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O lugar da literatura de Cornélio Pires nos primórdios do século XX
ELTON BRUNO FERREIRA
Introdução
Esse artigo tem o objetivo de analisar alguns aspectos da literatura produzida por
Cornélio Pires nas primeiras décadas do século XX. Assim, se busca algumas características
de representação em seus livros a partir da sua relação com o ambiente urbano, onde foram
publicados. Dessa forma, se propõe a lançar um olhar sobre as construções de representações
do caipira em um ambiente de expansão da cidade. O caipira, envolto em uma dimensão que
extrapolava uma cultura fechada, era inserido em um contexto no qual se via convivendo com
outros grupos, como os imigrantes. Também eram interpretados por pessoas que poderiam ter
vivências diferentes das suas e que passavam a ter a visão direcionada pelas construções feitas
por Cornélio, a partir da leitura.
1. “A família estava na cidade”: o caipira na cidade moderna.
Refletir a pesquisa a partir de estudos que visam descortinar o cotidiano é também
uma forma de reconhecer enquanto agentes históricos aqueles que não estão colocados na
documentação oficial. Portanto, mais do que pensar o caipira e buscar uma veracidade na
organização cultural de grupos interioranos, o que Cornélio produziu, proporcionou refletir
sobre maneiras de representar o cotidiano. Assim, ele contribuiu para que se problematizasse
uma pluralidade de vivências e experiências que buscavam responder aos anseios daquele
momento histórico.
Possíveis tramas só poderiam ser descobertas a partir da análise de um viés que ao
mesmo tempo é único e múltiplo. Único por que a experiência da representação literária do
escritor faz parte da sua vivência. Múltipla porque se inseria em um contexto mais geral de
expansão urbana pela qual passava a cidade de São Paulo naquele período.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, doutorando em História Social, bolsista CAPES.
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O historiador do cotidiano tem como preocupação restaurar as tramas de vidas,
que estavam encobertas, procurar no fundo da história figuras ocultas, recobrar o
pulsar no cotidiano, recuperar sua ambiguidade e a pluralidade de possíveis
vivências e interpretações, desfiar a teia de relações cotidianas e suas diferentes
dimensões de experiência, fugindo dos dualismos e polaridades e questionando as
dicotomias (MATOS, 2002: 26).
Em Literatura e Sociedade, Antonio Candido citou Cornélio Pires como um escritor
dos primórdios do século passado que trazia em sua abordagem sertaneja uma ingenuidade.
Porém, apontava a centralidade do tema, indicando outros literatos do período. Para Candido,
a temática, quando colocada sob um “ângulo pitoresco, sentimental e jocoso” surtia “ideias-
feitas perigosas tanto do ponto de vista social quanto, sobretudo, estético”:
É a banalidade dessorada de Catulo da Paixão Cearense, a ingenuidade de
Cornélio Pires, o pretencioso exotismo de Valdomiro Silveira ou de Coelho Neto de
Sertão; é toda a aluvião sertaneja que desabou sobre o país entre 1900 e 1930 e
ainda perdura na subliteratura e no rádio (CANDIDO, 2000: 105).
Ainda o mesmo Antonio Candido, prefaciando o livro Cornélio Pires: criação e riso
de Macedo Dantas, apontou para algumas características da literatura de Cornélio,
reconhecendo aspectos de sua produção escrita:
Meio escritor, meio ator, meio animador; generoso, combativo, empreendedor,
simpático, - a sua maior obra foi a ação nos palcos, nas palestras, na literatura
falada, que perde bastante quando é lida. Como os oradores, como certo tipo de
poetas, como os repentistas e os velhos glosadores de mote, a dele foi uma literatura
de ação e comunhão, feita para o calor do momento e a comunicação direta,
eletrizante, com o público (DANTAS, 1976: 11-12).
É nesse sentido que, inserido em uma produção literária, Cornélio Pires colocava seus
personagens caipiras no cenário nacional. Tentando interagir com um contexto no qual esse
tipo interiorano ganhava espaço em posições que tendiam do polo afirmativo ao negativo.
Em 1910 Cornélio Pires publicou seu primeiro livro, Musa Caipira. Naquele momento
havia uma valorização das supostas características culturais do sertão. A idealização do sertão
se colocava como alternativa frente às mudanças ocasionadas pela expansão da urbanização
de São Paulo. Ainda existe a suposição de que naquele momento a busca por características
consideradas exóticas ou mesmo uma busca pela “brasilidade” tenham favorecido o tipo de
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publicação feita por Cornélio. Há que se considerar que além do escritor tieteense, outras
produções literárias tinham no sertanejo a inspiração para os seus enredos. É o caso, entre
outros, do livro Os sertões, de Euclides da Cunha. Essas seriam evidências de que o escritor
caipira participava de uma corrente de pensamento que explorava o modo de vida do
interiorano.
