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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
O OLHAR DO CONSTRUCIONISMO SOCIAL SOBRE A VIOLÊNCIA CONTRA A
MULHER NAS PRÁTICAS DISCURSIVAS DA PSICOLOGIA
Angelo Willian de Lima Catarim1
Jacy Correa Curado2
Resumo: As desigualdades de gênero, que são fundamentadas principalmente nas diferenças
sexuais, são produções discursivas que resultam em processos de dominação. Assim, é possível
identificar que esse processo produz desigualdades no exercício do poder, principalmente sobre o
próprio corpo. No entanto, as desigualdades de gênero produzem relações de dominação e sujeição,
que são contrapostas por meio da resistência. O Construcionismo Social seria uma perspectiva que
nos possibilita questionar tais acontecimentos, pois visa desnaturalizar processos construídos
socialmente. Neste sentido, essa pesquisa tem como objetivo problematizar as práticas discursivas
que a Psicologia tem produzido sobre a violência contra a mulher, principalmente as em uso por
profissionais da psicologia que trabalham nos serviços públicos de atendimento a mulheres em
situação de violência e as presentes em documentos de domínio público. Para isso, será feito um
mapeamento dos discursos que as Psicologias têm produzido sobre essa temática, identificando
quais têm sido as práticas discursivas que embasam as atuações dessas(es) profissionais. As
produções do Construcionismo Social nos servirão para analisar os sentidos que esse fenômeno tem
recebido, de forma a questionar como ele vem sendo produzido pela Psicologia. Esperamos que tal
reflexão possibilite encontrar pontos de fragilidade e de potência na atuação da Psicologia diante
desse fenômeno.
Palavras-chave: Construcionismo Social. Violência contra as Mulheres. Psicologia
UMA VISÃO PANORÂMICA SOBRE A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES
Algumas definições de órgãos nacionais e internacionais buscam fazer uma conceituação da
violência contra as mulheres. Esses documentos são importantes pois marcam algumas conquistas
provenientes das lutas das mulheres e de movimentos feministas. Como exemplo, temos a definição
presente na Convenção Interamericana Para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra as
mulheres, “Convenção de Belém do Pará” (Organização dos Estados Americanos, OEA, 1994),
segundo a qual entendemos como “violência contra as mulheres qualquer ato ou conduta baseada no
gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera
pública como na esfera privada” (OEA, 1994). De acordo com esse mesmo documento, “a violência
contra as mulheres abrange a violência física, sexual e psicológica” (OEA, 1994).
1 Psicólogo, Mestrando do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD -,
bolsista pelo mesmo programa. Este trabalho foi escrito para uma apresentação oral no Grupo de Trabalho A Produção
histórica sociocultural da violência de gênero, realizado no Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 e 13º Mundo
de Mulheres, que ocorreram nos dias 30/07 a 04/08 de 2017 em Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Endereço
eletrônico: [email protected] 2 Psicóloga Social, professora titular dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia pela Universidade Federal
da Grande Dourados – UFGD e Pós-doutoranda em Psicologia Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro –
UERJ. Endereço eletrônico: [email protected].
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Outro documento muito importante para a compreensão da violência contra as mulheres é a
Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir e prevenir a violência contra
as mulheres. A referida lei tem como norteadores os termos da “Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres” e da “Convenção de Belém do Pará” e
define a violência doméstica e familiar contra as mulheres como “qualquer ação ou omissão baseada
no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial” (BRASIL, 2006).
Embora tenhamos essas definições que versam de maneira mais abrangente a respeito da
violência contra as mulheres, nos questionamos como a Psicologia vem produzindo sentidos a
respeito dessa problemática. É nessa direção que buscamos produzir este trabalho.
LINGUAGEM EM AÇÃO: AS CONTRIBUIÇÕES DO CONSTRUCIONISMO SOCIAL PARA
COMPREENDER A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES
A partir de uma postura construcionista, sabemos que, ao revestir um determinado fenômeno
com a linguagem, produzimos os acontecimentos e os sujeitos envolvidos nele. Sua construção se
dará, portanto, a partir das condições de existência e de linguagem que circundam e que produzem
os viventes que falam de tal acontecimento (CORRADI-WEBSTER, 2014; GERGEN, 2010).
