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Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
Departamento de Letras Clssicas e Vernculas
Ivan Neves Marques Jnior
O riso segundo Ccero e Quintiliano: traduo e comentrios de
De oratore, livro II, 216-291 (De ridiculis) e da
Institutio Oratoria, livro VI, 3 (De risu)
So Paulo 2008
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Ivan Neves Marques Jnior
O riso segundo Ccero e Quintiliano: traduo e comentrios de
De oratore, livro II, 216-291 (De ridiculis) e da
Institutio Oratoria, livro VI, 3 (De risu)
Dissertao apresentada ao Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, como parte dos pr-requisitos para a obteno do ttulo de Mestre em Literatura Latina. Orientador: Prof. Dr. Jos Rodrigues Seabra Filho
So Paulo 2008
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Marques Jnior, Ivan Neves, 1971-
O riso segundo Ccero e Quintiliano: traduo e comentrios de De oratore, livro II, 216-291 (De ridiculis) e da Institutio Oratoria, livro VI, 3 (De risu) / Ivan Neves Marques Jnior So Paulo: Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Universidade de So Paulo (Dissertao de mestrado), 2008.
1. Marco Tlio Ccero 2.
Marco Fbio Quintiliano 3. Literatura Latina 4. Sculo II e I a.e.c. Sculo I 5. Retrica 6. Oratria I. Ttulo
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RESUMO
Este trabalho uma traduo de dois excertos de dois tratados retricos que
tratam do uso do riso na oratria: um deles situado entre os pargrafos 216 e 291 do
livro II de De oratore de Marco Tlio Ccero, chamado De ridiculis, e o outro, um
captulo todo, o terceiro, do livro VI da Institutio Oratoria de Marco Fbio Quintiliano,
denominado De risu, com comentrios sobre os aspectos da utilizao do riso no
discurso oratrio, a relao estabelecida entre os dois textos e os itens acolhidos por
Quintiliano em De risu do texto de De ridiculis, de Ccero.
Palavras-chave: Retrica, Oratria, Riso, Ccero, Quintiliano, urbanitas,
facetiae.
ABSTRACT
This work is composed by a translation of two excerpts of two essays on Rhetorics
that focus the laughter in oratory: one of them is located from the paragraph 216 to the
paragraph 291 of De oratores book II by Marcus Tullius Cicero, untitled De ridiculis;
and the other one, a whole chapter, the third of the book VI of Institutio oratoria by
Marcus Fabius Quintilianus, untitled De risu, with comments on the aspects of the
laughter use in oratorical discourse, the relations between the two texts, and the items
from Cicero's De ridiculis utilized by Quintilian in De risu.
Keywords: Rhetorics, oratory, laughter, Cicero, Quintilian, urbanitas, facetiae.
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NDICE
Apresentao 1
Esclarecimentos 4
Abreviaturas e Smbolos 5
Introduo 6
De oratore, livro II, 216-219 (De ridiculis) 29
Institutio Oratoria, livro VI, 3 (De risu) 90
Concluso 147
Bibliografia 153
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AGRADECIMENTOS QUELE que me criou, me atendeu, me ama e TUDO para mim. minha amada esposa, Ana Paula, pelo amor, pelo incentivo, apoio, pacincia, ajuda, carinho e compreenso. A Lia de Abreu Sacchetta, minha outra me, pelo apoio, compreenso e carinho. minha me, Eunice, pela abdicao, oraes, doao, amor e compreenso. Ao meu pai, Ivan, pela origem do que sou e pela presena, mesmo distncia. minha av Regina, pela vida. A Marlia, minha irm, pelo amor, carinho e ateno. A Snia, pelo carinho e amizade. A Adriano de Paula Rabelo, meu chapa, pela companhia, pacincia e apoio. A Ana Paula Mussel, pela ajuda, carinho e grande amizade. A Liliana Lagan, pelo apoio, ajuda, incentivo e instruo. saudosa professora Dra. Ingeborg Braren, que me acolheu, instruiu e confiou a mim esta tarefa. Ao Prof. Dr. Jos Rodrigues Seabra Filho, pela acolhida, orientao, instruo. Ao Prof. Dr. Pablo Schwartz Frydman, pela acolhida, orientao, instruo e incentivo. Ao Prof. Ms. Hlio Requena da Conceio, meu primeiro mestre, pelo incentivo, apoio e instruo. Ao Prof. Dr. Marcos Martinho dos Santos, pela instruo. Ao Prof. Dr. Paulo Martins, pela confiana e incentivo. Ao Prof. Dr. Joo ngelo de Oliva Neto, pela instruo bibliogrfica. A Benta, minha sogra, pelo apoio, amizade, carinho e exemplo. Ao meu irmo Marcos, pela ajuda oportuna. Ao Bruno, meu sobrinho, pela alegria e o sorriso. Ao Ivan, pela amizade.
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A Noemi, pela amizade. Aos meus tios, Moiss, Zaqueu, Mrcia Regina, Evani, Ana, Mximo, pela companhia em famlia. A Henrique e Leon Lobl, meus patrcios, pela amizade, companhia religiosa e acolhida. Ao Flamarion, pela instruo e amizade. A Samara, amiga para todas as horas. Aos amigos Ricardo Conceio, Tereza, Ana Cristina, Eduardo, Renata e Lus. A Dulci, Camila, Melissa e Adilson, pela preciosa amizade. A Marilena, pela dedicao e alimento. A Mel, razo do meu sorriso. A Babi, que, mesmo longe, me faz sorrir. Ao Joe, que sempre est aqui. Ao Ito, a Luza e ao Z, pela alegria, companheirismo e amizade preciosa. Aos funcionrios da Biblioteca Florestan Fernandes, pela ajuda. Ao professor Carlos Zlio Dimant, pela companhia religiosa e carinho. Ao Srgio, companheiro de moradia que se tornou meu chapa, pela acolhida e amizade. Ao Paulinho, pela amizade e companhia esportiva. Ao Adalgiso, companheiro de moradia, pela amizade.
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Dedico este trabalho a minha amada esposa, Ana Paula, a mulher da minha juventude,
pelo amor que vive nos meus sonhos e faz um sonho minha vida.
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Em homenagem Prof Dra. Ingeborg Braren, in memoriam.
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Dus preparou-me riso, portanto todo aquele que ouvir rir
comigo (Bereshit 21:5-6).
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APRESENTAO
Este trabalho tem trs objetivos: 1 Traduzir dois excertos de dois tratados
retricos que tratam do uso do riso na oratria: um deles situado entre os pargrafos 216
e 291 do livro II de De oratore de Marco Tlio Ccero, pela crtica especializada
chamado de De ridiculis em referncia ao pargrafo 217, no qual o personagem do
dilogo oratrio1 Antnio diz ter lido alguns livros escritos pelo gregos sobre o riso sob
o ttulo De ridiculis; o outro, um captulo todo, o terceiro, do livro VI da Institutio
Oratoria de Marco Fbio Quintiliano, denominado De risu em referncia ao pargrafo
22 em que o retor refere aos textos gregos chamados (De risu). 2
Comentar os textos por meio de notas de rodap explicativas. 3 Colher, a partir de uma
aproximao comprovada entre os textos, o que Quintiliano acolhe do texto de Ccero
atravs do prisma de cinco perguntas feitas por Csar no pargrafo 235 de De ridiculis,
a saber: O que o riso? Onde se encontra? prprio ao orador utiliz-lo? At que ponto
o orador pode utiliz-lo? Quais so os gneros oratrios de ridculo?
