a introdução da inversão
de fases estar ia abrangida nesta margem de competência, de forma a
sustentar a constitucionalidade de eventual legislação estadual ou
municipal que a preveja.
3. Situação atual no âmbito local
Antes de adentrar na discussão objeto deste
parecer, vale salientar que, apesar de controversa a competência dos
Estados e Municípios para inovar os processos de lic itações 5, há
notíc ia de leis locais que já o f izeram, sem seguir os ritos previstos
em normas federais. Cite-se, por exemplo, a Lei de Licitações e
Contratos da Bahia, de Sergipe e do Município de São Paulo, a Lei de
Parcerias Público-Pr ivadas de Santa Catar ina e Rio Grande do Sul6.
Vale abordar detidamente cada um dos exemplos.
A Lei nº 9.433/2005 do Estado da Bahia possui
diversos dispositivos semelhantes à Lei nº 8.666/93, embora
contenha também alguma regulamentação sobre concessões e
permissões de serviços públicos. Mas inovou ao prever a abertura da
proposta de preços no iníc io do certame, a f im de agilizar o
procedimento. Note-se que a lei baiana assumiu um posicionamento
f irme, no sentido de adotar como padrão a inversão de fases7 – não
como mera possibilidade. No caso de licitação cujo cr itér io de
julgamento seja melhor técnica ou técnica e preço, o procedimento
5 Os argumentos contrários à regulamentação infra-federal sobre o assunto será objeto do item IV.6 As inovações legislativas em matéria de licitação introduzidas pelas duas últimas leis são, segundo Vera Monteiro, “induvidosamente inconstitucionais” (PPP – Aspectos Fiscais, in Parcerias Público-Privadas, organizado por Carlos Ari Sundfeld, São Paulo, Malheiros, 2005, p. 91).7 Artigo 78 - A licitação será processada e julgada com observância dos seguintes procedimentos:I - abertura dos envelopes contendo as propostas de preço;II - verificação da conformidade e compatibilidade de cada proposta com os requisitos e especificações do edital ou convite e, conforme o caso, com os preços correntes no mercado ou fixados pela Administração ou por órgão oficial competente ou, ainda, com os constantes do sistema de registro de preços, quando houver, promovendo-se a desclassificação das propostas desconformes ou incompatíveis;III - julgamento e classificação das propostas, de acordo com os critérios de avaliação constantes do ato convocatório;IV - devolução dos envelopes fechados aos concorrentes desclassificados, contendo a respectiva documentação de habilitação, desde que não tenha havido recurso ou após a sua denegação;V - abertura dos envelopes e apreciação da documentação relativa à habilitação dos concorrentes classificados nos três primeiros lugares;VI - deliberação da comissão licitante sobre a habilitação dos três primeiros classificados;VII - convocação, se for o caso, de tantos licitantes classificados quantos forem os inabilitados no julgamento previsto no inciso anterior;VIII - deliberação final da autoridade competente quanto à homologação do procedimento licitatório e adjudicação do objeto da licitação ao licitante vencedor, no prazo de até 10 (dez) dias após o julgamento.
será iniciado pela abertura das propostas técnicas8. Na mesma linha
vem a Lei n° 14.145, de 7 de abril de 2006, do Município de São
Paulo, e do Es tado de Sergipe, Lei n° 5.848/06, em nome da celeridade
dos processos. Porém, conflitam com a Legislação Federal em diversos aspectos.
A Lei de Parceria Público-Privada do Estado de
Santa Catar ina prevê uma nova fase preliminar, de “adequação das
propostas técnicas”, em que a Administração pode sugerir a alteração
das propostas formuladas pelos licitantes, para adequá-las ao
interesse público9. Dispositivo idêntico pode ser encontrado na Lei nº
12.234/2004, do Es tado do Rio Grande do Sul.
Apesar de não haver notícia de impugnação,
por via de ação direta de inconstitucionalidade, das leis acima
mencionadas, não há segurança de que o Supremo Tribunal Federal,
caso acionado, venha a tolerar tais inovações locais. Conforme
exporemos mais adiante, entendemos que essas inic iativas
legis lativas não encontram amparo na Constituição Federal.
