III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
MULHERES ALTERADAS: CONFLITOS DO GÊNERO FEMININO
Maria Inês Ghilardi-Lucena1
Alterada, tudo bem. Mas louca, jamais!2
Esta pesquisa analisou as relações de gênero social no discurso humorístico
veiculado nas charges de Maitena, autora nascida em Buenos Aires (Argentina), em maio
de 1962. Foram analisadas tiras em quadrinhos publicadas em cinco volumes, traduzidos
para o Português, da série Mulheres Alteradas (editora ROCCO, Rio de Janeiro). As
mulheres são o tema principal da série, entretanto o relacionamento com o sexo oposto
revela, também, o perfil masculino no relacionamento cotidiano, pois o que causa grande
parte das alterações nessas “mulheres alteradas” é o relacionamento com os homens. O
suporte teórico foi dado pela Análise do Discurso de orientação francesa, considerada por
Charaudeau e Maingueneau (2004) “como uma espécie de espaço crítico, lugar de
interrogação e de experimentação em que se podem formular, deslocando-os, os
problemas que as disciplinas constituídas encontram”. Por tratar-se de discurso
humorístico, muitos conflitos silenciados em outros lugares do cotidiano são expostos e
os personagens podem extravasar um discurso quase “proibido” socialmente. A análise
dos textos verbais, associada às imagens dos desenhos, revela a alma feminina.
No recorte metodológico aqui proposto, foram considerados os quadrinhos em que
as personagens femininas fazem suas meditações, ou expõem os pensamentos mais
íntimos, como se dialogassem com seu ego. Os diálogos interiores femininos e, também,
com outros sujeitos sociais resumem os conflitos pelos quais as mulheres passaram e
continuam passando nas sociedades ocidentais. As tirinhas de Maitena mostram a
evolução das aspirações femininas no transcorrer do tempo, caracterizando o que há de
mais comum nos ideais das jovens, em cada época. Em cinquenta anos, as
transformações foram significativas, sobretudo a partir dos anos 1960, quando os
movimentos feministas trouxeram a possibilidade de as mulheres externarem sua revolta
contra a submissão em relação aos homens. As figuras femininas retratadas nesses
quadrinhos procuram a felicidade ou seu lugar no mundo, o que as coloca em conflito,
gera pensamentos contraditórios, por isso estão quase sempre “insatisfeitas”.
Os conflitos retratados nas tirinhas são, sobretudo, de ordem afetiva e familiar,
basicamente originários do relacionamento com o marido e os filhos, ou causados por
situações corriqueiras, comuns ao dia a dia das mulheres, como a preocupação com a
1 Doutora em Letras: Semiótica e Linguística Geral (USP). Docente da PUC-Campinas.2 Maitena, 2003, v. 2, p. 74.
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idade e com a estética. As representações do gênero feminino baseiam-se, nessa
publicação, em estereótipos construídos no passado – baseados no já dito – e, alguns,
mais recentes – os novos ditos do mundo contemporâneo. Como afirmam Pires e
Giacomelli (2008, p. 199), a mídia,
como objeto simbólico de representação, reflete o pensamento do senso comum e, devido a sua presença maciça na vida das pessoas, contribui para a naturalização de crenças e de papéis sociais, de preconceitos e de relações de poder, entre elas as relações de gênero. Por outro lado, contraditoriamente, essas formas simbólicas podem contestar posições de poder.
Além de deixar subentendidas formas de representação de poder, aceitas ou
contestadas, os quadrinhos de Maitena, por meio do discurso humorístico, mostram, de
forma livre e criativa, as relações de gênero e a intimidade de homens e mulheres, tanto
de um mundo tradicional, de um passado conhecido dos leitores atuais, como também do
mundo moderno, vivido por todos nós.
Apresentamos, aqui, quadrinhos sobre os conflitos causados pelos companheiros
(maridos, namorados), no casamento e na separação, pelos filhos, por outras mulheres,
por pequenos tormentos do cotidiano do lar e pela necessidade de cumprir metas da
sociedade contemporânea de beleza, de estética, enfim, dramas interiores de
sentimentos, emoções, insatisfações, que causam “alterações” nas “Mulheres Alteradas”.