Traduzi os textos diretamente do latim utilizando as edies da Belles Lettres
para ambos. Para De ridiculis utilizei aquela editada e traduzida por Edmond Courbaud
e para De risu aquela realizada por Jean Cousin. A fim de confrontar minha traduo,
solucionar trechos obscuros, verificar e conferir que arranjo fizeram outros tradutores
em seus idiomas (sobretudo ao traduzir as anedotas e os ditos ridculos ou picantes) fiz
uso de outras edies em ingls (Loeb Classical Library: da Institutio Oratoria a
traduo de H. E. Butler, e de De oratore a traduo de E. W. Sutton), em italiano
(Editora Bur: da Institutio Oratoria a traduo e notas conjuntas de Cesare Marco
Calcante e Stefano Corsi com introduo de Michael Winterbottom; de De oratore, a
traduo conjunta de Mario Martina, Maria Ogrin, Ilaria Torzi e Giovanna Cettuzzi
com introduo de Emanuele Narducci. Editora Mondadori: da Institutio Oratoria a
traduo de Simone Beta e Elena DIncerti Amadio com introduo de George
Kennedy) e em espanhol (Editora Gredos: de De oratore, a traduo, introduo e notas
de Jos Javier Iso).
Antes da traduo estabeleci uma introduo que cumpre objetivo duplo e
simultneo: primeiro, situar o leitor no ambiente dos textos traduzidos; segundo,
1 Gnero ao qual pertence a chamada obra da maturidade de Ccero.
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mostrar os pontos em comum entre esses textos, e conseqentemente indicar o dilogo
entre ambos e observar em Quintiliano itens acolhidos a partir de Ccero.
Para construir as notas de rodap explicativas abordei os textos atravs de alguns
aspectos que os prprios textos revelaram pertinentes. Verifiquei em que pontos cada
uma das cinco perguntas feitas por Csar no pargrafo 235 de De Ridiculis foram
respondidas pelo prprio Ccero e, quando foi necessrio, inseri algum comentrio para
esclarecer ou elucidar. O mesmo fiz em De risu, que no estabelece diretamente as
mesmas perguntas, mas as responde, ainda que indiretamente. Anotei solues,
escolhas, ajustes impossibilidades de tradues de determinados trechos quando os
textos isso exigiram. Inseri comentrios sobre palavras tcnicas, referncias e citaes.
Procurei nas obras de Ccero e Quintiliano outras instrues e prescries sobre figuras,
tropos e outros elementos retricos (p.ex.: metfora, alegoria, ironia etc.) quando, nos
exemplos, alguns deles que se revelaram mais importantes ou abriam a possibilidade de
algum comentrio, tomando o cuidado, porm, de no estender muito esse
procedimento para no incorrer no desagrado de explicar anedotas, palavras ou assuntos
ridculos e tambm para que, agindo assim, minha interveno no ocupasse o espao
dinmico dos textos traduzidos. Apontei em que situaes o riso se mostra mais
utilizvel, a saber, nas altercaes e toda vez que o embate entre os oradores exija a
tentativa de deslocar beneuolentia de um para o outro (cf. Quintiliano, VI 4 e De
inuentio I, 2325). Fiz pequenos resumos biogrficos para que o leitor tivesse ao menos
uma parca idia de quem era a pessoa citada em um excerto ou exemplo, tarefa em que
evitei me estender tambm para que no fugisse do gnero do qual este trabalho faz
parte [auxiliaram-me nesta tarefa as obras Dictionary of classical antiquities de Oskar
Seyffert (Boston: Little, Brown, and Company,1894) e A dictionary of Greek and
Roman biography and mythology de William Smith (London: John Murray, 1867)].
Indiquei os pontos em que os textos estabelecem um dilogo ou em que h alguma
referncia externa a eles, como p. ex., a citao de algum verso ou pargrafo em outra
obra de Ccero ou outro autor. Lembrei ainda alguma curiosidade ou coincidncia entre
algum gnero ou exemplo e noes do quotidiano. Discorri (s vezes mais brevemente
outras vezes menos) sobre os conceitos de urbanitas, facetiae, rusticitas, ars etc.
baseados em literatura moderna existente ou mesmo na clssica; decerto, esta ltima
atende por si s em muito demanda por instrues a respeito desses termos.
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Introduzo o trabalho: 1 ambientando, em um primeiro momento, De ridiculis e
De risu no contexto de De oratore e da Institutio Oratoria; 2 traando sucintamente
evidncias que comprovam a influncia do texto de Ccero na obra de Quintiliano.
Mostro seis aspectos do texto de Ccero que se repetem em Quintiliano: a tpica em que
os dois textos esto inseridos (um brevssimo resumo da primeira parte desta introduo
ambientao); as inumerveis citaes que Quintiliano faz a respeito de Ccero
(algumas diretamente de De ridiculis, outras de obras diversas alm de De oratore); as
palavras tcnicas em suas acepes e usos; as imprecises na categorizao dos gneros
de faccia em Ccero e gneros de urbanidade em Quintiliano; os exemplos de ditos
ridculos repetidos por Quintiliano os gneros de ridculo de Ccero e Quintiliano; o uso
das cinco perguntas de Csar (De ridiculis, 235) na tentativa de estabelecer uma arte e
doutrina a respeito do riso, que embora no estejam explicitamente adotadas por
Quintiliano em De risu, se fazem presentes no decurso do texto.
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ESCLARECIMENTOS No decorrer da introduo, utilizei alguns termos tcnicos que so resultado de
todo processo tradutrio e analtico. Pretendendo atender uniformidade dos termos da
traduo, mas, necessitando introduzir o texto, precisei utilizar os termos dito picante,
dito ridculo, anedota, gracejo, urbanidade, faccias em acepes
aproximadas do que seria a piada ou a tirada humorstica ou ridcula, ou mesmo anedota
e riso e ridculo com a acepo genrica da matria, sem a necessidade de uma
preciso maior. O mesmo ocorreu com as palavras juzes e ouvintes, que no
trabalho so sinnimos. Nos dois casos, utilizei, por vezes, um ou outro termo para
evitar a redundncia. Noutras vezes tentei determinar com menor impreciso a palavra,
o gnero ou o exemplo do qual falava. Repeti esse procedimento nos comentrios nas
rodas de rodap e na concluso quando isso se mostrou necessrio.
Ao formatar a traduo optei por intercalar os respectivos pargrafos em latim e
em portugus (p. ex.: 1 em latim seguido do 1 em portugus; 2 em latim seguido
do 2 etc.), colocando o texto latino em itlico. Em decorrncia dessa opo, ocorreu
que em alguns pargrafos o perodo no terminava naquele em que ele iniciou,
terminando apenas no seguinte, se estendendo, em outros casos, por mais de dois
pargrafos. Por isso, preferi no assinalar as rupturas causadas nos perodos pela
mudana de pargrafo nem alterar a construo sinttica dos mesmos, a fim unicamente
de preservar a integridade dos textos tal qual foram escritos.
Quanto s notas de rodap, procurei inseri-las somente quando o texto abria
espao para tanto e reservei para mim a opo de no colocar alguma que resultasse
imprecisa ou desnecessria. Em alguns momentos, necessitei indicar uma verificao
em outro pargrafo e a nota correspondente quela referncia. Nesses casos, indiquei o
pargrafo em questo e acresci a abreviatura n. ou nn. (nota ou notas). Por fim,
pretendi que o trabalho todo fizesse prevalecer a beleza, a similaridade e a importncia
dos textos traduzidos. Espero t-lo conseguido.
