PATRICIA IRINA LOOSE DE MORAES
O AUTO DA COMPADECIDA: DO TEATRO À MINISSÉRIE
Marília 2006
PATRICIA IRINA LOOSE DE MORAES
O AUTO DA COMPADECIDA: DO TEATRO À MINISSÉRIE
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Marília. Orientadora: Prof. Suely Fadul Vilibor Flory.
Marília 2006
Moraes, Patrícia Irina Loose de M827a O Auto da Compadecida: do teatro à minissérie./ Patrícia Irina
Loose de Moraes – Marília: UNIMAR, 2006. 141f Dissertação (Mestrado em Mídia e Cultura) – Faculdade de
Comunicação , Educação e Turismo, Universidade de Marília, Marília, 2006.
1. Comunicação 2. Arte popular 3. Carnavalização 4. Estética 1.
Moraes, Patrícia Irina Loose de II. O Auto da Compadecida: do teatro à minissérie.
CDD – 302.2
PATRICIA IRINA LOOSE DE MORAES
O AUTO DA COMPADECIDA: DO TEATRO À MINISSÉRIE
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Marília. Orientadora: Prof. Suely Fadul Vilibor Flory
BANCA EXAMINADORA
Prof. Orientadora Dra. Suely Fadul Vilibor Flory
Prof. Dra. Ana Sílvia Lopes David Medola
Prof. Dra. Linda Bulik
Marília 2006
DEDICATÓRIA
A Ariano Suassuna, pelo respeito e amor às raízes da cultura brasileira...
Meu verso acabou-se agora, minha história verdadeira. Toda vez que eu canto ele, Vem dez mil-réis para a algibeira. Hoje estou dando por cinco, talvez não ache quem queira Suassuna (2004, p. 189), cordel popular.
AGRADECIMENTOS A Deus, por abençoar a minha caminhada. À Prof. Dra. Suely Fadul Vilibor Flory, minha orientadora, a quem deve as pistas sem as quais esse trabalho não teria vindo à lume e também pelos momentos agradáveis de nossos encontros. Ao meu esposo Marcos e a meu filho Felipe, pela compreensão e pela solidariedade. Aos meus pais, Maria Helena e Valdemar, pela oportunidade e votos de perseverança. Ao meu irmão Fabrício e à cunhada Rosana, pelo apoio incondicional.
LISTA DE FIGURAS Figura 1: Xilogravura 9 Figura 2: Xilogravura: o enterro da cachorra 25 Figura 3: A Compadecida e os emblemas do Movimento Armorial por Manuel Dantas Suassuna 63 Figura 4: O circo por Manuel Dantas Suassuna 79 Figura 5: A Compadecida e Jesus na literatura de Guel Arraes 101 Figura 6: João Grilo e Chico 130 Figura 7: Ariano Suassuna 134
SUMÁRIO INTRODUÇÃO 10 I SUASSUNA E O RESGATE DO POPULAR – O AUTO 26 1.1 Contextualização 26 1.1.1 Arte e modernidade 29 1.2 Do teatro à minissérie: contextualização do Auto da Compadecida na
obra de Ariano Suassuna 44 1.3 Estado de arte: continuidade ou ruptura 55 II PERCURSO TEÓRICO 64 2.1 A questão da Estética da Recepção 64 2.2 A herança medieval 70 III A CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS 80 3.1 Do texto teatral à minissérie: o processo de gênesis-mimesis 80 3.2 Discurso e ideologia: as limitações impostas pelo enquadramento 81 3.3 A construção das personagens: estudo das notas da produção 85 3.4 O cenário 98 IV O ESPAÇO COMO INTERAÇÃO COM O RECEPTOR 102 4.1 Da teatralidade a obra televisiva 106 4.1.1 Teleteatro 108 4.2 Contexto: as possibilidades na linguagem literária 112 4.3 O trabalho de Guel Arraes 123 4.3.1 O elenco: ficha técnica e trailer 128 CONSIDERAÇÕES FINAIS 131 ANEXO 140
MORAES, Patrícia Irina Loose de. O Auto da Compadecida: do teatro a minissérie. 2006. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Marília.
RESUMO A transcodificação da peça teatral de Ariano Suassuna – O Auto da Compadecida – para a minissérie de mesmo nome de Guel Arraes, exibida na TV Globo em 2004 é uma leitura satírica e humorística da sabedoria popular e uma denúncia séria das desigualdades e injustiças sociais e religiosas entre opressores e oprimidos no microcosmo da região Nordeste, que em si resume o que acontece em todo o Brasil. O Auto de Suassuna tem seu ponto alto na carnavalização, na criação de um mundo às avessas que se concretiza num julgamento final, onde os papéis dos personagens são subvertidos, passando o malandro João Grilo a ser o salvador de todos, diante do tribunal composto por Jesus, Nossa Senhora e o Diabo, numa visão cômica e compadecida da fraqueza do homem e de suas vicissitudes numa terra madrasta. Essa pesquisa observa a passagem do código teatral para o código televisivo – a transmutação da peça para a televisão – através dos procedimentos teóricos da Estética da Recepção, da intertextualidade à carnavalização, do leitor implícito à interatividade com o receptor, providenciando o resgate do popular e a preservação da memória nacional através do saber popular. Buscou-se entender, no primeiro capítulo, o resgate do popular, a extensão da obra, do texto/teatro à minissérie, a representatividade da farsa na obra do autor e o estado de arte. O contexto da cultura e da arte são buscados para explicar as manifestações ideológicas e a necessidade de fundar uma cultura nacional. O segundo capítulo percorre, teoricamente, o contexto da carnavalização e a redação com a cultura popular nordestina. A carnavalização e a ironia do discurso propiciam uma leitura cômica e moralizante do cotidiano, que se configura através de intertextos com a cultura popular. O questionamento da construção das personagens do texto/teatro à minissérie, remetendo-nos à reflexão do discurso e da ideologia, abordagem central do terceiro capítulo, passa por uma discussão do enquadramento, da possibilidade de leitura do racional e do irracional e sua produtividade para a recepção do “Auto da Compadecida” tanto enquanto peça teatral como na sua transmutação em minissérie. No quarto capítulo, configura-se a preocupação com a relação de interação autor/receptor, observando-se estratégias de transposição e transcodificação do texto/teatro à minissérie, do texto/teatro para a inserção da obra na televisão (ou na linguagem televisiva). Ressalta-se o grande empenho do autor, não somente em produzir uma obra, coerente com suas idéias de preservação da memória cultural nacional, mas ainda fundando um movimento atuante _ o “Movimento Amorial” _ que reúne os interessados em preservar as raízes populares do Nordeste Brasileiro nas artes, literatura, música, artesanato, dança, em suas mais diversas manifestações, envolvendo todos os setores da sociedade. Palavra-chave: comunicação, estética, carnavalização.
MORAES, Patrícia Irina Loose de. O Auto da Compadecida: do teatro a minissérie. 2006. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Marília.
ABSTRACT The transcoding of Ariano Suassuna’s play – O Auto da Compadecida – into a short with the same name by Guel Arraes, shown on Globo TV in 2004 is a humoristic reading of the popular knowledge and a serious denunciation of inequalities and social and religious injusticies between oppressors and oppressed onto Northeast region microcosm, which resumes in itself what happens all over Brazil. The play by Suassuna has its best witthin the carnavalization, within the creation of a world upside down that renders concrete within a final judgment, where the characters’ roles are subverted, turning the clever João Grilo into the great redeemer, in front of the tribunal made up by Jesus, Nossa Senhora and the Devil, onto a cosmic and pitiful version of man’s weaknesses and his ups and downs onto a harsh land. This research observe the changes from theater code to TV code – the transmutation of the play for television – through theoretical procedures of Esthetics of Reception, from intertextuality to carnavalization, from implicit reader to interactivity whit the receptor, providing the rescue of popular and the preservation of the national memory by popular knowledge. We tried to understand, in the first chapter, the rescue of the popular, the extension of the play, of the text/theater to the short, the representation of the farce into the author’s work, and the art sense. The context of culture and art are focused to explain the ideological manifestations, the need of founding a national culture. The second chapter goes through, theoretically, the context of carnavalization and the relation with the popular northeast culture. The carnavalization and irony of a comic and moralizing reading of the daily what if represent through of intertextuality with the popular culture. The questioning of the construction of the characters from the text/theater to the short leading us to the reflection of the logo and the ideology in Suassuna’s work is main approach in the third chapter. It passes by a discussion of the framing, by a possibility of reading of the rational and irrational, and its productivity for the reception of the “Auto da Compadecida”, as a play, as in its transmutation into a short, in the fourth chapter, we can see the preoccupation with the relation of interaction author/receptor, observing strategies of transposition and transcoding of the text/play to the short, of the text/play for the insertion of the play into the television (or into television language). Emphasize, goes through ideological field integrating the great author’s, effort not only in producing a work, coherent with his ideas of preservation of national cultural memory, but even founding an actuating group _ the “Armorial Movement”_ that reunites those who are keen on preserving the popular roots of Brazilian Northeast in the arts, literature, music, art craft, dance, in its more diversity manifestations, and involving all the sectors of the society. Key-words: communication, esthetics, carnavalization.
Xilogravura. FONTE: <http://images.google.com.br/imgres?imgrerl>
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INTRODUÇÃO
A transcodificação da peça teatral de Ariano Suassuna – O Auto da
Compadecida – para a minissérie de mesmo nome de Guel Arraes, exibida na TV
Globo, em 1999, é uma leitura humorística da sabedoria popular e uma denúncia
séria das desigualdades e injustiças sociais e religiosas entre opressores e
oprimidos no microcosmo da região Nordeste, que em si resume o que acontece em
todo o Brasil.
O Auto de Suassuna tem seu ponto alto na carnavalização, na criação de um
mundo às avessas que se concretiza no julgamento final, em que os papéis dos
personagens são subvertidos, passando o malandro João Grilo a ser o salvador de
todos, diante do tribunal composto por Jesus, Nossa Senhora e o Diabo, numa visão
cômica e compadecida da fraqueza do homem e de suas vicissitudes numa terra
madrasta.
Esta pesquisa analisa a passagem do código teatral para o código televisivo –
a transmutação (BALOGH, 1996) da peça o Auto da Compadecida para uma
minissérie televisiva – através dos procedimentos teóricos da Estética da Recepção,
da intertextualidade à carnavalização, do leitor implícito à interatividade com o
receptor, providenciando o resgate do popular e a preservação da memória nacional
através do saber popular.
A observação das ações e representações da cultura popular nordestina
constituem a base dos trabalhos de Ariano Suassuna. Em O Auto da Compadecida,
a busca pela identificação da tradição popular e dos símbolos, que permeiam o
imaginário do nordestino, deixa transparecer uma preocupação maior, que não se
encerra nas particularidades do meio nordestino, mas culmina na investigação pela
consciência e edificação de uma cultura popular nacional.
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Suassuna desperta explicitamente, no texto/teatro a necessidade de
diversificação discursiva. Esta deve ser capaz de suscitar elementos que
possibilitem uma confluência entre os horizontes de expectativas do autor/leitor, da
obra/público e do código/meio. Sua obra teatral incorpora a construção da memória
nacional, realizando uma fusão do individual e do coletivo, pelo encontro de um elo
conector comum através do teatro popular.
A temática religiosa assume, segundo Suassuna, a condição de ligação entre
as diferentes aglutinações sociais, capazes de interagir no cotidiano regionalista
nordestino, além de simbolizar um elemento comum de significação, assumindo um
caráter nacional no cotidiano popular. A ampliação da leitura, do regional para uma
esfera mais ampla, torna-se possível pelo código comum da língua que, embora
guarde diferenciações regionais, permite que os objetos, por mais nuanças
interpretativas que possam sugerir, quando reunidos num contexto, sejam passíveis
de compreensão em âmbito nacional.
O Auto da Compadecida permite a existência de um ambiente em que se
fazem presentes o imaginário simbólico e o enfoque ideológico, que se
transcodificam gerando significação para um público-receptor, cujo repertório está
centrado na cultura popular brasileira.
Por que, para quem e como ilustrar o imaginário simbólico e a manifestação
ideológica? A primeira indagação justifica-se pela necessidade de extensão da arte.
A arte não deve destinar-se apenas à elite, que muitas vezes encontra na literatura a
fuga, como diria LUCAS1 (1976, p.49), um “lazer das elites”mas a todas as camadas
sociais, ou seja, ao povo em geral. A segunda questão surge da necessidade de
comunicar as possibilidades artísticas, desde o público erudito às massas e até
mesmo à sociedade de consumo. E por fim, o Auto modeliza uma construção
problematizada da sociedade, ilustrando-a num texto, que contempla a estética
carnavalizada das personagens no texto teatral, e num segundo momento possibilita
leituras da obra no cinema e na TV.
1 Lucas, Fábio. O caráter social da leitura brasileira. São Paulo: Quíron, 1976. p.49.
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A arte pretendida, no texto/teatro de Suassuna, alerta, chama a atenção e
quer causar repúdio quanto à condição social do brasileiro. O texto utiliza como
estratégia estética a carnavalização2 que exalta a comicidade e a inversão de papéis
sociais, interiorizando uma discussão, cujo compasso de assimilação é mais lento na
massa e mais intenso entre as elites e a parcela da população mais refinada
culturalmente. Esta interiorização é mais profunda no teatro e menor na televisão
como podemos verificar na minissérie televisiva, dirigida por ARRAES3, que será
analisada em nosso estudo. A televisão por ser uma mídia de massa não consegue
verticalizar e aprofundar seus produtos, sem o risco de não ser compreendida por
grande número de telespectadores. Talvez por essa razão a minissérie, “Hoje é dia
de Maria”, tenha ficado tão hermética para a maioria. O mesmo aconteceu com
algumas cenas da minissérie “Os Maias” 4.
Suassuna atenta para a representação dos símbolos e seus constituintes no
imaginário da coletividade. O estudo de sua literatura teatral nos remete a
identificação de uma identidade coletiva que assegura, a perpetuação de uma
cultura popular, e o resgate da memória nacional sustentadas pela representação
dos símbolos regionais, e/ou universais, presentes em uma dada sociedade. Ao
serem destacados no Auto da Compadecida, passam a reforçar o discurso simbólico
da disjunção social de uma sociedade de classes. Os símbolos no discurso de
Suassuna convidam-nos a ler, nas entrelinhas do percurso narrativo, a diversidade
cultural implícita na trama.
Para quem, para que público? Para o leitor ideal, para o arquileitor? Do leitor
da elite ao da massa, Suassuna entende que a arte deve ser disseminada, para que
possa ser entendida e preservada no contexto social, como memória integrante do
processo histórico. E como realizar tal proeza? Através da manipulação e
transposição dos códigos, por meio do estilo literário da narrativa fictícia, respaldada
pela instituição de um percurso carnavalizado, tão presente nos autos medievais,
que reaparecem em inúmeros intertextos, marca estilística de Suassuna que busca,
nas raízes da cultura portuguesa, a formação da tradição brasileira.
2 Termo creditado a BAKHTIN (198) que define o discurso burlesco como recurso estético. 3 Miguel Arraes de Alencar Filho iniciou sua carreira em Paris no Comitê do Filme Etnográfico dirigido por Jean Rouch, mestre em cinema verdade. 4 Sobre a minissérie “Hoje é dia de Maria” e “Os Maias”, consultar a Globo Filmes.com
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O modelo eleito por Suassuna para propagação da arte como resgate da
memória nacional, passa pela arte do povo, com a incorporação da narrativa
popular, com o resgate dos cordéis populares ao texto/teatro, modalidade oral, que
contribui com vários trabalhos da literatura nacional, entre os quais O Auto da
Compadecida, datado de 1955. Por que o teatro? Ao realizarmos uma busca
estatística sobre os níveis de escolaridade do Brasil e em especial no Nordeste, não
será difícil constatar que o veículo de comunicação mais viável naquele contexto é a
transmissão oral.
Como chamar a atenção do público? O discurso erudito, com vocabulário
elaborado, dificultaria a inclusão cultural das classes sociais, principalmente as
menos favorecidas. A saída foi a inclusão do vocabulário como fio condutor,
reforçado pela carnavalização, que satiriza, ironiza e cria as lacunas necessárias
para a construção da significação individual. Acrescente-se, também, a plasticidade
circense, a substituição do vocábulo erudito por um dito popular, pois a intenção é
atender a uma demanda diversificada.
A carnavalização permite alegorizar as personagens no texto/teatro, e o
interlocutor, o receptor da mensagem, dialoga com as personagens e com o
contexto. O interlocutor acaba interagindo com a voz do autor no texto: é o momento
de sua participação ativa na obra. Sua leitura direciona o preenchimento das lacunas
do texto e convida, ideologicamente, o público à reflexão, viabilizando a
concretização do texto, através da decodificação da mensagem desencadeando
concretização da leitura ou absorção do texto.
Quem representa Suassuna como interlocutor é o palhaço. O alter ego do
autor, no teatro, tradicionalmente, se traveste em personagens aparentemente
insignificantes: o bobo, os empregados, como nas obras de Gil Vicente (o parvo) e
Moliére (Mairotte – as empregadas). Essas são personagens que, nos autos
medievais, presentifica-se na figura do Arlequim, que embora tenha evoluído
conforme as exigências da sociedade de consumo é elemento presente também nos
circos contemporâneos. A presença desse elemento no texto/teatro permite a
existência da interatividade, que cumpre a função de preencher as lacunas de
significação. A ilustração ocorre quando as ações e representações compõem um
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contexto discursivo, permitindo a coexistência dos símbolos e da ideologia, que
acabam por envolver o receptor.
Pensar O Auto da Compadecida implica em pensar a arte e as possibilidades
de leitores que poderão surgir. A adaptação da obra para a TV, no formato
minissérie, criou a necessidade de observar a oralidade e o teatro popular nas suas
diferentes possibilidades visuais, geradas no pluralismo das mídias, desencadeando
o questionamento de “como” a arte e as mídias podem e devem realizar o resgate
da memória nacional.
A problemática maior consiste na indagação do existir ou não arte na
produção televisiva de O Auto da Compadecida. A fundamentação de que a obra é a
representação da arte nacional passa a confirmar-se no momento em que se
observa a pertinência do diálogo intertextual entre as memórias populares, outras
obras do autor e as músicas populares, que buscam nas raízes nacionais a
interatividade com o contexto sócio-cultural.
A versão televisiva aqui estudada compreende a versão adaptada pela Globo
Filmes, disponibilizada num primeiro momento no formato de minissérie, que
posteriormente foi adaptado para o cinema e DVD. A introdução da obra no formato
minissérie atendia às expectativas, segundo Guel Arraes, de um projeto que a
emissora idealizou, introduzindo obras da literatura nacional na mídia televisionada,
como por exemplo, Os Maias de Eça de Queiroz, A Muralha de Dinah Silveira de
Queiroz e Lisbela e o prisioneiro de Osmam Lins (versão adaptada para o cinema e
não para a TV), entre outras.
O teatro de Suassuna tem como sua primeira produção, em 1953, a peça O
castigo da soberba, em 1954 O rico e o avarento, cuja inspiração foi buscada nos
autos vicentinos, cujos temas discutiam valores morais de caráter religioso cristão,
precisamente os pecados capitais, o teatro passa a ser adotado como um plano de
ação, que propunha discutir e educar simultaneamente. Em 1955 nasce a peça O
Auto da Compadecida, que proporcionaria a Ariana Suassuna o reconhecimento de
seu valor artístico por parte da crítica literária pela aprimoração da leitura vicentina
em seus trabalhos.
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Os autos, segundo Cascudo (1988, p.85), surgiram aproximadamente no
século XII, e representavam teatralmente o enredo popular, através da música e dos
cantos religiosos, principalmente nas datas religiosas como a Páscoa e Natal.
Quando avaliada a audiência (o elevado público) e a percepção (eficácia de
absorção da mensagem) que o gênero provocava sob os receptores, o auto migra
da proposta de encenação e memorização dos rituais cristãos católicos a realidade
de comunicação visual, como instrumento de catequização. A discussão da moral e
dos preceitos católicos articulava-se numa mensagem, cujo estilo lingüístico,
alicerçava-se nos modos rudes e simplórios de se falar da população, que por sua
vez se encontrava privada dos meios e modos literários. Esta era a proposta
existente naquele momento, a que representava uma possibilidade de comunicação
catequética (ideológica) junto aos não letrados.
Cunha (1986, p.85) pontua que no século XVI os autos eram estruturados
como uma “cerimônia em que se proclamavam e executavam as sentenças do
Tribunal da Inquisição”. Ao retomarmos as leituras da notas de Cascudo a respeito
dos autos, observamos que a inexistência de um texto culto não incita um vocábulo
burlesco, uma vez que tratavam a pratica cristã. Ao contrário do auto, teremos o
surgimento da farsa, que institui um novo gênero teatral, principalmente no século
XV com os trabalhos Gil Vicente (1438-1481, aproximadamente).
A farsa, segundo a definição de Cunha (1986, p.) é a “peça cômica de ação
vivaz e irreverente [...] coisa burlesca”. Ao contrário dos autos cujos textos retratam a
moralidade e a devoção, as farsas propunham uma alegorização lingüística rude,
abordando costumes e desajustes sociais. Autores como Gil Vicente criam peças em
ambos os gêneros, do trágico ao tragicômico. A exemplo do auto, Gil Vicente
escreveu peças como o Auto da visitação ou Monólogo do Vaqueiro (1502), o Auto
da Barca do Inferno que segue uma trilogia em que propõe a discussão da Barca do
Inferno (1514), Barca do Purgatório (1518) e a Barca da Glória (1519) entre outros5.
Entre as farsas temos a farsa Quem tem farelos (1505) e a Farsa de Inês Pereira
(1523) 6.
5 Sobre a cronologia das peças (autos e farsas), consultar PASSONI (1995, p.7-8). 6 Idem
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Suassuna segue o paradigma de Gil Vicente, quando transita entre o auto e a
farsa. Em o Auto da Compadecida temos um problema de classificação do gênero,
pois, há simultaneamente, auto e farsa. Embora o tema esteja centrado na ilustração
da moral e da religiosidade, a construção da fala do personagem João Grilo, suscita
o texto estruturado em farsa e é observada por Raimundo Carrero (apud, Suassuna,
2004, p.223) quando aponta que o “[...] no Auto, conseguiu unir, num só tempo, os
teatros religioso e popular, o que oferece belo efeito cênico e compõe a perfeita
transição entre o erudito e o popular”. A classificação do texto em auto se justifica
quando aprofundamos a leitura da temática religiosa no texto. O auto da
Compadecida, a Igreja é tomada como a estalajadeira, apresentada no Auto da
Lusitânia de Gil Vicente (1532), que representa o local de recuperação dos
peregrinos ao longo da trajetória humana. Esta influência que Suassuna sofre de Gil
Vicente é ilustrada por Guel Arraes no final da minissérie, no julgamento de João
Grilo quando a Compadecida surge intercedendo por ele alegando que João Grilo é
mais um dos tantos seres humilhados e abandonados que só pedem socorro ou
perdão pelos pecados cometidos que se justificam pela condição de vida indigna,
neste momento há a construção de cenas que retratam os milhares de brasileiros
que vivem na linha de miséria. A fala da Compadecida reafirma a ilustração da
miséria e a substância do apelo religioso ao burlesco: João foi um pobre como nós,
meu filho. Teve que suportar as maiores dificuldades, numa terra seca e pobre como
a nossa. Não o condene, deixe João ir para o purgatório. (Suassuna, 2004, p. 170)
Quanto às críticas literárias podemos encontrar a de Sábato Magaldi7,
registrada por COUTINHO (2001, p.1539), que atribui à obra O Auto da
Compadecida a condição de ser “o texto mais popular do moderno teatro brasileiro”,
e prossegue salientando que o texto/teatro:
Aproxima-se o texto dos autos vicentinos ou dos `milagres´ mais antigos de Nossa Senhora, e contrastando com o sabor arcaico, dá ao diálogo a espontaneidade da improvisação e a estrutura dramática a idéia de que é algo que se constrói ‘a vista do público, para só no final sentir-se a solidez arquitetônica.
Esse caráter de espontaneidade e improvisação está presente tanto nos
autos medievais, como no cotidiano do nordestino. A identificação de tal similitude é
7 Crítico literário e crítico teatral com atuação na mídia impressa.
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perceptível na literatura de cordel, na música e na pintura nordestina. A literatura de
cordel recebe esta denominação devido ao fato dos poemas e histórias populares
serem expostos à venda em praça pública, pendurados em cordões. É marcado pelo
conteúdo popular, contextualizado no dia-a-dia, nas histórias e fatos diários, reais ou
ficcionais, concretizando-se a oralidade nas narrativas do imaginário popular.
O imaginário8 popular se faz presente de diversas maneiras, por exemplo, nas
composições musicais ilustrada por instrumentos, como por exemplo, o pife ou
pífaro, difuso no meio popular do nordestino. A apresentação de grupos de pífaros
ocorre, predominantemente, em praça pública e segundo CASCUDO (2000, p.612),
o grupo “[...] consiste de três pifes de taboca, bombo, tambor, caixa e um par de
pratos”. O elemento musical está presente na estrutura dos autos, principalmente
nos autos portugueses que contemplavam músicas e coreografias simples que
cantavam os motivos religiosos, no nordeste a dança e os cantos religiosos estão
difusos no imaginário popular, principalmente quando considerada uma realidade em
que cada cultura tem seu próprio imaginário, a diversidade de culturas e raças no
Brasil compõe um complexo imaginário, em constante movimento de transformação,
fusão e fragmentação. Esse complexo e diversificado meio cultural que mescla o
imaginário de diferentes culturas e povos retrata um resgate da arte. Para Suassuna
a arte, na música, no teatro e na dança ainda mantém características observadas no
teatro religioso na Europa a partir do século XII que mesclavam as cenas do
cotidiano com passagens bíblicas, de maneira a ilustrar a aplicação dos preceitos
religiosos, em prol da preservação da moral. Geralmente as encenações sacras e os
autos eram encenados nas portas principais das igrejas ou em seu interior, quando
destinados à nobreza eram encenados nas casas nobres ou palácios, sempre ao
som de instrumentos musicais, cantos e danças simples.
Em O Auto da Compadecida, os elementos musicais e coreográficos simples
(o encerramento da minissérie contempla este contexto), podem ser visualizados na
leitura de Arraes, que busca incorporar elementos da música regional para ampliar o
impacto da significação. As danças da Folia de Reis e do Congado, por exemplo,
8 Para Patlagean (apud, LE GOFF, 1998, p.291), “O domínio do imaginário é construído pelo conjunto das representações que exorbitam do limite colocado pelas constatações da experiência e pelos encadeamentos dedutivos que estas autorizam.
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são elementos comuns ao repertório do nordestino e compõe o repertório cultural
desta parcela da população brasileira. A soma de repertório e a prática vivida por
intermédio da ritualização constituem, conforme aponta FLORY (1997, p.40-43), a
comunidade discursiva. Mas, há de se ressaltar o fato de que as fronteiras que
cerceiam as comunidades discursivas, no caso específico do Auto, transpõem-se no
momento em que se submetem a contextualização do símbolo universal, no caso, a
religiosidade representada pelas figuras do Diabo, de Emanuel (Jesus), e Maria,
principalmente da última. As personagens elevam-se à categoria de elementos de
conexão universal, principalmente por estarem representando uma passagem da
literatura bíblica universal, “o juízo final”.
Música e religiosidade ressaltam-se como o duo utilizado na ritualização da
catequese moral. As igrejas serviam de palco para as apresentações dos autos, e
como continham personagens comuns à comunidade discursiva da Igreja Católica,
como os Santos, Maria, Jesus e o Diabo, a encenação tornava-se mais intensa e
materializava o teor catequético quando ritualizada em território católico. Uma vez
pensada a estética da linguagem, admitia-se o simplório, mas nunca o grotesco. Os
palcos geralmente eram improvisados nas entradas principais das igrejas, que
geralmente dispunham de degraus carregados de significação. Os degraus
representam as dificuldades, as escolhas, o livre arbítrio e sugeriam o rompimento,
entre o sagrado e o profano. O texto musical também catequético convidava a
regeneração moral, reforçando o teor emotivo do texto teatral. No Auto da
Compadecida, o elemento musical regional passa a ser incorporado à obra com o
propósito de disseminar, divulgar e caracterizar. A música erudita dificilmente seria
assimilada com o teor tal como o da música regional, de raízes, que reproduz, cria
recria temas religiosos. A arte e a criatividade nordestina são incorporadas ao Auto
da Compadecida de maneira a demonstrar que uma sociedade aculturada também é
capaz de produzir e gerar significação, mesmo que ideologicamente influenciada. A
música proveniente de instrumentos rudes, confeccionados com matéria prima
regional, como o pífaro, preenchem a lacuna emotiva, completando a significação do
texto. Ao considerarmos o geo-espaço do nordestino, a diversificação da fauna e
flora (que embora diversa não permite, principalmente no interior o crescimento
econômico), a concentração de renda por uma minoria e o compartilhar da pobreza
pela maioria, passamos a entender como é relevante o aspecto de criação popular,
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e de incorporação da arte popular, pois acaba se revelando como uma das poucas
possibilidade efetivas de produção de um povo, receptor privilegiado da mensagem
teatral popular.
Pode-se observar, como exemplo, o uso da taboca, popularmente conhecida
como bambu ou taquara, matéria-prima para a manufatura de um instrumento que
se assemelha ao flautim, uma vez que no espaço de penúria nordestino a
transformação do bambu é ainda economicamente viável. O pife pode ser entendido
como um escape, uma saída perante a exclusão cultural da massa. No teatro de
Suassuna o pife ou pífaro é introduzido no contexto erudito, juntamente com
elementos populares, como os provérbios, ditos e crenças, que viabilizam através de
estratégias e artifícios, a construção de uma narrativa teatral onde o receptor é
previsto pelo próprio texto decodificando a mensagem através de suas projeções
interpretativas.
Outros elementos, por exemplo, a xilogravura, também registra a presença do
imaginário popular e incorpora-se ao texto pelo viés da cultura popular nordestina. A
xilogravura também assume caráter popular e, embora tenha sido incorporada,
historicamente, como fonte tipográfica pelos colonizadores, torna viável a ilustração
dos cordéis, estabelecendo a comunicação visual da literatura popular, da arte
popular.
Há uma nitidez na realidade do nordestino que nos permite entender que
inexiste o enquadramento do determinismo geográfico e biológico, como aponta
LARAIA (2003, p.17), condicionado grupos a diferenças culturais. LARAIA aponta
que a endoculturação9 possibilitou a capacidade de plasticidade de vários povos, a
realidade da cultura nordestina não é diferente.
A plasticidade passa a ser visualizada na composição musical por meio do
flautim, criado com material nacional (flora nativa), a taquara, e da reprodução visual
(gráfica) tornou-se realidade através da implantação da xilogravura, técnica oriental
9 Para Laiara o meio (composto pelo conjunto de regras e práticas) ao qual um indivíduo está exposto o sujeita a uma dada condição de aprendizagem e interdisciplinaridade. Esse processo de aprendizagem é entendido como endoculturação.
20
que aprimorou o carimbo. A abundância de madeira, que permitia a confecção de
carimbos e a possibilidade de extração de tinta das árvores brasileiras como o pau-
brasil, possibilitou uma diversificação das ilustrações, uma técnica menos onerosa e
que permitia a divulgação de folhetins no nordeste popularmente conhecidos por
cordéis. A xilogravura é uma arte, um artesanato que permite a um momento de
contemplação, e esta observação não deve atrelar-se ao fato de que fatores naturais
como madeira e tinta propiciam a possibilidade de existência da plasticidade –
migrar do flautim convencional de metal para a forma rústica de madeira (do
elemento nobre ao popular), o objeto em si enseja a arte, a possibilidade de
mutação e variação dos objetos que tal percepção plástica permite. A possibilidade
da plasticidade mostra que quando reunidos num contexto, estes objetos facilitam a
comunicação estabelecendo uma significação compreensível para o povo, num
contexto regional, independente da classe social.
O teatro de Ariano Suassuna contempla a intertextualidade, configurando-se
um processo de re-leitura que, segundo FLORY (1997, p.40), torna possível ao
receptor ler o texto de origem no texto lido. No Auto da Compadecida, por exemplo,
outras passagens, bíblicas ou não, são incorporadas pelo autor em sua obra. O
leitor, ainda que não tenha lido a Bíblia, estará “lendo” os versículos do Juízo Final,
na passagem do julgamento das personagens, após sua morte na terra. O receptor
passa a assimilar outras leituras no texto de Suassuna bem como no imagético do
teatro e das versões televisivas.
O Auto da Compadecida traduz-se no esforço de recuperar no texto teatral o
que ORTIZ (2003, p.135) propõe enquanto “cultura popular”, que se institui pela
memória coletiva, mantida por uma memorização que deve admitir um processo
contínuo de mutações culturais, que fluem nas vivências coletivas, firmadas no
tradicionalismo.
A memória nacional faz-se pela memória popular, pela manutenção dos ritos,
das práticas e representações, presentificadas pela intertextualidade de outros
textos, orais ou escritos, que se transmitem de geração a geração. A inexistência de
cronologia no contexto do texto/teatro faz com que os sujeitos excedam datas,
nomes, heróis e marcos históricos, tudo em justificativa do processo histórico que
21
busca a manutenção da cultura popular que apenas existe se houver memória
nacional. Quando observamos a obra de Suassuna é possível perceber a
preocupação quanto a forma e o conteúdo de suas composições, considerando que
as representações teatrais, a arte, o folclore, a pintura e os costumes conservam-se
como memória coletiva. Segundo ORTIZ (2003, p.135), “a memória popular (seria
mais correto colocar no plural) deve, portanto se transformar em vivência, pois
somente desta forma fica assegurada sua permanência através das representações
teatrais”.
Esse tom comparativo entre vivência e memória nacional no trabalho de
Suassuna torna-se realidade através do teatro, onde existe a proposta do resgate
das origens populares, de reviver e convidar o povo a ver e a interagir. A tradução, a
leitura e a interação conforme DINIZ (2003, p.13), eleva os textos como “signos uns
dos outros”. Lê-se uma coisa que significa outra:
Essa nova conceituação de tradução mostra-se relevante para todos os textos que possam considerar como transposição de outros, pertençam ou não à linguagem verbal. As inter-relações entre a literatura, o teatro e as demais artes, podem pois, ser estudadas como formas de traduções ou transposições intersemióticas entre textos de códigos diversos _ aqui incluídas as relações entre o cinema e a literatura [...].