[...] na década de 1910 o sertão estava também em moda, maneira de escapismo do
citadino, sufocado pelo convencional, atração pelo exótico ou movimento de
brasilidade. Tinham sido revalorizadas as coisas sertanejas, talvez por influxo
direto do grande livro do nosso genial Euclides da Cunha (DANTAS, 1976: 75).
Naqueles primórdios do século XX a cidade de São Paulo era o palco das suas
publicações. Em seus escritos, o caipira ganhou notoriedade em um diálogo entre o rural e o
urbano. A cidade buscava um rompimento, apontando para um discurso de modernidade,
enquanto a ruralidade resistia em representações literárias.
“Moderno” se torna a palavra-origem, o novo absoluto, a palavra futuro, a
palavra-ação, a palavra-potência, a palavra-libertação, a palavra-alumbramento, a
palavra-reencantamento, a palavra-epifania. Ela introduz um novo sentido à
história, alternando o vetor dinâmico do tempo que revela sua índole não a partir
de algum ponto remoto no passado, mas de algum lugar no futuro. O passado é,
aliás, revisitado e revisto para autorizar a originalidade absoluta do futuro
(SEVCENKO 1992: 228).
Os escritos de Cornélio Pires estavam imbuídos de desejos de trazer características
caipiras para os livros. Os conhecimentos que trazia da sua região de nascimento se
misturavam à sua imaginação ganhando vida nas narrativas com forte oralidade transmitidas
nas publicações. Sua liberdade para interpretar a cultura caipira direcionou uma construção
que o inseria no contexto literário do período. A literatura, dessa forma, se configurava como
uma ferramenta para que ele extravasasse suas ideias1.
A literatura permite o acesso à sintonia fina ou ao clima de uma época, ao modo
pelo qual as pessoas pensavam o mundo, a si próprias, quais os valores que
guiavam seus passos, quais os preconceitos, medos e sonhos. Ela dá a ver
1 “A liberdade do possível inclui o real, não ignora o real: abraça o real, vai até as entranhas do real e tira do real
os desejos de alguma coisa que o real ainda não é. [...] É claro que o possível traz em si elementos de futuro, de
desejo, de irrealizado. Mas todo real foi, a certa altura, possível.” (BOSI, 2013: 231).
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sensibilidades, perfis, valores. Ela representa o real, ela é fonte privilegiada para a
leitura do imaginário. Porque se fala disso e não daquilo em um texto? O que é
recorrente em uma época, o que escandaliza, o que emociona, o que é aceito
socialmente e o que é condenado ou proibido? (PESAVENTO, 2008: 82-83).
Nas primeiras décadas do século XX era perceptível a necessidade de se encontrar
uma identidade nacional para o Brasil. Naquele contexto estava incluso Menotti del Picchia
que defendia a contribuição das “novas migrações” como formadora do brasileiro. Propunha a
extinção das possibilidades de representação do “índio selvagem e épico” e do “Jeca Tatu”,
que segundo ele agonizava, atingido por uma “infiltração cosmopolita”, esta portadora do
“moderno espírito industrialista” (CASTRO, 2008). A literatura assumia naquele período uma
função na tentativa de criar tradições em um país que buscava uma identificação. A atribuição
de um lugar para o caipira fazia com que Pires colocasse suas posições em termos de
possibilidades para que suas representações adquirissem um espaço nas ideias2.
Possivelmente seus livros eram apreciados por um público leitor interessado na
temática caipira apresentada pelo escritor. Ao correr o olhar para outras construções voltadas
à escrita naquela época, se encontra o livro de poesias escrito por Menotti Del Picchia, Juca
Mulato, publicado no ano de 1917. Buscava ressaltar uma poesia com caráter “regionalista”
com linguagem acessível. Acabara por agradar as camadas médias urbanas naquele momento,
apontado para um provável interesse desses grupos a essa categoria de leitura.
A recepção da obra e seu sucesso são de fato sintomáticos do momento em que ela é
escrita. Misturando a exaltação da raça nativa com uma linguagem simples, o
escritor conseguiu atingir um público amplo, proveniente sobretudo das camadas
médias que emergiam com a urbanização. A aproximação entre Menotti e Oswald
de Andrade pode ser tomada como exemplo do fenômeno Juca Mulato (CASTRO,
2008: 32 -33).