J no texto conclusivo, resolvi, devido ao gnero dessa parte do trabalho,
introduzir os pargrafos de De ridiculis e De risu que fazem referncia um ao outro
dentro de parnteses e espaados por um barramento. Optei por esse procedimento
unicamente para evitar o cansao e cumprir a brevidade requisitada em um texto de
encerramento.
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ABREVIATURAS E SMBOLOS
: pargrafo : pargrafos a.e.c.: antes da era comum cf.: conforme ou conferir e.c.: da era comum i.e.: isto n.: nota; nn.: notas p.ex.: por exemplo p.:pgina pp.: pginas Quint.: Quintiliano Cic.: Ccero v.: vide ou veja-se vol.:volume
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INTRODUO
1 A insero de De ridiculis no livro II de De oratore e de De risu no livro VI da Institutio Oratoria
1.1 De ridiculis em De oratore
O pequeno tratado sobre o riso, tambm chamado De ridiculis, se insere no
Livro II de De oratore, especificamente onde Ccero comea a tratar da inuentio.2
O livro II3 inicia-se com Ccero dirigindo-se ao irmo Quinto falando sobre a
famlia, Crasso, Antnio, de fatos da vida e sobre a arte,4 de cuja digresso afirma que
todas as artes possuem sua autonomia, mas a eloqncia no possui um campo
definido.5
Comeava o segundo dia na casa de campo de Crasso em Tsculo, onde j
estavam o anfitro Licnio Craso6, Marco Antnio,7 Quinto Mcio Cvola Augur,8 Caio
2 Compem tambm o livro II a dispositio e a memoria. 3 Como se sabe, no livro I, aps o prembulo (onde Ccero dedica De oratore ao irmo Quinto e expressa seu desejo em dedicar-se, agora que est maduro, oratria, literatura e filosofia, no obstante novas preocupaes tenham de permitir-lhe um tempo em que possa dedicar-se escrita) h a introduo do dilogo fictcio entre Lcio Licnio Crasso, o anfitrio em Tsculo, Marco Antnio o av do trinviro , P. Sulpcio Rufo, Quinto Mcio Cvola Augur e Caio Aurlio Cota. Num primeiro momento Crasso, Cvola e Antnio discutem a respeito do objeto, da definio e dos limites da oratria (1107). Depois o mesmo Crasso, Cota e Cvola, tratam das qualidades exigidas do orador e dos conhecimentos que dele se exigem (10762). 4 V. nota 101. 5 Cf. De oratore II, 5. 6 Lcio Licnio Crasso nasceu em 140 a.e.c. (cf. Brutus 161) e tinha 49 anos na suposta poca do dilogo de De Oratore. Foi educado pelo pai com grande cuidado e recebeu instruo do celebre historiador e jurista Lucius Caelius Antipater (cf. Brutus 102). Crasso figurava uma liderana entre a douta aristocracia romana, da qual foi seu mais ilustre orador antes de Ccero, de quem foi tutor na infncia. De fato, Ccero tinha enorme admirao por Crasso, que para ele era o modelo de orador. De tal modo isso era evidente, que as falas de Crasso em De Oratore reproduzem as opinies de Ccero. 7 Marco Antnio nasceu em 143 a.e.c. (cf. Brutus 161) e foi av do trinviro. Quando foi pretor em 103 a.e.c. ps fim pirataria na Cilcia (provncia romana na sia Menor), sendo premiado pelo feito. Foi censor seis anos mais tarde. E quatro anos depois da suposta data do dilogo de De Oratore foi morto por Mrio quando jantava na casa de um amigo. Ccero costumava dizer que ele era um dos maiores oradores de Roma. Ao introduzir Antnio e Crasso em De Oratore, Ccero no s lhes presta homenagem, como tambm indica os oradores que o influenciaram. 8 Quinto Mcio Cvola Augur participa apenas do primeiro livro De oratore. Foi primo de Quinto Mcio, o jurisconsulto, que foi cnsul em 133 a.e.c., tio de Quinto Mcio Cvola Pontfice e tambm sogro de Crasso com quem aprendeu o Direito. Eminente jurisconsulto foi pretor em 121 e cnsul em 117 a.e.c. Possua uma firmeza e carter como a de poucos em Roma, chegando certa vez a enfrentar Sula em 88 a.e.c. quando este quis declarar Mrio como inimigo pblico. Na ocasio, Cvola respondeu a Mrio que mesmo que ele o matasse (com efeito, o ameaava), ainda assim no teria o seu voto para tornar inimigo algum que salvara Roma e a Itlia.
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Aurlio Cota9 e Pblio Sulpcio,10 quando ali chegaram Lutcio Ctulo11 e seu irmo,
Jlio Csar Estrabo.12 Assim, depois dos cumprimentos e de uma pequena conversa
entre aqueles que l estavam e os novos visitantes, a palavra13 foi dada a Antnio, que
ficou incumbido de falar sobre a inuentio. Ao comear sua interveno, ele primeiro diz
que ainda que no haja uma arte da eloqncia, nada h de mais esplndido do que um
orador completo, e depois faz um elogio ela na forma de belssimas perguntas sobre a
oratria: Que canto mais doce pode ser encontrado do que um discurso harmonioso?
Que poema mais apto h do que um perodo artificioso? Qual ator mais jucundo ao
imitar a verdade do que o orador a defender um caso real? Que mais refinado e sutil
do que uma seqncia de pensamentos agudos? Que mais admirvel do que iluminado
pelo esplendor de palavras? Que mais completo do que um discurso repleto de
contedos?. Ento, expe quais so os trs gneros de discurso: o gnero deliberativo
(que trata sobre uma ao do futuro), o demonstrativo ou epidtico (que trata sobre uma
ao do presente) e o judicirio (que trata de uma ao do passado).14 A seguir, faz
algumas consideraes sobre o gnero demonstrativo, um paralelo entre a historiografia
e a oratria, e outros comentrios e prescries. Trata ainda das competncias do orador
(ele deve estar preparado para falar sobre qualquer assunto e no pode recusar um que
seja, deve falar do mal e do bem, do honesto e do desonesto, do til e do intil, do
virtuoso e do vicioso etc.), sobre os elementos da arte e mais adiante, entre os
pargrafos 7884 dos tipos de causas e das cinco partes (membra) do discurso, que so:
1 a inuentio, onde se encontra aquilo que se vai dizer; 2 a dispositio, onde se organiza
aquilo que se encontrou; 3 a elocutio, que adorna com palavras as idias obtidas na
inuentio; 4 a memoria, que o prprio nome explica o que vem a ser; 5 a actio, que a
9 Caio Aurlio Cota era da mesma idade de Sulpcio Rufo. Pertencia ao partido de Rufo, mas no aderiu ao movimento por reformas radicais a que seguiu seu amigo. Foi cnsul em 75 a.e.c. E morreu no ano seguinte aps alguns pequenos sucessos militares como procnsul na Glia. 10 Pblio Sulpcio Rufo. Era discpulo de Crasso. Nasceu em 124 a.e.c. tinha 33 anos poca de De ridiculis era um dos jovens (o outro Cota) participantes que no dilogo possuem um papel menor e que esto ali menos para intervir do que para aprender. Rufo destacou-se em atuaes polticas. Sendo uma das maiores esperanas da aristocracia, acabou, depois do assassinato de seu grande amigo Druso, aproximando-se dos movimentos populares, que lutavam por reformas radicais em Roma. 11 Quinto Lutcio Ctulo, irmo do Csar, foi cnsul em 102 a.e.c. Era conhecido por sua cultura e helenismo. Em sua poca o poltico mais culto dentre todos. No se destacou pela oratria, embora fossem evidentes sua elegncia e pureza de estilo. Depois de 87 a.e.c. passou a pertencer lista de inimigos de Mrio, que depois de inmeras contendas, lhe permitiu o suicdio. 12 Jlio Csar Estrabo Vopisco. Irmo uterino de Quinto Lutcio Ctulo. Foi cnsul em 90 a.e.c. O riso era a principal caracterstica da oratria de Csar e nisso ele era superior aos seus contemporneos. Decerto, foi por isso que Antonio e os demais tanto pediram para que Csar tratasse sobre o riso em De ridiculis. 13 De oratore foi constitudo por seu autor no gnero dilogo oratrio. 14 Cf. 4173.
