A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE EM TEMPOS DE AUSTERIDADE
Ana Carolina Becker Nisiide* (doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, Brasil; docente do curso de Serviço Social, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo-PR, Brasil); Maria Lucia Boarini (docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, Brasil).
contato: [email protected]: [email protected]
Palavras-chave: Políticas Sociais. Neoliberalismo. Judiciário.
1. Introdução
O sistema judiciário passou a ter papel central na regulação de relações sociais, políticas e
econômicas, versando sobre as mais diversas questões, já que, como citado por Sá e Bonfim
(2015), em respeito ao art. 5o, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988, pelo princípio de
inafastabilidade1 o Poder Judiciário não pode se abster de se pronunciar frente as demandas que
lhe chegam. Dados do Conselho Nacional de Justiça - CNJ (2016), demonstram que no ano de
2014 o total de processos tramitando no judiciário brasileiro (casos baixados e pendentes) era de
100 milhões, no ano de 2015 esse valor passou para 102 milhões. O aumento continuado no
número de litígios no Brasil repercutem não só nos custos do sistema judiciário, que em 2015
tiveram despesas totais de R$ 79,2 bilhões o que equivaleu a um aumento de 4,7% em relação a
anos anteriores, mas na sua representatividade social, no poder exercido por essa instituição e
nas normativas e regulação da vida de vários sujeitos enlaçados na trama jurídica.
Frente a amplitude desse fenômeno, as causas e consequências da judicialização
passam a inquietar, dando origem a pesquisa de doutorado que está em desenvolvimento
no Programa de Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Estadual de Maringá e
busca desvelar os motivos da judicialização da política de saúde mental e seus
rebatimentos na família do sujeito em sofrimento psíquico. A partir das discussões até o
momento desenvolvidas, esse texto faz um recorte se propondo a estudar no âmbito das
1 O princípio da inafastabilidade está previsto no artigo 5 º , inciso XXXV, da Constituiçã o Federal de 1988, onde está disposto que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (Brasil, 1988).
políticas públicas a judicialização da política de saúde e, dentre os tantos segmentos que
essa política abarca, a política de saúde mental.
Esse estudo se justifica não apenas pelo aumento quantitativo de processos
judicializados, que afetam todas as políticas sociais e de modo particular a saúde, mas
principalmente pelas repercussões qualitativas que o processo de judicialização traz para a
organização da política em si, seu planejamento e orçamento, e para os sujeitos que dela
dependem. Ademais, essa pesquisa busca contribuir ainda com o conhecimento no âmbito
da Psicologia, tecendo algumas reflexões sobre a saúde e a saúde mental e sua relação com
o modo de produção capitalista, demonstrando que os mesmos não estão deslocados da
realidade material em que se inserem.
A partir do exposto, o texto aqui apresentado é pautado em um ensaio teórico-
bibliográfico e objetiva analisar como e, em que medida, a retração do sistema de proteção
social em tempos de políticas sociais de austeridade está implicada com a judicialização da
política nacional de saúde. Afinal, na ordem capitalista o direito regula, estabelece,
organiza, medeia e impõe normas de conduta para uma diversidade de relações sociais e
contratuais que são imprescindíveis para a produção e a reprodução de uma sociedade
dividida em classes sociais. Cresce substancialmente o clamor pelo sistema jurídico como o
regulador e normatizador das relações humanas, dado esse relacionado ao papel que o
mesmo assume, de uma suposta igualdade em um modo de produzir extremamente
desigual.