III. A REPARTIÇÃO CONSTITUCIONAL DE
COMPETÊNCIAS
O assunto tratado no presente tópico é
extremamente polêmico, e por vezes já suscitou debates acalorados
entre juristas com posições antagônicas e respeitáveis. Assim, trata- 8 § 1.º do artigo 78.9 Artigo 12, inciso I, da Lei Estadual nº 12.930/2004. Além desse dispositivo, há um detalhamento minucioso do regime de licitação das parcerias, que não conflita, em grande parte, com as disposições da Lei nº 11.059/04. Deve-se lembrar que a Lei de PPP de Santa Catarina é uma cópia da primeira versão do projeto federal, que reproduziu, inclusive, o novo regime de licitações então previsto.
se de um tema corrente, que já mereceu nossa atenção em outras
oportunidades.
Os apontamentos e conclusões aqui
externados têm forte inspiração em trabalhos já realizados, com
observância das peculiar idades presentes no caso concreto.
1. Notas gerais
Regra intr ínseca ao princípio federativo, a
distr ibuição de competências entre os entes federados autônomos e
iguais entre s i inic ia-se e esgota-se na própria Constituição. De
nenhum outro instrumento jurídico decorrem tais competências. O
exame sumário da Constituição nos permite identif icar alguns
cr itér ios distintos para essa distribuição.
No que tange à natureza das atividades a
serem delegadas, a Constituição Federal divide entre competências
materiais e competências legislativas , ou seja, ela segmenta, ao
menos em pr incípio, os atos relativos à normatização de uma
atividade e aqueles relativos à sua execução10.
Por outro lado, quanto à relação entre os
entes, encontramos na Constituição competências exercidas
exclusivamente por um dos entes federativos, com a exclusão dos
demais (competências privativas) , e competências atr ibuídas a mais
de um ente federativo (competências comuns e concorrentes11) , o
10 O caso em análise versa exclusivamente sobre a competência legislativa, portanto não vamos nos ater a essa distinção. Ver nosso Aspectos jurídicos enredados na implantação do programa de inspeção veicular, in Revista de Informação Legislativa, nº 151, julho a setembro de 2001, páginas 183 e seguintes.11 Disse-se competência concorrente, pois nela há a subdivisão entre as competências complementares e suplementares. Neste sentido, servindo-nos dos ensinamentos de Walber de
que exige regras mais acuradas de coordenação entre eles.
Finalmente, no que diz respeito à técnica de atr ibuição de
competência propriamente dita, já vimos que, para a distr ibuição das
competências privativas, a Constituição adota cr itér io explíc ito e
específ ico para a União, explíc ito e globalmente genérico para os
Municípios e implíc ito (residual) para os Es tados 12.
Analisemos inicialmente as competências
privativas . O artigo 21 da Constituição estabelece as competências
materiais pr ivativas da União, enquanto o artigo 22 estabelece
aquelas que, apesar de também excluírem os demais entes, são
competências de natureza normativa (“Compete pr ivativamente à
União legislar sobre...”) . As competências materiais e normativas
pr ivativas dos Municípios encontram-se previstas conjuntamente no
artigo 30 da Constituição. Nele se verif ica que, de maneira ampla,
compete aos Municípios legis lar sobre assuntos de interesse local
( inc iso I) e organizar e prestar os serviços públicos cujo interesse
seja predominantemente presente nesse mesmo âmbito (inciso V) .