2 “Num país sem tradições, é compreensível que se tenha desenvolvido a ânsia de ter raízes, de aprofundar no
passado a própria realidade, a fim de demonstrar a mesma dignidade histórica dos velhos países. [...] A literatura
é essencialmente uma reorganização do mundo em termos de arte; a tarefa do escritor de ficção é construir um
sistema arbitrário de objetos, atos, ocorrências, sentimentos, representados ficcionalmente conforme um
princípio de organização adequado à situação literária dada, que mantém a estrutura da obra.” (CANDIDO,
2000: 155;162).
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A cidade de São Paulo se apresentava como palco para construções de representação
de modernização e Cornélio Pires participava indicando que o caipira era parte integrante
desse contexto. De forma que um possível discurso que apontasse para uma cidade
homogênea, encontraria nos seus escritos possibilidades de fragmentos que denunciavam as
ambiguidades vividas na urbe. Assim, produzia para um público que buscava conviver com a
expansão urbana, mas alimentava um sentimento contraditório de resistência às rápidas
transformações.
Faz-se necessário confrontar a forma com a qual o escritor tieteense recriava o
território do interior ao tratamento nostálgico encontrado em Menotti del Picchia. E um
primeiro momento, Cornélio narrava o cotidiano na fazenda, em diálogo entre ele e a “[...]
negra velha, tia Jacinta, a caseira, pesadona e cadeiruda, já de cabelos brancos [...]”. Nota-se
que o escritor valorizava os adjetivos que remetiam a algo que já fora novo, pois agora está
velho, mas continuava existindo, como resquícios de um passado vivo. A negra é velha, a casa
é velha e descrita de forma rudimentar. Porém, a conversa com alguém que narrava
lentamente uma história passada era possível e agradável:
A sala da casa velha do sítio era de telha vã, e pelas ripas de palmito, esfiapadas,
viam-se pendentes, em franjas negras, as teias de aranha, e os picumãs, grosso
como pó de café, baloiçantes ao impulso da fumaça que subia do meio da sala,
fazendo arder os olhos da gente, que era forçada a engolir em seco, um eito de
tempo, até que se extinguisse a lenha verde ou molhada, que fora de cambulhada
com as achas secas, entre os tacurus, onde fervia, à noite, o caldeirão de feijão,
cambuquira ou serraia para a ceia.
A família estava na cidade.
Eu e a negra velha, tia Jacinta, a caseira, pesadona e cadeiruda, já de cabelos
brancos, éramos os únicos da casa.
Tia Jacinta, chegando fogo, endireitando os tiços, acendeu o pito de barro
enegrecido, fixo num canudo de dois palmos, deixou-lhe em cima a brasa que
pegara com os dedos grossos e calejados, e pôs-se a contar histórias de dante, como
quem falava sozinha, a olhar para o fogo e a cuspir para um lado (PIRES, 2002:
36).
A análise das crônicas de Menotti apontou para a temática da fuga da urbe, como se o
interior representasse um espaço adverso, oposto à cidade. Porém, ressalta-se que o olhar para
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a fuga da urbanidade indicava para o passado, assim como Cornélio. Dessa maneira, a cidade
em expansão mantinha um elo com um período idealizado a partir de escritos das primeiras
décadas do século XX, em um movimento que indicava a superação de um modo de vida mais
pacato, que, porém, poderia ser revivido na memória. A modernização precisava avançar e
essas representações criavam o contraponto ao que se propunha como “inevitável”.
Há uma espécie de nostalgia com o passado que parece se esvair – e em outra
crônica Menotti assumia a “crise da saudade” que às vezes lhe assaltava o espírito,
fazendo com que tivesse ímpetos de fugir desse “ergástulo tenebroso” que se
tornara a cidade. Nesses momentos, o cronista apelava para a memória e recordava
quão delicioso fora o tempo que “sadio e selvagem, sonhava a conquista dos
mundos, metido entre as brenhas da fazenda perdida”, nostalgia da vida no
interior, quando alternava a pacata vida de jornalista de província com caçadas
com os caboclos da sua fazenda. Para ele, “a urbanidade” chegava mesmo “a
irritar” com seu instinto de “megera exigente que pede cuidados de traje a atenção
para o tráfego tumultuoso; um sorriso para os maçantes e referências metidas a
patifes”. Após a descrição pouco louvável da vida urbana concluía: “Saudade...
‘Gosto amargo dos infelizes...’ Invisível doença dos presidiários urbanos...”
(CASTRO, 2008: 116-117) 3.
