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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PAR
CENTRO DE CINCIAS SOCIAIS E EDUCAO
CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM LETRAS LNGUA PORTUGUESA
ARTHUR RIBEIRO COSTA E SILVA
O DIALOGISMO MARGINAL NO ESPAO ESCOLAR: INTERAO,
DISCURSO E IDEOLOGIA EM PICHAES DE ESCOLAS PBLICAS
DE BELM-PA
BELM PA
2013
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ARTHUR RIBEIRO COSTA E SILVA
O DIALOGISMO MARGINAL NO ESPAO ESCOLAR: INTERAO,
DISCURSO E IDEOLOGIA EM PICHAES DE ESCOLAS PBLICAS
DE BELM-PA
Trabalho de Concluso de Curso apresentado
como requisito parcial para obteno do ttulo de
graduao em Licenciatura em Letras Lngua
Portuguesa da Universidade do Estado do Par,
sob orientao da profa. Dra. Eliete de Jesus
Bararu Solano.
BELM PA
2013
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ARTHUR RIBEIRO COSTA E SILVA
O DIALOGISMO MARGINAL NO ESPAO ESCOLAR: INTERAO,
DISCURSO E IDEOLOGIA EM PICHAES DE ESCOLAS PBLICAS
DE BELM-PA
Banca examinadora
_________________________________
Profa. Dra. Eliete de Jesus Bararu Solano (orientadora)
Doutora em Lingustica (UnB)
__________________________________
Prof. Ms. Welton Diego Carmim Lavareda
Mestre em Comunicao, Linguagens e Cultura (Unama)
__________________________________
Profa. Ms. Sueli Pinheiro da Silva
Mestre em Lingustica (UFPA)
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Toda palavra espelho onde o refletido me interroga.
Bartolomeu Campos de Queirs
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Todo conhecimento uma construo social, fruto do trabalho humano, e
totalmente imbricado na teia de relaes de poder que constitui a realidade.
Todo conhecimento, portanto, pode servir ao desatar dos ns de conscincia
gerados pela ideologia, movimentando reflexes engajadas na antidominao e na
antiopresso, e contribuindo para a imploso da inacreditavelmente injusta ordem
social vigente.
Mas, por outro lado, todo conhecimento pode tambm representar mero
acrscimo de informao, desligada de qualquer interesse poltico, servindo assim
para acrescentar mais tijolos ao muro que afasta a sociedade de suas aspiraes
por voz, justia e dignidade.
Nenhum discurso em defesa da mudana do estado atual da sociedade
vlido de fato se no estiver inserido em toda ao consciente do sujeito. trabalho
de todo indivduo que se quer honesto a busca incessante por uma coerncia cada
vez maior entre ideias e prticas.
O pesquisador que no embute a luta no conhecimento que produz apenas
engana a si mesmo. Suas palavras caminham no vazio, e seus resultados morrem
to logo o ltimo ponto final grafado.
O nico conhecimento vlido o conhecimento que luta.
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RESUMO
O trabalho pretende analisar pela tica da linguagem o fenmeno das pichaes em
escolas pblicas de Ensino Mdio de Belm PA, em uma perspectiva scio-
histrica e dialgica de estudo da lngua, buscando expor os signos e discursos que
circulam nas pichaes, as formas de interao instauradas entre os jovens e entre
o jovem e a escola por meio delas, e aspectos estritamente lingusticos,
morfolgicos e sintticos de sua linguagem. Para tanto, articulam-se conjuntamente
trs teorias: a metodologia de estudo da linguagem proposta por Voloshinov,
Medvidev e Bakhtin, dando destaque aos conceitos de dialogismo, signo
ideolgico, plurilinguismo e gnero do discurso; os estudos sobre a pichao urbana
em seus aspectos formais e sociolgicos; e os estudos sobre a escola como espao
sociocultural, dando destaque ao papel dos sujeitos jovens que constroem o
cotidiano da escola e ao choque que ocorre entre suas culturas e a cultura da
instituio. analisado um corpus de 200 registros fotogrficos de pichaes em
paredes, muros, carteiras, teto e outras superfcies dos prdios de trs escolas
pblicas de Ensino Mdio de Belm. Os resultados da anlise conduzem a uma
compreenso dos lugares ocupados pelas pichaes e as formas que elas assumem
no interior da escola, ressaltando a diferenciao buscada pelos jovens em suas
inscries. Faz-se ainda uma diviso das pichaes em categorias, apontando os
signos e discursos mobilizados em cada uma delas, e expem-se as formas de
interao desenvolvidas entre os jovens e a escola por meio das pichaes, que as
revelam como enunciados vivos, que mobilizam diversas apreciaes dos
envolvidos na interao. Discute-se, por fim, a pichao escolar enquanto um
gnero do discurso, que advm da tradio scio-histrica da pichao urbana,
entrando, na escola, em choque com a cultura escolar, e expem-se suas
caractersticas principais: o tema concentrado em um sujeito jovem da escola, a
extenso curta, a relao de tenso entre a cultura jovem e a cultura escolar, que
repercute em suas formas, e as caractersticas lingusticas das inscries, com uso
de adjetivadores, marcadores fticos, flexes e sintagmas preposicionados
especficos.
Palavras-chave: Pichao. Escola. Dialogismo. Interao.
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SUMRIO
INTRODUO ____________________________________________________ 6
CAPTULO 1: TEORIA ____________________________________________ 12
1. Lngua __________________________________________________ 14
2. Pichao ________________________________________________ 22
3. Escola __________________________________________________ 30
4. Articulaes tericas ________________________________________ 43
CAPTULO 2: DADOS _____________________________________________ 45
1. Metodologia _____________________________________________ 47
2. Espaos e formas da pichao escolar ________________________ 49
3. Pichaes e pichaes ______________________________________ 57
6. Pichao e interao _______________________________________ 74
4. A pichao enquanto gnero do discurso________________________ 83
CONSIDERAES FINAIS___________________________________________ 91
REFERNCIAS ___________________________________________________ 93
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INTRODUO
Uma porta de banheiro sem frases um corpo sem alma.
Annimo de Florianpolis
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De nomes a smbolos anarquistas, de desenhos a ofensas garrafalmente
grafadas, passando por mensagens de nimo, versos de autoafirmao, marcas de
grupos e equipes, registros de relacionamentos amorosos e seus desfazimentos,
entre muitos outros temas; talvez sejam infinitas as possibilidades s quais servem
as pichaes nas escolas. Em paredes, carteiras, inclusive no teto dessas
instituies pretensamente responsveis pela educao de nossos jovens, os
prprios jovens encontram o espao para um estabelecimento muito peculiar de
relaes, que ignora regras do bom comportamento escolar, pe por terra o ideal do
ambiente de estudo limpo e agradvel, compondo de uma efervescncia de
linguagem o cenrio desoladoramente abandonado de nossas escolas pblicas.
Em tamanhos, materiais e estilos variados, a lngua, pelas pichaes,
transborda dos poros da escola sob um olhar reprovador, mas ao mesmo tempo
conformado, de supervisores, coordenadores e diretores. Dentro das escolas, essas
instituies pretensamente responsveis pela educao de nossos jovens, nas quais
ningum parece querer entrar e todos que precisam faz-lo se esforam
herculeamente para sair o quanto antes, as pichaes parecem perdidas em um
limbo, ou em uma dimenso paralela. Esto ali, gritando, marcando identidades,
mostrando heterogeneidades, mediando sujeitos do espao da escola; mas todos
fingem que no as veem. Seria a negao das marcas escritas reflexo da negao
da prpria realidade dos jovens? Que relaes de poder, de afinidades, de verdades
estariam imbricadas no jogo dessa interao marginal? Que percepes e sentidos
emanariam dos sujeitos envolvidos?
Como tudo no mundo, a vontade de responder essas perguntas sobre as
pichaes nas escolas no adveio simplesmente do nada. Em verdade, ela tem
relao direta com minha experincia como pesquisador e como ser humano, como
ser racional e emocional, portanto, ao longo da graduao em Letras na
Universidade do Estado do Par. Assim, gostaria de comear essa introduo com
uma breve textualizao dessa experincia.
Ano de 2010, tudo comeou a. A experincia ao mesmo tempo temerria e
oportuna de estudar anlise do discurso no primeiro ano de Letras foi um motivador
do interesse pelos aspectos sociolgicos e ideolgicos que perpassam o fenmeno
da linguagem. O professor da disciplina teve a audcia (que deveria ser regra) de
passar para a turma um texto de Mikhail Bakhtin sobre os gneros do discurso, sem
apelar para os famigerados textos explicativos, que, com a pretenso de facilitar o
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acesso s teorias, muitas vezes no passam de comentrios mal feitos que diluem o
contedo da obra. O desafio lanado pelo mestre originou meu primeiro grande
trabalho, uma anlise de diversos textos que faziam uso da intercalao de gneros
do discurso para provocar efeitos de sentido diversos. Em 2011, aps acrescentar
mais textos e desenvolver o trabalho com outros referenciais tericos, tive a honra
de apresent-lo na I Semana Acadmica dxs Estudantes de Letras e no XXXII
Encontro Nacional de Estudantes de Letras, ambos eventos estudantis1.
Assim, ainda em 2011, redigi meu primeiro projeto de pesquisa, intitulado O
voto no Big Brother Brasil: um novo gnero do discurso?, articulando esse interesse
pela teoria sociolgica dos gneros e o interesse por trazer luz de anlise cientfica
um elemento da cultura estigmatizado pela grande maioria da classe intelectual. No
ano seguinte, a pesquisa realizada foi registrada em um artigo, minha mais
importante e gratificante produo at hoje2.
Mas uma coisa ainda eu era desejoso de observar mais de perto, o ambiente
para o qual devemos ser ensaiados na licenciatura, e que tantas vezes parece to
distante: a escola, o lugar ao qual relegada a prtica de ensino. O trabalho com
boas professoras em algumas disciplinas pedaggicas da graduao reforou essa
vontade. A pesquisa sobre o voto no Big Brother, como afirmei no relatrio final,
proporcionou-me um aprofundamento terico importante, ressignificando olhares e
transformando concepes de pesquisa minhas. Faltava aproximar essa conquista
de uma reflexo sobre a escola e a educao, o que me daria, eu acreditava,
oportunidade de estud-las em aspectos alm dos vistos em sala de aula.