Afirmar o estatuto social do conhecimento e da linguagem é afirmar que suas existências são
dinâmicas e diferentes em tempos e espaços distintos e que a linguagem não é tão transparente
quanto nos parece. Ainda mais do que isso, a linguagem é uma ferramenta e um modo de exercício
de poder. Entendemos que diferentes usos da linguagem produzem efeitos distintos. Para descrever
isso, Spink (2010) utiliza o conceito de Práticas discursivas, que engloba a noção de Repertórios
Linguísticos. Estes, por sua vez são os termos, expressões e compreensões em comum que
possuímos dos fenômenos. Seu uso demarca quais são as possibilidades para construção de
sentidos. A linguagem é, então, um campo de embate em que seus agentes podem ocupar lugares de
dominação e de (r)existência.
Por esse motivo, o que nos interessa é como as narrativas construídas recebem o estatuto de
verdade por meio de processos sociais. Desta forma, ao conhecer os diferentes discursos, abrimos
possibilidades de diálogos e questionamentos que produzem outras maneiras de existência
(CORRADI-WEBSTER, 2014). Entendemos, então, que os acontecimentos não são realidades
essenciais, mas são produtos das interações e relações de poder que produzem diferentes
subjetividades com diferentes finalidades.
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Nessa forma de pesquisa, é necessário que nos atentemos para a distinção entre discurso e
práticas discursivas. De acordo com Spink (2010), o termo discurso se refere a um “uso
institucionalizado da linguagem e de sistemas de sinais de tipo linguístico” (p. 27), instituindo
campos de saber e de poder. Por outro lado, as práticas discursivas ou linguagem em ação dizem
respeito às “maneiras pelas quais as pessoas, por meio da linguagem, produzem sentidos e
posicionam-se em relações sociais cotidianas” (p. 27). Enquanto o discurso produz blocos de
linguagem que têm a solidez e consistência como características e objetivos principais, a produção
de sentidos se identifica com possíveis fissuras nesse iceberg que, embora possam não desmontá-lo
completamente, acaba produzindo novos contornos, rachaduras, fissuras, enfim, novos sentidos.
Tomando essa noção de práticas discursivas, esse tipo de estudo pode ser visto em Documentos de
Domínio Público (DDP), como afirma Spink (2014) e como podemos ver em Bernardes e Menegon
(2007).
Como exemplo da importância da linguagem e da forma como ela é utilizada, podemos
tomar dois documentos públicos citados anteriormente, o da Convenção de Belém do Pará e o texto
da Lei Maria da Penha (LMP). É possível identificar no primeiro texto a categorização de três
diferentes tipos de violência contra as mulheres, que são a violência física, sexual e psicológica. Já a
LMP categoriza mais duas formas de violência contra as mulheres, que são a violência patrimonial
e a violência moral. Como diria Corradi-Webster (2014), nenhum desses textos é mais verdadeiro
que o outro, mas devemos levar em consideração o contexto de produção de cada um e,
principalmente, que eles produzem efeitos diferentes. Ao reconhecer outras maneiras de violência
contra as mulheres, o texto da LMP modifica a compreensão e a construção desse fenômeno em
pelo menos dois aspectos: reconhece mais âmbitos de punição para os agressores e também que
existem outros espaços de direito das mulheres. Dessa forma, o fenômeno passa a ter outros
contornos e a ser entendido de outra maneira, produzindo efeitos nas relações sociais e,
consequentemente, novas realidades.
NOSSO MODO DE INVESTIGAÇÃO
Para esta pesquisa, realizamos uma busca de textos da Psicologia que falassem a respeito da
violência contra as mulheres, o que nos permitiu identificar algumas maneiras como essa ciência
vem trabalhando este tema. A busca foi feita seguindo os seguintes passos: no site da BVS-Psi
utilizamos os descritores “Psicologia”, “Violência” e “Mulher”. Essas palavras foram utilizadas
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juntas com a seleção dos anos de publicação, que foram delimitados em 6 anos (de 2011 a 20173).
Nesse primeiro momento, obtivemos 29 artigos. Num momento seguinte, selecionamos apenas os
artigos que estavam publicados em português, dos quais foram selecionados 25 artigos.
A partir da primeira leitura dos títulos, resumos e palavras-chave, selecionamos apenas
aqueles que tratavam especificamente de violência contra as mulheres. Dessa forma, os trabalhos
que tratassem de outras formas de violência não foram utilizados. Isso nos resultou um total de 17
artigos a serem lidos e analisados na íntegra. Consideramos que, a partir desse procedimento, foi
possível fazer uma seleção de trabalhos que mais se encaixassem nos objetivos desta pesquisa.
