UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Instituto de Geociências Departamento de Geografia
ROGÉRIO BEZERRA DA SILVA
NEUTRALIDADE E DETERMINISMO NA CIÊNCIA GEOGRÁFICA: ANÁLISE DE ELEMENTOS DAS CORRENTES TEORÉTICA-
QUANTITATIVISTA, ECOLÓGICA E CRÍTICA
Campinas 2005
ROGÉRIO BEZERRA DA SILVA
NEUTRALIDADE E DETERMINISMO NA CIÊNCIA GEOGRÁFICA: ANÁLISE DE ELEMENTOS DAS CORRENTES TEORÉTICA-
QUANTITATIVISTA, ECOLÓGICA E CRÍTICA Monografia apresentada ao
Departamento de Geografia do
Instituto de Geociências da
Universidade Estadual de
Campinas como parte dos
requisitos para a obtenção do título
de Bacharel em Geografia.
Orientador: Prof. Dr. Renato Peixoto Dagnino.
Campinas 2005
A Manoel Bezerra da Silva, In Memoriam
AGRADECIMENTOS
Do Passo aos Passos Os primeiros passos têm a mão que acalenta. Quem sustenta em
mim a Vida e a Alegria, à minha mãe Maria.
As descobertas a que o futuro é induzido, no divagar que o trajeto
nos submete eis que surgiria, amar, Valquiria.
Firmar-se no chão e juntos no trajeto persistir, Rodrigo, Reginaldo
e Gabi.
E quando os tropeços ameaçam derrubar, surgem mãos a
sustentar. As de Levi e Célia assim vão estar.
Tantos destinos percorridos e assim constituem-se amigos. Em um
dos passos encontrei, Divanei. Em outras paragens encontrara
Aguinaldo e Cínara. Quando se anda, Fernanda. Por aqui, David.
Neste caminho em que o corpo se sustenta novos destinos se
intercruzariam. No passeio academia sublimes amigos surgiriam. Pela
vida interiorana, Ana. Entre os jasmins e as muralhas, Josimara. Em
relevo escarpado, Ricardo. Morros e mares, Dani Mary. O som do mar e
o soar do sino, Mariana Versino. Em um dos passos, Leandro,
Cristiano, Fabrício, Henrique e Lucas Melgaço. A utopia necessária,
Adriana Bernardes, a sustentava. Onde o mar encontra-se com o céu,
Marcel, litoral.
Por este passo aqui consolidado, ao Javier, à Rita e, com imensa
gratidão, ao Professor Renato.
“Tem dias que a gente se sente um
pouco, talvez, menos gente. Um
dia daqueles sem graça, de chuva
cair na vidraça. Um dia qualquer
sem pensar, sentindo o futuro no
ar. O ar, carregado sutil. Um dia de
maio ou abril. Sem qualquer amigo
do lado. Sozinho em silêncio,
calado. Com uma pergunta na
alma: Por que nessa tarde tão
calma o tempo parece parado?”
Raul Seixas
RESUMO
Este trabalho aborda um tema pouco tratado pela ciência
geográfica: como os cientistas geógrafos concebem a prática científica.
Para tanto, analisa elementos das correntes teorética-quantitativista,
ecológica e crítica da Geografia.
Esses elementos são explorados a partir das obras de Antônio
Christofoletti (corrente teorética-quantitativista), Aziz Nacib Ab’Sáber
(corrente ecológica) e Milton Santos (corrente crítica), dada à
indubitável contribuição destes geógrafos ao desenvolvimento da
disciplina. A partir da Filosofia da Ciência, por meio das discussões de
Hugh Lacey, e da Filosofia da Tecnologia, de Andrew Feenberg, é que
se pretende pôr em evidência como a ciência é concebida por esses
geógrafos.
O trabalho está estruturado em dois capítulos e mais a conclusão.
O primeiro corresponde às reflexões de Hugh Lacey e Andrew
Feenberg sobre como a ciência e a tecnologia são constituídas
socialmente e como estas transformam a sociedade. No segundo
capítulo apresenta-se, a partir da análise de textos dos geógrafos, as
suas percepções quanto à ciência. Nesse segundo capitulo, cada
geógrafo terá sua obra abordada individualmente. Essa abordagem
ficará restrita àquelas contribuições mais relevantes para evidenciar
suas concepções acerca da ciência.
LISTA DE FIGURAS Figura 1: PROPOSTA DE HUGH LACEY............................................11
Figura 2: AS QUATRO CONCEPÇÕES DE FEENBERG....................14
Figura 3: PROPOSTAS DE FEENBERG E LACEY.............................25
Figura 4: TRIÂNGULO DAS ABORDAGENS CIENTÍFICAS................51
1
SUMÁRIO
Instituto de Geociências ......................................................................... 1
Departamento de Geografia ................................................................... 1
AGRADECIMENTOS ..............................................................................v
LISTA DE FIGURAS............................................................................... 1
INTRODUÇÃO ....................................................................................... 2
1 – EM BUSCA DE UMA ABORDAGEM TECNOCIENTÍFICA .............. 5
1.1 - NEUTRALIDADE E DETERMINISMO NAS PRÁTICAS
TECNOCIENTÍFICAS: AS CONTRIBUIÇÕES DE HUGH LACEY E
ANDREW FEENBERG........................................................................... 7
1.2 - A TEORIA CRÍTICA DE FEENBERG E A PROPOSTA
ENGAJADA DE LACEY ...................................................................... 19
2 – ELEMENTOS DA NOVA GEOGRAFIA: UMA ABORDAGEM DA
CONTRIBUIÇÃO DE ANTONIO CHRISTOFOLETTI .......................... 28
2.1 - A PROPOSTA METODOLÓGICA DE CHRISTOFOLETTI: UMA
ABORDAGEM A PARTIR DE FEENBERG E LACEY.......................... 29
2.2 – ELEMENTOS DA CORRENTE ECOLÓGICA NA GEOGRAFIA:
UMA ABORDAGEM DA CONTRIBUIÇÃO DE AZIZ NACIB
AB’SÁBER............................................................................................ 35
2.3 - A PROPOSTA METODOLÓGICA DE AZIZ NACIB AB’SÁBER:
UMA ABORDAGEM A PARTIR DE FEENBERG E LACEY ................. 36
2.4 – ELEMENTOS DA GEOGRAFIA CRÍTICA: UMA ABORDAGEM
DA CONTRIBUIÇÃO DE MILTON SANTOS........................................ 42
2.5 - A PROPOSTA METODOLÓGICA DE MILTON SANTOS: UMA
ABORDAGEM A PARTIR DE FEENBERG E LACEY.......................... 43
CONCLUSÃO....................................................................................... 51
BIBLIOGRAFIA .................................................................................... 57
INTRODUÇÃO
Este trabalho é uma Monografia de final de curso, obrigatória para a
obtenção do título de Bacharel em Geografia pelo Instituto de Geociências da
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Ele possui quatro
características que são, ao mesmo tempo, pontos fortes e elemento de risco: sua
originalidade, seu caráter exploratório, sua abordagem multidisciplinar e seu viés
reflexivo.
Originalidade, porque aborda um tema pouco tratado pela ciência geográfica:
como os cientistas geógrafos concebem a prática científica. Quando o geógrafo se
propõe a intervir no âmbito do território, isto é feito a partir de uma particular
concepção do que é ciência. É justamente como os geógrafos concebem a ciência
o que será abordado neste trabalho.
Caráter exploratório, porque essa análise supõe explorar elementos das
correntes teorética-quantitativista, ecológica e crítica da Geografia. Esses
elementos são abordados a partir das obras de cientistas geógrafos ligados a elas
e que permitem elucidar quais suas concepções. Claro que, dado ao seu caráter
de Monografia, o trabalho não tem a pretensão de esgotar o tema.
Essas correntes são exploradas a partir das obras de Antônio Christofoletti
(corrente teorética-quantitativista), Aziz Nacib Ab’Saber (corrente ecológica) e
Milton Santos (corrente crítica), dada à indubitável contribuição destes geógrafos
ao desenvolvimento da disciplina.
Abordagem multidisciplinar, porque o procedimento usado para apreender a
concepção de ciência desses geógrafos é multidisciplinar. A partir da Filosofia da
Ciência, por meio das discussões de Hugh Lacey, e da Filosofia da Tecnologia, de
Andrew Feenberg, é que se pretende pôr em evidência como a ciência é
concebida por esses geógrafos.
Viés reflexivo porque terá que estar presente durante todo o trabalho. Haja
vista, neste primeiro momento, o constrangimento surgido ao se ponderar sobre
práticas científicas a partir da Filosofia da Tecnologia tornando a reflexão ainda
3
mais preponderante. Entretanto, esse constrangimento é contornado ao se
considerar as abordagens de Dagnino e Oliveira, ao verificarem que as
transformações ocorridas na ciência e na tecnologia as tornaram indissociáveis,
configurando o que pode ser denominado como tecnociência.
Este trabalho está dividido em dois capítulos e mais a conclusão. O primeiro
corresponde às reflexões de Hugh Lacey e Andrew Feenberg sobre como a
ciência e a tecnologia são constituídas socialmente e como estas transformam a
sociedade. A abordagem de Feenberg sobre a tecnologia é transposta para o
estudo de como os cientistas concebem a ciência. Feenberg identifica quatro
concepções acerca da tecnologia (e da ciência). A primeira concebe a ciência
como neutra e controlada pela humanidade. Esta concepção é considerada como
instrumental. A segunda vislumbra a ciência como neutra e autônoma, resultando,
desta forma, em uma concepção determinista. A terceira, é a de que a ciência é
substantiva, ou seja, a ciência é tanto autônoma quanto carregada de valores. A
quarta, é a concepção crítica que admite que a ciência tanto carrega valores,
estes sendo eminentemente sociais, quanto é controlada pela Humanidade.
Essa quarta concepção vai ao encontro das reflexões de Hugh Lacey sobre o
processo através do qual o cientista escolhe entre as teorias disponíveis para a
abordagem de um fenômeno que lhe interessa estudar. Segundo Lacey, essa
escolha não seria individual. Ela seria, sobretudo, feita mediante um processo de
diálogo e negociação entre os membros da comunidade de pesquisa e estaria
baseada não em regras, ditadas pelo método científico e algoritmos racionais, mas
em valores. Tais valores, relativos às teorias em contraste, são de natureza
cognitiva, como consistência interna, poder explicativo, simplicidade etc., e não-
cognitiva como os sociais, morais ou pessoais. Não seria, então, a aplicação das
regras, mas a avaliação do nível em que se manifestam os valores cognitivos, o
que determinaria a teoria a ser empregada.
No primeiro capítulo essas concepções são apresentadas, uma vez que é a
partir delas que se analisa a proposta metodológica dos geógrafos citados acima.
4
O segundo capítulo apresenta, a partir da análise de textos desses
geógrafos, as suas percepções quanto à ciência. Nesse capitulo, cada geógrafo
terá sua obra abordada individualmente. Essa abordagem ficará restrita àquelas
contribuições mais relevantes para evidenciar sua concepção acerca da ciência.
O trabalho será concluído com uma abordagem das percepções de cada
geógrafo e de como estes concebem a ciência.
Há de se destacar que este trabalho não se presta à contestação das
concepções dos autores nele abordados. Pretende-se, apenas contribuir para
explicitar possíveis conexões entre as propostas desses autores para a prática
científica.
5
1 – EM BUSCA DE UMA ABORDAGEM TECNOCIENTÍFICA
Latour, em seu livro Jamais Fomos Modernos (1994), quando trata sobre o
que considera como o nó górdio produzido pela modernidade no tratamento dos
fenômenos sociais de forma compartimentada, escreve que:
Por falta de opções, nos autodenominamos sociólogos, historiadores, economistas, cientistas políticos, filósofos, antropólogos. Mas, a estas disciplinas veneráveis, acrescentamos sempre o genetivo: das ciências e das técnicas. Science studies é a palavra inglesa; ou ainda este vocábulo por demasiado pesado: ‘Ciências, técnicas, sociedades’. Qualquer que seja a etiqueta, a questão é sempre a de reatar o nó górdio atravessando, tantas vezes quantas forem necessárias, o corte que separa os conhecimentos exatos e o exercício do poder, digamos a natureza e a cultura. (p. 8-9)
O autor, na passagem acima, busca discutir o que denomina de Rede de
Atores, conceito que permite avançar no sentido de propor um tratamento
indissociável dos fenômenos sociais. Essa não-dissociação deve ser vista, como
indica o autor, em relação à Ciência e a Tecnologia. A ciência não consiste em
pura teoria, nem a tecnologia em pura aplicação. Ambas são integrantes de redes
de cujos nós também fazem parte todo tipo de instrumentos, seres e objetos
relevantes à atividade que se desenvolve no seu entorno. Os produtos da
atividade científica, como as teorias, não poderiam então continuar sendo
separadas dos instrumentos (as tecnologias) que participam da sua elaboração
(DAGNINO, 2005).
O que convencionalmente chama-se de ciência e tecnologia são práticas que
na atualidade se tornam cada vez mais inseparáveis. Até mesmo os limites das
atividades que as originam têm se tornado quase indistinguíveis.
A dissociação entre práticas científicas e tecnológicas, como discutido por
Núñez (2000, apud DAGNINO, 2005), tem sua origem nos fundamentos do
método histórico, que levam a considerar as Revoluções Científica, do século
XVII, e a Industrial, iniciada no século XVIII, como processos relativamente
6
independentes. Esse método histórico1 obriga a classificar o processo de
fecundação recíproca, sistemática e crescente entre ciência e tecnologia, que se
materializa a partir da segunda metade do século XX e se acentuou ainda mais
nos últimos anos, como algo distinto.
Todavia, como discutido por Dagnino (2005):
O fato de que a imagem da ciência como uma atividade de indivíduos isolados em busca da verdade não coincide com a realidade social contemporânea, por um lado, e de que C&T têm sido crescentemente impulsionadas pela busca de hegemonia mundial das grandes potências e pelas exigências do desenvolvimento industrial e as pautas de consumo que ali se geram e difundem para as sociedades que imitam esses processos de modernização, por outro, não podem ser subestimados. Pelo contrario, eles não parecem apontar uma tendência de mudança meramente quantitativa; ao que tudo indica estamos frente a uma transformação qualitativa, a uma ruptura em relação à trajetória passada. (p. 11)
O processo que irá se consolidar na não-dissociação entre as práticas
científicas e tecnológicas foi acelerado a partir do fim da Segunda Guerra por meio
do intenso desenvolvimento tecnológico ocorrido desde então. Isso pode ser visto,
inclusive, por meio das mudanças impostas às instituições que produzem e
financiam as práticas científicas e tecnológicas e que estão levando à sua
crescente mercantilização.