Em meados de 2012, pensando sobre o que focalizar como objeto da nova
pesquisa, percebi que a grande maioria das investigaes sobre a escola e a
educao na rea da linguagem era direcionada a anlises entre as quatro paredes
da sala de aula. Estuda-se redaes e produo textual dos alunos, prticas de
oralidade, ensino de gramtica, didatizao de gneros... a lista vasta, a ponto de
constituir uma nova grande rea dos estudos chamada lingustica aplicada, a lder
absoluta no nmero de teses defendidas nos anos recentes, conforme apontou o
1 A resposta positiva do pblico foi importante para a continuidade de meu interesse pelo vasto
campo de estudos aberto pela teoria dos gneros, e gerou no incio de 2012 minhas duas primeiras publicaes, um resumo expandido nos anais do II Simpsio Internacional do Ncleo Interdisciplinar de Estudos da Linguagem (SINIEL) e um nos anais do II Seminrio Interao e Subjetividade no Ensino de Lnguas, ambos disponveis na internet. 2 Ele se intitula O voto no Big Brother Brasil: um gnero entre o jogo e a casa" (RIBEIRO, s/d), e est
disponvel na internet para leitura online e download. O trabalho foi tambm apresentado em diversos eventos acadmicos.
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professor Heronides Moura, da UFSC, em recente participao em evento em
Belm. Eu, contudo, sempre desconfiei da validade de to massiva produo. No
assimilava a contribuio concreta de tais estudos para a prtica pedaggica na
rea da linguagem, nem reconhecia que eles conduziam a um conhecimento mais
forte sobre o processo de ensino e aprendizagem de lnguas e linguagens. Dessa
forma, tentei, em minha pesquisa, me afastar dessa abordagem cannica
aulocntrica da pesquisa sobre linguagens na escola, e me aproximar de suas
margens. Da tambm o marginal que aparece no ttulo deste trabalho.
Foi assim que compus o projeto de pesquisa homnimo a este trabalho, e, em
agosto de 2012, conquistei, ao lado de outros projetos de amigos, a segunda bolsa
de iniciao cientfica.
Durante alguns meses, de forma um tanto desorganizada e inconstante,
verdade, mas suficiente para uma anlise, entrei nas escolas que me serviram de
loci decidido a lanar um olhar sobre as incontveis pichaes encontradas em seu
ambiente. A empreitada era recebida em geral com certa surpresa e no sem uma
pitada de blague, a comear pelo virtual orientador do projeto de iniciao cientfica,
que declarou Rapaz, mas tu tem umas viagens, n?!
poca, com um olhar ingnuo acerca do estado geral de marasmo na
discusso cientfica que via me cercar, s interrompido por ocasionais grandes
eventos realizados na cidade, sentia-me com a ousadia de quem inaugura uma nova
grande rea de estudos, um gnio incompreendido, talvez, e que a reao dos
outros era como que uma intuio dessa grande destino. Hoje creio serem meus
destinos mais modestos, e que a reao das pessoas era mais relacionada a um
certo comodismo cientfico enraizado, que estabelecia regimes de verdade sobre o
que pesquisar e como pesquisar. Creio, assim, ter no tomado o caminho certo, mas
conseguido ao menos um traado diferente dos caminhos-padro, a fim de causar
um certo desconforto s conscincias de quem entrar em contato com meu trabalho.
Estou convencido de que a construo do novo s se d entre as brechas, entre as
fendas do sistema velho. No caso, o sistema velho um trabalho de concluso de
curso, essa instituio que, em minha realidade, ainda soa dramaticamente
protocolar e pouco transformadora, semelhante universidade, escola e a todo o
sistema que nos cerca. Mas ele pode servir para o questionamento dessa mesma
realidade, pelo aproveitamento das brechas que o sistema deixa em sua espessa
camada de concreto.
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Essa pesquisa, portanto, ambiciosa, no no sentido de uma revoluo, mas
de um levante, nos termos de Hakim Bey:
A Histria diz que uma Revoluo conquista "permanncia", ou pelo menos
alguma durao, enquanto o levante "temporrio". Nesse sentido, um
levante uma experincia de pico" se comparada ao padro "normal" de
conscincia e experincia. Como os festivais, os levantes no podem
acontecer todos os dias - ou no seriam "extraordinrios". Mas tais
momentos de intensidade moldam e do sentido a toda uma vida. O xam
retorna - uma pessoa no pode ficar no telhado para sempre - mas algo
mudou, trocas e integraes ocorreram - foi feita uma diferena. (BEY, s/d,
p. 15, grifo do autor e nosso)
O leitor vai encontrar aqui uma pesquisa que, por ser ela mesma uma
transgresso, assume a transgresso como portadora de um valor especfico, que
deve ser, antes de julgado e estigmatizado, compreendido. Meu trabalho desconfia
daqueles regimes de verdade mencionados acima, e, ainda que adote pontos de
vista tericos bem definidos, dedica-se a uma interpretao de seu objeto que adote
uma abertura, uma generosidade necessria recepo do que j foi to esquecido,
como as pichaes escolares. Quero, pelas vias do dialogismo-teoria, estabelecer
dilogo com o fenmeno estudado. Um dilogo marginal como a coisa com a qual
dialoga, que se desenlace da ilusria seriedade dos discursos que querem ser
cientficos e abrace uma perspectiva mais assumidamente humana de ver o mundo.
Nesse sentido, minha anlise criana (infantil um termo ruim). No se
surpreenda o leitor com expedientes literrios que perpassem o texto: eles so a
manifestao de uma alma ao mesmo tempo fascinada e questionadora, que no
consigo fazer nada sem carregar junto.
O trabalho comea com um captulo de retomada das teorias que basearam a
anlise, ambas imbricadas. A primeira, tomada da rea das Letras, corresponde
metodologia de anlise lingustica construda nas obras de Valentin Voloshinov
(s/da; s/db; 2010; 2009), Pavel Medvedev (2012), Mikhail Bakhtin (2010a; 2010b) e
seus comentadores, que coloca qualquer dizer sobre os fatores lingusticos do
enunciado em dependncia de um dizer anterior sobre as condies concretas da
interao verbal nas quais a enunciao ocorre e sobre as formas dessa
enunciao. A segunda aborda o fenmeno das pichaes urbanas, expondo sua
taxionomia e aspectos culturais e identitrios que perpassam o fenmeno. A terceira
corresponde aos estudos sobre a escola como espao sociocultural, dando ateno
principalmente aos jovens que frequentam esse espao como alunos, suas
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identidades, e as ressignificaes por eles promovidas na estrutura fsica e poltica
da escola. Logo a seguir, fazemos uma retomada geral do exposto no captulo,
pensando nas articulaes possveis entre as teorias e, a partir delas, nas questes
depreensveis do fenmeno da pichao na escola.
No segundo captulo, descrevemos a metodologia da pesquisa realizada e os
resultados das anlises obtidos aps o esforo interpretativo sobre as pichaes
recolhidas, por meio de fotografias, nas trs escolas visitadas, e tambm sobre
conversas e observaes em geral feitas nessas escolas. Finalizo o trabalho com
consideraes finais e apontamentos sobre perspectivas futuras de continuidade do
aqui realizado.
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CAPTULO 1
TEORIA
O maior elogio que se pode dar a um pensador no aplica-lo,
mas usar dos seus modos de raciocnio para estudar
fenmenos novos, ou dar uma nova viso a velhos fenmenos.
Assim, no se trata de perguntar: Scrates, Erasmo, Berkeley,
Freud, Marx, Saussure, Nietzsche, Lacan, Deleuze, Guattari...
do conta de tal assunto, mas se perguntar como, ocupando
um posto de observao desenhado pelas suas prticas de
pensar, eles enxergariam o fenmeno que estou estudando?
Joo Wanderley Geraldi
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Dividi este captulo em quatro tpicos. O primeiro aborda o princpio de tudo,
como mencionei na introduo: a teoria lingustica que fundamenta a pesquisa,
baseada principalmente na obra de Voloshinov (s/da; s/db; 2010; 2009), Medvidev
(2012) e Bakhtin (2010a; 2010b). traado um panorama geral da teoria e so
esclarecidos alguns conceitos-chave. O segundo aborda o fenmeno das pichaes
urbanas, expondo atravs de exemplos a taxonomia das pichaes e o fundo
sociolgico no qual o fenmeno se d. O terceiro traz minhas referncias acerca da
escola, apresentando-a como um espao sociocultural, onde ocorrem choques e
conflitos entre a cultura escolar e a cultura trazida pelos jovens de seu meio social,
provocando embates discursivos, ressignificaes do espao fsico da escola,
reconstituies de identidades, entre outros fenmenos que sero detalhados no
captulo. Ao final, fao uma breve retomada, procurando articular as teorias expostas
em direo anlise que fazemos no segundo captulo.
Sem mais, iniciemos a imerso.
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Lngua
Mas tudo que humano quer se comunicar. Sem a mulher Ado arranjaria outro jeito de coar as costas. Talvez encontrasse at uma maneira de se reproduzir sozinho. Afinal, anos depois, um descendente seu inventou o xerox. Quando Deus lhe deus a mulher, no lhe deu uma fmea, uma companheira ou algum para cuidar das suas camisas. Deu o que ele precisava para progredir, a precondio para o autoconhecimento e a razo, sem falar na literatura. Um interlocutor.
Luis Fernando Verissimo
Tracemos um panorama da teoria lingustica em que nos movemos na
elaborao deste trabalho. Trata-se da famosa concepo que Marcuschi (2008)
chama socio-histrica e dialgica. Adotamos essa terminologia por nos parecer
adequada, embora no concordemos com a totalidade do exposto por Marcuschi em
sua obra. Tal concepo costumeiramente atribuda s obras do russo Mikhail
Bakhtin ou a um suposto crculo do qual este seria o guia intelectual, subordinando
outros tericos como Valentin Voloshinov e Pavel Medvidev. Em meu artigo sobre o
voto no Big Brother Brasil, comentei o processo de uso dessa teoria em pesquisas,
afirmando que, geralmente,
so retiradas citaes de vrios textos desses autores, que, mesmo quando acabam servindo bem ou mal anlise que se quer fazer, ocultam enormes diferenas entre o pensamento dos trs, reproduzindo um erro originado h dcadas atrs, quando se atribuiu a Bakhtin a autoria de todos os textos dos outros dois autores. (RIBEIRO, 2012, p. 4)
Uma exegese dessa questo encontrada em Bronckart e Bota (2012), uma
obra muito criticada pela comunidade bakhtiniana, mas que considero muito
importante para a elucidao de diversos problemas do material terico tido como
bakhtiniano.