Embora essa pesquisa não contemple o estudo do texto/cinema, a leitura
televisiva exige elementos próprios da mídia visual, diferentes do teatro. No Auto da
Compadecida, Guel Arraes realça alguns elementos do teatro e despreza outros,
como por exemplo, o arlequim. O Auto da Compadecida suscita a relação com
antecedentes culturais ibéricos e a estética literária do discurso, apresentada em
farsa e reforçada pelo estilo de carnavalização constitui a base para alegorização
dos papéis das personagens, que articulados entre os textos e os diversos códigos,
são capazes de significar para além do texto escrito. Outro procedimentos estilístico
utilizado por Suassuna é a paráfrase10, não no sentido de mesmice, mas de
10 A paráfrase, segundo Greimas e Coutés (1979, 325) “[...] é uma operação metalingüística que consiste em produzir, no interior de um mesmo discurso, uma unidade discursiva que seja semanticamente equivalente a uma outra unidade produzida anteriormente. Nesse sentido, uma parassinônimo, uma definição discursiva, podem ser considerados como paráfrases de um lexema, de um enunciado ou de qualquer outro segmento discursivo. Essa operação é, ao mesmo tempo, uma tradução intralingüística e uma expansão (que depende da elasticidade do discurso)”. Quando Suassuna reproduz passagens bíblicas, como a ilustração do purgatório, o Tribunal das Almas, os
22
plasticidade, de criatividade, ideologicamente contextualizada nas falas das
personagens. Tanto Suassuna, em seu texto/teatro, como Arraes, em sua minissérie
televisiva, agregam às suas produções textuais uma forte carga ideológica, advinda
das leituras de outros textos e do uso inteligente e produtivo da intertextualidade.
O tom de comicidade resgata uma característica dos autos medievais que
mantêm a possibilidade de, ironicamente, discutir problemas sociais, econômicos,
políticos e filosóficos, que não precisam necessariamente estar explícitos. Os
problemas passam a ser apresentados na trama, dinamizando a trajetória do enredo
e permitindo ao receptor compreender desajustes sociais que não o preocupavam
antes.
O descompromisso cronológico do trabalho de Suassuna permite adaptações
de leituras em momentos históricos diferentes. Sendo escrita em 1955, a
contextualização e a adaptação para a TV, na leitura de Arraes, foi imaginada na
década de 30, resgatando o cangaço, o coronelismo, o teocentrismo, sem perder o
tom de farsa medieval, mas numa versão contemporânea, que engloba não uma
leitura teatral, de público reduzido, mas uma possibilidade de comunicação junto a
um grande percentual da sociedade brasileira, permitindo uma leitura coletiva. A
transmutação do texto teatral em texto televisivo acaba evidenciando outro aspecto
da comunicação: a adaptação, que divulga a literatura brasileira, não somente a um
público de elite, mas à sociedade de consumo, que se apossa de uma das leituras
da obra, num dado tempo e momento.
Após 1955, O Auto da Compadecida, passa a ser incorporado ao processo de
idealização do “Teatro Moderno”. Esse movimento, em prol da fixação de uma
cultura nacional, proposto pelo movimento de esquerda, atenta para um processo de
recuperação dos meios de comunicação de massa que, na primeira fase da ditadura
militar, estiveram sob a censura do governo Getulista, contribuindo para a
sonegação da realidade socioeconômica do Brasil. A proposta expansionista de
Suassuna de levar arte à massa, é paralela aos movimentos de crescimento e
desenvolvimento nacionais e transnacionais, que encontrariam seu ápice no governo
contos populares anônimos, o estilo literário de Gil Vicente, está parafraseando dentro do contexto de sua criação.
23
JK. Comunicar a arte aos brasileiros e a aos estrangeiros asseguraria, segundo
Suassuna, a ritualidade do fazer e comunicar a arte no Brasil. Cria para tanto o
Movimento Armorial (que propõe a preservação da música popular com pífano,
xilogravura, dança, cordéis etc), objetivando o resgate da arte popular, o reencontro
com as raízes nacionais e a divulgação da arte no Brasil e fora dele, instituindo-se
um laboratório de pesquisa da arte popular.
Suassuna proporciona-nos a oportunidade de retratar o contexto simultâneo
de complexidade e simplicidade do sertanejo nordestino, compartilhando as crenças,
os mitos e ritos do ambiente popular brasileiro, em suas obras, e pesquisas sobre a
existência, significado e destino da arte.
Este trabalho compreende o entendimento da arte como uma literatura
polissêmica que contempla a relação autor/receptor, preservando a reação
individual, e o processo de interpretação, apresentação e representação do fato
social.
Buscou-se entender, no primeiro capítulo, o resgate do popular em o Auto da
Compadecida, a extensão da obra, do texto/teatro à minissérie, a representatividade
da farsa na obra do autor e o estado de arte. O contexto da cultura e da arte são
buscados para explicar as manifestações ideológicas, a necessidade de fundar uma
cultura nacional privilegiando e preservando o espaço cultural popular numa
sociedade de consumo.
O segundo capítulo percorre, teoricamente, o contexto de carnavalização e a
relação com a cultura popular nordestina. Busca entender como e porque a
carnavalização e a ironia dos fatos, principalmente através de uma leitura cômica e
moralizante do cotidiano, ressaltando a existência do intertexto no Auto.
O questionamento da construção das personagens do texto/teatro à
minissérie, remete-nos à reflexão do discurso e da ideologia, a abordagem central
do terceiro capítulo. Passa por uma discussão do enquadramento, da possibilidade
de leitura do racional e do irracional e sua produtividade para a recepção do “Auto
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da Compadecida” tanto enquanto peça teatral como na sua transmutação em
minissérie.
No quarto capítulo configura-se a preocupação com a relação de interação
autor/receptor, observando as estratégias de transposição e transcodificação do
texto/teatro à minissérie, do texto/teatro para a inserção da obra na televisão (ou na
linguagem televisiva).
O trabalho que Suassuna se propõe a fazer, em prol da preservação do
espaço da cultura popular, passa antes pelo campo ideológico, integrando o grande
empenho do Autor não somente em produzir uma obra, coerente com suas idéias de
preservação da memória cultural nacional, mas ainda fundando um movimento
atuante _ o já citado “Movimento Armorial” _ que reúne os interessados em
preservar as raízes populares do Nordeste Brasileiro nas artes, literatura, música,
artesanato, dança, em suas mais diversas manifestações, envolvendo todos os
setores da sociedade.
25
26
I SUASSUNA E O RESGATE DO POPULAR – O AUTO
1.1 Contextualização
A alienação do popular e do nacional, que nos remete em última instancia ao tema da degenerescência do ser, se apresenta, portanto do ponto de vista da hegemonia: de uma classe sobre outras, de uma nação sobre as outras. (ORTIZ, 2003, p.77) 11
A discussão acerca da cultura e da identidade nacional brasileira tem se
arrastado entre pesquisadores diversos: antropólogos, historiadores, sociólogos,
comunicólogos, e outros. Quando lemos à obra de ORTIZ, temos a colocação da
disjunção social no âmbito da discussão da hegemonia de classes. Numa sociedade
desconexa, Hortas considera a arte como um instrumento de controle e submissão,
evidenciando uma relação entre classes dominantes e dominadas, transferindo esta
idéia para a noção de cultura e alertando, num dado momento para o interesse pelo
estabelecimento de uma “elite cultural”, amparada pela necessidade política do
Estado.
O momento de implantação do regime militar no Brasil, a arte foi adotada
como instrumento de controle, acentuado em sua fase inicial na década de 30,
requereu e instaurou mudanças. O regime quis que a idéia do “homem cordial”
descrito no trabalho de HOLANDA (1995) 12, em Raízes do Brasil, desaparecesse.
Aquele emaranhado de raças, cada qual com suas origens, heranças étnicas e
culturais tão díspares acabam por se fundir com as do “ladrilhador” (HOLANDA,
1995) (colonizador), o que geraria, segundo Holanda, a confusão na configuração do
ser nacional. Parasitado e parasitas trocam e fundem o ser brasileiro em seus
aspectos normativo e positivo, como as coisas são e como deveriam ser,
11 Ver ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade, onde há toda uma reflexão política sobre o movimento cultural no Brasil e a construção de uma identidade nacional. 12 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Termo cunhado por Holanda em seu livro.
27
alimentando o julgamento do ser pela moralidade. Concebe-se, neste momento, a
concepção do homem honesto e do vivaldino (o malandro). O malandro brasileiro e
o jeca sertanejo, no regime militar, devem ceder espaço para uma nova
configuração de sujeito nacional.
No espaço progressista, da vida moderna, o sujeito passa a ser observado
como fator de produção, e as idéias de patriotismo, que surgem naquele momento
respaldam-se na necessidade capitalista, de criar uma nação forte, que só se faz por
intermédio de homens fortes.
A idéia de cultura passa a ser confundida com a de arte. O cultural, que se
buscava edificar naquele momento, tinha como proposta a culturalização da massa
com a arte erudita, uma vez que o contexto requeria a construção de um país de
cultos, moldado por e para uma elite capitalista. Segundo ORTIZ (2003, p.72) neste
momento a cultura recebe “... uma nova conotação que significa sobretudo [uma] 13
função política dirigida em relação ao povo”. A proposta de culturalização da massa
é imposta pela minoria, politicamente dominante. Institui-se a escola para a massa e
o livro didático organizado segundo conveniências políticas. Esta proposta política
junto à massa contempla uma política de educação popular que tenta incorporar o
acesso à cultura através da introdução do livro didático com conteúdos selecionados
de uma mudança ideológica e cultural, imposta de cima para baixo, do governo para
o povo.
Apostava-se que o livro didático seria um instrumento capaz de conciliar a
leitura, a assimilação e o consumo da arte erudita, com o processo de educação: era
o modelo tecnocrata da “intelligentsia”. A política de educação de massa consiste
numa tentativa de transformação e adequação da sociedade à realidade exigida pelo
Estado Novo, que não inseriria a leitura da arte popular no modelo
didático/pedagógico. O momento exigia seres funcionais, aptos a desempenharem
as funções do mercado de trabalho que garantiriam o progresso do país. Esta
proposta de uma cultura imposta chama a atenção de grupos que não pactuam com
ela.
13 Acréscimo nosso.
28
Como incorporar a arte erudita num horizonte tão díspar (desigual)? Num país
cujo contexto ressalta o grande número de analfabetos, onde a arte propagava-se
oral e visualmente, por meio de teatros populares, feiras e festas típicas
principalmente de cunho religioso, desprovido de necessidade reflexiva? O ISEB14
(Instituto Superior de Estudos Brasileiros) surge no seio de uma elite politicamente
dominante e contraditória, inaugurando em 1955 uma nova proposta de discussão
de arte e cultura.
O grupo de intelectuais que o compunha adverte que há arte nacional,
dispersa entre a massa, que não destaca nomes, não personifica, mas que mantém
a essência cultural que liga e enriquece as novas manifestações culturais, inclusive
as de arte erudita.
Verticalizar a arte e propor a absorção, de cima para baixo, da elite para
massa, significaria comprometer a diversidade e a riqueza das manifestações
culturais. O ISEB surgirá, não para frear o contato da massa com o erudito, mas
para observar o fenômeno, em prol da preservação de um processo histórico, que
contempla a intersecção de ambientes, de culturas e de ideologias, a observação
científica, bem como a produção da discussão científica, numa realidade política e
socialmente ativa. Embora as manifestações culturais estejam inseridas na massa,
esta desconhece seu potencial de criação e ritualização da cultura, sem ter talvez a
pretensão ou talvez por não entender a profundidade da realidade artística popular.
A manifestação do ISEB não ocorre somente em socorro da extinção da cultura no
espaço popular, mas em resposta a uma ordem política, que aliena e corrompe a
arte não erudita, e que mataria provavelmente o laboratório e a possibilidade de
experimentação com o objeto popular, prejudicando a relação e a riqueza entre o
erudito e o popular.
A pretensão de discussão intelectual dos eruditos do ISEB permitiu o
rompimento de fronteiras. As discussões dos problemas sociais e políticos tomaram
proporções nacionais. O Movimento Popular de Cultura, no Recife a princípio, e o
14 Id. Ibid. Ortiz realiza todo um estudo sobre o papel do ISEB, criado sob o decreto lei n
37.608, de 14 de julho de 1995 como órgão do Ministério da Educação e Cultura. Foi criado no Governo Café Filho e iniciou suas atividades no Governo Juscelino Kubitschek. Foi extinto em 31 de março de 1964 com a deposição do presidente João Goulart.
29
CPC15 (Centro de Cultura Popular) ligado à UNE (União Nacional dos Estudantes),
proporcionaram a exaltação de uma arte antes tomada como alienada e elevaram-
na à instância de cultura popular.
Suassuna compõe seus trabalhos fazendo uso das observações tomadas em
seu laboratório popular (a mesma arte considerada), principalmente no laboratório
do interior nordestino, em especial para O Auto da Compadecida em sua cidade
natal Taperoá. A luta do ISEB pela preservação do meio cultural popular
proporcionou a criação da linha de trabalhos de Suassuna, que ainda é muito pouco
citado e estudado no Brasil. E será do confronto do antagonismo contemplado por e
na realidade sócio-politica, e exaltada pelo viés da questão religiosa, que a técnica e
as alegorizações artísticas criadas por Suassuna contribuíram para o
desenvolvimento do teatro brasileiro. A arte se aproximará de uma parcela excluída
da sociedade pela inserção do teatro popular.
1.1.1 Arte e modernidade
A arte comunica. A afirmação pode desencadear uma busca pelos modos de
comunicação, uma vez que se relaciona aos fatos, aos movimentos e processos
históricos, vivenciados pela massa e pela elite. O desencontro de interesses
individuais e de dados núcleos da sociedade, permitem a existência de um complexo
e conflitante modelo de organização social, segundo MARTIM-BARBERO (2003, cpt.
2), quando a massa observa-se como agente de transformação e rompe o processo
de manipulação sobreposto por um outro grupo social ou por elementos do próprio
grupo que desejam sobressair ao demais, temos uma organização social consciente
que se descobre politicamente. O movimento ocorre da elite para a elite, da elite
para a massa, da massa para elite, da massa para a massa, por formas e conteúdos
diversos.
Os canais e as formas de existência da arte demonstram que, ao passo que se
procede à absorção da arte, a identificação com o objeto-mensagem revela-se
descontínua. Os elementos do macro ambiente cultural denunciam que haverá
15 ORTIZ, estuda o movimento de ação política do CPC e da UNE entre 1962-1964.
30
manifestação de posicionamento para edificação de identidade e autenticidade
daquilo que se pretende chamar de arte, surgindo o questionamento: o que é arte?
Para quem é arte? O que representa?
Para TEIXEIRA COELHO (2005, p.20) a arte faz parte de uma complexa relação
de absorção de uma cultura em movimento descontínuo, que constrói um processo
ininterrupto de criação, recriação e transformação entre leitores, através da
interatividade. Pensado na idéia do movimento descontínuo de TEIXEIRA COELHO
é possível observar que a transcodificação no Auto é o elemento que permite
flexibilizar a intensidade de significação junto a receptores tão díspares, tanto no
teatro de Suassuna como na obra televisiva de Arraes. Outro fator observado por
TEIXEIRA COELHO é que o emissor/produtor da arte pode proporcionar a seu
público uma visualização de sua idéia ou leitura de mundo, de maneira implícita,
através de uma linguagem e de leituras particulares da arte, sem deixar que o
público o perceba, tal como o observado no Auto da Compadecida.
Quando propõe uma análise semiológica, TEIXEIRA COELHO, respalda-se nos
estudos de Hjekmslev (apud, TEIXEIRA COELHO, 2001, p.36), construindo a idéia
de que todo sistema lingüístico é produto de uma mente pesquisadora, afirmando
que:
[...] não deixa de ser produto de uma mente pesquisadora, do indivíduo que
o aborda. O investigador sempre deixa suas marcas no objeto investigado,
não havendo de certo modo, sentido em falar-se de realidades que não
sejam realidades para o pesquisador e que, portanto, são realidades que
pertencem exclusivamente ao mundo exterior.
Suassuna cria sua inserção no texto, que contempla o seu próprio horizonte de
expectativas, somatória dos horizontes do emissor e do receptor, do autor e do leitor
(sistema lingüístico). A figura do arlequim não é apenas a do interlocutor, aquele que
articula a trama, mas antes permite a manifestação do autor na trama. É o arlequim
que convida à reflexão e ao preenchimento das lacunas e além disso, a oralidade do
discurso coloquial do arlequim permite a participação do autor no texto/teatro.
31
A escolha de alegorizar a fala e o visual das personagens com um discurso
irônico e carnavalizado permitem um tom de repúdio, de revolta contra a realidade
social em que a massa se encontra. A arte da alegorização no teatro permite que o
povo se veja no contexto, através da construção do escritor que a descreve numa
realidade de submissão. MUECKE (1995, p.113 -114), afirma que “[...] numa peça
de teatro uma personagem pode falar ironicamamente de outra, mas nunca pode
falar com a autoridade absoluta do escritor”. A idéia de MUECKE está ligada à da
autoridade do discurso.
Na obra de Suassuna o discurso pertinente permite ao autor no Auto da
Compadecida colocar-se como erudito que se apropria de uma realidade da massa,
e de sua cultura, expressando-a no seu teatro, firmemente radicado no popular e
facilmente assimilado por uma massa composta por indivíduos de realidades e
interesses díspares. Na minissérie, a autoridade do autor continua inalterada, mas a
leitura não. Guel Arraes estabelece o seu repertório, suas leituras e sua autoridade.
O texto é lido de um novo ângulo que faz da minissérie uma “releitura” do
telespectador de uma “leitura” do diretor e sua equipe. Tanto Suassuna como Guel
Arraes partem do ambiente erudito para a massa, uma vez que o objeto, tanto da
peça como da minissérie, é o aproveitamento de “causos”, histórias de cordel,
provérbios e ditos populares, artisticamente trabalhados por ambos.
TEIXEIRA COELHO (1995), ao descrever a arte, situa-a nos moldes do projeto
iluminista, afastando-a da massa não erudita. Sugere que o vínculo existente entre
arte e religião inibe o conhecimento do pluralismo cultural entre indivíduos e nações.
Embora manifestações religiosas possam ser tomadas como arte, por que
reproduzem esteticamente a leitura do imaginário popular, que é diverso, elas inibem
e limitam o acesso e a mescla de culturas, uma vez que são norteadas por uma
ideologia que não admite mescla. O dogma catequético pretende incorporar a
Doutrina Católica, sem que exista o compartilhamento do espaço com outras
crenças, que embora existam, tendem a serem ignoradas e rejeitas (como a
adoração aos deuses africanos, parafraseados nas figuras dos santos católicos).
Segundo TEIXEIRA COELHO (1995, p.20), o processo iluminista contribuirá
para o desmantelamento da ideologia teocentrista, cedendo espaço para a
32
autonomia e definição do ambiente próprio da política e da ciência, que buscarão um
divórcio, mas não um corte definitivo do relacionamento com a religião:
[...] a arte não está mais no projeto da religião mas em seu próprio projeto _ é a arte pela arte, mas não com o sentido pejorativo que os defensores do comprometimento social da arte mais tarde iriam atribuir a essa expressão. É a arte que, simplesmente, deixa de se atrelar a decisões exteriores e , no caso, especificamente religiosas.
Já não é a Igreja que dita o que pode ser entendido como arte, mas sim a
política que passa a direcionar as obras e o como as obras devem ser absorvidas
pela população. Entre as possibilidades de arte encontramos a arquitetura do
patrimônio público: quanto mais faraônica a obra, maior expressividade
desempenharia na sociedade. Por exemplo, o Arco do Triunfo construído por
Napoleão Bonaparte e citado pelo próprio TEIXEIRA COELHO (1995, p.20), a
construção de Brasília (projeto arquitetônico de Niemayer encomendado por
Juscelino Kubitschek, 1956-1961), sugerindo que o projeto resume-se à tentativa de
impor a soberania nacional, na tentativa de simbolizar, por intermédio da arte, o
estado de poder:
O distanciamento entre produção cultural e o povo não será, na modernidade, tanto uma questão de especialização na matéria cultural quanto um problema de autoritarismo no trato com a coisa pública. O que leva a concluir que o próprio `projeto de modernidade´ mudou muita coisa, mas em nada ou quase nada alterou esse aspecto nuclear da vida em sociedade _ o que poderia levar alguém a perguntar, com razão, que tipo de modernidade é essa...De todo modo os lamentos diante dessa especialização e desse afastamento do povo e peritos da cultura não devem impressionar muito. Os que expressam parecem sentir uma acentuada saudade dos `bons velhos tempos´, de uma antiguidade que não teria como assegurar sua permanência diante de uma sociedade cada vez mais complexa e envolta num emaranhado de informações cada dia mais facetado e intrincado. (TEIXEIRA COELHO, 1995, p.21)
O primeiro ponto a ser questionado seria: para quem e para quê serve a arte?
Para quem é dirigida? Para o pluralismo cultural, que de maneira alienada ou lúcida
(com propósitos politicamente definidos), se apropria de seu conteúdo lingüístico
permitindo o ciclo de movimento, onde há a absorção, transformação ou mesclas de
culturas, formados por diferentes sistemas lingüísticos. Para que serve?
Politicamente para a identificação do poder, do poder de expressar-se, de se impor,
impor um projeto de submissão à ordem social estabelecida. Qualquer manifestação
que não partisse do ápice político passaria a ser interpretada como um escape, uma
33
tentativa revolucionária, que ocasionaria a quebra da estrutura política, quando
orientada por um discurso ideológico.
A escrita do Auto da Compadecida ocorre após a primeira da fase ditadura
militar no Brasil, que ocorreu com o golpe de Getúlio Dorneles Vargas em 1937, e
instalou uma política de repressão às manifestações populares, articuladas
politicamente ou não, por grupos ou por indivíduos.
O texto do Auto da Compadecida permeia as ideais de repressão, ou da política
de repressão, do primeiro período de ditadura, política esta que não acontece
apenas em termos de organização socioeconômica, mas das relações socialmente
politizadas entre ricos e pobres, nobres (aristocracia) e povo. Para a versão teatral
do Auto da Compadecida de Ariano Suassuna, observamos que a obra está
compreendida no contexto político (no plano nacional e na política de organização
social) que naquele momento inibiu toda e qualquer manifestação cultural que
pudesse colocar em risco o projeto político do regime militar, mas que
posteriormente viria a denunciar através da enunciação de Suassuna as diferenças
sociais que foram ocultadas pela repressão.
As manifestações de símbolos, visualizados por heróis e figuras religiosas,
vivificadas pela prática dos ritos e da memorização oral passaria a ser combatida no
regime militar, salvo quando pudesse reafirmar o projeto político. Criou-se um
espaço-temporal onde as idéias deveriam se não fosse à realidade, permanecer
estáticas (deveriam representar-se a estáticas, mas articulam-se as idéias e práticas
ocultamente) onde os projetos relacionados à cultura deveriam subordina-se a
necessidade de reafirmação do discurso político. Nesse sentido as manifestações
artísticas passaram também a serem observadas, dado o fato de que artistas como
Mário Raul de Morais Andrade (1983-1945), José Oswald de Souza Andrade (1890-
1954), Manuel Bandeira (1886-1968), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
entre outros membros da refinada elite cultural que se apresentaram na Semana de
2216.
16 Semana de Arte Moderna de 1922.
34
A afirmação que faz TEIXEIRA COELHO (1995) quando se refere ao fato de que
o aspecto nuclear da vida continua estático, remete à permanência dos símbolos
religiosos, que não se dissolvem, e por mais que a arte busque seu espaço próprio,
não estará isolada dos elementos políticos e religiosos, pois estes evoluem, como
evolui a humanidade e a cultura. Para ABBAGNANO (2000, p.225) a arte encerra:
[...] dois significados básicos. No primeiro e mais antigo, significa a formação do homem, sua melhoria e seu refinamento. [...] No segundo significado, indica um produto dessa formação, ou seja, o conjunto dos modos de viver e de pensar cultivados, civilizados, polidos que também costumam ser indicados pelo nome de civilização.
No primeiro significado, somos remetidos à formação individual do homem e
ABBAGNANO, segue explanando em suas notas que, nesse sentido, dado o fato do
homem um ser racional, diferencia-se dos animais tendo a obrigação de desenvolver
seus valores essenciais. Segundo o pensamento grego, a Paidéia17, seria o
fenômeno individual da tomada de consciência do eu, onde o homem assume a
noção de si, e de seus atos, portanto se diferenciando dos animais pelo fato de
pensar. No segundo significado as ações individuais passam a ser agrupadas e
observadas no conjunto, numa visão coletiva onde os modos de vida tornam-se
comuns, são adquiridos e transmitidos de geração a geração, numa dada
organização social.
Se a arte fosse considerada num significado geral poderia ser entendida como
“todo conjunto de regras capazes de dirigir uma sociedade humana” 18. Neste
sentido, as diferentes culturas e os diferentes membros que compõem as diversas
sociedades, assegurariam o pluralismo cultural e a riqueza de possibilidades. Assim
a arte permite o movimento das idéias e pode contribuir para a preservação da
identidade nacional.
Mas é observável que a identidade cultural calca-se na convenção, como define
ABBAGNANO (2000, p.529):
17 ABBAGNANO, Nicola. Fenômeno da reflexão greco-latina que designa que o homem se distingue dos demais animais pela capacidade de absorção e desenvolvimento das “boas artes”. A boas artes estão incluídas sua capacidade de filosofar, transpor suas idéias para a poesia, e a o sentido do discurso, apontando que o homem é capaz de fazer uma reflexão de si mesmo. Ver p.225. 18 Ver ABBAGNANO, p.81.
35
[...] nessa concepção, não é possível estabelecer em definitivo o significado da identidade ou critério para reconhecê-la, mas, dentro de um determinado sistema lingüístico, é possível determinar esse critério de forma convencional, mas oportuna.
Portanto, se a convenção lingüística determina a identidade, é possível que o
sistema lingüístico permita o conhecimento da unidade de substância, que expressa
o significado de uma dada identidade cultural. A arte passaria a definição de um
processo construtivo, cuja substância gerativa ou elementos do sistema lingüístico
contemplam as formas verbais, visuais e/ou sonoras, de maneira a permitir a
comunicação entre ambientes diferentes e pessoas diferentes.
O ambiente caótico torna-se capaz de gerar significação, expondo a ideologia e
a manifestação de poder que se pretende, quando um símbolo universalizado é
introduzido como unidade significativa. No caso de SUASSUNA, os símbolos
religiosos subvertidos e o sistema lingüístico satirizado são capazes de estabelecer
comunicação com os mais diversos receptores. A representação arquitetônica pode
e deve representar poder. A arquitetura de Brasília, as grandes catedrais, os
monumentos históricos ilustram e registram a exaltação de poder, e, quando
observados como objeto que relaciona sentido a estrutura social, passam a
categoria de códigos que por sua vez exprimem o sentido de poder e resguardam a
condição de obra artística, uma vez que sua pretensão é ilustrar, estabelecer contato
e externalizar o momento.
A inserção da igreja e a pintura barroca servem à exaltação dos símbolos e
emblemas que num trajeto temporal ilustram e externalizam a relação do poder que
transcende o tempo, resgatando as crenças e valores morais impostos no
movimento de plasticidade das obras religiosas. No teatro de Suassuna esses
elementos não são pensados apenas como condutores do movimento de
transformação da plasticidade artística, mas antes devem representar a fusão entre
a realidade e o fantástico, a relação de uma lei temporal (humana) submetida a uma
lei divina (atemporal).
Há que se destacar a arte e suas possibilidades no domínio dos códigos. Há
uma linguagem artística para uma arte que se pretende de elite, uma para arte
36
popular e por fim uma para a arte de massas. ARANHA e MARTINS (1992, p.207)
caracterizam a arte da elite da seguinte forma:
A arte da elite caracteriza-se por:
implicar um esforço para captar o significado da existência humana;
exigir do público uma mudança no modo de ver o mundo;
envolver o desenvolvimento da linguagem artística;
envolver a expressão pessoal do artista.
Quanto à arte popular os autores prosseguem a definição embasados no
historiador Arnold Hauser, salientando que “a arte popular ou folclórica compreende
a produção poética, musical, plástica, teatral e de dança de um setor da população
que não é intelectualizada, nem urbana, nem industrial” (ARANHA e MARTINS,
1992, p.207).
Arrolam as seguintes características da arte popular (ARANHA e
MARTINS:1992, p.207):
ser anônima, isto é, a forma de sua apresentação é fruto de inúmeras colaborações ao longo do tempo, sem que haja um único autor;
traduzir a visão de mundo e os sentimentos coletivos no qual o grupo tem sua origem, ou seja, o conteúdo da experiência expressa na arte folclórica é comum a toda uma coletividade;
desenvolver-se dentro de convicções fixas;
ter como público o próprio grupo que a criou e que, em geral, é composto pelos habitantes rurais e de pequenos vilarejos;
não ser inspirada nem influenciada por modas.
Finalizam caracterizando e configurando a arte de massas como produto da
indústria cultural. Segundo TEIXEIRA COELHO (1998) há uma tentativa de
homogeneização da cultura através da indústria social, que fornece elementos,
“produtos culturais” adversos à realidade local e ou simplesmente ignora a riqueza
do cotidiano do brasileiro, copiando a cultura de outras nações, principalmente dos
EUA. Aponta em seus estudos, três pontos de discussão sobre a cultura no Brasil: o
primeiro trata da política de heterogeneidade da indústria cultural, o segundo sobre a
referência cultural (laboratório da cultura), afirmando que: “Um último traço da
indústria cultural brasileira aqui a ser destacado é o relativo à sua permeação por
elementos de culturas estrangeiras e o conseqüente descaso com os temas do
nosso cotidiano” (TEIXEIRA COELHO, 1998, p.84).
37
No trabalho de CALDAS (1979), há pertinente uma reflexão sobre a música
popular e a indústria cultural. O autor aponta em sua pesquisa que a música
sertaneja foi o gênero imposto a sociedade menos culta, ou periférica, como objeto
de consumo. Este objeto, tornou-se acessível dada às condições históricas, que
evoca uma história agrária, lembra que grande parte da periferia dos grandes
centros como a cidade de São Paulo, absorveu uma população rural ou de cidades
cujo vínculo agrário é predominante. Para CALDAS a música sertaneja, de raízes,
que contava e cantava o cotidiano do sertanejo foi apropriada pela indústria cultural
e adaptada ao gosto estético do novo sujeito da metrópole, o proletário. O gênero
para CALDAS (1979, p. 23) foi convertido “[...] em simples entretenimento, que
acena ao receptor com mensagens de conteúdo ideológico cada vez mais alienantes
[...] desviando-a ainda mais de seus problemas.
Para CALDAS (1979, p.23) “[...] a indústria cultural, no domínio da estética
musical, como em qualquer outra forma de prazer lúdico, sabe como manipular a
consciência de cada um, respeitando, porque economicamente lhe convém, a
condição social”. Nos trabalhos de Suassuna é possível observar a preocupação em
evitar, que sua produção, se transforme simplesmente em um objeto do qual a
indústria cultural se apropria para fazer crê ao consumidor que aquele produto esta
apto a suprir suas necessidades, a satisfazê-lo.
O “produto arte” passa a ser um bem, demandado por uma sociedade de
consumo que, na realidade, busca suprir o gosto ou a preferência em função da
renda dos indivíduos. GREMAUD (2003, p.134) constrói a busca da demanda
individual na ótica capitalista, e estabelece a seguinte relação:
o bem idealizado é o bem “x”;
os bens concorrentes são aqueles cuja demanda ocorre em função dos
outros bens “y”;
o bem idealizado ou um substituto próximo ocorre em função da renda,
que leva o indivíduo a optar entre um ou outro;
a demanda ocorre em função do gosto ou preferência e este predomina
entre aqueles indivíduos que não têm problema com renda e podem
adequar a busca à necessidade individual.
38
A busca, que ocorre em função do bem desejado, aquele que o indivíduo
anseia, para suprir uma lacuna, um espaço e um momento, é o modismo
direcionando o movimento de consumo. A arte é antes um objeto para a sociedade
de consumo. Para Adorno (apud, ARANHA; MARTINS, 1992), este espaço, ou
campo vazio, reflete o conflito interno, o não envolvimento do homem com o seu eu,
e reflete, ainda, a busca por espaço no grupo social, onde o consumo de um
determinado bem o identificaria no seu contexto social.
Ao entendermos que a renda está diretamente relacionada com as
possibilidades de consumo, entendemos que a indústria cultural criará uma opção
imediata de consumo, caso o bem “x” (entenda-se por bem “x” aquele idealizado
numa primeira instância), torne-se uma opção invalidada por escassez de renda ou
escassez do próprio bem.
O gosto e/ou a preferência do indivíduo ficarão condicionados à escassez. A
escassez poderá estar relacionada à renda, ao bem ou serviço, e o que é escasso
para alguns, já não o será para outros, mas sempre haverá uma opção imediata que
se aproxime da necessidade do demandante. No sistema capitalista há sempre uma
opção para satisfazer o desejo. O sistema capitalista formula e condiciona o homem
para viver em uma sociedade capitalista e o convida a suprir as carências do ego
por bens ou serviços. O superego condicionará a busca pela auto-realização através
de bens e serviços, a uma “não arte” que se diz arte. Esta arte não evoca mudanças,
não permite espaço para reflexão, e destrói qualquer movimento que sugira a
contemplação de uma massa politizada que questiona o seu tempo e indaga o
homem historicamente.
O impressionante é que o movimento da indústria de massa questiona a
utilidade do bem ou serviço, não em ascensão à arte, seja ela erudita ou popular,
mas em função do aumento do consumo, quanto maior a sensação de satisfação,
maior será a atribuição do juízo de valor. Sua utilidade será mensurada conforme a
graduação da satisfação que proporciona ao consumidor. Para a indústria de massa
a arte é mais um produto a consumir. Tomemos por ilustração uma peça de teatro
para o público infantil, contratada para dinamizar e alegorizar uma festa de
39
aniversário. Ela provavelmente não desencadeará repercussões de movimento
politicamente discutíveis, pois o cenário não é o tablado, o cenário é o evento, o
juízo de valor será atribuído, segundo a funcionalidade, serviu ou não à comicidade
infantil. Se servir, será aprovado pelo mercado consumidor, será indicado, e de arte
passará a um negócio, será juridicamente constituído, se não o mercado a
desprezará, pela sua não “funcionalidade”.