Pode ser dito que, tanto o corte temporal como o espacial, que são
comumente usados para diferenciar a ciência (pesquisa básica) da tecnologia
(pesquisa aplicada), perde seu sentido. Definir a tecnologia como aquela cujo
objetivo é produzir conhecimento com perspectiva de aplicação imediata e a
ciência como a que gera um conhecimento de aplicação não apenas longínqua
como incerta, não é coerente com a realidade atual que mostra uma dramática
redução do tempo que medeia entre a “invenção” e a inovação. Essa redução,
evidentemente, interessa as empresas cuja sobrevivência e expansão depende
justamente da rapidez com que conseguem em seus laboratórios, mas também
nas universidades, encurtar esse tempo (DAGNINO, 2005).
1 - O que Núñez denomina como Método Histórico Latour chama de Modernidade.
7
Como discutido por Oliveira (2002):
O desenvolvimento da ciência e da tecnologia modernas não pode ser separado da grande transformação que foi o surgimento e a consolidação do capitalismo como sistema econômico e social, (...) Um dos traços principais do perfil teórico da crítica engajada2 está em reconhecer e extrair as conseqüências do aumento no número e na profundidade dos vínculos que articulam ciência e tecnologia (...). (p. 109)
Dessa forma, por se tornar cada vez mais difícil distinguir o que é prática
científica da tecnológica é que surge o neologismo tecnociência3. Essa noção será
importante, pois nesse trabalho a metodologia adotada será as propostas de um
Filósofo da Ciência e outro da Tecnologia (Hugh Lacey e Andrew Feenberg,
respectivamente). Tais propostas são fundamentais para a discussão sobre
neutralidade e determinismo na ciência geográfica, observada as correntes
teórico-metodológicas4 teorética-quantitativista (Nova Geografia), ecológica e
crítica, a partir da obra de seus grandes representantes, Antonio Christofoletti,
Aziz Nacib Ab’Saber e Milton Santos, respectivamente.
1.1 - NEUTRALIDADE E DETERMINISMO NAS PRÁTICAS TECNOCIENTÍFICAS: AS CONTRIBUIÇÕES DE HUGH LACEY E ANDREW FEENBERG
Lacey (1998), ao explorar quais são os elementos constitutivos da prática
científica, propõe algumas questões: “o que se deve considerar como uma boa
teoria científica? O que torna uma teoria racionalmente aceita?” E acrescenta que,
2 - Crítica que incorpora as discussões da Escola de Frankfurt e das formas não ocidentais de conhecimento. Todavia, vai além ao propor formas alternativas para o desenvolvimento científico e tecnológico (OLIVEIRA, 2002). 3 - Renato Dagnino, Marcos Oliveira, Hugh Lacey, entre outros. Deve ser ressaltado, entretanto, que alguns autores, entre eles Andrew Feenberg, não empregam o termo Tecnociência. 4 - Essa divisão é adotada por Andrade (1987). Como o autor admite, essa classificação é, até certo ponto, arbitrária. Ela será utilizada nesse trabalho por possibilitar um melhor enquadramento do objeto de pesquisa em questão.
8
“durante muito tempo, tanto empiristas quanto racionalistas pensaram que a
sustentação dos juízos científicos corretos derivava de sua conformidade a certas
regras: indutivas, dedutivas, hipotético-dedutivas ou formalizáveis segundo o
cálculo das probabilidades” (p. 61).
Todavia, o autor, em busca de uma nova proposta para o desenvolvimento
tecnocientífico, expõe que, deseja “explorar uma abordagem alternativa à questão
do que constitui um juízo científico correto” (LACEY, 1998. p. 61). Para tanto, diz
que a racionalidade deve ser analisada em termos de valores tanto cognitivos5
como não-cognitivos6, ao invés de pautar-se em um conjunto de regras. O autor
propõe que os juízos científicos corretos sejam feitos por meio do diálogo entre
membros da comunidade científica acerca do nível de manifestação de tais
valores por uma teoria, ou por teorias rivais, ao invés da aplicação de um
algoritmo ideal por cientistas individuais, sendo esta última muito difundida na
atualidade.
A proposta de Lacey (ibid) contesta as pretensões da ciência relacionada à
racionalidade, objetividade e validez universal. E mesmo de que através da
tecnologia, ela contribuía necessariamente para o progresso da Humanidade.
Com isso, o autor vem a rejeitar o racionalismo cientificista ainda predominante na
academia.
Como observado por Dagnino (Op.cit.), a reflexão de Lacey:
Embora envolva uma postura crítica em relação a C&T no capitalismo, não o aproxima do marxismo ortodoxo7. Na medida que possui como referência algumas vertentes do marxismo ocidental8, em particular a teoria crítica da Escola de Frankfurt, a qual busca transcender, sua contribuição aponta para uma superação do conteúdo paralisante daquele debate. (p. 150)
5 - Adequação à realidade empírica observada, consistência interna, poder explicativo, simplicidade etc. 6 - Sociais, morais ou pessoais. 7 - “Marxismo ortodoxo, constituído a partir de leis institucionais e determinações políticas doutrinárias, sendo criticado até como funcionalista” (BASTOS, 2001. p. 27). 8 - “Marxismo ocidental, marcada ecleticamente por alusões e relações de articulação com o freudismo a psicanálise, e outras teorias que buscavam interpretar a cultura a subjetividade aliando-as à vontade e a emoção” (BASTOS, ibid).
9
Sua postura crítica sobre as estruturas sociais vigentes tem como
contrapartida uma preocupação claramente policy oriented. Diferentemente de
contribuições à análise da tecnociência no capitalismo, como as da Escola de
Frankfurt, e à semelhança do que faz Feenberg, Lacey está preocupado com a
proposição de alternativas capazes de alterar essas estruturas no que concerne a
seus aspectos de alguma forma relacionados à tecnociência (Dagnino, ibid).
Para a elaboração de sua proposta, Lacey (ibid) parte da tentativa de entender
como se desenvolve o processo tecnocientífico desde seus primórdios até o
presente. Nesse processo, constata-se que às práticas tecnocientíficas são
constituídas por valores tanto cognitivos quanto não-cognitivos.
Todavia, como observado por Lacey (ibid), nas práticas tecnocientíficas,
desenvolvidas na atualidade, são sustentadas como válidas somente aquelas em
que os valores não-cognitivos estejam ausentes. Para que as práticas
tecnocientíficas se tornem válidas, para a modernidade, estas devem erigir valores
cognitivos cumprindo tanto encargos explicativos quanto normativos.
Os valores cognitivos devem funcionar em um “contexto que não apenas está
em contato genuíno com a prática científica, mas em que também se reconheça a
susceptibilidade dessa prática à crítica racional e a transformações que constituem
respostas a tal crítica” (LACEY, ibid. p. 66).
Como dito pelo autor, “na elaboração da lista de valores cognitivos, então, a
primeira tarefa é interpretativa e consiste na reconstrução racional de episódios-
chave de escolha de teorias e de controvérsias teóricas, a fim de discernir os
critérios que podem ser razoavelmente apontados como aqueles empregados por
seus participantes” (LACEY, ibid. p. 66). Uma vez que a pesquisa científica se
orienta através da estratégia materialista9 as teorias desenvolvidas pelas ciências
modernas estarão fundadas por essa orientação.
9 - De acordo com Lacey (1998), as estratégias materialistas têm como fundamento as Práticas Interpretativas junto com a Adequação Empírica, comprovadas por meio da Experimentação.
1
Para a ciência moderna, somente constatações observáveis a partir de
determinados critérios são de interesse, e, dessa forma, as teorias submetidas a
testes de “validade” serão aquelas com características afins à estratégia
materialista. Sobre isso o autor diz que:
Tipicamente, as constatações observáveis, em primeiro lugar, descrevem fenômenos (replicáveis) produzidos através de práticas experimentais ou práticas afins que envolvem intervenções de instrumentos de medida ou que ampliam a percepção e, em segundo lugar, relatam as propriedades e relações quantitativas (mensuráveis) ou, de um modo mais geral, ‘materialistas’, daqueles fenômenos10. (ibid, p. 7)
Todavia, como argumentado pelo autor, as constatações pertinentes a esse
procedimento são abstraídas do grande número de descrições diferentes que
poderiam ser dadas ao mesmo fenômeno. Também são desvinculadas das
práticas humanas, bem como de seu lugar de manifestação.
Há uma clara constatação relacionada a essa prática: a de que os critérios
necessários para que teorias sejam aceitas que empreguem categorias tipicamente quantitativas, matemáticas e materialistas, uma vez que somente
tais categorias podem validar as constatações observáveis selecionadas.
Lacey (ibid) diz ainda que para que tais critérios sejam aceitos como valores
cognitivos há quatro considerações gerais:
1) Teorias a priori do conhecimento; 2) teorias da aquisição e da avaliação do conhecimento, formuladas do ponto de vista do naturalismo evolucionista (Ellis, 1990) e da psicologia cognitiva; 3) considerações sobre a possibilidade de o critério proposto ser concretamente exemplificado numa teoria; 4) se o critério serve ou não ao objetivo da ciência. (LACEY, ibid. p. 68)
Pode ser visto acima que a argumentação do autor vai de encontro à auto-
imagem predominante na comunidade científica contemporânea, que tende a
considerar os produtos da tecnociência como neutros, disponíveis para todos, e
independentes de valores. Isso reforça a argumentação de que “as estratégias
10 - Grifo nosso.
1
materialistas são adotadas quase exclusivamente porque, além de serem
proveitosas, sua adoção tem relações mutuamente reforçadoras com a
valorização moderna do controle” (LACEY, 2002. p. 136).
Todavia, como salientado no quarto item dessas considerações gerais,
Lacey reconhece que a prática tecnocientífica está embasada por objetivos, os
quais são resultados da consideração de valores não-cognitivos (sócio-culturais).
Quanto a isso, Lacey (1998) diz que:
Quando nos voltamos para “o” objetivo da ciência, entretanto, as complicações aumentam significativamente (Laudan, 1984). Há discordância sobre os objetivos da ciência – mesmo sobre se há algo que seja “o” objetivo da ciência, além de uma polêmica quase insolúvel: a questão do realismo/instrumentalismo, p.ex., é discutida há séculos – e, dependendo do objetivo adotado, diferentes listas de valores cognitivos podem ser sustentadas. (p. 69)
A argumentação de Lacey pode ser retida no esquema abaixo:
Figura 1: PROPOSTA DE HUGH LACEY
Elaborado por: Rogério Bezerra da Silva (a partir das proposições de Hugh Lacey)
A depender dos objetivos elegidos os critérios para a escolha dos valores
cognitivos irá se modificar e com isso toda a estrutura do desenvolvimento
tecnocientífico. Assim é que se fazem presentes os valores não-cognitivos.
1
Por meio desta argumentação, Lacey defende mudanças nas práticas
tecnocientíficas contemporâneas. Ele defende que a pesquisa seja conduzida
segundo uma multiplicidade de estratégias, incluindo aquelas que têm relações
mutuamente reforçadoras com os valores dos projetos e movimentos sociais
alternativos (valores não-cognitivos), pois “um novo mundo é possível somente
com uma nova ciência e uma nova tecnologia” que considere a legitimidade da
escolha de outros objetivos para a prática da tecnociência, que a distinga da
contemporânea, e lhe dê um outro caráter social (LACEY, 2002. p. 123).
Como exposto por Dagnino (2005):
Com o objetivo de fazer com que valores sociais tenham um papel legítimo na escolha das estratégias para a pesquisa e para a orientação das instituições científicas de modo a propiciar a aquisição e confirmação de conhecimentos que, quando aplicados, sejam capazes de informar os projetos almejados, ele [(Lacey)] indaga a respeito das relações mutuamente reforçadoras que elas devem possuir com os valores incorporados nesses projetos. (p. 160)
Não seria, então, a aplicação das regras, mas a avaliação do nível de
manifestação dos valores cognitivos, o que determinaria a teoria a ser aceita.
Ainda para sustentar sua argumentação de como as práticas tecnocientíficas
são efetivadas na atualidade, Lacey (1998) trabalha sobre a questão da ciência
livre de valores não-cognitivos. Isso implica em três abordagens tecnocientíficas: a
da imparcialidade, da neutralidade e da autonomia.
A imparcialidade (relativo ao processo de seleção de teorias), postula que
apenas os valores cognitivos orientam as práticas tecnocientíficas. E, se isso for
dessa forma, a teoria escolhida seria neutra. O argumento da neutralidade afirma,
então, que essa teoria não teria implicações lógicas relativas aos valores não-
cognitivos e que as práticas tecnocientíficas dela decorrente poderia ser aplicada
em qualquer sociedade.
Fazer ciência seria, para a modernidade, produzir teorias que satisfaçam os
requisitos de imparcialidade e neutralidade. Para isso, demanda-se um terceiro
elemento: a autonomia. A autonomia é relativa à idéia de que essa atividade deve
1
estar livre de qualquer influência do contexto. A abordagem de Lacey vai de
encontro à de Feenberg quando este expõe que:
No século XIX, tornou-se lugar comum compreender a modernidade como um progresso interminável em direção ao cumprimento das necessidades humanas através do avanço tecnológico. (...) Mas, com o passar do século XX, as guerras mundiais, os campos de concentração e as catástrofes ambientais, tornou-se cada vez mais difícil ignorar a estranha falta de propósito da modernidade. Isto porque estamos perdidos sem saber para onde estamos indo e nem porque esta filosofia da tecnologia11 emergiu em nosso tempo como uma crítica da modernidade. (FEENBERG, 2003. p. 5)
Segundo Feenberg (ibid), é necessária que as práticas tecnológicas
incorporem em sua concepção, ou projeto, variáveis sociais, culturais e
ambientais12. Tal colocação busca transcender a postura da apropriação da
tecnologia por atores sujeitos a dominação e controle imposto pela sociedade
capitalista que não vislumbra alternativas aos elementos negativos intrínsecos à
tecnologia a ser apropriada.