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execuo do discurso. Mais adiante, depois de tratar dos talentos e qualidades desejveis
num orador e da escolha de um modelo a imitar, alm de outras consideraes no
menos importantes, Antnio chega propriamente ao campo da inuentio, ao qual, como
dissemos, o discurso sobre o riso, De ridiculis, pertence.
Surgem ento os trs objetivos do orador: probare, conciliare e mouere. O
probare consiste em provar que o orador defende a verdade. Antnio explica que no
probare duas coisas importam ao orador: aquelas que no dependem dele, a saber, os
fatos, os documentos, as pessoas etc., e aquelas que dependem do seu engenho. O
orador deve descobrir o ponto fundamental da causa. Ademais, ele demonstra a
conformidade dos princpios ali expostos com os de Aristteles e, numa digresso,
discorre sobre a relao entre dialtica grega e a retrica, apresentando depois os loci
argumentorum.
Se no probare o foco do orador est em direo causa, daqui em diante,15 tanto
no conciliare quanto no mouere, o que importa so os seus interlocutores, seus ouvintes,
seu pblico.
Assim, Antnio passa a tratar da importncia do conciliare, que consiste em
captar a simpatia dos ouvintes para o xito na persuaso. Ora, isso se d na configurao
de dois aspectos essenciais na captatio beneuolentiae:16 o e . A configurao
do do orador e de seu cliente de extrema importncia para o sucesso da causa. Os
costumes, os princpios, as aes e a vida do orador e de seu cliente devem ser
apreciados pelos ouvintes e tambm importante que o oposto ocorra ao adversrio.
Vo a favor do orador o tom de voz suave, um rosto afvel, o comedimento das palavras
e o parecer contrariado ao ter de tratar de algo com maior dureza. De resto, a
tranqilidade, o recato e a discrio dispem o juiz favorvel causa, ao orador, ao
cliente. O efeito especial se o carter do orador se mostra verdadeiro, ntegro, sincero,
e o de seu cliente, de forma semelhante, parea ser honesto, justo, cumpridor dos
deveres religiosos17 e vtima de uma injustia.
Quanto ao , interessa ao orador que os sentimentos dos juzes estejam
voltados ao favor ao orador e de seu cliente. Seus afetos devem tornar-se predispostos a
salvar o cliente; importante que o medo, o dio, a alegria, a tristeza, a complacncia, a
15 Do pargrafo 178 ao 216. 16 Importa anotar que a captatio beneuolentiae no um recurso exclusivo do exrdio. Ela tem muita utilidade tambm na perorao. 17 Para com seus antepassados, como era costume na religio romana.
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compaixo etc. sejam excitados a favor da causa. Mas, para que esse efeito se assegure,
importante que o orador tambm esteja movido, de forma sincera e sem fingimento
algum, pelos mesmos sentimentos que deseja despertar. Trata-se de um processo em
que o se funde ao do orador de tal modo que o ouvinte termina percebendo
nele, orador, um homem sincero e bom tomado por algum sentimento que condiz com
seu carter.
Antnio apresenta ainda as regras que constituem os recursos do mouere, que
normalmente ocorre na peroratio, conforme instrui Ccero em De inuentione ( 98
109).18 Este recurso consiste em levar os ouvintes a um estado de nimo favorvel
causa atravs do despertar de sentimentos, a depender da causa, de complacncia ou
piedade, dio, ira, alegria, compaixo, afeto, simpatia, antipatia ou outro qualquer.
Antnio insiste naquele processo que se explicou como uma fuso do ao .
Os sentimentos que o orador quiser despertar no ouvinte devem ser nele tambm
despertados e este orador deve se apresentar como um homem honrado, contido e
tranqilo, disposto a mudar de comportamento somente quando uma injustia se
avizinha e ameaa seu cliente.
Tratando do mouere desde o pargrafo 178, quando ali passou a discorrer sobre
o do orador e de seu cliente e do desejvel de imprimir nos ouvintes, a
interveno de Antnio chega at o pequeno tratado do riso no pargrafo 216, onde
comea De ridiculis. onde a prescrio dos afetos culmina: num recurso que a arte
no pode contemplar por completo e que tanto se mostra mais interessante quanto
parece ser mais eficiente. Com efeito, Antnio preceitua, j no incio do pargrafo 216,
que se substituam os sentimentos impressos pelo adversrio por outro contrrio.
Desfazer aqueles sentimentos mais densos, aliviar o ouvinte e torn-lo simptico por
algo mais suave, leve, desimportante a funo do riso.
Ccero no trata o mouere dentro de seu campo mais comum, a peroratio, como
faz Quintiliano. Isso se explica porque o escopo dessa parte de De oratore a inuentio,
que no exige que o trato dessa doutrina da parte da retrica venha incluso naquele
outro de parte do discurso (a peroratio). Tambm h de se esperar que a presena do
mouere, nessa parte do livro II, traga memria no somente as doutrinas da narratio,
argumentatio e da refutatio, partes do discurso relacionadas ao probare, escopo oratrio
18 A teoria da peroratio est baseada em Aristteles, cf. Retrica 1419b, 101420a.
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tratado na inuentio, mas tambm as doutrinas do exrdio e da perorao, relacionadas
ao conciliare e mouere, respectivamente.
1.2 De risu na Institutio Oratoria: Da perorao
1.2.1 Promio
No promio Quintiliano faz uma longa queixa sobre a perda da mulher e dos
filhos.
1.2.2 Captulo I
A perorao composta por duas partes: recapitulao e afetos.
A recapitulao deve ser breve e permeada por figuras. Este era o nico tipo de
perorao adotado pelos atenienses e pelos filsofos. Da escolha dos primeiros,
Quintiliano diz acreditar que o motivo no pode ser outro seno a proibio de se
excitar os sentimentos em Atenas. Dos ltimos, Quintiliano diz no se espantar, afinal
os filsofos no tm em grande conta o homem passional. De resto, a recapitulao tem
espao em outras partes do discurso.
Os afetos podem ser movidos tanto pelo acusador quanto pelo defensor.
Quintiliano explica que no exrdio o orador deve procurar conquistar a simpatia dos
juzes de maneira moderada. Mas na peroratio importante despertar seus sentimentos
para que eles, ao julgar a causa, estejam inclinados ao cliente e causa pelo afeto.