Com relação aos filhos: se casais vão passar as férias com amigos, surgem
problemas quando “eles têm filhos e você não”, ou “eles não têm filhos e você tem” ou,
ainda, se “eles têm filhos... e você também” (MAITENA, 2003, v. 5, p. 50), porque as
férias ficam prejudicadas. As responsabilidades em relação ao cuidado com os filhos, em
geral, pesam mais para as mães do que para os pais, desde o nascimento das crianças.
Vejamos (MAITENA, 2003, v. 5, p. 83)3:
Como sua vida muda no primeiro ano do bebê
A primeira coisa que ele faz é ler o jornal.A primeira coisa que ela faz é dar mamadeira.Quando ele sai para trabalhar, se sente... livre.Quando ela sai para trabalhar, se sente... culpada.Em seu tempo livre, ele vê futebol, lê ou conversa com os amigos.Nos dela, ela se ocupa da roupa, do médico e do cabeleireiro... do bebê.Ele sente mais falta do sexo.Ela sente mais falta de dormir.
3 Reproduzirmos apenas o texto verbal; omitimos, na maioria dos casos, as imagens e os diálogos dos personagens, por uma questão de espaço; entretanto reconhecemos que muito se perde dos sentidos possíveis. A leitura completa, com as imagens visuais – o desenho e as cores – dá a dimensão das possibilidades de interpretação, amplia a dose de humor do conjunto, sobretudo extraído das expressões fisionômicas. Mesmo assim, sintetizamos os temas explorados nos quadrinhos, procurando dar conta da interpretação das imagens visuais, também.
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Alguns dos conflitos interiores das mulheres são expostos, com muito humor, e
apontam a contradição entre o que deveria ser e o que realmente se passa no “coração
feminino”. Elas vivem a tensão entre felicidade ou infelicidade, em episódios cotidianos,
como:
Seis razões estúpidas para estar feliz ouSeis razões para estar feliz como uma estúpida?
Os dias estão lindos para sair e passear pela rua...– Ah, é? Com essa roupa?As tardes quentinhas para pegar sol...– Ah, é! Com essa barriga!... As noites mornas para tomar cerveja gelada.– ... É? Com quem, hein? Hein?Podemos começar a pensar nas férias...– Rá! Com que dinheiro?Neste ano, que já está acabando!– Já? Mais outro?E sobretudo, falta pouco para as festas de fim de ano!!– Buaaaá!!
Os comentários femininos, neste exemplo, refletem a voz de certa insatisfação ou
alguns dos motivos das “alterações” femininas. Satisfação, por um lado, e insatisfação,
por outro, ao constatar que há implicações negativas advindas da avaliação que faz de si
mesma ou da vida.
Outra preocupação do gênero está relacionada à estética, à beleza, exigência das
sociedades contemporâneas, em que
a corporeidade passou a ocupar um papel central, ou seja, as pessoas se preocupam cada vez mais com a performance, as aparências, a estetização da vida. Uma das evidências dessa tendência é a forte e constante preocupação dos indivíduos com a apresentação e a forma de seus corpos, na tentativa de adequá-los a um ideal hegemônico de beleza jovem, magra e exercitada. Podemos chamar esse fenômeno moderno de culto ao corpo (FIGUEIREDO, 2008, p. 173).
Essa tendência cultural e social é reforçada pelos discursos circulantes e por uma
rede de práticas discursivas e sociais. A mídia expõe, em sua produção, as normas a
serem seguidas pelos cidadãos, desprezando a individualidade e sugerindo
comportamentos massificados/massificantes. Os quadrinhos de Maitena (2003, v. 4, p.
55) mostram essa questão:
Algumas atitudes pouco estáticas sobre a cirurgia estética
Aos 20 anos lhe parece um horror, nunca faria.– Nem morta.Aos 30, não faria... mas entende quem faz.– ... Se precisam dela!Aos 40 tem vontade, mas não tem coragem... ainda.– Ahh... dão tá bal... (esticando o rosto)
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Aos 50, precisando um pouco, atreve-se a fazer uns retoques.– ... uma coisinha de nada...Aos 60, desesperada, tenta se refazer toda.– Eu? Magnífica!Aos 70 percebe que, se era para ficar velha mesmo, teria sido melhor ficar como antes.– Epa! Esse olhar não é meu...!
Tais quadrinhos estão reproduzidos na Figura 1:
Fig. 1: Maitena, 2003, v. 4, p. 55.
