MULHERES DE TERREIRO E SAÚDE - O ACESSO DE MULHERES DE
TERREIRO AOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE
Elisabete Vitorino Vieira1
Gracila Graciema de Medeiros2
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo analisar o processo de cuidado em saúde de
mulheres de terreiro, compreendendo o trajeto realizado por mulheres na busca pelo
cuidado em saúde dos serviços público de saúde aos terreiros. A problemática
apresentada decorre da compreensão do terreiro, como espaço de construção de cuidado
em saúde, considerando que o espaço religioso é também espaço de produção de saúde
e que esse aspecto permeia o cotidiano das adeptas. A pesquisa é do tipo quali-
quantitativa, a metodologia utilizada fez uso de um levantamento bibliográfico assim
como o uso de questionário semiestruturado de entrevista. Consideramos que as
vivências religiosas têm contribuído para a construção da produção de saúde e como os
serviços públicos de saúde não abordam a relação com o sagrado ancestral na busca
pelo cuidado em saúde. Nesse sentido, compreende-se que o processo de saúde/doença
das mulheres adeptas de religiões de Terreiros compreende a vivência religiosa como
parte dessa busca.
PALAVRAS-CHAVE: Mulher de Terreiro; Religiões de Matriz Africana; Saúde
Pública.
ABSTRACT
The objective of this study is to analyze the health care process of Candomble house's
women, including the path taken by women in the search for health care in public health
services to Candomble house. The problem presented stems from the understanding of
the yard, as a health care building space, whereas the religious space is also health
production space and that this aspect permeates the daily lives of devotees. The research
is the qualitative and quantitative type, methodology made use of a literature review as
well as the use of a semi-structured interview questionnaire. We consider that religious
experiences have contributed to the construction of health care production and that
public health services do not address the relationship with the sacred ancestor in the
search for health care. In this sense, it is understood that the health / illness process of
women adherents of religions of Candomble house understands the religious experience
as part of this search.
1Assistente Social e Mestra em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba. Yawo no Ilê Axé
Odé Tá Ofá Si Iná. E-mail: [email protected]. 2Mestra em Sociologia e Doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba. Ekedy no Ilê
Axé Odé Tá Ofa Si Iná. E-mail: [email protected].
KEYWORDS: Candomble house's women; African Matrix Religions; Public health.
INTRODUÇÃO
O presente estudo consiste em uma investigação sobre o acesso das mulheres de
Terreiro aos serviços públicos de saúde e a relação com a terapêutica religiosa
existentes em suas casas de axé, compreendendo o conjunto de práticas e estratégias de
cuidado adotadas ao corpo físico e mental, englobando a motivação que direciona
nessas buscas associado ao contexto social, econômico, cultural e religioso.
Nosso interesse pela temática teve início por meio da nossa inserção e adesão ao
Candomblé. Iniciamos nosso processo de inserção no Candomblé no ano de 2011, a
partir do primeiro jogo de búzios, ebós, lavagem dos fios de contas e bori. Esse período
compreendido como abianato compreende um “estágio anterior a iniciação, tendo
concorrido somente os ritos iniciais”. (CARNEIRO, p. 116). é muito importante para
termos um conhecimento sobre a representatividade do candomblé. Atualmente, já
passamos pelo rito de iniciação e assumimos funções litúrgicas diferentes dentro do
espaço do Terreiro.
Dessa forma, o presente estudo compreende a articulação das vivências
acadêmicas e religiosas, considerando que os percursos que as mulheres de Terreiro
realizam na busca pelo cuidado em saúde, inclui também os serviços
institucionalizados, como também os espaços dos terreiros e esses se apresentam por
vezes como espaços terapêuticos em que os fiéis encontram acolhimento, apoio e a não
discriminação por ter transtornos mentais.
Portanto, o presente estudo se caracteriza pela relevância dada a experiência de
sistematização dos conhecimentos acerca dos processos de saúde e doença, sendo esses
um dos conceitos centrais para os estudos sócio-antropológicos, possibilitando o
aprimoramento do mesmo a partir da relação com a cosmovisão mítica da religião.