A expansão urbana vivida nas primeiras décadas do século XX abria um campo de
possibilidades de representações e interpretações. O rural e o urbano não estavam distantes e a
literatura de Cornélio Pires indicava essa proximidade ao público leitor. Assim, a variedade de
tipos e culturas sobrevivia, mesmo que rememorada estilisticamente, mesmo que representada
humoristicamente, naquele espaço em frequente transformação.
[...] traduziam tipos resultantes da observação rápida e superficial da sociedade,
formando uma humanidade vasta e variada que teimava em sobreviver numa cidade
meio híbrida, a caminho do rural e do urbano – aquela cidade feita de intimismo
provinciano e cosmopolitismo agressivo (SALIBA, 2002: 182).
Percebe-se, naquele contexto, que a receptividade aos escritos de Cornélio também
podem ser explicadas pela forma com a qual o escritor se colocou naquele embate, muitas
vezes apontando características de humanização das relações a partir da exploração de
possíveis sentimentos baseados em representações cotidianas.
3 No trecho destacado, a autora faz uma análise da crônica “Saudade”, publicada no Correio Paulistano em 15 de
abril de 1923.
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2. “Num custa nada pidi ua demão pros vizinho”: o caipira entre os estrangeiros
e os seus.
Baseado na tradição da caça como forma de sobrevivência, Pires escreveu o conto
Atira Juca, o qual transcorria relatando o relacionamento de afeto e companheirismo entre um
pai e um filho, mas que terminou de forma trágica. Juca havia prometido uma espingarda de
presente a Basílio, para ajudar nas caçadas, e cumpriu a promessa, que teve como desfecho:
Alegre, assobiando uma “moda” de viola, o caboclo saiu do quarto.
- Ocê madrugô, meu fio?
- Tava sem sono...
- Pr’amor de a espingarda...
- Nhor não... Perdi o sono...
- Cavortêro... Vô mostra pr’ocê cumo ela bate forte o cão no fecho-de-aço...
Tomou da espingarda... Previdente e desconfiado como todo o caipira, tirou a
vareta da “pica-pau” e sondou o cano direito da “Central”, como quem verifica se
está a arma carregada...
- É do cano cumprido! Bem mais cumprido do que a minha! A vareta num chega no
fundo. Há de ascançá longe...
- Mode que é da boa...
- É mais bunita do que a do seu padrinho!
Engatilhando o cano direito, o caboclo levou a arma à cara, procurando a mira e
puxou o gatilho; e o cão “bateu em seco”...
- Tivesse carregada e aquela barbuleta que tá no tijuco tava esbandaiada...
Engatilhou o cano esquerdo e, tomando distância do filho:
- Se os estranja quisé mandá nos brasileiro, faça ansim...
Apontou para o peito do filhinho e puxou de novo o gatilho...
No silêncio da manhã na roça ecoou um tiro...
Basílio caiu com a carga inteira no peito!
Tonto, idiotizado pela cena, quase sem consciência, não acreditando na realidade,
Juca, o pai amoroso, ergueu o filho que mal balbuciou:
- Ai! meu Deus!
E, sorrindo na agonia, ante os brados de perdão do pai, sorrindo, sorrindo, morreu-
lhe nos braços... (PIRES, 2002: 98-99).
Ainda, salienta-se que no discurso, o momento que leva ao ápice do conto, há a
referência à possibilidade de o estrangeiro querer mandar no brasileiro. Assim, a proposta de
defesa nacionalista também estava presente, inserindo Cornélio Pires no debate tão caro
àquele período.
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A receptividade do público a essa literatura certamente se deve à novidade do
assunto e do tom, laudatório e sentimental, extremamente oportuno em tempos de
ufanismo patrioteiro, em que um nacionalismo exaltado se projeto como alternativa
ao pessimismo crítico – cujos exemplos mais significativos são Euclides da Cunha,
Lima Barreto, podendo-se incluir aí também Monteiro Lobato (LEITE, 1996: 121).
Enquanto, nas primeiras décadas do século XX Cornélio Pires escrevia dando ênfase à
criação de personagens caipiras, no meio rural ou mesmo no meio urbano, a presença de
imigrantes era sentida no país. Em algumas oportunidades, os escritos também apontavam
para a descrição de pessoas de outras nacionalidades em contato com o caipira, na literatura
do tieteense. Também tinham seus sotaques específicos, de acordo com a nacionalidade,
criados por Pires. Trazendo uma possível cidade de São Paulo já passada, ele abordou, usando
do humor e da própria oralidade da língua, um diálogo entre um italiano e um caipira.