Aos Estados, conforme o disposto no artigo 25, § 1º, compete a
matéria e a normatização remanescente ou residual, ou seja, aquela
que não foi atr ibuída nem à União nem aos Municípios, ainda que
algumas previsões – como, por exemplo, o caso da distribuição de
Moura Agra para distinguir entre as normas complementares ou suplementares. A norma é complementar “quando os Estados-membros ou o Distrito Federal produzem normatização para especificar a legislação geral da União, adequando a legislação nacional às peculiaridades regionais; suplementar quando ocorre uma omissão da União em proceder à cominação geral, e assim os Estados poderão produzir as normas gerais e as específicas. A competência para legislar sobre norma gerais continua a pertencer à União; diante de sua omissão de legislar, os Estados poderão normatizar, sem a dependência de nenhuma norma que explicite uma delegação. A transferência de atribuições é imediata, desde que configure a omissão. Na competência concorrente suplementar, voltando a União a legislar sobre assuntos gerais, as normas produzidas pelos Estados que estiverem em contradição com as normas da União serão suspensas do ordenamento jurídico. É bom salientar que as normas específicas devem se adequar às normas gerais; havendo uma modificação nestas, aquelas também terão de sofrer uma alteração” (Manual de Direito Constitucional, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2002, páginas 295 e 296).12 Com a exceção da distribuição de gás canalizado, expressamente atribuída aos Estados (CF, artigo 25, § 2º).
gás canalizado – sejam expressamente efetuadas na Constituição. Ao
Distr ito Federal, por sua vez, são atribuídas concomitantemente as
competências legis lativas reservadas aos Estados e aos Municípios
(artigo 32, § 1º, da Constituição Federal) .
Ao lado das competências pr ivativas, convivem
competências plurais dos entes federativos, que incidem sobre
uma mesma matéria. Quanto a estas, é de se distinguir entre as
competências comuns e as competências concorrentes. Ainda
ressaltando o caráter esquemático destes traços sobre a
competência, podemos identif icar as competências comuns no artigo
23 da Carta Maior, que enumera as competências de atuação de
ordem político-administrativa atr ibuídas tanto à União quanto aos
Estados, ao Distr ito Federal e aos Municípios. As competências
concorrentes, por sua vez, encontram-se no artigo 24 da
Constituição, que, de forma geral, estabelece as competências
legis lativas atribuídas concomitantemente à União, aos Estados e ao
Distr ito Federal.
2. Licitação e contrato administrativo: especificidades
Visto o regime geral de repartição das
competências legis lativas, passa-se a uma análise mais centrada nos
problemas do caso concreto, referentes aos limites de inovação
legis lativa dos entes federados. A Constituição Federal prevê, no
caso das licitações e contratos administrativos, que:
“Artigo 22. Compete privativamente à União legislar sobre:XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas
e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no artigo 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do artigo 173, § 1°, III;”
A matéria recebe tratamento de competência
pr ivativa, a ser regulada unicamente pela União. Contudo, deve-se
observar que a norma constitucional faz clara alusão às “norm as
gerais” de lic itação e contrato administrativo, o que mitiga o caráter
inicialmente exclusivo da competência. Assim, Distri to Federal ,
Estados e Municípios podem dispor sobre o tema, desde que não
haja confl i to com as “normas gerais” da União. Tal
posic ionamento é amplamente defendido tanto na doutr ina quanto na
jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal:
“Registre-se, entretanto, que a competência da União é restrita a normas gerais de licitação e contratação. Isto também quer dizer que Estados e Municípios também têm competência para legislar a respeito do tema: a União expedirá as normas gerais, e os Estados e Municípios expedirão as normas específicas”13.
Desde já, cabe salientar que a ausência de
referência ao conceito de normas gerais na Lei nº 8.666/93 não
af ronta, por si só, o comando constitucional14. Parece claro que a
refer ida lei deve ser interpretada, a fim de distinguir quais normas
são gerais e quais são específ icas. Isso signif ica que as normas
específ icas contidas na Lei nº 8.666/93 são plenamente
constitucionais, mas aplicáveis somente à União15.