2. Políticas sociais austeras e judicialização
O fato da “judicialização da vida”, que para Barroso (2009), representa a
transferência de decisão do âmbito do executivo e do legislativo para o poder judiciário,
expressam tanto uma tendência mundial quanto uma realidade brasileira. O jurista cita três
grandes causas para ocorrência desse processo no Brasil. A primeira é a redemocratização
do país e a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual fortaleceu o poder do
judiciário colocando-o como o guardião da Constituição, além do fato de um ambiente
democrático propiciar uma maior consciência da população sobre seus direitos avivando
suas possibilidades de buscar a efetivação destes no âmbito jurídico. A segunda causa seria
a constitucionalização abrangente, que trouxe para a Constituição Federal de 1988 várias
matérias que antes eram de responsabilidade do poder político majoritário e da legislação
ordinária, transformando “Política em Direito”. Por fim, o autor cita o sistema brasileiro de
controle de constitucionalidade, que mistura o modelo norte-americano e europeu. Traz
como experiência do modelo estadunidense a possibilidade de qualquer juiz não necessitar
aplicar uma lei, caso a considere inconstitucional, e absorve do modelo europeu o controle
por ação direta, onde determinadas teses podem ser enviadas diretamente ao Supremo
Tribunal Federal (STF), abrindo a possibilidade de muitas questões políticas e/ou
moralmente relevantes serem dirigidas diretamente a essa instância.
Longe da completa negação dos fatores ressaltados por Barroso (2009), os quais
devem ser considerados ao se pensar na forma como o poder judiciário se coloca e se
organiza, compreende-se que, para além disso, é necessário aprofundar essa discussão e
analisar o processo da judicialização olhando para a atual conjuntura do capitalismo e para
as constantes crises que lhe afetam nas últimas décadas, trazendo à tona as contradições
existentes entre capital e trabalho. Afinal, como anteriormente explicitado, esse fenômeno
não é particularidade brasileira mas visualizado em vários outros países, fato que
resguarda uma universalidade e, portanto, só pode ser compreendido no âmbito da
produção e da reprodução capitalista.
Assim o sendo, é necessário desvelar a realidade da judicialização pensando nos
reflexos que o capitalismo monopolista em sua fase tardia representa para o embate de
classes. Para Mandel (1985), após a Segunda Guerra mundial o capitalismo passa por
transformações que não negam sua estrutura nem todas as suas características orgânicas,
mas que trazem novas configurações relacionadas ao alto índice de crescimento econômico
do período de 1945-1967, pautados na elevada inflação e taxas de juros e na expansão do
processo de acumulação. Nesse período, o modo de produzir relacionado aos moldes
fordista e taylorista de controle do tempo e dos movimentos dos trabalhadores, da
fragmentação do trabalho pelas esteiras de produção, entre outras dimensões, garantiam a
alta expropriação da mais-valia. Nos países que implantaram o welfare state, em especial
no Europa Ocidental, viveu-se um período de glória, de alta empregabilidade e consumo,
ampliação dos direitos sociais e trabalhistas, expansão da produção de bens duráveis (em
destaque a indústria automobilística) e aumento das taxas de lucro. Percebe-se nesse
processo, um claro direcionamento dos países capitalistas, com a ampliação dos direitos
sociais, em realizarem um dique de contenção contra os avanços dos países socialistas, que
disputavam a hegemonia nesse período histórico.
Após 1970, a conjuntura mundial se redefine, com “o fim do padrão ouro, a crise do
petróleo e a crise mexicana” (Costa, 2006, p. 139), o mundo vivencia uma forte crise n o
capitalismo, fundada na superprodução de mercadorias e na dificuldade de circulação e
consumo, o que gerou uma queda na apropriação de mais-valia e consequentemente dos
lucros. Apesar de um período de bonança, datado historicamente, sabe-se que um sistema
que carrega em seu cerne tantas contradições não encontra possibilidades de manter-se
constantemente em crescimento. Para Mandel (1985), não se pode falar em um “equilíbrio”
do sistema capitalista, já que dialeticamente cada período de equilíbrio produz
consequentemente um período de desequilíbrio, gerando assim a sua própria negação e
trazendo como consequência as crises cíclicas do capital, ocasionadas pela
desproporcionalidade entre o desenvolvimento dos valores de uso e dos valores de troca,
da produção e do consumo, do desenvolvimento desigual da taxa de acumulação do capital
e do exército industrial de reserva e das taxas de acumulação e de expropriação da mais-
valia. As crises cíclicas do capital ficam claras quando se compara o Produto Interno Bruto
(PIB) real de vários países capitalistas centrais, verificando-se uma alta instabilidade
econômica desde fins de 1960 e um declínio econômico e aprofundamento da crise após os
anos 2000 (Banco Central do Brasil, 2016).