O padrão magro de beleza surge, nas sociedades ocidentais atuais, na primeira
metade do século XX e intensifica-se, demasiada e aceleradamente, no final daquele
século. Hoje, tanto homens como mulheres devem seguir esse padrão, que se tornou
fundamental na construção da auto-identidade. A aparência rege a formação de opinião
sobre si mesmo e sobre o outro. Maitena retrata, em vários momentos, essa questão.
Vejamos (MAITENA, 2003, v. 3, p. 39):
Ser magra
Tem coisa melhor que ser linda?– Ser magra.Tem coisa melhor que ser jovem?– Ser... ma... gra.Tem coisa melhor que ser elegante?– Ser magra.Tem coisa melhor que ter sucesso?– Ser magra.Tem coisa melhor que ser famosa?– Ser magra.
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Tem coisa melhor que ser milionária?– Ser magra.Tem coisa mais importante que encontrar o homem de sua vida?– Ser magra.Tem coisa mais importante que ser feliz?– Ser magra.Tem coisa mais importante que ser magra?– Não ter celulite!!
A preocupação com a beleza faz parte da construção reflexiva do eu e chega a se
sobrepor – com o exagero próprio do humor – a outras possíveis prioridades da vida
feminina. Para atingir o objetivo estético, valem, até, certos sacrifícios, comuns a muitas
mulheres que vão à academia de ginástica:
levantar bem cedo e sair com uma roupa horrível. ... ou ir no meio do dia e ter que ser trocar três vezes. Descobrir que suas colegas estão todas saradas. Pular como uma idiota ao rimo de uma música idem. Sentir no dia seguinte que até os dentes doem. Pagar a matrícula e dez aulas e abandonar no terceiro dia (MAITENA, 2003, v. 3, p. 40).
Maitena também fala sobre
Algumas verdades tão inúteis quanto as dietas
Ter 4 quilos a mais não é terrível. O terrível é que são mal distribuídos!Para seguir bem um regime, tem que ser solteira. Homens e crianças engordam!Estar gorda pode provocar angústia oral. Mas estar de dieta pode provocar... fome!!O mais importante é ser uma boa pessoa. Mas também tem de estar fisicamente bem!Os produtos “diet” nem sempre são confiáveis. O que eles sempre são é repelentes e caros!Há uma coisa mais fácil que seguir uma dieta... Abandoná-la!!
O emagrecimento, o culto ao corpo, assim como a moda e a elegância fazem
parte dos requisitos de inserção do sujeito na modernidade. O discurso midiático –
dentre ele a publicação de Maitena – é um dos modos de, por um lado, extravasar as
angústias femininas e, por outro, de criar e/ou reforçar estereótipos de mulheres do
século atual. O fato de os conflitos femininos virem à tona na mídia faz com que a
(sobre)carga de conflitos pese menos, pois, ao se verem espelhadas em um lugar
comum, as mulheres aliviam suas tensões e podem rir de seus pequenos empecilhos. É
como se dividissem com as amigas ou com outros sujeitos o peso dos problemas
diuturnos.
O humor possibilita que se tenha uma dimensão dos conflitos. Ao exagerarem, as
histórias de Maitena expõem características femininas de modo que as leitoras possam
perceber que, em muitos casos, não necessitariam sofrer por pouco e que aquilo que as
aflige é comum a tantas outras mulheres.
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Em seus “seis velhos truques para dissimular... na praia” (MAITENA, 2003, v. 3,
p. 48), as mulheres conseguem – ou pensam que conseguem – disfarçar os pequenos
problemas do corpo: “a barriga... (ficar deitada). A bunda caída... (a eterna canga). Os
pneus... (ficar de pé, jamais sentada). A celulite... (o bronzeado furioso). As estrias... (o
bronzeador com cor). Os pêlos... (meter-se dentro da água)”.
As estratégias femininas para a conquista da satisfação pessoal nada mais são do
que o esforço para a inserção social na vida moderna. A aceitação do outro passa pela
manutenção do padrão cultural de moda e beleza, na atualidade. No entanto, tudo é
relativo, ou seja, a importância de seguir os padrões sociais pode mudar de acordo com o
tempo e a idade das mulheres. Maitena (2003, v. 2, p. 42) retrata a questão na
sequência a seguir:
O que é a beleza para uma mulher?