O acusador pode suscitar a ira, o dio, o aborrecimento, mostrando que o crime
de que acusa o ru atroz e um fato infeliz, miservel. Cabe ao acusador distanciar o
juiz dos pedidos de misericrdia que sero feitos pelo acusado, dizendo entre outras
coisas que o crime por ele cometido no somente o mais atroz como o mais digno de
compaixo. Falando o acusador sobre a infelicidade do ru (mesmo sendo ele um
inimigo), de seu abandono e de sua famlia, e lamentando a situao em que o ru se
enredou, adiantar-se- e neutralizar os pedidos semelhantes que o ru vier a fazer. Por
outro lado, na peroratio o acusador deve, como em nenhuma outra parte do discurso,
excitar a animosidade, a ira, o rancor. Toda infmia deve recair sobre o ru. E mesmo ao
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dizer que o ru digno de compaixo, o acusador deve lembrar ao juiz da sua obrigao
de julgar a causa com justia.
O defensor, por sua vez, deve alegar a dignidade do acusado, suas boas
inclinaes e intenes. Isso pode ser feito mostrando feridas de guerra se ele as tiver,
suas boas aes e as de seus antepassados. Deve tambm despertar a compaixo dos
juzes dizendo dos males por que passou o ru no passado, das dificuldades por que
passa no presente e das por que ter de passar se for condenado. As prosopopias, bem
como o falar com coisas inanimadas, funcionam muito bem nessa parte do discurso. No
entanto, o orador deve evitar se estender nos pedidos de compaixo, afinal nada seca
mais facilmente do que as lgrimas. 19
Alm das palavras, o orador pode tambm despertar os sentimentos por meio das
coisas. O acusador pode mostrar um punhal manchado de sangue ou as vestes
ensangentadas do morto ou discorrer sobre a m vida pregressa do acusado, sua
indignidade. J o defensor pode mostrar em trajes miserveis a famlia do acusado.
Quintiliano chega a dizer que essa viva pintura da miserabilidade da famlia do ru e a
mostra de sua dignidade podem vir a salv-lo.
Na parte final do livro I, Quintiliano alerta sobre a necessidade de habilidade
para despertar os sentimentos, pois se orador no consegue despertar as lgrimas, o
afeto mais forte de todos, deve contentar-se com as inclinaes internas dos juzes.
Quintiliano prescreve que se no h como mover os sentimentos, h de se provocar o
riso, pois no h outro jeito. Na peroratio o orador no s deve mover os sentimentos
como deve tambm tentar esvazi-los. Por fim, o orador deve ser movido pelos mesmos
sentimentos que deseja despertar. O retor repete ainda que o mouere tem seu lugar no
exrdio e sobretudo na perorao. Mas em qualquer parte da orao ele pode ser muito
til, desde que seu processo se faa com moderao.
1.2.3 Captulo II: Afetos
A peroratio o lugar principal dos afetos. O mouere adfectus no somente o
recurso mais eficaz como tambm, entre todos anteriores, o mais difcil de ser posto
em prtica. Pois h oradores habilidosos em manipular os argumentos necessrios para
provar sua tese, mas nem todos esto aptos a mover os sentimentos dos juzes a ponto,
19 Ccero, De inuentione I, 109.
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s vezes, de quase transform-los. H, com efeito, um poder que domina os tribunais:
ali quem reina a eloqncia. Quanto aos argumentos, eles nascem das prprias causas
e so mais numerosos na parte que est em melhor situao, de modo que nesse caso o
advogado pode vencer a causa apenas pela fora dos argumentos, nesse caso ele apenas
faz aquilo que seu dever. Porm, quando a violncia dos sentimentos do juiz o afasta
da verdade, a entra o papel do orador. Por outro lado, no se aprende a mover os
sentimentos pelas informaes do cliente nem por meio dos livros. Demais, os
argumentos convencem os juzes de que a justia est do lado do orador, mas so os
afetos que os movem. Assim, quando eles comeam a sentir que vo favorecer,
aborrecer, compadecer-se etc., a eles j tm como deles a causa do orador.
Os sentimentos despertados nos juzes se dividem em dois tipos: o primeiro foi
chamado pelos gregos de (carter, moral) e em latim se traduz por mores; o
segundo foi denominado (paixo, sentimentos), em latim adfectus. Quintiliano
enumera vrias definies baseadas em comparao sobre essas duas categorias de
sentimentos: o revela um sentimento passional, o um sentimento calmo e
tranqilo; o comanda, o convence; o agita, o aplaca, amaina; o
age num tempo limitado, o um movimento contnuo. Toda discusso cujo
argumento se baseia no que honesto e til, no que se deve fazer e no fazer ou o que
se pode fazer ou no, pode ser chamado de . Para Quintiliano, ainda que alguns
afirmem que a comiserao e as desculpas sejam prprias da perorao (com o que ele
concorda em parte), esse no o recurso nico na perorao. Para ele o e o
possuem a mesma natureza. A diferena entre eles que o ltimo mais intenso que o
primeiro.
1.2.3.1 Descrio de
O est ligado, antes de tudo, bondade, quilo que no somente calmo,
tranqilo, mas tambm gentil, humano, favorvel e agradvel queles que ouvem. A
grande virtude do reside nisto: a expresso do orador se faz de tal modo, que tudo
o que ele disser revelar o seu bom, honesto e ntegro carter. Concluindo, o recurso do
requer um homem honesto e gentil, o que deve ocorrer tambm a seu cliente. H
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grande vantagem na procura pela persuaso se o orador emprestar causa a garantia de
sua honestidade.
1.2.3.2 Descrio de
Quintiliano equipara o comdia e o tragdia. O abarca
sentimentos como a ira, o medo, o dio, a compaixo. H, com efeito, dois tipos de
medo: aqueles que possumos e aqueles que infligimos aos outros. O mesmo vale para o
dio. Na perorao, h de se usar da amplificao, que ocorre, por exemplo, quando
dizemos que uma causa grave excede as outras em gravidade ou quando pintamos um
mal comum como insuportvel. A fora da eloqncia no consiste somente em causar
nos juzes os afetos que a prpria natureza poderia causar, mas sim em excitar aqueles
que eles no sentem e avivar aqueles que eles j possuem.
Finalizando o captulo II, Quintiliano prescreve ao orador provar dos mesmos
dos sentimentos que tentar excitar. Afinal, resultaria ridculo20 se o orador quisesse
provocar quaisquer sentimentos sem mostrar ter sido tambm tomado por eles. Se o
orador quiser falar com verossimilhana, deve parecer sentir os afetos que busca
imprimir nos juzes. H, segundo Quintiliano, uma tcnica para que o orador consiga
mover a si mesmo. o que Quintiliano chama de imaginao.21 E ela consiste numa
atitude simples: que o orador, ao representar os fatos como aconteceram, procure
colocar-se no lugar de algum que est em perigo.
20 Sem o trocadilho e sem a noo de ridculo presente neste trabalho. 21 No texto imagine, de imago,-onis.
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2 A influncia de Ccero no texto de Quintiliano
2.1 Tpica22
Ao conduzir a discusso do mouere, sobretudo a excitao dos sentimentos,23 o
contedo que antecede tanto De ridiculis quanto De risu conecta os dois pequenos
tratados e o faz numa progresso tal que ambos culminam a doutrina da manipulao
dos afetos dos juzes. Esto presentes nos pargrafos que antecedem De ridiculis e De
risu questes como a necessidade e eficincia do mouere na perorao,24 a constituio
do do orador e de seu cliente como fator de sucesso na persuaso, a definio e o
funcionamento do 25 e, enfim, a prescrio do mover os afetos dos ouvintes.