Os autores dissecam criticamente as biografias mais conhecidas de Bakhtin,
e tambm textos de reconstituio da teoria bakhtiniana. A concluso que esses
autores promoveram a alada de Bakhtin figura de grande terico em diversas
reas do conhecimento a partir da fabricao de informaes biogrficas, da criao
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de uma imagem negativa para os autores com os quais ele disputa a autoria das
obras.
No que diz respeito ao estatuto e significao da obra bakhtiniana reconstituda nesses termos, destacaremos em princpio que Ivanov, tanto quanto Clark e Holquist, prope um conjunto de interpretaes que consistem, no essencial, em declaraes peremptrias ilustradas com citaes desordenadas, sem recorrer a nenhuma verdadeira anlise, metodologicamente armada, do vasto corpus de textos que eles solicitam. Por sua vez, Todorov procedeu a um exame bem mais srio desses mesmos corpus, mas em seu projeto de evidenciar, contra tudo e contra todos, a unidade e a coerncia da gigantesca obra do maior terico da literatura do sculo XX, no se deu conta, ou empenhou-se em mascarar, as radicais diferenas da orientao epistemolgica subjacentes respectivamente aos textos iniciais e aos textos (muito) tardios de Bakhtin, os textos assinados por Voloshinov e Medvedev e os textos relativos a Rabelais e carnavalizao. (BRONCKART; BOTA, op. cit., p. 155)
Apontam os autores posteriormente as consequncias problemticas desse
empreendimento, ressaltando o desenvolvimento da Bakhtin Industry, uma corrente
de pesquisas que agregava as grandes diferenas entre as obras dos autores,
ignorando-as ou fazendo-as passar por irrelevantes. As diferenas so tratadas em
mincias na terceira parte do livro, que traz longa anlise comparativa das obras dos
trs autores. apontado que a concepo terica prxima do marxismo se encontra
apenas nas obras de Voloshinov e Medvidev e em poucas obras de Bakhtin,
enquanto a maioria das obras de Bakhtin traz uma concepo filosfica subjetivista e
espiritualista, muito distante do marxismo. A concluso, ousada, que Bakhtin fez
deliberado plgio das obras dos colegas aps o desaparecimento destes,
silenciando sobre a verdade enquanto sua figura era alada majestade.
Necessrio , pois, evitar o discurso de glorificao de Bakhtin presente em
obras de diversos professores renomados, como Sobral (2009), Faraco (2009) e
Brait (2005; 2010), e adotar uma postura clara em relao aos textos disputados.
Por isso, neste trabalho, damos a autoria a quem ela realmente pertence, e evitamos
a soluo de compromisso mencionada por Faraco (2009), de dar dupla autoria a
qualquer das obras, como a no se comprometer com a questo. Assim, o que
chamamos de concepo scio-histrica e dialgica aqui corresponde formulao
metodolgica de Valentin Voloshinov, exposta nas obras Marxismo e filosofia da
linguagem e O freudismo e nos artigos Estrutura do enunciado e Discurso na vida e
discurso na arte; contribuio de Pavel Medvidev com a obra O mtodo formal
nos estudos literrios; e, de Bakhtin, os textos O discurso no romance e Os gneros
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do discurso. Alm disso, devido a esse problema supracitado, e tambm por uma
tentativa de me dirigir o mximo possvel diretamente s obras fundadoras da teoria
e articul-la a meu modo, evito mobilizar trechos de comentadores da obra.
Feita essa explicao inicial, passemos exposio da teoria.
O projeto de Voloshinov e Medvidev se insere no quadro das teorizaes
marxistas acerca de diversas reas das cincias humanas que eram formuladas na
Rssia da primeira metade do sculo XX. A preocupao principal de Voloshinov
parece ter sido a construo de um mtodo sociolgico de anlise do enunciado,
baseado nas condies extralingusticas de comunicao verbal (Ivanova, 2011),
enquanto Medvidev, ao desenvolver um mtodo scio-histrico de anlise da
criao literria, estabelece uma concepo original de estudo da linguagem em
geral. Bakhtin, nas obras em que se adequa orientao aqui expressa, contribui
com algumas formulaes interessantes acerca do que chama de vida da
linguagem, como a anlise do plurilinguismo e a discusso acerca do gnero como
forma tpica de enunciado.
Voloshinov, a fim de chegar ao mtodo sociolgico, formulou crticas a duas
orientaes do pensamento filosfico lingustico, que chamou de subjetivismo
individualista e objetivismo abstrato. A primeira orientao aborda a linguagem como
um fenmeno submetido s leis da psicologia individual, sendo a tarefa do estudioso
da lngua a decifrao das leis da criao presentes em cada ato de fala pessoal.
Toda fala, assim, um ato coextensvel enunciao potica:
Como se apresenta a enunciao monolgica do ponto de vista do subjetivismo individualista? Vimos que ela se apresenta como um ato puramente individual, como uma expresso da conscincia individual, de seus desejos, suas intenes, seus impulsos criadores, seus gostos, etc. (VOLOSHINOV, 2010, pp. 114-115)
Por sua vez, o objetivismo abstrato prima pela anlise do sistema lingustico,
tido como uma entidade apartada da vontade do falante, dotada de regras prprias e
independentes dele. Tais regras so depreensveis dos enunciados da lngua, e
estabelecem ligaes entre os signos ou entidades bsicas do sistema. Exclui-se
assim todo tipo de ligao com valores artsticos ou leis cognitivas e afirma-se a
arbitrariedade e a lgica interna do sistema, no esprito do racionalismo clssico:
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A ideia de uma lngua convencional, arbitrria, caracterstica de toda corrente racionalista, bem como o paralelo estabelecido entre o cdigo lingustico e o cdigo matemtico. Ao esprito orientado para a matemtica, dos racionalistas, o que interessa no a relao do signo com a realidade por ele refletida ou com o indivduo que o engendra, mas a relao de signo para signo no interior de um sistema fechado (...) (op. cit., p. 86)
Voloshinov, aps caracterizar as duas correntes lingusticas, contrapem-nas
com o argumento que figura como o motor de toda sua obra: a realidade da lngua
eminentemente social. Ela no pode ser analisada nem do ponto de vista do falante
individualizado, nem do ponto de vista do sistema, visto que, desse jeito, encontrar-
se-iam somente regras abstratas apartadas da realidade concreta da lngua, e,
daquele jeito, falsear-se-ia a influncia do interlocutor na enunciao.
A verdade, para Voloshinov, encontra-se alm, mais longe, manifesta uma
idntica recusa tanto da tese quanto da anttese (op. cit., p. 112). Afirma ele, mais
adiante (p. 116, grifo do autor): Qualquer que seja o aspecto da expresso-
enunciao considerado, ele ser determinado pelas condies reais da enunciao
em questo, isto , antes de tudo pela situao social mais imediata. Caracteriza-se
assim a interao verbal, pela qual possvel analisar toda enunciao como
produto da relao entre o locutor e o interlocutor, ou ainda entre o locutor e o
auditrio social prprio bem estabelecido, em cuja atmosfera se constroem suas
dedues interiores, suas motivaes, apreciaes, etc. (op. cit., p. 117). Assim, em
suma,
toda palavra comporta duas faces. Ela determinada tanto pelo fato de que procede de algum, como pelo fato de que se dirige para algum. Ela constitui justamente o produto da interao do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expresso a um em relao ao outro, isto , em ltima anlise, em relao coletividade. (...) A palavra o territrio comum do locutor e do interlocutor. (op. cit., p. 117, grifo do autor)
Tal formulao entra em congruncia com a anlise feita por Voloshinov
acerca do psicologismo de sua poca em O freudismo, onde, em oposio
explicao biolgico-sexual dos fenmenos da psicologia individual, o autor postula:
Efetivamente, no existe o indivduo biolgico abstrato (...) No existe o homem fora da sociedade, consequentemente, fora das condies socioeconmicas objetivas. (...) O indivduo humano s se torna historicamente real e culturalmente produtivo como parte do todo social, na classe e atravs da classe. Para entrar na histria pouco nascer fisicamente: assim nasce o animal, mas ele no entra na histria. necessrio algo como um segundo nascimento, um nascimento social. O
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homem no nasce como um organismo biolgico abstrato, mas como fazendeiro ou campons, burgus ou proletrio: isto o principal. Ele nasce como russo ou francs e, por ltimo, nasce em 1800 ou 1900. S essa localizao social e histrica do homem o torna real e lhe determina o contedo da criao da vida e da cultura. Todas as tentativas de evitar esse segundo nascimento o social e deduzir tudo das premissas biolgicas de existncia do organismo so irremediveis e esto condenadas ao fracasso: nenhum ato do homem integral, nenhuma formao ideolgica concreta (o pensamento, a imagem artstica, at o contedo de um sonho) pode ser explicada e entendida sem que se incorporem as condies socioeconmicas. (VOLOSHINOV, 2009, p. 11, grifo do autor)
esse carter fundamentalmente sociointeracional que envolver os
conceitos principais da teoria de Voloshinov. O primeiro deles o de signo
ideolgico. Para Voloshinov, o estudo do signo lingustico no pode ser dissociado
do estudo das ideologias, pois os dois tem relao direta: no pode se tornar signo
seno aquilo que adquiriu um valor ideolgico, e, na contramo, tudo que
ideolgico possui um valor semitico. Ideologia entendida aqui no por ideia
invertida da realidade, como na formulao marxista clssica (CHAUI, 1984), mas
por todo o conjunto de instituies de origem humana no mundo (cincia, arte,
filosofia, cultura, etc.). Assim, realizando-se no processo da relao social, todo
signo ideolgico, e portanto tambm o signo lingustico, v-se marcado pelo
horizonte social de uma poca e de um grupo social determinados (VOLOSHINOV,
op. cit., p. 45, grifo do autor). E, finalmente:
O ser, refletido no signo, no apenas nele se reflete, mas tambm se refrata. O que que determina esta refrao do ser no signo ideolgico? O confronto de interesses sociais nos limites de uma s e mesma comunidade semitica, ou seja: a luta de classes. (...) em todo signo ideolgico confrontam-se ndices de valor contraditrios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes. (op. cit., p. 47, grifo do autor)
importante ressaltar que tambm no entendemos classe na oposio
clssica entre burguesia e proletariado, mas em uma formulao mais aberta, que
dependa dos ndices de valor envolvidos em cada contexto (BOTTOMORE, 2001).
Pode haver, por exemplo, um ndice de valor masculino em oposio a um feminino,
ou um infantil em oposio a um adulto, etc. O essencial da formulao mantido: a
impregnao de ndices de valor em todo signo, e sua inseparabilidade da ideologia.