Ao tomarmos O Auto da Compadecida como meio de refração possível do
tablado do teatro, estamos redimensionando a realidade, convidando-nos a sairmos
do cotidiano temporalizado para um espaço atemporal, onde todos somos
consumidores, mas não propriamente no plano econômico. Passamos a consumir
uma realidade discursiva que convida à reflexão e permite que a massa descontínua
identifique-se, em passagens e cenários diferentes, vendo-se refletida em cada
espaço, em cada expressão ou movimento do público com os atores, de atores para
atores e de público para público.
A arte passa a contemplar as características ilustradas por ARANHA e
MARTINS (1992, p.210). Ela é anônima, mas é capaz de refletir, expressar e mostrar
o movimento de um povo, suas convicções, suas convergências, seu movimento,
início e sua derrocada. É endocultural, não é modista, passa a ser memorizada e
ritualizada, permite a construção de uma memória de massa, que se pretende
nacional.
É a cultura que o capitalismo vende que não permite o espaço para uma arte
popular. O capitalismo gera uma sociedade de consumo, uma sociedade alienada.
Os objetos não guardam reflexão, não situam o homem quanto à sua temporalidade
social e econômica. O homem sai do movimento e passa à passividade, o homem
tornando-se incapaz de interagir para promover a mudança social. ADORNO e
HORKHEIMER, na década de 40, já situavam o movimento consumista. Para
ARANHA e MARTINS (1992, p.210), a arte de massa é caracterizada por:
Ser produzida por um grupo de profissionais que pertence a uma classe social diferente do público;
Ser dirigida pela demanda, passando portanto ao modismo;
Ser feita para um público semiculto e passivo, o “povo”, nesse caso, é só o alvo da produção, não a sua origem;
Visar o divertimento como meio de passar o tempo.
40
Ao estudarmos as obras de Suassuna, temos a dimensão do quanto o autor
se preocupa com a possibilidade de seus trabalhos se tornarem produtos comerciais
destinados à sociedade de consumo. Ao considerarmos as diferenças entre público
que absorve e público que produz arte, consideramos que Suassuna resgata em
seus trabalhos aquilo que considera como produção popular, capaz de ser
transmitida por gerações, e quando memorizadas passam a ser incorporadas e
transformadas no imaginário popular. A captação, transformação e ilustração do
trabalho de SUASSUNA consiste em arte. A afirmação é possível quando
interpretamos que arte é o ofício da transformação, da habilidade de percepção de
um dado imaginário, esteticamente criado por um complexo de regras e processos
que permite uma criação, concreta e/ou abstrata. É a contemplação erudita da arte
popular, que exige do público uma mudança no modo de contemplar o mundo,
desenvolvendo um discurso oral e imagético que cria uma linguagem artística e
expõe seu eu, envolto pela realidade política e socioeconômica. Essa é a dimensão
de arte de Suassuna.
A leitura da obra de Suassuna nos permite observar que em seus trabalhos
há a criação de um contexto onde diferentes repertórios e imaginários coexistem. O
caos, gerado a partir do desconexo contexto, representa a ordem/desordem social.
Suassuna estrutura a forma e o conteúdo do discurso e da imagem do contexto
social desconexo através de arranjos estéticos, é a arte de ler e ver a sociedade
segundo as concepções do autor.
O receptor, para Suassuna, é o todo. O todo fica configurado pela parcela
culta, pela massa consumista que consegue interagir com a indústria cultural e ao
mesmo tempo criar arte, arte popular. O todo também é representado pela parcela
da população que se abstém involuntariamente ou não da discussão política
(quando a obra essa leitura). Entre o todo estão os não cultos, as camadas menos
favorecidas. Suassuna considera que todo indivíduo pode ser considerado um
receptor, a aproximação, interação ou negação a um contato com sua obra está
relacionada a linguagem estética do discurso e da imagem. A linguagem artística,
utilizada por Suassuna, contempla a forma acadêmica, ilustrada por um estilo
41
medieval19, que se apóia na estética carnavalizada segundo conceito bakhtiniano
(BAKHTIN, 1998), compartilhando cultura e vulgaridade como estratégia para atingir
o todo.
O culto ao vulgar, presentificado nos cenários, nas expressões populares e na
oralidade contida nos diálogos, cria o acesso à leitura desde a elite até às massas.
Os receptores, cujo horizonte de expectativas se assemelha ao do emissor,
identificam as mensagens críticas, presentes nas questões políticas, sociais e
principalmente religiosas, o que difere é a instância de recepção20 (o contexto e grau
de intensidade que a leitura provoca em termos de absorção) do discurso que está
ao alcance dos receptores, segundo seus repertórios e competências interpretativas.
A absorção individual do discurso trará significação una da projeção da realidade
política e socioeconômica do enredo, privilegiando a elite quando pensada como
proposta de exposição da arte popular, num momento em que a arte é discutida,
cientificamente, como movimento de transição ideológica e histórica e atingindo o
povo pela sua ligação com as raízes populares, oralidade e moralidade tradicionais
da região nordeste.
Quando o trabalho de SUASSUNA passa a ser exposto no meio de
comunicação das mídias, voltando-se para a indústria cultural, não perde a proposta
de ilustração da arte popular, assume-a mais como uma função de bem destinado
ao consumo, do que elevação da cultura nacional. O discurso ideológico cede lugar
ao consumo do cômico, que tentará preencher uma necessidade de consumo na
sociedade contemporânea. Discutir O Auto da Compadecida na década de 50
19 A História da Literatura e da música segue um processo que admite transformações, fusões e criações através de um conjunto de qualidades de expressões. Os trabalhos de Gil Vicente demonstram essa necessidade quando migram dos autos religiosos para os autos e farsas populares que atacavam criticamente a sociedade através de textos burlescos que fugia à estética sacra ou o modelo convencional. Sasportes (1979, p.23), quando estuda Gil Vicente salienta que a dança assumiria “estatuto artístico [...] com o advento do Renascimento”. Sasportes continua apontando que a inclusão da dança como arte proporcionou a criação de um “teatro musical”, proveniente da ópera e do bailado. Sasportes questiona a necessidade de organização da música, da dança e da poesia na Idade Média. Não era permitida a nenhum destes estilos artísticos a sobreposição ao texto religioso. Gil Vicente em seus trabalhos tem todo o artifício de incorporar a dança e a música aos autos (1979, p.24), em tom de chacota e folia, dois estilos cujas definições não são precisas. A linguagem artística que pode ser compreendida como o agrupamento de repertórios de dança, música, poesia e textos literários contribuíram para enriquecer as composições artísticas e diversificar a possibilidade de leituras artísticas de diversas obras. 20 A instância da recepção diz respeito aos atos, as regras e as representações (aos horizontes de expectativas) de uma dada sociedade. A intensidade do envolvimento com um dado contexto e o repertório individual cria possibilidades de diferentes relacionamentos entre emissor e receptor.
42
pressupõe pensar a busca de liberdade, do espaço perdido pela primeira fase da
ditadura, onde a massa lutava, ideologicamente, contra uma política de dominação,
de subordinação do eu. Hoje a luta de poucos está voltada à recuperação do eu, não
do eu individualista, que a sociedade de consumo contempla, mas deste eu crítico,
que se reúne a outros para pensar o movimento da sociedade. O trabalho de GUEL
ARRAES resgata a literatura nacional, mas a direciona para a sociedade de
consumo e, por mais contemporâneo que o tema possa ser não desencadeia um
movimento político das massas. Trata-se aí do consumo pelo consumo, é o cômico
como fuga, para suprir as lacunas de uma sociedade individualista.
Então o que é o moderno, o que é a arte moderna? Segundo TEIXEIRA
COELHO (1995,13-14):
Moderno é termo dêitico, termo que designa alguma coisa mostrando-a sem conceitua-la; que aponta para ela mas não a define; indica-a, sem simbolizá-la. `Moderno´ é assim, um índice, tipo de um signo que veicula uma significação para alguém, a partir de uma realidade concreta em situação de dependência da experiência prévia que esse alguém pode ter tido em situações análogas [...] moderno, é semelhante. (1995,13-14)
Se o Auto é moderno, segue um estilo, que se faz consciência de uma época,
que se pode transferir, denunciando a passividade da sociedade, e tornando-se mais
contemporânea quando reafirma a alienação:
O modernismo é [...], um estilo. [...] A modernidade, sim poderia ser a consciência que uma época tem de si mesma (e fica evidente que um processo social é uma modernidade) _ não fosse a alienação um processo social interveniente cuja finalidade é exatamente, evitar essa consciência neurotizada da modernidade.
A arte deixa de existir quando já não é capaz de afetar a vida em sociedade e
passa meramente a um souvenir de consumo. Para PIERRE FRANCASTEL (1973,
p.33) antes de a arte ser pensada em sua estrutura e linguagem, “[...] um dos
processos pelos quais o homem comunica seu pensamento. O caráter de
comodidade das obras resulta ao mesmo tempo das exigências por assim dizer
filosóficas e do homem e suas exigências sociais”.
PIERRE FRANCASTEL (1973, p.45), aponta que é possível explorar o
passado ao mesmo tempo para fins diferentes. Esta situação é colocada quando ele
43
estuda a busca do passado feito pela História e pela Sociologia. Ambos, História e
Sociologia têm pontos de vista muito diferentes, mas exploram ao mesmo tempo o
passado, realizando buscas específicas.
No Auto da Compadecida há o transporte de quadros históricos e sociológicos
para compor um enquadramento rico em pensamento e ação, permitindo ler nas
intertextualidades (KRISTEVA, 1972) da obra, recortes da política, da cultura, da
religião e da economia. O auto é uma forma teatral de enredo popular com melodias
cantadas, relacionando assuntos religiosos e/ou profanos. Segundo CASCUDO
(2000, p.232):
No Brasil as mais antigas menções informam que os autos eram cantados à porta das igrejas, em louvor a Nossa Senhora do Rosário (quando dirigidos a escravos e libertos) [...] Depois levavam o enredo, com danças e cantos, nas residências de amigos ou na praça pública, num tablado. Alguns autos reduziam-se à coreografia, sem assunto figurado.
SASPORTES (1979, p.25) descreve que “Os personagens dos autos
aparecem muitas vezes a dançar ou a querer dançar, seja plebeus ou nobres, sem
esquecer os mouros e os judeus, confirmados como especialistas destas lides”.
Além das danças o autor aponta a existência de “carros triunfais”, destinados que
anunciavam os momentos fundamentais ou o desfecho da trama. A trama no Teatro
Medieval segundo SASPORTES (1979, p. 26) se diferencia do teatro de Gil Vicente.
O primeiro busca ilustrar simples “[...] representações e exposições sucessivas de
factos certos [...]” e Gil Vicente “[...] apresenta esses mesmos factos sob aspecto
diferente, a saber, teatral e dinâmico (em vez de descritivo, declamatório, estático),
sob aspectos de cenas, cada uma de duplo fundo e perspectiva (em vez de linear),
num aspecto aliás mais humano que figurativo”.
Suassuna pretende o movimento de leitura crítica da sociedade referenciado
nas obras de Gil Vicente. Os intertextos envolvendo os autos populares brasileiros, e
os autos de Gil Vicente, com a arte carnavalizada parodiando a arte erudita,
permitem existir no Auto da Compadecida uma leitura crítica e funcional dos
costumes sociais e religiosos:
44
O próprio processo dramático já não é, como nos mistérios medievais, centrado na luta entre as potências do Bem e do Mal (representadas respectivamente, pelo Cristo e pelo Diabo, por exemplo), mas concentrado no homem. (Boletim de Filologia, Tomo V, apud Sasportes, 1979, p. 27).
A comicidade que os autos proporcionam foi a maneira encontrada pelos
eruditos para comunicar algo para um povo que assimila consciente ou
inconscientemente a mensagem. A arte (literatura e teatro) popular foi o viés
encontrado por Suassuna para se comunicar com o coletivo, formado por uma
massa de brasileiros tão desiguais. E no Auto da Compadecida o assunto é figurado
justamente para contar e denunciar ao povo a sua própria condição social e política,
cultural e religiosa de oprimidos e marginalizados pela sociedade brasileira da
época.
1.2 Do teatro à minissérie: contextualização do Auto da
Compadecida na obra de Ariano Suassuna
A certa altura da vida, vai ficando possível dar balanço no passado sem cair em autocomplacência, pois o nosso testemunho se torna registro de experiência de muitos, de todos, que, pertencendo ao que se denomina uma geração, julgam-se a princípio diferentes uns dos outros e vão, aos poucos, ficando tão iguais, que acabam desaparecendo como indivíduos para se dissolverem nas características gerais de sua época. Então registrar o passado é falar de si; é falar dos que participam de uma certa ordem de visão do mundo, no momento particular do tempo que se deseja evocar. (BUARQUE DE HOLANDA, 1995, p.9)
O trabalho de Suassuna remete-nos a uma discussão sobre a
comunicabilidade. Comunicar torna-se uma tarefa muito árdua, pois à medida que
procuramos estabelecer um processo de interação, percebemos entre a instância da
enunciação e a instância da recepção, a existência de lacunas ou espaços de
indeterminação, produzidos pelo não-dito que está por trás do discurso narrativo.
Estes espaços – os brancos do texto para ECO (1979) ou os vazios do texto
para ISER (1979) são preenchidos de maneiras distintas e por leitores diversos. O
texto é horizontal, na sua leitura sintagmática, um todo coerente. No entanto, quando
é lido verticalmente, numa interpretação paradigmática, revela-nos muitas idéias que
ficaram nas entrelinhas, nos intervalos do discurso, onde os receptores podem
45
encontrar significados diferentes, decorrentes de suas próprias projeções
interpretativas. O conteúdo é formado de fragmentos, de motivos que se repetem ou
se contradizem. O entendimento do receptor completa-se no momento em que
entendemos que não existe homogeneidade, mas um processo contínuo de
recriações do cotidiano da cultura popular pela cultura de elite. As contradições
constituem um elo que alimenta a existência de diversificação cultural, cuja
explicação não pode e nem deve se dar através de respostas simplificadas, pois o
contexto histórico é complexo, e exige uma reunião de elementos para a elaboração
de respostas e os receptores, por seu lado, possuem repertórios e competências
diferentes, que vão propiciar muitas leituras ou releituras por um ou vários
receptores do texto, seja ele teatral ou televisivo/cinematográfico.21
Esbarramos-nos, então, com os empecilhos, registrados por entre estes
espaços, que devem ser completados pelo receptor, num fluxo de tempo e, quando
a complementação não é produzida, ou simplesmente inexiste, acaba por interferir
no intento maior do ato de comunicar, que reside na busca da produção de sentido
que pode realizar-se em diferentes níveis de abrangência e complexidade.
No Auto de Suassuna, os receptores das camadas mais populares, com
menor escolaridade, poderão compreender a ironia crítica e o julgamento
intermediado pela “Compadecida” com seus registros populares e com seus
conhecimentos religiosos e aqueles, com maior repertório cultural e
academicamente mais favorecidos, poderão estabelecer relações, conotar os
intertextos com a cultura medieval e popular, com os discursos bíblicos e literários
conseguindo perceber maior complexidade, e realizando leituras mais abrangentes.
Das recepções feitas em épocas diferentes por diversas comunidades sociais
poderão decorrer avaliações positivas ou negativas da obra lida, com mudanças na
visão da sua importância nos cânones literário-culturais de épocas diversas. Surge
daí a necessidade (1979) de revisões ou mudanças, preconizadas por Jauss (1993)
na História Literária ou Cultural dos povos, de acordo com as mudanças da
21 Embora Guel Arraes adote a postura de Suassuna, em permitir que o receptor preencha as lacunas do texto, é impossível negar que a projeção das possibilidades de recepção na mídia televisiva cria um espaço reduzido, não é o mesmo espaço destinado ao momento de reflexão e construção existente no teatro.
46
recepção de suas produções culturais, literárias, teatrais ou outras, no decorrer do
tempo.
A revisão dos valores culturais estabelecidos deve ser realizada
diacronicamente, pois há mudanças e substituições de obras consagradas que se
tornam indispensáveis, pois, muitas vezes, novos sentidos são acrescentados e
autores incompreendidos em sua época encontram seus sentidos verdadeiros em
tempos posteriores, onde o juízo de valores não é afetado pela proximidade dos
acontecimentos.
E como produzir sentido, uma vez que as próprias disparidades de repertórios
encontrados na massa constituíram-se no problema da não interpretação do código?
Assim a técnica literária cria artifícios capazes de promover a identificação do código
pelo receptor, apresentado através de estratégias da Estética da Recepção que
analisa o texto literário, teatral e midiático a partir do enfoque do receptor. A Estética
da Recepção aponta para a existência de plurissignificações, advindas do ciclo de
reconstrução do texto, que se faz através das leituras individuais, que se fundem
com outras leituras possíveis, por intermédio da intertextualidade, persistente no ato
de recriar, mudar e inovar.
Em o Auto da Compadecida22, percebemos a utilização das abordagens e
estratégias estudadas pela Estética da Recepção, capazes de subsidiar o
preenchimento dos espaços, dos vazios do texto pelo receptor. E são estes mesmos
espaços que permitem ao emissor estreitar os elos com os receptores,
transformando o ato de comunicação num processo de cumplicidade, onde a
legibilidade do signo configura-se através da montagem de um repertório, construído
com uma visão de amplitude e de diversidade que possibilitam sua compreensão e
identificação por receptores desiguais, num nicho cultural que também apresenta
diversificações.
22 A primeira adaptação cinematográfica do Auto da Compadecida foi feita por George Jonas em 1969, logo após por Roberto Farias em 1987, e por Guel Arraes em 1999, na encenação da minissérie, que logo seria transposta para película.
47
A paródia, carnavalização, a ironia do discurso, os jogos intertextuais com a
religiosidade e crenças populares propiciam a Suassuna a instauração de um
vínculo com os possíveis receptores, criando, através da intertextualidade um
caminho de mão dupla que permite a produção de sentido no fragmentado espaço
cultural das massas, ressaltando as heranças histórico-culturais contidas no Auto
ora estudado.
Suassuna deixa transparecer no Auto da Compadecida um processo que se
presentifica nos cenários, cujos espaços carregam-se de significações denunciando,
de maneira muito mais profunda as questões sócio-econômicas, do que os próprios
diálogos. O cenário árido, os espaços secos e desprovidos de beleza e fartura,
denunciam a pobreza extrema, a falta de recursos e a fome, justificando a postura
do emissor com seu humor complacente para com as malandragens e atos das
personagens.
A tendência de Suassuna é a transformação intencional da informação como
da percepção implícita ou explicita de quem a recebe. O Auto da Compadecida
utiliza, dentro do contexto social, em que se insere um discurso irônico que
contamina os cenários, os figurinos e até a representação de Jesus por um negro,
estendendo a crítica social do campo político e religioso para o domínio público,
apropriando-se de elementos da cultura popular como estratégia discursiva para
problematização do ético.
Sua obra propõe-se a criar um caráter trans-ideológico, onde a ironia reforça
o esforço de entendimento do dito e do não dito, através de rastros semiotizados
que ecoam com a paródia, o humor das cenas reforçando a discussão ideológica e
sócio-política entre comunidades discursivas, com horizontes de expectativas23 tão
díspares como a sociedade brasileira, especialmente a nordestina. O trabalho de
SUASSUNA volta-se para o resgate da memória, das raízes regionais, e o teatro foi,
no primeiro momento, a opção de revelação da arte popular, uma vez que o próprio
SUASSUNA o vê como o meio de comunicação mais viável, para atingir a massa,
dada a realidade nordestina. E nisto há um compartilhar com tradições que apontam
23 O conceito de leitor de Haus Robert Jauss fundamenta-se em duas categorias: de um lado a de horizonte de expectativas – somatória de experiências sociais acumuladas e de códigos vigentes no meio e época do receptor – e, de ooutro lado a da emancipação – efeito e finalidade da arte. “Confira-se Jauss, apud FLORY, 1997, p.23.
48
para o teatro como meio didático, catequético até o educativo das massas (papel
que hoje é muito explorado pela TV).
O teatro, na visão de TEIXEIRA COELHO (2005, p.79), permite a existência
de uma pluralidade de linguagens e em cada linguagem há um aspecto diferente
que esse mesmo autor 24, relaciona entre “língua/fala, significante/significado,
denotação/conotação”, observando a arte como um processo arquitetônico. Há
arquitetura no teatro, na cena, e na expressividade das personagens, admitindo que
a arte no teatro é um processo que busca um modo de representar.
TEIXEIRA COELHO reflete sobre uma teoria ilustrada por ARTAUD25
segundo a qual o teatro tende numa sociedade de consumo, a deslocar a ênfase do
produto do teatral (processo de significação) para a arquitetura do teatro. A questão
expõe uma discussão presente nos trabalhos de Suassuna, o de não tornar a arte
em um produto comercial:
Todo processo de produção, de um bem econômico ou cultural, passa por quatro fases: a da produção propriamente dita, onde o produto é montado em suas partes e concluído; a distribuição, que coloca o bem em contato com o intermediário ou com o usuário final; a da troca, na qual o bem chega às mãos do receptor, mediante a algum tipo de compensação (o dinheiro da entrada); a do consumo quando o produto é efetivamente consumido por um receptor concreto. Nesse sistema, opera-se uma separação nítida entre duas esferas: a do produtor (que circula pela primeira e eventualmente, segunda fases) e a do receptor (nas duas últimas). Isto significa que, o caso do teatro, o receptor só é admitido no processo quando o produto já está pronto e acabado, só lhe restando sentar-se na poltrona (quando pode fazê-lo) e receber passivamente o que lhe oferecem. TEIXEIRA COELHO (2005, p.80)
Numa perspectiva diferente, BULIK (2001, p.29) também aponta para a
estreita relação entre a arte e o lugar ou edifício onde se dá a comunicação teatral.
Em sua obra, Comunicação e Teatro, estuda a semiótica do processo de criação do
grupo dinamarquês Ondin Teatret, mostrando que o espaço, o lugar, a sala do
espetáculo são incorporados como sistema de signos - cenários mesmos -, que
atuam no processo de significação de suas encenações ao lado da palavra e da
expressão corporal do ator.
24 TEIXEIRA COELHO (2001, p.26) 25 Apud TEIXEIRA.
49
Assim, o teatro – para a citada autora – compreenderá uma relação entre
situação e lugar, permitindo a coexistência de arte e edificação, situação e lugar, que
resultarão dos aspectos sociais da representação. E prossegue seus estudos
salientando que “o fenômeno teatral [...] releva do processo de comunicação e já
prepara o terreno para uma visão ritual da comunicação” (BULIK, 2001, p.33). para
BULIK, o processo de criação teatral contempla a integração e participação, pois no
geno-texto, a interação é buscada para a concretização do feno-texto, que busca a
comunicação com o público.
BULIK constata ainda um movimento do teatro contemporâneo que busca se
afirmar como intercultural por entender que o homem ao mesmo tempo que localiza
e finca raízes também busca a planetarização sobretudo quando se propõe a
adaptar culturas. A idéia de mesclar, interagir com culturas diversas não colocaria
em risco a identidade cultural de cada um, mas ao contrário pode significar um modo
de sobrevivência das culturas através da interação e das trocas culturais. Para ela,
não se deve, contudo, confundir troca simbólica de bens culturais entre os povos
com dependência e dominação cultural impostas pelos imperialismos econômicos.
Nesse ambiente intercultural Suassuna concebe o Movimento Armorial 26, que
busca a interação e a mescla de culturas diversas. Esta diversificação representa o
caos social, e é nesse ambiente que Suassuna busca o resgate da produção
popular, que resulta na arte popular que como a arte erudita está sujeita a troca
simbólica de bens culturais.
E prossegue a seu estudo salientando que “O fenômeno teatral, [...], revela o
processo da comunicação e já prepara o terreno para uma visão ritual da
comunicação” (BULIK, 2001, p.33). Para BULIK, todo o processo contempla
integração e participação, pois, no geno-texto27, a interação é buscada para
concretização do feno-texto que pretende reciprocidade com o público.
26 O Movimento Armorial resgata a arte popular, Suassuna criou um museu para agrupar e preservar a memória nacional através do resgate da arte popular. 27 BULIK (2001, p.68) expõe as idéias de Kristeva que “denomina geno-texto apresentado como base subjacente à linguagem, designada pelo termo feno-texto, linguagem que serve à comunicação e que a lingüística descreve como `competência´ e `performance´”. E continua salientando que para Kristeva esse é o processo da significância onde a “produtividade significante (geno-texto) e prática significada (feno-texto) que se traduzem ainda por produtividade prática (significação-comunicação)”.
50
BULIK observa que o teatro comunica quando é intercultural, isto significa
dizer que o homem é intercultural28 quando se propõe a adaptar a cultura. A idéia de
mesclar, interagir culturas, não colocaria em risco a identidade. Então todo terreno
pode ser preparado para interação, pela troca cultural e, ao contrário do que
assinala TEIXEIRA COELHO (1995, p.18), não se resumiria a uma prática comercial.
Existem, no entender dessa autora, grupos experimentais buscando através do
teatro uma linguagem universal e atuando como guardião de culturas em vias de
desaparecimento. Esse teatro atua então na contramão das regras de mercado
impostas pela globalização aos produtos culturais.
Quando o Auto da Compadecida, é levado a público por um grupo amador, a
representação não tinha ainda o trabalho necessário de pré-expressividade, pois
não se estruturou a proposta de impacto na mensagem visual, falada e corporal,
mas comunicou e gerou significação. Quando passa a uma atuação mais madura, a
uma leitura mais profissional, o trabalho de pré-expressividade, resultará num
trabalho de significação, que irá, no decorrer dos anos, atender à realidade da
sociedade. Ele comunicará e significará num outro espaço, num outro momento, a
arquitetura tenderá à mutação.
O processo mercadológico do teatro é um processo conjunto com a
arquitetura. A produção demanda investimentos e é lógico o processo comercial, na
divulgação da obra de SUASSUNA. O que se torna importante salientar é que
SUASSUNA trabalha, ideologicamente, a difusão e propagação da arte popular, o
que resultou na criação do Movimento Armorial29, nascido para resgatar e firmar a
arte popular na memória do povo brasileiro.
A arquitetura da arte, tanto no teatro quanto na TV, demonstra a existência da
realidade mercadológica, que segundo MARTIM-BARBERO e REY, resultará em
matrizes culturais. Cada matriz destina-se a um grupo definido e visualiza-se através
28 Consultar BULIK, Linda. Comunicação e teatro. São Paulo: Arte & Ciência, 2001. 29 No site www.pe-az.com.br/bibliografias/ariano_vilar_suassuna.htm, encontra-se disponível a bibliografia de Ariano Suassuna, registrando que o Movimento Armorial existiria para “realizar uma arte erudita brasileira a partir das raízes populares da nossa cultura”, nas palavras do próprio Suassuna.
51
de formatos industriais. A televisão e o cinema ilustram a possibilidade de voltar a
arte popular incorporada à erudita para a sociedade de consumo, o que não resulta
dizer que os conteúdos culturais estão vivificados, que há discussão epistemológica.
Para MARTIN-BARBERO e RAY:
A hegemonia audiovisual alimenta uma profunda contradição cultural: enquanto a revolução tecnológica se desenvolve com uma expansão e uma diversificação sem limites dos formatos, nos meios de comunicação se vive um profundo desgaste dos gêneros e uma crescente debilidade do relato. (2001, p.109)
Há uma certa uniformidade nos discursos dos comunicólogos de que há um
empobrecimento dos trabalhos levando ao questionamento do que produzir e como
ofertar. Assim, quando uma obra que retrata a cultura nacional é exibida, talvez ela
não se comunique na TV ou cinema com a mesma interatividade do teatro, não
contemple, com a mesma ênfase, a proposta ideológica, mas mesmo assim coloca
ao alcance da massa um bem que lhe era inacessível. A linguagem é fragmentada,
acelerada, superficial e, na verdade ilustra a dinâmica capitalista, na qual o tempo
também é escasso mas preserva raízes nacionais e leva pessoas a valorizarem
suas crenças e costumes através da oralidade e dos “causos” populares.
Por outro lado, com todas as contradições apontadas acima a mídia televisiva
por comunicar a variedade cultural, permite o resgate histórico e retrata a arte do
povo e ao alcance da massa. O questionamento sobre o nível em que a arte é
relatada na TV é pertinente, mas a precisão de momento circunstancia “o como” a
linguagem televisiva permite comunicar.
A TV permite comunicar através da imagem, e não apenas para um público
reduzido, como em principio o faz o teatro, mas para a massa, estamos já na
instância da indústria cultural:
Há inúmeras discussões sobre se a TV é um bem ou um mal. De um lado, coloca-se o seu caráter de democratização da cultura, uma vez que é acessível a todos, indistintamente. De outro, discute-se a unção alienadora e de formação de opinião pública, e manipuladora, por se aproveitar da natureza emocional, intuitiva e irreflexiva da comunicação por imagens. (ARANHA e MATINS,1992:215)
52
A linguagem utilizada na minissérie leva a uma leitura mais horizontal,
minimizando uma relação interativa. O público recebe a mensagem e não precisa de
grandes esforços interpretativos para entendê-la. No teatro, a proposta é diferente:
há maiores possibilidades interativas, advindas do diálogo direto com o Arlequim que
estabelece contato com o público. O Arlequim30 desaparece na minissérie e no filme
de Arraes. A televisão investe na visualidade convidando à instantaneidade dos
acontecimentos. Sua apresentação é realista trabalhando o acontecimento dos
fatos, que se sucedem numa cronologia temporal, quase autoexplicativa.
O cinema hoje, tem também um público relativamente reduzido (dado as
deficiências financeiras ou ao desinteresse), não tanto quanto o teatro. O teatro de
SUASSUNA, no entanto, pretende-se popular e o convite à encenação prevê o uso
do espaço público gratuitamente, inclusive a rua, o que remeteria a uma discussão
sobre o uso do espaço público para a propagação das artes, sejam elas eruditas ou
populares. A diferenciação do público do teatro para o do cinema pode ocorrer nas
seguintes instâncias:
Quando o teatro entoa-se popular, buscando cenários em espaços
públicos convencionais (ruas, salões comunitários, etc.), busca um
público amplo e propõem-se a uma discussão ideologicamente
comprometida. A linguagem é esteticamente programada, pode e deve
confundir o receptor quanto ao que deseja expressar;
Quando o teatro busca espaços públicos ou privados, construídos para
a elite visa, não só a proposta de significação, como também a do
retorno econômico real. Há um empreendimento em curso, assim a
linguagem não é estética, mas voltada a publicidade;
O cinema torna-se popular, quando utiliza recursos comunitários para a
sua exposição, buscando, assim, certa inclusão social e levando uma
fração da matriz cultural num formato específico de mídia;
30 O Arlequim pode ser tomado como o interlocutor presente nos autos medievais da nobreza, este sujeito deveria representar num tom satírico e cômico as peças teatrais sem usar de tons vulgares ou agressivos. De maneira diferente o palhaço que representa o acesso a públicos menos eruditos que absorviam uma linguagem burlesca, mas agressiva.
53
O cinema é mercadologicamente direcionado, quando a proposta maior
não é a de expor a arte no primeiro plano, mas a de modelá-la para
uma sociedade consumista. É a indústria do cinema.
Para TEIXEIRA COELHO (1995, p.79):
O cinema é a arte da descontinuidade, dentre todas: o descontínuo se sente em casa quando à dimensão do espaço-tempo. Mais e antes do que a leitura (embora talvez não antes e não mais do que a poesia), o cinema não dá ao seu expectador uma história em continuidade: `pulam-se´ episódios, descrições ou relações, dados como inferíveis.
Os formatos minissérie e filmes usam a dinâmica dos cortes no quadro a ser
exibido. Será exposto o que se deseja mostrar, podendo então levar a um
direcionamento da opinião do público acerca do que lhe foi permitido observar e
visualizar. TEIXEIRA COELHO (1995) cita Godard e sua teorização sobre o princípio
de descontinuidade, ou seja, a diversificação e disfunção das comunidades
discursivas propõem que alguns elementos são comuns no caos, o que geraria a
integridade da significação.
A pobreza em O Auto da Compadecida está resumida no que o quadro
(cenários, contextos, espaços) permite mostrar. MOUILLAUD31 enfoca o
enquadramento e prossegue afirmando que os cortes programados permitem
ordenar a mensagem, mas reduzem as possibilidades de conhecimento da obra.
Quem lê ou assiste ao Auto no teatro, observa e sente uma dinâmica
completamente diferente. O texto escrito ou a peça de teatro convidam o receptor a
interagir e suprir as lacunas subjetivamente, o que falta para perfeita interpretação
da imagem é criado pelo subconsciente.
Tomemos, por exemplo, a passagem de Chicó e seu cavalo bento: no teatro,
a inexistência é suprida por um cabo de vassoura e o cavalo é concretizado no
imaginário do receptor. Na minissérie GUEL ARRAES também convida o receptor a
interagir, pois, não apresenta um cavalo real, e sim um cenário em tons de cinza e
31 Consultar MOUILLAUD, Maurice. O jornal: da forma ao sentido. Lyon: Puf, 2001.
54
azul, que insinuam o estrelado luar do sertão nordestino32, em que Chicó, surge
montando um cavalo projetado em forma de desenho (sem arranjos especiais e que
remete a um cavalo de carrossel de parque, só que mais robusto). A proposta de
leitura da obra de SUASSUNA por GUEL ARRAES, mostra a preocupação em
preservar a característica dos arranjos, presentes no teatro, principalmente no teatro
popular, fugindo do apelo comercial que predominantemente interferem os trabalhos
televisivos que resgatam obras literárias.
A mídia televisionada, segundo ARANHA e MARTINS (1992, p.216), por
pertencer a grupos privados, considera que:
A TV é um empreendimento comercial e, como tal, visa o lucro; A TV é sustentada pelos anunciantes, que, antes de gastarem sua verba de
publicidade, verificam o índice de audiência de cada programa.