Essa instabilidade própria do capitalismo repercute em mecanismos, articulados
pela burguesia, para manutenção do sistema, alterando as formas de (re)produção dessa
sociabilidade. No âmbito da produção, mescla-se ao fordismo e ao taylorismo novos
mecanismos de gestão e de relação com o universo do trabalho, através do toyotismo. O
salto tecnológico é significativo com a robótica, a nanotecnologia e a automação. As
relações de trabalho e as formas de produzir passam a ser geridas pela lógica do “ just in
time, flexibilização, terceirização, subcontratação, CCQ (círculo de controle de qualidade),
controle de qualidade total, eliminação do desperdício, ‘gerência participativa’,
sindicalismo de empresa, entre tantos outros elementos” (Antunes, 1995, p. 35).
Esse processo de reestruturação produtiva vem causando profundo impacto nas
formas de produção e de gestão do trabalho, perante as exigências de redução dos custos
de produção para aumento da competitividade na sociedade mundializada. Esses fatores
repercutem no agravamento da precarização e na flexibilização das relações de trabalho,
com o rebaixamento do chamado “fator trabalho”, cortes de salário e de direitos,
desemprego e terceirização. Diante disso, agudizam-se as expressões da “questão social”2,
como “o retrocesso no emprego, a distribuição regressiva de renda e a ampliação da
pobreza, acentuando as desigualdades nos estratos socioeconômicos” (Iamamoto, 2014, p.
147).
Além das modificações no universo do trabalho, esse novo momento histórico opera
alterações políticas e econômicas substanciais. Trazendo o receituário neoliberal, que teve
como seu expoente os governos de Reagan nos EUA e de Thatcher na Inglaterra, como
possibilidade de superação da crise econômica, opera-se um progressivo desmantelamento
do sistema protetivo e dos direitos da classe trabalhadora. Reforçados pelo fim do
socialismo real, o capitalismo vem se colocando como fim último da sociedade e, portanto,
utilizando-se desse falseamento da realidade como ideologia para medidas danosas aos
trabalhadores. O discurso ideológico propagado pelo neoliberalismo é o de um Estado
oneroso e ineficiente, que necessita investir e se fortalecer no mercado. As políticas sociais
precisam ser reformadas e inovadas de forma a minimizar o papel do Estado na sua
execução, tornando a máquina pública enxuta. Para a ideologia neoliberal, o Estado “[...]
continua sendo um realocador de recursos, que garante a ordem interna e a segurança
externa, tem os objetivos sociais de maior justiça e equidade, e os objetivos econômicos de
estabilização e desenvolvimento” (Behring, 2008, p. 178). Contudo, na prática, o que se
observa é um Estado forte e eficiente economicamente, que privilegia os interesses da
burguesia e do capital financeiro, enquanto que para as políticas sociais e para os
trabalhadores é mínimo, focalizado e compensatório.
2 A “questão social” remete a luta de classes relacionada ao modo de produção da sociedade capitalista e "está elementarmente determinada pelo traço próprio e peculiar da relação capital/trabalho – a exploraçã o” (Netto, 2001, p.45).
Conforme Batista (2014), no âmbito politico a ideologia neoliberal galgou sucesso
surpreendente, adentrando na consciência dos homens como uma ideologia única e
verdadeira para os avanços do capitalismo, fundado nas bases liberais da livre
concorrência. Por outro lado, os resultados da política neoliberal vem demonstrando
fracassos no âmbito social e econômico. As crises constantes do capital e o aumento da
desigualdade social são reflexos desse processo.
