Download - O primeiro Cravo
O PRIMEIROCravo
Texto VITOR PAMPLONA [email protected] RAUL SPINASSÉ [email protected]
Aos 88 anos, o escultor baiano Mario Cravo Jr.abre exposição na próxima sexta-feira, na GaleriaPaulo Darzé. Noventa por cento das peças são detrabalhos recentes e que nunca foram vistos pelopúblico. Pioneiro da arte moderna na Bahia, oartista continua criando sem cessar no EspaçoCravo, onde fica seu estúdio e o parque com suasesculturas a céu aberto, em Pituaçu
Osilêncio do Parque Me-
tropolitano de Pituaçu
abriu a guarda que go-
verna os espaços infini-
tos. No grande edifício
modernista construído
na entrada principal do parque, por trás de
uma porta de metal, uma voz sobe até o
último tom e emite impropérios: “É uma
armação, meu filho, que essa mulher está
fazendo! Essa mulher é uma maluca agres-
siva!”. Berros, brados, gritos.
Mais um instante e a porta corre para o
lado, iluminando a figura mística de Mario
Cravo Jr., ouvido grudado ao telefone ce-
lular. Do outro lado da linha, o filho Ivan
Cravo busca acalmar os ânimos. A penden-
ga envolve a instalação de uma nova linha
telefônica na sede do Espaço Cravo, nome
de batismo do parque de esculturas a céu
abertoondeestãoexpostascercade50pe-
ças do artista, objetos tridimensionais es-
táticos, móveis, sonoros.
Mario entra no carro, quer ir ao ateliê,
localizadoamaisoumenoscemmetros,na
parte alta do parque. Traz numa das mãos
pedaços de outro telefone, este espatifado
no calor da discussão. Entrega-o ao moto-
rista André Luiz, nas horas vagas auxiliar
paraassuntosextraordinários,epedepara
o ajudante tentar consertá-lo.
Com a outra mão faz o sinal: “Em fren-
te”. Não há tempo a perder. Em poucos
dias, será aberta sua primeira exposição
nos últimos nove anos, tempo longo de-
mais para um artista de sua importância e
que, como se isso não bastasse, não para
de produzir aos 88 anos de idade.
Avelhicesetransformounumdostemas
preferidos de seu discurso transbordante,
exatamente porque Mario Cravo a odeia:
“Só quem é velho sabe o que isso significa.
Os limites do corpo, do fazer força, do le-
vantar e andar”, enumera estorvos.
“Quanto mais um dia, menos um dia”, sin-
tetiza a consciência da morte. Mas Mario
Cravo não se entrega. “A vida é uma luta,
meu filho”, repete. “E temos que lutar”.
Para o escultor e pintor, o pioneiro da
arte moderna na Bahia, autor de tantas es-
culturas incorporadas à paisagem urbana
de Salvador e dezenas de outros trabalhos
em museus de Nova York a Jerusalém e do
Rio de Janeiro a São Petersburgo, lutar é
continuar a criar. “Ele sempre está crian-
do”, confirma o galerista Paulo Darzé, que
divide com o próprio Mário a curadoria da
exposição, cuja abertura está marcada pa-
ra a próxima sexta-feira, dia 29, às 19h, na
Paulo Darzé Galeria de Arte. “Apesar da
idade, é um menino. Se empolga, vibra
com a produção do evento”.
GRAFITEIROTerceira mostra de trabalhos de Mario
Cravo organizada por Darzé, esta terá um
traço de novidade: perto de 90% das peças
em exibição, diz o galerista, são de traba-
lhosrecentes,feitosnosúltimosdoisanose
jamais vistos pelo público. As figuras de
exus, uma de suas marcas registradas, es-
tarão presentes junto com as grandes es-
culturas de latão, ferro e aço que o consa-
graram. Paulo Darzé destaca também al-
gumas peças antigas – portas de madeira
transformadas em exus em alto-relevo –,
mas são as possibilidades de uma nova
matéria-prima, o grafite, que têm atraído
cada vez mais o escultor.