No molde TV/cinema os espaços das lacunas, “vazios” ou “brancos”, são
bastantes reduzidos, quase desaparecem. Os signos assumem uma leitura que não
é a do autor do texto/teatro e serão expostos segundo a leitura do roteirista, do
diretor e de sua equipe. No caso do Auto, as transmutações do texto teatral para TV
(minissérie) e para o cinema serão leituras de Guel Arraes, Adriana Falcão e João
Falcão. A transcodificação aprofunda o tom satírico que evoca comicidade, substitui
alguns signos ou os minimiza. A adaptação para a TV coloca em segundo plano a
discussão das diferenças de classes que ocorrem no teatro. Tanto é assim que, na
minissérie como também no cinema, cria-se o romance entre Chicó e Rosinha, a
filha do Coronel, que acabam juntos eliminando possíveis diferenças de classe, fato
que não existe no texto teatral em que o Coronel tem um filho e não uma filha.
Por outro lado, preserva a leitura de Suassuna sobre a arte popular,
despertando a atenção dos críticos para a possibilidade de inserção da literatura
brasileira no formato TV. O Auto da Compadecida consagrou Suassuna como
escritor na versão texto/teatro e reafirmou essa posição com a exposição no formato
32 Quando GUEL ARRAES faz uso do sertão noturno força a leitura que por mais que o sertanejo nordestino seja estereotipado como homem robusto, que suporta a aridez e o calor do sol nordestino, precisa de um amparo, para que o faça suportar a realidade de uma região castigada não só pelo sol, mas pelo esquecimento. É como se o nordestino caminhasse sem objetivos, simplesmente vagando, sem destino, sem propósito, a ausência de luz provoca este efeito e as estrelas uma luz no fim da jornada.
55
minissérie, atingindo um público de 2.082.50233 de expectadores e posteriormente
no cinema, embora com estratégias e forte influência da mídia televisiva.
Ao considerarmos o intertexto e a paráfrase temos uma nova proposta de
leitura: a televisiva. A obra proporcionou ao brasileiro ler/ver uma obra literária, ter
contato com um texto que comporta a descrição de arte erudita com base na arte
popular. Mesmo que a sociedade de consumo não tenha noção do feito ela
consumiu um bem, mas um bem erudito.
1.3 Estado de arte: continuidade ou ruptura
O brasileiro não tem o hábito da leitura. São diversos os fatores que fazem
com que o brasileiro não tenha acesso à leitura. O livro é caro, a renda é baixa, há
pouco interesse. Se esta é a realidade contemporânea, a realidade de Suassuna no
momento em que escreve o Auto não é diferente, possivelmente encontrava-se mais
acentuada.
O teatro popular dispensa grandes gastos com produção, usa espaços
públicos e era nestes espaços que Suassuna pretendia expor a arte erudita com
linguagem e símbolos populares.
Na edição 34 do Auto34 há um prefácio escrito por Henrique Oscar35, que
descreve o trabalho de Suassuna como uma aproximação dos grandes temas da
historiografia do teatro. Não o coloca como cópia, mas como uma “recriação”,
ambientando e estruturando o teatro na realidade do nordestino. Oscar exalta essa
peça de Suassuna como um trabalho “inédito em suas características, nova e,
portanto, absolutamente original” (SUASSUNA, 2001, p.10).
As observações de Oscar começam com os apontamentos sobre a inserção
do texto no teatro popular, exibido por amadores, inesperientes mas espontâneos,
comentando a atuação dos atores como se segue:
33 Quanto ao número de expectadores consultar o site www.webcine.com.br/notaspro/nplepri.html
34 Consultar SUASSUNA, Ariano V. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2001. 35 Crítico literário.
56
[...] se a interpretação era boa, considerado aquilo que se pode exigir de um grupo amador novo e constituído de elementos jovens e, portanto, de espontaneidade, que correspondia ao espírito da peça e se enquadrava no estilo de apresentação que mais lhe convinha, a verdade é que foi o texto em si o causador do entusiasmo despertado (SUASSUNA, 2001, p.9).
O mérito pelo sucesso da obra é dado ao autor e não aos atores. Novamente
quem visualiza a obra como riqueza literária é um erudito. O trabalho de Suassuna
desperta-nos para uma evocação não apenas do reconhecimento pela inovação
estética da leitura erudita do popular, mas antes pretende fazer com que os não
eruditos, as pessoas do povo sejam envolvidas num processo de inclusão social.
O comentário continua relacionando o trabalho de Suassuna com as peças
medievais identificando-a aos “Milagres de Nossa Senhora (do séc. XIV)
(SUASSUNA, 2001, p.9)”, cujo repertório mescla o sagrado e o profano, o plano
espiritual e o temporal, a intermediação entre o homem e o celeste através de Nossa
Senhora.
Há traços dos trabalhos de Gil Vicente, principalmente a relação com o
repertório na forma/fala, que Oscar coloca como mais suave, se comparada ao estilo
de Gil Vicente36. Lembra também que a proposta de exposição popular requer essa
pseudovulgaridade na fala37 dos personagens para chamar a atenção do público
(SUASSUNA, 2001, p.11).
A figura do herói (João Grilo) retém um repertório simultaneamente profano e
sagrado, ao qual se acrescenta à idéia do malandro brasileiro, daquele que encontra
uma saída no momento exato e a justificativa de seus atos, reprovados socialmente,
mas compreensíveis diante da realidade histórica do pobre e sofrido povo
nordestino, conforme argumenta a “Compadecida” no julgamento de João Grilo.
36 VICENTE, Gil. A farsa de Inês Pereira. São Paulo: Núcleo, 1995. Nesta peça temos uma discussão sob o clero e a libertinagem oculta (inclusive a do próprio clero), os interesses de ascensão social das classes menos favorecidas por meio dos casamentos com as classes mais abastadas. O trabalho é articulado por um contexto e uma linguagem irônica e carnavalizada. Por exemplo, uma fala de Inês Pereira quando sonha com a liberdade (de pensar, de se expor) que poderia ter longe de sua mãe: “Esta vida é mais que morta. São eu coruja ou corujo, ou são algum caramujo que não sai senão `a porta? E quando me dão algum dia licença como a bugia, que possa estar à janela, é jamais que a Madalena quando achou a aleluia (Vicente, 1995, p.14). Um outro exemplo temos quando ela esta se casando e fala a respeito dos Sacramentos e da submissão imposta pela Igreja: “Eu aqui, diante de Deus, Inês Pereira, recebo à vos, Brás da Mata, sem demanda, como a Santa Igreja Manda”. 37 A simplicidade está no plano da expressão e a complexidade no plano do conteúdo, como nos autos de Gil Vicente.
57
Em 2005 a Agir lançou uma edição comemorativa dos 50 anos do Auto da
Compadecida revista pelo próprio Suassuna. O trabalho é ilustrado com pinturas do
vocabulário armorial, que retrata o ambiente nordestino. Esta edição traz uma
discussão sobre a repercussão dessa obra nos últimos cinqüenta anos.
O comentário, que abre a edição, começa por Bráulio Tavares38, ponderando
sobre a “Tradição popular e recriação no Auto da Compadecida”. Tavares inicia seus
apontamentos falando da capacidade de percepção de Suassuna ao agrupar a
produção literária nordestina num único trabalho. Cita a passagem do folheto de
cordel O dinheiro de Leandro Gomes Barros (1865-1918), e a História do cavalo que
defecava dinheiro, que no Auto se transformam na história do enterro do cachorro
em latim e do gato que defecava moeda, que em 1925 já havia sido retratado no
trabalho de Leonardo Mota, Violeiros do Norte. Suassuna tem em comum com estes
autores a inserção de literaturas clássicas do folheto de cordel (SUASSUNA, 2004,
p.191-192) em seus trabalhos. Segundo Tavares, Suassuna reúne nos trabalhos o
elemento de comunicação mais comum na realidade nordestina: a oralidade. O
teatro e o cordel convidam à exposição oral. O resgate do tom medieval, como o uso
do vocabulário carnavalizado no estilo nordestino, a presença do palco evocando o
circo, garantem autenticidade à peça, excluindo o trabalho de Suassuna da
acusação de plágio que alguns críticos levantaram. Ao apossar-se das histórias de
cordel, Suassuna recorre às “fontes”, Tavares afirma que Suassuna tem o dom de
“Copiar, mas transformando. [...] Na medida do possível, tentar escrever algo tão
novo e tão vivo quanto o original (SUASSUNA, 2004, p.197)”, aqui temos o plano de
expressão do autor.
Carlos Newton Júnior inicia sua participação com uma retrospectiva da vida e
obra de Suassuna. O Auto para Newton Júnior representa “[...] um teatro que, ao por
em discussão, sob uma ótica local, problemas comuns a todos os homens,
certamente despertaria interesse para além de nossas fronteiras”. Esta colocação
acontece pela projeção do Auto no Brasil e fora dele.
38 Crítico literário
58
Para Newton Júnior as publicações e as encenações do Auto são perfeitas.
Para o estudioso “[...] por onde quer que tenha passado, o Auto de Suassuna foi
entusiasticamente recebido, estudado e elogiado (SUASSUNA, 2004, p.200)”. Mas
alerta para a deturpação que três traduções causaram na estética e ideologia da
obra.
A primeira na Espanha. O responsável pela primeira degradação foi José Marí
Pemán, que mudou o repertório carnavalizado para um mais “suave”, para não
entrar em choque com a Igreja ortodoxa (SUASSUNA, 2004, p.200).
A segunda versão é a americana, que troca a fala de João Grilo, “[...] `Você
pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça?´”, para “[...] Você pensa
que eu tenho algum preconceito de raça?´”, cuja autoria não se encontra na nota do
autor.
E a terceira versão venezuelana, que segundo Newton Júnior é a pior de
todas, denuncia o plágio que José Ignácio Cabrujas fez do trabalho de Suassuna.
Cabrujas chega a denominar-se autor da obra, e será aclamado como o “[...] criador
de um teatro verdadeiramente venezuelano (SUASSUNA, 2004, p.201)”.
A marca mais profunda que o Auto proporciona ao trabalho de Suassuna do
ponto de vista de Newton Júnior ocorre quando “[...] os princípios estéticos do
Movimento Armorial (SUASSUNA, 2004, p.202)” são expostos no cinema. Newton
Júnior comenta as três versões cinematográficas, a primeira em 1969 pelo diretor
George Jonas com o título A Compadecida.
A segunda versão para o cinema foi realizada pelo diretor Roberto Farias em
1987 e contou com o elenco de Os trapalhões composto por Didi, Dedé, Mussun e
Zacarias com o título Os Trapalhões no Auto da Compadecida. Segundo Newton
Júnior o trabalho merece mérito, mas a adaptação não obteve o êxito esperado junto
ao público, devido à não identificação do público dos Trapalhões com o repertório
proposto no Auto.
59
A terceira versão (a que é estudada neste trabalho) foi ao ar na TV Globo no
formato minissérie, adaptada por Guel Arraes incorporando intertextos com mais
duas obras de Suassuna A pena e a lei e o Santo e a porca fazendo desta
adaptação o maior sucesso de público já registrado pelo Auto (SUASSUNA, 2004,
p.203).
Para Newton Júnior (SUASSUNA, 2004, p203) a obra de Suassuna é
elogiada pela “arquitetura das tramas”:
As ações e os diálogos parecem ocorrer de modo improvisado, espontâneo, construindo-se à vista do público para, no final, deixarem claro que tomam parte numa construção sólida e complexa, revelando a engenhosidade do autor nas ligações de cenas e atos, ou mesmo na entrada das personagens no palco, sempre no tempo certo para levar a encenação à frente.
Nos três trabalhos há a supervisão e aprovação do próprio autor. A
simplicidade os arranjos de momento e a arquitetura da peça dão um movimento
mais espontâneo aos atos. Newton Júnior lembra que “[...] as ações se desenvolvem
como se estivessem, mesmo, sendo encenadas em um picadeiro de circo, num
daqueles circos sertanejos pobres que o autor conheceu na sua infância”
(SUASSUNA, 2004, p.206).
Newton Júnior (SUASSUNA, 2004, p.212) critica a postura de Décio de
Almeida Prado por não reconhecer o valor do Auto na literatura brasileira, Para
Décio o Auto é uma obra fechada, no sentido em que permite uma leitura pouco
profunda em termos políticos, sendo antes mais uma leitura religiosa. A estética de
Suassuna também foi criticada por configurar a instituição de um sistema lingüístico
próprio, que pode comprometer a criatividade, limitando a capacidade de produção.
Newton Júnior afirma que na obra de Suassuna ocorre justamente o contrário.
A produção de Suassuna vai além do Auto. Temos pós-produção do Auto: O Santo e
a Porca – Casamento Suspeitoso (1957), A pena e a lei (1959), A farsa da Boa
Preguiça (1960) e A Caseira e a Catarina (1961), todas peças teatrais. E em 1971
escreve o romance A Pedra do Reino, condecorado com o Prêmio Nacional de
Ficção, do Instituto Nacional do Livro. O “Movimento Armorial”, engloba ações
culturais e peças de teatro, romance e eventos tradicionais do Nordeste,
60
comprovando que não houve ruptura, e sim continuidade na produção e na leitura da
arte popular na obra de Ariano Suassuna.
O comentário que finaliza a idéia de Newton Júnior sob o Auto remete àquela
de que os sujeitos são transpostos, isto implica dizer que a obra ascendeu ao
momento de criação do autor, e afirma que “As críticas passaram e a peça ficou,
prova de que o Auto da Compadecida possui aquele quê de humanidade que atribui,
a toda grande obra, um aspecto supratemporal, uma verdade permanente”
(SUASSUNA, 2004, p.212), e completa:
[...] se é inegável que o teatro de Suassuna é um teatro de caráter moralizante, de forte moral católica, um teatro construído a partir de uma visão religiosa do homem e do mundo, não é menos verdade que, nesse teatro, o moral e o político estão tão ligados que é quase impossível separa-los _ são aspectos complementares, como se fossem faces de uma mesma moeda. A visão religiosa do autor não é acomodatícia, mas instrumento de luta e sinônimo de esperança em dias melhores. É visão questionadora de si mesma, e que, nesse constante repensar-se, não sobreviveria sem o elemento político _ não o político partidário e estreito, mas o político naquilo que o termo possui de mais amplo e humano. (SUASSUNA, 2004, p.212-213)
Outro crítico presente no texto da nova edição é Raimundo Carrero,
responsável pelo apontamento biográfico de Suassuna na obra. Inicia sua
participação retomando a história da família Suassuna e a tragédia da morte do pai
de Suassuna, João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna, que fora Governador
da Paraíba e encontrava-se como deputado federal no momento de sua morte. A
morte de João Urbano ocorreu no Rio de Janeiro e estava vinculada às questões
políticas. Quando o fato ocorreu, Ariano Suassuna tinha apenas três anos, e
descreve a cena no momento em que sua mãe recebe a notícia. Este fato marcaria
a vida de Suassuna para sempre. Segundo Carrero (SUASSUNA, 2004, p.215), com
a morte de João Urbano:
Parecia surgir ali uma espécie de pacto secreto e inviolável entre os dois: o menino tornar-se-ia escritor para celebrar, em toda a sua grandeza, a integridade do pai. O sangue que se derramara naquela rua do Rio de Janeiro onde João Suassuna tombara assassinado respingava na literatura brasileira, alterando o seu destino. Também para sempre.
Carraro (SUASSUNA, 2004, p.216) atribui à vida difícil, sem pai, marcada
pelos problemas financeiros, a profundidade dos pensamentos e obras de
61
Suassuna. Cita a importância do período em que viveu com seu tio Manuel Dantas
Villar, que o levava para assistir aos desafios de viola e às peças de teatro
populares. Outro tio importante foi Joaquim Dantas que apresentou a Suassuna as
doutrinas do catolicismo e as leituras de clássicos como Euclides da Cunha, Eça de
Queiroz e outros. O tio Manuel era ateu e contribuiu com leituras amparadas pelo
iluminismo, antropocentristas e da literatura erudita brasileira e portuguesa.
Suassuna escreve por algum tempo para o Jornal do Commercio e forma-se
em Direito, pela Faculdade de Direito do Recife. É na faculdade de Direito que
Suassuna descobre seu dom para a literatura, escrevendo a peça Uma mulher
Vestida de Sol em 1947. O perfil dramático desta peça será substituído pela
comicidade da peça Torturas de um coração. A mudança, segundo Carraro
(SUASSUNA, 2004, p.222) ocorrerá quando Suassuna conhece Zélia Andrade de
Almeida que, mais tarde, se tornaria sua esposa.
A mudança estética dos trabalhos não desliga Suassuna de sua origem.
Carraro (SUASSUNA, 2004, p.222-229) lembra que suas obras retratam sua infância
na fazenda Acahuan em Taperoá, a figura dos tios e todos estes elementos estão
presentes nas obras do autor. Prossegue fazendo referência à importância da
construção de uma arte erudita, tendo como seus elementos constitutivos a arte
popular. Recorda a importância dos estudos no laboratório popular que Suassuna
desenvolverá enquanto professor e lembra a concretização de um sonho, o
“Movimento Armorial” em 1974. Lembra a morte da mãe de Suassuna, Rita de
Cássia Dantas Villar Suassuna, em 1993 e relaciona definitivamente sua vida ao
romance A Pedra do Reino. Em 1994, sua peça Uma Mulher Vestida de Sol é
exibida na Rede Globo. Em 1995 assume o posto de Secretário de Cultura indicado
pelo governador Guel Arres, e no mesmo ano veria outra peça, A farsa da boa
preguiça apresentada na Rede Globo de televisão. O auge da leitura televisiva da
obra de Suassuna ocorreria em 1999, com a minissérie o Auto da Compadecida.
Carraro encerra suas notas lembrando a posse da cadeira 35 da Academia
Paraibana de Letras em nove de outubro de 2000, que coincidiu com o aniversário
de 70 anos da morte de seu pai.
62
Suassuna não interrompe sua produção com a elaboração do Auto, pelo
contrário, produz mais peças de teatro e obras literárias. Envolve-se com a política
cultural e é sagrado imortal, tomando posse da cadeira 32 na Academia Brasileira de
Letras em 1990. Seus trabalhos foram reconhecidos fora do Brasil, mas o maior
êxito está no reconhecimento nacional. Temos um trabalho inovador, que constrói
uma problematização política/social do Brasil, a partir da realidade cultural do povo,
reunindo ricos e pobres, cultos e não cultos, dominantes e dominados. A realidade
do nordestino é esteticamente transposta pela carnavalização, presente nas grandes
obras e teatros medievais, só que no caso do Auto com a leitura das várias “raízes
do Brasil”39.
39 Consultar HOLANDA, Sergio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
63
64
II PERCURSO TEÓRICO
2.1 A questão da Estética da Recepção
Ariano Suassuna em seu texto teatral utiliza um discurso que se abre em
plurissignificações e que pode atingir um grupo maior de receptores. O conceito de
plurisignificação é entendido como o produto de recepções, de construção e
encontro de repertórios. O estado de recepção (produto de recepção), segundo
FLORY (1997, p.20), é observado por Lotman40, como sendo o resultado das inter-
relações que se estabelecem entre o texto e seus leitores. As inter-relações são
obtidas através das experiências individuais que, por sua vez, assumem similitudes
com outras experiências individuais, gerando um grupo com características comuns,
que possibilitam o surgimento de significações diversificadas de um mesmo texto. O
receptor terá por tarefa representar as possibilidades de significações, modelar e
construir o sentido da obra, através de sua imaginação, guiado por seu repertório:
O repertório constitui-se de um conjunto de convenções, tradições, normas históricas e sociais – húmus sócio-cultural de onde o texto é proveniente – que formando o quadro ou cercadura do texto, reaparece, não com o seu sentido primeiro, mas sim valendo como um pólo de interações. (FLORY, 1994, P.38-39)
E prossegue:
O repertório dá conta dos diversos horizontes de expectativa, gerados pelos grupos sociais que interagem na narrativa ficcional. São horizontes do passado interferindo e compondo um horizonte do presente. São ideologias que se definem por oposições, obrigando o leitor a aceitá-las ou negá-las, criando sua própria visão dos fatos e personagens da diegese ficcional, presentificando-se o texto através da comunicação texto/receptor. (FLORY, 1994, p.40)
40 Juri Lotman apud FLORY, Suely F. V. O leitor e o labirinto. São Paulo: Arte e Ciência, 1997.
65
O repertório é constituído através da somatória dos intertextos. O processo de
intertextualização ocorre quando passamos a reunir informações de outros textos,
que promovem a ampliação do leque de informações que serão transformadas, e
receberão um novo significado em um contexto espaço-temporal diverso gerando,
portanto, uma nova significação. O velho é recuperado em uma nova concepção.
Outras leituras surgirão das releituras, da conexão entre textos e contextos que, por
sua vez, interferem na relação entre o texto e leitor. A arte literária torna possível a
construção fictícia de toda a problemática cotidiana. Aponta, denuncia e
contextualiza a sociedade num “mundo possível ficcional” (Eco, 1979) e vai mais
além porque reflete, dentro do contexto histórico, os perfis ideológicos de sua época
em toda plenitude.
Essa nova significação configura a renovação da obra de arte, que se
concretiza em diversos contextos sociais e temporais, permitindo ao receptor
vivenciá-la esteticamente. Isto ocorre através da polifonia criada no texto (através
das várias vozes do texto), ou pelo preenchimento de lacunas que ECO41 intitula de
“brancos” do texto, ou seja, espaços que o autor, intencionalmente, insere no
discurso narrativo para que o receptor tenha a oportunidade de presentificar a
mensagem e participar da construção do texto, preenchendo o que não foi dito mas
apenas sugerido. A leitura e a compreensão da mensagem permitirão a
interpretação segundo as projeções pessoais de cada leitor.
Se ao receptor é dada a oportunidade de vivenciar, preencher os vazios e
brancos, segundo o seu repertório, sua participação através do ato da leitura poderá
levá-lo ao prazer estético que segundo Jauss, (apud FLORY, 1994, p. 23)
configuram, a “Poiesis”, a “Aisthesis” ou a “Karthasis”. A Poiesis, relaciona-se ao
prazer estético que o receptor sente quando se vê inserido no texto, interpretando as
vozes, utilizando de suas projeções interpretativas para preencher os intervalos do
texto, como um co-autor. A Aisthesis é a tomada de consciência, a possibilidade de
que o texto gere renovação do sentido e concepção de mundo. É o prazer diante da
perfeição, o próprio usufruto da arte que nos liberta e mostra-nos um mundo novo.
Por fim, a Karthasis traz ao receptor a possibilidade de libertação, de uma fuga do
41 MOUILLAUD, op. cit., p.174.
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cotidiano, permitindo que ele viva, através dos personagens, novas experiências,
idenficando-se com elas, o que lhe possibilita uma purgação e uma renovação
através da identificação texto/receptor.
O texto/teatro de Suassuna deixa o receptor à vontade, deixa brechas para
que se instaurem as experiências da Poiesis, da Aisthesis e da Karthasis. Uma vez
que a obra permite que repertórios e receptores distintos identifiquem-se com
questões que vão desde o caráter religioso e político até o sócio-econômico. Texto e
receptor estão organizados numa estrutura de comunicação, que busca a
visualização da informação, composta por um campo pertinente de valores,
defrontando-se os horizontes de expectativas do emissor e do receptor, ambos
impregnados de ideologias diferentes, que emanam do processo de
intertextualização e das diversas leituras do texto, em diferentes momentos
temporais.
Ao identificarmos a preocupação com a receptividade, claramente configurada
no texto/teatro de Suassuna, através de seu repertório esteticamente composto, a
proposta é atingir o maior número possível do que chamaremos de “leitor modelo”
(Eco, 1979), “implícito” (Iser, 1979), ou ainda de “arquileitor” (M. Riffaterre, 1971)42.
No caso de Suassuna, esse leitor implícito, fazendo uso do conceito de Iser, aparece
quando o texto abre lacunas a serem preenchidas pelos leitores com seus
repertórios diversificados e seus respectivos segmentos sociais. O diálogo entre
emissor e receptor está previsto no próprio discurso, e as estratégias textuais
estabelecem uma interatividade, constantemente renovada, abrindo espaços para
um personagem “in absentia”, com o próprio leitor. A informação assume seu ponto
máximo de inclusão e interação entre emissor e receptor levando à elaboração de
novas leituras, semiotizadas pelos fragmentos heterogêneos, emanados da relação
entre emissores/receptores, repertórios/segmentos sociais, traçando o quadro
cultural em que está mergulhado o próprio texto e os seus leitores.
42 MOUILLAUD, 2001 – O conceito de arquileitor de Riffaterre prevê um leitor com amplo conhecimento da obra de um autor, este leitor tem uma capacidade maior de preencher os vazios do texto pela sua competência em relação ao autor ou ao tema desenvolvido.
67
Para MARTIN–BARBERO (2003, p.116-117) em sua obra, Dos meios às
mediações, a problemática da recepção, está centrada na a questão da cultura
popular, que se encontra fragmentada numa sociedade que se pretende
homogênea. Fazendo uso do pensamento de Gramsci acerca do conceito de
hegemonia das classes, MARTIN-BARBERO ressalta que Gramsci propõe-se,
através da visualização do processo de dominação social, entender que as classes
não são homogêneas e nem tampouco permanentes, e que se desfazem e se
constroem pela aquisição do sentido de poder, que uma classe social outorga à
outra. Gramsci continua ainda apontando que a relação que assistimos entre as
classes é a da concessão e da cumplicidade. A função ideológica de alguns sujeitos
passam a ser desfiguradas, inutilizadas e rejeitadas, pois segundo MARTIN-
BARBERO (2003, p.116), “[...] nem tudo o que pensam e fazem os sujeitos da
hegemonia serve à reprodução do sistema [...]”, configurando-se uma densidade
cultural decorrente da movimentação das oposições.
GUEL ARRAES, em O Auto da Compadecida trata as diferenças sociais
segundo a leitura de Gramsci. Uma passagem na minissérie que ilustra tais
diferenças ocorre quando Chicó e João Grilo saem da casa do padeiro Eurico a
mando de Dora, a esposa do padeiro, para chamar o padre para benzer a cachorra
moribunda de Dora. No caminho para a Igreja Chicó e João Grilo tentam diminuir a
caminhada pegando uma carona em uma carroça que passa por eles e sobre ela
Chicó se deita para contar o causo do seu cavalo bento. A ironia da cena pode ser
percebida dado o contexto ao qual se insere a carroça.
SASPORTES (1979, p.26) aponta que os “carros triunfais” 43, serviam à
exposição de peças teatrais nobres, como por exemplo, os autos natalinos, e para
as cenas que necessitavam de destaque também se usava o recurso. Quanto ao
uso funcional dos carros, é preciso salientar, que somente a aristocracia e poucos
comerciantes, tinham aparato econômico para ter posse de um carro. Em O Auto da
Compadecida, GUEL ARRAES, chama a atenção para o contexto ao qual introduz o
carro, carregando suprimentos, provavelmente de um coronel e como por uma obra
43 Os carros eram carroças movimentadas por animais ou quando menores pelos próprios integrantes do grupo teatral. No interior do Brasil as carroças ou carretinhas ainda são muito utilizadas nos desfiles cívicos ou em datas festivas do calendário religioso.
68
do acaso, dois pobres nordestinos puderam usufruir por segundos da carroça para
que pudessem resgatar um de seus poucos bens, a memória, concretizada pelo
imaginário. A carroça-objeto mostra a relação existente entre os sujeitos sociais e
dos sujeitos com os objetos, através da relação de posse e uso, se apresenta a
relação de classes, ela surge na minissérie novamente no enterro de João Grilo.
Outro momento no Auto em que se pode notar o trabalho estético das
diferenças sociais fica explicito na fala de Chicó quando narra a morte de João Grilo:
Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo. Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre. Que posso fazer agora? Somente seu enterro e rezar por sua alma. SUASSUNA (2004, p. 123)
Se a morte é o fato que iguala todos os homens, o sepultamento já os torna a
distinguir-los. Chicó quando está prestes a enterrar Chicó, lamenta por não poder
dar um enterro digno ao amigo, antes é forçado a abrir uma vala comum, para que
João fosse simplesmente sepultado, como um indigente.
Logo após a morte das personagens inicia-se o julgamento e o recurso
estético para a incorporação de Nossa Senhora entre as personagens ocorre por
meio de um verso popular. Os versos populares são programados no texto do Auto
da Compadecida de maneira a familiarizar o receptor ao contexto, como na
passagem em João Grilo recita:
Valha-me Nossa Senhora, / Mãe de Deus de Nazaré! A vaca mansa da leite, / a braba da quando quer. A mansa dá sossegada, / a braba levanta o pé. Já fui barco, fui navio, / mas hoje sou escaler. Já fui menino, fui homem, / só me falta ser mulher. Já fui barco, fui navio, / mas hoje sou escaler. Já fui menino, fui homem, / só me falta ser mulher. Valha-me Nossa Senhora, / Mãe de Deus de Nazaré. (SUASSUNA, 2004, p.158)
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Os versos populares recuperam a estratégia estética do esconjuro44 e da
adoração45, que remetem as “orações fortes” 46. No esconjuro há práticas exorcistas,
onde cruzes, a água, o sal e os ramos bentos são empregados em rituais para
expulsar demônios. O auto flagelo, ou práticas como bater no peito e na face, o
batismo (aspersão com água benta), indicam o esconjuro. A adoração precede a
evocação de um ente divino, ocorrem por meio de preces, ações de graça (práticas
de agradecimento), das procissões ou cortejos (na minissérie substituem a fala do
palhaço no momento em que as personagens morrem). No momento da prece
espera-se um fato notável, há o pedido de intervenção por alguém e o de
condenação ou maldizer para outro.
CASCUDO (1988, p.550-553), traz como exemplo, uma evocação de oração
forte: Valei-me o virgem Conceição. O mesmo traquejo estético foi pensado na
última linha do verso recitado por João Grilo: Valha-me Nossa Senhora, / Mãe de
Deus de Nazaré. O grito sugere um apelo por socorro, clemência, contra os castigos
– pois se já não bastasse a miséria – e a expropriação social.
Assim a dominação social não deveria ser entendida como um processo
imposto a partir do “exterior”, sem “sujeitos”, e sim entendido como um procedimento
intrínseco no qual uma classe torna-se hegemônica, uma vez que visualiza
interesses comuns e alternantes com outra classe, fazendo com que haja uma
cumplicidade na constituição das classes que dominam e das que se submetem.
MARTIN-BARBERO identifica que o “folclore”, segundo Gramsci, é um campo de
contraposições entre o que o popular entende como “concepção do mundo e da
vida” frente à percepção do mundo real da massa culta. Existe, pois, um conflito, um
espaço entre o culto e o popular, entre aquilo que é e aquilo que deveria ser, que faz
parte de todo um processo de reconstituição histórica. O que há de se ressaltar é
que a cultura popular e a submissão das classes caminham, simultaneamente,
contribuindo para a permanência da segmentação das tendências que compõem a
cultura de massas.
44 No esconjuro o mal tem que se submeter às formulas mágicas dos cantos e orações, onde o orador evoca a divindade, ver CASCUDO. 45 Na adoração, a divindade dispõe de vontade própria, ela se faz presente na oração ou nos cantos, ver CASCUDO. 46 Rezas de libertação ou cura.
70
Quanto às tendências culturais, MARTIN-BARBERO explica que:
[...] frente a toda tendência culturalista, o valor do popular não reside em sua autenticidade ou em sua beleza, mas sim em sua representatividade sociocultural, em sua capacidade de materializar e de expressar o modo de viver e pensar das classes subalternas, as formas como sobrevivem e as estratégias das quais filtram, reorganizam o que vem da cultura hegemônica e o integram e fundem como o que vem de sua memória histórica. (2003, p.117)
O trabalho de Suassuna consiste em representar, através de um recorte da
realidade, um quadro abstraído no espaço/tempo daquele contexto, criando uma
realidade modelizada através de recursos literários, que incorporam temas do
cotidiano do povo como a temática religiosa, facilmente percebível no título
sugestivo “Auto da Compadecida”. A Compadecida, Nossa Senhora, ícone que
remete a uma simbologia da fé, reforçado pelas qualidades dos ícones a compaixão
e o compadecimento.
O quadro, semiotizado pelo eixo religioso, incorpora no desenrolar da trama,
assuntos cujas abordagens passam, por exemplo, pela discussão de poder, de
posse, de religião, de hierarquização da moral e de miséria, inserindo e
representando a condição sociocultural do nordestino, num texto que possibilita a
representação teatral. Qualquer indivíduo, através da construção mental, guiada
pelo julgamento ético e não moral, realiza a reconstrução da memória histórica
nacional, principalmente a do nordestino.
2.2 A herança medieval
A ironia é dizer alguma coisa de uma forma que ative não uma, mas uma série infindável de interpretações subversivas. (MUECKE, 1995, p.48)
MUECKE (1995, p.64-65), em Ironia e o irônico, investiga a ironia usando
uma classificação de Norman Knox que a divide em “[...] trágica, cômica, satírica,
absurda ou niilista, paradoxal – cada uma das quais tem sua própria `coloração
filosófico-emocional´ ”. Para MUECKE, todas essas classes guardam características
próprias, mas há uma comum a todos, a “qualidade-sensação” que consiste numa
“dupla realidade contraditória”, que remete a “sensação de libertação”.
71
Essa sensação de liberdade é exemplificada por MUECKE (1995, p.66-67)
quando estuda Freud e suas pesquisas acerca do “dispêndio contraditório de
energia”. A contradição existe porque:
A palavra `cômico´ sugere uma certa `distância´, psicologicamente falando, entre o observador divertido e o objeto cômico; a palavra `libertação´sugere `desobrigação´, `desinteresse´, e estas por sua vez lembram `objetividade´e `desprendimento´. (MUECKE, 1995, p.67)
Para MUECKE (1995, p.71), esta situação de contradição entre o emocional e
o racional está presente naquilo que ele chama de “Ironia Fechada”, subtendida
pelas classes: cômica, satírica, trágica e absurda. Na ironia cômica e satírica temos
o reflexo dos valores do observador, e na ironia trágica ou absurda temos uma
realidade que deprecia os valores humanos.
O trabalho de Suassuna situa-se entre a ironia cômica e satírica, que
comporta a externalização dos valores do autor, como em Gil Vicente. O Auto busca
uma fusão e uma intensificação do capital emocional com o horizonte de
expectativas do público. Salienta-se que o Auto é composto pelo confronto do capital
emocional dos autores que compuseram os cordéis, que inclui outras releituras
como as de Suassuna e logo mais a leitura de Arraes na minissérie.