Embora consideremos importante um mapeamento das publicações, levando em
consideração as autorias, instituições de filiação e suas respectivas regiões e as revistas que
publicaram, tal análise pode ser melhor elaborada em outro momento para não prejudicarmos sua
validade, importância e aprofundamento. Por isso, nos ocupamos de analisar os textos completos
para compreender os sentidos que o termo “violência contra as mulheres” receberam nessas
publicações.
COMPREENSÕES SOBRE VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES E A CONSTRUÇÃO DE
UM CAMPO DE SABER: POSSÍVEIS ANÁLISES
O primeiro momento da análise das concepções de violência contra as mulheres foi
elaborado tendo como objeto de estudo aquilo que chamamos aqui de palavras de evidência dos
textos. Consideramos como palavras de evidência os termos que compõem os títulos, os resumos e
as palavras-chave. Entendemos que os termos presentes nesses momentos dos textos sinalizam a
possibilidade de produção de sentidos ou a reprodução discursiva de certos elementos. Num
segundo momento, passamos para uma análise mais detida sobre o conteúdo integral dos trabalhos,
onde buscamos entender as construções teórico-práticas da Psicologia a respeito da violência contra
as mulheres.
Análise das “palavras de evidência”
Chamamos aqui de “palavras de evidência” os títulos, resumos e palavras-chave. Nos
permitimos usar essa nomenclatura por, pelo menos, dois motivos: 1) elas aparecem com relativo
destaque no corpo dos textos tanto por seus formatos como por suas posições; 2) suas posições
indicam o início, o fim ou a síntese de algum assunto.
3 Essa pesquisa foi feita em março de 2017.
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Para a análise dos títulos, resumos e palavras-chave fizemos a leitura de cada uma dessas
seções e procuramos pelos termos “violência” e “mulher/es” e seus correlatos. A busca por esses
termos foi aberta para palavras que tivessem alguma relação com a violência, o que nos permitiu
encontrar palavras como “crime”, “matar”, “assédio” e “homicídios”.
Nas análises dos títulos, observamos que 4 artigos não utilizaram termos relativos à
violência. Dos outros 13 trabalhos, 2 apresentaram o termo violência sem relacioná-lo diretamente a
outra terminologia; 4 artigos apresentaram termos correlatos, sendo: “assédio moral”; “homicídios
conjugais”; “matou por amor”; e “crime e parceria amorosa violenta”; por fim, os outro 8 artigos
apresentaram o termo violência sempre relacionado diretamente com outro termo de caracterização
da violência, como seguem: “violência doméstica”; “violência de gênero”; “violência intrafamiliar”;
“violência contra as mulheres” – que aparece 4 vezes; e “violência sexual”.
A relação recorrente de “violência” com outros termos pode indicar que as violências
estudadas nesses artigos são caracterizadas por certos determinantes que as diferenciam umas das
outras. Em alguns trabalhos, percebemos que houve a preocupação de evidenciar que o estudo era a
respeito das violências que as mulheres sofrem, diferenciando dos estudos que usaram termos
como: “violência conjugal” e “violência intrafamiliar”. Consideramos importante fazer essa
diferenciação por alguns motivos. Primeiramente, porque o termo “violência conjugal”, embora
faça referência ao tipo de relacionamento em que a violência ocorre, não evidencia que a maior
parte dos casos de violência nesse âmbito tem as mulheres como maiores vítimas e com os maiores
prejuízos (BORGES, LODETTI e GIRARDI, 2014). De certa forma, essa terminologia evita a
estigmatização “mulheres/vítimas” e “homens/agressores”, situando a violência de gênero contra as
mulheres como processo relacional. No entanto, ela também deixa as desigualdades de poder menos
evidentes, supondo uma hipotética igualdade no exercício da violência tanto para homens quanto
para mulheres
O termo “violência intrafamiliar” também produz um processo parecido. Quando o
utilizamos para falar a respeito das violências sofridas pelas mulheres, diminuímos os efeitos das
relações de poder nas relações intrafamiliares que geralmente faz com que as mulheres sofram as
violências. Outro fator importante é que a violência intrafamiliar pode ocorrer envolvendo várias
pessoas, como filhos, filhas, pais, mães, avôs, avós, tios, tias, etc., o que também demanda
terminologias diferentes com implicações distintas. Portanto, de certa maneira, quando a
terminologia “violência intrafamiliar” é utilizada para tratar das violências sofridas pelas mulheres,
ela desloca o foco das relações de poder em questão. Assim, embora seu emprego seja útil para
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denotar a complexidade das violências que ocorrem no âmbito intrafamiliar, quando diz respeito à
violência contra as mulheres ele pode acarretar um ocultamento das problemáticas relacionadas à
violência de gênero.
