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Relatório final de Iniciação Científica
Título: O Instrumentista Interface
Processo FAPESP: 02/11998-8
Aluna: Fabiana Moura Coelho
Orientador: Prof. Dr. Raul do Valle
Co-Orientador: Prof. Dr. Jônatas Manzolli
Resumo
Este relatório descreve os resultados finais da pesquisa realizada durante
o período de 10 meses (o projeto foi aprovado com período improrrogável,
de março a dezembro de 2003). Como indicado no relatório anterior, foi
realizado um estudo de um conjunto de gestos musicais e sonoridades da
flauta e uma análise comparativa destas sonoridades. A partir desses
resultados, foi organizada uma apresentação multimídia que engloba todos
os resultados da pesquisa.
1. Introdução
A criatividade é um comportamento natural do ser humano (Fayga, 1977). Mesmo num
ambiente racionalista e reducionista existe a possibilidade de criação, compreendida no
potencial vinculado à sensibilidade de cada indivíduo. A partir deste ponto de vista, os
valores culturais funcionariam como um filtro na orientação da percepção dos fenômenos da
natureza. Fayga conclui: “A criatividade não seria então senão a própria sensibilidade”.
Ela amplia a sua visão ao enfatizar que a necessidade de comunicação é
propulsora do processo criativo: “No cerne da criação está a nossa capacidade de nos
comunicarmos por meio de ordenações, através de formas. Por meio de ordenações se
objetiva um conteúdo expressivo (...). O formar, o criar é ordenar e comunicar”.
Fayga (1977) afirma também que o potencial criador é desenvolvido no trabalho
cotidiano, na concretização da matéria, inclusive nas Artes. Não sendo, portanto, a atividade
artística o único campo de ação criativa do ser humano, o que seria uma deformação da
realidade. Assim, a ação do homem, sujeita a condicionantes sociais, a um contexto cultural
que fornece as condições e até mesmo a capacidade de realização de propostas criativas,
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necessariamente implica em transformação, seja da matéria, da percepção ou do próprio
sujeito criativo.
Partindo do pressuposto que o intérprete tem uma função que deve manifestar-
se de maneira criativa, na nossa pesquisa ampliamos o universo “das ordenações e das
formas” vinculado à técnica da flauta. O Instrumentista Interface deve exercer a sua função
musical como produto de sua criatividade e do potencial emanente do seu vocabulário
expressivo. Portanto, esta pesquisa buscou a aproximação entre a técnica instrumental e o
potencial criativo do intérprete.
A partir de referências bibliográficas vinculadas a Bartolozzi (1967), Dick (1975),
Heiss (1966, 1968, 1972), foi realizada uma pesquisa própria onde procurou-se encontrar
similaridades entre as três abordagens e a sua técnica instrumental. Os resultados foram
catalogados segundo dez parâmetros de execução: 1) som percussivo, 2) ataque
percussivo, 3) harmônicos, 4) glissando, 5) frulatto, 6) bend, 7) tocar e cantar, 8) Whistle
tone, 9)sons eólios, 10) multifônicos. Foram transcritos através de notação adequada,
gravados e analisados sob o ponto de vista do conteúdo espectral de cada sonoridade.
Por extensão, uma das fontes pesquisadas foi a página do Institut de Recherche
et Coordination Acoustique/Musique (IRCAM), e observou-se que há um catálogo sobre
técnicas de execução não tradicionais para flauta
(http://catalogue.ircam.fr/sites/Instruments/flute/), que abrange muitos dos gestos estudados
no decorrer deste trabalho. Constatou-se também que a metodologia apresentada na
pesquisa do IRCAM é bastante semelhante à utilizada nesta pesquisa. É similar também a
forma de apresentação de cada sonoridade através da descrição do gesto musical, da
notação/escrita e da análise do sonograma obtido a partir do som digitalizado. Portanto, ao
apresentar os resultados, fez-se um paralelo entre esta análise e o catálogo referido acima.
Finalmente, este relatório, devido ao seu conteúdo, que compreende a audição
das sonoridades produzidas na flauta e análise comparativa das mesmas, é apresentado
sob a forma de arquivo PDF vinculada a uma cd-rom, no qual pode-se ter acesso a todos os
resultados obtidos e ouvir a execução realizada pela bolsista durante a pesquisa.