13 Voto do Ministro Carlos Velloso, relator na ADI-MC 927-3/RS, que apreciou a constitucionalidade de alguns dispositivos da Lei nº 8.666/93, e abordou também a questão do conceito de normas gerais e específicas.14 Interpretação que pode ser extraída da ADI-MC 927-3/RS, que julgou constitucional o artigo 1º da Lei nº 8.666/93.15 Conforme afirma Adilson de Abreu Dallari, o ideal seria que a Lei nº 8.666/93 dispusesse apenas sobre as ditas normas gerais, e cada ente federativo, dentro de sua esfera de competência, editasse as leis específicas, inclusive a própria União. Afirma ainda que “a Lei nº 8.666/93 não contém apenas normas gerais, pois desce a minúcias e detalhamentos que não podem enquadrar-se em tal conceito. Ela pode e deve ser acatada, sem restrições, pelos órgãos e entidades da
Deste modo, o esforço consiste em def inir
quais normas da Lei nº 8.666/93 são gerais – que devem ser
respeitadas por Es tados e Municípios –, e quais podem ser
consideradas como normas específ icas – passíveis de disciplina
local.
Para tanto, é imprescindível def inir o que são
“normas gerais”16. Diogo de Figueiredo Moreira Neto17 recenseou as
opiniões existentes na doutrina sobre tal definição. Af irma ele serem
aquelas que (i) estabelecem princípios, diretr izes, linhas mestras e
regras jurídicas gerais; ( i i) não podem entrar em pormenores ou
detalhes nem esgotar o assunto legis lado; ( ii i) são regras nacionais,
uniformemente aplicáveis no terr itório; (iv) devem ser regras
uniformes para todas as situações homogêneas, sem individualizá-
las; (v) só cabem quando preencham lacunas constitucionais e
disponham sobre áreas de conf lito; (vi) devem refer ir-se a questões
fundamentais; (vii) são limitadas, no sentido de não poderem violar a
autonomia dos Estados; e (vi i i) não são normas de aplicação direta. A
comparação entre diretr izes e normas gerais permite melhor distinguir
os contornos das “diretrizes” conforme dispostas na Constituição.
Duas das características acima refer idas
necessitam de maior esclarecimento. Em pr imeiro lugar, não nos
Administração Federal, mas não merece acatamento integral por parte dos Estados e Municípios, que devem respeitar apenas as normas gerais aí contidas, mas devem editar suas próprias leis sobre licitações e contratos, ajustadas a suas respectivas peculiaridades” (in Aspectos Jurídicos da Licitação, São Paulo, Saraiva, 1997, p. 23 e seguintes).16 Vale citar o entendimento do Supremo Tribunal Federal: “norma geral, tal como posta na Constituição, tem o sentido de diretriz, de princípio geral. A norma geral federal, melhor será dizer nacional, seria a moldura do quadro a ser pintado pelos Estados e Municípios no âmbito de sua competências” (ADI-MC 927-3/RS)17 In Constituição e Revisão: Temas de Direito Político e Constitucional, Rio de Janeiro, Forense, 1991, páginas 155 e seguintes. Merece menção o trabalho realizado por Vera Scarpinella, São Paulo, Malheiros, 2003, p. 59 e seguintes.
parece que a generalidade das normas impeça, em pr incípio, sua
aplicação direta. Como lembra Lucia Valle Figueiredo, elas se
aplicam concreta e diretamente às relações e s ituações específ icas
no âmbito de competência federal e, ainda, no âmbito da competência
administrativa regional sempre que a autor idade regional (Estado ou
Município) não tiver exercido sua competência particular izante –
decorrente da possibilidade de edição de normas locais. Aplicam-se,
ainda, nos casos em que a autor idade regional haja exercido sua
competência particular izante em contrar iedade ao valor nelas
declarado18.
Um segundo ponto que merece observação é a
impossibilidade das normas gerais esgotarem a matér ia que regulam.
Ainda que em teoria isso seja verdade, pode haver s ituações em que,
em vir tude da importância do tema e de suas particular idades, exista
pouco espaço para inovação ou particular ização por parte das
autor idades estaduais e municipais.
