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8/18/2019 O Princípio de Realidade Na Pintura Do Renascimento — a Questão Da Perspectiva
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ICLEIA BORSA CATTANI
O princípio de realidade na pintura do Renascimento — a questão da perspectiva
Até hoje um dos critérios do público leigo para julgar da maior ou menor “qualidade” de uma pintura,
é compará-la a algum modelo do mundo visível e medir seu maior ou menor grau de semelhança com
o real.
Uma pintura é considerada boa, bela e compreensível segundo esses parâmetros, como se fosse
o objetivo “natural” da arte. Essa é unia das razões (evidentemente, não a única) pelas quais a distância
entre a arte moderna e contemporânea e o público leigo aumentou progressivamente. O domínio dos
códigos ficou cada vez mais restrito a pequenos grupos de especialistas, como se houvesse de um
lado urna arte “natural”, elaborada à imagem e semelhança do mundo visível, e de outro lado
produções “artificiais”, “falsas” ou “codificadas”, aquelas que não se guiam pelo princípio de realidade.
Entretanto, esse princípio tal como o conhecemos ainda hoje, elaborou-se na produção artística
(principalmente, a pintura), no Renascimento, sob condições históricas e sociais bem definidas.
O novo sistema de formas era em tudo diferente do sistema medieval anterior, embora tivesse
começado de forma embrionária ainda na Idade Média, no período gótico, marcando
progressivamente uma nova visão de mundo e de arte.
A arte medieval se havia caracterizado até o período românico, e no estilo bizantino, pela
ausência de profundidade espacial, pela estilização das formas e simplificação dos volumes, e pelo
tratamento arbitrário do corpo humano, que tanto podia ser deformado para adaptar-se a um espaço
definido, quanto ser representado em tamanhos diferenciados dentro de um mesmo espaço de
representação, para significar a importância hierárquica de cada personagem. A arte não possuía
compromisso com a representação da realidade, contrariamente ao sistema renascentista. Os códigos
eram, em oposição a um sistema de representação individualizado, genéricos e rígidos.
Pierre Francastel assim define a arte bizantina (em oposição ao novo tema de signos que
começou a se elaborar na Itália no século XIV com Giotto):
Para Bizâncio, o problema do lugar e do tempo se colocava de um modo bem preciso. Toda
representação é ali ligada ao dogma cristológico sobre o qual repousa igualmente a
hierarquia social do universo. A pintura é assim destinada a materializar as dimensões de
um espaço do qual todas as qualidades são determinadas pela lei divina. Não há de certo
modo espaço figurado; o espaço representado é atual, seja quando se trata das paredes e
dos arcos de uma igreja, seja quando se trata da superfície de uma imagem. A essência é
∗ Porto Arte, Porto Alegre, 1 (1) maio 1990. pp.31-39.
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uma, e ela está em tudo na sua totalidade. O universo é a atualização do pensamento
divino. 1
A pintura do Renascimento tentou elaborar em oposição a esse sistema de formas um outro
sistema, igualmente complexo, mas baseado em novos princípios construtivos. As razões pira as
mudanças foram várias. Francastel coloca, no mesmo texto citado, a propósito de Giotto, que não
foram razões puramente figurativas que o levaram a renovar o espaço-tempo de sua pintura, mas
razoes intelectuais e sensíveis. Esse novo sistema de representação, baseado no princípio de realidade,
organiza-se na verdade a partir de estruturas formais Inovadoras mas igualmente abstratas, dentre as
quais é necessário destacar o sistema perspectivo que foi sendo gradualmente elaborado.