Em iguais circunstâncias, as ironias serão mais ou menos poderosas proporcionalmente à quantidade de capital emocional que o leitor ou observador investiu na vítima ou no tópico da ironia. Dizer isso não significa abandonar os reinos da arte e da ironia e entrar nos da pura subjetividade e preferência individual; as áreas de interesse que mais prontamente geram ironia são, pela mesma razão, as áreas em que se investe mais capital emocional: religião, amor, moralidade, política e história. A razão é, naturalmente, que tais áreas se caracterizam por elementos inerentemente contraditórios: fé e fato, carne e espírito, emoção e razão, eu e o outro, dever-ser e ser, teoria e prática, liberdade e necessidade. Explorar estes ironicamente é adentrar uma área em que o leitor já está envolvido. (MUECKE, 1995, p.76)
O contraditório no trabalho de Suassuna é construído pelo que MUECKE
(1995, p.77) entende como “Ironia Instrumental” e “Ironia Observável”. A “Ironia
Instrumental” identifica “[...] a linguagem como o instrumento” e na “Ironia
Observável” o que se apresenta é o irônico “[...] de uma situação, uma seqüência de
eventos, uma personagem, uma crença etc. – que existe ou pensa que existe
independentemente da apresentação”. No trabalho de Suassuna há ambas as
72
ironias, a instrumental e a observável, uma vez que ironiza sua realidade e o
contexto que a cerca, pois como vemos em MUECKE “Diz-se comumente que um
escritor está sendo irônico quando na realidade o que ele está fazendo é
apresentando (ou criando) algo que considerou irônico (MUECKE, 1995, p.84)”.
MUECKE considera que num mesmo contexto coexistem várias formas irônicas.
Observa-se que no teatro de Suassuna há infinitas possibilidades de
expressar a ironia, conforme aponta MUECKE, que pode ir da preparação ou leitura
do “palco, fora-do-palco, auditório etc” (MUECKE, 1995, p.89). O cômico ou o
satírico é aquilo que está por acontecer, tanto no teatro ou na TV, e sua observação,
seja com maior o menor intensidade depende do recorte do contexto.O recorte do
contexto é trabalho por MOUILLAUD - seus trabalhos são direcionados ao estudo do
jornal (mídia) - mas torna-se pertinente uma observação do autor que sugere que a
leitura da informação depende do tratamento dado a um problema num dado
contexto, e este fato, independe de outros :
Produzir uma informação supõe a transformação de dados que estão no estado difuso, em unidades homogêneas. Um processo que não é propriedade da mídia. Esta apenas representa o fim de um trabalho social, uma formação que começa a montante dos aparelhos propriamente da mídia. A manifestação é apenas um dos múltiplos operadores pelos quais uma sociedade se torna visível a si própria. Este processo pode ser encontrado em todos os níveis. (2001, p.42)
A TV também comporta este aspecto de arquitetura, podendo atribuir ao
contexto maior ou menor impacto, mas sem o envolvimento do público, não
necessariamente exige a participação (reação) do receptor. No teatro o público vê o
espetáculo ser montado à sua frente, na TV o mesmo efeito não é possível. A outra
saída do diretor para conseguir a interação com o público é personificar a releitura
de uma obra para dar-lhe efeito e sentido no momento em que é lida ou, no caso,
apresentada visualmente pela TV.
O texto é preparado e estudado pelos atores que receberão uma orientação
do que se pretende expor e a projeção pretendida pelo diretor que dependerá do
efeito de personificação que os atores atribuírem às suas personagens. Para
MUECKE (1995, p.99), “Representar não é apenas participar de uma representação,
é também personificar, e isto é um caso de identidade pessoal como de disfarce
73
físico”, pois o que se pretende é interagir com o emissor, pois “A interiorização da
platéia é menos freqüente, mas nem por isso incomum”. Suassuna no Auto constrói
aquilo que MUECKE (1995, p.115) entende por “existência social subjetiva”, da
personagem com a realidade dos emissores, e a interação dependerá do contexto
social dos emissores.
Temos no trabalho de Suassuna a possibilidade de encontrar em processo de
coexistência, em simultaneidade, dois artifícios (instrumentais) utilizados pela
Estética da Recepção: o estranhamento e a carnavalização (como proposta irônica).
A herança da carnavalização medieval faz-se presente no trabalho de Suassuna, tal
como na obra do historiador medievalista francês LE GOFF47, intitulada “A bolsa e a
vida”. Sua principal estratégia nessa obra, utilizada para viabilizar a interação entre o
texto e o leitor, foi a inserção de textos trabalhados a partir da carnavalização do
culto religioso, realizando uma transposição de um linguajar de ridicularização e de
escárnio. Tal artifício possibilita o enriquecimento do texto, que procura estabelecer
com o receptor um pacto: o de decifrar os códigos criados em função de tal
estratégia. Sua missão estende-se à necessidade de representar os objetos em
discussão, por uma leitura que construa e integralize o processo de informação da
mensagem.
Assim, trabalhar textos cujo recurso estético é o da carnavalização, foi o
artifício encontrado pelo autor LE GOFF para trabalhar a questão da usura, frente
aos preceitos dogmáticos da Igreja Católica medievalista que, por necessidade
primeira, prezava em garantir a base de estratificação social então presente, por
temer a organização de uma nova ordem econômica, que viesse a prejudicá-la.
Segundo LE GOFF (1989, p.10):
A usura é um dos grandes problemas do século XIII. Nessa data, a Cristandade, no auge da vigorosa expansão que empreendida desde o Ano Mil, gloriosa, já se vê em perigo. O impulso e a difusão da economia monetária ameaçam os velhos cristãos. Um novo sistema econômico está prestes a se formar, o capitalismo, que para se desenvolver necessita senão de novas técnicas, ao menos do uso massivo de práticas condenadas desde sempre pela Igreja. Uma luta encarniçada, cotidiana, assinalada por proibições repetidas, articuladas a valores e mentalidades,
47 Consultar LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida. São Paulo: Brasiliense, 1989.
74
tem por objetivo a legitimação do lucro lícito que é preciso distinguir da usura ilícita.
Desta maneira a preservação dos valores socioeconômicos tornava-se
necessária, de forma a garantir a organização social baseada na seguinte ordem
hierárquica: alto clero, nobreza e servos. O controle de distribuição das riquezas e a
delegação dos afazeres restringiam-se aos domínios do alto clero e da nobreza,
bem como a administração da atividade econômica. Assim, o discurso ideológico da
Igreja dava respaldo para que uma minoria se constituísse como classe dominante.
Os dominados, os aldeões, em sua grande maioria em condição servil,
acatavam rigorosamente as leis, os preceitos e decretos que condenavam a usura,
uma vez que o aparato regulador e condicionador da Igreja levavam a
impossibilidade de uma crença que permitisse a coexistência de adoração entre
Deus e o dinheiro. A informação era bem clara, ou se tinha um ou outro. LE GOFF,
para efeito de afirmação faz uso de um trecho literário bíblico do Evangelho segundo
Mateus, VI, 24, para ilustrar a passagem da escolha ideal proclamando que:
“Ninguém pode servir a dois senhores: ou odiará a um e amará o outro, ou se
afeiçoará ao primeiro e desprezará o segundo. Não podeis servir a Deus e a
Mammon”.
A justificação para o acumulo de riquezas só poderia ser aceita se fosse
proveniente do labor, concretizado com a recolha do dízimo, ou seja, retribuindo a
prosperidade dando um décimo do que foi adquirido junto à Igreja. Se a prática de
enriquecimento fosse proveniente de outra atividade, como no caso a prática de
juros ilícitos, ou seja, àqueles não obtidos através do trabalho, configurava-se o
pecado da usura.
LE GOFF usa de uma passagem de Orcival para demonstrar como é possível
fundir texto artístico e literário. No caso a manobra artística é a carnavalização do
texto literário podendo criar a imagem do sermão proposto no texto religioso,
colocando a prática da usura como um dos pecados mais tenebrosos e
assustadores, absorvidos desde que surta um estreitamento da leitura no ato da
recepção:
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Desde a entrada, o primeiro capitel que se impõem à vista é o do Fol dives, como o apresenta a inscrição em ábaco para que ninguém o ignore (...). Este rico, que não é magro, segura com as duas mãos sua querida bolsa. Mas agora os diabos se apoderam dele. Nem suas cabeças bestiais (...) nem a maneira pela qual agarram a cabeleira de sua vítima nem mesmo seus garfos são tranqüilizadores. (LE GOFF, 1989, p.33)
O trecho citado na obra de LE GOFF faz parte de um trabalho de Orcival48
que demonstra a estética carnavalizada do texto medieval. Os objetos devem
reforçar a representação da usura. O discurso “Este Fol dives, este ‘rico louco’, é o
usuário, caça do inferno (É um obeso, engordado por usas usuras [...] ‘o gordo
usurário)’’, é um retrato irônico e grosseiro, típico de textos carnavalizados.
O primeiro impacto que a situação causa é o de estranhamento. Nota-se que
o receptor é levado a uma situação de desconforto pelo desconhecimento dos
códigos, que se encontram carnavalizados e ironizados. Faz-se escárnio e sarcasmo
da posição social do sujeito no trecho apresentado, como na citação ‘fol dives’, rico
louco, que por entre o impacto do estranhamento e carnavalização objetiva
descrever o pecado e o castigo recebido.
Suassuna (2004, p.29) constrói a idéia de usura, do adultério e da diferença
social, através do diálogo entre João Grilo e Chicó, quando João Grilo lembra a
Chicó quem são o Padeiro e a sua esposa:
Ó homem sem vergonha! Você inda pergunta? Está esquecido de que ela deixou você? Está esquecido da exploração que eles fazem conosco naquela padaria do inferno? Pensam que são o Cão só porque enriqueceram, mas um dia hão de me pagar. E a raiva que eu tenho é porque quando estava doente, me acabando em cima de uma cama, via passar o prato de comida que ela mandava pr’o cachorro. Até carne passada na manteiga tinha. Pra mim nada, João Grilo que se danasse. Um dia eu me vingo!
No trabalho de Guel Arraes (minissérie, 1999), temos a visualização da
mesquinhez, da avareza quando o Major nega a sua filha Rosinha o direito à
herança. Rosinha e Chicó são rejeitados porque, financeiramente, não contribuiriam
para aumentar o prestígio socioeconômico junto ao Major.
48 LE GOFF, loc. Sob o trabalho de Orcival LE GOFF pesquisa MARCHE, ª Lecoy de la. Anecdotes historiques, légendes et apologues tires du recueil inedit d´etienne de Bourbon, Dominicain du XIII siècle, Paris, 1877, pp. 361-362.
76
Em uma outra passagem vemos o discurso moralista do Bispo ser suplantado
pelo conhecimento da existência de um testamento, referente ao enterro do cachorro
em latim, do qual também era beneficiário: “Quanto ao senhor João Grilo, vai-se
arrepender de suas brincadeiras, jogando a Igreja contra Antônio Moraes. Uma
vergonha, uma desmoralização” (Suassuna, 2004, p.74). No momento em que João
Grilo revela a parte do Bispo no testamento o discurso toma outro sentido: “É por
isso que eu vivo dizendo que os animais também são criaturas de Deus. Que animal
inteligente! Que sentimento nobre!” (Suassuna, 2004, p.75). O Bispo justifica a
benção do cachorro dada pelo padre citando o Código Canônico em falso : “Não
resta nenhuma dúvida, foi tudo legal, certo e permitido.Código Canônico, artigo 368,
parágrafo terceiro, letra b” (Suassuna, 2004, p.89).
A literatura deixa vir à tona a preocupação com o controle da distribuição da
riqueza, pleiteado pelo clero e pela nobreza, transparecendo uma preocupação
crescente na Europa de então, o das emigrações. E entre os emigrantes
encontravam-se entre outros os judeus aos quais foram atribuídas atividades de
agiotagem. A catalogação então recebida pelos judeus é estendida aos aldeões que
disseminam por toda a Europa, o título de agiota, ou ainda pecadores e hereges.
Segundo PREDERO-SÁNCHES49, as habilidades comerciais comuns entre os
judeus foram tomadas pelos olhos europeus como um sinal de ameaça, ameaça
esta que poderia findar o controle de riquezas pelos nobres e o alto clero. Assim
PEDRERO-SÁNCHEZ (1994, p.75), em sua obra Os judeus na Espanha demonstra
que o judeu medieval foi estereotipado como “[...] avarento, vingativo, covarde, não
trabalhador [...]”, agravado pelo fato de possuir “traços psicológicos de sutileza,
dureza, teimosia, espírito irrequieto e semeador de discórdia”. Na cultura judia o
sucesso financeiro do homem na terra nada mais é do que uma compensação divina
pela dedicação aos trabalhos da fé. O tema da avareza aproxima, ainda, as ações
do padeiro e sua mulher às práticas de avareza, da qual foram vítimas João Grilo e
Chicó, seus empregados.
Todas estas características serão aproveitadas por literários que encontrarão
na carnavalização, nas figuras de linguagem, a possibilidade de construir críticas ao
49 Ver PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. Os judeus na Espanha. São Paulo: Giordano, 1994.
77
modelo de organização social e ou a oportunidade de desenvolver modalidades
literárias, sem que a censura e os tabus da Igreja fossem imediatamente
despertados. Iniciava-se um grande processo de transformações e manifestações
culturais, conduzidas principalmente através das mesclas culturais que as
emigrações e migrações proporcionaram. Autores como Dante50 e Erza Pound51,
citados na obra de LE GOFF, se destacarão por trabalhar em suas obras estilos
literários que fossem construídos através dos conceitos de estranhamento e de
carnavalização.
A representação de questões a usura, através de obras literárias tornou-se
uma característica fundamental no contexto medievalista, e traz sentido ao trabalho
de LE GOFF pelo fato da bolsa representar uma noção de valor, tendo como
característica fundamental significar a vida ou a morte, segundo as doutrinas da
Igreja, representa o legado do livre arbítrio.
De maneira a reforçar o processo de carnavalização e estranhamento
observamos a seguir, num trecho do trabalho de Erza Pound, no Canto XLV,
também citados no trabalho de LE GOFF (1989, p.99):
COM USURA não vai a lã até a feira carneiro não dá ganho com usura a usura é uma peste, usura engrossa a agulha lá nas mãoas da moça E só para a perícia de quem fia. Pietro Lombardo não veio via usura Duccio não veio via usura Nem píer della Francesca; Zuan Belline não pela usura nem foi pintada “La Calunnia”assim. Angélico não veio via usura, nem veio Ambrogio Praedis, Não veio igreja alguma de pedra talhada com a incisão: Adamo me fecit. Nem via usura St. Trophime Nem via usura Saint Hilaire. Usura oxida o cinzel Ele enferruja o ofício e o artesão Ela corrói o fio no tear Ninguém aprende a tecer o ouro em seu modelo; O azul é necrosado pela usura; não se borda o carmesim a esmeralda não acha o seu Memling A usura mata o filho nas entranhas
50 LE GOFF, op., p.93-100. 51 Ibid.
78
Impede o jovem de fazer a corte Levou paralisia ao leito, deita-se Entre a jovem noiva e seu noivo CONTRA NATURAM Trouxeram meretrizes para Elêusis Cadáveres dispostos no banquete às ordens da usura...
A presença do estranhamento e da carnavalização foi a maneira encontrada
por Suassuna, para incorporar o imaginário e o cotidiano do povo nordestino em sua
obra. Ficção e realidade misturam-se, são construídos dentro de um repertório que
possibilite a recepção de seu trabalho por uma gama muito diferenciada de
indivíduos, que retratam, cada qual segundo suas experiências, a mensagem, tanto
no texto/teatro como na TV (no trabalho de Guel Arrares), onde o caráter irônico
também assume significações distintas dada a gama de repertórios identificados na
massa de expectadores que acessaram o auto.
A construção das personagens do texto teatral à minissérie é assunto do
capítulo a seguir, onde serão estabelecidas inter-relações entre a peça e a
transcodificação televisiva, com, suas aproximações e diferenças.
79
80
III A CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS
3.1 Do texto teatral à minissérie: o processo de gênesis-mimesis
A leitura do texto ficcional possibilita a existência de identificações e alusões
particulares a cada leitor, salientando as indagações e anseios quanto à recepção
do texto, o que nos leva a refletir em estado de cautela, em questões como: até que
ponto as interpretações individuais dos leitores são possíveis e aceitáveis, ou ainda
até que ponto o trabalho de construção textual permite interpretações e
identificações do receptor. O processo de recepção projeta a preocupação
simultânea de genesis-mimesis (FLORY, 1994, p.19-25), ou seja, o processo da
criação, análise e processamento da informação.
O texto de Ariano Suassuna tem como preocupação o estado de genesis–
mimesis, de criação e recepção. É claramente perceptível a intencionalidade do
autor em transpor a construção do cotidiano e do imaginário popular para o texto
literário. Mas a grande questão observada pelo autor em seu texto/teatro era pensar
como seria possível esta transposição da recepção, do texto popular ao erudito, da
leitura do erudito ao popular.
A resposta para tal questionamento veio justamente pela reflexão da
construção textual a partir da idéia possibilitar recepção para um público amplo,
cultos e não cultos. A leitura espelha a fundamentação da lógica poética (BULIK,
1990, p.77) 0-2 teorizada por Kristeva. A lógica poética 0-2 (expressão/fantástico)
apresenta-se como o movimento de transgressão do código lingüístico e da moral
social, gerando uma lógica utópica diferente da lógica 0-1 (forma/conteúdo). No Auto
da Compadecida, no contexto do fantástico tudo pode ser possível, temas da
realidade e do imaginário se mesclam e deixam transparecer o encontro do
repertório popular e erudito configurando um quadro, cujo repertório é
81
plurisignificativo. A lógica 0-1 configura-se na forma denotativa, designa-se por meio
de sinais, por símbolos, enquanto a lógica 0-2 se expressa pela conotação, que
ocorre por meio da associação de idéias, onde um signo remete a outro, fazendo
com que o sujeito percorra o processo de significância o que possibilita a existência
de um repertório plurisignificativo (FLORY, 1997, p.20), que possibilita ao receptor
associar as idéias do Auto ao seu próprio horizonte de expectativas (a leitura de
mundo,pode ocorrer tanto no eixo sintagmático como paradigmático).
Torna-se visível a preocupação com a construção textual, principalmente a
partir do elo que o autor procurou estabelecer entre o texto e o seu receptor,
visualizado desde a criação do repertório. Faz-se necessário, no processo de
decodificação da mensagem, a análise das estratégias da Estética da Recepção,
para compreender o papel fundamental do leitor na concretização do texto bem
como o da interatividade do leitor com o texto teatral e televisivo da obra em análise.
O processo mostra a busca por um receptor, que comungue, mesmo num grupo
social díspar, informações que venham a permitir a construção de um repertório,
capaz de atingir diferentes categorias sociais e suas respectivas experiências.
3.2 Discurso e ideologia: as limitações impostas pelo
enquadramento
Ao determos nossa atenção no “processo” de enquadramento e
contextualização, torna-se possível observar o percurso artístico gerado pelo
discurso literário de Suassuna, com seu repertório pessoal e envolvido por um
contexto específico onde o receptor vai ter que se inserir, através de seus
conhecimentos e quadro de valores, enfim de seu próprio repertório e contexto,
bases de onde partirá para decodificar a mensagem textual. Por intermédio do
encontro dos repertórios do emissor e do receptor formam-se visões, interpretações
diversas, pertinentes ou até aleatórias, demonstrando a possibilidade de
plurisignificações do texto artístico. Representações desiguais, ou seja,
apresentações de diferentes interpretações ficam condicionadas a um quadro, a um
recorte, cujas possibilidades de informações pertinentes do contexto, podem gerar
no receptor, ou em receptores distintos, representações diferentes de um mesmo
82
contexto. Não podemos negar, no entanto, que há possibilidades de abordagens
desiguais, provenientes das desigualdades existentes entre os receptores e seus
distintos repertórios.
Produzir uma informação requer o envolvimento de agentes, denominados
por MOUILLAUD (1997, p.37-47), como promotores, autores e mediadores, pois são
estes agentes que determinarão, consciente ou inconscientemente, o conteúdo das
informações a serem transmitidas. Mas o que nos chama a atenção é o fato da
possibilidade ou não de visualizar a informação. Os conteúdos informacionais
prestam-se à divulgação profunda ou artificial dos objetos. O quadro faz-nos uma
imposição acerca daquilo que nos é mostrado, àquilo que nos é permitido conhecer
e entender. O não dito nas entrelinhas, posiciona-nos de maneira a haver uma
reflexão sobre a reprodução do conteúdo, questionando-nos se estamos
presenciando o real ou se a informação oferecida oculta algo, ofertando “parte da
sombra”, ou ainda “o que pode ser visto e o que deve ser visto” (MOUILLAUD, 1997,
p.38).
Passamos então a assumir a evidência de um limite no processo de
comunicação. Entramos num jogo de esconde-esconde, cuja intenção dos
emissores será fazer com que o conteúdo das informações transmitidas possibilite
ao leitor contextualizar o problema, de maneira que haja a identificação dos códigos
através do repertório proposto entre emissor e receptor, sendo que o primeiro por
sua vez procura inserir o leitor no próprio texto (MOUILLAUD, 1997, p.174).
Ainda segundo MOUILLAUD (1997, p.39), “[...] a vitrine mostra e esconde, a
palavra diz e não diz [...]”. Assim é possível construir a idéia de inexistência do todo,
ou a possibilidade de retratar o fato integralmente. É como um retrato, nós
visualizamos o fato, mas não nos é possível reconstruir o momento real de sua
constituição. Faltam-nos fragmentos que só foram possíveis naquele momento,
naquele dado instante. Somos sim capazes de realizar uma releitura, construindo
uma cadeia informativa que, ciclicamente, reconstitui-se e não cessa a
reconstituição. Reproduzimos em verdade a superficialidade do fato, impulsionando
um processo que leva o indivíduo ou segmentos da massa a selecionar e legar
dados, que por sua vez constituem um fio que se manifesta na cadeia existencial,
83
evidenciando que a produção da informação é uma constante em transformação,
que levam a diferentes processos de semiotização.
Quando Suassuna observa o nicho cultural popular e o transpõe para o Auto
ele realiza um recorte da cultura popular nordestina. Os cordéis – O dinheiro, A
história do cavalo que defecava moeda e Violeiros do norte – são recortes do nicho.
Estes recortes são apenas uma parte das buscas, estudos e observações que
Suassuna realizou para construir o texto do Auto.
É preciso considerar que há sempre um resíduo que não foi exposto, muitas
idéias são “perdidas”, desconsideradas ou não encontram um espaço para existirem
no recorte.
Quando nos defrontamos com o fato da benção do cachorro, em grifo “´[...]
benzer o cachorro [...]”, podemos ou não nos defrontar com a estratégia de
estranhamento dentro do quadro descrito. Para àqueles de fé cristã que professam o
catolicismo, a benção de um cachorro pode ser tomada como uma ofensa aos
princípios dogmáticos da Igreja Católica, causando um estranhamento, uma
ironização, um desconforto com a situação, com o quadro apresentado. Enquanto
que para um mulçumano, por exemplo, o fato de benzer ou não o cachorro é
indiferente, pois em seu cotidiano, entre seus valores, o fato em descrição, não o
remete a nenhuma ofensa contra seus princípios. A situação exposta no quadro, não
faz parte da construção de seu repertório, portanto há uma indiferença quanto à
situação descrita.
Resta-nos salientar que, no texto-teatro de Suassuna, o objeto de informação
é caracterizado pelas discussões políticas, econômicas e religiosas do cotidiano
popular nordestino. Este contexto analisado por meio das estratégias da Estética da
Recepção permite-nos constatar que Suassuna atinge uma gama muito diferenciada
de receptores, de segmentos diferentes, promovendo um processo de
representação que poderá mudar conforme o ponto de questionamento e a
contextualização histórica.
84
Ao representarmos a imagem ou a informação do objeto, promovemos o
movimento de um fluxo de informações e características que serão representadas
pelos receptores também em movimentos díspares, mostrando que a fragmentação
da representação por si só contribui para constituição de outros contextos, que por
sua vez levarão a outras leituras, promovendo um processo cíclico possível através
da intertextualidade emanada do processo de emissão e recepção.
FLORY (1994, p.22) define que:
A natureza polifônica do romance, o uso da ironia, a carnavalização, o dialogismo e a intertextualidade implicam no questionamento da linguagem como instrumento de manipulação ideológica. A presença do leitor torna-se real como a presença de um `outro´ inserido no discurso do narrador, providenciando um diálogo entre os planos do enunciado e da enunciação, que embora conflituoso, possibilitará uma participação ativa do leitor na presentificação da mensagem ficcional.
As vozes do texto chegam até o receptor pelas personagens pictóricas, com
falas irônicas e carnavalizadas permitindo o dialogismo e a intertextualidade da
obra/autor para com o público. Segundo Suassuna seu trabalho é calcado em
romances e histórias populares nordestinas e enquadrando-se num gênero, o Auto
popular que se origina na Alta Idade Média, e cuja temática girava em torno de
questões religiosas, principalmente as relacionadas com Os Milagres de Nossa
Senhora (do Séc. XIV).
Assim o Auto, confeccionado entre o drama e a comédia, entre a construção
do profano e do sagrado, do herói que encontra num ícone, Nossa Senhora, a
esperança, a salvação, tanto no plano espiritual quanto no temporal, libertando-o de
toda a sua angústia e desespero. Assim, o herói de Suassuna encontra-se
respaldado pelo personagem João Grilo que, por intermédio de sua fala
carnavalizada52, causa o efeito de estranhamento53, segundo FLORY (1997, p. 20) e
KRISTEVA (1969, p.77) no contexto.
52 A carnavalização é um recurso histórico utilizado para atribuir efeito sarcástico, de ridicularização, que reforça a ironia permitindo a existência das plurisignificações. MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003, 107. 53 FLORY, op. cit., p.20.
85
Na versão televisiva de Guel Arres, a teoria do enquadramento pode ser
observada em dois momentos. No primeiro temos a condição do quadro, do formato
televisivo de produção, de arquiteturação de um “produto” para a massa. O espaço é
demarcado e alegorizado em quadros pré-elaborados que darão a idéia de
movimento da obra, movimento observado no tablado do teatro. No segundo
momento, temos o enquadramento do meio, ou seja, daquilo que o meio permite
mostrar, o trabalho de configuração do cenário passa a ser limitado na inexistência
de recursos históricos no caso, de cenários reais do espaço público.
3.3 A construção das personagens: estudo das notas da produção
O próprio corpo, eventualmente, comunica. E não somente por intermédio do movimento ou da posição que assume. A própria forma do corpo pode ser uma mensagem e até mesmo a maneira como os traços do rosto se organizam. (DAVIS, 1979, p.45)
Guel Arraes ao pensar em como escolher o elenco para a sua montagem do
Auto, toma o cuidado de buscar uma equipe que atendesse à ilustração visual do
que o subconsciente do brasileiro criou a respeito do nordestino, principalmente do
pobre.
Para DAVIS o corpo diz tanto quanto a expressividade. Em seus trabalhos
cita o teórico Ray Berdwhistell que desenvolve um pensamento sobre a aparência
física e a observa como um “complemento quase sempre culturalmente programado”
(DAVIS, 1979, p.45).
No caso do Auto da Compadecida o estudo do corpo/ator foi programado para
preencher as lacunas, ou brancos do texto quanto à imagem do brasileiro, que
busca preencher com a figura do nordestino. “A forma do corpo é outra característica
que pode ser culturalmente programada” (DAVIS, 1979, p.47).
As personagens da narrativa teatral foram preparadas para preencher o
imaginário do receptor televisivo, pois na leitura televisiva o arlequim não existe.
CHEVALIER (2002, p.) define como “Arlequim – nome que vem da antiga comédia
86
italiana `comédia dell arte´, cujo objetivo original era o de divertir o público,
ridicularizando os costumes, esquisitices e extravagâncias da sociedade burguesa
da época (séc. XVI)”.
O Arlequim, cujo tom enunciativo evoca a comicidade sede espaço para o
palhaço, cuja representação volta a um público popular, cujo vocábulo permite a
existência de uma linguagem burlesca. No Auto da Compadecida o palhaço
representa o autor, Suassuna, e prepara o receptor para ler a obra.
Quem abre o espetáculo teatral no Auto da Compadecida é o Palhaço, esta
figura é apresentada sob o toque de clarim e a ele é atribuída a função narrativa. A
função do Palhaço não encerra simplesmente o ato de contar a história, mas antes
assume a função de interagir com o receptor. No texto/teatro Suassuna (200, p.15)
sugere que em grande voz o Palhaço anuncie o inicio do espetáculo: “Auto da
Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um sacristão (que
não existe na leitura de Guel Arraes), um padre e um bispo, para exercício da
moralidade.” E continua: “A intervenção de Nossa Senhora no momento propício,
para o triunfo da misericórdia. Auto da Compadecida!”. Na leitura de Guel Arraes,
esta aparição do Palhaço é substituída por grandes gritos de João Grilo e Chicó
anunciando o filme “A Paixão de Cristo”, anunciando um filme sobre um homem que
enfrentou o exército romano sozinho, que é uma história de aventura e suspense,
onde imediatamente visualizam-se as cenas da crucificação de Jesus Cristo.
O trecho citado do texto/teatro prepara o receptor para um espetáculo um
pouco anormal, pois, quando brada que canalhas serão julgados, num primeiro
momento não remete a figuras que deveriam representar a moralidade. Quando se
anuncia que entre os canalhas encontram-se presentes representantes da Igreja, o
receptor é remetido ao estranhamento, e é levado a indagar-se no como é possível
que os indivíduos que devem zelar pela moral tenham se envolvido em atos
sórdidos. O Palhaço anuncia que no devido momento a clemência existirá, será
concedida por “alguém que está mais próximo de todos” (Nossa Senhora) – como
consta na fala de João Grilo - e que julgará todos igualmente, ricos e pobres, negros
e brancos.
87
A relação do autor com o público fica evidente quando clama que:
Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou faze-lo, baseado no espírito popular de sua gente, por que acredita que esse povo sofre e tem direito a certas intimidades. (SUASSUNA, 2004, p.16)
Suassuna pede licença para mostrar e contar para o povo a realidade do
cotidiano. Na fala do Palhaço esse pedido, permite que ele burle o acesso de tantos
e tantos que necessitam de uma intervenção dívida mais do que ele. Quando apela
para o fato de que o povo “tem direito a certas intimidades” esta comunicando que
não há mais a quem recorrer nos momentos de dificuldades a não ser para Deus
(Divina Trindade – Pai/Deus, Filho/Jesus e Espírito Santo) e a Nossa Senhora em
seu socorro. O Palhaço prossegue:
Auto da Compadecida! O ator que vai representar Manuel, isto é, Nosso Senhor Jesus Cristo, declara-se também indigno de tão alto papel, mas não vem agora, por que sua aparição constituirá um grande efeito teatral e o público seria privado desse elemento surpresa. (SUASSUNA, 2004, p.16)
Como se zombando do destino reservado apela: “Auto da Compadecida! Uma
história altamente moral e um apelo à misericórdia. [...] Auto da Compadecida!
Tombei, tombei, mandei tombar! [...] Oi, eu vou alí e volto já. [...] O distinto público
imagine à sua direita uma igreja, da qual o centro do palco será o pátio. A saída para
a rua é à sua esquerda. O resto é com os atores.” Neste momento o Palhaço sai de
cena, fazendo uso de verso popular, para que o anunciado ao receptor possa
acontecer, o palco é apresentado ao receptor para familiarizá-lo dos primeiro e do
terceiro ato, o primeiro ato ilustra a vida e o segundo a pós-morte.
O Palhaço no teatro retorna no segundo ato, no enterro do cachorro – que na
versão televisiva ocorre num cemitério. Ironicamente o Palhaço anuncia:
Muito bem, muito bem, muito bem! Assim se conseguem as coisas nesse mundo. E agora, enquanto Xereu54 se enterra, ‘em latim’, imaginemos o que se passa na cidade. Antônio Moraes saiu furioso com o padre e acaba de ter uma conferência com o bispo a esse respeito. Este, que está
54 Na versão televisiva de Guel Arraes, Xereu (o cachorro) é substituído por Bolinha (Cachorra), o nome mais “comum” dado aos cães permite um referencia a todos os receptores.
88
inspecionando sua diocese, tem que atender a inúmeras conveniências. Em primeiro lugar, não pode desprestigiar a Igreja, que o padre, afinal de contas, representa na paróquia. Mas tem também que pensar em certas conjunturas e transigências, pois Antônio Moraes é dono de todas as minas da região e é um homem poderoso, tendo enriquecido fortemente o patrimônio que herdou, e que já era grande, durante a guerra, em que o comércio de minérios esteve no auge. De modo que lá vem o bispo. Peço todo o silêncio e respeito do auditório, porque a grande figura que se aproxima é, além de bispo, um grande administrador e político. Sou o primeiro a me curvar diante deste grande príncipe da Igreja, prestando-lhe minhas mais carinhosas homenagens.(SUASSUNA, 2004, p.59-61)
Novamente as diferenças sociais são salientadas. A política de
relacionamento social mostra que o acesso a determinados atores sociais acontece
ou não segundo a ocupação do outro, ou a relação de status quo. Ao receptor há o
convite para a reflexão de quem é ele na sociedade e o que representa ou se
simplesmente é mais um figurante que serve ao sistema. Quando o palhaço se
curva na presença do Major demonstra o grau de inferioridade daqueles que não
estão no circulo dos políticos e socialmente dominantes (a minoria). O trecho revela
a dominação dos coronéis e o reflexo do ciclo do ouro no nordeste, período em a
Igreja desempenhou um papel fundamental, administrou a ordem social.