Para Dagnino (2005. p. 153), a perspectiva de Feenberg contém uma
propositada ambivalência13: dependendo da capacidade de negociação entre as
partes (classes sociais) e da possibilidade de transformação do modo de produção
capitalista, a tecnologia14 deveria não apenas ser apropriada, mas reprojetada
para atender aos interesses da sociedade.
A fim de fundamentar sua proposta, Feenberg adota o mesmo viés de Lacey
que corresponde a entender como as práticas tecnológicas contemporâneas são
efetivadas de acordo com a concepção moderna de tecnologia. Seu objetivo é
propiciar uma discussão sistemática e organizada sobre as concepções presentes
11 - Filosofia crítica da tecnologia, originada pela Escola de Frankfurt. 12 - Algo semelhante aos Valores não-cognitivos, propostos por Lacey. 13 - Essa ambivalência pode ser explicada pelo fato de que Feenberg ao adotar a postura crítica da Escola de Frankfurt (marxista crítica), busca estabelecer uma proposta para as práticas tecnológicas na atualidade. Da Escola de Frankfurt o autor considera, entre outras perspectivas, a não-dissociação entre o objeto técnico e as ações sociais. Na perspectiva de ir além das discussões tratadas pela escola, busca transcender a condição de que “somente um Deus pode nos salvar” (Heidegger). 14 - A tecnociência.
1
na sociedade e, em especial, na comunidade de pesquisa, acerca do caráter da
ciência e da tecnologia (da tecnociência).
Ele fará essa discussão evidenciando dois conceitos-chave: o de
neutralidade e o de determinismo. Sua abordagem pode ser melhor ilustrada
mediante um esquema, representado na figura que segue, constituído de um
plano dividido em quatro quadrantes por dois eixos, onde se representam as
quatro perspectivas alternativas em relação à essa discussão e que Feenberg
concebe como sendo as concepções possíveis para as práticas modernas
“tecnocientíficas”.
Figura 2: AS QUATRO CONCEPÇÕES DE FEENBERG
Elaborado por: Renato Dagnino (2004) - (a partir das proposições de Andrew Feenberg).
Essas proposições de Feenberg se aproximam das de Lacey quando este
trata da questão da tecnociência livre de valores não-cognitivos. Todavia, ao invés
de três abordagens tecnocientíficas como observadas por Lacey, Feenberg vai
definir a “tecnociência” ao longo de dois eixos que refletem suas relações com
valores e capacidades humanas.
NEUTRA
CONDICIONADA POR VALORES
CONTROLADA PELO HOMEMAUTÔNOMA
INSTRUMENTALISMOvisão moderna padrão = fé liberal, otimista, no progresso: ferramenta mediante a qual satisfazemos necessidades
TEORIA CRÍTICA opção engajada = ambivalência e resignação: reconhece o substantivismo, mas é otimista; vê graus de liberdade; o desafio é criar instituições para o controle
DETERMINISMOModernização = otimismo da visão Marxista tradicional: força motriz da história; conhecimento do mundo natural que serve ao Homem para adaptar a natureza.
SUBSTANTIVISMOmeios e fins determinados pelo sistema = pessimismo da Escola de Frankfurt: não é meramente instrumental; incorpora valor substantivo; não pode ser usada para propósitos diferentes, de indivíduos ou sociedades
1
O eixo vertical - da neutralidade -, oferece duas alternativas concebe a
tecnociência como sendo neutra, ou carregada de valores.
Como dito por Feenberg (2003):
Na primeira perspectiva [neutra], um dispositivo técnico é simplesmente uma concatenação de mecanismos causais. Não há um número suficiente de estudos científicos que possam encontrar nele qualquer coisa próxima a um propósito. Mas, de acordo com a segunda perspectiva [carregada de valores], esta abordagem não percebe a questão principal. (...) Nem tudo é propriedade física ou química da matéria. Talvez as tecnologias, como as cédulas monetárias, tenham um modo especial de carregar valor em si próprias enquanto entidades sociais. (p. 6)
Por sua vez, o eixo horizontal – do determinismo - considera a tecnociência
como autônoma, ou como humanamente controlável. Todavia, dizer que a
tecnologia é autônoma não é considerar que ela se auto-produz, pois os seres
humanos continuam envolvidos nessas práticas.
Mas a pergunta é: será que eles [os seres humanos] realmente têm liberdade para decidir como a tecnologia se desenvolverá? Depende de nós o próximo passo da evolução de um sistema técnico? Se a resposta for "não", então a tecnologia pode corretamente ser considerada autônoma no sentido em que a invenção e o desenvolvimento têm suas próprias leis imanentes, às quais os humanos apenas seguem quando atuam no domínio técnico. Por outro lado, a tecnologia seria humanamente controlável se pudéssemos, de acordo com nossas intenções, determinar o próximo passo de sua evolução. (Feenberg, ibid. p. 6)
A interseção dos dois eixos possibilita vislumbrar as concepções modernas
das práticas tecnocientíficas, que correspondem a: Instrumentalista, Determinista,
Substantivista e a Teoria Crítica15.
O instrumentalismo visto pela interseção entre o controle humano e a
neutralidade de valores, corresponde à visão moderna padrão. Esta concebe a
tecnociência como sendo simplesmente uma ferramenta ou instrumento da
espécie humana através da qual satisfazemos nossas necessidades. Ela expressa
15 - Esta última visão refere-se a proposta de Feenberg para a transformação das práticas tecnocientíficas contemporâneas.
1
uma percepção contemporânea que concebe a tecnociência como uma
ferramenta gerada pela espécie humana (em abstrato e sem qualquer
especificação histórica ou que diferencie os interesses de distintos segmentos
sociais) através de métodos que, ao serem aplicados à natureza, asseguram à
tecnociência atributos de verdade e de eficiência. Isso permite vislumbrá-la como
atuante sob qualquer perspectiva de valor. O que garantiria seu uso (e também a
sua orientação) “para o bem” é algo estranho ao mundo do conhecimento
tecnocientífico e daqueles que o produzem: a “Ética”. Só se esta não for
respeitada pela sociedade, esse conhecimento poderá ter implicações
indesejáveis (Dagnino, 2005. p. 174).
Outra intersecção é a chamada de "determinismo", que é amplamente
sustentada nas ciências sociais, principalmente pelo marxismo ortodoxo16, na qual
o avanço tecnológico é a força motriz da história. Nesta visão o desenvolvimento
da tecnociência não é controlado pelo Homem; é ela que, utilizando-se do avanço
do conhecimento do mundo natural, verdadeiro e neutro, molda (e empurra para
um futuro cada vez melhor) a sociedade mediante as exigências de eficiência e
progresso que ela estabelece. Nessa perspectiva, como dito por Dagnino (2005. p.
174), a tecnociência “que serve ao ‘capital’ e oprime a ‘classe operária’ é a mesma
que, apropriada por ela depois da ‘revolução’, a ‘liberaria’ e construiria o ideal do
‘socialismo’”.
O "substantivismo" é uma posição mais complexa do que as duas, vistas até
o momento. O termo "substantivismo" descrever uma posição que atribui valores
substantivos à tecnociência, em contraste com o instrumentalismo e o
determinismo, que a concebem como intrinsecamente neutra. A esse respeito
Feenberg (ibid) diz que:
16 - Decorre da interpretação do que Marx escreveu no final do século XIX. O avanço contínuo e inexorável da tecnologia (ou, no seu jargão, o desenvolvimento das “forças produtivas”) seria a força motriz da história que, pressionando as “relações técnicas e sociais de produção”, levaria a sucessivos e mais avançados “modos de produção” (DAGNINO, 2005. p. 174).
1
O contraste real aqui é entre dois tipos de valores. A tese de neutralidade na verdade atribui um valor à tecnologia, mas é um valor meramente formal, a eficiência, que pode servir a qualquer número de concepções diferentes sobre o que seja um modo de viver bem. Um valor substantivo, ao contrário, envolve o compromisso com uma concepção específica do bem viver. Se a tecnologia incorporar um valor substantivo, ela não será meramente instrumental e não poderá ser usada para diferentes propósitos de indivíduos ou sociedades que divirjam sobre o que seja o bem. O uso da tecnologia para este ou aquele propósito seria, por si só, uma escolha específica de valor, e não apenas uma forma mais eficiente de realizar algum tipo de valor pré-existente. (p. 7)
Seus partidários compartilham a crítica do marxismo tradicional feita pela
Escola de Frankfurt a partir da década dos sessenta. Nesta, enquanto a idéia de
neutralidade atribui a tecnociência a busca da verdade e da eficiência, a do
substantivismo “enxergaria” seu compromisso com a concepção capitalista
dominante (que embora pareça natural e única, é ideologicamente sustentada), e
isso faria com que sues valores fossem incorporados a essa prática. Dessa forma,
a prática tecnocientífica tal como ocorre na atualidade não poderia ser usada para
viabilizar propósitos de indivíduos ou sociedades que patrocinem valores distintos
dos observados no modo de produção capitalista.
O Substantivismo (radical e pessimista) se diferencia do Determinismo. Este,
ao aceitar que a tecnologia, por não ser portadora de valores, é o servo neutro de
qualquer projeto social, idealiza um final sempre feliz para a história da espécie
(DAGNINO, 2005. p. 175).
Á última concepção do esquema, a da "Teoria Crítica", sustenta que os seres
humanos não precisam esperar um Deus para transformar a sua sociedade
tecnocientífica em um lugar melhor para se viver. Como dito por Feenberg (ibid):
A Teoria Crítica reconhece as conseqüências catastróficas do desenvolvimento tecnológico ressaltadas pelo substantivismo, mas ainda assim vê na tecnologia uma promessa para aumentar a liberdade. O problema não está na tecnologia como tal, mas em nosso fracasso até o momento em criar instituições apropriadas ao exercício do controle humano sobre ela. Poderíamos domesticar a tecnologia submetendo-a a um processo mais democrático em seu projeto e desenvolvimento. A Teoria Crítica compartilha características com o instrumentalismo e o substantivismo. Concorda com o instrumentalismo que a tecnologia é, em algum sentido, controlável, e
1
concorda com o substantivismo que a tecnologia também é carregada de valores. Esta parece ser uma posição paradoxal, visto que precisamente o que não pode ser controlado na visão substantivista são os valores incorporados na tecnologia. De acordo com o substantivismo, os valores contidos na tecnologia são únicos e intrínsecos a ela. Incluem a eficiência e o poder como metas pertencentes a qualquer sistema técnico. (p. 8-9)
O problema não estaria no conhecimento como tal, mas no pouco êxito que
temos tido até o momento em criar formas institucionais que, explorando a
ambivalência (graus de liberdade) que possui o processo de concepção de
sistemas tecnocientíficos e resignando-se a “não jogar a criança com a água do
banho”, e que permitam o exercício do controle humano sobre ela (DAGNINO,
2005. p. 175). Para a Teoria Crítica, a tecnologia não é vista como ferramenta,
mas como suporte para estilos de vida.
1.2 - A TEORIA CRÍTICA DE FEENBERG E A PROPOSTA ENGAJADA DE LACEY
Feenberg, diante de uma abordagem filosófica da tecnologia, parte da não
aceitação do dilema que marca o debate atual sobre a relação Ciência, Tecnologia
e Sociedade. Argumentar que a questão crucial não é a tecnologia nem o
progresso em si mesmos, mas a variedade de possíveis tecnologias e caminhos
de progresso entre os quais pode-se escolher.
Questiona as abordagens deterministas da tecnologia, da história, econômica
ou cultural. Trata da construção social da tecnologia baseando-se em Lukács e na
Escola de Frankfurt17, procurando conceber novos caminhos para a reconstrução
da base tecnológica das sociedades que, para o autor, é fundamental para a
democratização das relações sociais de produção e da própria sociedade.
17 - Segundo Dagnino (2005. p. 153), Feenberg reconhece as conseqüências catastróficas do desenvolvimento tecnológico ressaltadas pelo substantivismo (Escola de Frankfurt). Reconhece também que a tecnologia incorpora valores, mas ainda assim, rejeitando o pessimismo paralisante dessa visão, vê na tecnologia uma promessa de liberdade.
1
Segundo Feenberg (2003), o problema das discussões sobre a relação
Ciência, Tecnologia e Sociedade está em se ignorar a “essência” do fenômeno
técnico. Essência essa profundamente discutida pelos frankfurtianos. Como
destaca o autor, é necessário “encontrar uma maneira de incorporar estes últimos
avanços numa concepção da essência da tecnologia, mais do que livrar-se dela,
como os filósofos tendem a fazer, como se fossem apenas ‘influências’ sociais
contingentes numa tecnologia reificada ‘em si mesma’ e concebida à parte da
sociedade” (p. 13-14).
Feenberg (ibid) vislumbra como solução para o problema levantado “uma
redefinição radical da tecnologia que ultrapasse as fronteiras entre os artefatos e
as relações sociais” (p. 14). Essa redefinição seria possível através da Teoria
Crítica da tecnologia.
Por meio de sua Teoria Crítica18, Feenberg procura mostrar que, da mesma
forma que a situação de conflito inerente ao capitalismo tem sido estabilizada
mediante escolhas técnicas específicas, outras escolhas técnicas poderão
desestabilizar o capitalismo. Mostra também que é possível uma alternativa ao
capitalismo, baseada na democratização da administração e da mediação
técnicas, e em escolhas técnicas que permitam a extensão da democracia para o
mundo do trabalho.
Segundo o autor, é necessária uma transformação das tecnologias de forma
que estas incorporem em seu projeto ou concepção as variáveis sociais. Para isso
é necessário um entendimento processual (histórico) dessa transformação.
Na consideração da essência da tecnologia, segundo Feenberg (2003), dois
aspectos são fundamentais: um seria a Instrumentalização Primária e o outro a
Instrrumentalização Secundária. A primeira “caracteriza as relações técnicas em
toda sociedade, embora sua ênfase, alcance de aplicação e significado variem
grandemente”. Por sua vez, “a técnica inclui apenas feições constantes em
combinações historicamente envolvidas como uma Instrumentalização Secundária
18 - O termo Teoria Crítica passou a ter grande difusão a partir de 1937 após a publicação da obra Teoria Tradicional e Teoria Critica de Max Horkheimer.