As análises dos resumos e das palavras-chave foram feitas juntas. No que diz respeito à
violência, os termos que mais apareceram nos resumos e palavras-chave foram: “violência contra
a/as mulher/es”, num total de 13 vezes e “violência”, num total de 7 vezes. Os termos “crimes
passionais”, “violência doméstica”, “violência intrafamiliar” e “violência sexual” apareceram 3
vezes cada. Já o termo “mulher/es” apareceu relacionado com vários descritivos, como: “agredida”,
“em situação de violência”, “que sofrem violência doméstica” e “vítimas”. Contando essas variantes
descritivas, o termo “mulher/es” aparece 10 vezes. Em seguida, o termo “gênero” apareceu 8 vezes
sozinho, mas também apareceu com outros termos relacionados como: “identidade de”,
“diferenciais de” e “papéis de”. Ao todo, o termo “gênero” apareceu 11 vezes se contados com os
termos relacionados.
Esses números nos permitiram algumas compreensões. O maior uso do termo “violência
contra as mulheres” em relação a termos como “violência intrafamiliar”, “violência conjugal”,
“violência doméstica” entre outros, mostra a necessidade de identificar a direção da violência.
Quando utilizamos o termo “violência” associado a outros descritores, como “intrafamiliar” ou
“conjugal”, não ressaltamos as diferenças de poder inscritas nas relações conjugais, familiares e
domésticas. Ao utilizarmos o descritor “mulher/es” acabamos destacando contra quem é a violência
e abrimos a possibilidade de tratar esse assunto para além das barreiras domésticas e familiares. Isso
permite compreender a violência contra as mulheres como um processo que extrapola o ambiente
privado.
Quando nos atentamos para os termos relacionados a “mulher/es” identificamos que
“gênero” ganhou destaque. Disso, podemos entender que o termo gênero aparece tantas vezes por
conta de sua relação estreita com o feminismo e sua história de utilização nas lutas feministas de
enfrentamento à violência contra as mulheres. Na grande parte das vezes, esse termo fazia
referência à categoria “mulheres”. Isso demonstra que há uma certa compreensão na Psicologia que
concorda com a construção social dos gêneros. Essas características podem nos sinalizar quais têm
sido as formas de investigação que a Psicologia tem produzido dentro dessa temática.
A(S) PSICOLOGIA(S) E A (RE)PRODUÇÃO DE SENTIDOS PARA AS MULHERES QUE
SOFREM OU SOFRERAM VIOLÊNCIA
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Neste momento, nos ocupamos de uma análise mais detida das temáticas dos trabalhos
coletados a partir de uma leitura dos textos na íntegra. Para nortear nossa análise, fizemos alguns
questionamentos enquanto líamos cada texto: qual lugar a mulher ocupa nesses textos ou como elas
são descritas? Quais são as formas de abordar essa problemática? Quais propostas de intervenção
eles apresentam? Quais instrumentos a Psicologia pode oferecer para contribuir com essa temática?
Nossas análises resultaram em dois temas diferentes: os lugares das mulheres e alguns
deslocamentos; e o o conceito de gênero e sua utilização na compreensão do processo de violência
contra as mulheres.
Os lugares das mulheres e alguns deslocamentos
Para começar a discussão da análise, vamos apresentar algumas posições que as mulheres
ocupam dentro dos textos analisados segundo a nossa óptica. O lugar mais comum que encontramos
para falar das mulheres é o que as identifica com a posição de quem sofreu a violência. Outro ponto
importante, é que essa posição está sempre em relação com o homem agressor. Na maioria dos
casos, os estudos são de mulheres que foram violentadas por seus parceiros ou ex-parceiros. Talvez
daí possamos compreender a razão de vários trabalhos tratarem de relações conjugais, violência
intrafamiliar e violência doméstica. Disso, podemos entender que, na maior parte dos estudos, a
mulher é representada na posição de quem sofre ou sofreu a violência dentro de uma relação afetiva
e que essa violência foi perpetrada, na maioria das vezes, por seu parceiro ou ex-parceiro.