Aos 20 anos – ser sarada!Aos 30 anos – ser magra.Aos 40 anos – ser interessante...Aos 50 anos – ser elegante.Aos 60 anos – ser rica!Aos 70 anos – ser saudável!
As exigências sociais intensificam-se a cada dia e talvez devêssemos considerar
que as mulheres estão acumulando necessidades e precisam juntar vários (ou todos os?)
requisitos para se sentirem inseridas no mundo moderno.
Há conflitos no casamento e na separação, com os filhos e com outras mulheres,
grandes amigas ou, muitas vezes, rivais. Por exemplo (MAITENA, 2003, v. 5, p. 70):
Esse comportamento horrível gerado pela inveja das mulheres bonitas
Olhar as modelos... (... para procurar seus defeitos.)4
Desqualificar tudo o que você não tem (... com esse cabelo lambido, esse narizinho sem graça...)Lembrar de algo de seu passado (Tá, é bonita... e bem brega... e uma descarada...!)Se é supermagra (... é bulímica ou anoréxica.)Se tem volume (... está toda operada.)Se é perfeita, a falsa compaixão... (Tsc! Mas coitada, coitadinha...)
As expressões fisionômicas das personagens femininas são interessantíssimas.
Esse é um componente forte dos quadrinhos de Maitena, pois os desenhos, em conjunto
com as frases curtas (ou até em sua ausência), levam a uma interpretação bem
direcionada, que quase explicita os sentidos previstos.
4 A frase inicial é da (suposta) narradora e, entre parênteses, está a fala da personagem feminina.
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Pequenos tormentos domésticos também são representados nas tirinhas, como o
fato de morar em casa com escadas, a indecisão na hora de vestir-se, ou, então, viajar
para a praia com chuva. Há “aquelas coisas que te fazem sentir culpa” (MAITENA, 2003,
v. 5, p. 49), como fumar muito, comer de tudo, beber demais, gastar compulsivamente e
deixar de amar.
Alguns dos principais conflitos femininos são causados pelos companheiros
(especialmente os maridos), portanto, elas teriam “quatro boas razões para jamais se
casar” (MAITENA, 2003, v. 1, p. 47):
Os namorados te levam para jantarOs maridos te fazem cozinharOs namorados se vestem bem só para te verOs maridos ficam bem à vontade quando te vêem (sic)Os namorados telefonam o dia todo...Os maridos nunca estãoOs namorados morrem de desejo...Os maridos morrem de sono
Entretanto a típica representante do perfil feminino costuma, também, segundo
uma sequência de desenhos quase sem palavras (Figura 2), ficar com muita raiva do
companheiro, dizer que nunca mais irá telefonar-lhe, e, à medida que o (pouco) tempo
passa, a ausência dele a deprime, até que ela chega ao desespero e o perdão é a
decorrência aparentemente natural: “Não diga nada. Eu te perdôo.” (sic).
Fig. 2: Maitena, 2003, v. 5, p. 64.
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Na definição do perfil feminino, há seis coisas (dentre tantas outras) que parecem
normais a elas, entretanto podem parecer estranhas e irritantes aos companheiros
(MAITENA, 2003, v. 4, p. 12):
Classificar categoricamente uma pessoa 5 minutos depois de conhecê-la.Pedir roupa emprestada.Ler o horóscopo do homem que nos importa.Interessar-se pelo estado civil das pessoas.Comparar-nos compulsivamente com as outras.Deixar a calcinha pendurada na torneira do chuveiro.
Supomos, assim, que o perfil masculino é exatamente o oposto desse aí descrito,
o que transparece na fisionomia dos homens que as acompanham, além da marcas
dialógicas. Tais questões comuns ao dia a dia feminino podem gerar certo conflito na
convivência do casal, assim como o que expomos a seguir, que, no mínimo, traz
insatisfação às mulheres, devido às aparentes contradições marcadas nas situações.
Vejamos (MAITENA, 2003, v. 4, p. 13):
Seis típicas coisas típicas
Deixar de ir ao cinema para “ver o filme juntos”... e não vê-lo nunca.Levar na carteira fotos de seus entes queridos... de mil anos atrás.Sentir medo quando aparece o cobrador... com o bilhete na mão.Lembrar que emprestou algo... bem na hora em que é necessário.Anotar um telefone num papelzinho... e jamais saber de quem é.Aturar a dieta o dia todo... e às sete comer de tudo em um ataque incontrolável de fome.