Atribuiu, também, valores, como a desconfiança, na relação entre brasileiros e estrangeiros:
Mal-entendidos
Um gênero de anedotas que desapareceu de São Paulo, com o cosmopolitismo, foi o
de mal-entendidos entre nacionais e estrangeiros.
O caipira antigo, por exemplo, troçava com o caso da prisão de um italiano.
Um soldado desconfiara de um italiano. Naqueles tempos os soldados desconfiavam
sempre de todos os estrangeiros.
Fazia meia hora que o italiano estava encostado a uma esquina, como quem
esperava alguém, quando o soldado chegou:
- O que tá fazeno aí?
- Spéto Luigi.
- Espéta nada! Tu tá é prêso! – E “passou a mão” no italiano.
- Per Dio Santo!
- Despois percura.
- Mas vi prégo...
- Num me borreça que o chego o frande! Qué espetá outro cum prego, é? Ocê vai
mais é pro xadreiz! (PIRES, 2005: 77).
Essa anedota foi publicada em 1928, no livro Meu Samburá. Talvez o escritor
influenciou e foi influenciado pela proposta de representar o imigrante a partir do personagem
Juó Bananére, criado por Alexandre Marcondes Machado. Ambos publicaram no jornal “O
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Pirralho”4. Eles optaram por escrever histórias curtas, estilizando seus personagens pela
oralidade.
Em alguns deles, como Juó Babanére e Cornélio Pires, os poemas e “causos”
constituíam uma literatura falada, feita para o calor do momento, que perdia muito
quando era apenas lida. Não será por mera coincidência que tanto Bananére
quanto Cornélio Pires serão os primeiros a gravar seus poemas e crônicas em
discos – o segundo, com grande sucesso a partir de 1929, o primeiro, com os seus
três discos de poemas macarrônicas em 1931, pouco antes de sua morte (SALIBA,
2002: 190-191).
Em Quem conta um conto..., publicado pela primeira vez em 1916, Cornélio deu vida
a vários personagens que se identificavam como caipiras. As características eram marcadas
pela vivência na descrição de determinado território, e pela oralidade buscada através da
escrita. Analisando o conto, Pra mim foi pisadêra, era possível adentrar em uma
representação cotidiana proposta enquanto vida no meio rural. A discussão sobre a existência
ou não de assombração possibilitava ir além e ter contato com a descrição de todo um cenário,
que ia desde as características da fazenda, das pessoas, da alimentação, até de seres de outro
mundo.
Chegara a hora da ceia. Caldo de cambuquira, um feijão virado alumiando de
gordura, e, para fechar, um café com bananinhas de farinha de trigo; tudo
indigesto, escorrendo gordura.
O Mandinga, depois de empanturrado, apalpou o patuá que lhe saía pela abertura
do peito da camisa, enfiou o rosário no pescoço, examino a escórva da garrucha,
passou a mão no chiqueirador e lá se foi para o engenho com a candeia
bruxoleante, pelo trilho fundo do pasto velho.
Não se sabe bem o que aconteceu.
Às três horas da manhã, desapontado, humilhado, coberto de vergonha, batia o
Mandinga desesperado na porta do casarão...
- Tirô o caborge?
- Credo in cruiz!
- Cheguei lá, inzaminei a casa, botei a garrucha in baxo do travesseiro, o rêio no
canto da cama, rezei a oração do tira-prosa e deitei. Sem querê me garrô ua sonêra
danada... Seria a ceia? Mais não era. A sonêra decerto já era arte do capeta,
porque eu nem bem tava durmino, nem bem tava acordado.
De repente, na porta do tendá, inxerguei um cabeção de bode, preto, botano a
língua pra mim e arrebitando o beiço, me cherano co aquele nari catinguento...
4 “É preciso lembrar que muitos dos escritores paulistas do período tiveram textos publicados nas páginas desse
jornal, desde Alexandre Marcondes Machado e Cornélio Pires [...].” (LEITE, 1996: 66).
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Quano eu quis fala num pude, mea língua inrolô e eu falava pra drento. O bicho deu
em espirro! E vê que pincho cincuenta arquêre de café in coco inriba de mim!
Percurei a garrucha; meu braço tava entravado; a cabeça do bode garrô branqueá,
ficô arvo que nem leite; e foi desceno, desceno, e vino pro meu lado... Quano eu
juntei tuda força que tinha pra sentá na bêra da cama, a coisa chegô inriba de
mim... abriu um bocão e feiz – sssssiiiuu... mais arto do que o apito da passagêra.
Meus óio fecharo; mea cabeça garrô virá e eu fiquei amortecido, inté que agora
mermo vortei in si, no meio do bagacêro véio...
- Que coisa estúrdia!