O segundo ponto, essencial em nossa anlise, a definio de gnero
discursivo. Voloshinov afirma:
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Ora, o enunciado (...) se constitui e se completa exatamente numa interao verbal determinada e engendrada por uma certa relao de comunicao social. Deste modo, cada um dos tipos de comunicao social que ns citamos organiza, constri e completa, de modo especfico, a forma gramatical e estilstica do enunciado, assim como a estrutura de onde ela se destaca. Ns daremos o nome de gnero a essa estrutura. (s/db, p. 3)
Desse modo, as relaes de comunicao social geram formas de interao
estruturadas tpica e especificamente, distinguveis por seu contedo gramatical e
estilstico. A essas formas chamam-se gneros, e esto estreitamente vinculadas a
uma dada situao social, qual est submetida sua estrutura:
Estas formas de interao verbal acham-se muito estreitamente vinculadas s condies de uma situao social dada e reagem de maneira muito sensvel a todas as flutuaes da atmosfera social. Assim que no seio desta psicologia do corpo social materializada na palavra acumulam-se mudanas e deslocamentos quase imperceptveis que, mais tarde, encontram sua expresso nas produes ideolgicas acabadas. (VOLOSHINOV, 2010, p. 43)
Aqui se insere a formulao de Medvidev e Bakhtin a respeito do gnero.
Este d a definio clssica de gnero, em um ensaio dedicado ao tema (BAKHTIN,
2010a), colocando-a no horizonte dos variados campos da atividade humana, e
afirmando que os gneros se modificam e se intercruzam medida em que esses
campos se desenvolvem na histria. Define ainda trs elementos analisveis na
construo do gnero: o estilo (as escolhas lexicais e gramaticais), a construo
composicional (o ordenamento dos elementos) e o contedo temtico (relacionado
situao histrica concreta).
O emprego da lngua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e nicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condies especficas e as finalidades de cada referido campo no s por seu contedo (temtico) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleo dos recursos lexicais, fraseolgicos e gramaticais da lngua mas, acima de tudo, por sua construo composicional. (...) cada campo da utilizao da lngua elabora seus tipos relativamente estveis de enunciados, os quais denominamos gneros do discurso. (BAKHTIN, 2010a, pp. 261-62, grifo do autor)
Nessa mesma linha, Medvidev, nO mtodo formal, apresenta o gnero
como uma forma tpica de enunciado, afirmando que somente a partir dessa
tipificao possvel compreender cada elemento de um texto. Segundo Medvidev
(2012, p. 198):
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Se abordarmos o gnero do ponto de vista da sua relao interna e temtica com a realidade e sua formao, ento, podemos dizer que cada gnero possui seus prprios meios de viso e de compreenso da realidade, que so acessveis somente a ele. (...) Cada um dos gneros efetivamente essenciais um complexo sistema de meios e mtodos de domnio consciente e de acabamento da realidade.
A respeito dos gneros, um conceito interessante o de intercalao, que
abordei em minhas primeiras produes (SILVA, 2013). A intercalao ocorre (...)
tanto quando uma forma de um determinado gnero inserida em meio a um
enunciado de outro gnero, quanto quando ocorre uma mistura de formas de
gneros que torne imprecisa a delimitao entre eles (p. 245). Cada intercalao
corresponde a um dado efeito de sentido, relacionado com o campo de utilizao
dos gneros envolvidos no fenmeno.
Um ltimo conceito da obra de Voloshinov o dialogismo. O autor o define
como a constante orientao de todo enunciado a outros enunciados, sejam eles j
ditos ou a serem ditos:
Toda enunciao, mesmo na forma imobilizada da escrita, uma resposta a alguma coisa e construda como tal. No passa de um elo da cadeia dos atos de fala. Toda inscrio prolonga aquelas que a precederam, trava uma polmica com elas, conta com as reaes ativas da compreenso, antecipa-as. (VOLOSHINOV, 2010, p. 101)
Bakhtin fala nessa direo nO discurso no romance (BAKHTIN, 2010b) Ao
defender o romance como uma diversidade social de linguagens organizadas
artisticamente (p. 74), o russo chega anlise dessa prpria diversidade,
colocando-a no horizonte de duas foras da vida da linguagem: a centrpeta, que
procura promover a reduo da diversidade da linguagem a um padro, defendendo-
o contra a presso aplicada pela outra fora, a centrfuga, que atua na recriao e
transformao ininterrupta das formas lingusticas, gerando o plurilinguismo social,
que, segundo o autor, um plurilinguismo dialogizado, pois se volta constantemente,
em polmica, para as lnguas padronizadas pela fora centrpeta. Ampliando essa
formulao, podemos entender esse dialogismo da mesma forma que o conceituado
por Voloshinov: a constante orientao, seja em alinhamento ou polmica, crtica ou
ironia, de enunciados a outros.
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So esses os principais fatores que levam o autor metodologia sociolgica
de anlise lingustica, que seguimos nesta pesquisa. Segundo Voloshinov (2010, p.
129), a ordem metodolgica para o estudo deve ser:
1. As formas e os tipos de interao verbal em ligao com as condies concretas em que se realiza. 2. As formas das distintas enunciaes, dos atos de fala isolados, em ligao estreita com a interao de que constituem os elementos, isto , as categorias de atos de fala na vida e na criao ideolgica que se prestam a uma determinao pela interao verbal. 3. A partir da, exame das formas da lngua na sua interpretao lingstica habitual.
essa metodologia que nos guia em nossa pesquisa: partir das formas de
interao estabelecidas no espao escolar, para, em ligao com elas, estudar as
formas e as caractersticas das enunciaes, e s ento fazer a interpretao
lingustica habitual, ou seja, expor fatos lxico-gramaticais encontrados no
fenmeno. Desse ponto de vista, os fatos estritamente lingusticos passam a estar
relacionados a uma condio social concreta, onde acontecem e so moldados por
sujeitos em interao, e no a um sistema fechado e apartado dos falantes.
Seguindo, pois, essa proposta, passamos a seguir a expor o fenmeno da
pichao urbana em seus aspectos formais e sociais, para depois apresentar
aspectos socioculturais da escola, teorias que nos auxiliaro na posterior anlise.
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Pichao
Pichao registrada em banco de nibus
Ao se iniciar uma discusso sobre pichao, me parece que se retira do
armrio um velho ba que todos sabem que est ali, mas ningum se lembra mais.
Nardi (2010, p. 16) afirma que em So Paulo, comum que j no se preste tanta
ateno pichao. Afinal, paulistanos convivem com sua onipresena h um bom
tempo, constatao que, guardadas as devidas propores geogrficas, pode ser
estendida a Belm, e, creio, a qualquer cidade que tenha pichaes inseridas em
sua paisagem.
A pichao, em geral, tratada como caso de polcia, sendo atribudo ao
pichador o estatuto de criminoso e sua escrita de poluio cidade. Veja-se o
texto da lei n 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispe sobre crimes
ambientais:
Art. 65. Pichar ou por outro meio conspurcar edificao ou monumento urbano: Pena - deteno, de 3 (trs) meses a 1 (um) ano, e multa. 1o Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artstico, arqueolgico ou histrico, a pena de 6 (seis) meses a 1 (um) ano de deteno e multa. (BRASIL, 1998)
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No entanto, esse ba guarda objetos de uma representatividade considervel,
em especial para a cultura do grupo social que adotou a pichao como forma de
expresso mais eminente, os jovens da periferia das grandes cidades. Lassala
(2010, p. 47) considera a pichao
produto das primeiras manifestaes de expresso visual humana, visto que o ser humano, por meio de sua necessidade de se expressar, usou como primeiro suporte a parede. Portanto, considera-se que a origem da pichao est ligada ao surgimento do interesse em comunicao humana.
Nesta mesma direo, Zan et al (2010, p. 466) considera que
o conceito de grafite e pichao remete a uma interlocuo com o conceito de juventude ou juventudes, e um lugar terico que torna visvel as formas de comunicao dos jovens, bem como formas de protesto de grupos oprimidos e ainda maneiras de estabelecer um status, uma marca em relao a um grupo.
O primeiro passo para a compreenso da pichao contempornea pode ser
sua contextualizao histrica. Lassala (2010) indica as representaes
pictogrficas (cenas de caadas, objetos de uso pessoal, entre outros), na Pr-
Histria, em paredes de cavernas como as primeiras pichaes, surgindo depois a
linguagem escrita padro, o que no significou o abandono da pichao como forma
de expresso. O autor cita os vestgios da cidade de Pompeia, na Itlia, onde so
encontradas escrituras nos muros e paredes datando de mais de 1.500 anos atrs
(Figuras 1 e 2).
Na Roma Antiga, o grafite era uma forma de escrita respeitada at mesmo interativa e no o tipo de desfigurao que vemos hoje em lugares rochosos e cubculos de banheiros. Dentro de residncias da elite como a de Maius Castricius uma casa de quatro andares com janelas panormicas com vista para a baa de Npoles, escavada nos anos 60 ela [a pesquisadora Rebecca Benefiel] examinou 85 inscries. Algumas eram felicitaes de amigos, cuidadosamente gravadas em torno de afrescos no melhor ambiente da casa. Em uma escadaria, as pessoas se revezavam citando poemas populares e acrescentando seus prprios versos sagazes. Em outros lugares, as inscries incluam desenhos: um barco, um pavo, um cervo saltando. (OHLSON, 2010, p. 1)
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Figura 1 Pichao encontrada em Pompeia
Figura 2 - Pichaes encontradas em Pompeia
Contextos especficos da Histria demonstram a persistncia da pichao.
Em 1968, durante as revoltas populares na Frana, os muros de Paris ficavam
repletos de pichaes de protesto.
Essas pichaes tinham objetivos claros e se voltavam contra a ideologia vigente. O spray era a ferramenta para a escrita nos muros e as letras eram de fcil entendimento para todos, pois comunicavam a indignao de alguns grupos diretamente para o cidado mdio e para as autoridades. (LASSALA, 2010, p. 47)
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Em Nova York, no incio dos anos 70, surge o movimento do grafite,
encabeado pela populao negra e imigrante dos guetos da cidade. Era tambm
uma resposta represso sofrida pelas revoltas urbanas da poca. Segundo
Lassala (op. cit., p. 49),
as intervenes americanas pioneiras trabalhavam no nvel dos signos, pois os escritos continham os codinomes dos interventores e, por vezes, o endereo de onde eles residiam. Esses grafismos eram to grandes e agressivos que o significado pouco importava para o cidado fora desse circuito.