2. Gesto Sonoro
A expressão Gesto Sonoro é atual e este conceito foi se desenvolvendo ao longo dos
últimos anos, como apresentado por (Iazzetta, 1997). Trata-se da significação musical do
movimento, que está intimamente ligado à ação musical. Aplicado aos conceitos de técnica
e tecnologia, intensamente utilizados em música a partir do começo do século XX, o gesto
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sonoro passou a englobar não somente a emissão do som, como também a técnica
empregada e a tecnologia aplicada (Iazzetta, 1997).
A música sempre esteve relacionada ao gesto do intérprete, porém a sua
importância e significação apenas nas últimas décadas passaram a ser estudadas. Trata-se
então da relação instrumento/instrumentista e o som por eles gerado, num movimento
contido no espaço-tempo. Assim, na performance musical, o som percebido depende dos
caminhos gestuais do instrumentista, estando a significação intrinsecamente ligada ao
gesto.
3. Resultados
Todos os exemplos citados abaixo são apresentados no CD que acompanha a pesquisa.
3.1 Som percussivo
Gesto produzido a partir da articulação brusca e rápida da sílaba “te” com grande
quantidade de ar. No site do IRCAM foi encontrado o mesmo gesto, que foi ali denominado
“Pizz de vent” e recebeu descrição semelhante. A despeito das diversas grafias para
notação de sons percussivos sem altura definida, foi utilizada nesta pesquisa a notação
abaixo para denotar um som percussivo com altura definida.
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Foi realizada a análise de um único ataque. Nota-se no sonograma o grande
número de harmônicos que se misturam, como um amálgama sonoro, o que gera a
sensação de indeterminação da altura. É curioso observar que, mesmo num único ataque,
temos dois amálgamas sonoros, que chamamos A1 e A2, como mostrado na figura acima.
O primeiro, A1, do ataque propriamente dito, e o segundo, A2, do movimento da língua que
determina o corte do som.
3.2 Ataque percussivo
Consiste no ataque dos dedos na posição de dedilhado tradicional da nota a ser executada,
enquanto a nota é articulada com o ar. A grafia abaixo foi utilizada na música Density 21.5
de Edgard Varèse para obter o resultado desejado. Foi encontrado no site do IRCAM
indicação semelhante à sonoridade estudada, porém obtida sem a articulação da nota,
apenas com o som percussivo das chaves.
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3.3 Harmônicos
A partir do dedilhado convencional para uma dada nota fundamental, mudado-se a pressão
e a direção do ar no bocal, são obtidas várias outras notas, que seguem a ordem da
ressonância natural dada pela Série Harmônica.
No trecho analisado, foi executado um intervalo melódico de quinta justa, a partir da
posição da nota uma oitava abaixo da nota mais grave do intervalo. Ou seja, com a posição
de E3, foram produzidas as notas E4 e B4.
Observou-se que alguns harmônicos presentes em E4 se mantém, perdendo a
intensidade, na execução do B4 e, ainda com bastante intensidade, encontram-se, na
passagem do E4 para o B4, os harmônicos das duas notas. Ou seja, a próxima nota na
seqüência é entrelaçada na anterior, dando uma idéia de sair de “dentro da outra”.
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3.4 Glissando
O gesto chamado como glissando na flauta, na verdade não é verdadeiramente um
glissando, como encontrado nos instrumentos de corda sem traste, como a viola e o violino.
Na flauta este gesto é realizado como uma escala cromática tocada rapidamente.
3.5 Frulatto
O frulatto resulta num som com bastante interferência devido à modulação em anel
provocada pela articulação da glote ou da ponta da língua. Este gesto pode ser combinado
aos diversos tipos de articulação (stacatto, legatto), dinâmica variada e também com outros
gestos (glissando, bend). Foi descrito de forma semelhante no site do IRCAM.
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Observa-se que o som executado inicia-se com conteúdo espectral irregular, que
gradativamente se estabiliza. Verifica-se também que, seguindo o contorno, a cada
transição entre notas, há uma descontinuidade no espectro, o que caracteriza sons
executados com frulatto e articulados com legatto. Se fosse feito um paralelo com a fala,
seria equivalente a inserção de fonemas derivados do /S/ entre palavras.
3.6 Bend
Gesto semelhante ao chamado bend na guitarra, no qual uma nota parece “escorregar” um
semitom abaixo. Realizado ao virar o bocal para dentro e para fora, enquanto a nota é
produzida.
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Observa-se que há uma pequena inflexão nos harmônicos superiores, o que equivale à
mudança da afinação do instrumento. Percebe-se também que a fundamental mantém-se
constante, mesmo que o som final caracterize uma altura com afinação mais baixa.
