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Noites na Taverna
“Johann”E
“Último Beijo de Amor”
Autor: Álvares de Azevedo
Com linguagem adaptada a de hoje
Estavam todos reunidos em um bar. Cada qual com sua decepção da vida, a maioria
provocada pelo amor. Todos contavam suas histórias e tentavam apagar as mágoas com
a bebida. Johann se levantou entre eles e começou a contar sua história.
Estávamos num bilhar em Paris. Não sabia se era os lances do jogo ou a calor das bebidas
que agitavam meus pensamentos. Jogava contra um camarada, chamado Arthur.
Johann
Ele tinha os cabelos loiros e seu rosto era delicado como de uma menina, recoberto
com um tom de rosa infantil meio apagado e a sombra da barba por fazer. Faltava um ponto para meu adversário jogar e eu não tinha ideia de quantos
faltavam pra mim, mas com certeza eram muitos. Sinuca requer um sengue frio e
muita concentração para jogar e eu estava longe de tê-los.
Usando meu taco, acertei a bola que rolou sobre a mesa. O bilhar estremeceu graças ao moço que, propositalmente ou não, encostou-se à
mesa. O movimento mudou o curso da bola e me vez errar o alvo. A raiva me tomou a mente.
Caminhei até ele decidido, o meu olhar ardente sobre ele. Sacudiu os cabelos e olhou para mim,
em tom de zombaria.Foi a gota d’água. Caminhei em sua direção e dei-
lhe uma bofetada. O moço voltou-se para mim com um punhal, mas nossos amigos separaram a
briga.
- Briguem como homens honrados que são. Num duelo.Meu adversário trincou os dentes, retirou
sua luva e a jogou em minha cara. Era uma troca de insultos e a única solução
era um duelo: sangue por sangue.Meia hora depois, cheguei perto do
ouvido do meu companheiro e disse-lhe ao ouvido:
- Escolhei suas armas.- Ficarás sabendo no lugar.
- E suas testemunhas?- A noite e minhas armas.
- A hora?- Agora.
- O lugar?- Venha comigo. Onde eu parar, será o lugar.
- Muito bem, estou pronto. Vamos.
Saímos juntos. Ao nos verem tão calmos, acreditaram que fizemos as pazes. Um, entretanto, entendeu do que se tratava.- Não existe um melhor de resolver isso?
- Nós dois sorrimos.- Não é um pouco precipitado?
- Não respondemos.- Negamos com um movimento da cabeça.
Ele viu que nossa vontade era firme e se afastou.
Saímos e o moço levou-me para um hotel aberto.
- Moro aqui, entre.Após entrarmos, ele disse:
- Senhor, não existe um meio de nos entendermos após um bofetão e uma luva
atirada à face de um homem. Essas questões só podem ser lavadas com
sangue. É um duelo de morte.
- De morte - Tenho no mundo só duas pessoas:
minha mãe e… Espere um pouco.O rapaz pediu papel, pena e tinta,
escreveu poucas linhas e me entregou para que eu lesse.
- Veja, não é uma traição.- Acredito em você, não quero ler esse
papel.
Arthur fechou a carta e selou o lacre com o anel. Ao ver o anel que estava em seu dedo,
uma lágrima escorreu por sua face e caiu sobre a carta.
- Você é um homem de honra? Se eu morrer, pegue esse anel e a carta que está em meu
bolso e entregue tudo a… Depois direi a quem.- Está pronto?
- Ainda não! Antes de um de nós morrer é justo um brinde ao que pode ser o seu último dia de
vida.
Ele encheu duas taças com vinho do Reno.- Vamos fazer um brinde.
- A quem?- É um mistério, uma mulher a quem amei
em segredo. Fará o brinde?- Como você quiser.
Batemos levemente os copos O moço chegou a janela e derramou algumas
gotas de vinho. Em seguida, bebemos.
- Um de nós fez seu último brinde. Uma boa noite e um sono sossegado no leito da terra.Foi a um armário, abriu e de lá retirou duas
armas.- Isso é mais rápido. Pela espada a luta é longa e aumenta a agonia. Uma delas está carregada, a
outra não. Vamos atirar a queima-roupa.- É um assassinato!
- Não dissemos que um de nós deveria morrer?- Tem razão. Onde iremos?
- Venha comigo até a primeira esquina deserta. Qualquer canto de rua é sombrio o bastante para dois homens que querem
um matar o outro.À meia-noite estávamos fora da cidade.
Ele colocou as duas armas no chão.- Escolhei, sem tocar.