Zan et al (2010, p. 467) aponta o surgimento do grafite nesse contexto, a
partir do movimento Hip Hop, que consistia da tentativa de apresentar alternativas
no mbito da expresso artstica aos jovens da periferia de Nova York na dcada
de 70. O grafite, ao lado da dana break e da msica rap, surge como uma dessas
alternativas, e os jovens passam a escrever usando sprays em muros, trens e
estaes de metr da cidade.
No mesmo perodo, o Brasil vivia o clima de embate entre o regime da
ditadura civil-militar e os grupos da sociedade privados de direitos. Os jovens
passam a utilizar a pichao como forma de protesto contra o regime. (LASSALA,
2010, p. 48). Na dcada de 80, o movimento Hip Hop chega ao Brasil,
estabelecendo o grafite e a pichao como expresses dos jovens da periferia,
enfrentando discriminao (ZAN et al, 2010, p. 467).
Esse histrico nos auxilia na compreenso da pichao como ela se
apresenta hoje. Lassala (2010, p. 35) afirma:
A pichao , na essncia, uma ao de transgresso para marcar presena, chamar ateno para si ou para alguma causa por meio da subverso do suporte. No define um padro esttico em relao forma e ao contedo embora possa ocorrer, mas privilegia o uso da palavra (tipografia); no caso de desenhos ou ilustraes, estes costumam ser muito simples, prximos de smbolos.
Por trs de seu carter aparentemente rudimentar, a pichao se constitui
como um fenmeno complexo, como aponta Lassala (op. cit.) ao estabelecer uma
taxonomia dele. Alguns elementos das pichaes so o tag, assinatura em ingls,
que consiste da identificao do autor; o tag reto, estilo de escrita predominante na
pichao, caracterizado por letras retas, alongadas e pontiagudas (...) que
procuram ocupar o maior espao possvel no suporte (p. 63); as grifes, grupos de
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vrios pichadores, geralmente com um nome e uma forma pictrica de
representao, um smbolo a ser reproduzido pelos integrantes como forma de
identificao (p. 64); os nomes dos pichadores, constitudos de
abreviaes, nomes pessoais, palavras completas ou codinomes que funcionam como forma de restrio, pois apenas aqueles que conhecem os interventores conseguem identifica-los, fator que contribui tambm para o reconhecimento dos feitos. (...) os pixadores deixam seus recados com poucas letras concorrendo uns com os outros como se fossem marcas de produtos disputando espaos publicitrios nas paredes da cidade (p. 66)
Cabe apontar ainda alguns outros fatores do universo das pichaes,
registrados por Lassala (op. cit.): o ibope, indicador de popularidade obtido pelas
pichaes de um grupo, pelo qual ocorre disputa entre os grupos: deve-se aparecer
na mdia ou pichar em lugares mais movimentados, monumentos histricos,
residncia de pessoas envolvidas por escndalos enfaticamente cobertos pela
mdia (p. 71). Tambm h o chamado atropelo, que consiste na escrita de um
pichador sobre a marca deixada por outro, e uma das grandes ofensas que podem
ser feitas a um pichador. Lassala (op. cit., p. 78) aponta:
Na impossibilidade de pixar sobre o outro, muitos pichadores acabam escrevendo nos muros de modo a encaixar suas letras sem esbarrar nas que constam no local, o que acaba por trazer uma imagem interessante em locais de grande disputa de visibilidade ou locais revestidos com materiais que dificultam o apagamento das letras, como pedras, ladrinhos, porcelanas etc.
importante mencionar ainda o grafite, um tipo de interveno urbana
desenvolvido a partir das pichaes, que utiliza tcnicas de pintura e noes de
movimento, volume, perspectiva, cor e luz (LASSALA, op. cit., p. 30), mas que entra
em oposio sua fonte e abandona o carter marginal dela por gozar de maior
aceitao social. Isso gera embates entre grafiteiros e pichadores, pois muitas vezes
pichaes so apagadas para dar lugar a intervenes de grafite contratadas pelos
proprietrios do suporte. Costa (2007, pp. 180-1) problematiza a questo em termos
da perda do carter transgressor da pichao, em um trecho visceral:
Arte de interveno domesticada pelas estratgias de absoro, o grafite perde dia a dia o trem da histria para o cinismo exttico da mercadoria, do holofote, ganhou status de arte de galeria com direito curadoria, patrocnio e apoio governamental (...) Agenciado por arquitetos, curadores e produtores culturais que o integram ao modelo visual contemporneo numa
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esttica que embevece e satisfaz: harmonia e justa-proporo imemorial reeditada por exmios grafiteiros. Num caso bem especfico, o do Rio de Janeiro, foi abocanhado pela classe mdia da zona sul carioca que o levou como arte decorativa para as paredes de seus apartamentos para diminuir o tdio de crianas enjauladas na assustadora metrpole em decomposio. Um drops esttico para o longe das balas perdidas. Logo se v que o grafite entrou na moda. T na roupa, no carro, no tnis, na mdia-mundo. O grafite, enfim, foi se transformando em arte de galeria, perdendo a potncia poltica e intervencionista que privilegiava a cidade como seu espao de interveno e discurso, colocando-o como resistncia a um modelo de arte completamente sujeito aos mecanismos de controle de museus, galerias, bienais, publicidade. Ordem na cidade. Harmonia e beleza no desejo assptico contemporneo. Com isso v-se que o grafite, nascido dos conflitos raciais, da misria econmica e cultural como um disparo na direo da ordem burguesa de homogeneizao dos sujeitos nas metrpoles modernas, reinstala-se como o decorativismo morno em nome do novo nas mos de atravessadores da arte, vidos pela descoberta de talentos que venham azeitar as engrenagens do velho sistema de arte.
Zan et al (2010, p. 473) considera que tm-se utilizado cada vez mais o
grafite na cidade como forma de combater a pichao. Enquanto a primeira , por
muitas vezes compreendida como arte, a pichao discriminada por ser
considerada como responsvel por sujar e poluir a cidade. (Figuras 3 e 4) Vejamos
o que diz sobre o grafite a mesma lei citada acima, notando o contraste entre o
tratamento dado ao grafite e pichao:
2o No constitui crime a prtica de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimnio pblico ou privado mediante manifestao artstica, desde que consentida pelo proprietrio e, quando couber, pelo locatrio ou arrendatrio do bem privado e, no caso de bem pblico, com a autorizao do rgo competente e a observncia das posturas municipais e das normas editadas pelos rgos governamentais responsveis pela preservao e conservao do patrimnio histrico e artstico nacional. (BRASIL, 1998)
Lassala (2010, p. 82) aponta ainda:
A forma das letras das pichaes tem estreita relao com o movimento do corpo dos pichadores. O fator humano e a condio em que so executadas as pixaes
3 influenciam o resultado final, portanto, as letras acabam sendo
orgnicas, como extenso do corpo do interventor, e suas formas retas sofrem essa influncia gestual por serem desenhadas rapidamente e, muitas vezes, em condies de pouco equilbrio.
3 Lassala (2010) faz em sua obra distino entre a pichao, grafada com ch, entendida como
qualquer tipo de interveno marginal urbana, e a pixao, grafada com x, entendida como especificamente a interveno que faz uso do tag reto, caracterstica de So Paulo. Da utilizar as duas grafias, s vezes em um mesmo trecho da anlise.
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Figura 3 Parede externa com pichaes
Figura 4 Muro com grafites
notrio que todo esse universo esttico e formal caminha lado a lado com
um universo identitrio e discursivo. Os autores que consultamos so unnimes em
afirmar que a anlise da pichao deve chegar a uma anlise do prprio estatuto da
cidade. Quando se constata que a maioria dos jovens praticantes da pichao no
tem acesso aos recursos da cidade, como tecnologia, mercado, bens culturais (ZAN
et al, op. cit., p. 471), v-se que a pichao representa uma forma de resistncia
contra essa segregao social.
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Pela escrita nos muros da cidade, os jovens da periferia se mostram e se
definem, subvertendo as normas urbanas e, conforme dizem Cruz e Costa (2008, p.
99), dizendo a esta mesma cidade coisas suas que ela prpria tenta esconder.
A pichao pode ento ser compreendida como expresso dos grupos oprimidos, que face sua excluso no lhes restam alternativas na busca pela autoafirmao a no ser pichar os smbolos que representam essa sua condio social. So ento escolhidos prdios, monumentos e outros espaos considerados como patrimnio pblico. (ZAN et al, op. cit., p. 471)
A concepo que nos guia, pois, neste trabalho, a compreenso da
pichao como uma transgresso no espao social, mas sem juzo de valor negativo
a respeito da transgresso, pensando-a como constitutiva de um espao social
desigual, segregador e criador e reprodutor de ideologias. Desse modo, no falamos
da pichao como problema que deve ser solucionado, crime que deve ser
castigado. Abordamo-la, sim, como material pelo qual se contam histrias, se narram
identidades. Como Cruz e Costa (op. cit., p. 98) postulam:
O que nos cabe, enquanto cidados que vivenciam esta forma de expresso, compreend-la enquanto manifestao humana, o que nos permitir a no-represso a esta atividade, que comparada s diversas formas de violncia que assistimos no nosso dia-a-dia, como a poltica, a social e a ecolgica, deixa de ser uma barbrie.
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Escola
Eu nunca deixava ningum me dizer que eu no prestava. Mas os professores estavam sempre dizendo isto pra gente. O que eles sempre jogavam para cima da gente era que a gente devia ser bancrio. E eu s dizia: 'Bolas, eu no vou ser bancrio coisa nenhuma'. A, a gente comeava a chatear os professores, porque eles ofendem tanto a gente! Eles ofendem a moral pblica. O que eles faziam com a gente era um crime. Mas nem culpa deles. H sempre algum acima forando eles a fazer as coisas.
Johnny Rotten
Em setembro de 2013, o site de notcias do jornal Folha de S. Paulo publicou
uma notcia interessante. O garoto britnico Taylor Mathes fora suspenso de sua
escola, com a justificativa da direo de que sua camisa, que fazia meno banda
de metal Motrhead e trazia estampada uma figura demonaca, estava relacionada a
gangues. O garoto, sem se dar por vencido, afirmou em suas redes sociais que
continuaria usando as camisas da banda que admirava, demonstrando seu orgulho
pelo Motrhead. Com o episdio, a banda se manifestou em apoio ao jovem f,
inclusive enviando novos produtos com sua marca ao garoto.