O sistema perspectivo visava unificar a imagem representada a partir de um ponto de
convergência único. Visava também reproduzir, num espaço bidimensional, a realidade corpórea,volumétrica, de figuras e objetos tridimensionais reais. Transformado num espaço c e representação
do tridimensional, o suporte bidimensional da pintura passou a ser negado na sua realidade física,
sendo concebido como plano transparente, ponto d intersecção da pirâmide formada pelos raios
visuais, tendo por ápice o olho no observador e por base o objeto a ser representado. O objetivo era
sempre representar, sobre o suporte (tela, madeira, parede), os objetos e o espaço reais, pela
determinação exata e matemática de sua forma, de suas dimensões e posição, de modo que a
imagem pictórica correspondesse fielmente à que produz a visão direta.2 A pintura devia ser uma
reprodução fiel do real, “janela pela qual, como o artista quer nos fazer crer, nosso olhar mergulha no
espaço”.3
Entretanto, não se trata de uma representação mais “real” do que outras. Erwin Panofsky coloca a
questão da “perspectiva como forma simbólica”,4 portanto como algo relativo e mutável, e analisa em
seu livro os diversos estudos e ensaios perspectivos. Pierre Francastel analisa a construção perspectiva
como uma convenção representativa:
A perspectiva linear — que não é absolutamente a única forma conhecida peloQuattrocento — não é um sistema racional mais adaptado do que qualquer outro à
estrutura do espírito humano; ela não corresponde a um progresso absoluto da
humanidade na via de uma representação cada vez mais adequada do mundo exterior
sobre o suporte plástico fixo bidimensional; ela é um dos aspectos de um modo de
expressão convencional embasado num certo estado das técnicas, da ciência, da ordem
social do mundo num dado momento.5
Marisa Datai Emiliani analisa, além das questões colocadas por Francastel, as condições
(arbitrárias e artificiais) através das quais a perspectiva pode funcionar como “desdobramento” do
mundo visível:
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Para que a imagem construída através da projeção perspectiva, ou central, coincida
cientificamente com a da visão direta, é necessário . . . que o observador se dobre às
condições estabelecidas pela própria construção: ou seja, que ele olhe o quadro a partir do
mesmo centro visual adotado pelo pintor, à mesma distância, e com um único olho
absolutamente imóvel. Fora dessas condições, a imagem que ele perceberá será
arbitrariamente deformada em relação à imagem natural.6
Além dessas condições, que já evidenciam por si mesmas o caráter anti-realista da representação
perspectiva, somam-se outros fatores inerentes à percepção humana normal. Esta é binocular e
móvel, tomando esférico o campo visual. Por outro lado, a imagem retiniana é projetada sobre uma
superfície côncava, de modo que “a este nível factual inferior e 'pré-psicológico' estabelece-se já uma
discordância fundamental entre a 'realidade' e a construção perspectiva.”7 O olhar humano corrige
distorções que a fotografia por exemplo revela, por basear-se mecanicamente no mesmo princípio da
perspectiva plana, do olho único e imóvel.
Partindo do postulado de que a representação perspectiva não é mais “real” do que qualquer
outro tipo de representação, anterior ou posterior (pois no Ocidente esse sistema de representação foi
questionado a partir do século XIX), veremos de que modo concreto ela se evidencia nas obras
renascentistas.
Segundo Emiliani, para que a representação perspectiva fosse absolutamente fiel à visão natural,conforme os objetivos dos pintores renascentistas, era necessário que estes recorressem por um lado
à perspectiva linear, com a qual se obtém a estrutura geométrica dos corpos, e por outro lado à
perspectiva atmosférica, através da qual pode-se registrar as variações de intensidade luminosa e as
gradações de cores conforme a distância.8 Alguns dos magníficos esboços deixados por Leonardo da
Vinci, como a Adoração dos Magos da Galleria Uffizi de Florença (1481), mostra como, através do
escorço e do claro-escuro que modela as formas, o artista tentava harmonizar os dois princípios
perspectivos. Os contrastes de claro-escuro são maiores no modelado das figuras do primeiro plano,
atenuando-se gradualmente nos planos subseqüentes e evidenciando, já nesta fase de esboço
monocromático, a atenuação das linhas e dos modelados conforme a distância dos objetos em
relação ao observador — Leonardo foi um mestre na utilização do sfumato, técnica que consiste
justamente na diluição dos contornos das formas, na “passagem” gradual de uma forma para outra,
que visa reforçar o efeito de distanciamento. Segundo Panofsky, esse esboço afirma a conquista de
uma concepção definitivamente “moderna” da pintura, na medida em que prioriza o espaço global
sobre os objetos singulares.9 Nos quadros terminados, a esses recursos estruturais unia-se a cor, nítida
e de limites bem definidos no primeiro plano, atenuada e adquirindo uma tonalidade azulada quediminuta os contrastes nos planos subseqüentes. A técnica da veladura, que consistia em sobrepor
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camadas finíssimas de tinta sobre outra camada já seca, auxiliava grandemente na representação
atmosférica. A veladura surgiu naquela época, fruto das experiências com a pintura à óleo, que
provocou grandes mudanças nos métodos de trabalho e nas formas.
Não podemos esquecer entretanto que os princípios supra-citados referem-se aos quadros de
Leonardo da Vinci e aos de alguns outros pintores seus contemporâneos, e não à totalidade da
pintura renascentista. Com efeito, nos inícios do século XV, ela apresentava outras características:
Durante a primeira metade do Quattrocento, vemos multiplicarem-se experiências espaciais
um pouco contraditórias, e que os maiores artistas colocam no mesmo plano, pesquisas das
quais algumas são o desenvolvimento das experiências do passado e outras, em menor
número, preparam o futuro. Nada mais falso do que acreditar que a descoberta de um novo
espaço plástico, o espaço moderno, houvesse aparecido mesmo a seus iniciadores como
unia invenção absoluta. No plano das técnicas, eles não cessaram de colher ao seu redor e
de experimentar. Na primeira geração, ninguém teve o sentimento de possuir uma fórmula
definitiva. Não esqueçamos que no início do Quattrocento, criou-se em virtude de um
sentimento interior, e não em virtude de um plano preconcebido.10
Foi a partir da segunda metade do século XV que se cristalizou o princípio da perspectiva linear
enquanto doutrina, segundo as normas estabelecidas por Alberti, negando em parte os outros tipos
de pesquisa realizados até então. Segundo Francastel, o Renascimento realizou um “sistema feroz de
seleção”,11 de caráter arbitrário.