É justamente o caso da regulação em matéria
de licitações, que foi praticamente exaurida por lei federal. Isso
porque, no caso, era mais relevante assegurar a uniformidade nas
contratações da Administração Pública como um único conjunto do
que ref letir eventuais particular idades regionais. O que se pode
entender pela prescrição que veda à lei geral esgotar a matéria
regulada há de ser a vedação a que esta invada o campo de
especif icidade e particular idade reservado à lei regional ou local.
Inexistente a margem para a disciplina especif icamente regional ou
local, descaberá falar em vedação ao exaurimento pela lei federal.
18 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Discriminação Constitucional das Competências Ambientais. Aspectos pontuais do regime jurídico das licenças ambientais, in Revista de Direito Ambiental, nº 35, ano 9, julho a setembro de 2004, páginas 39 a 55.
IV. A PREVISÃO DA INVERSÃO DE FASES EM LEI
REGIONAL OU LOCAL
Consideradas as características da repartição
de competências em matéria de lic itação no ordenamento
constitucional brasileiro, é de se questionar se é possível, ou não,
prever a inversão de fases em lei regional ou local, à margem do
disposto na lei nacional. Parece-nos que, diante do fato de que a
tendência da jur isprudência brasileira considerar que regular o
procedimento lic itatór io tem natureza de norma geral ( IV.1), deve-se
concluir que não é possível estabelecer a inversão de fases em
âmbito local ou regional ( IV.2).
1. Procedimento como norma geral
Há um entendimento prevalecente no Supremo
Tribunal Federal no sentido de que as normas gerais presentes na
legis lação tr ibutár ia englobam os procedimentos. De fato, no que
tange ao regime de lic itações e contratos, ao julgar a ADI-MC 927-
3/RS, a Suprema Corte refutou o argumento que o artigo 1º da Lei nº
8.666/93 seria apr ioristicamente inconstitucional.
Portanto, há forte indicação no sentido de que
a matéria relativa a procedimento de contratação seja considerada
pela jur isprudência como “norma geral”. Tal interpretação decorre, a
toda evidência, do disposto no artigo 22, inciso XXVII, da
Constituição, que, como visto, inclui na norma geral de competência
da União todas as modalidades de licitação – inclusive a sua
def inição. O procedimento há de ser enquadrado, portanto, como
decorrência da f ixação da própria modalidade.
Deste modo, a caracter ização de uma
modalidade de licitação é feita não somente pelo valor da
contratação, mas essencialmente por meio de seu procedimento,
compreendido como as formalidades que compõem o certame. Em
outras palavras, a previsão de uma norma geral que discipline as
modalidades de lic itação corresponde à previsão dos diversos
procedimentos – e das fases que os integram.
Como visto, não há uniformidade, seja na
doutr ina, seja na jur isprudência, quanto à def inição de quais normas
seriam gerais e quais seriam específ icas. Ainda assim, parece
decorrer do senso comum e da própria lógica de separação de
competências da Constituição que a possibilidade de alteração, por
lei estadual ou municipal, de normas de procedimento tais quais a
inversão de fases, os prazos do procedimento, o regime de recursos,
entre outros, daria evidente margem para o casuísmo, o que é
impensável quando se trata de licitação e contrato administrativo.
2. Impossibilidade de inversão de fases
Pelo exposto até o momento, é grande a
chance de declaração de inconstitucionalidade na previsão na
legis lação local da inversão das fases de habilitação e julgamento
das propostas. Os motivos que embasam a tese já foram expostos de
forma introdutór ia no tópico anter ior: a Constituição prevê que cabe à
norma geral disciplinar as modalidades de licitação, com expressa
vedação à cr iação de outras.
Poder-se-ia argumentar, a título
exemplif icativo, que a implementação da inversão de fases não
desnatura o procedimento administrativo fixado pela Lei nº 8.666/93,
por não alterar as modalidades de lic itação nela previstas – que
expressamente fazem parte da “norm a geral”, segundo o artigo 22,
inciso XXVII da Constituição Federal, como visto. Todas as fases
estar iam ali presentes, haveria apenas a inversão de duas únicas
etapas. No mais, todo o conteúdo exigido pela legislação federal
restaria inalterado.