Quanto tpica, o lugar onde o riso se insere e se manifesta , primeiro, dentro da
inuentio e depois dentro da doutrina do mouere ou da perorao, que so prximas e
pertinentes mesma parte do discurso. Como se disse anteriormente, em De oratore
Ccero trata do riso dentro da inuentio no campo de um dos objetivos do orador, o
mouere. Quintiliano tambm insere a matria na elocutio, mas diferentemente de
Ccero, demarca a presena do riso dentro da peroratio.
2.2 Citaes
Outro fator que aproxima os dois textos so as recorrentes citaes de Ccero na
obra de Quintiliano.26 J no comeo de De risu o retor o coloca como o prncipe da
eloqncia latina que possua uma admirvel urbanidade.27 Na verdade, as citaes de
Ccero em De risu no se resumem ao incio do tratado: elas praticamente permeiam De
22 Cf. Curtius (1996: pp.121122). 23 Em geral, como o prprio Quintiliano diz (VI, 2, 20), a peroratio por excelncia o lugar das splicas, das desculpas e do mover dos sentimentos, mas isso no quer dizer que estes recursos estejam ss na perorao. 24 Lembro que Ccero no inclui a perorao no livro II, mas trata do probare, do conciliare e do mouere, os dois ltimos, sobretudo o ltimo, relacionados perorao. 25 Mais evidente em Quintiliano, mas indiretamente presente em Ccero. 26 Refiro-me ao De risu especificamente. 27 As observaes sobre a urbanidade de Ccero e sobre a acusao de seu suposto exagero no uso do riso se estendem at o pargrafo cinco.
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risu do comeo ao fim.28 Alm disso, verifica-se num segundo momento a coincidncia
de gneros, exemplos, equvocos e doutrina entre De ridiculis e De risu.
2.3 Palavras tcnicas
Em De ridiculis, o conjunto dos gneros de ridculo chama-se genera
facetiarum, que o prprio denomina diretamente nos pargrafos 218 e 239. O termo
facetia encontrado tambm em Brutus ( 177),29 onde Ccero faz um elogio a Jlio
Csar Estrabo,30 cujas virtudes incluam a urbanidade. Ora, como instrui Edwin
Ramage (1960 e 1963),31 isso faz entender a autoria de Ccero na ligao de faccia com
urbanidade ao mesmo tempo em que inclui a acepo humorstica de urbanitas na obra
de Quintiliano. Alm disso, Ccero alinha o dito picante urbanidade no pargrafo 231
de De ridiculis.
Em De risu, o gnero de riso a urbanitas, cuja acepo sabida pela crtica32
tomada tanto dos conjuntos quanto dos gneros de ditos ridculos. Quintiliano no
indica diretamente a existncia de gneros de urbanidade. Por isso, estabeleci a
nomenclatura genera urbanitatis, a fim de indicar um nome aos gneros de ridculo em
De risu maneira do que ocorre em De ridiculis. Para tanto, fiz apenas colher o termo
genus e adequ-lo acepo de humor de Quintiliano, que , a saber, a urbanitas.
Essa concepo de urbanitas em Quintiliano um atendimento ao conceito
humorstico em Roma que comeou a tomar corpo poca de Ccero33 e que no se
ausenta de sua obra34 e se prova quando Quintiliano iguala a fala picante urbanidade:
Por outro lado, assim como desejo que o orador fale com urbanidade,
tambm no quero que ele parea, em todas as ocasies, querer mostrar
isso explicitamente. Por isso que ele no deve falar picantemente todas
28 O nome de Ccero aparece nos seguintes pargrafos de De risu: 8, 18, 20, 23, 24, 39, 42, 43, 47, 48, 49, 51, 55, 56, 6769, 73, 7577, 84, 8688, 90, 96, 98, 108, 109, 11. 29 Alm de ocorrer em Brutus, o termo aparece tambm em Orator ( 90). 30 Um dos protagonistas de De oratore. 31 V. De ridiculis, 217, n. 106, 219, n. 117; De risu, 8, n. 355, 17, n. 362). 32 V. HANSEN, Joo Adolfo. Retrica da agudeza. In: Letras Clssicas, n 4. So Paulo: Humanitas FFLCH/USP, 2000: p.319. 33 Em De ridiculis ( 231), Ccero usa o termo urbanidade com a acepo de riso. 34 RAMAGE, E. S. Early roman urbanity. In: The American Journal of Philology, vol. 81, No. 1: 1960, pp. 65-72; Urbanitas: Cicero and Quintilian, a contrast in attitudes. In: The American Journal of Philology, 1963, vol. 84, No. 4, pp. 390-414.
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as vezes que puder e preferir por vezes perder algum dito picante a
diminuir sua autoridade.35
O que se prova tambm ao indicar o lugar do riso:
O riso possui seu lugar, como diz Ccero, em alguma torpeza ou
imperfeio, chamadas de urbanidade quando apontadas nos outros e
estultice quando recaem sobre os mesmos que esto falando.36
O termo ainda se repete em De risu quase sempre em contextos em que
Quintiliano discute sobre definies, gneros exemplos do riso oratrio. Quanto
faccia, gnero de ridculo em Ccero, Quintiliano alinha facetiae ao riso nos pargrafos
4, 20 e 42 de De risu.
Por outro lado, a citao da definio de urbanitas de Domcio Marso, nos
pargrafos finais de De risu, est ali apenas para espelhar a de Quintiliano. Com efeito,
o retor afirma que h algo de equivocado na definio do poeta, embora ela esteja
congruente com a sua em alguns poucos aspectos.
Nos textos, as palavras picante, ridculo, tempero, gracejo dito
picante, dito ridculo etc. so a expresso mais comum em toda esta matria. Por
isso, procurei, na traduo, obedecer a ocorrncia em latim do termo a partir das
escolhas iniciais, que anotei quando necessrias, traduzindo-as conforme o texto as
apresentava. Evitei a todo custo alterar a progresso dos textos. Deste modo, tanto nas
explicaes das notas de rodap, quanto nesta introduo, bem como na concluso,
alguns destes termos tm o sentido mais comum neste objeto de estudo, que o riso.
Mas em outras vezes eles possuem um sentido mais preciso. Neste caso, abri notas
quando o texto, por si s, no podia, pelo contexto, deixar evidente em qual acepo a
palavra ocorria.
2.4 Imprecises
Tanto Ccero quanto Quintiliano deslizam em algumas imprecises
terminolgicas ao tentar definir ou categorizar os genera ridiculorum dentro de 35 De risu, 30. 36 De risu, 8.