O espaço estruturado pela perspectiva linear possui um principio unificador. Ao espaço unificado,
correspondem figuras únicas (em oposição às sucessões de cenas medievais, nas quais uma mesma
figura era representada várias vezes num mesmo espaço, significando os vários episódios do fato
ilustrado).
Tomemos como exemplo a Anunciação de Leonardo da Vinci, da Galleria Uffizi (1475-1478) num
espaço unificado no qual as linhas da composição convergem para una ponto centralizado. situado na
linha do horizonte, as duas figuras são simetricamente dispostas nas laterais, criando um equilíbrio de
massas em torno de um “vazio”, a extensão do espaço central. As duas figuras estão em espaço
aberto, mas por detrás da Virgem, uma fachada de palácio auxilia a sugerir o espaço cúbico unificado.
Tudo nesta cena contribui para sublinhar o caráter único do momento mesmo da Anunciação.
Podemos contrapô-lo à pintura de Fra Angélico, Nascimento de São Nicolau, sua vocação, o Santo e os
três meninos, da Pinacoteca do Vaticano em Roma (1437). Neste coexistem, mais no início do
Quattrocento, um espaço unificado pela perspectiva e pelas massas das figuras e construções
arquitetônicas, com um desdobramento do personagem: São Nicolau é representado três vezes
dentro do mesmo espaço. Esse desdobramento simboliza conseqüentemente, três momentos
diferentes, prática comum ao sistema de formas medieval. Na Anunciação, pelo contrário, às figuras
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unificadas, ao espaço uno, corresponde um tempo unificado, momento singular, sem passado nem
futuro visíveis. Entretanto, se esse modo de representação nos parece mais “real” do que outros,
temos que considerar que essa leitura provém de todo um sistema de signos culturais surgidos
simultaneamente e transmitidos pela tradição representativa e pela vivência empírica. Com efeito, no
Renascimento outros campos de representação social tenderam-se ao principio da unidade espaço-
temporal: dentre eles, o urbanismo das cidades, as construções arquitetônicas e a cena teatral, com o
palco à italiana, bem como o tipo de peças que nela eram representadas. Grande parte dessas criações
chegaram até os dias de hoje e fazem parte de nossa bagagem cultural. Entretanto, desde o século
XIX, novas experiências e análises da realidade levaram a modificações dos conceitos de espaço-
tempo e de indivíduo. O marxismo estudou a história e a sociedade como complexos sociais que
extrapolam os indivíduos tomados isoladamente. A psicanálise demonstrou a existência do
inconsciente (que nos faz duplos) e os processos fragmentários de percepção de nossos próprioscorpos e da realidade circundante. As experiências e teorias da física demonstraram a relatividade dos
conceitos de tempo e espaço.
Além desses aspectos, as modificações dialéticas internas ao próprio processo de produção,
distribuição e consumo da arte nos séculos XIX e XX e as novas experiências imagéticas e cinéticas
provocadas pela fotografia, pelo cinema, pelos sistemas de arte não-ocidentais, etc, modificaram os
modos de apreensão e representação do tempo, do espaço e dos corpos no espaço.
Todos esses fatores, e outros mais, contribuíram para colocar em questão os valores figurativos
tradicionais.
Pode-se concluir que a pintura do Renascimento, embora elaborada sob a égide da
representação do mundo visível, na verdade criou um Sistema de formas tão artificial (face à
realidade) quanto os que a antecederam e os que lhe foram posteriores. Entretanto, esse sistema de
formas estruturou a pintura ocidental durante quatro séculos e chegou até o século XX como modelo
cultural, a ser seguido ou negado — no nosso século é que ocorreu a verdadeira ruptura. E, se seu
principio de realidade é falso, isso não depõe de modo algum contra as extraordinárias criações que o
elaboraram e lhe deram sustentação durante todo este tempo. Pois o compromisso da arte e suafunção não são jamais de reproduzir o real, mas de atuar neste real de suas maneiras próprias,
enquanto verdadeiro agente social que lida com o campo do simbólico e do imaginário.
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NOTAS
1 (FRANCASTEL,1970, p. 73) 2 (EMILIANI,1975, p.12) 3 (PANOFSKY,1975, p. 38) 4
(PANOFSKY,1975, p. 38) 5 (FRANCASTEL,1965, p. 7) 6 (EMILIANI, 1975, p. 8) 7 (PANOFSKY,1975, p.44) 8 (EMILIANI,1975, p. 7) 9 (PANOFSKY,1975, p.130) 10 (FRANCASTEL,1965, p. 24-25) 11 (FRANCASTEL,1965, p. 33)
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