Escolhi e disse:- Agora vamos.
- Espere. Tenho um mal pressentimento. Quero rezar, uma
saudade de minha mãe.Ele se ajoelhou. Ao vê-lo daquela
maneira, lembrei que tinha uma mãe e uma irmã e as esquecia. Quanto a
amantes, nenhuma que valesse a pena lembrar. Eu amara apenas mulheres
perdidas.– Pronto.
Ficamos frente a frente. Nossas armas encostaram-se aos nossos peitos e
estalaram. Apenas um tiro estrondou e ele caiu morto.- Pegue
Murmurou ele acenando em direção ao bolso. Fui até ele. Estava afogado em sangue. Estremeceu três vezes e ficou frio. Peguei o anel de sua mão e colocando a mão no seu
bolso como ele dissera, achei dois bilhetes. A noite estava escura e não pude lê-los.
Voltei à cidade e sob a luz do primeiro poste, vi os dois bilhetes. O primeiro era a carta para sua mãe. O outro estava aberto. Li:
“À uma hora da noite na rua de… nº 60, 1º andar; acharás a porta aberta. Tua G.”
Não tinha outra assinatura. Eu não soube o que pensar. Tive uma ideia.
Fui a entrevista. Era no escuro. Em meu dedo estava o anel que peguei do morto. Senti uma mãozinha macia pegar minha
mão e subi. A porta foi fechada.
Tivemos uma noite deliciosa, a amante do morto era virgem. Parece que aqueles dois
levavam noites em beijos infantis e puros. Era um amor proibido, como de Romeu Julieta.
Quando estava saindo, encontrei com alguém à porta.
- Boa noite… eu estava esperando por você há tempos.
Era uma voz conhecida, porém minha cabeça estava perdida.
Não respondi e continuei a descer, entretanto ele me acompanhou. Quando chegamos a porta, vi de relance uma faca. Desviei rapidamente e a lâmina passou de raspão no meu ombro. Depois tivemos uma grande luta na escuridão. Eram dois homens
que não se conheciam, que não pensavam que podiam terem se visto um dia e que não se veriam mais vivos. O punhal escapou das mãos dele e eu consegui dominá-lo. Era uma cena infernal, um homem na escuridão abafando a boca do outro
com a mão, sufocando lhe a garganta com o joelho, e a outra mão a tatear na sombra procurando o
punhal.
Senti então uma dor terrível em minha mão. O homem morrera sufocado e no desespero me mordera com uma força brutal. Foi com dificuldade que tirei a mão sangrenta da boca do cadáver.
Já estava saindo quando tropecei em um objeto sonoro. Abaixei-me para ver o que era.
Era uma lanterna, já com a luz fraca. Senti vontade de ver quem era o homem. Levantei a lanterna, mas somente uma última faixa de luz
iluminou o rosto do defunto e logo a luz se apagou.
Eu não podia acreditar, era uma loucura toda aquela noite. Arrastei o corpo pesado e o levei
até a calçada, sobre a iluminação da rua. Levantei seus cabelos ensanguentados do
rosto e senti meu corpo se contrair involuntariamente com a dor horrível que
tomou meu peito.Aquele homem era sangue do meu sangue,
filho de minha mãe, era meu irmão. Um pensamento me ocorreu como uma maldição.
Fui até o sobrado. Encontrei a moça desmaiada, de certo pelo susto da luta. Tinha a face fria como mármore. Levei-a até a janela para que pudesse ver seu rosto. Uma dor mais temível me tomou.Sou um maldito, desgraçado! Me sirva mais um
pouco de conhaque. Quero a ardência do cérebro ao vapor que tonteia. Quero esquecer.Os amigos ao redor de Johann no bar,
perguntaram o que ele tinha, porque falava tantas besteiras. Ele respondeu aos amigos que era um maldito, pois a mulher a quem tirara a
virgindade era sua irmã.
Último Beijo de AmorJá era tarde, na mais alta madrugada, após mais uma noite de bebedeira. Os amigos
estavam dormindo, na escuridão.Uma luz entrou pela fresta da porta e a porta
foi aberta. Entrou uma mulher vestida de negro. Era pálida e a luz da lanterna que
trazia mostrava a feições magras e marcadas pelo tempo e dava um brilho único aos seus
olhos.