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categorias pr-determinadas. Ccero deixa imprecisa uma definio ao caracterizar o
ridculo estendido no discurso como faccia em Orator ( 87), e cham-lo em De
ridiculis ( 218) de cauillatio (cavilao).37 Quanto categorizao, Ccero se confunde
em dois momentos. O primeiro, ao utilizar o mesmo termo com duas acepes
diferentes, uma no pargrafo 218 onde distribui os genera facetiarum em cauillatio e
dicacitas (gneros de faccias cavilao e mordacidade) e outra no pargrafo 239,
quando os distribui ento em gneros de faccias de assunto e de ditos. E o segundo ao
distribuir outros trs gneros de faccias no pargrafo 248 (quando j os havia
distribudo com aquela nomenclatura idntica no pargrafo 218, redistribudo no
239, e descrito e exemplificado entre os 239247) com a mesma nomenclatura usada
nos dois primeiros casos ( 218, 239) adicionando um terceiro gnero (gnero de
faccias de assuntos e de ditos), misto desses dois primeiros gneros (de assuntos e de
ditos).38
Quintiliano por sua vez, tambm deixa escapar algumas imprecises quanto
organizao de seus genera urbanitatis ao no constituir claramente sua categorizao
de ditos ridculos. Ela um misto dos modelos encontrados nos 218 e 284 de De
ridiculis. No pargrafo 22, o retor faz uma bipartio que desenvolvida somente a
partir do pargrafo 39.39 No vigsimo terceiro e vigsimo quarto pargrafos h uma
tripartio, da qual desenvolve apenas o ltimo gnero.40 Alm disso, ele tambm no
explica qual o funcionamento desse sistema nem submete um ao outro, como faz Ccero
nos pargrafos 218 e 239.
Duas hipteses podem tentar explicar os motivos daquilo que em Ccero e
Quintiliano no podemos chamar de erros, mas sim de impreciso, ademais,
justificveis.
preciso explicar que o riso, segundo Ccero41 e Quintiliano42 no matria que
possua uma arte e, por conseguinte, uma doutrina. No obstante, ambos manifestem o
desejo da existncia de uma arte do riso.43 Ora, a prpria existncia de De ridiculis e De
risu no outra coisa seno a tentativa de tal empreendimento. Ccero e Quintiliano
definem, preceituam, classificam e exemplificam sobre a matria. No entanto, eles
37 V. De ridiculis, 218, n. 114. 38 V. 239, n. 177. 39 V. 39 e 45 e nn. 40 A partir do 84. 41 De ridiculis, 216220, 229, 231. 42 De risu, 11, 14. 43 De ridiculis, 232, 248; De risu, 16.
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mesmos parecem perceber (justamente nos pargrafos em que manifestam o desejo de
encontrar uma arte sobre o riso) a dificuldade da tarefa logo no incio44 de seus
pequenos tratados. Decerto, o riso, como diz Quintiliano, possui uma fora
poderosssima e irresistvel, mas se sua natureza sua mestra45 (ou seja, os tempos, as
circunstncias, o improviso, o engenho, agudeza) a arte passa a ter sobre um papel
quase nulo. Essa natureza do isso no permite, portanto, um conjunto de regras pr-
estabelecido, e por conseguinte, no h uma doutrina correspondente. Por outro lado, o
riso funciona muito bem nos embates, nas altercaes, nos momentos em que a agudeza
e o engenho do orador necessitam agir com agilidade, presteza, instantaneidade.46 No
toa Quintiliano afirma que tudo fica melhor na resposta do que na provocao.47
Sendo assim, que matria to flexvel, to natural e to poderosa caberia em um
conjunto de preceitos (arte) e poderia ser ensinada (doutrina) quando seu uso se d
quase em momentos de improviso?
Como disse, duas hipteses podem justificar as imprecises na categorizao do
riso em Ccero e Quintiliano. A primeira justamente essa caracterstica assaz flexvel e
natural da matria, que se, de um lado, permite aprender pelo estudo, pela prtica, pelos
exemplos, por outro dificulta uma categorizao cabal e definitiva. A segunda, difcil de
provar, a distrao e o excessivo gozo que proporcionam os ditos picantes que, de to
agradveis, afastam da seriedade e dos assuntos srios.
2.5 Exemplos
Coincidem tambm em De ridiculis e De risu alguns exemplos de anedotas e
ditos ridculos cujos motes e personagens so idnticos ou, em alguns casos, com a
mudana apenas de personagens. Disso aponto trs exemplos: o dito ridculo sobre
Mmio, que se considerava to alto que batia com a cabea no arco de Fbio em De
ridiculis, 267, que Quintiliano acolhe em De risu ( 67); a anedota de um siciliano
cujo amigo se queixava certa vez dizendo que a esposa se enforcara num p de figo, a
quem ele respondeu: Por favor, d-me uma muda dessa rvore para eu plantar!, que
Quintiliano reproduziu no pargrafo 88; a frase de Caio Claudio Nero, citada no
44 De ridiculis, 217; De risu, 1, 6. 45 De ridiculis, 247. 46 De ridiculis, 229; Quintiliano VI, 4 47 De risu, 13.
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pargrafo 248 de De ridiculis sobre um servo ladro: Ele o nico em casa a quem
nada fica escondido ou trancado, que Quintiliano acolhe em De risu ( 50).
2.6 Arte e doutrina
A respeito da doutrina, tanto observei que ambos os textos insistem
marcantemente sobre a ausncia de uma arte ou doutrina que tratasse o riso48 quanto
percebi que mesmo assim eles tentam traar algum mtodo que seja compatvel com a
matria. Em Ccero encontramos primeiro a indicao de que o uso do ridculo no est
ligado a algum mtodo (arte) e sim que a capacidade de fazer rir est ligada natureza,
i.e., provocar o riso algo nato49 e na medida de cada um.50 Quintiliano deixa isso
implcito quando diz que o dom de Demstenes no era exatamente usar o
riso,51deixando isso evidente quando diz:52
a natureza no apenas exerce influncia algum seja mais agudo e
habilidoso para a inveno humorstica (pois isso pode seguramente ser
ensinado por uma doutrina); no entanto algumas pessoas possuem um
decoro to especial do corpo e do rosto, que as mesmas coisas parecem
ser menos urbanas quando ditas por outras pessoas.53
Alm disso, eles concordam no somente a respeito da impossibilidade de
aprender a utilizar o riso por meio de alguma arte,54 exerccio ou professor,55 como
tambm sobre a necessidade da preceituao de algum mtodo para o seu uso.56 Em
resumo, Ccero e Quintiliano dizem que saber provocar o riso algo relacionado
natureza, um talento natural, portanto; que j se tentou empreender algum mtodo sobre
assunto sem sucesso; que nisso a arte no necessria; que no existe a possibilidade
em aprender a utiliz-lo por meio de uma arte. Ora, se assim, o que justifica dois
tratados sobre a matria com definies, gneros, recomendaes e exemplos os mais
48 Talvez em De oratore (Cf. 233) tenha sido a primeira vez que, em latim, se falou sobre o riso. 49 Cf. De risu, 12. 50 Ccero diz ainda que no uso do riso a arte no necessria. 51 Cf. De risu, 2. 52 Cf. De risu, 11. 53 De ridiculis, 232. 54 Cf. De ridiculis, 227. 55 Cf. De risu, 14. 56 Cf. De ridiculis, 232 e De risu, 1516.
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diversos e numerosos? Acredito que a resposta esteja no teor implcito de dois
pargrafos, um de Ccero, outro de Quintiliano. Quando Ccero diz:
Quem, com efeito, no poderia aprender estas coisas com facilidade ou
de algum modo? Mas eu creio que h nestes preceitos fora e utilidade.
No que pela arte sejamos conduzidos a encontrar o que dizer, mas que
sigamos aquelas que pela natureza, pelo estudo e pelos exerccios,
confiamos serem retas ou entendamos serem ruins, para que saibamos ao
que elas devam referir-se.