No entanto, existem alguns trabalhos que, embora apresentem essa possibilidade de leitura,
trazem alternativas para a compreensão das posições das mulheres. Ainda que elas sejam
representadas como quem sofreu a violência – o que de fato acontece –, tais artigos trabalham com
formas de enfrentamento da violência contra as mulheres a partir de experiências específicas. O
mais interessante desses trabalhos, é que suas narrativas extrapolam as práticas clínicas tradicionais
da Psicologia, abrindo um campo de atuação que engloba as condições históricas e sociais de
formação dos discursos sobre os gêneros (FERNANDES, GAIA & ASSIS, 2014, MEINHARDT &
MAIA, 2015).
Um dos trabalhos que apresenta formas que potencializam as possibilidades das mulheres é
o de Fernandes, Gaia e Assis (2012). Nele, os autores falam sobre as estratégias de enfrentamento
da violência de gênero contra as mulheres de Ji-Paraná. Como resultado, compreenderam que essas
mulheres se utilizam de estratégias diversas para lidarem com essa problemática.
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O trabalho de Meinhardt e Maia (2015) também nos mostra a importância do trabalho
psicológico que extrapole as condições tradicionais de atendimento. Por meio da proposta de uma
oficina, as autoras conseguiram sensibilizar profissionais a respeito da compreensão e identificação
da violência contra as mulheres, de modo que pudessem disponibilizar uma escuta e trabalhos mais
atentos às questões de gênero.
Assim, se nos voltarmos para a compreensão construcionista a respeito da diferenciação
entre discurso e práticas discursivas, talvez poderíamos identificar tais textos naquilo que Spink
(2010) afirma ser uma prática discursiva. Ao considerar que esses textos apresentam formas
diferentes de compreender a posição das mulheres, e apresentar atuações que extrapolam as práticas
clínicas tradicionais, eles também abrem a possibilidade de leituras mais potentes no que diz
respeito a intervenções com esse público. Além disso, traz ao palco do processo da violência a
potência dessas mulheres, mostrando deslocamentos do estigma mulher/vítima e que podem
produzir diferentes sentidos e compreensões de si mesmas e de suas relações com o mundo.
A categoria gênero e sua utilização na compreensão do processo de violência contra as mulheres
De acordo com nossa leitura, a violência contra as mulheres foi entendida como sendo uma
problemática diretamente relacionada às questões de gênero em pelo menos 13 dos 17 trabalhos.
Para chegarmos a essa percepção, nos atentamos para entender quais eram as formas de
compreender esse acontecimento e quais os elementos que faziam parte de sua explicação.
Consideramos que os trabalhos que abordavam a violência contra as mulheres a partir de uma
perspectiva gênero deveriam levar em consideração pelo menos dois fatores: a construção social
dos gêneros e suas implicações nas formas de poder, privilégios e opressão.
Dos trabalhos que não abordavam a violência contra as mulheres a partir dessa
compreensão, foi possível observar uma característica comum a quase todos. Quando o termo
“gênero” era usado, ele servia apenas para fazer referência às diferenças sexuais anatômicas. Diante
disso, pensamos que seria necessário apresentar algumas considerações a respeito dos efeitos dessas
concepções.
Primeiramente, ao tratar de gênero como se este fosse um dado, temos uma ocultação dos
seus processos de construção social e das relações de poder atreladas a eles. Por esse motivo, o
termo gênero acabava perdendo seu potencial político. Outra consequência é que, ao
desconsiderarmos a maneiras como os gêneros são construídos e os resultados dessas construções,
acabamos deixando de lado as redes de poder que legitimam determinadas práticas violentas contra
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as mulheres. Ou seja, quando não se discute as relações de poder implicadas na construção social
dos gêneros, acabamos desconsiderando o questionamento de certas práticas que perpetuam essas
violências.
A segunda característica está diretamente ligada à primeira. Ao deixar de lado os aspectos de
construção social e de poder relativos aos gêneros, esse termo não se diferencia do termo “sexo” –
usado para designar as diferenças sexuais anatômicas – e acaba se tornando apenas uma variável.