Como garantir a organização de uma sociedade que vive a realidade das
diferenças sociais, onde intimamente relacionam-se pobreza e miséria. O Palhaço
ironiza falando a respeito do papel social e político do bispo, num tom de sarcasmo e
interesse. Na minissérie o receptor perde este contato com o interlocutor. Essa fala
que evidencia a política de relacionamento da sociedade de Taperoá desaparece e
os espaços deixados pela fala do Palhaço passam a ser preenchidos pelo romance
de Chicó e Rosinha. E o palhaço encerra o segundo ato (que narra a confusão
gerada pelo enterro do cachorro) ironizando o bispo quando indaga sobre onde está
o padre (SUASSUNA, 2004, p.61-62): “Muito bem, olá, como está Vossa
Reverendíssima, como vai essa bizarria...”, referindo-se ao bispo e responde que o
padre “Deve estar na Igreja”, o bispo o repugna o Palhaço e ao mesmo tempo o
padre. O Palhaço se ausenta: “E agora afasto-me prudentemente, porque a
vizinhança desses grandes administradores é sempre uma coisa perigosa e a
própria Igreja ensina que o melhor é evitar as ocasiões” (SUASSUNA, 2004, p.62).
O Palhaço entre em cena no terceiro ato, para aguçar a percepção do
receptor quanto à cena da morte de João Grilo e de todos aqueles que o Palhaço
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anunciou como canalhas: “Peço desculpas ao distinto público que teve de assistir a
essa pequena carnificina, mas ela era necessária ao desenrolar da história. Agora a
cena vai mudar um pouco. João, levante-se e ajude a mudar o cenário. Chicó!
Chame os outros” (SUASSUNA, 2004, p. 125). Até após a morte a submissão dos
mais pobres, marginalizados socialmente, continua a existir. João Grilo e Chicó são
obrigados a organizar a encenação do julgamento e nenhum dos ilustres
representantes da minoria economicamente privilegiada da sociedade ou que exerça
alguma forma de dominação (como a exercida por Severino) ajudam na tarefa.
O Palhaço justifica junto ao receptor a necessidade de reorganizar o cenário:
É preciso mudar o cenário, para a cena do julgamento de vocês. Tragam o trono de Nosso Senhor! Agora a Igreja vai servir de entrada para o céu e para o purgatório. O distinto público não se espante ao ver, nas cenas seguintes, dois demônios vestidos de vaqueiro, pois isso decorre de uma crença comum no sertão do Nordeste. (SUASSUNA, 2004, p.126)
Quando o Palhaço ordena que tragam o trono, passamos a observar que ele
nos convida a ver as coisas se organizarem em seus devidos lugares (o estado de
poder é auferido a quem é de direito, a Jesus) e ressalta a preocupação do autor em
ilustrar o imaginário popular com a lenda dos vaqueiros. E prossegue sua busca ao
imaginário quando aborda a questão da vida após a morte no momento em que
chama para compor a cena todos os que estão mortos. O estado de morte muda
para a condição de vida quando o palhaço indaga “Agora os mortos. Quem estava
morto?” (SUASSUNA, 2004, p.125).
O bispo, o padre, João Grilo, o padeiro, sua esposa, o sacristão (que não
existe na minissérie) e Severino, são intimados pelo palhaço a tomarem seus
lugares, deitados, mortos menos Chicó a quem pede para se ausentar, pois escapou
a carnificina. Na minissérie esta cena é substituída pela transição entre a vida e a
morte, uma cena que lembra o purgatório onde as almas buscam paz através da
oração ou por intermédio de um santo, no caso Padrinho Cícero, considerado um
santo para o povo nordestino.
Que bem precisada anda disso. Saia e vá rezar lá fora. Muito bem, com toda essa gente morta, o espetáculo continua e terão oportunidade de assistir a seu julgamento. Espero que todos os presentes aproveitem os
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ensinamentos desta peça e reformem suas vidas, se bem que eu tenho certeza de que todos os que estão aqui são uns verdadeiros santos, praticantes da virtude, do amor a Deus e ao próximo, sem maldade, sem mesquinhez, incapazes de julgar e de falar mal dos outros, generosos, sem avareza, sóbrios, castos e pacientes. E basta, se bem que seja pouco. Música. (SUASSUNA, 2004, p.127)
O Palhaço convoca o receptor a vivenciar o julgamento, ironicamente
descreve o antônimo das qualidades que deveriam reger a moral e as atitudes das
personagens. Assim o receptor passa a aflorar no imaginário as possíveis sentenças
que serão atribuídas aos indivíduos que simultaneamente pecaram e cometeram
crimes. A idéia trabalhada retoma uma discussão, formulada no imaginário popular,
de que todos os crimes e pecados que passaram impunes em vida serão
sentenciados em morte.
O Palhaço finaliza sua presença quando o julgamento termina, pois fica
incumbido de reorganizar o palco para retomar a história no momento em que Chicó
prepara a cova para o enterro do amigo. Guel Arraes usa novamente um carro-de-
boi para o transporte do corpo onde Chicó explica que seu amigo por ser pobre não
teve direito a enterro digno, no cemitério, e o que lhe restou foi uma cova comum,
onde seria enterrado como indigente (como citado à página 62).
O Palhaço sai de cena despedindo-se e cantando um romance popular, no
qual ele afirma ter se baseado o autor para compor a história da “Compadecida”:
Meu verso acabou-se agora, Minha história verdadeira. Toda vez que eu canto ele, Vêm dez mil-réis pra a algibeira. Hoje estou dando por cinco, Talvez não ache quem queira. (SUASSUNA, 2004, p.188)
E encerra o espetáculo cobrando do povo humilde, que julga ser seu público,
aquilo que lhe é justo e possível pagar (SUASSUNA, 2004, p. 189): “E, se não há
quem queira pagar, peço pelo menos uma recompensa que não custa nada e é
sempre eficiente: seu aplauso”.
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No trabalho de Guel Arraes o palhaço que desempenha o papel de
interlocutor, presente no texto original de Suassuna, criando a tensão e preparando
os momentos de reflexão desaparece. O frade e o sacristão também saem de cena,
pois tumultuariam, excederiam o número de narrativas de segundo plano que
deixariam lacunas que poderiam saturar a compreensão dos telespectadores. Estes
elementos cedem lugar a Vicentão, Cabo Setenta e Rosinha, personagens de uma
narrativa secundária que comporão uma relação de proximidade com Chicó,
personagem da narrativa primária, criando inclusive o par amoroso, indispensável
para prender a atenção do público de massa que é usuário da televisão.
A eliminação do Arlequim faz com que se minimize o aspecto ideológico do
trabalho de Suassuna. A efervescência do discurso do Arlequim que convida o
receptor a interagir deixa de existir. A TV de um modo geral não pressupõe a
interatividade, normalmente, os produtos televisivos são idealizados para um
receptor que não interage, só recebe (em termos). A inexistência da participação do
receptor na TV passa a ser suplantada pelo trabalho de expressividade e pela
visualização do estereótipo do corpo, dos figurinos e dos cenários enriquecidos
pelos recursos e efeitos especiais que estão à disposição da televisão e do cinema.
Há inevitavelmente uma redução dos vazios, que são preenchidos nas
transcodificações para a TV e cinema os quais, pelas suas próprias características
midiáticas, necessitam de uma compreensão mais imediata e da adesão dos
telespectadores e patrocinadores.
Para compor o personagem de João Grilo, o ator, Matheus Nachtergaele foi
escolhido justamente por possuir os atributos confeccionados no imaginário do
brasileiro, principalmente no imaginário da região sul e sudeste do Brasil, de que o
nordestino possui um biotipo franzino dado condição de pobreza imposta pela seca.
Suassuna satiriza a idéia do estereotipo, agregando atributos como o de mentiroso e
esperto, aflorando no imaginário popular, qualidades que possibilitam uma discussão
sobre o como sobreviver num contexto onde o fator geo-climático e as diferenças
socioeconômicas castigam, simultaneamente, o homem. E o fato de ser “esperto”,
pode garantir um diferencial que permita ao nordestino a sobrevivência. O ator, em
depoimento, que consta no material editado em CD (filme e minissérie), chama a
92
atenção para sua preocupação quanto ao que seu corpo e sua expressividade
deveriam repercutir junto ao público telespectador:
O que eu quis e não sei se consegui, foi fazer com que João Grilo pareça desprovido de qualquer qualidade, tanto intelectual quanto física, mas que na verdade fosse mais esperto e com mais condições de sobreviver de que todos os outros personagens. (ARRAES, 1999)
O ator conta que se inspirou num menino que havia conhecido em
Jequitinhonha e da observação dos moradores de Cabeceiras (cidade cenário). O
menino era vesgo (ele adota essa característica para compor João Grilo) e olhava
para outros imaginando-se um pobre coitado, mas quando conheceu melhor o
menino e sua vida escolar pode perceber que ele era muito inteligente e adotava
aquela “máscara de ignorante”, para se precaver de problemas. Outra observação
do autor está nas leituras feitas de Dom Quixote e Molière, trabalhos que
contemplam a observação do cotidiano do povo e dos golpes que muitos aplicam
para poder sobreviver.
O ator adotou uma prótese dentária para que os dentes ficassem amarelos,
aparentando cáries e tártaro, para lembrar que o brasileiro não consegue incluir em
sua cesta de consumo o atendimento adequado à saúde, nem mesmo a pública. Tal
observação concretizou-se quando passou a observar o povo de Cabeceiras, a
cidade/cenário. Segundo Nachtergaele o povo da cidade era humilde, pobre, mas
esperto o suficiente para sobreviver.
A qualidade de malandro, presente na configuração de João Grilo, torna-se
justificável quando Guel Arraes resgata no Auto a idéia de que o povo brasileiro,
pelo menos a grande maioria é pobre e é formada de “sobreviventes”, que travam
uma luta diária pela vida, que é onde a vida vivida é o presente e o futura é sempre
um enigma. A malícia de Chicó ressalta a idéia de mutação, de que os mais aptos se
transformam e desenvolvem mecanismos para garantir a sobrevivência numa
sociedade caótica e desigual. O malandro, o picaresco, caracteriza a astúcia que o
ser humano procura desenvolver para sobreviver.
93
Já que aos heróis picarescos55 não é permitido o amor, Chicó assumirá o lado
romântico que não existe no Auto/teatro com Rosinha e seus outros dois
pretendentes Cabo Setenta (Aramis Trindade) e o Valentão Vicentão (Bruno Garcia),
fruto da inserção do trabalho de Suassuna “Torturas de Um Coração”. Estes
personagens assumem a voz do arlequim e dinamizam a trama, preenchendo os
espaços que os receptores precisariam completar.
Chicó, interpretado por Selton Mello é mentiroso, pobre e covarde. Suas
empreitadas só funcionam quando João Grilo está presente, demonstrando que a
inteligência do pobre equipara-se à incidência de superdotados na população,
ironizando o estado de ser do povo. Na minissérie, seu romance com Dora, a mulher
do padeiro, concretiza-se como adultério, uma situação que no texto/teatro fica vaga,
incompleta, cabendo ao receptor incorporar ou não o adultério. Na minissérie ela é
uma realidade e não uma possibilidade.
Rosinha (Virgínia Cavendish), o par romântico de Chicó, representará a
aristocracia rural junto com o major Antônio Moraes (seu pai, interpretado por Paulo
Goulart). O major assume a representação do regime real extinto, monarquista,
aristocrático e autoritário (presentifica a menção visual dada ao coronelismo extinto),
que faz questão de estar vivo na sociedade e lembrá-la do status que comporta.
Rosinha surge para dinamizar o espaço do arlequim. O valentão Vicentão, o
malandro, forte, e burro e o Cabo Setenta, franzino, militar e burro incorporam as
narrativas de segundo plano.
O padeiro Eurico (Diogo Vilela) e sua esposa Rosinha (Denise Fraga) são
personagens de primeiro plano na narrativa e representam a pequena burguesia.
São os exploradores da mão-de-obra. As atitudes dos patrões criam espaço para
uma discussão marxista sobre a propriedade dos meios de produção e o papel do
proletário. Será a partir desta ótica que a trama nasce para o receptor, a exploração
dos patrões desperta em João Grilo a busca por saídas da condição sub-humana na
qual vivem ele e seu companheiro.
55 O herói picaresco é envolvido como personagem de primeiro plano na trama. Geralmente o contexto ao qual é inserido, o envolve em situações críticas, mas que acabam por serem resolvidas dada qualidade de astúcia, esperteza ou sorte que lhe é atribuído. Predomina entre os heróis picarescos o discurso humorístico, onde se mescla comicidade e ironia.
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Outra discussão que surge a partir destes personagens é a abordagem do
adultério. Ilustra-se que no momento do adultério a condição social (o status)
simplesmente é ignorada pela busca do prazer. A condição social é abordada a
partir do enterro do cachorro mostrando que a necessidade de consumo e a
satisfação das necessidades estão diretamente ligados aos desejos do povo. No
caso a renda permite suprir uma necessidade, a compra do enterro do cachorro em
latim que para João Grilo, não passa de um capricho, de um gasto supérfluo,
ofensivo quando comparado a sua precária condição social.
O Padre João (Rogério Cardoso) e o Bispo (Lima Duarte) representam o
poder da Igreja, se não com a mesma intensidade medieval56, ainda presente no
cotidiano dos brasileiros, o suficiente para manutenção da ritualização das práticas
cristãs. A Igreja não escapa do pecado e da corrupção que o dinheiro provoca,
burlando leis para receber dinheiro. O Bispo somente concorda com o Padre, quanto
ao enterro do cachorro em latim, quando sabe que é contemplado com dinheiro no
testamento do cachorro. O Bispo comete falta muito mais grave do que o Padre, pois
este percebe o erro e amedronta-se, mas o Bispo sabendo que iria beneficiar-se
cala-se e consente burlando as leis canônicas. O preconceito e o autoritarismo são
expostos, de maneira a relembrar a luta pela conquista do espaço social pelos
negros. O preconceito contra o negro existe no momento em que o público descobre
que Jesus (Maurício Gonçalves) vem figurado como negro, num Brasil que se
pretende branco.
MENDES (1982, p.11), quando estuda a figura do negro em sua obra A
personagem negra no teatro, lembra que o negro é pensado quase que
predominantemente no plano da escravidão. A participação do negro no teatro em
papéis de primeira narrativa é relativamente pequena. Na TV essa participação
cresce, mas o negro enfrenta ainda muitas dificuldades para assumir narrativas de
primeiro plano.
A figura negra que surge nos textos teatrais (quase sempre são os heróis
personagens-objetos) não é representada por aquele que está escravizado, mas por
56 A Igreja medieval atribui-se a representação suprema do poder. Todos os fatos do cotidiano ou aqueles que fugiam dele eram explicados a partir da ótica espiritual.
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aquele que é liberto e liberta os demais. Sugere discursos ideologicamente
iluministas entre os homens, das diferenças sociais e do conflito de classes, que se
choca com a reflexão do racional e do irracional, do papel de Deus na sociedade. No
Auto o negro assume a posição de objeto-personagem, está presente no conflito
principal e é ele que tem o poder de fazer ou desfazer, condenar ou inocentar os
réus. O poder outorgado ao “Cristo Negro”, como a própria fala do personagem
afirma, vem para escandalizar, causar estranhamento e quebrar aquele paradigma
barroco de leitura do Cristo branco, europeizado.
O cangaceiro Severino (Marco Nanini) e seu capanga (Enrique Diaz),
representam a parcela da população que luta contra um estado, uma situação
política e socioeconômica. Na verdade há a alusão aos movimentos sociais e
políticos, principalmente o de Canudos, a Antônio Conselheiro e a Lampião, o rei do
cangaço. Severino representa a disputa entre esquerda e direita, entre politicamente
dominantes e dominados. A reflexão emanada dos cangaceiros é a da luta pelo
poder entre uma minoria, pois as massas servem apenas como instrumentos, que
são manipulados para obtenção de um propósito e quando deixam de ser
necessários passam à condição de excluídos e marginalizados.
O Diabo (Luis Melo) discute a questão da identidade, o ser e o parecer. O ser
e parecer de João Grilo sugere que mesmo ele sendo malandro, é inocente pela
necessidade de sobreviver a qualquer custo. Já para Severino a situação é diferente
pois só no final da trama é que se conhecem os fatos que poderiam justificar suas
atitudes desumanas pelo fato de um dia terem tirado sua família de modo cruel,
criando um trauma instransponível e levando-o ao crime. O Demônio assume essas
várias faces imorais das personagens e acaba submetendo e corrompendo o
homem levando-o a atos socialmente reprováveis. Novamente o irracional assume
destaque sob o racional.
No Auto da Compadecida, temos o Diabo grotesco descrito por LE GOFF
(2002, p.326) como:
[...] deve se ver no Diabo grotesco uma forma de compromisso que permite reintegrar mecanismos de inversão no seio da própria cultura dominante. Manifesta-se, assim, a complexidade e a ambivalência da figura do Diabo,
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na qual se mesclam poder e debilidade, terror e comicidade, dominação social da Igreja e inversão paródica.
No Auto, o Diabo e Demônio são representados pelo mesmo ator. A diferença
é que quando ele se zanga e quer demonstrar o poder que acredita exercer sobre os
homens, usa a forma monstruosa disseminada no imaginário popular, ora homem
(Demônio), ora animal (antropoformização - Diabo). Nada comum a este imaginário,
temos uma estratégia de persuasão que causa estranhamento, tornando-se mais
convincente: o bem (os Dez Mandamentos) explicados pelo mal (o diabo). Sua
presença no Auto é para ressaltar o pecado, explicado nos dez mandamentos e
exaustivamente proibido pela Igreja. Assim, compreende-se a simpatia que esse
personagem provoca no receptor, num primeiro momento (tanto em Suassuna
quanto em Gil Vicente), afinal é ele que denuncia os corruptos – o padre, o Bispo,
Dorinha, o Padeiro, Severino e João Grilo.
Pecado _ (lat. Peccatu = transgressão) _ falta voluntária e consciente a uma prescrição ou lei, em especial aos Mandamentos da Lei de Deus e da Igreja, pode ser por palavra, pensamento, obra ou omissão; pela confissão sacramental é apagado. (MAIA, 1966, p.117)
E é Nossa Senhora (Fernada Montenegro) que surge no Auto para advogar (a
realidade do autor _ o advogado Suassuna _ se mescla à realidade da advogada
dos pobres e pecadores) em favor dos homens, apaziguando o julgamento de Jesus
e descaracterizando os pecados duramente arrolados pelo Diabo. Ela está no meio
dos extremos (Jesus/Diabo).
A figura de Nossa Senhora remete aos estudos medievais sobre o “amor
cortês”. ELIADE e COULIANO (1999, p.101-131), no Dicionário de religiões,
registram um vasto estudo sobre a Dama (despida do pecado e representada por
Maria, a Mãe de Jesus), pura, despida do amor carnal que tem a permissão de
dirigir-se à figura da Santíssima Trindade e realizar obras junto aos homens
intermediando o diálogo junto a Deus. A idéia de Nossa Senhora intermediando o
diálogo com a Identidade do Santíssimo, criou o viés para que novas Damas fossem
cultuadas recebendo denominações as mais diversas: Nossa Senhora Aparecida,
Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora Auxiliadora, Nossa Senhora desatadora
de Nós etc.
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A personagem de Nossa Senhora assume a condução da trama, advogando
contra o Demônio/Diabo. Contextualiza o ritmo dos dias, o cenário de vida e as
maneiras de viver, de habitar, de ser e parecer dos seres humanos, da sorte e da
divina providência e se compadece do destino dos homens, dos sofrimentos e do
medo que sublinha todos os atos da vida: medo de sofrer, medo de morrer, medo de
perder o amor, o dinheiro, os amigos, a própria vida.
Tanto que, no julgamento, todos conseguem, por intermédio de Nossa
Senhora, auxiliada pela vivacidade de João Grilo reduzir suas penas indo do inferno
para o purgatório, salvo Severino a quem Jesus atestou insanidade, concedendo-lhe
o céu devido à chacina que assistiu quando seus pais foram mortos.
Tradicionalmente, a esperança cristã intensa estava na sobrevivência depois da morte e na recompensa celeste pelos méritos acumulados durante a vida. Simetricamente, o demérito acarretava a punição no inferno. O Juízo Final tornaria eternos os castigos e os favores transitórios. A idéia de purgatório para expiar os pecados veniais só apareceu, como demonstrou Le Goff em Naissance du purgatoire (1981), entre 1024 e 1254, período que coincide com a extraordinária proliferação de Apocalipses que descreviam uma visita ao paraíso e ao inferno. O mais antigo é Visio Beati Esdrae, provavelmente do séculoX, seguem-se Visão de Adhmhnan, da Irlanda (século XI), Visão de Alderico Montecassino (1111-1121), Visão de Tundale (1149), Tratado do Purgatório de São Patrício (1189), etc. A Divina Comédia de Florentino Dante Alighieri... (ELIADE; OULIANO,1999, p.127)
A idéia do purgatório data da Idade Média e passou a ser utilizada nos autos
para efeito de catequização. Mas no Auto da Compadecida embora João Grilo fosse
o causador de toda a confusão, não passou de um instrumento para que a Divina
Providência fosse posta em prática. Ao amarelo safado foi dada uma segunda
chance, ironizando o Demônio/Diabo de maneira a colocar o seu poder em
discussão.
Guel termina seu trabalho mostrando a volta de João Grilo à Terra, como uma
segunda chance e encerra com o desfecho do casamento de Chico e Rosinha, que
acaba deserdada pelo pai, e mais uma vez o golpe dos amigos cai por terra. Guel
Arraes fecha com chave de ouro, fazendo uso dos ditos populares, uma inovação da
leitura do Auto. Nas cenas finais, Jesus se configura como homem e vem a Terra,
testar a bondade dos homens. Assim, encontra João, Chicó e Rosinha e pede um
pouco de comida e Rosinha lhe dá um pedaço do bolo de seu casamento com
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Chicó, mesmo contra a vontade de João que acabara de ser absolvido por aquele
mesmo Cristo negro. E complementa dizendo que às vezes Jesus se veste de pobre
e vem à Terra testar a bondade dos homens e João retruca dizendo que aquele
homem não corria o risco de ser Jesus, “queimadinho daquele jeito”.
3.4 O cenário
O enquadramento buscado por Guel Arraes deveria remeter o público a uma
leitura do Brasil nordestino, que se lembra de Lampião e seu bando, recordando a
pobreza e a humildade do povo nordestino. Deveria também comportar os
elementos culturais, e embora não exponha o pífano nas cenas, ele está presente
na trilha sonora. São várias as cenas em que o pífano toca e alerta que há um
tensão elevada, preparando o telespectador para um desfecho da narrativa.
A musica picaresca, que lembra um ar de malandragem, de brincadeira de
roda, não conseguiu conexão com a própria cidade de Taperoá. O problema da
preservação das fontes históricas, também chegou ao interior nordestino. A cidade
de Taperoá por não guardar mais as características originais não pode recepcionar
as filmagens do Auto, que acabaram sendo realizadas na cidade vizinha de
Cabeceiras. Trinta e oito cidades foram percorridas em dois dias, para que se
encontrasse o cenário ideal para filmagem.
Não que Cabeceiras estivesse preservada, mas o fato de conseguir encontrar
pelo menos três ruas que guardavam as características originais da infância de
Suassuna, levaram a equipe a escolher Cabeceiras que é uma cidade vizinha de
Taperoá, como cenário do filme. Postes e ruas inteiras foram redimensionados e
preparados para a filmagem. As pessoas do município foram aproveitados e
ensaiados para a figuração.
A fazenda de Antônio Morais foi filmada em João Pessoa e aclimatizada à
cidade de “Taperoá”, pela existência de um elemento comum, a existência de uma
planta rasteira comum a ambas as regiões.
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A encenação do “Juízo Final”, segue sugestões do original do texto/teatro,
que convida o uso do espaço público ou da entrada (escadaria) de uma Igreja. No
caso toda a influência medieval57 que Suassuna sofre em seus trabalhos é
alegorizada pelo cenário barroco. O cenário do julgamento é preparado no interior
da Igreja.
Os figurinos são criados tendo como base os anos 30. Para João Grilo e
Chicó trapos e chapéu. Para o Padre e o Bispo as túnicas, que seguem a
ascendência hierárquica, a do Bispo é mais vistosa e imponente. Para Antônio
Morais o linho, para Rosinha algodão e rendas. Para o padeiro o traje de trabalho e
um lenço que lhe esconderia os adornos involuntários do adultério. Para Dora
roupas de cores vivas, que desenham a silhueta feminina, convidando ao pecado,
bem diferentes das de Rosinha. A pintura e o batom vermelho de Dora também
convidam ao pecado. Os cangaceiros vestem-se com trajes de couro retratando
trajes típicos da região e usados no cangaço. Para o cabo a farda, para Vicentão o
trivial, para Jesus e Maria, muito dourado e azul, que representam o esplendor
divino. O diabo ora recebe um manto escuro, viscoso e arcaico (quando homem) e
ora uma configuração monstruosa que lembra um morcego com cabelos de gueixa.
Cenário e atores são fundidos a um contexto para a visualização e significação junto
ao telespectador.
A construção das personagens na transmutação do texto/teatral para o
televisivo mostra-nos a preocupação de Arraes em escolher os atores certos para os
respectivos papéis, uma vez que a criação dos tipos populares no Auto é
fundamental para a compreensão da obra. Acrescente-se a preocupação com os
figurinos, a simbologia das cores que os compõem e o cuidado com os cenários e
pode-se perceber que o telespectador fará uma interpretação conduzida pela leitura
do diretor.
57 Quando nos referimos a influencia medieval, não consideramos apenas a composição textual no formato de auto, nem o teor ideológico da doutrina católica, mas também consideramos a rusticidade material. Torna-se necessário resgatar a precariedade dos cenários dos autos populares e a riqueza dos autos natalinos ou destinados a nobreza. Suassuna não realiza simplesmente o resgate da rusticidade, o autor, apresenta a realidade rude, rústica do sertão nordestino. O processo de recepção terá intensidade diversa, pois, dependerá do envolvimento do receptor no contexto real que lhe é apresentado. O impacto da mensagem será mais intenso para uns e menos para outros, isto significa que independe de viver ou não a realidade que nos é apresentada pela plasticidade rústica do teatro popular de Ariano Suassuna.
100
Os trajes foram trabalhados de maneira a possibilitar uma comunicação não
verbal. As roupas das personagens foram surradas para evidenciar os indivíduos
desprestigiados economicamente, fazendo saltar a vista do receptor, o estado de
pobreza. Nas notas de produção de Guel Arraes, a diretora de arte comenta sobre a
necessidade de trabalhar o figurino, de maneira a obter um aspecto de
envelhecimento e de sujeira. Já a parcela mais abastada economicamente, o
figurino é confeccionado em linho e rendas (usou-se até os bordados para toalhas
para compor o figurino de Rosinha), que remetem a idéia de que apenas os coronéis
ou pessoas ricas podiam comprar roupas de linho. O figurino denuncia a classe
social e insinua até mesmo o cárter de alguns personagens, como por exemplo, o de
Dora. A mulher do padeiro é visualizada pelo receptor, segundo a leitura de Arraes,
como uma mulher fogosa, atrevida, com roupas justas que delineiam as curvas
femininas, sugerindo que não é o figurino mais apropriado, para uma dama que
deveria cumprir as convenções58 da sociedade de Taperoá.
O desaparecimento de personagens do texto teatral como o Arlequim, o frade
e o sacristão diminuem a possibilidade de confusão por parte do telespectador e o
acréscimo de Rosinha (namorada de Chicó) e seus pretendentes Vicentão e Cabo
Setenta permite a inclusão do par romântico separado pela classe social e
ameaçado por rivais truculentos. Assim sendo, os telespectadores aderem ao par
Chico e Rosinha, compartilhando seus problemas e permitindo a interatividade entre
o texto e o receptor.
Constatadas as providências tomadas pelo diretor para montar uma versão
televisiva da peça, evidenciando-se sua leitura pessoal através da construção das
personagens, torna-se indispensável verificar a funcionalidade do espaço em sua
interação com o receptor, assunto que será desenvolvido no capítulo seguinte.
58 Essas convenções estão presentes em toda a sociedade, os mais conservadores não admitem que o corpo humano, principalmente o feminino, seja exposto, pois acarretaria em vulgarização e até mesmo em pecado, contrariando os preceitos religiosos, onde a mulher é tomada como o espelho de boas condutas, e para tais reflexos deve se comportar como tal, indicando que a sociedade cobra um moralismo de uma parcela da sociedade e permite a outra.
101
102
IV O ESPAÇO COMO INTERAÇÃO COM O RECEPTOR
A interação entre o receptor e a obra, está diretamente relacionada ao
processo de criação. Quando pensamos no como será absorvida pelo receptor
pensamos no como este contato será arquitetado, o como criar e alegorizar o
contexto – texto, cenário, figurino, atores, musica – para gerar significado.
O teatro erudito exige um preparo do público, uma possibilidade de ler a obra
no eixo paradigmático e não apenas no sintagmático. Quando consideramos esta
possibilidade e necessidade do teatro erudito, não podemos afirmar que no teatro
popular a leitura paradigmática não exista, mas predominantemente fica subtendida
no imaginário coletivo e é decodificada num compasso mais lento. O impacto da
mensagem sob o receptor, quando uma peça é representada por atores
profissionais é diferente do causado por atores amadores.
A leitura dos trabalhos de Suassuna revela a preocupação do como criar uma
obra que permita a existência da recepção, ou no caso de Guel Arraes da audiência,
junto a um público diverso. Outro problema está na possibilidade interpretativa aos
olhos de quem vê a encenação de atores amadores e a de atores profissionais. A
tarefa torna-se laboriosa, principalmente quando consideramos que ler culturalmente
um segmento social é uma tarefa complexa tão quanto definir o que significa a
cultura (BURKE, 1992, p.19-25).
Suassuna pensa sua obra como um erudito, mas necessita criar uma
possibilidade de recepção que proporcione o relacionamento e a leitura numa
sociedade heterogenia. A leitura que Suassuna faz do contexto popular, será
alterada pela leitura que os atores fizerem da obra. Será o horizonte de expectativas
dos atores, amadores ou profissionais, e ainda a leitura televisiva de Guel Arraes
que estabelecerá o contato com o receptor.
103
Nesse sentido consideramos que a obra está em vias de reconstrução,
admitindo que o receptor assimile a leitura que o autor faz da obra, salvo quando a
proposta de direção, principalmente na televisão, define a trajetória de
expressividade junto ao receptor. O receptor lê a obra e na obra aquilo que lhe foi
permitido ver.
Suassuna pretende no Auto da Compadecida explorar e expor uma leitura
cultural que admite a observação do movimento histórico da trajetória humana. A
leitura desta trajetória histórica, segundo BURKE (1992, p.19-25) só é possível
quando lemos nas entrelinhas o cotidiano de uma dada sociedade.
Quando pensamos na história como sujeito em movimento, temos uma
realidade que demonstra que o paradigma de organização social também está em
movimento. A noção de movimento é citada por BURKE, quando estuda a história
da mulher e do homem, a história dos objetos, a eco-história, de maneira a conduzir
um estudo que permita a visualização do contexto cultural, contexto no qual se
admite a coexistência da realidade de tão diferentes estanques dados como
exemplo.
Esta noção de movimento no teatro, não é possível como nos efeitos da TV.
Na televisão os efeitos técnicos permitem uma elaboração estética (da
expressividade, do cenário, do figurino, da música) que causa um impacto de
significância maior. Na TV o recorte do contexto torna-se mais acentuado, pois é
possível refazer a encenação, o que já não é possível no teatro, pois pode interferir
na leitura sintagmática da obra, provocando a perda do movimento.
Percebemos que no Auto da Compadecida, Suassuna pensa sua obra num
contexto em que se admite a história como sujeito em movimento, assim temos uma
cultura em movimento. Quanto à definição de cultura, temos a preocupação de
BURKE (1992, p.21) quanto à existência de uma “cultura popular” e a “cultura do
povo”. Para BURKE, a falta de clareza a respeito do tema, em países como o Brasil,
culmina na definição da cultura popular como a “história do dominado”,
assemelhando-se as idéias de subordinação firmadas no Pacto Colonial. Outra
104
definição está na enunciação da “história vista de baixo” 59, que presa o cotidiano de
uma sociedade onde não sobrepuja o sujeito e sim as praticas e representações.
Um ponto que nos chama atenção no Auto da Compadecida, esta relacionado
ao questionamento dos sujeitos envolvidos no contexto religioso. BURKE (1992,
p.22) aponta que se à Igreja se reveste da função niveladora, de proporcionar uma
melhora nos relacionamentos sociais não seria propício que “Uma história da Igreja
vista de baixo deveria encarar a religião do ponto de vista do leigo, seja qual for sua
condição social?”. O espaço no qual Ariano Suassuna discute o social e o político, o
ambiente de inserção do povo. BURKE visualiza que a sociedade é composta pela
mescla de sujeitos destacados (heróis, reis, políticos) no percurso histórico àqueles
imersos no cotidiano, e é neste cotidiano que as transformações ocorrem, sem que
sejam percebidas instantaneamente, o movimento do sujeito sociedade, ou da
coletividade é menos perceptível.
No Auto da Compadecida, esses sujeitos são expostos num contexto,
recortados da realidade social, e depois lidos numa virtualidade a qual chamaremos
de ficção que propõe a exposição do imaginário coletivo, que comporta a cultura de
povos que constroem uma identidade e que desejam serem percebidos por suas
particularidades. Quando BURKE se preocupa com a definição da cultura popular
ressalta que o conceito de “cultura” e o termo “popular” guardam particularidades, e
dificilmente permitem o esgotamento completo, capaz de comportar uma única
leitura que as possa fundi-las num só contexto, que proporcione a definição do todo.
Quando BURKE busca entender, por uma noção ampla, o conceito de cultura,
apóia-se no que Hunt (apud, Burke, 1992, p.23) aponta como a cultura na nova
historia, onde: “O estado, os grupos sociais e até mesmo o sexo ou a sociedade em
si são considerados como culturalmente construídos”. Ao considerarmos que a
sociedade é estruturada, construída, consideramos que os sujeitos a constroem de
maneira à externalizar comportamentos ou valores que podem estar presentes numa
sociedade e em outra não, que também podem ou não ser aceita por estas
59 Esse novo olhar da história surge do movimento da Escola dos Annales (1929-1989), que foi considerado como a “Revolução Francesa da Historiografia”, pois contempla a interdisciplinaridade, admite a história serial, a longa duração o estruturalismo e o aspecto conjuntural. Ver BURKE (1991).
105
estruturas sociais. Temos formados neste momento diferentes escopos que buscam
interpretar a relação entre os sujeitos de uma dada sociedade no momento da troca
de experiências, de apropriação ou de um processo endógeno que tende ao
movimento, sujeitando-se a modificações. BURKE busca em Júri Lotman (apud,
Burke, 1992, p.23) a concretização do conceito de cultura popular quando atenta
que para Lotman que as sociedades estabelecem regras que normatizam a
organização social buscando garantir uma projeção futura da estrutura social,
através da ritualização, da prática cotidiana.