1. Por que estudar saúde nos Terreiros?
O tema da saúde perpassa o cotidiano dos terreiros de Candomblé e de seus
adeptos. Isso porque historicamente, os terreiros de Candomblé se revelam como
espaços de de acolhimento, apoio e conforto nos momentos em que os sujeitos se
encontram enfermos. Mandarino (2012) afirma que os terreiros desenvolvem diversas
atividades voltadas para a atenção à saúde, mesmo existindo uma gama de problemas
físicos e mentais, os adeptos recorrem a esses espaços, em momentos distintos do trato
das doenças.
Nesse sentido, a saúde dentro do espaço do terreiro aparece em todos os rituais
desenvolvidos e determinados pelo Axé. Na cosmovisão africana, o Axé é o que
preconiza e move todas atividades desenvolvidas dentro do terreiro de Candomblé,
desse modo ter saúde física e mental é ter Axé. Para Santos (2008, p. 39), o Axé “é a
força que assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer e o devir.” Assim, os
terreiros de Candomblé e seus adeptos são portadores desse princípio dinâmico, Axé,
entendendo-se que na sociedade de santo e a ausência desse princípio é o causador dos
males físicos, mentais e espirituais que acometem os seres humanos.
Para os adeptos do Candomblé sem o Axé – a força vital – nada se faz, ou se
alcança e a busca pela saúde é uma constante nesses lugares está entre as coisas mais
buscada pelos adeptos. Isso se identifica por meio das rezas, cantigas, alimentação e nos
mais diversos ritos existentes. Vejamos na cantiga, oriki, para o orixá Omolu,
considerado aquele capaz de afastar as doenças e proporcionar a cura.
Oníle wà àwa lésè Òrisà opé ire.
E kòlòbó sín sín Sín sín kòlòbó e kòlòbó.
E kòlòbó sín sín sín sín kòlòbó.
O Senhor da Terra está entre nós que cultuamos Orixá.
Agradecemos felizes pelo Senhor da Terra estar entre nós que cultuamos Orixá, agradecemos felizes.
Em sua pequena cabaça ele traz encantamento para livrar-nos das doenças. (OLIVEIRA, 2002, p. 76-77).
Na cantiga acima, Omulu é referenciado como Senhor da Terra, nota-se a
referência ao livramento das doenças, sendo, como já afirmamos, esse um dos campos
de atuação deste Orixá, o qual sempre é evocado nas ritualística para preservar, trazer a
cura para determinada de doença, enfim sempre atrair à saúde aos adeptos da
religiosidade. No Candomblé, a terapêutica em saúde utilizada tende a buscar o
reordenamento do equilíbrio, visto que a doença sempre causa um desequilíbrio na força
vital dos indivíduos.
Na cantiga, nota-se a referência ao afastamento das doenças, sendo esse um dos
campos de atuação do orixá Omolu, sempre evocado nos diversos rituais para conservar
ou atrair à saúde aos sujeitos, que diante a este fato recorrem aos terreiros de candomblé
aderindo a inúmeros ritos para o seu pronto restabelecimento. Muitas das vezes estes
sujeitos vêm de um longo percurso de tratamento e encontram nos terreiros de
Candomblé, a terapêutica utilizada tende a buscar o reordenamento do equilíbrio, visto
que a doença causou um desequilíbrio na força vital dos indivíduos.
A retomada do equilíbrio mostra que ter saúde é compreender
multidimensionalidade da doença e que a ausência de saúde causa diversos infortúnios
ao adepto, que recorre aos terreiros aderindo a inúmeros ritos para o restabelecimento de
sua saúde, muitas vezes vêm de um longo percurso terapêutico e encontra nos terreiros
de Candomblé a oferta de uma terapêutica de construção e reconstrução dos processos
de saúde e doença. (PORTUGAL, 2016).
Por isso, o entendimento dos impactos que o tratamento religioso tem na vida
dos adeptos e os percursos feitos por esses adeptos ao longo do tratamento,
classificando nessa busca as soluções encontradas para suas aflições é imprescindível
para o nosso estudo.
2. Candomblé – uma religião do cuidado
O Candomblé é uma manifestação religiosa proveniente das múltiplas etnias
africanas que, a partir do século XVI, foram trazidas para o Brasil, no contexto de
escravidão. E somente no século XVIII que esta designação vai ser institucionalizada e
espacialmente localizados.
No campo dos estudos afro-brasileiro, há sempre a tendência de se
fazer com que uma pesquisa seja ajustada a uma teoria preconcebida.