A riqueza mundial cresceu sete vezes entre 1948 e 1996, mas o número de pobres no mundo triplicou nesse período. Os 20% mais pobres do planeta detinham, ao término do século XX, apenas 1,1% das riquezas geradas, ao passo que os 20% mais ricos já monopolizavam 82% dos ingressos mundiais. A quantidade de pobres cresce continuamente cerca de 25 milhões de pessoas por ano. (Trindade, 2011, p. 209).
Apesar do fracasso do neoliberalismo e do modo de produção capitalista em
proporcionar igualdade entre os homens, ele acaba se reinventando e ganhando novo
fôlego na sua reprodução, as custas da exploração do trabalho e da desigualdade de classes
oriunda da apropriação privada dos meios de produção. Ademais, perante o receituário
neoliberal e as crises constantes que vem assolando o capital, a retração do Estado em
prover proteção social aos indivíduos é cada vez maior levando muitos a buscarem no
âmbito jurídico a resolução de conflitos ou a garantia de direitos que poderiam ser
solucionados no campo do executivo.
Nesse cenário, o ativismo judicial é uma tendência emergente em diversos países e
aumentou consideravelmente nas duas últimas décadas, demonstrando essa abrangência
ao se observar as políticas sociais que "in countries as different as Brazil and Costa Rica,
courts have decisively shaped the provision of fundamental social services such as health
care"3. Ademais, "the literature on the justiciability of SERs [Socioeconomic Rights] has
multiplied in proportion to the proliferation of activist rulings, both in Latin America and
elsewhere”4 (Rodríguez-Gavarito, 2011, p.1673) e, haja vista que o fenômeno da
judicialização cresce a cada ano, ratifica-se a necessidade da manutenção das pesquisas e
3 “Em países tão diferentes como o Brasil e a Costa Rica, os tribunais têm influenciado decisivamente na provisão de serviços sociais fundamentais, como os serviços de saúde” (Rodríguez-Gavarito, 2011, p.1672-1673, tradução nossa).
4 "A literatura sobre a judicialização dos SERs [direitos socioeconômicos] se multiplicou na mesma proporção que à proliferação de decisões ativistas, tanto na América Latina quanto em outro lugar” (Rodríguez-Gavarito, 2011, p.1673, tradução nossa).
publicações sobre a temática.
Apesar do fenômeno da judicialização estar presente em diversos países, ele
apresenta particularidades relacionadas ao contexto sócio econômico e histórico da
realidade em que se insere. Afinal, essa conjuntura do modo de produção capitalista não se
desenvolveu de maneira linear e equitativa nos diversos países e regiões mundiais, como
por exemplo, entre a América Latina, América do Norte, Europa Ocidental e África, desse
modo, o capitalismo desenvolve-se em formas e proporções variáveis, apesar de
resguardarem características gerais do modo de acumulação e da lei de desenvolvimento
geral e combinado (Mandel, 1985).
No Brasil, a entrada do neoliberalismo se deu em um momento peculiar, de
redemocratização e aprovação da chamada “Constituição Cidadã”, ao mesmo tempo em que
vence a eleição presidencial Fernando Collor de Mello, com uma proposta de inserção no
país dos preceitos do neoliberalismo. Afinal, apesar da aprovação da Carta Constitucional
de 1988 ser a mais ampla em termos de garantia legal de direitos à população brasileira, os
setores conservadores nacionais já a declaravam como motivo de ingovernabilidade,
afirmando que o modelo de Estado mínimo, propagado nos outros países capitalistas,
deveria ser adotado pelo Brasil e, uma constituição tão ampla em termos de direitos
inviabilizariam as reformas necessárias aos ajustes neoliberais no país (Costa, 2006).