- Eu vô s’imbora! Sombração de ótra culidade eu pégo. De amortecê, não!
Só o tenente não acreditou.
- Quá! Pra mim foi pisadêra... (PIRES, 2002: 16-17).
Com o mote de uma história que envolvia a caça a uma assombração, Cornélio
desvelou várias representatividades do cotidiano caipira, como a própria crença em “seres do
outro mundo”. Além disso, ganharam vida através do conto personagens caipiras com valores
e crenças, que foram da valentia ao medo e ao ceticismo. O enfrentamento à assombração
possibilitou visualizar um contexto de reunião de grupo e construção de laços de
relacionamento a partir da amizade entre os que participavam do evento.
A ocasião proporcionou também uma proposta de vida a partir da qual a sociabilidade
se dava com a narração de histórias nas conversas em grupo. O fato de existir tal assombração
ou não pode até ser relegado ao segundo plano, caso se atentasse para as possibilidades que o
conto trouxe. A tentativa de confirmar a valentia, que posteriormente foi abalada, derrotada,
pela desistência, apresentava sentimentos, desejos e fraquezas como constituinte daquele
interiorano, representado pelo personagem Mandinga.
Há que se considerar que Cornélio, a partir dessa publicação, produzia para a leitura,
editada em meio a uma cidade em mudança e expansão, um modo de vida completamente
diferente. O conto marcava, dessa forma, um compasso de contraste com a nova vivência
urbana, que adotava o moderno como símbolo de desenvolvimento5.
5 Essa busca pelo “moderno” se acirrava cada vez mais na capital do estado. Na década de 1920 a transmissão
radiofônica começava a engatinhar como um novo meio de comunicação. Com as novidades, muitas vezes o
sentimento de volta ao passado era destacado no meio urbano: “A cidade sentia, cada vez mais, o peso das
transformações decorrentes de um sistema econômico de acentuado dinamismo, que engolfava as
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A possibilidade de uma assombração salientava um modo de vida que valorizava a
irracionalidade como constituinte da vida rural caipira. O fato de alguém acreditar e contar
gerava toda uma situação que envolvia aparatos sérios. Notava-se o Mandinga todo
paramentado para enfrentar aquela situação, visto que portava ferramentas que possibilitavam
a sua defesa, bem como uma garrucha, o chiqueirador, objetos de proteção material. E para a
proteção espiritual, portava o rosário e o patuá.
Visto a impossibilidade de separar os escritos da oralidade, Pires demonstrava
preocupação em trazer para os livros expressões que eram utilizadas no meio caipira. As
publicações estavam recheadas dessas características, reafirmando o desejo de aproximar as
histórias narradas nos livros à realidade interiorana. Era o que se apresentava também em Pra
mim foi pisadêra, no qual o próprio título já contava com uma expressão acaipirada.
Preocupado em dar conhecimento a essa forma de comunicação que seria típica dos
seus personagens, baseada nas suas coletas pelo interior, em 1921 ele publicou Conversas ao
pé-do-fogo. Nesse livro, o escritor procurou solucionar a possível dificuldade de leitura dos
seus contos e poemas a quem não era afeito ao falar caipira. Também aproveitou para
propagandear as diferenças de linguagem que, a partir da necessidade de um vocabulário
próprio, indicava a existência de um dialeto.
Dessa forma, uma espécie de dicionário fazia parte do livro, no qual palavras, em
ordem alfabética, eram explicadas. Nesse caso, se desvendava o significado de chiqueirador –
grosso relho com cabo de madeira em forma de chicote; patuá – pequeno invólucro contendo
orações, relíquias e pedras sagradas que os caipiras caboclos e pretos trazem ao pescoço;
pisadêra – Pesadelo; Duende representado por uma velha esquelética de garras aduncas que
individualidades numa crescente multidão. Isso mudava o perfil da cidade provinciana em uma metrópole
cosmopolita. Multidão que sentia as inadequações de uma cidade de expansão desordenada – os transportes
urbanos, ônibus e bondes, era alvos de constantes críticas por parte dos usuários através dos jornais. [...] A
modernização provocava reações do tipo ‘mito nostálgico’ de um ‘pré-moderno Paraíso Perdido’. Mas esta
nostalgia ia sendo engolfada pelo avanço da metrópole, criando simultaneamente, mais problemas e mais
oportunidades de usufruir os efeitos da modernidade.” (TOTA, 1990: 48;53).
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está sempre sobre o telhado pronta a pousar sobre o peito de quem dorme de costas (PIRES,
2002).