Há ainda a tendência de se supor alguma coisa como verdade sem ter
sido feita uma investigação adequada. E isso diz respeito àqueles que estudam os costumes e a ciência de povos que vivem em mundos e
idéias e crenças diferentes daquele em que foram educados. O mesmo
ocorre com o que chama a “parte de dentro de um Candomblé.” Para entendê-la é necessário ir a esse povo, encontrá-lo, vê-lo como
realmente é; entrar solidariamente em seus sentidos para saber o que
pensa, e não o que achamos que esse povo deveria pensar e crer..
(BENISTE, 2006, p. 20).
Na afirmação de Beniste (2006), as pesquisas desenvolvidas sobre o universo
religioso do Candomblé tendem a levar teorias para aplicar ao universo mítico-religioso,
o que, por vezes, desconsidera as vivências e saberes próprios daquele grupo religioso,
como estes lidam com diversos da vida, como a saúde e a doença, as estratégias
adotadas para superação dos adoecimentos físicos e mentais. É nesse contexto que o
presente o estudo se apresenta de abordar os percursos terapêuticos de adeptos de
Candomblé com histórico de transtornos mentais, conhecendo como se deu os primeiros
contatos com a religião e suas permanências nos terreiros.
Para tanto, faz-se necessário afirmar que o Candomblé é o resultado histórico,
social e político da população negra brasileira, em que por mais de três séculos seus
adeptos foram obrigados a se esconder e viver na marginalidade dos processos de
sociabilidade dos brasileiros. Apenas no final da década de 1970, o Candomblé sai da
marginalização, ganhando espaço na sociedade brasileira através da ação política do
movimento negro (OLIVEIRA et al, 2011).
O processo de redemocratização do país foi bastante favorável para que o
Candomblé ganhasse visibilidade, levando as pessoas a tomarem um maior
conhecimento desta religiosidade, tornando-se adeptos bem como, os indivíduos que até
então vivenciavam esta religiosidade assumissem estes espaços publicamente, como é
caso de várias figuras públicas do cenário nacional como artistas, esportistas e políticos.
A adesão [ao candomblé] se dá por aproximação mágica e ritual ou
por afinidade pessoal, e é extremamente personalizada. Aos poucos o
novo aderente vai mergulhando num ritualismo complexo e, quando se dá conta, está comprando roupas em estilo africano, aprendendo
uma língua africana, ensaiando uma coreografia de ritmos de origem
africana (PRANDI, 2004, p. 166).
O processo de adesão ao Candomblé, destacado por Prandi (2004), mostra que
ser do Candomblé é um processo que impacta no cotidiano dos sujeitos, modificando
sua rotina, sua visão de mundo e suas concepções sobre a vida, a morte, saúde e doença.
Essas transformações agem no processo de afirmação de uma identidade implicando o
resgate de valores, ideias e expressões e concepções de mundo.
É nesse contexto que os terreiros de Candomblé mostram sua importância,
quando se apresentam como locais de resistência e manutenção da identidade negra,
através das rezas, cantigas, culinária e ritualística. É através dessas atividades que os
adeptos constroem e desenvolvem os cuidados com a saúde através das regras e valores
próprios da cosmovisão africana.
No terreiro, trabalha-se com uma concepção de saúde que é pensada e
produzida na relação entre o simbólico e o concreto, o natural e o tecnológico, o mítico e o empírico que se complementam e constituem
o sentido de integralidade vivido nessa comunidade. (ALVES.
SEMINOTTI, 2009, p. 88).
Partindo da afirmação de Alves e Seminotti (2009), é importante para nós esse
estudo, pois a análise de como os adeptos se utilizam dessa concepção de saúde, de
como a apreendem relacionando o mundo físico e o mundo espiritual para o cuidado
com seu corpo físico e mental, por meio da investigação dos itinerários terapêuticos,
compondo à rememoração de eventos e a experiências anteriores que são evocadas,
reorganizadas e ressignificada, se faz imprescindível.
Para Alves (2015), esses aspectos formam redes de acolhimento, apoio e cuidado
em saúde, sendo essas redes construídas pelos próprios indivíduos ao longo da sua
itinerância pela busca do cuidado ao corpo físico e mental, concebendo eles mesmos os
sentidos e significados de saúde e doença.
3. Mulheres de Terreiro e o acesso aos serviços públicos de saúde
O debate sobre a presença das mulheres nos Terreiros atravessa os séculos e
permeia os diversos estudos já existentes, para fins de análise nesse estudo resgatamos a
importância de ter uma perspectiva a partir do pensamento africana sobre a importância
das mulheres nos mais diversos espaços.