2
que inclui muitos aspectos sociais da tecnologia. As distinções mais
características entre as diferentes eras na história da tecnologia resultam de
diferentes estruturações dessas várias dimensões” (p. 15).
Nota-se que para o entendimento do fenômeno técnico é necessário
considerar tanto os atributos do artefato técnico, tomado isoladamente
(Instrumentalização Primária), quanto como ele está inserido sistematicamente no
contexto social (Instrumentalização Secundária). Todavia, a essência da
tecnologia somente pode ser compreendida partindo de seu processo de
constituição.
Para a Teoria Crítica, reconhecer a essência da tecnologia permite constatar
que seu desenvolvimento é condicionado por valores e controlada pelos homens,
ao contrário do que pregam as concepções deterministas e da neutralidade da
tecnociência. Essa teoria reconhece que “escolhas técnicas marcam os horizontes
da vida cotidiana. Estas escolhas definem um ‘mundo’ dentro do qual as
alternativas específicas a respeito das quais pensamos – como os propósitos, os
objetos, os usos – acabam emergindo” (FEENBERG, 2003. p. 31).
Sobre a ambivalência na proposta de Feenberg, de acordo com Dagnino
(2005), pressupõe que:
As trajetórias tecnológicas, num contexto em que todas as regras básicas de funcionamento do modo de produção capitalista estejam vigentes, dificilmente podem ser alteradas. A perspectiva de democratização da sociedade, que tenderia a colocar na agenda da política da C&T as questões da apropriação, deveria também contemplar a reconstrução de tecnologias segundo os interesses dos outros atores sociais envolvidos que não os proprietários dos meios de produção. (p. 153)
Dessa forma, estaria presente no processo de desenvolvimento tecnológico o
que Feenberg (ibid), chama de “subdeterminação”. Isso está implicado na questão
de que quando existe mais de uma solução puramente técnica para um problema
a escolha entre elas torna-se ao mesmo tempo técnica e política e, portanto, as
implicações políticas da escolha passarão a estar incorporadas na tecnologia que
dela resulta.
2
Segundo Feenberg (s/d), “a tecnologia é um fenômeno de dois lados: num o
operador e no outro o objeto. Quando tanto o operador quanto o objeto são seres
humanos, a ação técnica é um exercício de poder” (p. 5). Aqui esta presente,
como destacado por Dagnino (2005 p. 191), outro conceito central na explicação
de Feenberg que é o de poder tecnocrático. Para Feenberg (s/d), este poder seria
a capacidade exclusiva de determinados agentes de controlar decisões de
natureza técnica.
Outro conceito importante na trajetória explicativa desenvolvida por Feenberg
é o de "autonomia operacional" (DAGNINO, 2005). Ele é utilizado para descrever
o processo de acumulação do poder tanto dos agentes como das estruturas
sociais nele envolvidos. Esse processo interativo de seleção entre alternativas
técnicas viáveis de maneira a maximizar a capacidade de iniciativa técnica, que
leva à preservação e ampliação da autonomia operacional, estaria no núcleo do
código técnico capitalista.
Feenberg (ibid), também utiliza o conceito de “indeterminismo”, para referir à
grande flexibilidade e capacidade de adaptação a demandas sociais diferentes
que possuem os sistemas técnicos e para explicar porque o desenvolvimento
tecnológico não é unilinear e se ramifica em muitas direções (DAGNINO, ibid).
Através desses conceitos à importância política da posição de Feenberg se
torna clara:
Se existem sempre muitas potencialidades técnicas19 que se vão manter inexploradas, não são os imperativos tecnológicos os que estabelecem a hierarquia social existente. A tecnologia passa então a ser entendida como um espaço da luta social no qual projetos políticos alternativos estão em pugna20 e, dessa forma, o desenvolvimento tecnológico, passa a ser delimitado pelos hábitos culturais enraizados na economia, ideologia, religião e tradição21. O fato de esses hábitos estarem tão profundamente arraigados na vida social a ponto de se tornarem naturais, tanto para os que são dominados como para os que dominam, é um aspecto da distribuição do poder social engendrado
19 - Subdeterminação. 20 - Indeterminismo. 21 - Autonomia Operacional.
2
pelo Capital que sanciona a hegemonia como forma de dominação22. (DAGNINO, 2005. p. 97)
A contribuição de Lacey à semelhança do que faz Feenberg, tem como
contrapartida conseqüente uma preocupação claramente engajada. A constatação
de Lacey (2002) de que o controle do desenvolvimento tecnocientífico está hoje a
serviço do neoliberalismo faz com que valores individualistas, da propriedade
privada, do lucro e do mercado sejam os orientadores desse desenvolvimento.
Sua crítica a essa perspectiva o leva a preocupar-se com a concepção de uma
ciência que seja coerente com uma transformação social.
Todavia, ao contrário da contribuição de Andrew Feenberg, que limita sua
análise ao campo da tecnologia e que argumenta sobre a necessidade de que os
interessados num estilo de desenvolvimento alternativo encarem o reprojetamento
tecnológico como uma tarefa essencial para a sua construção, a de Hugh Lacey
está focada na ciência e nas estratégias alternativas de pesquisa científica que
devem ser adotadas pela comunidade de pesquisa.
Como destacado por Dagnino (2005. p. 158), Lacey define a ciência como
pesquisa empírica sistemática, que pode ser praticada segundo várias
abordagens. Em contraposição, a ciência moderna (a ciência que conhecemos)
seria o resultado de apenas uma dessas abordagens possíveis.
Sua proposta tem como objetivo fazer com que valores sociais tenham um
papel legítimo na escolha das estratégias para a pesquisa e para a orientação das
instituições científicas de modo a propiciar a aquisição e confirmação de
conhecimentos que, quando aplicados, sejam capazes de informar os projetos
almejados.
De acordo com Dagnino (2005. p. 160), uma importante distinção que faz
nesse sentido é entre a estratégia segundo a qual a pesquisa deve ser conduzida,
que identifica os objetos do conhecimento e as possibilidades que se está
22 - Tecnocracia.
2
interessado em investigar, e as teorias (ou propostas de conhecimento)
confirmadas no âmbito dessas estratégias.
Segundo Lacey (2002), a escolha de uma estratégia de pesquisa não seria
individual. Ela seria feita mediante um processo de diálogo e negociação entre os
membros da comunidade de pesquisa. Estaria baseada não em regras, como as
defendidas pela estratégia materialista, mas em valores tanto os cognitivos quanto
os sociais. Como observado por Dagnino (ibid, p. 160), não seria, então, a
aplicação das regras, mas a avaliação do nível de manifestação dos valores
cognitivos, o que determinaria a teoria a ser aceita.
De acordo com Dagnino (ibid. p. 160), Lacey distingue três momentos na
atividade científica. O primeiro, em que se determinam as prioridades e a
orientação da pesquisa e as metodologias a serem empregadas. O segundo, em
que se avaliam teorias passíveis de serem utilizadas para explicar o objeto
pesquisado e as hipóteses que podem ser formuladas. O terceiro, seria aquele em
que se aplica o conhecimento científico desenvolvido.
Para Lacey (1998), cada abordagem científica estaria, então, associada a
uma estratégia, e a um conjunto de valores. Enquanto os valores não-cognitivos
seriam genéricos, relativo ao conjunto da sociedade, os valores cognitivos seriam
uma classe de valores pertinentes a ciência.
A relação entre a estratégia de pesquisa a ser adotada e o respectivo
conjunto de valores dessa abordagem é entendido como uma interação
mutuamente reforçadora, e não de subordinação23. Como comentado por Dagnino
(2005), na perspectiva de Lacey:
Uma abordagem não vai se impor no campo científico se for incapaz de gerar teorias com alto valor cognitivo. Independentemente da “correção” ou das condições econômicas, sociais, e ideológicas que militam a favor da aceitação
23 - Como comentado por Dagnino (2005. p. 162): “O que seria o caso se, por exemplo, a
abordagem materialista da ciência moderna estivesse simplesmente a serviço dos valores de
controle; o que implicaria em aceitar que a escolha entre as teorias em contraste se desse tão
somente em função do grau em que ela contribui para a realização destes valores”.
2
do conjunto de valores não-cognitivos que incorpora, uma abordagem só será vitoriosa se demonstrar sua fecundidade em termos cognitivos. Isto é, de sua capacidade para explicar os fenômenos que analisa. (p. 162)
Por outro lado, uma multiplicidade de estratégias competindo umas com as
outras é condição necessária para que a pesquisa possa ampliar seu âmbito de
possibilidades.
Um conceito importante da reflexão de Lacey é o de estratégias de restrição
e seleção (DAGNINO, 2005). Essas estratégias seriam as responsáveis por
restringir o tipo de teoria considerada e pela seleção do tipo de dados empíricos a
serem pesquisados visando a testar as várias teorias em contraste.
Não obstante, e coerentemente com a idéia de que a transformação das
estruturas sociais não pode ser empreendida a partir de um modelo pré-
estabelecido colocado como meta, ficando os meios para serem decididos
separadamente, a proposta de Lacey não vislumbra uma concepção acabada de
uma nova forma que a ciência deveria assumir numa outra sociedade.
De acordo com Lacey (ibid), a convivência de uma multiplicidade de
estratégias de pesquisa numa mesma instituição não apenas favoreceria a
democracia, como permitiria comparar os resultados gerados através de cada uma
delas e estabelecer os limites dentro dos quais é possível aceitá-los como
reforçadoras de um dado projeto social.
Para Lacey (ibid), a crítica engajada orientada a avaliar o resultado e as
conseqüências das estratégias materialistas que foram fundadas nos valores da
dominação da natureza e da acumulação do capital, é o caminho que levará a
uma pesquisa norteada pelos valores da solidariedade e da justiça social. Da
formulação e adoção de estratégias alternativas que interessem aos movimentos
sociais, responsáveis pela transformação das condições sociais atuais, nascerá,
por um lado, uma nova ciência e, por outro, a nova sociedade que se quer
construir.
A figura a seguir permite uma conexão entre as propostas de Hugh Lacey e
Andrew Feenberg:
2
Figura 3: PROPOSTAS DE FEENBERG E LACEY
Elaborado por: Rogério Bezerra da Silva (a partir das proposições de Feenberg e Lacey)
Assim como Feenberg, Lacey também concebe que a questão crucial não é
a tecnologia ou a ciência (tecnociência) em si mesmas. Pois se considerando o
problema como sendo esse, isso conferiria neutralidade e ou mesmo
determinismo ao desenvolvimento tecnocientífico.
Ambos os autores defendem a idéia de construção social da ciência e da
tecnologia, como sendo fundamental para a democratização das relações sociais.
Buscam uma alternativa ao capitalismo, baseada na democratização da
administração e pela mediação tecnocientífica.
Defendem que é necessária uma transformação das práticas tecnocientíficas
de forma que estas incorporem em seu projeto ou concepção variáveis sociais.
Na Teoria Crítica de Feenberg (Op.cit.), essas variáveis podem ser
observadas quando ele propõe que o desenvolvimento tecnológico é condicionado
por valores e controlado pelos homens. No engajamento de Lacey (Op.cit.), tais
variáveis correspondem aos valores sociais, sendo que esses têm um papel
legítimo na escolha das estratégias para a pesquisa e para a orientação das
instituições científicas. Tanto o controle humano como o condicionamento por
valores explicitam valores sociais.
2
Quando Lacey (Op.cit.) constata que o controle do desenvolvimento
tecnocientífico está hoje a serviço do neoliberalismo, isso vai ao encontro do
conceito de tecnocracia visto em Feenberg (Op.cit.). E quando Lacey (Op.cit.)
define a ciência como pesquisa empírica sistemática, que pode ser praticada
segundo várias abordagens, dá a esta a conotação de “subdeterminação”
observada por Feenberg (Op.cit.).
Lacey (Op.cit.), fala que a escolha de uma estratégia de pesquisa seria feita
mediante um processo de diálogo e negociação entre os membros da comunidade
de pesquisa. Essa concepção corresponde à conotação de autonomia operacional
tal como conceituado por Feenberg (Op.cit.).
Para Lacey (Op.cit.), cada abordagem científica estaria, então, associada a
uma estratégia de restrição, e a um conjunto de valores, ou seja, indeterminados
(FEENBERG, Op.cit.).
Pode ser dito que tanto Feenberg quanto Lacey, vislumbram como solução
para os problemas atuais das práticas tecnocientíficas uma redefinição radical
delas que ultrapasse as fronteiras entre os artefatos e as relações sociais.
Ultrapassar essas fronteiras implica em uma abordagem de não-dissociação entre
os artefatos (objetos) e as relações sociais (ações). Destaca-se também neste
trabalho que tanto objetos quanto ações somente adquirem sentido quando
materializados no espaço. Assim, somente a partir desta consideração é que esta
não-dissociação se torna possível. Todavia, Feenberg e Lacey não discutem a
dimensão espaço em suas propostas24.
24 - Fronteiras estas presentes principalmente nas concepções do marxismo ortodoxo.
2 – ELEMENTOS DA NOVA GEOGRAFIA: UMA ABORDAGEM DA CONTRIBUIÇÃO DE ANTONIO CHRISTOFOLETTI
Dentre as correntes teórico-metodológicas sugeridas por Manuel C. de Andrade
(1987), está a teorética-quantitativista (Nova Geografia).
Esta corrente, de acordo com Andrade (ibid), teve grande repercussão no final da
década de 1960 e durante a de 1970. Como destaca o autor, este período foi
palco de intenso desenvolvimento de estudos quantitativos e que teve como
importante centro difusor de suas concepções o curso de Geografia da UNESP,
em Rio Claro - SP. “Neste centro universitário foram produzidas numerosas teses
de doutorado e dissertações de mestrado utilizando os métodos quantitativos”
(ANDRADE, 1987. pp. 109-110).
Um dos maiores representantes brasileiros da corrente teorética-quantitativista foi
Antonio Christoifoletti, Professor Titular, desde 1979, do referido curso25.