Há, na vida das mulheres, pequenos conflitos domésticos que as deixam
“alteradas”, segundo os quadrinhos de Maitena. Dentre tantos, as “pequenas tragédias
domésticas que eletrizam seus nervos...!“ (MAITENA, 2003, v. 3, p. 65) podem ser:
A luz é cortada com o freezer cheio.Os eletrodomésticos pifam um dia depois de a garantia vencer.A tevê a cabo sai do ar na metade do filme.As tomadas das paredes nunca coincidem com as dos fios.Quando vai trocar uma lâmpada, a rosca quebra dentro do soquete.Ligar algo de 110 em 220.
A leitura de tais histórias pode dar a dimensão das questões de gênero,
principalmente quando o feminino é retratado de forma simples, clara, franca, próxima
do real e bem humorada. Compreender os pequenos episódios diários traz alívio à alma
feminina, faz bem ao ego sentir-se representada e, em nível discursivo, ao menos,
enxergar seu espaço. Apesar da ironia de muitos quadrinhos, eles mostram que alguém
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(Maitena?) percebeu como se constitui a feminilidade e destacam pequenos detalhes da
construção da identidade feminina. Expor os anseios, as angústias, os medos, as
alegrias, as conquistas e outras características femininas leva os leitores a
compreenderem um pouco mais a vida em sociedade, a se compreenderem e a
valorizarem o outro.
Ao responder à questão “o que você quer ser quando crescer?”, as jovens
responderiam (MAITENA, 2003, v. 1, p. 75):
1940: mãe1950: professora1960: astronauta1970: presidente1980: milionária1990: solteira
Em cinquenta anos, as transformações foram significativas, sobretudo a partir dos
anos 1960, quando os movimentos feministas trouxeram a possibilidade de as mulheres
externarem sua revolta contra a submissão em relação aos homens. Se Maitena
completasse com mais duas décadas – 2000 e 2010 – algo deveria mudar, ainda, mas
manteremos a curiosidade sobre a palavra-chave que escolheria.
Os quadros década a década são ilustrados adequadamente: em 1940, com a
menina meiga, embalando uma boneca, brincado de casinha, alimentando seu grande –
e único – sonho possível e permitido pela sociedade vigente; em 1950, sorridente, já
pode trabalhar fora, desde que em profissões adequadas ao mundo feminino. Uma
extensão da vocação de mãe, ser professora passa a ser a meta das garotas da época;
em 1960, justamente o momento da mais radical das transformações, a personagem de
Maitena aparece dentro de um tanque ou banheira, com uma panela enterrada na cabeça
– outra função para as panelas – e com ares de traquinagem ou forma de protesto; em
1970, almejando a conquista do poder (masculino), a jovem quer a posição máxima do
país – ser presidente –, com o dedo em riste, dando ordens, sobre um banquinho
caseiro, que lhe dá altura para impor sua vontade. Em uma das mãos, um utensílio de
cozinha, a escumadeira, adquire função de bastão; em 1980, tudo muda. A jovem quer
ser milionária, valoriza o dinheiro, descansa em uma toalha de piscina, vestindo maiô, à
frente de um ventilador, com óculos e uma bebida ao lado. Não luta mais por um “lugar
ao sol”, pois já o tem; em 1990, não precisa mais de um marido – o que pressupõe que,
na sequência anterior, o casamento fazia parte do imaginário feminino. Agora corre solta,
alegre, na velocidade de seus patins, de braços abertos, para tomar conta de seu
destino.
As mulheres, ao longo do tempo, passaram a dar menor importância ao
casamento tradicional e a um relacionamento estável com o sexo oposto. Os valores
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sociais mudaram. Devemos considerar que os quadrinhos foram produzidos na década de
1990. Há vinte anos, já se percebiam os novos rumos da sociedade e as novas regras
comportamentais. Ainda assim, a leitura, hoje, provoca o riso nos leitores das gerações
que vivenciaram as situações ali reproduzidas. Talvez os leitores muito jovens não
percebam muitos dos sentidos ali presentes, ou não sintam os mesmos efeitos de sentido
que os leitores da geração da autora de Mulheres Alteradas. Muitas características dos
gêneros ou das relações entre eles, entretanto, ultrapassam as barreiras do tempo e
perduram.