ArelaçãodeMarioCravocomomaterial
começou há mais ou menos seis anos,
quando num lote de sucata – o ponto de
partidadegrandepartedesuasobras–ele
comprou placas de revestimento de fornos
industriais. As chapas começaram a ser
usadas como calço, para apoiar estruturas
e nivelar terrenos. Em pouco tempo, mu-
daram de utilidade, o que não surpreende
24 SALVADOR DOMINGO 24/4/2011 25SALVADOR DOMINGO 24/4/2011
quem conhece o processo artístico constante de Mario Cravo.
“Ele não se apega a um material. O que vem na sua cabeça, ele
faz”, comenta Paulo Darzé.
Para Mario, experimentar é uma consequência de sua na-
tureza:“Comeceiatrabalhar, lixar,recortar.Ografitecortacom
facilidade”.Oresultadoestápenduradonasparedesdogalpão
ondefuncionaseuateliêeespalhadoemcimadeumamesano
mesmo local: esculturas sinuosas, tridimensionais ou em al-
to-relevo,debrilhofoscoeformasvariadas,queserãoexibidas
na exposição. Em sua maioria, são de pequeno porte. Mario
enfatiza: “As pessoas tendem a valorizar peças grandes, mas
escultura é escultura, não importa o tamanho”.
Ato contínuo, pede ao repórter e ao fotógrafo: “Passa a
mão, é um material extremamente sensual. Esta aqui parece
uma planta, uma folha, uma xoxota”, aponta uma peça. “O
que vem na cabeça”. A textura lisa, insinuante das esculturas
impressiona. As curvas e a temperatura, quase fria, impulsio-
nam o desejo de ficar horas acariciando-as, alisando a super-
fície polida e percorrendo as dobras inventadas pelo artista.
PIONEIROO poeta e crítico de arte Wilson Rocha (1921-2005) anotou
que “a experiência da forma, a vivência criativa e o senso tátil
da matéria” guardam a origem da excepcionalidade da obra e
da pessoa de Mario Cravo Jr. na arte brasileira moderna e con-
temporânea. Sua trajetória, desde a primeira exposição indi-
vidual em Salvador, no longínquo ano de 1947, e nas que se
seguiram, após a temporada de estudos com o escultor iugos-
lavo Ivan Mestrovitch, na Universidade de Syracuse, em Nova
York, cidade onde viveu por cerca de dois anos no final da dé-
cada, expõe uma preocupação que a crítica de arte Matilde
Matos traduz como uma das grandes características de sua ar-
te: procurar nas raízes culturais baianas a inspiração para o seu
trabalho, na forma, material e conteúdo.
Junto com outros pioneiros do modernismo na Bahia – Car-
los Bastos, Genaro de Carvalho, Carybé, Jenner Augusto e Ru-
bens Valentin –, Mario foi um dos primeiros a fazer isso nas
artes visuais, adicionando às temáticas da nossa realidade o
código da expressão artística universal . “Foi também o que
mais provocou, sempre tentando e resolvendo meios, técni-
cas, materiais, mergulhando fundo para trabalhar com e não
contra o material escolhido, tirando partido do que tinha à
O escultor Mario Cravo
Jr. encara a velhice como
um desafio diário
26 SALVADOR DOMINGO 24/4/2011 27SALVADOR DOMINGO 24/4/2011
mão,sempremantendoseusvalores”,afir-
ma a crítica (leia texto na pág. 28).
Nesta lista estão madeira, ferro, latão,
cobre, aço inoxidável, resina de poliéster,
fibradevidro,pedra-sabãoegrafite.Mario
acrescenta o que considera (apenas) outro
suporte, o computador. Digitalmente, pro-
duziu mais de três mil gravuras, armazena-
das na memória do computador de seu es-
critório no ateliê. Mas cansou do teclado e
do mouse: “Parei, desisti. A máquina é
fria”, indica mais uma vez a natureza física,
concreta, tátil de sua arte.
Tocar nos materiais, estudar e conhecer
intimamente suas propriedades é funda-
mental para perceber o que um monte de
sucata, por exemplo, quer ser. Mario tem
na ponta da língua uma palestra sobre a
íntima relação entre seu trabalho e o lixo
industrial: “Um dos personagens impor-
tantes da minha vida, nos últimos 30, 40
anos, é o sucateiro. Onde eu estive fui atrás
de sucateiros, que aos poucos foram des-
cobrindominhas formaspreferidas.Então,
estabelece-se uma relação de empatia”.