Como exposto por Reis Jr. (2003):
Chistofoletti dedicou grande parte de sua obra à discussão do movimento de
renovação metodológica [da Geografia]. Em inúmeros artigos e resenhas
expôs as características da Geografia Teorética, qualificou a adoção da teoria
sistêmica e especificou sua aplicabilidade na ciência, discutiu o caráter
interdisciplinar da Geografia (seu contato com outras disciplinas, através do
uso de técnicas e de terminologias semelhantes), destacou a significância do
papel humano nos sistemas de interesse da Geografia e, para efeito de
divulgação da onda “teorizante/quantificante”, teve a preocupação em
enumerar e comentar as principais fontes de informação sobre ela (...). (p. 50)
Essa corrente teórico-metodológica difundida por Christofoletti, buscava
revolucionar as práticas de pesquisas na Geografia, negando a história da
disciplina (ANDRADE, ibid).
25 - Consultar: GEOGRAFIA, Rio Claro, Vol. 24(1): 5-6, abril 1999.
28
Segundo Andrade (ibid), o prestígio dessa corrente “tornou-se nacional, sendo a
sua pós-graduação uma das mais procuradas, atraindo estudantes de todo o
Brasil” (p. 110). Dada a sua importância, este tópico abordará essa corrente, a
partir da obra de seu grande representante, Antonio Christofoletti, observando a
concepção de neutralidade e de determinismo.
2.1 - A PROPOSTA METODOLÓGICA DE CHRISTOFOLETTI: UMA ABORDAGEM A PARTIR DE FEENBERG E LACEY
Lacey (Op.cit) diz que tanto empiristas quanto racionalistas concebem os juízos
científicos corretos como derivados de sua conformidade com as regras indutivas,
dedutivas, hipotético-dedutivas ou formalizáveis e segundo a estatística, por meio
das probabilidades.
A busca dos geógrafos em enquadrar a ciência geográfica a essas regras,
como assinala Christofoletti (1976), vem desde o fim da Segunda Guerra e marca
uma transformação profunda na sua prática. Segundo o autor, “esta
transformação, abrangendo o aspecto filosófico e metodológico, foi denominada
de ‘revolução quantitativa e teorética da Geografia’ (Burton, 1963)”
(CHRISTOFOLETTI, 1976. p. 5). Essa revolução foi fundamental, pois implicou a
consolidação tanto da geografia quantitativa quanto da geografia teorética, sendo
estas a base para a seleção dos critérios e das estratégias de pesquisa do que
Christofoletti denominou Nova Geografia.
Para Christofoletti, a geografia quantitativa “expressa a aplicação intensiva
das técnicas estatísticas e matemáticas nas análises geográficas”, sendo que “o
procedimento quantitativo pode ser considerado entre as características básicas
da Nova Geografia”. Já a geografia teorética “salienta o aspecto teórico e
metodológico, subentendendo como imprescindível toda a análise quantificativa e
englobando os processos de abstração necessários às etapas da metodologia
científica e da explicação” (1976, p. 3).
29
Fica evidente que a prática tecnocientífica defendida busca erigir valores
cognitivos cumprindo tanto os encargos explicativos quanto normativos, como
abordado por Lacey (ibid). A corrente teorética-quantitativa expressa a concepção
de que não apenas está em contato com a prática tecnocientífica genuína,
apregoada pela modernidade, mas também com aquela em que se reconhece sua
susceptibilidade à crítica racional e as transformações que constituem respostas a
tal crítica (LACEY, Op.cit.).
Na proposta de Christofoletti, os critérios para a seleção dos valores
(cognitivos) que orientarão a prática tecnocientífica estão pautados pelo que Lacey
denomina estratégia materialista. De acordo com Christofoletti:
'A investigação fundamental tem que provavelmente se apoiar, em alto grau, na quantificação. Com esta afirmação não só sublinhamos que qualquer investigação útil em Geografia deve ser investigação quantificada, mas que uma análise realmente significativa dos processos que determinam a evolução do conteúdo espacial deve apoiar-se na quantificação’(Ackerman, 1958. p. 30). (...) As técnicas quantitativas possuem a função de serem fundamentais na coleta e na análise dos dados, orientando a mensuração, a amostragem, a descrição e apresentação, a testagem das hipóteses e das inferências, a classificação e a análise multivariada das relações e das tendências das distribuições espaciais. (CHRISTOFOLETTI, 1976. pp. 24-25)
Como sublinhado por Lacey (ibid), para a ciência moderna somente são de
interesse as constatações observáveis e que possam ser reproduzidos através de
práticas experimentais, ou de práticas afins que envolvem intervenções de
instrumentos de medida, ou as que ampliam a percepção e que, em um segundo
momento, relatem as propriedades e relações quantitativas (mensuráveis) dos
fenômenos. As teorias submetidas a testes de “validade” serão aquelas com
características afins à estratégia materialista.
Nas considerações de Christofoletti estão presentes os quatro critérios,
expostos por Lacey (Op.cit.), para que sejam aceitos os valores cognitivos na
estratégia meterialista.
Segundo Christofoletti, a “teoria probabilística encontra-se na base da
aplicação de diversas técnicas analíticas, em todos os trabalhos de simulação e
30
no contexto interpretativo realizado sobre fenômenos geográficos”. Dessa forma,
as organizações espaciais, como objeto de estudo da Geografia, “no contexto da
teoria probabilística”, considera que “todos os arranjos possíveis têm chances de
acontecer” (1976, pp. 3;19). O autor salienta ainda que seja necessário
hierarquizar as organizações espaciais para que sirvam como procedimento
dedutivo a fim de se estabelecer as categorias e níveis de abordagem da pesquisa
geográfica. Todavia, “não se deve omitir a importância do procedimento
indutivo26”, nessas pesquisas (CHRISTOFOLETTI, 1978. p. 20).
Esses argumentos de Christofoletti (ibid), em defesa do objeto da geografia
estão de acordo com os pressupostos positivistas. De acordo com Christofoletti:
Critica-se comumente a preocupação em se definir e precisar o objeto da Geografia, dominante na Geografia Tradicional e na Nova Geografia, por se basearem na metodologia científica e fundamentos positivistas. (...) É preciso partir da definição e do objeto proposto para a ciência geográfica. No contexto do conhecimento reinante no mundo atual, o neo-positivismo e a metodologia científica são os campos que fornecem os critérios mais razoáveis para se encontrar a solução. (1978, p. 2)
Como escreve Stengers (2002), no campo do saber positivo “o cientista
transforma-se em representante acreditado de uma conduta em relação à qual
toda forma de resistência poderá ser considerada obscurantista ou irracional” (p.
31). Christofoletti (ibid) ao defender os pressupostos positivistas concebe que as
teorias científicas são livres de valores não-cognitivos. Essa corresponde à
primeira consideração de Lacey (1998).
A segunda consideração, que expressa a idéia de que as teorias da aquisição e
da avaliação do conhecimento são formuladas a partir do naturalismo
evolucionista e da psicologia cognitiva, pode ser observada quando Christofoletti
expõe que:
26 - Para o indutivismo, desde que certas condições sejam satisfeitas, é legítimo generalizar a
partir de uma lista finita de proposições de observação singulares para se estabelecer uma lei
universal (CHALMERS, 1993. p. 26).
31
Se considerarmos o fato de que uma organização espacial indica o grau de ajustamento entre o grupo humano e o meio ecológico, podemos inferir que o estado de equilíbrio estável representa o melhor funcionamento na estruturação espacial, denunciando o desenvolvimento mais eficaz para as condições reinantes. Assim, toda sociedade que atingir o estado de estabilidade pode ser considerada como desenvolvida. (1976, p. 20)
Essa argumentação coloca Christofoletti (ibid) de acordo com o naturalismo
evolucionista.
Christofoletti contesta a visão de que “o geógrafo é aquele que se coloca diante de
uma paisagem, cujos traços evocadores se impõem aos seus olhos” (CLOZIER,
1950 apud CHRISTOFOLETTI, 1976. p12). Ele argumentará que a paisagem é
insuficiente para o nível de uma análise mais profunda. Diante disso Christofoletti
(1976) escreve que:
Com a transformação conceitual e metodológica [da geografia], houve alterações na importância relativa dos instrumentos de análise. O uso de modelos passou a ser instrumento de significativa importância, enquanto os trabalhos de campo, a análise de cartas e de fotos, a análise quantitativa e outras passaram a ser técnicas destinadas a obter e estudar as informações com a finalidade de testar as hipóteses e a viabilidade dos modelos. (p. 22)
Tal como na psicologia cognitiva, que defende que somente por meio da
comprovação experimental que a ciência pode se constituir, a Nova Geografia
defendida por Christofoletti (ibid) busca a mesma fundamentação.
A terceira consideração lembrada por Lacey (ibid), sobre a possibilidade de o
critério proposto - no caso o da estratégia materialista - ser concretamente
exemplificado numa teoria, está presente em Christofoletti quando este diz que:
A estrutura espacial de uma distribuição representa a localização de cada elemento relativamente à localização de cada um dos outros, e a localização de cada elemento relativamente a todos os outros (Abler, Adams e Gould, 1971. p. 60). Os processos envolvem a dinâmica responsável pelas relações entre os elementos da estrutura, denunciando os fluxos de matéria e energia, assim como os inputs inovadores fornecidos ao sistema, e pela distribuição
32
espacial desses elementos, que é refletida pelo arranjo da estrutura. (1976, pp. 12-13)
Tanto a mensuração quanto à quantificação e experimentação, estão presentes
nessa abordagem. O primeiro pode ser visto na questão da localização de um
elemento em relação ao outro, o que leva necessariamente à quantificação dos
mesmos. Já a experimentação deve ser apreendida pelo tratamento das
categorias provenientes da Física.
A quarta consideração, sobre à auto-imagem predominante na comunidade
científica contemporânea que tende a considerar os produtos da ciência como
neutros, disponíveis para todos e independentes de valores sociais, pode ser vista
em Christofoletti quando ele diz que:
Tudo27 isso representa arsenal para a elaboração de modelos de organização que sejam válidos e sirvam de padrão para os projetos de planejamento regional. Para a atividade profissional, a Geografia entrosa o avanço do conhecimento e a aplicabilidade para usufruto das sociedades humanas. (1983, p. 22)
Com isso, o autor busca argumentar a favor da concepção de que os critérios
elegidos na corrente teorética-quantitativista estão de acordo com objetivo da
ciência, de neutralidade e seus produtos disponíveis a toda a sociedade.
Christofoletti argumenta também que:
A adoção da estrutura em um sistema faz com que ele implicitamente preencha os requisitos delineados pelo funcionalismo. Todavia, não se pode afirmar que a explicação seja do tipo teleológico, mas que se explica na categoria dedutuvo-probabilista. De modo complementar, os procedimentos descritivos e analíticos envolvem técnicas que se baseiam na metodologia científica, com pressupostos relacionados ao neo-positivismo. (CHRISTOFOLETTI, 1978. p. 15)
27 - Christofoletti (1983) está se referindo tanto a explicação quanto a avaliação das organizações espaciais a partir do método geográfico.
33
Quando Christofoletti propõe que as pesquisas geográficas partam dos
pressupostos neo-positivistas, assume a fundamentação desta concepção que, de
acordo com Chalmers, tem como principal objetivo:
Fazer a defesa da ciência e distinguí-la do discurso metafísico e religioso, que a maioria deles [os neo-positivistas] descartava como bobagem não-científica. Eles procuravam construir uma definição ou caracterização geral da ciência, incluindo os métodos apropriados para a sua construção e os critérios a que recorrer para fazer sua avaliação. Com isso em mãos, visavam defender a ciência e criar dificuldades para a pseudociência, mostrando como a primeira se ajusta à caracterização geral, e a última não. (...) Os positivistas visavam mostrar que a ciência autêntica é “verificada” e verdadeira em relação à “sentenças protocolares” – fatos revelados a observadores cuidadosos por meio de seus sentidos28. (1994, pp. 14; 28)
Como discutido por Lacey (Op.cit.), nessa percepção está presente à questão
da neutralidade da prática tecnocientífica. Nesta visão, as teorias não teriam
implicações lógicas relativas aos valores não-cognitivos e, dessa forma, os
produtos da prática tecnocientífica, dela decorrentes, podem ser aplicados em
qualquer sociedade.
Para Christofoletti (ibid), os critérios para a seleção do que Lacey (ibid)
denomina valores cognitivos (a serem erigidos para a prática tecnocientífica),
devem estar de acordo com as concepções da metodologia científica apregoada
pelo neo-positivismo.
Essas considerações permitem considerar Christofoletti como possuindo uma
concepção instrumental da ciência. De acordo com Feenberg (Op.cit.), esta visão,
que corresponde à moderna padrão, pode ser apreendida pela interseção entre o
controle humano e a neutralidade de valores, e que concebe a tecnociência como
sendo simplesmente uma ferramenta ou instrumento da espécie humana através
da qual satisfazemos nossas necessidades.
Como salientado por Feenberg (ibid), dentro desta perspectiva, é
argumentado que o que garantiria o uso e a orientação desse instrumento “para o
28 - Valores cognitivos.
34
bem” é algo estranho ao mundo do conhecimento tecnocientífico e daqueles que o
produzem. Visão esta sustentada por Christofoletti, ao expor que:
Desde que seja coesa com a perspectiva teórica na qual se enquadra, toda contribuição cientificamente honesta é merecedora de elogios e aceitação, pois representa algo mais na procura da verdade. Mas é preciso fazer uma distinção. Os dados e os fatos perfeitamente esclarecidos podem se utilizados por várias teorias, pois em si mesmos são neutros, em significação própria. (...) Esse procedimento é puramente teórico, pois reflete a ordem que a ciência procura descobri na natureza. (1976, p. 21)
Para Christofoletti somente se a “ética” não for respeitada, esse
conhecimento poderá ter implicações indesejáveis. Dessa forma, pode ser dito
que a concepção de Christofoletti é pertinente à positivista. Para esta, segundo
Dagnino (2005), a subjetividade deve ser contida dentro dos limites da
objetividade e sua tentativa de reproduzir a realidade “assim como ela é” dá força
à crença de que a ciência é a expressão de uma verdade absoluta.