Paradójicamente, a pesar del hecho de que en el pensamiento europeo
se ha visto a la sociedad constituida por cuerpos, solamente se percibe
como encarnadas a las mujeres; los hombres no tienen cuerpos –son mentes andantes–. (OYĚWÙMÍ, 2017, p. 45).
Segundo Oyěwùmí (2017), a sociedade ocidental dividiu a humanidade pelo seu
aspecto biológico, considerando o corpo como o principal elemento de diferenciação
entre os seres. Só que a referida autora tece uma crítica que mesmo com essa divisão
biológica declarada o ocidente conseguiu algo ainda mais cruel – deu as mulheres um
corpo enquanto os homens são mentes – capazes, portanto, de criarem, evoluírem e
serem reconhecidos como humanos.
É a partir dessa crítica que iniciaremos o presente tópico que visa apresentar
como mulheres de Terreiros localizados em João Pessoa/PB e Salvador/BA realizam o
cuidado em saúde relacionando a terapêutica religiosa com os tratamentos
institucionalizados pelos serviços públicos de saúde.
Se a principal divisão colocada entre homens e mulheres, na perspectiva
ocidental, é o aspecto biológico – o corpo. Nas sociedades africanas, de modo particular
para fins desse estudo, a sociedade Yorubá, essa divisão biológica não é relevante, como
nos afirma Oyěwùmí (2017):
En el mundo Yorùbá, particularmente en la cultura Òyó ̣ anterior al
siglo diecinueve, la sociedad se concibió constituida por personas relacionadas entre sí. Esto es, el “carácter físico” de la masculinidad o
la femineidad no tenía precedentes sociales y por eso no constituían
categorías sociales. La jerarquía social estuvo definida por relaciones
sociales. [...] El principio que determinó la organización social fue la senioridad, la cual se basaba en la edad cronológica. Los términos
Yorùbá del parentesco no indican género y ninguna otra categoría
social tuvo especificidad de género. Lo que dichas categorías nos dicen es que el cuerpo no siempre está a la vista ni visible para la
categorización. El clásico ejemplo es la hembra que desempeña los
papeles de ọba (gobernante), ọmọ (retoño), ọkọ, aya, ìyá (madre) y
aláwo (adivinadora-sacerdotisa), todos en un solo cuerpo. (Oyěwùmí,
2017. p. 56).
A afirmação de Oyěwùmí (2017), ressalta que as mulheres na sociedade Yorubá
exercem funções sociais que vão de encontro a lógica ocidental do gênero, visto que
para os Yorubá as relações sociais não estão determinadas pelo aspecto biológico – o
corpo, mas pelas relações socioeconômicas, políticas e religiosas.
A partir disso, em nossa análise sobre as mulheres de Terreiro no Brasil, vamos
encontrar mulheres exercendo diferentes atividades, não apenas de adeptas, o delineia o
perfil das interlocutoras, como contribui também para entendimento que essas têm sobre
a relação entre a terapêutica religiosa e o atendimento encontrado nos serviços públicos
de saúde.
3.1 – Identificação das interlocutoras
Para fins das coletas de dados foi utilizado questionário semiestruturado,
valendo-se dos critérios de inclusão foram ser adepta de religiões de matriz africana
com o mínimo de 6 meses de relação com o terreiro e ter idade mínima de 18 anos. As
entrevistas foram realizadas com 05 mulheres adeptas do Candomblé de nações Ketu e
Angola, residentes em João Pessoa/PB, Recife/PE e Salvador/BA. Ressaltamos que
todos os nomes apresentados são fictícios de modo a preservar a identidade das
interlocutoras. São elas:
1 – Ekedy Júlia – 30 anos, adepta há 9 anos, nação Ketu, residente em Recife/PE.
2 – Ekedy Joana – 37 anos, adepta há 12 anos, nação Ketu, residente em Salvador/BA.
3 – Ekedy Nádia – 31 anos, adepta há 8 anos, nação Ketu, residente em João Pessoa/PB.
4 – Abian Gerusa –36 anos, adepta há 7 anos, nação Angola, residente em Salvador/BA.
5 – Abian Fátima- 22 anos, adepta há 1 ano, nação Ketu, residente em Recife/PE.