Tal interpretação, no entanto, esbarra no
próprio texto da Lei nº 8.666/93. Isso porque o § 1º do artigo 22 da
refer ida lei def ine a concorrência como o procedimento que seleciona
o particular, após uma fase inic ial de habilitação prelim inar. Deste
modo, a própria def inição legal da modalidade parte justamente do
ponto que seria alterado. É inegável que a prática aponta para a
caracterização das modalidades pelo seu valor, prevista no artigo 23
da Lei nº 8.666/93. Contudo, não é possível s implesmente ignorar o
teor tão direto da norma. Nesse sentido, a ordem das fases integra o
próprio conceito da modalidade, e qualquer alteração por via local a
desnatura – cr iando uma nova modalidade -, o que é vedado pela
Constituição em não sendo norma nacional (competência da União).
No mais, conforme já apontado, a relevância
do tema impõe uma disciplina mais detalhada, que pode não dar
espaço para uma regulamentação local. Conferir liberdade total para
os entes federados legis larem sobre o procedimento de lic itação
permitir ia abusos, como a def inição de prazos recursais exíguos, por
exemplo.
Permitir que os entes federados que não a
União inovem no conteúdo das modalidades de licitação abriria o
campo para em cada Município se ter uma plêiade de modalidades
com procedimento distinto, levando à inviabilização do princípio da
lic itação pública.
Conforme já tivemos a oportunidade de
apontar:
“No quadro constitucional vigente, já existem os princípios que devem, indesviadamente, nortear os procedimentos administrativos, inclusive os licitatórios (v.g., os princípios contidos no caput do artigo 37 e nos seus incisos). Por outro lado, há a restrição da competência em legislar apenas sobre as normas gerais, ou seja, os lineamentos básicos da matéria. Portanto, fica fora de dúvida sobrexistir a competência dos entes federados para legislar sobre a matéria no nível do detalhe, o que, tratando-se de procedimentos administrativos, compreende campo legislativo bastante amplo”19.
A inversão de fases não é um “detalhe”,
englobado na competência para legis lar sobre processo
administrativo, privativa de cada ente federado. Se as modalidades
de licitação são caracter izadas por suas etapas – como é o caso da
concorrência –, é inviável sustentar que a ordem dos fatores não
importa.
Fosse o procedimento considerado norma
específ ica, regulável no ambiente estadual ou municipal, e teríamos
aberta a possibilidade de se encurtar prazos, se prever eventos
anter iores à entrega de propostas ou de se instituir novas fases
procedimentais, com larga margem de discr icionariedade.
Ademais, a licitação nada mais é do que um
procedimento legal para contratações do poder público. Admitir que 19 “Normas gerais de licitação – doação e permuta de bens de Estados e Municípios –aplicabilidade de disposições da Lei Federal nº 8.666/93 aos entes federados”, RTDP 12/173, São Paulo, Malheiros, 1995, p. 178.
regras procedimentais não são norma geral, seria, então, permitir que
cada ente adotasse o seu procedimento próprio, fazendo sumir o
instituto da lic itação.
V. A INCONVENIÊNCIA DA INVERSÃO COMO
SOLUÇÃO
Por f im, uma última nota é necessária. Ainda
que a pr imeira vista a inversão de fases possa parecer medida
ef ic iente e digna de encômios, sua conveniência é posta em dúvida
quando contejamo-lo com algumas espécies de contratação.
Primeiro, a s imples inversão de fases e
medidas incompleta, se não vier acompanhada de outros mecanismos
de f lexibilização, como a supressão de exigências e o
estabelecimento de cadastros de qualif icação permanente (como hoje
ocorre em grandes empresas e em outros países). Apenas a inversão
poderá editar um novo entrave procedimental, com todos os demais
lic itantes classif icada guerr iando contra a habilitação do vencedor e,
excluindo este, contra o segundo e assim sucessivamente. Teríamos
apenas o difer imento (o parcelamento) das br igas administrativas e
judic iais tornando não mais célere, mas mais entravado o precedente.