3.7 Tocar e cantar
Para este gesto o flautista deve cantar uma nota enquanto toca outra ou a mesma nota.
Ao analisar o som apresentado acima, verifica-se que há uma mistura homogênea no
espectro. Portanto, o instrumento, ao ser estimulado pela voz, gera uma coloração muito
específica que pode ser estudada pelo compositor para obter-se os resultados desejados.
Na página do IRCAM menciona-se a utilização de modelos matemáticos para mensurar a
interação da voz com o instrumento.
Nota-se que, para o analisador do espectro do programa Sound Forge, há uma diferença de oitava
em relação à notação tradicional.
3.8 Whistle tone
Neste gesto, alguns harmônicos são acentuados, como visto no sonograma apresentado
abaixo, pois trata-se de uma sonoridade onde o controle da pressão do ar sobre o bocal faz
com que o instrumento funcione como um filtro de banda estreita (é selecionados
aproximadamente apenas um harmônico superior). O resultado é obtido soprando-se com
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menos pressão e com a embocadura relaxada. A dinâmica possível para este gesto fica
próxima do pianíssimo, tendo em vista o alto grau de controle do intérprete na obtenção
precisa do harmônico desejado.
Foi feita a análise espectral de um pequeno trecho onde foi tocada a nota G5. Ficou
demonstrado no sonograma que o harmônico mais acentuado nesse tipo de som é o 2º
harmônico, ou seja, uma oitava acima do som produzido (G6). Nota-se também que os
outros harmônicos são muito atenuados, o que gera este timbre que se aproxima da
sonoridade de um som senoidal (com apenas uma componente espectral).
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3.9 Sons eólios
Obtido soprando-se o instrumento sem emitir a nota, o sopro é colorido pela altura
determinada pela digitação escolhida, como descrito no site do IRCAM.
3.10 Multifônicos
A obtenção dos multifônicos é diretamente vinculada ao material e ao mecanismo de
construção do instrumento. Notadamente, instrumentos do tipo "open-hole", cujas chaves
têm orifícios que são tampados ou semi-abertos pela porção distal dos dedos do
instrumentista. A flauta utilizada na pesquisa é uma Yamaha 311 e, portanto, apesar de se
obter multifônicos em alguns momentos transitórios, os mesmos não foram considerados
como representativos. Todavia, para que se tenha idéia, segue anexo trecho da execução
do flautista Gergely Ytzès, no CD "O que você sabia e o que não sabia sobre flauta",
gravado em 18/01/01, na Escola de Música de Brasília.
4. Conclusão
4.1 Tabela comparativa dos resultados obtidos
harmônicos 2º 3º 4º 5º 6º 7º 8º 9º
nota G6 D7 G7 B7 D8 F8 G8 A8
whi
stle
G5
intensidade - 30 dB - 96 dB - 86 dB - 100 dB - 104 dB
nota E5 B5 E6 G#6 B6 D7 E7 F#7 E4
intensidade - 32 dB - 49 dB - 56 dB - 75 dB - 77 dB
nota B5 F#6 B6 D#7 F#7 A7 B7 C#8
Har
môn
icos
B4
intensidade - 32 dB - 55 dB - 55 dB - 62 dB
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A tabela acima demonstra, comparativamente, a intensidade dos harmônicos
produzidos em dois efeitos estudados. Dessa maneira fica explicitada a considerável
diminuição de intensidade relativa dos harmônicos produzidos no efeito “whistle tone”. A
diferença de intensidade entre o 4º harmônico e o 2º harmônico (G7 e G6) é de 56 dB.
Assim, o 4º harmônico, G7, é aproximadamente 105,6 vezes menos intenso que o 2º
harmônico, G6. O que significa que soam simultaneamente duas notas, uma delas
398107,17 vezes mais intensa que a outra.
No caso do efeito denominado “harmônicos”, o espectro demonstra a diminuição
gradativa da intensidade dos harmônicos, podemos afirmar que diminui linearmente 7 dB
entre o 2º e o 3º e entre o 3º e o 4º harmônicos. O 4º harmônico é 102,3 vezes menos intenso
que o 2º harmônico, o que mostra que, do ponto de vista do conteúdo espectral, o timbre de
cada um dos efeitos estudados está relacionado à intensidade dos harmônicos produzidos.