As interlocutoras representam níveis diferentes na hierarquia do Candomblé
tanto na nação Ketu quanto na nação Angola, a abian é aquela que não ainda não passou
pelo rito da iniciação enquanto as ekedy são aquelas que já passaram pelo rito iniciático
e não manifestam a energia do orixá. Segundo Carneiro (1977), as ekedy são aquelas
escolhidas pelos orixás para cuidar dos membros do Terreiro que entram em transe,
exercem assim uma função de cuidado.
Aqui vamos destacar a importância do transe como marcador de diferenciação
entre as interlocutoras, considerando dentro do rito e no cotidiano o transe contribui não
apenas para diferenciá-las, mas também como um elemento que contribuirá para a busca
pela terapêutica religiosa.
[...] a conexão do transe com estruturas sociais mais inclusivas não pode ser feita de modo direto e imediato, sendo preciso levar em
consideração as possíveis mediações oferecidas pela estrutura do culto
em que ele se processa. (GOLDMAN, 1985, p. 29).
Para Goldman (1985), o transe é um fato social e como tal ele não deve ponto de
partida, mas ponto de partida para analisar não somente a estrutura hierárquica nos
Terreiros, mas também as relações sociais dentro e fora dos Terreiros, entendendo que o
transe compreende as diversas relações que atravessam os Terreiros e o cotidiano dos
seus adeptos.
3.2 – A fala das interlocutoras sobre os serviços públicos de saúde e a relação com
terapêutica religiosa.
Este item apresenta as respostas das interlocutoras quando questionadas sobre se
os serviços públicos de saúde estão preparados para compreender, lidar e abordar a
relação com o sagrado ancestral na prática do cuidado em saúde, considerando que as
diferenças socioeconômicas, políticas e geográficas em que estão inseridas.
Vamos iniciar pela fala da ekedy Júlia:
Embora existam ações para minimizar os problemas decorrentes do racismo institucional, cujas diretrizes são determinadas pela Política
Nacional de Saúde Integral da População Negra, ainda há muito a se
caminhar no que diz respeito à compreensão do que sejam essas práticas de sabedoria ancestral afro-indígena no cuidado em saúde. Na
nossa crença, existem problemas de saúde que não são resolvidos com
inserção de tratamentos farmacológicos, físicos ou cirúrgicos, pois
estão ligados às questões espirituais e que, consequentemente, afetam a matéria orgânica do indivíduo. Esse saber ancestral muitas vezes não
é considerado como parte de um processo de cuidado. No sistema de
saúde convencional tudo muito técnico, mecanicista e generalizado.
(Júlia, 30 anos).
Na frase da ekedy Júlia identificamos que mesmo com a existência de políticas
nacionais que visam atender as especificidades das populações e povos tradicionais, no
cotidiano dos serviços de saúde a materialização dessas práticas não se efetiva, devido o
distanciamento entre as práticas de cuidado em saúde não compreenderem aspectos
mítico-religiosos, como os chamados infortúnios espirituais que desde o período do
Brasil colônia vem sendo desenvolvidas pelos chamados “calundus”.
Entre as práticas de cura havia, por um lado, atividades apenas
preventivas – como a elaboração de amuletos e bolsas de mandinga –, outras propriamente terapêuticas – envolvendo a elaboração de
remédios [...]. Técnicas como o sopro, a sucção, esfregas ou outras
formas para expulsar do corpo os espíritos malignos considerados
como as causas da doença. (PARÉS, 2007, p. 113).
Observamos na citação de Parés (2007) que a busca por práticas de cuidado com
o corpo físico já considerava os aspectos espirituais e eram exercidas pelas
calunduzeiras ou madingueiras, no período do Brasil colônia e que algumas dessas
práticas se estende até os dias atuais nos Terreiros de Candomblé por esses serem
espaços de valorização das necessidades espirituais dos humanos.
Do mesmo modo, a abian Fátima corrobora com o que a já foi mencionado pela
ekedy Júlia, no que concerne ao atendimento nos serviços públicos de saúde estão
preparados para compreender, lidar e abordar a relação com o sagrado ancestral:
Óbvio que não. Mas também é óbvio que os terreiros exerceram e
exercem uma função ímpar neste quesito em lugares onde a medicina
não alcança. Falando pessoalmente, prefiro mil vezes tomar um chá mandado pelo caboclo do que me encher de remédio. (Fátima, 22
anos).