Guarda viva na memória a imagem do su-
cateiroPisca-Pisca,donodeumferro-velho
naLinhaVerde,queconstantementetirava
o telefone do gancho e avisava o artista:
“Seu Mario, venha aqui que tem um ma-
terial que o senhor vai gostar”.
Transformar em arte o que iria para o
lixo faz dele um precursor de uma prática
explorada à exaustão por uma série de ar-
tistas contemporâneos. Símbolo da ma-
neiracomoMariointegraissoaocotidiano,
o casal de exus construído a partir de bici-
cletas velhas de trabalhadores que o auxi-
liamnoateliêafastaqualquersinaldefalsa
modéstia: “Isso me dá um orgulho da por-
ra, um material usado por um funcionário
meu,equepodeserrecriadocomumtema
para mim já clássico, digamos”.
OFICINAPara transfigurar o lixo industrial, gran-
de parte doado por empresas, Mario fre-
quenta diariamente o ateliê no Parque de
Pituaçu. Até pouco tempo atrás, passava o
dia inteiro lá, rotina que mudou após o
agravamento da asma crônica de Lúcia,
sua mulher há 66 anos, com quem teve
quatro filhos. A bengala na mão, compa-
nheira inseparável há anos, não o impede
de vencer as inclinações do terreno.
Dentroeforadogalpão,pedaçosdeme-
tal, madeira ou resina e esculturas em ma-
nutenção disputam espaço com máquinas
de cortar, dobrar, soldar, equipamento ha-
bitual de fábricas. O cenário da oficina de
trabalho completa-se com dez fiéis escu-
deiros: Benício, Joel, Antônio Luiz, Daniel,
Nilton, José Jorge, João, Manuel, Bernabé
e Alex .Os ajudantes são quem, hoje em
dia, coloca a mão na massa seguindo à ris-
ca as instruções do mestre.
Todos têm de seis a 12 anos de trabalho
com Mario Cravo, com exceção de Antônio
Luiz,omaisantigo,quejápassoudos15.Já
estão calejados no trato com os materiais e
com o velho escultor, que diz ter dois mé-
todos de trabalho. Um é instintivo, resulta
da conversa interior entre o artista e o ma-
terial. O outro ele apelida de “punheta”:
“Vocêfazdesenho,estudo,maquete.Éum
desafio que você se faz”.
Mario ri muito, brinca, provoca, gosta
de avacalhar. Quando quer, também bri-
ga, é ranzinza, implicante. “Eu falo alto,
mas não mordo. Ainda”. O humor pueril e
ainsolênciaestratégicasósãoescanteados
diante de um assunto que ainda o comove
muito: a perda do filho Mario Cravo Neto,
fotógrafo, morto em decorrência de um
câncer de pele, em 2009, aos 62 anos.
Conhecido por retratar a religiosidade
afro-baiana, premiado no Brasil e exterior,
Mariozinho renovou obras do pai por meio
da fotografia. Criando cenários, texturas
de fundo e iluminação para as esculturas,
extraiu delas intensa expressão registrada
em livro. Os dois falavam a mesma língua,
eram parceiros: “Meu filho, amigo e cole-
ga”, Mario Cravo não represa a emoção.
Mas o gene criador do primeiro Cravo
sobrevive e chegou à terceira geração. Fi-
lho de Cravo Neto e fotógrafo como o pai,
Christian Cravo, 37, carrega adiante o DNA
artístico da família. “Acho difícil dizer até
que ponto fui influenciado, mas teria sido
difícil eu não atuar nas artes. Meus brin-
quedos eram justamente as madeiras, fer-
ros, pedaços de acrílico espalhados pelo
ateliê do meu avô”, diz.
Christianreconhecea influênciadosMa-
rios, mas valoriza o outro galho da árvore
genealógica: “Agrada-me a ideia de ter
herdado o pique dos Cravos e a disciplina
dos Christensen, minha família materna”.
Satisfeito, o avô acrescentaria: “Autocrítica
é a melhor avaliação. Ainda”.