Nesse sentido, foi possível observar que o gênero era descrito como uma variável relacionada à
possibilidade de sofrer violência. Como característica dessa compreensão, alguns trabalhos
apresentavam dados em que podíamos ver como as mulheres sofriam mais com a violência
doméstica, intrafamiliar e/ou de gênero do que homens. Ao lermos tais trabalhos conseguimos
entender a importância desses números, pois eles também servem para justificar determinadas
intervenções nas mais diversas áreas. No entanto, também entendemos que essa distinção entre os
sexos não aborda a complexidade das discussões a respeito da construção social dos gêneros.
Assim, caberia apenas analisar como essa “variável” se associa com outras, como o ciúme, a idade,
o tempo de relacionamento. Especificamente nesse caso, é importante assinalar o seguinte: o ciúme
não é entendido como uma construção social que se fundamenta na forma como produzimos nossos
relacionamentos afetivos e nem na concepção de amor romântico que construímos socialmente, mas
um afeto quase natural e praticamente universal.
Outra abordagem que podemos fazer a respeito desse tipo de trabalho é que o gênero, ao ser
entendido como um dado ou uma variável, recebe um estatuto de fixado, invariável. A variável do
estudo é algo que pode ser observada separadamente ou que podemos isolar seus efeitos sobre o
objeto de nossas observações. Dessa maneira, desconsidera-se a historicidade de sua construção e
oculta-se também a violência presente na própria construção dos gêneros. Ao construirmos
discursos que produzem determinadas formas normativas de existência baseadas nas diferenças
sexuais que percebemos nos sujeitos, produzimos também formas de acesso ou negação a posições
de poder. Essas construções podem, portanto, produzir eixos de opressão que se reproduzem como
se fossem elementos naturais, observáveis separadamente dos processos sociais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A construção deste trabalho nos possibilitou fazer análises que contribuem para uma
compreensão da violência contra as mulheres a partir de uma perspectiva de gênero. Considerando a
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importância da linguagem e dos das construções sociais dos gêneros, buscamos entender como a(s)
Psicologia(s) tem entendido a violência contra as mulheres.
Nosso estudo permitiu produzir duas análises a respeito dos 18 artigos estudados. Uma
primeira análise do que chamamos de palavras de evidência e outra análise dos artigos na íntegra.
Como resultados da análise das palavras de evidência, entendemos que o uso da terminologia
violência contra as mulheres ressalta processos de construção dos gêneros e produtores de
violências que podem ser ocultados por termos como violência intrafamiliar e violência conjugal.
Não consideramos que o uso desses termos seja errado, pois eles também apontam processos
específicos.
No que diz respeito à análise dos textos completos, construímos duas categorias diferentes.
A primeira diz respeito aos lugares que as mulheres ocupavam nesses estudos. Percebemos que
alguns trabalhos possibilitaram a produção de sentidos na atuação com mulheres que sofreram
violência, abrindo possibilidades de compreensão e intervenção dentro da Psicologia. A segunda
categoria diz respeito ao uso da categoria gênero para a compreensão da violência contra as
mulheres. Nossas análises mostram que boa parte dos trabalhos utilizam essa terminologia
considerando os processos de construção social e as relações de poder envolvidas. No entanto,
outros trabalhos fazem uso dessa terminologia desconsiderando a importância desses processos para
a compreensão da violência contra as mulheres.
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The construction of the discourses about violence against women: a social constructionism
sight
Astract: Gender inequalities are discursive productions that are mainly based on sexual differences
and result in domination processes. Therefore, it is possible to identify that this process produces
inequalities in the exercise of power, especially on one’s own body. However, gender inequalities
produces relations of domination and subjugation that are contested by resistance. Social
Constructionism is a perspective that enables us to question such events because it aims to denature
socially constructed processes. By this way, this research has as objective to problematize
discursive practices that Psychology has produced about the violence against woman, mainly those
that are used by professionals of Psychology who work in the public services attending women in
situation of violence and those present in documents of public domain. For this purpose, we will
map the discourses that Psychologies have produced about this theme identifying which have been
the discursive practices that underpin the procedure of these professionals. The productions of
Social Constructionism will serve us to analyze the senses that this phenomenon has received such
in a way to question how it has been produced by Psychology. We hope that this reflection enables
us to find fragility points and capacities in the procedure of Psychology before this phenomenon.
Keywords: Social Constructionism. Violence against women. Psychology.