Na ocasião em que o Brasil se encontrava no processo de implantação do Estado
democrático de direito, a ordem econômica internacional já declinava em relação à
manutenção do Estado de Bem-Estar Social. Sendo assim, o Brasil, que não chegou a
implantar o Estado de Bem-Estar Social, passou a gerir e a ser gerido pela política
neoliberal, pelas estratégias de mundialização e de financeirização do capital, com a sua
direção privatizadora e focalizadora das políticas sociais, enfrentando a “rearticulação do
bloco conservador” (Yazbek, 2014, p. 17). A implantação da agenda neoliberal no Brasil
teve início com a eleição de Fernando Collor, mas encontrou no governo de Fernando
Henrique Cardoso o seu maior expoente e manteve continuidade, com características
peculiares, ao longo dos governos petistas.
O Partido dos Trabalhadores (PT) ingressou no poder em 2002 com o presidente
Luís Inácio Lula da Silva e no ano de 2011 elegeu sua sucessora Dilma Rousseff, afastada
por impeachment em 2016. Após o impeachment, assumiu o vice-presidente Michel Temer,
o qual colocou em pauta medidas que reforçam a dependência nacional e representam um
duro golpe à classe trabalhadora. Em 2 de junho de 2016 o Senado Federal já aprova a
mudança na regra de partilha do Pré-Sal, o petróleo nacional é leiloado e aberto ao capital
estrangeiro. O discurso das privatizações como mecanismo necessário a retomada
econômica é o mote desse processo. Os trabalhadores são duramente atacados, em março
de 2017 Temer aprova a PL 4.302/98, que aprova a terceirização para todas as atividades,
além de colocar em pauta a necessidade de flexibilização das leis trabalhistas. Camuflado
pelo ideal de quanto mais flexível mais vagas de empregos serão abertas, esse projeto
revela a face da exacerbação da exploração dos trabalhadores, enaltecendo no cenário
nacional e internacional o Brasil como país da mão-de-obra barata, possível de ser
explorado na conjuntura do capital mundializado.
O ataque a classe trabalhadora se dá também em relação as políticas sociais.
Discute-se a Reforma da Previdência como único mecanismo possível para dar conta do
déficit da previdência, déficit esse que inspira muitas controvérsias. Além disso, a PL
257/2016, aprovada a toque de caixa nas madrugadas surdas, distante do debate popular,
representa o congelamento dos gastos públicos pelos próximos 20 anos e efetivamente
repercutirá no desmantelamento progressivo das já fragilizadas políticas sociais.
Frente a essa conjuntura, que vêm se construindo nas últimas décadas no Brasil,
supõe-se que o poder judiciário será cada vez mais requisitado para dar respostas a uma
contradição, impossível de ser superada nessa forma de sociabilidade, acarretada pela
existência legal do direito afirmado pela Constituição Federal de 1988 e os retrocessos
democráticos, pautados em uma política e sociedade conservadora e fundamentada no
receituário neoliberal.
3. A judicialização da política de saúde
As políticas sociais, pautadas em um Estado mínimo, encontram cada vez mais
dificuldades para serem efetivadas. Frente ao retrocesso no campo político, o ativismo do
judiciário é cada vez mais requisitado, além da necessidade de partilhar essa
responsabilidade com a sociedade civil através das redes privadas de proteção social como
a família e as Organizações não governamentais. Perante a isso, cada vez mais os indivíduos
buscam no Estado, através do poder judiciário, a garantia dos direitos legalmente
constituídos. As expressões da “questão social” que não encontram respaldo por meio do
atendimento nas políticas sociais acabam sendo judicializadas, transferindo
responsabilidades do Poder Executivo para o judiciário, no que tange à garantia de direitos
e impactando a vida desses usuários, o funcionamento do sistema jurídico e o orçamento
público (Barison & Gonçalves, 2016).