2.2 – ELEMENTOS DA CORRENTE ECOLÓGICA NA GEOGRAFIA: UMA ABORDAGEM DA CONTRIBUIÇÃO DE AZIZ NACIB AB’SÁBER
Segundo Andrade (1987), no estudo da evolução da Geografia e do pensamento
geográfico no Brasil desde o pós-guerra, também deve ser dada importância à
perspectiva da corrente ecológica.
De acordo com Andrade (ibid), muitos geógrafos passaram a se preocupar
seriamente como os problemas ambientais, deixando de realizar trabalhos que
isolassem a morfologia, clima, hidrologia etc. para realizar pesquisas sem
dissociá-los.
Segundo Andrade, “o geomorfológo Aziz Nacib Ab’Sáber, após anos de trabalho e
pesquisas em todo o Brasil, passou a militar como cientista e como cidadão na
luta em favor do respeito às condições ecológicas (...)” (1987, p. 120).
Como dito por Varella (2005):
35
Para quem acompanha a evolução da ciência, Aziz Ab'Sáber dispensa apresentações. Ele é o autor da Teoria dos Redutos que se desenvolveu na mesma linha de pensamento da Teoria da Evolução das Espécies do biólogo inglês Charles Darwin. Professor há muitos anos, Ab' Saber formou gerações e gerações de geógrafos e todos os alunos o admiram por sua dedicação à pesquisa, à transmissão do conhecimento adquirido e pela defesa intransigente dos interesses e da cultura de nosso país. (s/p)
Dessa forma, como observa Andrade (ibid), “dando entrevistas nas cadeias de
rádio e televisão, publicando notas e artigos em jornais e escrevendo ensaios
contundentes, Ab’Sáber é hoje uma das maiores autoridades na luta em defesa do
patrimônio ecológico brasileiro” (p. 121).
2.3 - A PROPOSTA METODOLÓGICA DE AZIZ NACIB AB’SÁBER: UMA ABORDAGEM A PARTIR DE FEENBERG E LACEY
Dagnino (Op.cit.) diz que a imagem da ciência como uma atividade de indivíduos
em busca da verdade não coincide com a realidade social contemporânea.
Todavia, essa idéia é defendida por Ab’Sáber.
Ab’Sáber, em entrevista a Varella (ibid), expõe que “a pesquisa é uma
ferramenta da cultura para entender fatos que pertencem ao universo da Terra, da
vida, da sociedade e dos mais variados valores culturais. Meu interesse sempre foi
à pesquisa científica, a ciência como resultado da observação” (s/p). Essa
concepção expressa a ciência como uma ferramenta (instrumento) utilizada para a
descoberta da verdade contida nos fatos não sendo ela influenciada por eles.
Em um de seus trabalhos Ab’Sáber reforçará a idéia contestada por Dagnino
(ibid) ao escrever que:
A ciência é feita para o conhecimento de todas as coisas. O conhecimento do universo, da estrutura da matéria, da estrutura da vida, da origem da atmosfera, da origem dos organismos vivos de diferentes áreas (vegetais, animais e microorganismos), e é feita em um nível de potencialização do bom
36
senso. (...) “potencializar o bom senso” sem método não adianta nada para qualquer tipo de ciência. (1993, p. 10)
Como a ciência, na concepção de Ab’Sáber (ibid), é um instrumento para a
descoberta da verdade contida nos fatos ele defenderá um “caminho” a seguir, um
método, para se chegar a essa verdade. Esse caminho define as ferramentas a
que o pesquisador deve se valer para a descoberta da verdade.
Pode-se observar em Ab’Sáber a defesa da dissociação entre ciência
(pesquisa básica) e tecnologia (pesquisa aplicada). Como exposto por ele:
A ciência básica terá que garantir o espaço e as condições mínimas desejáveis para formular suas pesquisas, desenvolver suas experiências, rastrear e testar suas hipóteses mais promissoras. Mas, em termos de objetivos, se divide sempre entre o rigor do método e a transparência da ética, a par com uma busca mais voluntária e enérgica de possíveis aplicações de seus resultados e da soma integrada dos conhecimentos acumulados. (AB’SÁBER, 1988. p. 15)
Para o autor a defesa da ciência básica procura o rigor do método. Esta
proposição o coloca a favor da idéia de que as práticas científicas, na atualidade,
sustentam como válidos somente os valores cognitivos (LACEY, Op.cit.).
A esse respeito, Ab’Sáber (1993), observa que a “verdadeira ciência” deve
pautar-se pela tese, a qual somente pode ser validada observada as contradições
que esta contém em seu cerne (antítese) e daí ser estabelecida a síntese, o que
potencializa o conhecimento retirado da análise do mundo empírico.
Ab’Sáber diz ainda que:
Ao sublinhar os níveis de tratamento que consideramos essenciais na metodologia das pesquisas geomorfológicas nos anima apenas a idéia de pôr ordem no caos das postulações pessoais e das controvérsias escolásticas. (...) Pensamos que, em um primeiro nível de considerações, a Geomorfologia é um campo científico que cuida do entendimento da compartimentação da topografia regional, assim como, da caracterização e descrição, tão exatas quanto possíveis, das formas de relevo de cada um dos compartimentos estudados. (AB’SÁBER, 1969. pp. 1; 2)
37
Nota-se que, ao contrário da proposta de Lacey (ibid), que contesta as pretensões
da ciência relacionada à racionalidade, objetividade e validez universal, a de
Ab’Sáber aceita justamente esses qualificativos para a ciência.
Quanto à racionalidade e à objetividade, Ab’Sáber (1988) concorda com Monteiro
quando este expõe que:
O grande papel da comunidade científica, em qualquer sociedade, é contribuir para que a percepção dos fatos (naturais, sociais, físicos, econômicos etc.) seja a mais próxima da realidade para que as decisões tomadas sejam as mais adequadas. (...) A comunidade científica é um segmento importante, e até mesmo decisivo, em qualquer sociedade moderna, mas sua produção precisa ser entendida pelos outros segmentos da sociedade para que se crie o “consenso” nas decisões nacionais. (MONTEIRO, 1981 apud AB’SÁBER, 1988. p. 14)
Quando Ab’Sáber (ibid) escreve que o papel da comunidade científica é o de
contribuir para que a percepção dos fatos seja a mais próxima da realidade,
reforça a idéia da ciência como neutra. Para ele, a ciência é um instrumento
neutro para a descoberta da verdade e, dessa forma, o cientista, por meio de suas
ferramentas (método), também é neutro – não influencia os fatos – quanto aquilo
que pesquisa.
Ab’Sáber (1993, p. 12) escreve que somente é possível teorizar em geografia
utilizando-se dos seus princípios básicos, configurando estes como a possibilidade
de comparar situações, a partir da comparação de casos em que a natureza é
igual e, no entanto, as sociedades são diferentes. Estes princípios básicos seriam
entendidos como estabelecidos pelo método geográfico, e que teriam validez
universal.
Como observado por Lacey (Op.cit.), para a ciência moderna, somente
constatações observáveis a partir de determinados critérios são de interesse, e,
dessa forma, as teorias submetidas a testes de “validade” serão aquelas com
características afins à estratégia materialista.
As proposições de Ab’Sáber defendem que a prática científica seja erigida
sobre constatações observáveis.
38
A Geomorfologia moderna cuida de entender os processos morfoclimáticos e pedogênicos atuais, em sua plena atuação, ou seja, procura compreender globalmente a fisiologia da paisagem, através da dinâmica climática e de observações mais demoradas e sob o controle de equipamentos de precisão. (1969, p. 2)
A argumentação de Ab’Sáber (ibid) estabelece, no que constitui as constatações
observáveis, uma descrição de fenômenos que possam ser replicáveis por meio
de práticas experimentais ou que envolvam intervenções de instrumentos de
medida, e que relatam as propriedades e relações mensuráveis dos fenômenos.
Lacey (Op.cit.) diz que os produtos das constatações são, por um lado,
abstraídos do grande número de descrições diferentes que poderiam ser dadas ao
mesmo fenômeno e, por outro, são desvinculadas das práticas humanas, bem
como de seu lugar de manifestação.
A respeito da primeira observação de Lacey (ibid), salienta-se que as
proposições de Ab’Sáber (ibid) buscam uma explicação única para os fenômenos.
Sobre a segunda observação, a de que as constatações observáveis são
desvinculadas das práticas humanas, bem como de seu lugar de manifestação,
Ab’Sáber (1988) escreve que:
E em termos da responsabilidade intelectual de cientistas do Terceiro Mundo, talvez fosse oportuno salientar que nossa decisão deve pender sempre para aquilo que seja mais conveniente para todas as comunidades residentes e, sobretudo, para as mais carentes e desprovidas. (1988, p. 14)
Todavia, mesmo Ab’Sáber (1988) reconhecendo as práticas humanas e seu
lugar de manifestação, concebe estas como pré-determinadas. De acordo com
Ab’Sáber, “um outro problema que diz respeito ao espaço total, é de que, via de
regra, os espaços totais foram criadas por ações dos homens, que não são
voluntárias e que são mais ou menos espontâneas” (1993, p. 18).
O meio é que determinaria as ações humanas para Ab’Sáber (1993):
39
O espaço total, historicamente é sempre acumulativo. É a acumulação das ações antrópicas sobre uma natureza que é a base e o suporte ecológico de todas as atividades, e que se modifica fundamentalmente se a pressão do capitalismo selvagem se fizer de um modo liberalizado por todos os espaços. Vocês não tenham dúvidas, a única possibilidade de bloquear a intensidade do capitalismo selvagem sobre a natureza dos países inter-tropicais e sub-tropicais está na questão ecológica. (p. 17)
O que Ab’Sáber (1993) procura é um equilíbrio do meio, o qual é entendido
como tendo sido quebrado pelo modo de produção capitalista. Então o único
caminho possível para se restituir esse equilíbrio é através da ecologia,
concebendo o homem como elemento de um ecossistema.
A partir da exposição de Lacey (Op.cit.) sobre os quatro critérios necessários para
que as constatações sejam aceitas como valores cognitivos, pode-se apreender
na proposta de Ab’Sáber (ibid) a defesa deles.
Sobre o primeiro destes critérios - teorias a priori do conhecimento - Ab’Sáber
escreve que “temos que saber que técnica nos dá alguma coisa, mas nós temos
que completar com conhecimento ‘in situ’ e ‘ex situ’, das outras realidades.” (1993,
p. 15). A técnica para o autor refere-se a teorias, que sendo instrumentais,
possibilitam conhecer a realidade. Todavia, dado ao fato de que para Ab’Sáber
(Op.cit.) o objeto de estudo da geografia é o espaço total29, essas teorias devem
complementadas com conhecimentos internos e externos à realidade abordada
(ao espaço abordado).
Sobre o segundo, que corresponde a teorias da aquisição e da avaliação do
conhecimento, formuladas do ponto de vista do naturalismo evolucionista e da
psicologia cognitiva, Ab’Sáber expressa que “uma região é uma porção do
território e é reconhecida historicamente pelos seus atributos físicos no sentido de
vegetação, de solos, de redes hidrográficas, de tipo de água etc.” (1993, p. 15).
29 - Ambiente diversificado em que vive o homem, não apenas no presente, mas também no
passado (AB’SÁBER, 2005. p. 19). Este ambiente ou espaço tem limites bem definidos. Nesse
sentido o espaço total é um mosaico, um pano de fundo pontilhado por cidades, por aldeias (...)
(1993, p. 20).
.
40
A possibilidade de o critério proposto ser concretamente exemplificado por
uma teoria, que corresponde a terceira consideração geral, pode ser observada
em Ab’Sáber. Segundo ele:
(...) o conceito de ecossistema introduziu a possibilidade da gente conhecer a realidade da natureza, diferenciada pela conjugação entre o suporte geo-ecológico e o tipo de vida que ali se desenvolveu e que os homens depois interferiram. (...) O outro conceito nasceu como decorrência desse primeiro. Os urbanistas descobriram um dia que o homem que está na cidade, está num tipo de habitat, portanto, ele está num tipo de ecologia, mais concentrado, com a partilha maior do espaço, vivendo em contatos maiores entre pessoas diferentes quanto à classe social. (1993, p. 19)
O quarto critério versa sobre o objetivo da ciência. Sobre isso Ab’Sáber diz
que “o grande papel da comunidade científica [através de suas práticas
científicas], em qualquer sociedade, é contribuir para que a percepção dos fatos
(naturais, sociais, físicos, econômicos etc.) seja a mais próxima da realidade para
que as decisões tomadas sejam as mais adequadas” (MONTEIRO, 1981 apud
AB’SÁBER, 1988. p. 14). Se a ciência alcança esse objetivo, isso tornará os
critérios expressos pelas constatações observáveis válidos, já que as proposições
de Ab’Sáber (ibid) atribuem um viés de neutralidade à ciência.
De acordo com suas proposições, a ciência, neutra e pura, tem como objetivo
desvendar a realidade, promovendo um conhecimento objetivo desta e, assim,
disponibilizá-lo a sociedade. Porém, deve ser resguardada sua ética, fazendo com
que, “a Ciência e a Universidade devam estar voltadas para os valores
permanentes da sociedade e não para os efêmeros desígnios do poder”
(MONTEIRO, 1981 apud AB’SÁBER, 1988. p. 14). Fica claro, nesta interpretação,
que esses valores não-cognitivos não deveriam interferir no processo de produção
do saber.
Nessa perspectiva de neutralidade, um dispositivo técnico é simplesmente
uma concatenação de mecanismos causais. Não há um número suficiente de
estudos científicos que possam encontrar nele qualquer coisa próxima a um
propósito (FEENBERG, 2003. p. 6). E por outro lado os produtos da ciência devem
41
ser humanamente controlados, de acordo com suas intenções, a fim determinar o
próximo passo de sua evolução (Feenberg, ibid. p. 6).