Segundo, porque trata-se de medida imprópria
para contratações de grande vulto. Isso porque torna a habilitação
influenciada pelo julgamento econômico (a inversão suprime o
pr incípio da estanqüeidade das fazes), levando a uma contaminação
entre qualif icação e julgamento. Ademais, há uma diferença entre
uma compra de bens comuns (objeto típico do pregão, or igem da
inversão de fases) e os empreendimentos de grande vulto.
Na compra de bens o que importa é afer ir a
qualidade, conf iabilidade e suf iciência do produto. Tanto que se
admite, antes de julgar, ver ificar a amostra do produto. Ou seja,
nestes procedimentos importa menos a capacitação do fornecedor e
mais a qualidade (objetivo do bem).
Nos grandes empreendimentos, em que o
particular é contratado, não para entregar uma coisa, mas para
executar uma obra ou serviço, a única forma da Administração se
certif ica da confiabilidade futura é afer ir a capacidade de quem se
apresenta (já que a qualidade do produto não é s indicável a pr ior i) .
Daí porque não é consentâneo com o interesse
público tornar a fase de verif icação da capacidade do futuro
contratado como uma mera formalidade e ser cumprido no f inal do
procedimento como que para homologar o julgamento econômico.
Tanto assim é que na primeira lei que
inaugurou este procedimento, havia expressa exc lusão de sua
aplicação na contratação de obras e serviços de engenharia (cf .
artigo 54, parágrafo único da Lei nº 9.472/97).
Veja-se uma singela diferença a demarcar essa
inconveniência. Numa entrega de vens contratados por pregão (com
inversão de fases), os desembolsos da Administração são feitos
contra a entrega do bem. Já numa grande obra, a Administração vai
tendo que realizar pagamentos conforme a obra avança, sem poder
antes se certif icar da qualidade final do produto. Daí a necessidade
do reforço de afer ição da qualif icação, o que é reduzido com a
inversão.
Para estes efeitos, a inversão acaba por ter o
mesmo sentido de se fazer um vestibular ao f im da graduação, para
verif icar se o aluno, já bacharelando, reúne condições para ingressar
no curso.
Repara-se, nestes quadrantes, que a inversão
poder trazer sério comprometimento para a própria f luidez do
certame. Sim, pois a poster iori, excluído o vencedor inabilitado, sua
passagem pela lic itação não será inerte. Ele poderá ter continuidade
para alterar o crivo de inexequibilidade (artigo 48, Lei nº 8.666/93) ou
para questionar a c lassif icação do proposto econômico de outrem.
Por derradeiro, demarque-se que o inverso se
mostra inefic iente. A ef iciência administrativa nesta matéria não deve
ser perseguida apenas com a contratação rápida. Deve, s im,
consumar-se na melhor contratação, aquela cuja vantojosidade se
verif ique com a voa e plena execução do contrato. Descurar da
verif icação de habilitação ou subjugá-la em favor do preço pode não
ser (e no geral não é) a medida mais consentânea com a efic iência.
Portanto, mesmo que constitucional fosse, a
introdução da inversão de fases em Estados e Municípios não seria
recomendável.
VI. CONCLUSÃO
Diante do exposto, entendemos que, enquanto
perdurarem as atuais regras da Lei nº 8.666 sobre modalidades de
lic itação - que indicam os procedimentos e as fases que as
caracterizam - não pode o legislador local (estadual ou municipal)
estabelecer novo procedimento de lic itação que inverta as fases do
certame, inic iando-o pela avaliação das propostas comerciais.
Tal disciplina, conf igura invasão da
competência pr ivativa da União. Outrossim, ainda que aparentemente
estejam agindo sob o manto da celer idade e ef ic iência, as alterações
promovidas nas Normas gerais descaracter izam o procedimento
restr ito a bens e serviços comuns, sendo inadmissível para os demais
casos, sob pena de transformar o processo licitatório em avaliação
exclusiva de preços, sem qualquer zelo ou apego à qualif icação
técnica do lic itante.