Talvez no passado tivesse sido a beleza típica que revira a cabeça dos rapazes. Agora com a palidez cadavérica quem cobria seu rosto, olhos acesos e
lábios roxos, sua mão branca e fria e a roupa escura e molhada pela chuva, mais se parecia com
um anjo perdido da loucura.A mulher se curvou levemente com a lanterna na
mão e procurava por entre os amigos uma face conhecida. Quando a luz da lanterna bateu sobre Arnold, ajoelhou-se e quis lhe dar um beijo. Mas
algo a fez parar.
Se levantou e continuou a procurar parando em Johann que dormia. Um sorriso e um olhar
sombrio tomou seu rosto.Abaixou-se e colocou a lâmina no chão. A luz da lanterna que batia em seu corpo projetava uma
sombra sobre Johann. Colocou a mão sob a garganta dele que soltou um soluço rouco e
sufocado. Ela se levantou, tremia. Ao pegar a lanterna, sua mão deslizou por um ferro. Era um
punhal. Jogou-o no chão. Viu que suas mãos estavam sujas de sangue e as enxugou no
cabelo do Johann.
Voltou a Arnold e o sacudiu:– Acorda, levanta.
- O que quer? - Olhe para mim. Não me reconhece?
Você! E não é um sonho? É você! Deixa eu te dar um abraço. São cinco anos sem te ver. E
como mudaste.
- Sim, já não sou tão bela como há cinco anos. A flor da beleza é como todas as outras flores. São
belas no orvalho da virgindade e vento da pureza, mas no lodo murcham e perdem toda a beleza.
Antes era Giorgia, a virgem, mas hoje é a Giorgia, a prostituta.
- Meu Deus! Deixe que me lembre, esses cincos anos foram uma loucura. Aquele homem do bilhar,
o duelo a queima-roupa, eu acordando num hospital, essa vida devassa que levo pelo
desespero. Vamos nos lembrar do passado, das épocas felizes…
- Suas palavras doem. É um adeus, é um beijo de adeus e separação. A terra manchou nossos corpos. O amor do libertino e da
prostituta! Satã riria de nós. É no céu, após nossa morte, que nosso amor se erguerá.
- Te ver para te deixar ir mais uma vez! Por acaso não pensou, Giorgia, que teria sido melhor ter morrido devorado pelos
cães na rua deserta onde fui achado? Que teria sido melhor me matar no
dormir da bebedeira? Não pensou que após cinco ano em sonhos desesperados
por ti, de saudades, seria um inferno para mim, te ver para ter que deixá-la
outra vez?
- Piedade, Arnold! Meu futuro é negro. Nas minhas lembranças sempre terá
aquela mágoa do passado. Só espero a morte.
Não me chames de Arnold! Me chame de Arthur, como antes. Há muito tempo não me chamam por esse nome. Eu era louco! Quis afogar meus pensamentos e
vaguei por aí deixando em toda parte lágrimas.
Vem Giorgia, senta aqui no meu colo, aconchegada junto ao meu coração. Um beijo!
Cinco anos, tanto tempo a esperar por um momento como esse. Depois escuta, tenho tanta coisa para te dizer, tantas lágrimas a
derramar no teu colo. Te contarei sobre minhas ilusões, as malditas noites de bebedeira e dos
beijos frios das vendidas, nos quais eu só tentava encontrar você. Choraremos juntos e
nossas lágrimas nos lavarão como a chuva lava o lodo das folhas.
- Obrigada, Arthur!A mulher sufocava em lágrimas e o rapaz
entre beijos murmurava palavras de amor.- Escuta, Arthur, eu vinha apenas te dizer
adeus. Arthur, eu vou morrer…Ambos choraram.
- Está vendo aquele homem?Arnold pegou a lanterna
- Johann! Morto! Quem o matou?
- Giorgia. Ele era um infame. Foi ele que te deixou morto, após te esbofetear numa casa de
jogo. Giorgia, a prostituta, vingou Giorgia, a virgem. Foi esse homem que a desonrou…
Desonrou a própria irmã. O moço estava horrorizado com as revelações.- E agora adeus! Adeus que estou morrendo!-Não. Eu não irei. Se eu vivesse amanhã teria
uma lembrança horrível em meu passado.
- E você não tem medo? Olha, é a morte que vem!
- E que me importa o sonho da morte? Meu amanhã seria terrível! Morrerei.
A mulher recuava. O moço a tomou nos braços e lhe deu um beijo. Ela caiu-lhe das mãos. O moço pegou o punhal, fechou os olhos e o
apertou no peito e caiu sobre ela. Dois gemidos sufocaram-se no baque de um corpo.
A lâmpada apagou-se.
Fim