Pode ser dito que Ab’Sáber concebe a prática da ciência como sendo neutra,
todavia seus produtos devem ser colocados à disposição (controlados) pelos
homens. E ela será para um fim bom se ela estiver a salvo dos “efêmeros
desígnios do poder”. Isso permite que lê seja colocado na categoria
Instrumentalista (FEENBERG, 2003). Por outra via, Ab’Sáber adota uma visão
Determinista (FEENBERG, ibid) do tipo ambiental para entender o
desenvolvimento da Humanidade, ou seja, aceita as idéias de neutralidade e de
autonomia de Feenberg (ibid). Como expõe Feenberg (ibid), essa autonomia
considera os seres humanos intervindo nesse desenvolvimento.
Advêm daí a defesa de Ab’Sáber de uma ciência instrumentalista, pois
somente com essa perspectiva seria possível estabelecer o equilíbrio perdido
entre o homem e a natureza, pois as propostas científicas nada mais seriam do
que a compreensão da verdade contida na natureza para que o homem possa
melhor se adaptar a ela.
A argumentação de Ab’Sáber (ibid), como discutido por Lacey (Op.cit.), é
coerente com a auto-imagem predominante na comunidade científica
contemporânea que tende a considerar os produtos da tecnociência como neutros,
disponíveis para todos, e independentes de valores.
2.4 – ELEMENTOS DA GEOGRAFIA CRÍTICA: UMA ABORDAGEM DA CONTRIBUIÇÃO DE MILTON SANTOS
Outra abordagem importante, segundo Andrade (1987), no estudo da evolução da
Geografia e do pensamento geográfico no Brasil desde o pós-guerra, é a da
Geografia Crítica.
A Geografia Crítica, de acordo com Andrade (ibid, p. 128), não se constitui
propriamente como uma escola. Caracterizam-se como geógrafos críticos àqueles
42
que se conscientizaram da existência dos graves problemas da sociedade
brasileira. São críticos também ao afirmar que tanto a geografia tradicional quanto
à quantitativa, embora se apregoem como neutras, possuía um sério compromisso
com o status quo.
No Brasil, a posição crítica da geografia tomou força a partir dos anos 1970, muito
embora em décadas anteriores já houvesse publicações de geógrafos
expressando uma profunda preocupação com a sociedade brasileira.
Como destaca Andrade (ibid, p. 129), retornando ao Brasil na década de 1970,
após longo exílio, Milton Santos participa do Conselho Editorial das Revistas
Antipode e Herodote, o que dá grande impulso à crítica sobre e na Geografia.
De acordo com Martinez (2002):
El pensamiento de Milton Santos sobre la Geografía - y las Ciencias Sociales - ha marcado una contribución muy importante para la disciplina, por su rigor y por su original mirada de las problemáticas socio-territoriales, desde América Latina. Fue un intelectual comprometido y crítico que recorrió el mundo, aportando con su conocimiento nuevas ideas, particularmente pensadas hacia la conformación de un mundo más solidario. Desde su incursión punzante en los ámbitos académicos europeos y anglosajones denunció y fundamentó en conferencias, cursos, artículos y diversas obras, la desigualdad manifiesta entre los pueblos más ricos y los más pobres. (s/p)
Milton Santos trabalhou, entre 1978 e 1982, como professor visitante na
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - USP. Em
1983 ingressou em outra instituição de ensino e pesquisa: o Departamento de
Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde
permaneceu até 2001, ano de sua morte (RIBEIRO, 2002. s/p). Devido a sua
trajetória, Milton Santos passou a ser considerado um dos maiores representantes
brasileiros da Geografia Crítica.
43
2.5 - A PROPOSTA METODOLÓGICA DE MILTON SANTOS: UMA ABORDAGEM A PARTIR DE FEENBERG E LACEY
De acordo com Oliveira (2002, p. 109), não há como separar o
desenvolvimento da ciência e da tecnologia modernas da grande transformação
ocorrida com o surgimento e a consolidação do capitalismo como sistema
econômico e social.
Santos (1996), tem a mesma concepção de Oliveira (ibid). Santos (ibid) ao
dissertar sobre sua proposta de método geográfico diz que:
O casamento da ciência e da técnica, longamente preparado desde o século 18, veio reforçar a relação que desde então se esboça entre ciência e produção. Em sua versão atual como tecnociência, está situada a base material e ideológica em que se fundam o discurso e a prática da globalização. (p. 141)
Para Santos (ibid), o que convencionalmente chama-se de ciência e
tecnologia são práticas que na atualidade se tornam indissociáveis. Essa
indissociabilidade vem se acentuando nos últimos anos (NUÑEZ, Op.cit.), e pode
ser constatada através da redução do tempo entre pesquisa e inovação
(DAGNINO, ibid). Dessa forma, para os autores, a tecnociência, pode ser
considerada como a base do discurso e da prática da globalização na atualidade.
Há concordância em Santos (ibid) sobre a questão levantada por Dagnino
(Op.cit.) de que a ciência não consistiria em pura teoria, nem a tecnologia30 seria
puramente aplicação. Para Santos: “o objeto é científico graças à natureza de sua
concepção, é técnico por sua estrutura interna, é científico-técnico porque sua
produção e funcionamento não separam técnica e ciência” (1996, p. 171).
30 - Sobre a questão da técnica e da tecnologia, pode ser visto em Santos (1996) que: “G.
Böhnee propõe a noção de Tecnoestrutura, que seria o resultado das inter-relações essenciais dos
sistemas de objetos técnicos com as estruturas sociais e as estruturas ecológicas, idéia que servirá,
no dizer de B. Joerges (1988, p. 17) para exorcizar as ambigüidades do conceito de técnica e de
tecnologia nas ciências sociais.” (p. 32)
44
Todavia, como salienta Santos (ibid), além da indissociação entre ciência e
técnica, hoje, sobretudo, há um novo elemento que é impreterível que se
considere na discussão dos objetos que é a informação. Santos (ibid), observa
que o objeto:
É, também, informacional porque, de um lado, é chamado a produzir um trabalho preciso – que é uma informação – e, de outro lado, funciona a partir de informações. Na era cibernética, que é a nossa, um objeto pode transmitir informações a outro objeto. (p. 171)
Tanto a ciência como a técnica e a informação integram as redes cujos nós
também fazem parte todo tipo de instrumentos, seres e objetos relevantes à
atividade que se desenvolve no seu entorno.
Essa noção de não-dissociação entre ciência, tecnologia e informação é
extremamente relevante para Santos, pois ela atinge um outro âmbito de
discussão, o espacial.
Santos (ibid), ao considerar o espaço geográfico como o objeto de estudo da
ciência geográfica, observa que31:
O espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá. (...) Sistemas de objetos e sistemas de ações interagem. De um lado, os sistemas de objetos condicionam a forma como se dão às ações e, de outro, lado, o sistema de ações leva à criação de objetos novos ou se realiza sobre objetos preexistentes. É assim que o espaço encontra a sua dinâmica e se transforma. (p. 51-52)
Na questão da ciência e da tecnologia, a primeira seria, sobretudo, ação
cada vez mais sustentada por informações para a execução dos objetos
(tecnologia), o que conferiria a estes uma extrema intencionalidade.
Como exposto por Santos (1996):
31 - Abordagem dialética materialista.
45
A noção de intencionalidade permite uma outra releitura crítica das relações entre objeto e ação. (...) Mas a noção de intencionalidade não é apenas válida para rever a produção do conhecimento. Essa noção é igualmente eficaz na contemplação do processo de produção e de produção das coisas, consideradas como um resultado da relação entre o homem e o mundo, entre o homem e o seu entrono. (pp. 72-73)
De acordo com Santos (1996), graças ao progresso da ciência e da técnica é
possível construir cada vez mais objetos com possibilidades funcionais
sobredeterminadas. Esses objetos, na atualidade, tendem a alcançar cada vez
maior especialização e a obter uma intencionalidade. E isso pode ser interpretado
como os objetos adquirindo uma autonomia relativa (autonomia tecnológica).
Para Santos (1996):
Sistemas de objetos e sistemas de ações interagem. De um lado, os sistemas de objetos condicionam a forma como se dão às ações e, de outro, lado, o sistema de ações leva à criação de objetos novos ou se realiza sobre objetos preexistentes. É assim que o espaço encontra a sua dinâmica e se transforma. (pp. 51-52)
Como visto abaixo, Santos (ibid), ao citar B. Ollman (1971), expõe que os objetos
não têm vida própria. Já para Baudrillard (s/d, apud SANTOS, ibid), os objetos não
têm existência fora das atividades simbólicas da sociedade.
Uma história geral, mas simplificada, dos instrumentos artificiais utilizados pelo homem, seria resumida em três palavras: a ferramenta, a máquina, o autômato. Suas definições revelam momentos decisivos na evolução das relações entre o homem, o mundo vivo, os materiais, as formas de energia. A ferramenta é movida pela força do homem, inteiramente sob o seu controle; a máquina, também controlada pelo homem, é um conjunto de ferramentas que exige uma energia não-humana; o autômato, capaz de responder às informações recebidas, nessas circunstâncias foge ao controle humano (Laloup & Nelis, 1962. pp. 34-36). (...) “As técnicas estabelecem entre elas relações de dependência”, diz J. Perrin (1988, p. 28) e o seu desenvolvimento histórico “multiplica o número de inter-relações”. Esse desenvolvimento, aliás, deve-se, em grande parte, ao fato de que toda modificação de um elemento incide sobre os demais (J. Ellul, 1977. p. 23), um outro dado de sua existência sistêmica. (pp. 138; 141)
46
Estas constatações compartilhadas por Santos (ibid), evidenciam que, ao passo
que o objeto possui uma autonomia relativa, esta somente é adquirida devido à
sua existência sistêmica em que o controle humano é fundamental.
Da mesma forma, como Lacey (Op.cit.), contesta a estratégia materialista
que concebe os critérios quantitativos, matemáticos e materialistas, basilares para
que teorias sejam aceitas:
Para ser eficaz, o pensamento calculante exclui o acidente e submete a elaboração intelectual a uma prática onde à sistematização e à estandartização impõem sua lógica própria, isto é, o domínio da lógica matemática sobre a lógica da história. É como se as matemáticas ganhassem vida própria, conforma nos lembra Philippe Queau (1987, p. 6), ou como se o espaço matemático se encarnasse materialmente (A. Grãs, 1993. p. 21). (p. 149)
A perspectiva crítica de Lacey (Op.cit.), sobre as pretensões da ciência associada
à tecnologia, por meio da estratégia materialista, contribuir para o progresso da
Humanidade, ou seja, ser neutra, é também a de Santos (1996). Todavia, a
proposta de Santos será diversa da de Lacey.
Oliveira (1998) entende a proposta de Lacey da seguinte forma:
A reflexão de Lacey sobre a ciência é engajada no sentido de que articula as questões epistemológicas aos problemas concretos que a humanidade enfrenta no presente momento histórico. Outro elemento de ruptura consiste na postura crítica que Lacey adota em relação à própria ciência – e não apenas a outras concepções sobre a ciência. (pp. 2-3)
Santos adota uma posição que se aproxima da retomada da neutralidade da
ciência para a proposição de uma transformação social. Citando Anne Buttimer
(1979, p. 249), Santos (1996, p. 40) diz que ela “observa que ‘entre as
preocupações centrais para a geografia moderna encontra-se a organização do
espaço e do tempo”. Para ele, o objetivo da autora não é o de descobrir uma
experiência humana total, mas sim o de descobrir uma experiência técnica, ou da
utilização racional do espaço-tempo, visando assegurar eficácia econômica à
administração de investimentos.
47
Pode ser dito que Santos (ibid), ao observar que a visão de ciência da autora
volta-se à eficácia econômica e da administração, afasta aquela de seu objetivo: o
de descobrir uma experiência humana total. No entanto, essa descoberta a que
Santos (ibid) se refere implica em conceber a prática científica com uma certa
neutralidade.
Como escrito por Santos:
O mundo é um só. Ele é visto através de um dado prisma, por uma dada disciplina, mas, para o conjunto de disciplinas, os materiais constitutivos são os mesmos. (...) Uma disciplina é uma parcela autônoma, mas não independente, do saber geral. (1996, p. 17)
A autonomia a que se refere Santos (ibid) atribui à ciência uma posição de
neutralidade na perseguição da verdade contida nos fatos. Todavia, essa verdade
se constitui a priori pelos “movimentos da sociedade, [que] atribuindo novas
funções as formas geográficas, transformam a organização do espaço” (SANTOS,
1996. p. 86).
Ao indagar se “não será a ciência, tal como propôs Neil Postman (1992, p.
154) ‘uma forma de contar histórias’?” (SANTOS, 1996. p. 18), responde
positivamente essa questão. Isso implica na aceitação da neutralidade da prática
científica, já que “contar a história” não torna aquele que está contando um agente
ativo na produção da história. Coloca o “contador da história” (o cientista) na
posição de quem somente relata aquilo que aconteceu. O cientista é aquele que
reconstitui a história o mais próximo da realidade dos fatos ocorridos, ou seja, o
mais próximo da verdade.
Essa aceitação pode ser reforçada quando Santos (1978), ao problematizar a
atuação dos geógrafos face aos problemas vivenciados no Terceiro Mundo, diz
que:
Um dos obstáculos mais importantes é o tabu que confunde “concreticidade” e “objetividade” com empirismo. Deverão os geógrafos sucumbir em face de tal obstáculo, renunciando a dar um passo adiante? Pois se for necessário esperar demasiado tempo para que os resultados contribuam para o
48
aperfeiçoamento e a modernização da ultrapassada metodologia que os inspirou, não permaneceremos em perpétuo atraso? Tal é a expiação, ou lei, ou principio científico, de toda a ciência. (pp. 1-2)
Como dito por Santos (1978), “pode-se, pois, falar de leis ou, mais
modestamente, de princípios” (p. 7). E que é preciso que “lembremos-nos, em
primeiro lugar, de que cada novo momento histórico muda a divisão do trabalho. É
uma lei geral.” (SANTOS, 1996. p. 109).
Embora nesse trecho ele pareça aceitar a visão determinista tradicional, dos
marxistas ortodoxos (DAGNINO, ibid), Santos (ibid), busca uma outra concepção.
Para ele, a ciência deve procurar a essência das ações humanas sendo estas a
priori indissociáveis da existência dos objetos materializados no espaço. Como
salienta, “essa tarefa supõe o encontro de conceitos, tirados da realidade,
fertilizados reciprocamente por sua associação obrigatória, e tornados capazes de
utilização sobre a realidade em movimento” (SANTOS, 1996. p. 16).