Ainda no desenrolar da narração, a ceia foi descrita, caracterizando um possível jantar
caipira, de onde se podia imaginar a alimentação daquele lugar em que Cornélio, em um tom
de valorização, carregou na fartura6. Havia uma variedade de alimentos, como caldo de
cambuquira; feijão virado alumiando de gordura; café com bananinhas de farinha de trigo,
que escorriam gordura.
Lançado em 1916, o livro Quem conta um conto... trouxe vários contos e em um
intitulado O que é de raça..., o escritor apontava exatamente na questão da força da
comunidade para o trabalho na roça. Traçava um grupo laborioso que conseguia contornar
seus problemas graças aos valores da comunidade, apontando a solidariedade como uma
característica cultural.
João Lino andava desanimadão, amarelo, meio esverdeado, depois de uma esfrega
de “maleita”, que lhe inflamara o braço, pondo-lhe a cabeça a zunir, após o
despropósito de sulfato que ingerira.
Era a choça dominada pela falta de coragem do chefe; desânimo que influía no
espírito dos filhos e do próprio “genro”, morador na mesma casa.
O velho, sentado ao sol, na soleira da porta, com o “xalemanta” às costas,
convalescia, pensando num meio de fazer as roçadas, pois já era tempo. Mas onde a
força? Onde o dinheiro, se a plantação passada fora nula, estragada pelos
gafanhotos e queimada pela geada? (PIRES, 2002: 103).
Apresenta-se o desânimo do personagem João Lino, porém, com uma causa específica,
a doença. Além disso, faltava-lhe dinheiro, pois a plantação anterior havia sido destruída por
fenômenos naturais. Em decorrência da situação difícil, a falta de coragem se alastrava aos
seus próximos, o que indicava a perda de mais um roçado. Em 1914 Monteiro Lobato,
6 Em crítica a Cornélio Pires e ao livro Conversas ao pé-do-fogo, Antonio Candido escreveu: “Esta rapsódia
eufórica – verdadeira página de um Rocha Pita moderno – descreve os recursos virtuais do homem rural sem
considerar a sua classe nem as possibilidades de combinar e selecionar o cardápio compatível com o momento, a
situação financeira, o lugar. Nela se englobam o fazendeiro, o sitiante, o parceiro, o salariado, cada um dos quais,
todavia, participa a seu modo deste vasto acervo, que de maneira alguma representa a experiência alimentar
quotidiana de qualquer um deles.” (CANDIDO, 2001: 193).
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também ocupado com a nacionalidade, apontava a incapacidade de evoluir como responsável
por uma possível má situação de vida do caipira:
Porque a verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadores
da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígene de tabuinha
no beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao
progresso. Feia e sorna, nada a põe de pé. De pé ou sentado as ideias se lhe
entravam, a língua emperra e não há de dizer coisas com coisa (LOBATO, 2009:
169).
Enquanto para Lobato, naquele momento, a incapacidade intelectual - “as ideias se lhe
entravam” - de uma “raça” era causadora da inércia, Cornélio já havia respondido com
doenças e problemas na seara da natureza. Quanto à possível aceitação de uma situação
imposta, mesmo que por forças externas, o escritor de Quem conta um conto... argumentou
com outras ferramentas. A família de João Lino tomou rumo diferente do Jeca Tatu e graças à
comunidade o resultado adquiriu cores de vida ativa. Finalmente a esposa, “Nhá Firmina”
encontrou a solução aos problemas da família:
- Nhô João? Tempo de roça tá chegano e eu tive maginano que nóis pudia bem fazê
um muxirão, pra a roçada... Num custa nada pidi ua demão pros vizinho. Mecê
quando tava forte nunca se negô, nem as criança, nem eu...
- Mais percisa dinhero...
- Eu tenho argum, de uns óvo que vendi pro padero da vila, e nóis pode vendê uns
frango e uas leitoinha e há de dá pras dispesa de cumê, e pra pinga pro fandango
da noite...
-Puis seja (PIRES, 2002: 103 – 104)7.
Esse movimento de oposição entre o que poderia representar o caipira na construção
da “identidade nacional” colocou Cornélio no meio dos que, a partir das suas características
próprias, valorizava o “caipirismo”, junto a outros intelectuais.
O “caipirismo” ou “nativismo” tornara-se uma espécie de moda intelectual,
sobretudo depois de 1919, quando foi encenada no Teatro Municipal a peça O
contratador de diamantes, de Afonso Arinos, desencadeando uma série de “saraus
regionalistas” em que se cantavam canções sertanejas ou escritores famosos liam
seus poemas de tendências caipiras (SALIBA, 2002: 175).