Constata-se essa conjuntura ao se analisar a política de saúde. Dados do Conselho
Nacional de Justiça (2017), demonstraram que em 2011 haviam 240.980 ações sobre saúde
ajuizadas no Brasil, em 2014 esse número foi para 392.921, em 2015 alcançou 854.506
processos e em 2016 passou para 1.346.9315 processos ajuizados. A maior parte das ações
de saúde no ano de 2016 se referiam a assunto relativo aos planos de saúde e ao direito do
consumidor com 427.267 processos, seguido de solicitação de medicação, com 312.147
processos, tratamento médico hospitalar, com 214.947 processos, e os casos de saúde
mental somaram 4.612, um aumento considerável se comparado as 3.001 ações ajuizadas
sobre saúde mental no ano de 2015.
Esses dados demonstram um número assustador de ações relativas à saúde
acessada pela via do mercado e dos planos de saúde, o que evidencia a contradição de que
apesar da ideologia neoliberal propalar a eficiência do mercado e colocar o Estado como
ineficaz na efetivação dos direitos sociais, o que se observa é que o setor privado não tem
se mostrado tão eficiente se observarmos o número de processos dirigidos a esse
segmento. Por outro lado, o Estado também se retrai perante a sua responsabilidade na
garantia de direitos, refletindo no número de processos de solicitação de medicação e de
procedimentos de saúde, o que coloca em xeque a eficiência da rede de proteção social,
muitas vezes fragilizada pela falta de recursos materiais e humanos.
5 Vale destacar que o Relatório do CNJ de 2017 contempla os dados de processos até 31/12/2016. Nesse relatório novos assuntos foram contemplados no quesito saúde o que colaborou com o aumento significativo no número de processos.
Frente a esses dados, não é por acaso que boa parte das pesquisas e discussões
realizadas no âmbito da judicialização da saúde se referem as solicitações de medicação e
procedimentos médicos. Em junho de 2017, Carlos Vital Lima, presidente do Conselho
Federal de Medicina (CFM), debateu no jornal do CFM a decisão do ministro Benedito
Gonçalves de suspender os processos de pacientes que pleiteiam medicamentos não
contemplados na lista do Sistema Único de Saúde (SUS), além disso, apontou o aumento de
decisões favoráveis à concessão de medicação nas três esferas do Governo, representando
um gasto público de R$ 7 bilhões por ano com remédios concedidos pela via jurídica, o que
pode causar desequilíbrio nas contas públicas e na execução de programas e projetos na
área de saúde (Lima, 2017).
Ainda nesse quesito, a tese de Mapelli Junior (2015) discute esse cenário afirmando
que a universalidade do direito à saúde também deve levar em conta o princípio
constitucional de Reserva do Possível6 e que esse direito não pode ser tomado de forma
privatista já que a política deve se estender a todos, planejada de forma a atender
prioridades populacionais de acordo com o perfil epidemiológico de determinada
realidade. Como sugestão para situação apresentada, o autor propõe a criação de Centros
de Triagem Farmacêuticas e Câmaras Técnicas de Conciliação, como possibilidades de
soluções extrajudiciais. Nos casos de judicialização, Mapelli Junior sugere a criação de
varas especializadas e de Câmaras Técnicas, que aprofundem o saber para decisões nesse
âmbito.
Dentro da política nacional de saúde vale destacar os processos relativos a saúde
mental, pois apesar dos dados quantitativos de ações tramitando na justiça não serem tão
expressivos quanto os relativos à medicação e procedimentos médicos, os mesmos
também trazem consequências diretas para o sujeito em sofrimento psíquico e sua família,
além de influenciarem nos rumos da Política Nacional de Saúde Mental.