A história social e a prática social são ritualizadas no cotidiano. Os rituais do
cotidiano ilustram a maneira de comer, falar, vestir, pensar e agir, que para os
próprios praticantes não são visualizados. São apenas olhos de um aguçado
observador, como os de Suassuna, extrínseco à realidade cotidiana, que as toma
como rituais. Este observador tende a expor as práticas cotidianas que para o
próprio grupo tendem a permanecer invisíveis, de que o grupo está em movimento,
em transformação, temos um quadro de pseudo acomodação ou inalterância.
No espaço de interação, entre Suassuna (sua obra) e o receptor, temos a
visualização do cotidiano através da caricatura contada num contexto que admite a
história vista de baixo, carnavalizada, que através da comicidade reflete o cotidiano.
Para SCARLATTI (p.129) a “[...] caricatura é a síntese das imperfeições extraídas da
vida real. Não admira, por conseqüência, que ação cômica e sua linguagem
representem um testemunho magnífico dos costumes nas várias épocas”.
SCARLATTI explora no cotidiano a miséria, elevando o trágico a categoria de
comicidade. É através da comicidade, que no teatro, o receptor é preparado para
observar a decomposição do tecido espiritual, onde se permite mostrar, expor e
ridicularizar o outro e nunca a si mesmo. SCARLATTI resgata um estudo de Bergon
sob a obra do filósofo Le rire que considera o cômico no teatro como o momento em
que:
O lado da pessoa pelo qual ela se assemelha a uma coisa, esse aspecto dos acontecimentos humanos que imita – pela sua grosseira de um gênero particular – o mecanismo puro e simples, enfim, o movimento sem vida. O cômico exprime uma imperfeição individual ou social que perde um corretivo imediato. (Le rire, apud Scarlatti, 1945, p.125)
106
O tom cômico que o Auto da Compadecida encerra a exposição do corretivo
observado por SCARLATTI quando resgata os estudos de Bergon. É nesse limiar,
comum quase invisível a percepção popular, que SUASSUNA, resgata a riqueza no
ambiente popular que encerra a coexistência de culturas e crenças diferentes.
Suassuna pretende expor o cotidiano do nordestino, reservando um espaço para
expor elementos comuns a toda sociedade, e o teatro e a TV, permite a exposição
do outro sem comprometimento imediato com o público, permite num primeiro
momento esquivar-se da responsabilidade daquilo que foi exposto através da
comicidade. Assim o processo de criação mostra a relação direta com a recepção, o
grau de percepção do como cada indivíduo percebe a si mesmo na obra (ou de se
ver/ler no contexto), depende do como o seu cotidiano é mostrado.
4.1 Da teatralidade a obra televisiva
Os artifícios do estranhamento e do enquadramento encontram-se presentes
em toda a obra, pois no trecho do “cavalo bento”, não só se configura o impacto do
“causo” estranho do cavalo de Chicó mas se acrescenta a pergunta impertinente e
irônica de João Grilo, que indaga de Chicó se foi ele quem pariu o cavalo que diz ter
tido. Assim o processo de recepção exige do leitor um estreitamento com o fato
citado, envolvendo o receptor num processo de construção mental da cena e
instalando-se uma ligação ainda maior na recepção do texto. No texto/teatro este
estreitamento é intensificado através do cenário, do trabalho de pré-expressão e da
construção da expressão corporal propriamente dita, adaptada aos diálogos com a
presença do Arlequim que reúne as funções de narrador, e, às vezes, do próprio
coro do teatro grego, explicando e sublinhando os fatos, além de criar expectativas e
tensões sobre o desenrolar da trama.
O teatro pode ser visto como um fenômeno da comunicação, uma vez que
pode assumir as características de um espelho, que reflete o contexto do coletivo e,
dentro desse contexto, leva o receptor, individualmente, a ver sua imagem, refletida
e representada no palco, o nosso espelho. Este espelho encerra dentro de sua
moldura um recorte do contexto e conflitos do cotidiano, cuja intenção está
justamente em provocar reações de captação conforme BULIK (2001, p.49) do que é
107
“[...] semelhante/diferente, identificado/distanciado, ambos os elementos
confundidos/distintos, da relação ator/espectador”.
BULIK continua explicando que a comunicação teatral pode estabelecer uma
via de duas mãos onde atores e espectadores criam e refletem entre si identificação
e consciência, uma vez que se estabelece uma participação com alternância entre
ambos, ou configuram um processo de dominação por uma das partes caso não
haja uma constante de alternância na participação, como demonstra BULIK (2001,
p.50):
Pode-se dizer que não há verdadeiramente comunicação no teatro se não à medida que se realize uma boa alternância de participação identificatória/consciência refletida: a relação participação/consciência não sendo constante, uma das duas partes pode, segundo o caso, mais ou menos, dominar a outra qualitativamente. Sem dúvida a teatralidade é um conceito fluído.
E continua (BULIK, 2001, p.50):
No teatro, a comunicação é a ação de fazer participar um indivíduo ou um grupo de indivíduos (os espectadores) situado(s) em uma época em um dado ponto (agora na sala de espetáculo) das experiências stimuli do meio ambiente de um outro indivíduo ou grupo de indivíduos (os atores) situado(s) em uma outra época em um outro lugar (aqui no mesmo momento e praticamente no mesmo espaço, mas simulando um outro).
O contexto de teatralidade faz-nos pensar no processo de recepção, do ponto
das avaliações, começando por refletir quais são as posturas que os receptores
desencadearão, quais as possíveis a serem feitas dado o quadro do “dito e do não
dito”. Pensar como a informação repercutirá na leitura temporal do receptor, uma
vez que este realizará uma leitura de transposição do tempo do quadro apresentado
para seu tempo de receptor. A informação será processada, segundo a gama de
possibilidades que forem apresentadas no quadro, indo de encontro ou não ao
horizonte de expectativas do receptor. Assim o receptor é levado,
inconscientemente, a notar que existe algo a ser identificado na mensagem (o
código), para que esta seja completa (representada).
Esses espaços e lacunas do texto constituem-se em vazios do discurso, a
serem preenchidos para que possam viabilizar a plena leitura da mensagem. O texto
108
deve prover seu destinatário de elementos que forneçam uma orientação
conduzindo o receptor à interpretação da mensagem. O trajeto da recepção
televisiva deve ser percorrido sob a orientação do narrador, dada através de
estratégias, que devem ser representadas e relacionadas, evitando que haja uma
desconexão entre as ações, os objetos e as personagens. A prática do
estranhamento, presente no texto de Suassuna, configura-se como uma chave , que
abre um leque de inferências e analogias, possibilitando a cada receptor sua própria
compreensão da minissérie, segundo seu repertório, sua mundivivência e sua
capacidade intelectual.
4.1.1 Teleteatro
A evolução dos meios de leitura concretizada pelo advento da imagem
proporcionou à população ver e não ler as obras, os jornais e revistas. A leitura
passa a incorporar o movimento, as cores, objetos animados e inanimados, os sons
que eram criados pelo imaginário e agora aparecem nos temas das personagens e
espaços criados nas peças televisivas. A TV faz parte da dinâmica da modernidade,
que mostra ao receptor, através de um o processo contínuo, diferentes recursos que
visam tornar a mensagem cada vez mais clara, evitando interpretações aleatórias e
conduzindo o telespectador a conclusões comuns. Eliminam-se as leituras
individuais em prol de uma leitura coletiva, uma vez que a TV, pela sua rapidez, não
deixa muito tempo para reflexões do receptor. O texto teatral é mais livre e a mídia
televisiva tem exigências mercadológicas e de consumo que não permitem muitos
desvios.
A evolução dos processos de comunicação tornou-se possível com a
modernização das diferentes mídias. Do texto escrito passamos ao teatro e ao rádio,
daí passamos para a era da imagem, do visual, numa sociedade de consumo que
projetou a TV, que moldou o cinema, que dinamizou as informações e as ilustrou,
sob diversos ângulos, inclusive pela internet, contingenciando a possibilidade de
veicular qualquer informação e dinamizá-la.
Segundo MARTIN-BARBERO e REY:
109
Desde o princípio, a imagem foi ao mesmo tempo meio de expressão, de comunicação e também de adivinhação e iniciação, de encantamento e cura [...] daí sua condenação platônica ao mundo do engano, sua reclusão/confinamento no campo da arte e sua assimilação como instrumento de manipuladora persuasão religiosa, ideológica, de sucedâneo, simulacro ou malefício. Inclusive seu sentido estético se encontra com freqüência impregnado de resíduos mágicos ou ameaçado de disfarces do poder político ou mercantil. Diante de toda esta longa e pesada carga de suspeitas e desqualificações é que abre caminho um novo olhar que, por um lado, descobre a envergadura atual das hibridações entre visualidade e tecnicidade e, por outro, resgata as imagísticas como lugar de uma estratégica batalha cultural. (2001,16-17)
Na visão dos autores, o peso do meio TV, está na “mudança de
discursividade”, e nas “novas competências de linguagem”, para públicos
indiferentes, alienados que não se preocupam com o teor ideológico da obra de arte,
mas antes buscam uma ocupação do tempo ocioso, que não cabe numa dinâmica
tecnicista, evolutiva e capitalista. Lembrando que o engendramento da arte situa-se
no geno-texto onde a “competência da linguagem” é pensada para ser concretizada
no feno-texto, temos imediatamente a preocupação quanto à escolha da mídia para
o contato com o emissor. A mídia selecionada para o contato também seleciona: se
a escolha é a TV, torna-se produto da cultura de massa e não há como selecionar o
público; se o veículo for o teatro popular, por exemplo, o de rua (ao ar livre), o
público disposto a observar o espetáculo mostrará que há afinidade com a
mensagem, há uma pré-seleção; se o espetáculo for num teatro (espaço/prédio)
público ou privado, tanto o emissor quanto o receptor, simultaneamente,
selecionaram e foram selecionados para o espetáculo. Há nesta última situação uma
busca recíproca.
Transmitir a arte no formato TV exige um estudo profundo, junto ao emissor
para identificar a aceitação ou não do trabalho pelo receptor. Na montagem
televisiva de Guel Arraes há forte influência do fenômeno que os autores descrevem
por teleteatro60, onde são resenhadas algumas manifestações da arte culta como,
por exemplo, as comédias satíricas adaptadas para a TV e para a leitura da massa.
A princípio, o teleteatro foi incorporado à TV pelos colombianos pós 1955, seguida
dos musicais e shows. No Brasil, principalmente na década de 70, o discurso dos
programas de humor exigia um tom satírico “suave”. O momento inspirava cuidados
60 Sobre teleteatro ver MARTIN-BARBERO, J.; REY, Germán. Os exercícios do ver. São Paulo: Senac, 2001. p.123-124.
110
para que não houvesse conflito ou perseguição política do regime militar. A ficção
dos textos de teleteatro no Brasil tem sua origem no formato colombiano que aos
poucos, foi cedendo espaço para o surgimento de novos formatos televisivos que
seriam vendidos ao público, por intermédio de anunciantes comerciais. Os
anunciantes introduziram-se na mídia televisiva por meio de estratégias comerciais
de merchandising61, medidas pelo IBOPE (Instituto Brasileiro de Opinião Pública),
MARPLAN, na década de 50 e 60 pela CIESPAL (Centro Interacional de Estudos
Superiores de Educação para América Latina).
O problema do formato está justamente no valor ou custo da produção, que
limita a construção e término da trama à possibilidade de financiamento. A
programação diária do teleteatro permite a existência de uma programação dos fatos
a serem narrados e para que o que receptor/consumidor sinta-se atraído a continuar
assistindo ao programa no dia seguinte. É preciso criar um tensor, um momento de
suspense que deve desencadear um estado de alerta que prenda o telespectador ao
programa.
O tensor (“brake”), ou motivo de ligação de uma cena a outra, de um capítulo
a outro cria a expectativa, suscitando a necessidade de continuar acompanhando a
trama. Mesmo que o receptor perca um capítulo, este terá condições de recuperar o
enredo, resgatando a ligação e a comunicação com o objeto, o que se torna possível
pela inserção das “chamadas”. As chamadas estão presentes nos comerciais e têm
a função de lembrar onde a obra foi interrompida, fazendo um breve apanhado do
capítulo através das cenas terminativas, ou seja, das cenas que comportam
desfechos de idéias ou situações. É importante colocar que há um traço do
teleteatro que se assemelha ao modelo de literatura de cordel, também se utiliza da
tensão diária dos capítulos oferecidos aos leitores pouco a pouco.
Quando o Auto passa a ser pensado como adaptação televisiva, Suassuna
teve uma grande preocupação em não deixar que elementos de “merchandising”
distorcessem a integridade da trama. Como há presença maciça de “merchandising”
nas telenovelas brasileiras, Suassuna exigiu que essas interferências não viessem a
61 Ibid., p.67-68.
111
ser incorporados na leitura televisa do Auto, para não dividir o espaço com suas
personagens. Suassuna é contra o relacionamento de marcas e produtos
mercadológicos com a produção artística. Para Suassuna, a TV contemporânea tem
contribuído para deterioração da cultura de raízes, com a inserção da cultura de
massa da sociedade de consumo americana, acelerando a desconfiguração das
raízes nacionais. Suassuna recusou-se a receber os prêmios Sharp e Nestlé, e,
embora não discrimine quem o faça, simplesmente não quer se sentir ligado ao
“merchandising”. Suassuna não é contra a TV, é contra o formato e a ideologia
puramente consumista que não se preocupa com a preservação da memória cultural
de uma nação. Em entrevista, Suassuna diz:
Contra a cultura americana eu não tenho nada, eu gosto muito de Herman Melville, o autor de Mobydick; agora querer que por causa de Melville eu aceite um imbecil como Elvis Presley, Madonna, Michael Jackson, esses idiotas completos. Eu vou lá baixar meu nível para esse pessoal? Ah! Tenha paciência. (ROSCHEL, Renato, 2002, disponível em www.speculum.art.br/module.php?a_id=91)
É uma arte pensada da elite capitalista para uma sociedade de massa que
comprará bens e serviços da indústria cultural, encontrando na arte um subterfúgio
para se sobressair sobre a concorrência, na busca de consumidores. A programação
permanece, em função do consumo, pois o patrocínio garante a exposição do
programa. Se por exemplo o IBOPE cair, o patrocínio é retirado e a novela deve
acabar.
O formato minissérie permite a organização da trama em um espaço/pré-
determinado, sendo gravada do começo ao fim, o que lhe possibilita maior unidade e
coerência interna. O fluir da trama não irá depender da menor ou maior audiência
para diminuir ou aumentar a sua duração e a importância ou permanência das
personagens. Diferentes formatos de programas como, por exemplo, jornais,
programas humorísticos, minisséries, dividem o mesmo espaço na mesma emissora
e o IBOPE determinará os que irão permanecer e os que se tornaram inviáveis.
Obras literárias clássicas e modernas (com ou sem qualidade artística) transitam no
formato das novelas às minisséries, cujo público alvo ainda é o da sociedade de
consumo, que encontra à sua disposição o trabalho exibido em outros formatos
próprios para o consumo, como fitas de VHS ou CD/DVD (Compact Disc/ Digital).
112
Neste ponto temos a tecnologia moderna, transformada em realidade de mercado, o
que leva os profissionais da arte a se incluírem, voluntária ou involuntariamente, no
mundo capitalista.
A arte também tem custos e por isso precisa ser valorizada e, como todos os
bens e serviços, trocada por seu valor de uso e expressividade. No caso do Auto o
sucesso da versão para TV de Suassuna já era previsto pelo próprio Arraes, em
notas extras, editadas na versão CD:
A idéia de adaptar o Auto da Compadecida para o cinema e a televisão é antiga [...] Para mim este trabalho é pessoalmente muito importante, porque eu e o Ariano tínhamos uma espécie de acordo palavreado, de que, um dia eu faria o Auto. Ariano sempre me dizia, e eu achava que era meio na brincadeira, mas ele falava bastante sério, que só cederia o auto para mim. Ele cumpriu a palavra e me deu total liberdade. Então quando o Daniel Filho me perguntou qual o texto que eu queria adaptar, respondi baixinho, o Auto... Porque tudo que a gente quer muito, tem também muito medo de fazer.
A fala de Arraes deixa clara a preocupação com o planejamento do
investimento que seria utilizado para a adaptação e produção do Auto. Pesquisas de
mercado, envolvendo o público e a equipe de produção cercaram a pré-elaboração
do projeto para mídia visual e se Suassuna não permite a inserção de
“merchandising” na obra, durante o intervalo os comerciais foram inevitáveis para
permitir a existência e veiculação do programa.
4.2 Contexto: as possibilidades na linguagem literária
Ao observarmos o texto de Suassuna é possível notar a presença da ironia
como elemento de transformação intencional do conteúdo (HUTCHEON, 2000,
p.207). Organizado através de diálogos em prosa percebe-se que Suassuna faz uso
de uma linguagem esteticamente trabalhada (popular, carnavalizada e irônica), que
é transposta, na medida do possível, para o texto televisivo, configurando-se cenas
que constroem, simultaneamente, a discussão do político, do social, do cultural
(explicitando as discussões religiosas) e do econômico.
113
Como exemplo, observamos a passagem em que João Grilo e Chicó tentam
convencer o padre João Benzer a cachorra (SUASSUNA, 2004, p.23):
Padre: (aparecendo na igreja) Que há? Que gritaria é essa? Chicó: Mandaram avisar para o senhor não sair, porque vem uma pessoa aqui para trazer um cachorro que está se ultimando para o senhor benzer. Padre: Para eu benzer? Chicó: Sim. Padre: Que Maluquice! Que besteira! João Grilo: Cansei de dizer a ele que o senhor não benzia. Benze por que benze, vim com ele. Padre: Não benzo de jeito nenhum. Chicó: Mas padre, não vejo nada de mal em benzer o bicho. João Grilo: No dia em que chegou o motor novo do Major Antônio Moraes o senhor não benzeu? Padre: Motor é diferente, é uma coisa que todo mundo benze. Cachorro é que eu nunca ouvi falar. Chicó: Eu acho cachorro uma coisa muito melhor que motor. Padre: É, mas quem vai ficar engraçado sou eu, benzendo o cachorro. Benzer motor é fácil, todo mundo faz isso; mas benzer cachorro? João Grilo: É, Chicó, o padre tem razão. Quem vai ficar engraçado é ele e uma coisa é benzer o motor do Major Antônio Moraes e outra é benzer o cachorro do Major Antônio Moraes. Padre: Como? (mão em concha no ouvido) João Grilo: Eu disse que uma coisa era o motor e outra o cachorro do Major Antônio Moraes. Padre: E o dono do cachorro de quem vocês estão falando é Antônio Moraes? João Grilo: É. Eu não queria vir, com medo de que o senhor se zangasse, mas o Major é rico e poderoso e eu trabalho na mina dele. Com medo de perder meu emprego, fui forçado a obedecer; mas disse a Chicó: o padre vai se zangar. Padre: (desfazendo-se em sorrisos) Zangar nada, João! Quem é um ministro de Deus para ter direito de se zangar? Falei por falar, mas também vocês não tinham dito de quem era o cachorro! João Grilo: (cortante) Quer dizer que benze, não é? Padre: (a Chicó) Você o que é que acha? Chicó: Eu não acho nada de mais! Padre: Nem eu. Não Vejo mal nenhum em se abençoar as criaturas de Deus! João Grilo: Então fica tudo na paz do Senhor, com cachorro benzido e todo mundo satisfeito. Padre: Digam ao Major que venha. Eu estou esperando (Entra na Igreja)
A circunstancia mostra que a enunciação do texto enquadra um fato comum à
realidade católica, o ato de benzer. Suassuna mescla a leitura do ato bíblico de
benzer (abençoar), com a leitura das obras de São Francisco, tomado como protetor
dos animais. A ironia não está no dilema de benzer um automóvel ou um animal,
mas no fato de quem tem a posse do que deve ser abençoado. Quando o padre é
indagado a respeito da benção do cachorro disse que não benzeria o cachorro, mas
quando Chico e João Grilo inventam que o cachorro é do Major Antônio Moraes,
transmite a idéia de que ficou em dúvida sobre se benzia ou não o animal. Quando
114
lhe é declarado que o proprietário do animal é o Major, ele resolve benzer e se
certifica de que não está fazendo nada de anormal quando indaga João Grilo e
Chicó que confirmam (com segundas intenções) de que não havia nada de errado.
HUTCHEON (2000, p.205) mostra-nos que o agrupamento e a discussão de
vários ângulos do contexto tornam-se possíveis, graças à existência de três
elementos: “o circunstancial, o textual e o intertextual”. No circunstancial temos os
elementos enunciativos que tornam possível a significação irônica, no elemento
textual cria-se a base de recorte para o enquadramento e, no intertextual, formado
pela leitura do autor, do texto com outros textos, da trama, dos atores e cenários,
configura-se uma fusão que possibilita o “refazer” do texto. Uma peça de teatro ou
um trabalho televisivo, mesmo que respeite a idéia do autor, já não é a original, pois
é um outro (ou outros), realizando uma leitura da obra que comporta concepções e
influências diferentes. O que se pretende mostrar já não é igual ao que foi mostrado,
o que se pretende explicar ou revelar no quadro/enquadramento (na história, no
cenário, na tela da TV) é novo, é moderno.
O trabalho de Suassuna permite que a leitura de um texto, para não ser
considerada plágio, precisa ser reestruturada incorporando-se à leitura do autor e
seus horizontes de expectativa. A partir desta concepção, Suassuna introduz o
elemento do fantástico, necessário para criar a ligação e a interatividade entre
autor/história/receptor, mexendo com o imaginário do receptor por intermédio do
sobrenatural e tornando mais acentuada a relação entre emissor e receptor.
Em o Auto da Compadecida, Suassuna nos transmite a preocupação com a
leitura, ou com as possíveis leituras, que sua obra venha a proporcionar. A intenção
é possibilitar ao receptor, cada qual segundo seu repertório e dentro de um quadro
sócio-temporal e histórico, o conhecimento dos valores intrínsecos atribuídos ao
texto, mergulhando num ambiente de plurisignificações, advindo da interação
texto/receptor e de suas diferentes releituras.
Quando observamos o caráter plurisignificativo do Auto da Compadecida,
compreendemos a possibilidades de não entendimento do código, o que geraria
uma instabilidade na recepção da mensagem. O não entendimento, o discurso
115
irônico e cheio de sub-entendidos, a desconexão da leitura linear da mensagem,
fazem com que os leitores procurem uma ligação ainda mais íntima com o texto. O
receptor procurará decifrar o código e entender a sua representação. Segundo
FLORY (1994, p.34-38) é como estar num labirinto e a chave para a saída depende
exclusivamente da interpretação dos códigos. Tomemos por exemplo a passagem
do texto onde há a morte de João Grilo seguida de sua ressurreição.
Para os cristãos seria um desfecho que corrompe o mistério da morte (3º ato
da peça), quando explicados do viés sobrenatural, pois como poderia um mortal
ressuscitar? A explicação ocorre no momento em que é suscitada a possibilidade do
livre arbítrio, de poder escolher outros caminhos, se uma nova chance de
permanência na terra fosse concedida a João Grilo e que só poderia ocorrer naquele
tempo/espaço, num mundo ficcional, mítico e “maravilhoso”. Num primeiro momento
causa estranhamento o fato de um “amarelo safado” ter o direito a uma outra
chance. No entanto, no âmbito do “fantástico”, do “ milagroso”, o acontecimento
inusitado será imediatamente creditado aos mistérios divinos e à complacência de
Jesus Cristo, por intermédio de Nossa Senhora. A ironia está centrada na chance
dada, justamente a João Grilo, o causador de toda a confusão da trama. Para os
céticos, que são cientificamente céticos, a criteriosos, não passaria de um fenômeno
natural de perda dos sentidos, ocorrendo o retorno quando as funções vitais
novamente se equilibram mas, para os cristãos, principalmente para os católicos,
representa a manifestação divina.
Num trecho, entre João Grilo e Chicó, é possível notar o artifício do
estranhamento e da ironia ( SUASSUNA, 2001, p.25 - 27):
João Grilo: E ele vem mesmo? Estou desconfiado Chicó. Você é tão sem confiança! Chicó: Eu, sem confiança? Que é isso João, está me desconhecendo? Juro como ele vem. Quer benzer o cachorro
da mulher para ver se o bicho não morre. A dificuldade não é ele vir, é o padre benzer. O bispo está aí e tenho certeza de que o Padre João não vai querer benzer o cachorro. João Grilo: Não vai benzer? Por quê? Que é que um cachorro tem demais? Chicó: Bom, eu digo assim porque sei como esse povo é cheio de coisas, mas não é nada demais. Eu mesmo já tive um cavalo bento. João Grilo: Que é isso Chico. Já estou ficando por aqui com suas histórias. Sempre uma coisa toda esquisita. Quando se pede uma explicação, vem sempre com ‘não sei, só sei que foi assim’. Chicó: Mas se eu tive mesmo o cavalo, meu filho, o que é que eu vou fazer? Vou mentir, dizer que não tive?
116
João Grilo: Você vem com uma história dessas e depois se queixa porque o povo diz que você é sem confiança. Chicó: Eu, sem confiança? Antônio Martinho está aí para dar provas do que eu digo. João Grilo: Antônio Martinho? Faz três anos que ele morreu? Chicó: Mas era vivo quando eu tive o bicho. João Grilo: Quando você teve o bicho? E foi você que pariu o cavalo, Chico? Chicó: Eu não. Mas do jeito que as coisas vão, não me admiro mais de nada. No mês passado uma mulher teve um na serra do Araripe, para os lados do Ceará. João Grilo: Isso é coisa de seca. Acaba nisso, essa fome: ninguém pode ter menino e haja cavalo no mundo. A comida é mais barata e é coisa que se pode vender.
Novamente temos o estranhamento, no ato de ter um cavalo bento (1º ato da
peça), pois para os cristãos como poderia haver um cavalo bento? A situação foge
às práticas e rituais permitidos pela Igreja.
A ironia está no fato de pensar como dois sertanejos pobres como João Grilo
e Chicó poderiam ter um cavalo bento. Mas a ironia do discurso vem da comparação
entre o nascimento de cavalos e de seres humanos, que convida a refletir sobre o
comércio de crianças no nordeste. Suassuna denuncia o problema da venda de
crianças no nordeste que é justificada pela necessidade de dinheiro para sustentar
geralmente uma numerosa família. Há o questionamento do comércio de seres
humanos que desperta e convida a pensar no valor atribuído ao ser humano. Que
valor há no “homem” que compra ou naquele que simplesmente se transforma numa
fábrica de produzir o produto ser humano? A fome e o desespero poderiam justificar
tal atitude? Suassuna denuncia que o desespero e o ato de vender o “filho” é
produto da passividade política e do desinteresse pelo bem-estar do povo brasileiro.
Novamente João Grilo e Chicó criam atenuantes que formam o contexto para
existência da ironia, na passagem que trata da farsa do enterro do cachorro (1º ato
da peça) em latim. Como, poderia um Padre enterrar um cachorro, e em latim? A
atrapalhada situação que João Grilo criou para a personagem do Padre, juntamente
com seu superior o Bispo, leva-nos a uma segunda situação de engano após a farsa
do cavalo bento. No momento em que João fala no testamento do cachorro morto e
convence o padeiro e sua esposa de que só dessa maneira conseguiriam enterrar o
cachorro em latim, todos se espantam pois sabiam da avareza do casal para com
seus empregados:
117
E a raiva que eu tenho é porque quando estava doente, me acabando em cima de uma cama, via passar o prato de comida que ela mandava para o cachorro. Até carne passada na manteiga tinha. Para mim nada, João Grilo que se danasse. Um dia eu me vingo. (SUASSUNA, 2001, p.39)
Chicó ainda tenta convencer João Grilo de que aquilo não era correto. João,
no entanto, estava decidido a se vingar e vai até a igreja para enganar o padre e
começar sua vingança. O padre, que num primeiro momento rejeita a idéia do
enterro em latim, só se convence quando pensa que o cachorro é do “Major Antonio
Morais”. O Padre só se sentirá realmente atraído pela idéia da benção, quando
passa a conhecer a herança deixada pelo cachorro, na qual estava incluído, e fará o
enterro em latim, que será descoberto pelo bispo (2º ato da peça).
João Grilo, vendo-se em uma situação crítica pelo fato de ter exposto o Padre
a várias confusões, acaba por se envolver em uma série de mentiras gerando
enganos e confusões.
Quando no texto teatral o Major vai pedir uma benção para seu filho doente,
(que na minissérie se transforma em filha, representada por Rosinha), o padre acaba
entendendo que a benção é para o cachorro (na minissérie cachorra), pois já havia
sido enganado por João Grilo. A confusão é obtida pelo fato de estar oculto o sujeito
para o qual se destinaria a benção. Neste momento temos um repertório
carnavalizado na fala do Padre e do Major, (SUASSUNA, 2001, p.43):
Antônio Morais: Ah, padre estava aí? Procurei-o por toda parte. Padre: Ora quanta honra! Uma pessoa como Antônio Morais na Igreja! Há quanto tempo esses pés não cruzam os umbrais da casa de Deus! Antônio Morais: Seria melhor dizer logo que faz muito tempo que não venho à missa. Padre: Qual o que, eu sei de suas ocupações, de sua saúde... Antônio Morais: Ocupações? O senhor sabe muito bem que não trabalho e que minha saúde é prefeita. Padre: Ah, é? Antônio Morais: Os donos de terras é que perderam hoje em dia o senso de sua autoridade. Vêem-se senhores trabalhando em suas terras como qualquer foreiro. Mas comigo as coisas são como antigamente, a velha ociosidade senhorial. Padre: É o que eu vivo dizendo, do jeito que as coisas vão, é o fim do mundo. Mas que coisa o trouxe aqui? Já sei, não diga, o bichinho está doente, não é? Antônio Morais: É, já sabia? Padre: Já, aqui tudo se espalha num instante. Já está fedendo? Antônio Morais: Fedendo? Quem? Padre: O bichinho!
118
Antônio Morais: Não que é que o senhor quer dizer? Padre: Nada, desculpe, é um modo de falar. Antônio Morais: Pois o senhor anda com uns modos de falar muito esquisitos. Padre: Peço que desculpe um pobre padre sem muita instrução. Qual é a doença? Rabugem? Antônio Morais: Rabugem? Padre: Sim, já vi um morrer disso em poucos dias. Começou pelo rabo e espalhou-se pelo resto do corpo. Antônio Morais: Pelo rabo? Padre: Desculpe, desculpe, eu deveria ter dito `pela cauda´. Deve-se respeito aos enfermos, mesmo que sejam os de mais baixa qualidade. Antônio Morais: Baixa qualidade? Padre João, veja com quem está falando. A igreja é uma coisa respeitável, como garantia da sociedade, mas tudo tem um limite. Padre: Mas que foi que disse? Antônio Morais: Baixa qualidade! Meu nome todo é Antônio Noronha de Brito Morais e esse Noronha de Brito veio do Conde dos Arcos, ouviu? Gente que veio nas caravelas, ouviu? Padre: Ah bem e na certa os antepassados do bichinho também vieram nas galeras, não é isso? Antônio Morais: Claro! Se meus antepassados vieram, é claro que os dele vieram também. Que é que o senhor quer insinuar? Quer dizer por acaso que a mãe dele... Padre: Mas, uma cachorra!... Antônio Morais: O quê? Padre: Uma cachorra. Antônio Morais: Respeita. Padre: Não vejo nada de mal em repetir, não é uma cachorra mesmo? Antônio Morais: Padre, não o mato agora mesmo porque o senhor é um padre e está louco, mas vou me queixar ao bispo. (A João.) Você tinha razão. Apareça nos Angicos, que não se arrependerá.
A ironia está justamente na capacidade de um analfabeto, considerado burro,
“amarelo safado” conseguir enganar pessoas tidas como elite da sociedade de
Taperoá, e por que não da sociedade brasileira. O prolongamento da ironia está no
fato de que o Padre e logo depois o Bispo, mostram sua benevolência quanto ao
caso do enterro do cachorro em latim, principalmente por saberem que terão uma
régia recompensa em dinheiro, o que justifica tudo (2º Ato da peça).
Existem outros questionamentos no contexto textual como, por exemplo, o
fato de que o dinheiro compra tudo até mesmo um sacramento. Há corrupção em
qualquer esfera da sociedade, no serviço público, privado e até mesmo no religioso,
que é eficiente e mais rápido para os de dinheiro ou prestígio político.
O diálogo citado deixa transparecer a questão da hierarquização da
sociedade civil no Brasil. O padre é submisso ao Major e ao Bispo que representam
o ápice da pirâmide de uma sociedade medieval, organizada em castas, onde o alto
119
clero e a nobreza compactuam com o poder político. A base é composta pelos que
oram e trabalham, ou seja, pelos que servem aos senhorios aristocráticos e clericais.
No momento em que o Major refere-se à Igreja como a responsável pela
manutenção da ordem social, cita-a para relembrar o papel da Igreja para a
manutenção da ordem social em favor de uma minoria. O discurso ideológico da
doutrina é colocado como o principal fator de submissão da massa. Há um segundo
momento quando ele reafirma o pacto da Igreja com a aristocracia, lembrando ao
padre sua origem, e que de faz parte do pacto. Para HOLANDA (1995, p.86),
“Tradicionalistas e iconoclastas movem-se, em realidade, na mesma órbita de
idéias”.
A atitude do Major é resquício do que HOLANDA (1995, p.89) chama de
“ditadura dos domínios rurais”, herança do Brasil Colônia, período em que o poder
político estava centrado no espaço rural. O padre está no meio da pirâmide, entre o
topo e a base, junto aos guerreiros, como o agente incumbido das tarefas delegadas
por seus “sagrados” orientadores terrenos, o alto clero e a aristocracia.