Os quadrinhos de Maitena expõem, criticamente, as diferenças no papel feminino
ao longo das décadas do século XX. Vale à pena reproduzir, aqui, nas palavras dela(s),
as alterações de “1922 – De como o ‘anjo’ da casa se transformou... na ‘bruxa’ da família
– 1997” (MAITENA, 2003, v. 3, p. 76-77):
• Em 1920, nós, mulheres, só estávamos ansiosas por uma paixão...• Em 1930, nós, mulheres, só estávamos ansiosas por uma paixão... e obcecadas
por conseguir um bom marido...!• Em 1940, nós, mulheres, só estávamos ansiosas por uma paixão, obcecadas por
conseguir um bom marido... e preocupadas em ser boas mães...!• Em 1950, nós, mulheres, só estávamos ansiosas por uma paixão, obcecadas por
conseguir um bom marido, preocupadas em ser boas mães... e inquietas por estudar alguma coisa útil...!
• Em 1960, nós, mulheres, só estávamos ansiosas por uma paixão, obcecadas por conseguir um bom marido, preocupadas em ser boas mães, inquietas por estudar alguma coisa útil... e transtornadas para participar de coisas interessantes!
• Em 1970, nós, mulheres, só estávamos ansiosas por uma paixão, obcecadas por conseguir um bom marido, preocupadas em ser boas mães, inquietas por estudar alguma coisa útil, transtornadas para participar de coisas interessantes... e culpadas por trabalharmos fora...!
• Em 1980, nós, mulheres, só estávamos ansiosas por uma paixão, obcecadas por conseguir um bom marido, preocupadas em ser boas mães, inquietas por estudar alguma coisa útil, transtornadas para participar de coisas interessantes, culpadas por trabalharmos fora... e estressadas por exigir-nos conquistas profissionais!!
• Em 1990, nós, mulheres, só estávamos ansiosas por uma paixão, obcecadas por conseguir um bom marido, preocupadas em ser boas mães, inquietas por estudar alguma coisa útil, transtornadas para participar de coisas interessantes, culpadas por trabalharmos fora... estressadas por exigir-nos conquistas profissionais... e desesperadas para nos vermos jovens, magras e sem celulite!!
As tiras dividem-se em duas páginas e apresentam as mudanças ocorridas na vida
e no contexto familiar das mulheres, ao longo do século XX. Chamam a atenção os
vocábulos “anjo” e “bruxa”, do título dos quadrinhos, pois pressupõem uma mudança
radical, chegando a um destino oposto ao do início e, pior, disfórico na avaliação do que
entendemos como aceitável socialmente. Os afazeres domésticos, as atribuições que
tiveram que absorver nos últimos tempos e as responsabilidades femininas aumentaram
no transcorrer das décadas, sem que as mulheres deixassem de assumir os encargos
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
anteriores. O acúmulo de funções, de que tanto ouvimos falar, está retratado nessas
páginas. Nelas não aparece o companheiro dividindo o trabalho doméstico, mas em
outras, de outro volume, sim.
A respeito dos desenhos,
cada cena está “emoldurada” em fotografias, que também evoluíram, em qualidade e tecnologia, no decorrer do século XX. Na primeira cena, por exemplo, há uma fotografia antiga – a foto está em preto e branco e encontra-se “amarelada” pelo tempo – data a década de 20, provavelmente tal foto fora feita por um lambe-lambe... Já na penúltima cena, vemos uma foto colorida e, possivelmente, do tipo instantânea, pois a moldura refere-se às fotos tiradas por máquinas com revelação instantânea, como a Polaroid, por exemplo, que tiveram sua “estréia” no mercado consumidor na década de 80, a mesma datada na cena em questão por Maitena5.
O volume 4, com muita graça, mostra que, em 70 anos, as mulheres se
transformaram bastante, deixaram de ser submissas, mas perderam alguma coisa nesse
tempo, visto que as expressões fisionômicas das personagens, no início, eram tranquilas
e, ao final, são desgastadas, cansadas de tantos compromissos assumidos, sufocadas
pelo acúmulo de obrigações. Os desenhos retratam a moda de cada época e as falas e
expressões fisionômicas indicam os desejos, as aspirações. Percebe-se, aí, a crise de
identidade instaurada, nas últimas décadas.