Abro este tpico com esse episdio para mostrar o quanto uma realidade
prxima de ns, e no perdida num passado obscuro, os conflitos entre escola e
aluno. No o conflito entre professor e aluno, to enganador e por isso mesmo to
difundido na mdia, mas entre escola, a instituio escola, e aluno, o sujeito aluno,
que traz elementos externos escola para dentro dela. Esse choque cultural, mais
do que um mero fenmeno, capaz de produzir uma teoria prpria, que observe a
educao com um olhar perscrutador sobre quem so os alunos, o que eles querem,
o que trazem consigo e como so recebidos pelo sistema que os mantm ligados
por uma parte significativa de sua vida. Tentarei neste tpico falar um pouco sobre
educao e escola, sempre tendo essa perspectiva em mente. O leitor h de
compreender a justificativa mais adiante.
Pois bem. Iniciemos por um breve histrico.
Quando comecei a me inquietar sobre como abordar a escola para a pesquisa
que queria fazer, no tinha ideia de onde ir buscar referncias. Tinha em mente os
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atributos necessrios teoria que buscava: ateno s subjetividades produzidas na
escola, aos discursos em circulao nela, ao modo como a cultura externa escola
entra em confronto com a cultura escolar. Em suma, necessitava de uma teoria
consideravelmente distante das referncias pedaggicas que se costuma utilizar
quando se trata de ensino de lnguas, pois estas do ateno, majoritariamente, ao
trabalho do professor e aos contedos de ensino. Eu necessitava ir s margens da
escola, quilo que acontece nela mas costuma ser ignorado, tanto por professores
quanto por pesquisadores.
Iniciei a busca. A primeira referncia que me chamou a ateno foi uma obra
fruto de parceria entre professores do ensino bsico e pesquisadores universitrios
(NACARATO; GRANDO; SILVA, 2012), que trazia anlises sobre a infncia e a
juventude no interior do cotidiano escolar. A partir dessa obra, cheguei quela que
seria minha referncia mais importante: os artigos de Juarez Dayrell (DAYRELL,
2007; s/d), que abordam a escola como um espao sociocultural, onde ocorrem
choques e conflitos entre a cultura escolar e a cultura trazida pelos jovens de seu
meio social. Eu descobrira minha linha de anlise sobre a escola.
Os artigos de Dayrell puxaram outros, como os de Ezpeleta e Rockwell
(2007), Fanfani (2000) e Tomazetti et al (2011), que contriburam para amadurecer a
ideia sobre essa linha, mas o ponto mais importante onde Dayrell me fez chegar foi
a fantstica obra de McLaren (1991), que traz um retrato meticuloso e engajado do
cotidiano escolar baseado na anlise de rituais na educao. Foucault (1987) e Illich
(1985) vieram me auxiliar no decorrer do processo, a partir de falas ouvidas em
eventos e materiais encontrados na internet.
Eis a histria de minha grata incurso pelo estudo da escola. Comecemos,
pois, diretamente com a definio que Dayrell (s/d, p. 1) d para essa linha de
investigao:
Analisar a escola como espao sociocultural significa compreend-la na tica da cultura, sob um olhar mais denso, que leva em conta a dimenso do dinamismo, do fazer-se cotidiano, levado a efeito por homens e mulheres, trabalhadores e trabalhadoras, negros e brancos, adultos e adolescentes, enfim, alunos e professores, seres humanos concretos, sujeitos sociais e histricos, presentes na histria, atores na histria. Falar da escola como espao sociocultural implica, assim, resgatar o papel dos sujeitos na trama social que a constitui, enquanto instituio.
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O que significa esse resgate do papel dos sujeitos para a anlise da
instituio escolar? Significa reconhecer que os atores em cena na escola produzem
formas de sociabilidade especficas, que no necessariamente so perpassadas
pelos elementos da cultura escolar. Como afirmam Tomazetti et al (2011, p. 87),
pode-se (...) estar na escola sem subjetivar-se nela, lanando mo de espaos
intersticiais para constituir nela outros modos de habitar o presente, mesmo que
estes signifiquem a rejeio da prpria cultura escolar.
Rockwell e Ezpeleta (2007) problematizam essa dinmica escolar na
perspectiva do que chamam de dimenso cotidiana da escola. As autoras apontam
que a escola foi analisada por um perodo como um aparelho ideolgico do Estado,
que reproduzia a dominao e a injustia gerada por ele. Porm, essa anlise no
deve ser adotada de forma absoluta, nem transposta para todos os elementos
presentes na escola, pois, nesta dimenso cotidiana, os trabalhadores, os alunos e
os pais se apropriam dos subsdios e das prescries estatais e constroem a escola
(p. 134). O mesmo acontece com a anlise da estrutura burocrtica da escola:
Os problemas conceituais aparecem a partir do momento mesmo em que se pretende delimitar a unidade escolar a fim de orientar a observao. Aos poucos desaparece o referencial dado pelo sistema escolar. Os limites administrativos e institucionais de cada escola tornam-se difusos ao nvel da existncia diria e a realidade escolar se interpenetra na realidade social e poltica circundante. impossvel, por exemplo, explorar as formas de negociar a imprescindvel ajuda dos pais na manuteno da escola sem atingir o substrato da organizao social e poltica local. impossvel tambm compreender o que acontece numa sala de aula sem o referencial da cultura imediata. (ROCKWELL; EZPELETA, op. cit., p. 138)
As autoras formulam uma anlise que busca os sentidos das prticas dos
atores do cotidiano escolar, reconhecendo a capacidade desses sujeitos de
transportar de seu cotidiano elementos que entram na escola e com ela dialogam de
diversas formas, pela apropriao, elaborao, refuncionalizao ou repulsa que os
sujeitos individuais levam a cabo (ROCKWELL; EZPELETA, op. cit., p. 142). o
que Dayrell (s/d, p. 2) aponta:
A escola, como espao sociocultural, entendida, portanto, como um espao social prprio, ordenado em dupla dimenso. Institucionalmente, por um conjunto de normas e regras, que buscam unificar e delimitar a ao dos seus sujeitos. Cotidianamente, por uma complexa trama de relaes sociais entre os sujeitos envolvidos, que incluem alianas e conflitos, imposio de normas e estratgias individuais, ou coletivas, de transgresso e de acordos. Um processo de apropriao constante dos espaos, das normas,
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das prticas e dos saberes que do forma vida escolar. Fruto da ao recproca entre o sujeito e a instituio, esse processo, como tal, heterogneo.
Como antecipamos acima, essa soluo de pesquisa demanda uma
diferenciao no conceito de sujeito. O sujeito, na perspectiva do estudo do
cotidiano escolar, aparece como um ser consciente, que se diferencia justamente
pela sua relao particular com a vida externa e interna escola:
O conceito de vida cotidiana delimita e, ao mesmo tempo, recupera conjuntos de atividades caracteristicamente heterogneas empreendidas e articuladas por sujeitos individuais. (...) Deste modo, elas se restringem a pequenos mundos, cujos horizontes definem-se diferentemente de acordo com a experincia direta e a histria de vida de cada sujeito. (...) O que cotidiano para uma pessoa, nem sempre o para outras. Num mundo de contrastes como o da escola, comea-se a distinguir assim as mltiplas realidades concretas que vrios sujeitos podem identificar e viver como escola e a compreender que ela objetivamente distinta de acordo com o lugar em que vivenciada. (ROCKWELL; EZPELETA, op. cit., p. 140)
Como se v, observando a escola desse ponto de vista, abre-se um vasto
leque de fenmenos do cotidiano escolar que devem ser considerados pelo
pesquisador. Mais ainda: necessrio, ao adotar essa perspectiva, estar pronto
para confrontar os dados recolhidos na escola com a situao social de seus
sujeitos, suas formas de ao e interao fora da instituio escolar.
Tal escolha se justifica devido necessidade de construir uma experincia
escolar significativa, que as escolas no vem representando, exatamente pelo
fechamento cultura trazida pelos jovens para o seu interior e pela manuteno de
uma estrutura fsica e poltica que corresponde a um modelo opressor e castrador.
No por acaso, Foucault (1987) inclui a escola em sua ampla anlise dos sistemas
de vigilncia e punio social, histrica e culturalmente estabelecidos. Na escola, ao
longo do tempo, estabeleceu-se o que o autor francs chama de fabricao de
corpos dceis, que correspondem a um enquadramento de corpos e gestos nos
objetivos e metas estabelecidos pela instituio:
O momento histrico das disciplinas o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa no unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeio, mas a formao de uma relao que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto mais til, e inversamente. Forma-se ento uma poltica das coeres que so um trabalho sobre o corpo, uma manipulao calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. (FOUCAULT, 1987, p. 164)
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notrio, de acordo com Fanfani (2000), que a tentativa de estabelecer a
escola negando ou ignorando as prticas extraescolares da juventude ainda a
prtica mais comum, o que provoca tenses cujo desfecho pode ser tanto o conflito
declarado, quanto a harmonizao negociadora, sendo que a contradio e o
conflito entre cultura escolar e cultura social mais provvel no caso dos jovens das
classes sociais econmica e culturalmente dominadas (pp. 8-9).
importante ressaltar que, como Dayrell (2007), neste trabalho nos referimos
especificamente parcela da juventude que frequenta colgios pblicos, reside nas
periferias das grandes cidades, num contexto de desigualdade, privao de direitos
e servios bsicos. A respeito do choque de culturas, Dayrell (op. cit., p. 1120),
considera a existncia de uma tenso entre a identidade do jovem enquanto jovem e
enquanto aluno:
No cotidiano escolar, essa tenso se manifesta no tanto de forma excludente ser jovem ou ser aluno mas, sim, geralmente na sua ambiguidade de ser jovem e ser aluno, numa dupla condio que muitas vezes difcil de ser articulada, que se concretiza em prticas e valores que vo caracterizar o seu percurso escolar e os sentidos atribudos a essa experincia.
Para o autor, h diversos fatores que perpassam a formao das identidades
juvenis na contemporaneidade: a pobreza, o trabalho, a mdia, as formas de
socializao, etc., num contexto de profundas transformaes socioculturais
ocorridas no mundo ocidental nas ltimas dcadas, fruto da ressignificao do
tempo e espao (DAYRELL, op. cit., p. 1108).
Em primeiro lugar, os jovens tem sua vivncia marcada pela pobreza, o que
gera uma relao particular com o mundo do trabalho. Assim, para grande parcela
de jovens, a condio juvenil s vivenciada porque trabalham, garantindo o mnimo
de recursos para o lazer, o namoro ou o consumo (DAYRELL, op. cit., p. 1109). O
mundo do trabalho acaba entrando em relao de superposio contnua com o
mundo da escola; ambos podero sofrer nfases diversas, de acordo com o
momento do ciclo de vida e as condies sociais que lhe permitam viver a condio
juvenil (p. 1109).