MARGARIDA NEIDE / AG. A TARDE XANDO PEREIRA / AG. A TARDE IRACEMA CHEQUER / AG. A TARDE
O escultor com o filho Mario Cravo Neto
(1947-2009), acima; com o escritor Jorge Amado
(1912-2001), abaixo; e com a mulher, Lúcia, com
quem está casado desde 1945
DIVULGAÇÃO
ARQUIVO A TARDE DIVULGAÇÃO
Obras públicas:
Cruz Caída (Praça
da Sé); Oxalá
(Sede dos Correios,
Pituba); e Fonte da
Rampa do Mercado
(Praça Cayru)
28 SALVADOR DOMINGO 24/4/2011 29SALVADOR DOMINGO 24/4/2011
VÁ LÁPaulo Darzé Galeria deArte. Rua Chrysippo deAguiar, 8, Corredor daVitória. Abertura dia29, às 19h. Visitação:seg. a sex., 9h às 19h,e sáb., 9h às 13h
Mario Cravo Jr.
em seu ateliê,
no Parque de
Pituaçu
A facilidade de criação de Mario Cravo Jr.MATILDE MATOS ajudantes da oficina do artista; a porten-
tosa cruz, Mario compôs com tubos de an-
tiga adutora, presente de um amigo.
Na exposição Mario CRAVO Jr., o públi-
co vai ter a feliz oportunidade de ver suas
peças dos últimos seis anos, com o brilho
avermelhado do cobre, dourado do latão
e prateado do aço inoxidável, alternan-
do-se aos discretos cinzas e quase negros
dos grafites, raros e irresistíveis, à vista e
ao tato, descoberta original de Mario.
Único artista a usar o grafite na arte, ele
diz como o encontrou. Frequentador do
famoso ferro-velho de Pisca-Pisca, o artis-
ta recebeu dele uma quantidade de irre-
conhecíveis peças arrebanhadas de um
incêndio. Semelhantes a tábuas enrola-
das em velhos papéis colados, sujas, Ma-
rio as usava como suporte e, por acaso,
descobriu depois que eram grafites.
Com esse material, que na sua defini-
ção é “carbono gentil, irmão ‘soft’ do dia-
mante”, o artista vem dando asas à ima-
ginação, ao criar placas de parede e pe-
quenas esculturas, explorando nos cortes
o brilho natural do grafite, começando a
Matilde Matos, da ABCA (Associação Brasileirade Críticos de Arte) e Aica (Associação Interna-cional de Críticos de Arte)
inserir uma linha alva ou de outra cor na
suavidade do quase negro, sugerindo nas
formas seu modo de ver elementos que
nos remetem à natureza, ou nos passam
as ideias que atravessam sua “memória,
morte e vida”.
Nosmetaisounografite,ressai,alémda
originalidade da criação, o cuidado com o
acabamento perfeito que retém a luz e
exalta as cores originais dos metais nas pe-
ças. Mario Cravo fez há pouco tempo no-
tável escultura de 4,50 m x 2,40 m para ser
colocada numa praça em Olheiros, cidade
pequena, próxima a Lisboa, a pedido dos
criadores de uma homenagem à poética
da língua portuguesa.
Usando,alémdoferro,oaçoinoxidável,
o latão e o cobre, os agudos ângulos das
formas geométricas da escultura provo-
camarefraçãodaluz,enquantoosolexalta
as cores e, sob o verde da árvore, onde foi
colocada, até na fotografia, ela reluz seus
tons como pura poesia. «
Diante da ambiguidade instalada na arte,
desde que artistas apressados passaram a
assumir a estética do feio e grotesco como
caráterdecontemporaneidade,essaexpo-
sição de trabalhos dos últimos seis anos de
Mario Cravo Jr., na Galeria de Arte Paulo
Darzé, vem esclarecer como é fazer arte
contemporânea.
Venho acompanhando de perto as ar-
tes visuais há mais de meio século e sem-
pre me causou admiração e espanto a fa-
cilidade da criação de Mario Cravo Jr., que
faz de simples visita à sua oficina de tra-
balho uma aventura estonteante que ja-
mais se esquece. Ali a versatilidade do tra-
balho diário do artista se evidencia na
criação em andamento e em peças já con-
cluídas, seja em desenho, pintura, gravu-
ra, infogravura e esculturas, na grande
maioria, criadas na madeira e com dife-
rentes metais ou transformadas de peças
utilitárias que o tempo relegou.
O cativante casal de exus nessa exposi-
ção resultou de bicicletas quebradas dos