7 Seguindo a narrativa, o escritor explicou o que era um muxirão: “O ‘muxirão’, ‘mutirão’ ou ‘puxirão’ é a mais
bela instituição cabocla. É o trabalho aliado à festa; é o socorro ao necessitado, aliado à folgança; é o serviço
prestado, sem interesse, aliado à alegria deliciosamente franca da caipirada.”
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Em Musa Caipira o escritor já exaltava a sociabilidade entre os caipiras. Em O almoço
do muchirão, o caipira que se apresentava era aquele que em comunidade construía uma
relação de interdependência entre os vizinhos. O trabalho na roça necessitava da ajuda dos
demais. Porém, o muchirão se transformava em um evento para o grupo, pois, para além do
esforço físico empreendido, a atividade reunia pessoas que se alimentavam, conversavam e,
na descrição, apontava para tipos de alimentos consumidos no meio rural do interior paulista.
- A alegria dos pobre dura pôco!
Chega-chega, moçada, a mesa é bôa.
despois do muxirão bamo no trôco,
que é estes frango co’ arrois e uas leitôa.
- Despois do armoço nóis vae vê, cabôco,
de quantos pau se fais ua canôa!
Grita um caipira barbaçudo e rouco:
- Dois arquere de róça é coisa atôa!
- Me dê a serraia – Intão, nho Benedicto,
Num qué porvá ûa coxa de cabrito?
- Passe o frango, nho Tico? – Passe a pinga...
E o dono do sitiéco, enthusiasmado:
- Com-coma, meu povo, que o roçado
É num capoeirão, num é restinga (PIRES, 1985: 43).
Cornélio Pires dava vida a personagens dentro dos seus escritos, buscando as cores
locais em possibilidades do cotidiano rural. No caso do muchirão, aproveitou essa forma de
organização e apresentou um tipo de oralidade acaipirada através das palavras, assim como
em outros poemas e contos. Ainda, trouxe as características básicas dos alimentos que
possivelmente permeavam essa atividade.
Enquanto o caipira proposto pelo escritor tieteense valorizava um modelo de vida mais
pacata, a vivência urbana apresentava um contraste marcante com os personagens rurais. O
muchirão enfatizava a ajuda mútua por parte da vizinhança, enquanto nas grandes cidades, a
industrialização avançava, trazendo para a cena desse novo palco uma diversificação
populacional.
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O início do século XX, na vida brasileira, representa um momento de mudanças,
com um acelerado processo de industrialização, uma intensificação do surto
imigratório, a premente necessidade de atualização do país com o que se passava
no mundo [...]. Nesse quadro de remodelação da vida nacional, com um dinamismo
crescente nas três primeiras décadas do século, inserem-se a campanha higienista,
as campanhas pela alfabetização em massa, uma visão regeneradora da educação,
o incremento dos meios de comunicação (LEITE, 1996: 42).
O imigrante se tornava ativo nessa urbe que passava por um processo de expansão. A
“modernização” surgia como projeto de desenvolvimento, abarcando algumas características
a serem valorizadas, tais como as campanhas higienistas, propostas de alfabetização em massa
e a utilização de novos meios de comunicação.
Considerações finais.
A literatura produzida por Cornélio Pires foi importante enquanto ferramenta de uma
possível sobrevivência de características caipiras no meio urbano. Era mais uma perspectiva
de abordagem dos grupos que viviam o meio rural. Dentro das possibilidades às quais a
literatura proporcionava ao trazer a tona questões do cotidiano, o que o tieteense escreveu
contribuiu para que se construíssem representações em torno dos debates sobre o rural e o
urbano. Ainda, formas de organização de vida em grupo, sentimentos e características
culturais diversas estiveram presentes em seus livros.
REFERÊNCIAS
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CASTRO, Ana Claudia Veiga de. A São Paulo de Menotti del Picchia: Arquitetura, arte e
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LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Globo, 2009.
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PIRES, Cornélio. Conversas ao pé-do-fogo. Itu – SP: Editora Ottoni, 2002.
______________ Meu samburá. Itu – SP: Ottoni, 2005.
______________ Musa Caipira. Tietê-SP: Edição comemorativa do centenário de nascimento
do autor (1884-1984) – Prefeitura Municipal de Tietê, 1985.
______________Quem conta um conto... Itu – SP: Ottoni, 2002.
SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: A representação humorística na História brasileira –
da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
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Pires. Mestrado em educação, UNIMEP, Piracicaba, 2008.
TOTA, Antonio Pedro: A locomotiva no ar: rádio e modernidade em São Paulo 1924-1934.
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