Cresce o número de casos de internação psiquiátrica pela via compulsória. Frente a
fragilização da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e a dificuldade de implantação de
serviços mais onerosos como os Centros de Atenção Psicossocial III e serviços
6 De acordo com Lima e Melo (2011, s.p.) os direitos sociais estão sujeitos à reserva do possível, “no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade, ou seja, justificaria a limitação do Estado em razão de suas condições sócioeconômicas e estruturais".
psiquiátricos em hospital geral, o atendimento as situações de crise passam a ser um
grande nó do processo de Reforma Psiquiátrica. Gradativamente os leitos nos tradicionais
hospitais psiquiátricos estão sendo diminuídos e para os usuários de substâncias
psicoativas aumenta o número de Comunidades Terapêuticas que funcionam com parca
fiscalização e regulação. Perante as fragilidades da RAPS, muitos serviços de saúde mental
e familiares apelam ao sistema judiciário na tentativa de garantir uma vaga de internação
psiquiátrica. Além da garantia da vaga, buscam no sistema jurídico a norma legal que
obrigue ao sujeito em sofrimento psíquico um tratamento compulsório7, quando este não o
deseja mas existe a possibilidade de indicação de tal medida.
Em estudo sobre os casos de internação compulsória, justificados pelo uso de álcool
de outras drogas, Souza (2015) afirma que nos quinze casos estudados a maioria não tinha
registro de atendimento ambulatorial anterior, os que haviam sido atendidos constava no
processo a não adesão aos serviços ambulatoriais como uma justificativa para internação.
As internações ocorreram em hospitais psiquiátricos longe da cidade de origem, rompendo
com o princípio da territorialidade e com a manutenção dos vínculos familiares. Por fim, ao
procurarem dados sobre a continuidade do acompanhamento após a internação, a
pesquisa concluiu que apesar do hospital informar a contrarreferência, em contato com os
serviços da RAPS não foram encontrados registros de acompanhamento dos pacientes e,
nos casos encontrados, foi constatada a fuga desses sujeitos das Casas de Acolhimento e
das residências familiares e o retorno a condição de rua. Esses dados demonstram não
apenas as dificuldades encontradas pela RAPS, o que acaba influenciando em larga medida
os processos de internação compulsória, mas também o fracasso do processo de
internação no tratamento desses sujeitos, em virtude dos relatos de recaída e
reinternações apontados pela pesquisa.
7 De acordo com o Art. 4 da Lei n. 10.216/2001, a internação psiquiátrica somente será cabível quando os recursos extra-hospitalares forem considerados insuficientes, com risco à integralidade física, à saúde ou à vida dos portadores de transtornos mentais ou a terceiros. No art. 6º da referida lei encontram-se pre -vistas como modalidades de internação a voluntária, a involuntária, e a compulsória. Na internação volun-tária há o consentimento do paciente, que deverá assinar uma declaração atestando sua escolha por este tipo de tratamento. A internação involuntária dá-se sem o consentimento do usuário e a pedido de ter-ceiro, cujo término somente ocorrerá por solicitação escrita do familiar ou responsável legal, ou ainda quando houver manifestação do médico responsável pelo tratamento. Já a internação compulsória, é decorrente de ordem judicial, após a emissão de parecer médico que ateste a necessidade da medida.
As internações compulsórias afetam também o sujeito em sofrimento psíquico, que
vivencia o processo de internação e muitas vezes a interdição judicial como forma de
garantia do Benefício de Prestação Continuada (BPC), vivendo o mecanismo perverso de
negação da sua condição civil para acesso a um direito. A pesquisa de Barisson e Golçalves
(2016), descortina essa situação além de informar que essas solicitações são realizadas
muitas vezes por familiares que, em virtude das precárias condições socioeconômicas e
pelo discurso da proteção do sujeito em sofrimento psíquico, solicitam a interdição.
Pesquisa realizada por Nisiide (2016, p. 131), reafirma que em virtude da acentuada
fragilização econômica das famílias, o BPC pode se configurar como um importante
instrumento para a garantia de um vida mais digna e autônoma para esses sujeitos.
Todavia, não é incomum a solicitação de interdição dos familiares para acesso a esse
benefício, nesses casos inverte-se caminho, "segregando e reafirmando um estatuto de
incapacidade permanente para o sofrimento psíquico e a necessidade de tutela, retirando-
lhes sua autonomia”.