O autor aponta a seguir as caractersticas das culturas juvenis, marcadas,
segundo ele, por dois fatores principais. O primeiro a relao com diversas formas
de expresso:
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Na trajetria de vida desses jovens, a dimenso simblica e expressiva tem sido cada vez mais utilizada como forma de comunicao e de um posicionamento diante de si mesmos e da sociedade. A msica, a dana, o vdeo, o corpo e seu visual, dentre outras formas de expresso, tm sido os mediadores que articulam jovens que se agregam para trocar ideias, para ouvir um som, danar, dentre outras diferentes formas de lazer. (DAYRELL, op. cit., p. 1109)
O segundo fator corresponde adeso a estilos, formas simblicas
distintivas, que se manifestam no corpo, nas vestimentas, nos acessrios
ostentados, etc. e geram entre os jovens a formao de grupos culturais, nos quais
se abre a eles a possibilidade de prticas, relaes e smbolos por meio dos quais
criam espaos prprios, com uma ampliao dos circuitos e redes de trocas, o meio
privilegiado pelo qual se introduzem na esfera pblica (p. 1110). O autor enfatiza a
heterogeneidade inerente a esse fator:
[as prticas culturais] se orientam conforme os objetivos que as coletividades juvenis so capazes de processar, num contexto de mltiplas influncias externas e interesses produzidos no interior de cada agrupamento especfico. Em torno do mesmo estilo cultural podem ocorrer prticas de delinquncia, intolerncia e agressividade, assim como outras orientadas para a fruio saudvel do tempo livre ou, ainda, para a mobilizao cidad em torno da realizao de aes solidrias. (DAYRELL, op. cit., p. 1110)
Inseparvel desses fatores expostos est um outro, correspondente s formas
de sociabilidade estabelecidas entre os jovens. Para Dayrell (op. cit.), a sociabilidade
juvenil est relacionada necessidade de troca, de comunicao, de afeto, mas
tambm tem um sentido de democracia, de autonomia e de identidade, pois a turma
de amigos uma referncia na trajetria da juventude: com quem fazem os
programas, trocam ideias, buscam formas de se afirmar diante do mundo adulto,
criando um eu e um ns distintivos (p. 1111). Ela constitui uma dinmica de
relaes que define as pessoas mais prximas e as mais distantes para cada um, e
ocorre tanto nos espaos de lazer, desligados da escola, quanto no espao
institucional dela, em intervalos e momentos intersticiais, recriando um momento
prprio de expresso da condio juvenil nos determinismos estruturais (p. 1111).
Observando as formas de sociabilidade chegamos a um outro fator da
interao dos jovens, correspondente s formas especficas de significao do
tempo e do espao elaboradas por eles. Para Dayrell (op. cit., p. 1112), os jovens
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tendem a transformar os espaos fsicos em espaos sociais, pela produo de
estruturas particulares de significados. Isso significa que os espaos so
virtualmente reinventados, transformando-se, pela ao do jovem, em lugar de
interaes afetivas e simblicas, carregado de sentidos (p. 1112).
Em relao ao tempo, o autor aponta o foco no presente como nica
dimenso possvel de vida livre e a nica merecedora de ateno por parte do
jovem. Ressalte-se ainda a reversibilidade constitutiva das relaes juvenis,
simbolizada na metfora do ioi, que mostra a lgica exercida pelo jovem de
entrada e sada constante de grupos, situaes e relacionamentos. Para Dayrell (op.
cit., p. 1113):
Nesse processo, testam suas potencialidades, improvisam, se defrontam com seus prprios limites e, muitas vezes, se enveredam por caminhos de ruptura, de desvio, sendo uma forma possvel de autoconhecimento. Para muitos desses jovens, a vida constitui-se no movimento, em um trnsito constante entre os espaos e tempos institucionais, da obrigao, da norma e da prescrio, e aqueles intersticiais, nos quais predominam a sociabilidade, os ritos e smbolos prprios, o prazer. (DAYRELL, op. cit., p. 1113)
Nesse contexto da cultura juvenil, pode-se falar da relao entre o jovem e a
escola, que perpassada por todos os fatores apontados acima. Tomazetti et al
(2011) nos traz dados interessantes para comear a pensar nisso. A pesquisa das
autoras em uma escola de Ensino Mdio de Santa Maria RS registrou respostas
positivas dos jovens em relao ida escola: cerca de 78% deles disseram gostar
de frequent-la. Quando perguntados sobre os objetivos visados por eles, a maioria
respondeu que desejava prestar vestibular para o Ensino Superior ao final do Ensino
Mdio, enquanto uma parte menor deles afirmou almejar uma vaga em um curso
profissionalizante. Quanto aos motivos que os levam a estudar, cerca de 41% deles
disseram faz-lo pela necessidade imposta pelo vestibular, enquanto cerca de 28%
disseram almejar, acima de tudo, o conhecimento. Pouco mais de 10% afirma ainda
estudar para conseguir um trabalho. Alm disso, quase 95% dos entrevistados
disseram que sua escola no oferece atividades alm das tradicionalmente
ofertadas dentro das salas de aula, como gincanas, oficinas, feiras, torneios, etc. e
quase 80% afirmaram no ter interesse de participar de espaos de organizao,
como grmios, na escola.
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Esses dados so analisados pelas autoras na perspectiva da perda de
referncia do momento escolar para os jovens e da invisibilizao das identidades
juvenis dentro da escola. Os jovens lanam para o futuro, para uma possvel vaga
em um curso superior ou profissionalizante, a referncia para o ato de ir escola,
pois a instituio, em si, no lhes oferta um preenchimento do sentido de frequent-
la.
A ida escola para desfrutar de momentos de socializao outro reflexo
dessa incapacidade da instituio: O prazer da sociabilidade (...) sobrepe-se ao
prazer de estudar e inaugura formas de ocupar a territorialidade da instituio
escolar que, no raras vezes, subvertem a sua matriz fundacional, baseada em
critrios de seletividade e desempenho (TOMAZETTI et al, op. cit., p. 86). Assim, o
gostar de ir escola no significa necessariamente gostar da escola, no sentido
de gostar de suas normas e tempos, de seus agentes e discursos (p. 86).
Os dados sobre a oferta de atividades extraclasse, segundo os autores,
apontam para o fato da escola se fechar para formas de interao e identidades dos
jovens constitudas fora dela:
Pode-se dizer, pois, que a ausncia da oferta de recursos que permitam subjetivaes fora do mbito da sala de aula e mesmo da instituio escolar opera no sentido de no legitimar outras construes identitrias seno aquela tradicionalmente outorgada de aluno a qual, por sua vez, no permite traos de singularidade e ignora a diferena, como se a cultura juvenil engendrada fora dos muros da escola pudesse ser inviabilizada pela indiferena docente. (TOMAZETTI et al, op. cit., pp. 87-88)
Nesse contexto de ruptura, quaisquer comportamentos no previstos pela
burocracia escolar so rechaados, prevendo-se ausncia de comportamentos que
atrapalhem o professor, passividade diante dos agentes escolares, concentrao
direcionada exclusivamente aos saberes ministrados, as verbalizaes formais,
entre outros (TOMAZETTI et al, op. cit., p. 89). Angelon (2012, p. 98) faz eco a essa
constatao: O aluno que chega quer ser valorizado naquilo que sabe; e o
professor, por sua vez, no se desliga da sua condio moralista de achar que sua
cultura mais importante que a do aluno. Lembremos o que nos diz Foucault (1987,
p. 169) a respeito da disciplina institucional:
Cada indivduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivduo. Evitar as distribuies por grupos; decompor as implantaes coletivas; analisar as pluralidades confusas, macias ou fugidias. O espao disciplinar tende a se
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dividir em tantas parcelas quando corpos ou elementos h a repartir. preciso anular os efeitos das reparties indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivduos, sua circulao difusa, sua coagulao inutilizvel e perigosa; ttica de antidesero, de antivadiagem, de antiaglomerao. Importa estabelecer as presenas e as ausncias, saber onde e como encontrar os indivduos, instaurar as comunicaes teis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreci-lo, sancion-lo, medir as qualidades ou os mritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar.
No obstante, apontam Tomazetti et al (2011, p. 89):
De outro modo, predominam no cenrio da escola contempornea as conversaes incessantes entre os pares, mesmo durante as aulas, brincadeiras e zoaes, no raras vezes, para com o prprio professor, discusses verbais em outros momentos e uma srie de comportamentos que terminam por solapar qualquer pretenso docente de disciplinamento dos jovens na escola.
A participao nos grmios estudantis, segundo os autores, no valorizada
pelos jovens devido perda de legitimidade, aos olhos destes, de organizaes
mediadas pela escola. O grmio, de um lugar pelo qual as vozes do estudante
podem ser ouvidas, passa a ser um lugar esvaziado de sentido: Institudo pela
escola, atravs de mecanismos de enunciao que somente demarcam lugares, no
consegue preencher sua territorialidade com significaes condizentes com os
sujeitos que podem habit-lo (TOMAZETTI et al, op. cit., p. 89). Segundo os
autores, os jovens no mais atribuem autoridade aos sujeitos adultos da escola,
podendo estar buscando outras formas de participao coletiva na sociedade. Eis o
que nos diz McLaren (1991, p. 202):
A resistncia organizada poltica da escola na forma de Grmios Estudantis ou Comits de Reivindicaes , em larga escala, uma iniciativa dos filhos da classe dominante e no dos filhos dos espoliados. A resistncia dos estudantes das classes trabalhadoras raramente ocorre atravs dos canais de controle e equilbrio que existem nas organizaes educacionais. Antes, as resistncias entre os marginalizados e desprivilegiados ocorrem geralmente de uma maneira tcita, informal, inesperada e inconsciente. Isto ocorre porque eles esto resistindo a mais do que um corpo de normas e injunes formais: eles fazem resistncia distino entre a cultura vivida informalmente nas ruas e quela formal e dominante da sala de aula.