Como exposto por Santos (ibid):
Um objeto técnico nasce porque uma série de operações, intelectuais, técnicas, materiais, sociais e políticas convergem para a sua produção. É o que Simondon (1958) chama de operações de convergência. No passado, o material determinava como o objeto seria fabricado. Mas, hoje, é a forma do objeto criado na mente do homem, produzido no laboratório antes do que pela técnica, e a função que dele se espera, que vão determinar o material com o qual esse objeto imaginado será construído (Parrochia, 1993. p. 26). (p. 173)
Na busca de problematizar a essência do sistema de objetos e ações Santos
(ibid) reconhece, assim como o faz Lacey (Op. Cit), que a prática tecnocientífica é
embasada por objetivos, e que esses são resultados da consideração de valores
não-cognitivos. Como expresso por Santos (ibid), o objetivo basilar da prática
geográfica deve ser, sobretudo, prezar todas as formas de existência. Assim,
como Lacey (ibid) e Feenberg (ibid), Santos (ibid) defende que a ciência não está
livre de valores não-cognitivos. Para Santos (ibid, p. 34), a existência dos objetos
somente adquire sentido em virtude da inteligência do homem que sempre atribui
a estes uma função inventiva de antecipação. Como ele expõe:
49
Hoje, os objetos técnicos são originalmente criados para se comunicar entre si e para responder a uma finalidade, desejada por quem os concebe e quem os implanta, ainda que desde logo sejam susceptíveis de outros tipos de utilização. Sua energia é a informação. (...) Não é a técnica em si que leva ao envelhecimento rápido das situações, mas a política. (SANTOS, 1996. pp. 176; 177)
Como observado por Feenberg (Op.cit.), a tese de neutralidade atribui um
valor à tecnologia, sendo este meramente formal - a eficiência -, pois pode servir a
qualquer ação que vislumbre um modo de bem viver. Como destaca Santos (ibid,
p. 38), a técnica é um elemento importante de explicação da sociedade e dos
lugares. Porém, sozinha, ela não explica tudo.
Santos (ibid), observa que é fundamental considerar a ação na consecução
dos objetos, pois estes são cada vez mais carregados de intencionalidades
(valores sociais). De acordo com Santos (ibid), “então, a intencionalidade da ação
se conjuga à intencionalidade dos objetos e ambas são, hoje, dependentes da
respectiva carga de ciência e de técnica presentes no território” (p. 76).
Pode-se apreender na proposta de Santos (ibid), que ele compartilha a crítica
feita pela Escola de Frankfurt ao marxismo tradicional a partir da década dos
sessenta. Enxerga que há um compromisso da prática tecnocientífica na
atualidade com a concepção capitalista dominante. Para Santos (ibid), esse
compromisso faz com que hoje:
As chamadas forças produtivas sejam, também, relações de produção. E vice-versa. A interdependência entre forças produtivas e relações de produção se amplia, suas influências são cada vez mais recíprocas, uma define a outra cada vez mais, uma é cada vez mais a outra. (p. 52)
Dessa forma, Santos (ibid) procura ir contra a concepção marxista tradicional
que creditava no desenvolvimento das forças produtivas um estágio necessário
para se alcançar o socialismo, muito difundido ao longo da existência da URSS
(União das Repúblicas Socialistas Soviéticas).
50
A visão de Santos (1996) está de acordo com o Substantivismo, na medida
em que parece aceitar que a tecnociência é carregada de valores e de que ela
possui uma certa autonomia. De acordo com Feenberg (2003), ao tratar sobre as
proposições de autores da Escola de Frankfurt, Santos (ibid) estaria
compartilhando com a teoria substantiva da tecnociência, pois atribui a ela um
conteúdo substantivo e não meramente instrumental.
De acordo com Feenberg:
Segundo tais teorias, a tecnologia [tecnociência], não é neutra. Os instrumentos que usamos dão formato à nossa maneira de vida nas sociedades modernas em que a técnica se infiltrou totalmente. Nesse sentido, meios e fins não podem ser separados. Como fazemos as coisas determina quem somos e o que somos. (2003, p. 2)
Para que a ciência possa ser um substrato para qualquer forma de existência
(SANTOS, ibid), é necessário que sua prática não esteja compromissada com o
desenvolvimento tecnocientífico atual, a favor da manutenção do capitalismo e de
suas mazelas.
Assegurar todas as formas de existência implica, como observado em Souza
(2003), “entender esse [atual] período técnico, científico e informacional da história
e a chegada daquilo que ele [Milton Santos] já havia pressentido e que chamou de
período popular da história, compreendendo, creio eu, por popular a maioria da
população excluída das benesses do tempo presente, para quem o progresso, ou
a modernidade, ainda não chegou” (p. 12).
CONCLUSÃO
A figura 4 (a seguir) apresenta tanto a abordagem tradicional quanto à crítica
na prática científica adotando como ponto de partida, no enfrentamento dos
fenômenos sociais, a neutralidade.
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Como busca evidenciar o esquema, diante da abordagem dos pressupostos
epistemológicos das correntes teorética-quantitativista, ecológica e crítica na
geografia, as abordagens conservadora e crítica por mais divergentes que sejam
não possibilitam uma mudança da condição social. Isso ocorre porque ambas
partem da concepção de neutralidade da ciência.
Por outra via, tanto o engajamento proposto por Lacey (Op.cit.) quanto a
Teoria Crítica de Feenberg (Op.cit.) adotam outro ponto de partida para as
práticas científicas. Para os autores, a comunidade cientifica, comprometida com
uma constituição social distinta da atual, deve adotar como princípio os valores
sociais na suas práticas científicas.
Figura 4: TRIÂNGULO DAS ABORDAGENS CIENTÍFICAS
Elaborado por: Rogério Bezerra da Silva
A Teoria Crítica de Feenberg e o engajamento de Lacey reconhecem a
essência da tecnologia e da ciência. Essa essência é que permite constatar que o
desenvolvimento tecnocientífico é condicionado por valores e controlado pelos
homens, ao contrário do que pregam as concepções deterministas e da
neutralidade da tecnociência, vistas tanto na abordagem conservadora quanto na
52
crítica. Uma abordagem conservadora é observada nas obras de Christofoletti e
de Ab’Sáber.
Christofoletti defende a idéia de que a corrente teorética-quantitativista não
apenas está em contato com a prática científica genuína, apregoada pela
modernidade, mas também com aquela em que se reconhece sua susceptibilidade
à crítica racional e as transformações que constituem respostas a tal crítica.
Nessa percepção está presente à concepção de neutralidade, em que as
teorias não teriam implicações lógicas relativas aos valores sociais e, dessa forma,
os produtos da prática científica podem ser aplicados em qualquer sociedade.
Diante dessa concepção é possível considerar Christofoletti como possuindo uma
visão Instrumentalista da ciência. Como implicação dessa visão, há o argumento
de que o uso e a orientação desse instrumento “para o bem” ou “para o mal” é
algo estranho ao mundo do conhecimento tecnocientífico e daqueles que o
produzem.
Ab’Sáber, por sua vez, concebe a ciência como uma ferramenta
(instrumento) utilizada para a descoberta da verdade contida nos fatos não
sofrendo qualquer influência social. Defende a prática da ciência básica que é
pautada pelo rigor do método. Para isso as práticas científicas devem sustentar
como válidos somente os valores cognitivos.
Ao contrário da proposta de Lacey (Op.cit.), que contesta as pretensões da ciência
relacionada à racionalidade, objetividade e validez universal, a de Ab’Sáber aceita
justamente esses qualificativos para a ciência. Para Ab’Sáber a ciência é um
instrumento neutro para a descoberta da verdade e, dessa forma, o cientista, por
meio de suas ferramentas (método), também é neutro – não influencia os fatos –
quanto àquilo que pesquisa.
Pode ser dito que Ab’Sáber concebe a prática da ciência como sendo neutra,
todavia seus produtos devem ser colocados à disposição (controlados) pelos
homens. E ela será para um fim bom se ela estiver a salvo dos “efêmeros
desígnios do poder”. Isso permite que ele seja colocado na categoria
Instrumentalista. Por outra via, Ab’Sáber também adota uma visão Determinista do
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tipo ambiental para entender o desenvolvimento da Humanidade, ou seja, aceita
as idéias de neutralidade e de autonomia.
Distinta das abordagens conservadoras de Christofoletti e de Ab’Sáber é a de
Milton Santos. Ele adota um viés crítico na abordagem dos fenômenos sociais.
Para Santos, o que convencionalmente chama-se de ciência e tecnologia são
práticas que na atualidade se tornam indissociáveis, constituindo o que pode ser
denominado tecnociência, considerada como a base do discurso e da prática da
globalização na atualidade. Todavia, Santos acrescenta que o elemento
informação também é fundamental no entendimento da não-dissociação entre
ciência e tecnologia.
Santos diz que na questão da ciência e da tecnologia, a primeira seria,
sobretudo, ação cada vez mais sustentada por informações para a execução dos
objetos (tecnologia), o que conferiria a estes uma extrema intencionalidade.
Esses objetos, na atualidade, tendem a alcançar cada vez maior especialização e
a obter uma intencionalidade. E isso pode ser interpretado como os objetos
adquirindo uma autonomia relativa (autonomia tecnológica).
Da mesma forma que Lacey (Op.cit.) contesta a estratégia materialista que
concebe os critérios quantitativos, matemáticos e materialistas, basilares para que
teorias sejam aceitas, o faz Santos. A perspectiva crítica de Lacey (Op.cit.), sobre
as pretensões da ciência associada à tecnologia, por meio da estratégia
materialista, contribuir para o progresso da Humanidade, ou seja, ser neutra, é
também a de Santos.
No entanto, a proposta de Santos será diversa da de Lacey. Santos adota uma
posição que se aproxima da retomada da neutralidade da ciência para a
proposição de uma transformação social.
A autonomia referida a Santos atribui à ciência uma posição de neutralidade
para a perseguição da verdade contida nos fatos. Todavia, como observa o autor,
essa verdade se constitui a priori pelos movimentos da sociedade, atribuindo
novas funções às formas geográficas, transformando a organização do espaço.
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Na busca de problematizar a essência do sistema de objetos e ações Santos
reconhece que a prática tecnocientífica é embasada por objetivos, e que esses
são resultados da consideração de valores não-cognitivos. Como expresso por
ele, o objetivo basilar da prática geográfica deve ser, sobretudo, prezar todas as
formas de existência. Assim, ele defende que a ciência não está livre de valores
não-cognitivos.
Santos também compartilha a crítica feita pela Escola de Frankfurt ao
marxismo tradicional a partir da década dos anos sessenta. Enxerga que há um
compromisso da prática tecnocientífica na atualidade com a concepção capitalista
dominante. Dessa forma, procura ir contra a concepção marxista tradicional que
creditava no desenvolvimento das forças produtivas um estágio necessário para
se alcançar o socialismo, muito difundido ao longo da existência da Ex-URSS.
A visão de Santos está de acordo com o Substantivismo, na medida em que
parece aceitar que a tecnociência é carregada de valores e de que ela possui uma
certa autonomia; estaria compartilhando com a teoria substantiva da tecnociência,
pois atribui a ela um conteúdo substantivo e não meramente instrumental. Para
que a ciência possa ser um substrato de qualquer forma de existência (SANTOS,
ibid), é necessário que sua prática não esteja compromissada com o
desenvolvimento tecnocientífico atual, a favor da manutenção do capitalismo e de
suas mazelas. A ciência deve procurar a essência das ações humanas sendo
estas a priori indissociáveis da existência dos objetos materializados no espaço.
Todavia, evidenciar a importância dos valores sociais para o desenvolvimento
das práticas científicas, como faz a abordagem crítica, não implica propor que
esses valores definam os valores cognitivos, as teorias e, dessa forma, a prática
científica.
Na abordagem crítica a neutralidade da prática científica confere ao cientista
a capacidade de reconhecer no desenvolvimento dos fenômenos socais aqueles
elementos que permearão sua prática. Nessa perspectiva pode-se dizer que é o
cientista que orientará sua prática “para o bem” ou “para o mal”.
55
A abordagem conservadora, também concebe a prática científica como
sendo neutra. Nessa abordagem, são identificados dois vieses: um
Instrumentalista e outro Determinista. O primeiro concebe que não é a
comunidade científica quem define que uso será dado aos produtos da ciência,
mas sim agentes externos. No viés determinista os produtos da ciência são nada
mais do que a descoberta da verdade contida nos fatos, o que perde a conotação
de “bem” ou “mal”.
Em oposição a essas abordagens crítica e conservadora, observadas nas
correntes geográficas discutidas, estão as propostas de Feenberg e Lacey.
Segundo Feenberg (2003), é necessário uma redefinição radical da tecnologia,
ultrapassando as fronteiras entre os artefatos e as relações sociais, admitindo nas
transformações desta a fundamentação política. Já a proposta de Lacey tem como
objetivo fazer com que valores sociais tenham um papel legítimo na escolha das
estratégias para a pesquisa e para a orientação das instituições científicas de
modo a propiciar a aquisição e confirmação de conhecimentos que, quando
aplicados, sejam capazes de informar os projetos almejados.
A ciência e a tecnologia devem ser construídas socialmente. Isso é
fundamental para a democratização das relações sociais. Todavia, como
evidencia Santos (1996), ciência, tecnologia e informação adquirem sentido
somente quando materializados no espaço. Como exposto pelo autor, “em
nenhum caso a difusão dos objetos técnicos se dá uniformemente ou de modo
homogêneo. Essa heterogeneidade vem da maneira como eles se inserem
desigualmente na história e no território, no tempo e no espaço” (SANTOS, 1996.
p. 32).
É justamente a dimensão espacial que deve ser mais bem desenvolvida tanto
nas discussões de Feenberg quanto nas de Lacey. Essa dimensão possibilitaria
aprofundar ainda mais as discussões sobre a situação de conflito inerente ao
capitalismo, que tem sido estabilizada mediante escolhas tecnocientíficas
específicas. No entanto, outras escolhas para desestabilizar o capitalismo são
possíveis. Esta teoria deve permitir uma discussão a priori espacial.
56
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