Portanto, a atual situação da Política Nacional de Saúde , e dentro dela de Saúde
Mental, não pode ser medida apenas em número de serviços abertos, mas sim em sua
qualidade e resolubilidade. Apesar de os avanços conquistados com a Constituição Federal
de 1988, a subjugação dessa política à ótica neoliberal e à crescente desresponsabilização
estatal levam ao medo da desassistência e da precarização no atendimento dos indivíduos,
colocando fontes privadas de proteção social como a família como a principal provedora de
cuidado, mesmo que ela nem sempre tenha condições para tal exercício, sofrendo, também,
o impacto da atual conjuntura da sociedade capitalista, como desemprego, o incremento
das mulheres no mercado de trabalho, o empobrecimento, a precarização das relações de
trabalho, a diminuição da renda, entre outros, que impactam diretamente nos limites e
possibilidades do cuidado e do acesso a seus direitos. Esse contexto impacta diretamente
no crescente acesso ao sistema jurídico como forma de resolução de conflitos que
expressam no seu cerne o acirramento das expressões da “questão social”.
4. Por fim…
Percebe-se que o aumento da judicialização tem relação com a atual forma de
produção do sistema capitalista e do embate de classes, os quais só podem ser
compreendidos sob um olhar histórico. O retrocesso do Estado e dos direitos, a
reestruturação produtiva e a fragilização cada vez maior dos trabalhadores, o aumento da
pobreza e das expressões da “questão social” e a financeirização e mundialização do capital
representam fenômenos que impactam diretamente na organização da superestrutura
jurídica. O sistema capitalista, em termos mundiais e no Brasil, busca caminhos para se
reproduzir perante as crises cada vez mais frequentes que assolam o capital e perante a
ineficiência social do neoliberalismo, todavia, o que se visualiza são retrocessos em termos
democráticos, com uma onda conservadora e com políticas sociais austeras, o que afeta os
trabalhadores já fragilizados e repercute no ativismo do judiciário.
Portanto, o cenário que acena não é promissor. As crises gestadas no interior da
sociedade capitalista se agravam e a atual contradição, explicitada pela inconciliabilidade
entre capital financeiro e capital industrial, entre capitalistas e trabalhadores, geram
rupturas e tensionamentos entre a própria burguesia e acirram os históricos embates entre
capital e trabalho, colocando o capitalismo em um momento de busca por superação da
atual crise conjuntural. Os (des)caminhos encontrados pautam-se nas alterações do modo
de produzir e circular mercadorias, precarizando a vida e as condições de trabalho da
classe trabalhadora; nas funções exercidas pelo Estado direcionado pelo receituário
neoliberal, impactando a garantia de direitos e manutenção das políticas sociais e na
concentração da riqueza e aumento da pobreza e da desigualdade social. Nessa
conformação, as expressões da “questão social” tornam-se cada vez mais agudas,
impactando nas condições de subsistência dos trabalhadores, que acabam buscando no
Estado a garantia de direitos legislados, porém, com a precarização das políticas sociais e a
dificuldade de acesso aos seus direitos, findam esse processo no judiciário.
Dados como os da política de saúde exemplificam um cenário da judicialização
encontrado nas demais políticas sociais também, mais do que isso, revelam um cenário
assustador que relaciona a desarticulação da rede de proteção social e as precárias condições de
vida dos sujeitos sociais com a busca crescente do judiciário como palco para resolução de
conflitos que deveriam ser definidos no âmbito do executivo. Em tempos de austeridade, de
retrocessos de direitos e de dificuldades em garantir os direitos sociais até então legislados, a via
jurídica torna-se uma opção cada vez mais requisitada. Contraditoriamente, essa via é um
importante veículo para que muitos sujeitos acessem seus direitos, porém, também traz
consequências em termos de gestão e orçamento público e para a própria manutenção do
exercício democrático, com o esvaziamento dos canais de debate como movimentos sociais e
conselhos de direitos e a busca por soluções individualizadas e imediatistas.
Referências
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