Dayrell (s/d) d ateno ao espao fsico da escola, expondo as
ressignificaes que os jovens imprimem nele. A escola isolada do exterior por
muros e grades, delimitando assim um mundo prprio, com procedimentos e tempos
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prprios. Sua arquitetura pensada para to-somente levar as pessoas s salas de
aula, e nenhum outro espao pensado pedagogicamente, predominando a
pobreza esttica, a falta de cor, de vida, de estmulos visuais (p. 13). Os jovens,
porm,
se apropriam dos espaos, que a rigor no lhes pertencem, recriando neles novos sentidos e suas prprias formas de sociabilidade. Assim, as mesas do ptio se tornam arquibancadas, pontos privilegiados de observao do movimento. O ptio se torna lugar de encontro, de relacionamentos. O corredor, pensado para locomoo, tambm utilizado para encontros, onde muitas vezes os alunos colocam cadeiras, em torno da porta. O corredor do fundo se torna o local da transgresso, onde ficam escondidos aqueles que "matam" aulas. O ptio do meio ressignificado como local do namoro. a prpria fora transformadora do uso efetivo sobre a imposio restritiva dos regulamentos. Fica evidente que essa ressignificao do espao, levada a efeito pelos alunos, expressa sua compreenso da escola e das relaes, com nfase na valorizao da dimenso do encontro. (DAYRELL, op. cit., p. 13)
Para o autor, essa interveno no espao promovida pelos jovens uma das
principais evidncias da insero da cultura externa na cultura escolar. No
obstante, um fato cotidianamente silenciado por professores e funcionrios na
escola.
Trago a seguir as contribuies de minha ltima e favorita referncia sobre a
escola: McLaren (1991) e sua pesquisa etnogrfica em uma escola pblica do
Canad. Na viso do autor, as prticas escolares podem ser estudadas como um
universo de ritualizao, sendo esta
um processo que envolve a encarnao de smbolos, conglomerados de smbolos, metforas e paradigmas bsicos atravs de gestos corporais formativos. Enquanto formas de significao representada, os rituais capacitam os atores sociais a demarcar, negociar e articular sua existncia fenomenolgica como seres sociais, culturais e morais.
O autor encontra, assim, estados de comportamento que encarnam, cada um,
smbolos e gestos especficos, e se relacionam a diferentes enquadres dos alunos
no cotidiano escolar. Ressalte-se que o contexto da escola lcus do autor bastante
semelhante ao do modelo de escola por mim focalizado aqui: estudantes oriundos
da classe trabalhadora, de um contexto de pobreza e de privao de meios culturais.
Interessa-nos principalmente os chamados rituais de resistncia, pelos quais os
estudantes refratam dogmas e cdigos de conduta autoritrios dominantes que so
pr-estabelecidos pelos professores (p. 128).
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Os dois principais estados que McLaren (1991) cita so o estado de esquina
de rua e o estado de estudante. O primeiro diz respeito a um conglomerado de
atributos que, quando colocados juntos, constituem uma determinada maneira de se
relacionar com ambientes, eventos e pessoas (p. 132, grifo do autor), maneira
forjada na rua e semelhante aos comportamentos dos estudantes nela. O ptio da
escola ou a rua torna-se, portanto, o palco onde o indivduo representa seu drama
de apoteose, vingana, resistncia ou revitalizao (p. 132). Nesse estado, os
alunos so mais decididamente eles mesmos (p. 134), ou seja, podem
experimentar e fantasiar sobre suas identidades e papis uns perante os outros. Ao
mesmo tempo, os estudantes so motivados por smbolos arquetpicos, tais como
os do implicante, do palhao, do fracote, da prostituta. Esses smbolos, muitas
vezes, se mesclam um ao outro (p. 134). Tambm h muito contato fsico, produo
de barulho e imprevisibilidade de comportamento nesse estado, o que aproxima a
interao entre os alunos de uma intimidade no-mediada (p. 133).
O estado de estudante, por outro lado, se refere a uma adoo de gestos,
disposies, atitudes e hbitos de trabalhos esperados do ser um estudante (p.
137). O consentimento com as regras e os sistemas de meritocracia estabelecidos
na sala de aula marca esse estado, cuja principal regra o trabalho duro (p. 137),
e no qual mente e corpo se separam para enfraquecer a ligao do estudante com o
estado de esquina de rua. A respeito das tenses entre esses dois estados, afirma
McLaren (op. cit., p. 150):
h duas foras simultneas agindo sobre eles [os estudantes] uma fora puxando-os para o estado de esquina de rua, e uma fora empurrando-os para o estado de estudante. Aqueles, cujas identidades e status so favorecidos significativamente no estado de esquina de rua, lutaro com frequncia, vigorosamente para estender tal estado na sala de aula.
Dayrell (s/d), ao abordar o cotidiano da sala de aula, afirma que ela promove
o encontro e a convivncia entre um grupo heterogneo, dentro do qual formam-se
subgrupos, muitas vezes identificadas pelas categorias que McLaren (1991) aponta:
bagunceiros, C.D.F. (cabea-de-ferro, os mais estudiosos), mauricinhos, etc. Isso se
reflete na disposio dos estudantes na sala de aula, e a reao da escola, seguindo
a tentativa de rompimento com comportamentos estranhos burocracia,
redistribuir anualmente os alunos nas turmas, levando a um reiniciar constante das
relaes (DAYRELL, s/d, p. 15).
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McLaren (1991) fala tambm da resistncia contra a institucionalizao
escolar nos termos de uma desintegrao, um trnsito por smbolos no
legitimados que esto a servio da ruptura e eroso da autoridade do professor (p.
202). No estado de estudante, os alunos so conduzidos apatia, ausncia de
paixo e vazio emocional e espiritual (p. 203), e essa distncia entre o significado
da cultura vivida no estado de esquina de rua (p. 204) o que os leva a estabelecer
essas resistncias ritualizadas:
um mundo despido de uma organizao simblica aprovada um mundo atravessado de associaes e significados tradicionais. Aqui os estudantes desprezam e ridicularizam a sintaxe de comunicao que aceita. (...) Todo e qualquer senso de identidade que foi retirado dos estudantes durante as aulas, retorna atravs das costuras desfeitas, das fissuras e erupes do eu liminar e resistente. (McLAREN, op. cit., p. 203)
Como se pode ver, a concepo sociocultural, dando ateno dinmica de
relaes da juventude no interior da escola, que produz embates, ora mais, ora
menos violentos, entre a cultura escolar e a cultura trazida de fora, inseparvel de
uma crtica do modelo estabelecido de escola, e de um engajamento em direo a
uma pedagogia que valorize a diversidade cultural para a qual cada jovem tem a
contribuir. Esse caminho essencial, acreditamos, para a compreenso do
fenmeno das pichaes, pois, como detalharemos no prximo tpico, possibilita
que os diversos smbolos culturais evidenciados nas pichaes sejam analisados
com respeito a suas especificidades. No s isso: o prprio ato de pichar pode ser
compreendido como uma das manifestaes da tenso cultural entre jovens e
escola. Mediado por essa concepo de escola, o fenmeno fica mais claro, e
podemos deixar de olhar para ele com olhos de polcia, de repreenso.
Pra finalizar, e passarmos s articulaes tericas, que elucidaro nossa
posterior anlise, gostaria de fazer uma meno a Illich (1985), que, mesmo sem
servir diretamente como referncia terica, me inspirou a seguir esse caminho
exposto acima, com suas formulaes ousadas.
Muitos estudantes, especialmente os mais pobres, percebem intuitivamente o que a escola faz por eles. Ela os escolariza para confundir processo com substncia. Alcanado isto, uma nova lgica entra em jogo: quanto mais longa a escolaridade, melhores os resultados; ou, ento, a graduao leva ao sucesso. O aluno , desse modo, 'escolarizado' a confundir ensino com aprendizagem, obteno de graus com educao, diploma com competncia, fluncia no falar com capacidade de dizer algo
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novo. Sua imaginao 'escolarizada' a aceitar servio em vez de valor. (...) Pobres e ricos dependem igualmente de escolas e hospitais que dirigem suas vidas, formam sua viso de mundo e definem para eles o que legtimo e o que no . O medicar-se a si prprio considerado irresponsabilidade; o aprender por si prprio olhado com desconfiana; a organizao comunitria, quando no financiada por aqueles que esto no poder, tida como forma de agresso ou subverso. A confiana no tratamento institucional torna suspeita toda e qualquer realizao independente. O progressivo subdesenvolvimento da autoconfiana e da confiana na comunidade mais acentuado em Westchester do que no Nordeste do Brasil. Em toda parte, no apenas a educao, mas a sociedade como um todo precisa ser 'desescolarizada'. (ILLICH, 1985, pp. 16-17, grifo nosso)
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Articulaes tericas
Este tpico, que fecha o primeiro captulo, dedicado a um esforo de
articulao entre as teorias expostas, preparando o terreno para a anlise que ser
feita a seguir. Sinto necessidade de fazer isso antes de entrar na anlise, pois as
teorias me parecem consideravelmente distantes umas das outras, e pensar uma
articulao pode gerar modos mais organizados e coerentes de ver os dados,
quando estes forem expostos aqui. A grande questo que procuro responder neste
tpico : como as teorias podem, em conjunto, auxiliar na investigao acerca das
pichaes nas escolas? Algo dessa resposta j foi antecipado nos tpicos
anteriores; aqui ela ser sistematizada em alguns pontos.
1) O procedimento para o estudo sociolgico da lngua, indicado por
Voloshinov (2010), solicita o estudo das formas de interao e das formas de
enunciao de um dado contexto, para a partir delas observar as categorias
lingusticas. Articulando com o exposto acerca da escola, possvel tomarmos para
nossa anlise que essas formas de interao recaem justamente sobre a elaborao
dos jovens, com suas culturas e formas de sociabilidade, sobre o cotidiano escolar.
Diversas categorias expostas, tais como estados de interao, smbolos
arquetpicos, resistncia (McLAREN, 1991), contradio, harmonizao (FANFANI,
2000), tenso (DAYRELL, 2007), ressignificao, apropriao (DAYRELL, s/d),
subjetivao (TOMAZETTI et al, 2011), dentre outras imbricadas nessas citadas,
sero, portanto, as chaves para o estudo da interao escolar, e as formas
lingusticas das pichaes sero analisadas com o auxlio destas categorias;
2) Pensando agora na relao das categorias da teoria lingustica, tais como
plurilinguismo (BAKHTIN, 2010b), dialogismo (BAKHTIN, 2010b; VOLOSHINOV,
2010), signo ideolgico (VOLOSHINOV, 2010) e gnero do discurso (BAKHTIN,
2010a; VOLOSHINOV, s/db; MEDVIDEV, 2012) com a teoria exposta sobre a
escola, podemos pensar aquelas dentro do universo sociocultural elaborado nesta.
O plurilinguismo e os signos ideolgicos correspondero diversidade de culturas
trazidas pelos jovens para a escola e sua constituio identitria diversificada nos
grupos; o conceito de gnero do discurso, como forma tpica de enunciado, servir
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para estabelecer categorias no universo de pichaes presentes na escola, bem
como relacion-las com outros gneros que se lhe intercalam; e o conceito de
dialogismo serv