O título “De que nós, mulheres, fomos acusadas em cada década?”, pressupõe
que elas foram submetidas à avaliação da sociedade e acusadas de algo. Seguem as
falas do(a) narrador(a) e das personagens (MAITENA, 2003, v. 4, p. 93):
1920: de frívolas (Quero ir a Paris dançar Fox-trot!)1930: de sentimentais (Quero um marido romântico... e filhinhos carinhosos!)1940: de frágeis (... Não quero saber... e quero uma aspirina, por favor!)1950: de consumistas (Quero uma máquina de lavar! E um liquidificador! E um
toca-discos! E um carro!)1960: de histéricas (Quero ser livre! Livre!!)1970: de incompreendidas (Quero me sentir realizada... Entende...?)1980: de insatisfeitas (... Não sei o que quero...)1990: de alteradas (Quero parar...! Mas não posso...!)
Os quadrinhos fazem uma análise dos desejos e das angústias femininas, de modo
bem humorado. Certamente, as exceções acompanham toda regra, mas há que se
reconhecer a perspicácia de Maitena ao retratar a essência feminina, resumida em uma
palavra, apenas. É por isso que “qualquer mulher, dos 15 aos 80 anos, esteja no Brasil,
na Argentina ou no Japão, vai se identificar com as desconfortáveis situações criadas por
Maitena em seus quadrinhos” (Jornal do Brasil, em MAITENA, 2003, v. 5, contracapa).
5 Tese defendida na PUC-RJ, publicada em http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0310751_05_cap_05.pdf. Acesso em 25/09/2009.
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Nos volumes 3 e 4 de Mulheres Alteradas, há, nas páginas finais, quadros que
resumem a transformação feminina durante décadas. Uma espécie de auto-avaliação, de
um exame de consciência ou uma constatação de que seu papel mudou. Ao mesmo
tempo em que o mundo mudou e o papel das mulheres sofreu grandes alterações,
muitas características do passado estão presentes na vida delas.
Os resultados desta pesquisa apontaram alguns dos caminhos da construção da
identidade feminina, mostraram como os veículos midiáticos têm representado as
relações de gênero e possibilitaram a reflexão sobre os efeitos do discurso humorístico
nos leitores da atualidade. Os conteúdos das histórias contadas nos quadrinhos de
Maitena produzem um efeito sobre os leitores e as imagens construídas dependem de
outras construídas anteriormente pela mídia ou de imagens que povoam o imaginário
coletivo. Há uma relação entre o interdiscurso e o intradiscurso, isto é, entre o já-dito e o
que se está dizendo em dado momento. É nessa relação que se produzem os sentidos
que buscamos perceber sobre a relação entre os homens e as mulheres da atualidade e
sobre a construção da identidade feminina.
Referências bibliográficas
CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso.
Coordenação da tradução de Fabiana Komesu. São Paulo: Contexto, 2004.
FIGUEIREDO, Débora de Carvalho. Discurso, corpo e identidade: a construção de
identidades femininas nas revistas Boa Forma e Corpo a Corpo.
MOTTA-ROTH, D.; CABAÑAS, G. R.; HENDGES, G. R. (orgs.) Análises de textos e de
discursos: relações entre teorias e práticas. 2. Ed., Santa Maria, RS: PPGL-UFSM, 2008,
p. 173-197.
PIRES, Vera Lúcia e GIACOMELLI, Karina. Reflexões sobre gênero social sob uma
perspectiva dialógica.
Material analisado (corpus)
MAITENA. Mulheres Alteradas 1. Tradução de Ryta Vinagre. ROCCO: Rio de Janeiro,
2003, v. 1, 79 p.
MAITENA. Mulheres Alteradas 2. Tradução de Ryta Vinagre. ROCCO: Rio de Janeiro,
2003, v. 2, 79 p.
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
MAITENA. Mulheres Alteradas 3: use com cuidado. Tradução de Ryta Vinagre. ROCCO:
Rio de Janeiro, 2003, v. 3, 79 p.
MAITENA. Mulheres Alteradas 4: medida justa. Tradução de Ryta Vinagre. ROCCO: Rio de
Janeiro, 2003, v. 4, 95 p.
MAITENA. Mulheres Alteradas 5. Tradução de Ryta Vinagre. ROCCO: Rio de Janeiro,
2003, v. 5, 95 p.