Quanto à tão refinada estirpe portuguesa que veio para o Brasil nas caravelas
e à falta de pré-disposição ao trabalho, são ilustradas por HOLANDA (1995, p.39):
Também se compreende que a carência dessa moral do trabalho se ajustasse bem a uma reduzida capacidade de organização social. Efetivamente o esforço humilde, anônimo e desinteressado é agente poderoso da solidariedade dos interesses e, como tal, estimula a organização racional dos homens e sustenta a coesão entre eles. Onde prevalece uma forma qualquer de moral do trabalho dificilmente faltará a ordem e a tranqüilidade entre os cidadãos, porque são necessárias, uma e outra, à harmonia dos interesses. O certo é que, entre espanhóis e portugueses, a moral do trabalho representou sempre fruto exótico. Não admira que fossem precárias, nessa gente, as idéias de solidariedade.
Nos Autos espanhóis e portugueses, como os de Gil Vicente, a figura da
aristocracia aparece sempre vinculada às orgias e ao desapego pelo trabalho.
Segundo a política de organização social, esta tarefa pertencia aos vassalos ou
escravos. No Brasil houve uma dificuldade muito grande em relação à escravização
dos índios, o que deu margem à inserção do trabalho escravo do negro. Quando o
Major diz que as coisas não são mais como antes, está fazendo referência à
120
abolição da escravatura, que deu margem a um outro processo de dominação, o
coronelismo. A figura do Major representa a política coronelista, quando afirma que é
diferente dos outros fazendeiros, por que preserva a tradição. No coronelismo o
indivíduo está muito próximo da relação de servidão, se não o for de escravidão.
A ironia está em pensar a situação frente aos dogmas da Igreja, pois se todos
os homens são iguais perante Deus, por que tanta desigualdade social? Por que
alguns têm o que comer e outros não, por que um cachorro merece mais um prato
de comida do que um homem? Assim os zelosos guardiões da sociedade estariam
quebrando o que Deus estipulou, segundo o Evangelho de Matheus (EDIÇÕES
PAULINAS, 1986, p.7) como a “regra de ouro” que expressa a palavra de Deus
dizendo: “Tudo o que vocês desejam que os outros façam a vocês, façam vocês
também a eles. Pois nisso consiste a Lei e os profetas”. Os atos de João Grilo nada
mais são do que retribuições dos atos que os “outros” fazem ou deixam de fazer
com ele e com os outros “amarelos safados”, pobres, analfabetos e famintos.
Quando o Padeiro faz João Grilo trabalhar quase como um escravo, o padeiro não é
chamado de “safado”, nem tão pouco o Major quando se revela um tirano.
Como nos exemplos anteriores, a ironia está presente praticamente em todos
os episódios do Auto. E a carnavalização neste episódio do enterro do cachorro
surge justamente pelo desencontro dos discursos do Padre e do Major. As falas
tornam-se distorcidas, assumem um tom de agressão satírica, junto às figuras que
deveriam organizar a sociedade e zelar pelo bem-estar coletivo.
O momento marcante da ironia no Auto concentra-se no “Julgamento Final”,
no “Tribunal das Almas”. Após o episódio do enterro do cachorro, João aplica outro
golpe no Padeiro e em sua mulher. Vende-lhes um gato que segundo João Grilo
“descomia” moedas. Quando o Padeiro descobre que foi enganado e que o gato não
“descomia as moedas”, ameaça tirar a vida de João Grilo. É no momento do apuro
com o Padeiro e sua mulher que teremos a inclusão do cangaceiro Severino e sua
tropa no enredo.
No trabalho de Guel Arraes, a história se avoluma com a entrada de três
personagens, O Cabo Setenta, o Valentão Vicentão e Rosinha (a mocinha e par
121
romântico de Chicó). O enfoque romântico da trama fica com Chicó e não com João
Grilo uma vez que, personagens picarescos como ele não devem desenvolver o lado
sentimentalista, por correr o risco de perder o ar satírico.
Esta abordagem é feita apenas na minissérie (considerada uma inovação na
leitura da obra, bem diferente das outras leituras cinematográficas já existentes) e
contribuiu para uma nova situação irônica, em que o franzino vence o gigante. A
personagem de Rosinha promove o envolvimento de Chicó, Cabo Setenta e
Vicentão, que serão enganados também por João Grilo, tentando a todo custo
ajudar o amigo Chicó a se casar com Rosinha. É claro que Guel Arraes não deixaria
a qualidade de interesseiro de João Grilo de fora da cena. João espera que, com o
casamento de Chicó com Rosinha (na trama, filha do Major Antônio Morais), ambos
saiam da miséria.
A disputa por Rosinha acontece através de um duelo, onde João Grilo inventa
um duelo em trio, mas sem deixar que Vicentão e Cabo Setenta desconfiem que
estejam sendo convidados para o mesmo duelo. No momento do duelo, Rosinha
está presente e diz a João Grilo que amava tanto Chicó que preferia um covarde
vivo a um valente morto. Quando Chicó desconfia que não terá por onde escapar,
inventa que o amor de Rosinha será daquele que ficar vivo após o duelo. Chicó
põem-se em pé, entre Vicentão e o Cabo Setenta, que caminham em direções
opostas e de costas um para o outro, quando João Grilo grita que era aquele o
momento de atirar, para surpresa de todos os dois correm e ficam caracterizados
como covardes diante de Rosinha que entrega seu amor a Chicó. A cena lembra a
passagem bíblica ente David e Golias. A falsa valentia atribuída a Chicó espalha-se
pela cidade, já que no duelo ele não corre e fica entre o Cabo Setenta e Vicentão.
Numa cena onde Chicó aparece dizendo primeiro ao Padeiro e logo após gritando
em praça pública que era mesmo valente e que enfrentaria se fosse necessário, até
mesmo o cangaceiro Severino, entra em cena o próprio cangaceiro, que o aborda
convidando-o a repetir a oratória de valentia que ele acabava de bradar aos quatro
ventos.
A partir deste momento o trabalho de Guel Arraes mescla-se à criação original
de Suassuna, que introduz Severino, fazendo o reconhecimento da cidade de
122
Taperoá e matando, logo depois, o Padeiro, Dora (a esposa do padeiro), o Padre, o
Bispo, e João Grilo. João Grilo será neste momento alvo de suas próprias
malandragens. Para tentar escapar com vida de Severino, João Grilo cria a história
da gaita mágica abençoada por Padrinho Padre Cícero. A gaita segundo João Grilo
dava aos homens a chance de morrer para conhecer Padre Cícero e logo após
retornar, quando a gaita fosse tocada. João Grilo para escapar de ser morto ou
preso, por causa das trapaças aplicadas no Padeiro, no Padre e do Bispo, tinha
articulado um plano com Chicó, que envolvia uma falsa morte à facada rompendo
uma bolsa de sangue escondida sob a camisa. Severino acredita em João Grilo e
deixa-se matar. Como era de se esperar a gaita não o ressuscita. O outro
cangaceiro que assistia à cena é morto e consegue matar João Grilo, que é
socorrido por Chicó, que nada pode fazer para salvar seu amigo.
Chegamos ao terceiro ato da peça onde a ironia e as paródias dominam o
discurso teatral. Poderíamos pensar como um pobre e analfabeto “amarelo safado”
conseguiria enganar o diabo? Ser tão ou mais inteligente que o pai das peripécias?
Pelo apego à intercessora e advogada dos pobres, pecadores e desesperados
representada por Nossa Senhora, que segundo o julgamento de João Grilo, está
mais próxima dos homens por que é humana como ele. É Nossa Senhora que
intercede pedindo a João uma outra chance, burlando o poder do Encourado.
“João foi um pobre como nós, meu filho. Teve de suportar as maiores
dificuldades, numa terra seca e pobre como a nossa. Não o condene, deixe João ir
para o purgatório” (Suassuna, 2001, p.184). Mas João não se dá por satisfeito,
dizendo que se fosse enviado para o purgatório o Encourado daria um jeito de levá-
lo para o Inferno, e reivindicando que Nossa Senhora pedisse sua passagem direta
para o céu. A Compadecida diz que não é possível, pois as faltas de João são
graves. A saída encontrada por Nossa Senhora foi a de intermediar uma nova
chance para João, permitindo-lhe voltar à Terra. O pedido foi concedido e o
Encourado vencido.
João Grilo volta, encontra-se com Chicó e Rosinha mas continua pobre. O
dinheiro da herança do Padeiro foi prometido e dado a Nossa Senhora e Rosinha é
deserdada pelo Major (na Minissérie).
123
Os diálogos, repetitivos e humorísticos, a comédia de enganos que envolve a
todos, decorrem, justamente, dos jogos de linguagem, da ironia, dos sub-entendidos,
da carnavalização, enfim das estratégias discursivas que configuram o código
lingüístico.
Assim o leitor é levado por um caminho sugerido e direcionado pela própria
concretização do código. Instaura-se um processo de deciframento da linguagem
literária – sistema modelizante secundário, pela linguagem prática – sistema
modelizante primário (LOTMAN,1978). A linguagem literária vem justamente suprir
uma necessidade de estética, cujas técnicas são artisticamente moldadas e
selecionadas. A estética tem o papel de seduzir o leitor, criar a necessidade de
interação do leitor. Este se relaciona diretamente com a própria mensagem
discursiva, garantindo uma situação de cumplicidade, uma intimidade que acaba por
envolvê-lo num processo de significação, que o levará a uma leitura particular da
obra, seja ela teatral ou televisiva.
4.3 O trabalho de Guel Arraes
O Auto da Compadecida tem como protagonista, na versão de Arraes, um
sertanejo qualificado como pobre mentiroso e preguiçoso, oriundo de Taperoá,
cidade do sertão da Paraíba, de nome João Grilo que tem, como seu fiel amigo,
outro sertanejo, provido das mesmas qualidades, porém menos arguto e valente,
chamado Chicó. Instaura-se uma aproximação com personagens de Miguel
Cervantes, Dom Quixote e Sancho personagens picarescos.
A leitura de Suassuna começa pela organização e caracterização das
personagens. Na leitura televisiva Suassuna exclui o Sacristão, o Frade e o
Demônio, que seriam representados por atores específicos. No texto/teatro estes
personagens estão na trama, não como meros figurantes mas representando tipos
populares embora não façam parte da trama. Guel Arraes substitui estes
personagens da peça teatral e inclui Vicentão, Cabo Setenta e Rosinha, para formar
o núcleo romântico, indispensável nas novelas e minisséries para identificação com
o público de massa.
124
As personagens principais são mantidas na trama: João Grilo, Chicó, Padre
João, Antônio Morais, o Padeiro, Dora a mulher do Padeiro, o Bispo, Severino de
Aracaju, o Cangaceiro, o Encourado, Jesus Cristo e Nossa Senhora. Representam a
ação dramática da narrativa, pois são estas personagens que dão forma e direção
ao conflito desenvolvido na trama. O Encourado e o Demônio serão representados
pelo mesmo ator, que hora será o Demônio, estereotipado como um ser humano,
um homem que pode estar entre os homens, praticando suas desavenças sem ser
percebido, e quando se enfurece com as saídas (resolução dos pecados) que João
Grilo e Nossa Senhora criam para os réus, passa ao Encourado, com uma figura
estranha meio homem/meio bicho. A caracterização bizarra e amedrontadora do
Diabo é uma tentativa de aproximar a idéia de como seria o Diabo, visto como um
monstro pelo imaginário popular, que vem desde às ilustrações e xilogravuras da
Idade Média.
Guel Arraes no primeiro capítulo usa um filme intitulado “A Paixão de Cristo”,
como que anunciando o que estaria por vir, e começa a criar um espaço entre
emissor e receptor, convidando-o a querer saber por que falar da vida e da morte de
Jesus. João Grilo e Chicó são encarregados para anunciar o que está por vir.
Percorrem o cenário que ilustra a pequena Taperoá, cidade do sertão, pobre e
abandonada e mostram a Igreja como o último refúgio para os dias de tédio e de
mesmice do sertanejo, assim como no Auto da Lusitânia onde a Igreja é vista como
estalajadeira.
Arraes quer ilustrar que a “vida social” dos pobres e dos ricos de Taperoá,
todos os eventos ocorridos em Taperoá estão relacionados com a Igreja, ilustrando
a intensa ligação da igreja com a rotina das pessoas, sejam elas do campo ou da
cidade.
O caso pessoal de Chicó criará a abertura para a discussão do aspecto
subjetivo, representado pela figuratividade do amor carnal. Relacionando-se com
João Grilo e Chicó temos o padeiro avarento Eurico (Personagem da obra “O Santo
e a Porca” de Suassuna) e sua mulher adúltera Dora, que promoverão o
enquadramento da discussão entre a classe operária (e sua exploração, segundo a
dialética marxista) e a capitalista, podendo se estender a percepção do predomínio
125
da informalidade quando o assunto versa sobre o uso da mão-de-obra, do
desmantelamento de sociedades contratualmente organizadas.
A trama contará também com a figura do Padre João e do Bispo, que
representarão a discussão entre uma sociedade marcada pela necessidade de um
discurso progressista. O discurso que pretende expor os preconceitos da
modernização e da concentração política pela classe civil aristocrata, é representado
pela figura do Major Antonio Moraes e sua filha Rosinha, par romântico de Chicó,
que ressaltará a distinção entre classes. Proporá, ainda, a discussão do papel, da
serventia da Igreja e da corrupção que a cerca.
A incorporação da figura do cangaceiro Severino e seu bando marca a luta
política das classes e a tentativa de desmembramento e identificação política, que
será reforçada pela presença do cabo Setenta e sua milícia, em defesa da ordem e
do progresso nacional. O caos urbano será marcado pelo valentão Vicentão, que
representará a parcela da população urbana estática, que não se manifesta contra a
“organização social”. A violência que Guel Arraes atribui a personagem Vicentão é o
reflexo da intimidação e repressão do povo.
Por fim, a manifestação do sobrenatural simbolizada pelas figuras religiosas:
a princípio o Diabo, logo após Jesus Cristo e por fim A Compadecida (Nossa
Senhora), que integram a cena mais marcante da obra, a passagem que retrata o
Juízo Final - O Livro do Apocalipse, denunciando a forte presença da ideologia
católica, a doutrina escolástica, que também reforçará a presença dos elementos
medievais como o recurso à estética de carnavalização, ironia e paródia. Tratará
também da morosidade do sistema jurídico e ilustrará a burocracia que emperra o
sistema judiciário brasileiro, tão presente em 1955 quanto em 1999 e nos dias de
hoje.
Não seria um erro afirmar que o trabalho é mais contemporâneo do que se
possa imaginar. As políticas econômicas que marcaram a década de 50, com
propósito de crescimento e desenvolvimento econômico, amparada por instituições
como CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), com o propósito de
reverter a condição de subdesenvolvimento em que o Brasil vivia, permanecem
126
válidas até hoje. As denúncias quanto aos problemas e as discrepâncias sociais
acentuaram-se em 1955 e continua existir. O descaso da classe politicamente
dominante, a existência de um sistema jurídico que privilegia uma minoria, a falta de
acesso aos meios de comunicação, a exclusão social são as mais vivas provas de
que a arte, seja ela erudita ou popular, reflete a condição do homem na terra.
Constrói-se um retrato denunciando a injustiça, a existência de opressores e
oprimidos, configurando-se uma relação de dominação e mercantilização.
Suassuna denuncia em suas obras, não uma polêmica entre esquerda e
direita que não lhe interessa, mas discute acima de tudo o jogo pelo poder, a
opressão, a exploração de muitos por uma minoria. Em entrevista à Folha de S.
Paulo (14/09/1999), cita Dostoievski e Santa Teresa de Ávila para explicar esse jogo
pelo poder:
[...] no Brasil atual, outra maneira clara de manter a distinção é a seguinte: quem é de esquerda, luta para manter a soberania nacional e é socialista; quem é de direita, é entreguista e capitalista; Quem na sua visão do social coloca a ênfase na justiça, é de esquerda. Quem coloca na eficácia e no lucro, é de direita. (www.tribunadecianorte.com.br/arquivos/opiniao/suassuna.htm)
Neste momento temos a marca do horizonte de expectativa do autor para
com a obra e seus receptores. Sua visão de mundo, inclusive política, mescla-se a
uma criação do fantástico. A contribuição para a composição do enredo viria da
confusa relação com a religiosidade e ceticismo. O lado cético, viria do contato com
seu tio Manuel Dantas Villar, um ateu e republicano nato. O lado cético aos poucos
perde espaço para o religioso pois Suassuna passar a relacionar-se com um outro
tio, Joaquim Dantas, católico e monarquista. Suassuna passa a ter contato com os
dogmas da Igreja Católica, enquanto estuda na faculdade de Direito.
Os estudos religiosos, de Filosofia e do Direito, possibilitaram a Suassuna o
instrumental necessário para a idealização do ato do julgamento final, numa versão
satirizada, que envolve os elementos do cotidiano nordestino. Assim o diabo
assumiria a função da promotoria, acusando e julgando num outro plano, no
espiritual e não no terreno, as acusações contra cada um daqueles sujeitos
socialmente definidos. Para a defesa, a escolhida foi a Mãe de Jesus Cristo – A
127
Compadecida, a intercessora, a piedosa, que tem o poder de fazer mudanças, e
permissão para intermediar os pedidos dos homens junto a Deus. E por fim
Emanuel, ou Jesus Cristo, que representa naquele momento a Santíssima Trindade,
que evoca numa só pessoa a contemplação do Pai (Deus), do Filho (Jesus Cristo) e
do Espírito Santo. Sua representação física escandaliza ou provoca estranhamento,
uma vez que o Cristo é negro. Causará espanto também na versão televisiva,
principalmente junto à parcela da população que não conhecia a leitura do teatro de
Suassuna.
Realiza-se a intertextualidade neste momento, com os textos bíblicos que
prevêem o julgamento divino das culpas humanas e percebe-se, ainda a introdução
dos elementos do candomblé e das figuras religiosas afro-brasileiras que são
incorporados às figuras e santos católicos, daí a projeção do Cristo negro que, num
segundo plano, resulta na exaltação do Cristo dos pobres, dos marginalizados. O
resultado é a ilustração dos ditados populares que predizem que se a justiça terrena
não é capaz de julgar ou simplesmente banaliza os crimes, num outro momento, no
tribunal divino eles são julgados, resultando em dizeres como: “a justiça é cega mas
os olhos de Deus não são”, ou ainda previne sob as possíveis penas que podem
ocorrer na terra, a “justiça divina tarda mas não falha”, “o que aqui se faz aqui se
paga”.
O que muda radicalmente do texto/teatro para a versão televisiva é a
exclusão do arlequim, do palhaço, que no teatro narra a troca de cenas, explica
fatos, enfim, é o interlocutor, que desperta no receptor a necessidade de interação.
Na versão televisiva, as cenas ganham maior movimento e o preenchimento dos
espaços e os brancos do texto são feitos coletivamente. A figura do palhaço
(Arlequim) perde a função, sendo excluída para dinamizar a relação das
personagens, pois os limites impostos pelo enquadramento televisivo são maiores.
A relação com o público na leitura televisiva é de imposição, e a condição do
receptor de passividade, já que os brancos do texto diminuem e muitos são
substituídos por idéias e ações da equipe de produção. No teatro, ocorre justamente
o contrário, pois o arlequim não preenche as lacunas e os brancos do texto. O
arlequim aguça a interação e a participação mental dos assistentes. Ele é a voz do
128
autor (de Suassuna), que convida a uma mudança no modo de olhar as pessoas e
as falhas humanas. O arlequim convida-nos a observar a vida de um outro, de vários
ângulos, para que possamos ter a idéia total da trama, que tem a função de ilustrar a
vida através da literatura fantástica (realidade e ficção), chamando a atenção para o
fato de que, no dia-a-dia, perdemos a noção do todo que nos cerca e julgamos as
pessoas por meias verdades ou mentiras.
4.3.1 O elenco, ficha técnica e trailer
O elenco que protagonizou o Auto na televisão compõe-se de vários atores e
atrizes renomados da Rede Globo de Televisão, sob a direção de Guel Arraes. São
eles:
Matheus Nachtergaele _ João grilo;
Selton Mello _ Chicó;
Marco Nanini _ Severino;
Fernada Montenegro _ Nossa Senhora (a Compadecida);
Mauricio Gonçalves _ Jesus Cristo;
Lima Duarte – Bispo;
Rogério Cardoso _ padre João;
Diogo Vilela – padeiro Eurico;
Denise Fraga _ mulher do padeiro, Dora;
Luis Mello – o Diabo;
Enrique Diaz – cangaceiro, capanga de Severino;
Paulo Goulart – Major Antônio Moraes;
Virginia Canvendish – Rosinha;
Aramis Trindade – Cabo Setenta;
Bruno Garcia – Vicentão.
A técnica ficou a cargo de Guel Arraes que a adaptou para a TV em parceria
com João Falcão, incluindo partes de outro texto de Suassuna, Tortura de um
coração. A direção geral foi de Guel Arraes, a direção de arte ficou sob
responsabilidade de Linda Renha. Figurinos ficaram sob a responsabilidade de Caio
129
Albuquerque. A direção fotográfica é de Felix Monte e a direção de produção é de
Eduardo Figueira. Os direitos ficaram reservados a Globo Filmes, com o produtor
associado Daniel Filho, distribuição pela Columbia Tristar (produção televisiva de
1999). O filme teve a duração de cento e quatro (104) minutos a minissérie cento e
cinqüenta e sete (157) minutos.
O estudo do repertório musical para composição da trilha sonora ficou a cargo
do diretor musical João Falcão. A necessidade de aproveitamento pleno dos
profissionais envolvidos na produção do filme traz à tona a dificuldade de
financiamento que aflige o cinema brasileiro. O grupo escolhido para a composição
da trilha foi o de Sá Grama, dirigido pelo maestro Sérgio Campelo. O grupo é
responsável por um estudo de músicas de raízes, contribuindo para a manutenção
da memória da musica popular.
O que chama a atenção é a permanente sonoridade do pífaro e da gaita na
gravação das cenas. A gaita será companheira fiel de João Grilo, caracterizando sua
personagem em várias personagens. Matheus Nachtergaele passa a atuar com a
gaita, que também assume a configuração de elemento popular da cultura nacional.
O pífaro é uma realidade da comunidade nordestina enquanto a gaita é
popularmente conhecida no Brasil, de norte a sul. Neste momento a adaptação
deixa de lado os elementos do nordestino e a plasticidade por ele gerada, para
adaptar a peça para uma comunidade discursiva mais ampla, daí a necessidade de
um elemento comum.
O que espanta é a agilidade obtida na produção do repertório, na fala do
próprio Falcão nas gravações extras e making of contidas na versão CD: “passei três
dias no estúdio com o Grupo Sá Grama, formados por estudantes do Conservatório
Pernambucano de Música, que faz um trabalho de pesquisa baseado em música de
raízes”. A preocupação em reunir os elementos do popular promove a diminuição do
custo de produção e garante a preservação da autenticidade da cultura em algumas
instâncias, como, por exemplo, nos arranjos musicais da obra.
130
131
CONSIDERAÇOES FINAIS
A riqueza da obra de Suassuna é surpreendente. É possível observarmos a
utilização de estratégias e técnicas comunicativas que fazem de seu texto/teatro O
Auto da compadecida, uma possibilidade ironicamente plurisocial, uma vez que
possibilita o diálogo e o confronto de comunidades discursivas, com horizontes de
expectativas diversos.
O repertório lingüístico materializa-se na focalização das discussões dos
estereótipos sociais, ironicamente semiotizados e codificados. O autor cobra do
receptor o exercício de decodificação do espaço social, contextualizado e
simbolizado ideologicamente. Temos, pois uma crítica social irônica e bem
humorada do “malandro” brasileiro. A exposição caricatural de uma sociedade que
se pretende organizada revela ao uma desconexão social. A receptividade está
relacionada ao processo de criação que considera o corte (contexto) no qual o
receptor deve ler a obra ou se ver na obra.
Podemos concluir que é pertinente evocar uma reflexão de como a idéia de
discussão do social no trabalho de Suassuna assume variações nas diversas formas
de ironizar a sociedade. Constatamos que desencadeou e desencadeia, através do
uso do ambiente cultural popular do nordestino, o cenário de discussão de correntes
ideológicas entre os agentes interpretadores.
Suassuna, em seus trabalhos e principalmente no Auto, lembra que a
preservação da cultura nacional é necessária para que tenhamos uma identidade
própria e intransferível. É por esse motivo que se nega a vincular seu nome e suas
obras a merchandising. Para ele a solução está em fazer com que a população
tenha consciência de que um povo sem memória não constrói história, e é
inadmissível que multinacionais administrem a estética artística, submetendo a arte
aos anseios capitalistas.
132
Se no teatro é possível preservar o uso consumista da arte, na televisão, em
decorrência de suas características de cultura de massa, torna-se inevitável o
retorno econômico, a rentabilidade dos anunciantes. Os intervalos (brakes) da
minissérie estão atrelados a um estudo da audiência e posteriormente ao aumento
ou não de consumo dos produtos e marcas divulgadas nos comerciais, inseridos nas
pausas da minissérie.
O fato é que a mídia televisiva permite a ampliação do número de receptores,
mas há um preço a pagar. Não há como negar que Suassuna tornou-se
nacionalmente conhecido após a minissérie de Guel Arraes para a TV. Não que o
reconhecimento de Suassuna não existisse, mas ficava restrito a uma elite cultural e
a uma parcela “mais culta” da população brasileira e fora do Brasil. Suassuna
concordou com a adaptação de Guel Arraes porque foram “preservadas” a essência
e a mensagem da obra, que estão centradas na originalidade dos “malandros”,
criados por Suassuna, a partir de um tipo brasileiro, “dos causos” reconhecidos pela
memória popular do, aproveitamento do folclore nordestino (literatura de cordel),
viabilizando-se a concretização de objetivos visados por Suassuna e pelo
“Movimento Armorial”, que preconizam o aproveitamento da arte popular pela arte
erudita e sua divulgação nacional, permitindo a preservação da memória da cultura e
da identidade do povo brasileiro.
133
134
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139
Anexo
COUTINHO, Afrânio; SOUZA, J. Galante. Enciclopédia de literatura brasileira. Rio
de Janeiro: Global Editora, 2001. v2. p.1539
“SUASSUNA, Ariano (A. Vilar S., Nossa senhora das Neves, hoje João Pessoa, PB, 16 jun. 1927). No
ano seguinte ao seu nascimento, seu pai, João Suassuna, deixa o governo da Paraíba e a família
passa a morar no sertão, na “Fazenda Acauan”. Com a Revolução de 30, seu pai é assassinado por
motivos políticos no Rio de Janeiro e a família se muda mais uma vez. Agora para Taperoá, onde vive
de 1933 a 1937. Lá Ariano faz seus primeiros estudos e assiste pela primeira vez a uma peça de
mamulengos e a um desafio de viola, cujo o caráter de “improvisação” seria uma das marcas
registradas também de sua produção teatral. A partir de 1942 passa a viver no Recife, PE, onde
termina os estudos secundários (no ginásio Pernambuco e no Colégio Osvaldo Cruz) em 1945. No
ano seguinte inicia a Faculdade de Direito, onde conhece Hermílo Borba Filho. E, junto com ele,
fundaria o “Teatro do Estudante de Pernambuco”. Em 1947 escreve sua primeira peça: Uma mulher
vestida de sol. Em 1948, outra peça Cantam as harpas de Sião (ou O deserto de princesa), é
montada pelo Teatro do Estudante de PE. Os homens de barro é de 1949; e, em 1950, ano de sua
formatura na faculdade de Direito, rcebe o Prêmio Martins Pena pelo Auto de João da Cruz, que narra
o pacto de um carpinteiro com o demônio para possuir os “bens terrenos!”. Mas com a intervenção do
“anjo da guarda”, do “pai peregrino” e de um cangaceiro, sua aventura faústica é interrompida. Com
doença pulmonar, A. S. se vê obrigado em 1950 a mudar-se para Taperoá de novo. E lá escreve e é
montada a peça Torturas de um coração (1951). Com O arco desolado, de 1952, continua seu
diálogo nunca interrompida pela tradição ibérica. Nesse caso, com Calderon de la barca e com
Sigismundo de La vida es sueño, recriado o Arco, onde no entanto, ao invés de um “reino de justiça”,
espalha horrores por toda a parte, num ciclo infernal que se fecha com seu retorno à prisão. De 1952
a 1956, Suassuna dedica-se à advocacia. Sem abandonar, porém, a atividade teatral. São dessa
época: O castigo da soberba (1953), O rico avarento (1954) e o Auto da Compadecida (1955), peça
que faria de A. S. um nome nacional e que seria considerada em 1962 por Sábato Magaldi “o texto
mais popular do moderno teatro brasileiro”, recebendo do crítico do seu Panorama do Teatro
Brasileiro o seguinte comentário: “Aproxima-se o texto dos Autos vicentinos ou dos `milagres´ mais
antigos de Nossa Senhora, e, contrastando como o sabor arcaico, dá ao diálogo a espontaniedade da
improvisação e à estrutura dramática a idéia de que é algo que se constrói à vista do público, para só
no final sentir-se a solidez arquitetônica”. Improvisação mescla à obediência ora do Romanceiro
popular do Nordeste, ora à tradição literária ibérica: esta é a marca registrada de A. S., cujo
paradigma parece ser a atuação de “João Grilo”, protagonista do Auto da compadecida, misto de
140
personagens convencionais, como o arlequim ou o pícaro, com um malandro tão cheio de artimanhas
que consegue, inclusive, escapar do Inferno. Do ponto de vista da trajetória intelectual de A. S., o
Auto da compadecida não é um marco apenas pela repercussão nacional, mas sobretudo como o seu
amadurecimento como dramaturgo e pela escolha, que acaba por fazer, de abandonar a advocacia
em 1956, quando se torna professor de estética na Universidade Federal de Pernambuco. No ano
que se segue a tal decisão seriam encenadas: O casamento suspeitoso, em SP pela Cia. Sérgio
Cardoso; e O santo e a porca, recriação, em tom de farsa, de O avarento, de Moliére e de A aulularia,
de Plauto. O homem da vaca e o poder da fortuna é de 1958; A pena e a lei, premiada dez anos
depois no Festival Latino-Americano de Teatro, é de 1959. Seriam montadas em seguida a Farsa da
boa preguiça (1960) e A caseira e a catarina (1962), ambas pelo “Teatro Popular do Nordeste”,
fundado por Suassuna, mais uma vez em companhia de Hermílo Borba Filho, em 1959. Mas A. S.
interrumperia sua bem sucedida carreira de dramaturgo no inicio da década de 60, quando passa a
dedicar-se exclusivamente à prosa de ficção, às aulas de estética e ao papel de “animador cultural”,
que o levaria a iniciar em 1970, no Recife, o “Movimento Armorial”, interessado no desenvolvimento e
no conhecimento das formas de expressão populares tradicionais. E que marcariam tanto sua
produção teatral quanto sua obra romanesca posterior, na qual se incluem alguns de seus trabalhos
mais importantes, como o Romance da pedra do reino e O príncipe do sangue que vai e volta (1971),
e a História do rei degolado nas caatingas o sertão/Ao sol da onça caetana (1976). Trata-se em
suma, de obra onde se entrelaçam o folclórico, o cordel, o mamulengo e a tradição ibérica; obra que
se propõe a “pensar o brasileiro dentro do ibérico-sertanejo”, como já destacou o crítico Silviano
Santiago em “Situação de Ariano Suassuna”. Pois, segundo ele, “em Suassuna mão existe a intenção
de fazer um levantamento artístico-sociológico da região-nordestina,dentro dos moldes da escola
naturalista, mas antes busca ele uma representação poética do Nordeste através dos textos do
romanceiro popular, graças aos folhetos da literatura de cordel”. Recriação esta que se orienta ora
para o teatro, ora para a poesia e para o romance, numa obra coesa e marcada por uma visão
popular-religiosa de mundo. Membro da ABL (1989). F.S.BIBL.: Ode. 1955; coletânea da pesquisa
popular nordestina. 1964; Romance da pedra do reino. 1971 (rom.); O príncipe do sangue que vai-e-
volta. 1971(rom.); O movimento armorial. 1974 (poes.); Iniciação á estética, teoria literária. 1975;
Seleta em prosa e verso. 1975 (antol.). Historia do rei degolado nas caatingas do Sertão. 1976 (rom.).
REF.: Barros 20 PE, 203; Coutinho Ant. poes., 59, Linhares Diálogos rom. 96; Magaldi, Sábato,
Panorama do Teatro Brasileiro. s.d.; Marinheiro, Elizabeth. A intertextualidade das formas simples
(aplicada ao Romance da pedra do reino). 1977; Santiago, Silviano. Situação de A. S. In: Seleta em
prosa e verso. 1974, Suassuna, Ariano. A arte popular no Brasil. Ver. Brás. Cult, out/dez.1969;
Woensel, Maurice J. F. Van. Uma leitura semiótica de “Pedra do reino” de A. S., 1978; Guidarani,
Mario. Os pícaros e os trapaceiros de A.S. 1992; Vanderlei Vernaide. Viagem ao sertão brasileiro:
leitura geo-sócio-antropológica de A. S., Euclides da Cunha, Guimarães Rosa. 1997; Santos, Idelet
Mozart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. A.S, no Movimento Armorial. 1999; Lins,
Letícia. O imperador e a pedra. O globo, 19 jun. 1999. Filme: A compadecida, versão de o Auto da
compadecida, 1969 Dir.: Jorge Jonas; O Auto da compadecida, 1999 Dir: Guell Arraes. (minissérie.).”
141
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
I SUASSUNA E O RESGATE DO POPULAR – O AUTO 26
1.1 Contextualização 26 1.1.1 Arte e modernidade 29
1.2 Do teatro à minissérie: contextualização do Auto da Compadecida na obra de Ariano Suassuna 44
1.3 Estado de arte: continuidade ou ruptura 55
II PERCURSO TEÓRICO 64
2.1 A questão da Estética da Recepção 64
2.2 A herança medieval 70
III A CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS 80
3.1 Do texto teatral à minissérie: o processo de gênesis-mimesis 80
3.2 Discurso e ideologia: as limitações impostas pelo enquadramento 81
3.3 A construção das personagens: estudo das notas da produção 85
3.4 O cenário 98
IV O ESPAÇO COMO INTERAÇÃO COM O RECEPTOR 102
4.1 Da teatralidade a obra televisiva 106 4.1.1 Teleteatro 108
4.2 Contexto: as possibilidades na linguagem literária 112
4.3 O trabalho de Guel Arraes 123 4.3.1 O elenco, ficha técnica e trailer 128
CONSIDERAÇOES FINAIS 131
ANEXO 139