Desta forma, o efeito “whistle sound” provoca a sensação de som puro, pois seus
harmônicos são muito mais atenuados, tornando-os quase inaudíveis. O efeito “harmônico”
provoca uma sensação de incorporar um conteúdo espectral mais denso, pois o conteúdo
espectral resultante é mais complexo e a coloração é mais intensa.
4.2 Experiência
A presente pesquisa apresentou resultados e descobertas altamente significativos na
formação acadêmica da aluna não comumente abordados no estudo tradicional do
instrumento. Através da visualização nos sonogramas das sonoridades estudadas, foi
possível obter informações menos subjetivas e mais concretas a respeito da mudança dos
parâmetros para obtenção de sonoridades específicas para a flauta. Mesmo nos sons
tradicionais do instrumento, é possível observar através dos sonogramas, o significado das
mudanças de “cor” e “brilho” amplamente tratadas no ensino da flauta. Portanto, este
mecanismo de análise poderá ser incorporado à dinâmica de trabalho da aluna, favorecendo
o estudo futuro do instrumento e o seu desenvolvimento como flautista.
Foi possível ainda grafar, executar e analisar o som chamado “whistle tone”
considerado de alta dificuldade técnica. Nesse caso, o comportamento espectral, que
delimita características como o colorido e o brilho, vincula-se à fixação de uma freqüência
específica. A aluna poderia expandir o estudo deste som na medida em que o mesmo
caracteriza-se por uma modelagem física vinculada a um filtro de banda estreita, fazendo
um paralelo entre a dificuldade técnica e a simulação computacional.
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4.3 Trabalhos futuros
Os resultados obtidos na pesquisa fomentaram o interesse da aluna em desenvolver
trabalhos futuros em nível de pós-graduação, vinculados à temática estudada na Iniciação
Científica. Tendo em vista que o projeto inicialmente previsto para 12 meses foi reduzido
para 10 meses, um dos objetivos não pôde ser alcançado: o preparo e a interpretação de
uma obra contemporânea utilizando-se o conjunto de sonoridades estudadas e criadas pela
bolsista. Embora tenha sido trabalhada com os orientadores a execução de gestos e de
peças compostas com a utilização das sonoridades estudadas, não se chegou a uma
performance final das mesmas.
5. Agradecimento
À FAPESP, pelo financiamento da pesquisa, às instalações do NICS, que deram condições
para a realização do projeto e aos colegas do NICS pelo auxílio nas dificuldades técnicas
em computação.
6. Referências
. Antunes, Jorge (1989). “Notação na Música Contemporânea”. Brasília: Sistrum, 1989.
. Bartolozzi, Bruno (1967). “New Sounds For Woodwind”. ed. Brindle, Reginald Smith.
London: Oxford University Press, 1967.
. Boulez, Pierre; Gerzso, Andrew (1988). “Computers in Music”. Scientific American, vol.
258, nº 4.
. Dick, Robert (1975). “The Other Flute – A Performance Manual of Contemporary
Techniques". London: Oxford University Press, 1975.
. Heiss, John C. (1966). “For the flute: a list of double-stops, triple-stops, quadruple-stops,
and shakes”. Em “Perspectives on Notation and Performance”. New York: W. W.
Norton & Company, 1976, eds. Boretz, B. & Cone, E. T., pg.114 -116.
. Heiss, John C. (1968). “Some Multiple-Sonorities for flute, oboe, clarinet, and bassoon”.
Em “Perspectives on Notation and Performance”. New York: W. W. Norton &
Company, 1976, eds. Boretz, B. & Cone, E. T., pg. 180-186.
. Heiss, John C. (1972). “The Flute: New Sounds” Em “Perspectives on Notation and
Performance”. New York: W. W. Norton & Company, 1976, eds. Boretz, B. & Cone, E.
T., pg.207-212.
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. Iazzetta, F. (1997). “Revendo o Papel do Instrumento na Música Eletroacústica”. Anais do
II Encontro de Música Eletroacústica, Brasília, DF.
. Iazzetta, F. (1997). “Meaning in Music Gesture”. Anais do VI Internacional Congress –
International Association for Semiotic Studies, Guadalajara, México.
. Ostrower, Fayga (1977). “Criatividade e Processos de Criação”. Rio de Janeiro: Imago,
1977.
Páginas na internet
. Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique (IRCAM). http://catalogue.ircam.fr/sites/Instruments/flute/
. The Website of Robert Dick. http://www.robertdick.net/
Orientando Orientador