A demonstração dos Terreiros como espaços privilegiados para o
desenvolvimento de uma terapêutica que não é encontrada nos serviços públicos de
saúde é uma frequente entre os adeptos. Isso porque como nos afirma Goldman (1985)
não é apenas no momento do rito que os orixás influenciam os homens, mas que na sua
vida, nas suas estruturas psíquicas, o homem todo inteiro simboliza o divino, a
influência da religiosidade não é apenas no momento do rito, mas no seu cotidiano.
Quando questionadas sobre como o Terreiro contribui para o seu cuidado em
saúde, obtivemos as seguintes respostas das interlocutoras:
Colabora no sentido de ampliar minha percepção de existência para
além do corpo material, cuidar da matéria é também uma forma de cuidar dos ancestrais e dos seres imateriais que nos acompanham.
(Gerusa, 36 anos).
Na fala de Gerusa os Terreiros o aspecto de cuidar do corpo físico e material é
algo indissociável para a manutenção dos Terreiros enquanto espaços que beneficiam o
bem estar físico, mental e espiritual, da mesma forma as ekedy Nádia e Joana acreditam
que os Terreiros são espaços de cuidado em saúde:
Para mim o espaço terreiro e toda sua ritualista contribuem para a
promoção da saúde integral do indivíduo. Não a toa passamos por momentos de consulta, onde é identificado toda necessidade e passado
o “tratamento; processo de rituais onde o cliente ou filha de Santo
passará para curar-se de seus males (através de limpezas, banhos, ebos, bori). (Joana, 37 anos).
Sim, vou compreender saúde como saúde do corpo físico. Pois, a
saúde espiritual, nós de fato escolhemos o terreiro como espaço de cuidado. Mas em termo de saúde do corpo, eu vejo esse cuidado nas
ervas que aprendi para tratar minhas enfermidades. Como junça,
sucupira e canela de velho para problemas nos ossos e inflamação nas articulações. Ou quando buscamos uma garrafada para inflamação
uterina. Existe outra lógica de cuidado com o corpo físico que
aprendemos no terreiro. (Nádia, 31 anos).
Nas falas das ekedy Joana (37 anos) e Nádia (31 anos), a presença da
religiosidade está no cotidiano com cuidado em saúde através das ervas e garrafadas, o
que assegura a manutenção do corpo físico, visto que este é onde reside os orixás e por
isso deve ser preservado através de banhos e limpezas. Assim, como afirma Santos
(2008), para que o Axé prevaleça e livre a todos do infortúnio, da doença e da morte,
garantindo vida longa e a realização do destino individual de cada um.
Com isso, analisamos que os Terreiros tem se mantido, historicamente, como
espaços de cuidado em saúde física, mental e espiritual ao mesmo tempo em que os
serviços públicos de saúde estão longe de compreenderem as necessidades postas pelas
pessoas de Terreiros.
Considerações
A preocupação em investigar o acesso de mulheres de Terreiro aos serviços
públicos de saúde nasceu das nossas indagações pessoais sobre o processo de busca pelo
cuidado em saúde física, mental e espiritual. Como mulheres de Terreiro, temos nos
deparado como inúmeras questões que atravessam não apenas nossa vida religiosa, mas
também nossa vida secular, sendo a saúde apenas uma delas.
Este trabalho se apresenta como um esforço inicial por compreender como os
Terreiros têm se mantido ao longo dos séculos como referência para seus adeptos e em
muitos casos para a população que está a sua volta, como espaço onde se exerce práticas
de cuidado em saúde e como em contraponto os serviços públicos de saúde se
apresentam como espaços que ainda não reconhecem as especificidades do povo de
Terreiro.
Para nossas interlocutoras ser mulher de Terreiro na busca pelo cuidado em
saúde nos serviços públicos é articular as práticas terapêuticas encontradas no Terreiro
com as práticas cotidianas, sendo que muitas delas não são reconhecidas pelos serviços
convencionais de saúde, o que é sim um problema social e que necessita ser cada vez
mais debatido.
Portanto, o presente trabalho se propõe a subsidiar as pesquisas mulheres de
Terreiro, processos de saúde e doença, considerando as especificidades das
interlocutoras no que concerne aos aspectos socioeconômicos, políticos e geográficos, a
partir de uma perspectiva de reconhecimento da importância histórica dos Terreiros no
trato da saúde dos adeptos e não adeptos.
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