Entendo que todas aquelas negativas sobre a capacidade e o aprendizado do uso
do riso no desautorizam a formulao de uma arte ou doutrina que tente justamente ao
menos dirimir a suposta impossibilidade de organizar um conhecimento sobre a matria.
o que vejo subjacente em Quintiliano quando ele diz:
A urbanidade rara na oratria e no oriunda de uma arte prpria, mas
emprestada do uso.57 Por outro lado, nada impediu a composio de
matrias apropriadas ao assunto, de tal maneira que fossem compostas
controvrsias misturadas a jovialidades e que at temas especficos
fossem propostos aos jovens como exerccio.58Ademais, se fossem
compostas com um pouco mais de mtodo ou at se fosse misturado algo
srio nelas, essas mesmas /discusses/ (chamadas de ditos picantes), que
costumvamos dizer em certos dias de liberdade festiva, poderiam trazer
algo til do que agora s uma prtica dos jovens ou dos que se
divertem.59
Chamo a ateno para o ltimo perodo, pois ali o retor chancela, pelo
subjuntivo condicional, a elaborao desse mtodo que pretende saber o que , onde se
encontra, a quem prprio e em que medida, e quais so os gneros do riso na oratria.
57 De risu, 14. 58 Ibid., 15. 59 Ibid., 16.
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21
2.6.1 As cinco perguntas de Csar em De ridiculis, 235
Refiro-me s cinco perguntas elaboradas por Jlio Csar Estrabo no pargrafo
235 de De ridiculis, quando foi instado a discorrer sobre o riso, que foram, a meu ver, a
abordagem escolhida por Ccero para estabelecer uma arte e doutrina mnima que seja
sobre o ridculo na oratria.
As perguntas so colhidas deste trecho de De ridiculis:60
E para no vos demorar por muito tempo, exporei muito sucintamente
aquilo que penso a respeito deste assunto. A respeito do riso h cinco
coisas que devem ser perguntadas. Primeira: o que o riso; segunda: onde
encontrado; terceira: se prprio do orador querer provocar o riso;
quarta: at que ponto o orador pode utiliz-lo; quinta: quais so os
gneros do riso?
2.6.1.1 O que o riso?
O que o riso o ponto mais intrigante de todo o corpus constitudo por De
ridiculis e De risu simplesmente porque tanto o orador quanto o retor no respondem
pergunta. Por isso, mais demoradamente do que o recomendado, mas com a inteno de
no deixar nada s escuras, expus na nota 165 as observaes das repetidas buscas que
efetuei nos dois textos procura de um ponto que pudesse determinar com clareza que
ali o retor ou o orador respondiam efetivamente pergunta. As afirmaes de Ccero
Quanto ao primeiro, o que o prprio riso, por que ajuste causado,
onde se encontra, por que modo aparece e de repente irrompe, por que,
desejando cont-lo, no podemos segur-lo e por qual modo ocupa ao
mesmo tempo os pulmes, a boca, as veias, os olhos e o rosto, que o
explique Demcrito, porque isso no pertinente a este discurso e, se o
60 De ridiculis, 235.
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22
fosse, no me envergonharia todavia no saber o que tambm no sabem
aqueles que isso prometem.61
e de Quintiliano,
o fato de haver vrios juzos dos homens a seu respeito, porquanto ele
no entendido por meio de algum princpio racional, mas por um certo
movimento do nimo que no sei se pode ser explicado.62
indicam que a aparncia do ato de rir no lhes passou desapercebida. No entanto, alm
de no se mostrarem como uma definio, elas apresentam apenas parte do resultado
final ou inicial de um processo que em linhas gerais consiste em um ponto de partida,
que o ato provocador do riso (um dito ridculo, anedota etc.), um processo cognitivo
(comparao com algum conhecimento ou informao precedente) uma motivao (uma
surpresa, admirao, encanto etc.) e reaes qumico-fsicas no corpo humano.
2.6.1.2 Onde se encontra o riso?
A segunda pergunta Onde o riso encontrado? poderia, talvez, ser reescrita algo
como Do que se ri? ou Que coisas e situaes so dignas de riso?. A noo de que o
riso se encontra no que torpe, disforme ou vicioso vem de Aristteles63 e est presente
tanto em Ccero quanto em Quintiliano em adjetivos do tipo feio, deformado,
torpe, que se ligam a termos como escrnio, derriso, caoada. Para alm dessa
acepo do lugar onde se encontra ridculo, encontradas nos pargrafo 239, 242, 243,
248, Ccero aponta a inexorabilidade de se expor ao ridculo:
Quem, com efeito, pode mover-se sem que se vejam os vcios64
enquanto Quintiliano adiciona o substantivo imperfeio afirmao de Ccero no
pargrafo 236 de De ridiculis:
61 De ridiculis, 236. 62 De risu, 6. 63Potica, 1449 a 34 sg. 64 De ridiculis, 233.
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23
O riso possui seu lugar, como diz Ccero, em alguma torpeza ou
imperfeio, chamadas de urbanidade quando apontadas nos outros e
estultice quando recaem sobre os mesmos que esto falando,65
o que mostra a influncia de Ccero tambm nesse aspecto.
A noo de que o riso est ligado ao que censurvel pela total falta de beleza
ou pela imperfeio ou pelo desajuste, foi ampliada em Bergson (1983), que acrescenta
essa a idia de que tudo que se coloca fora de moda ou com rigidez quebra da
normalidade. O riso para Bergson o castigo do automatismo ou do desajuste em
relao ao que tido como padro ou rotineiro.66 Ora, ainda que ampliado, o conceito
de ridculo de Brgson e de outros autores, como Thomas Hobbes,67 Baldassare
Castiglione,68 Laurent Joubert,69 deve totalmente ao conceito de Aristteles, Ccero e
Quintiliano. Afinal tudo aquilo que rgido ou sai da rotina ou est fora de moda passa
a estar, devido ao vcio perene ou momentneo, exposto ao riso.
Outro aspecto do lugar do riso est associado natureza e ocasio.70 Em outras
palavras, a natureza da situao ou das coisas e o momento propcio ao riso. Essa
relao entre o riso, a circunstncia e o momento se insere no quesito moderao, que
por sua vez se enquadra na resposta quarta pergunta: At que ponto o orador pode
utilizar o riso?
2.6.1.3 prprio do orador utilizar o riso?
Alm da resposta positiva, a questo da utilidade do riso nos leva a observar as
vantagens do seu uso no discurso. De fato, Ccero diz que muita vantagem se obtm nos
processos por meio da amenidade e das faccias,71 porque ela benvola quele que as
desperta, porque as pessoas apreciam as agudezas, a resposta a um ataque. Demais, o
riso serve para temperar o discurso semelhantemente ao sal que espalhado na comida, 65 De risu, 8. 66 BERGSON, H. O riso: ensaio sobre a significao do cmico / Henri Bergson; traduo Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1983 67 HOBBES, Th. Leviat ou matria, forma e poder de um estado eclesistico e civil (Traduo de Joo Paulo Monteiro). So Paulo: Abril Cultural, 1979. 68 CASTIGLIONE, Baldassare. O corteso (Traduo de Carlos Nilson Moulin Louzada e reviso de Eduardo Brando). So Paulo: Martins Fontes, 1997. 69 JOUBERT, L. Treatise on Laughter (Translated by Gregory David De Rocher). Alabama: University of Alabama, 1980. 70 De risu, 11. 71 De ridiculis, 219.
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24
sem exagero, d a ela o seu sabor.72
Alm disso, o riso se ajusta nos momentos do processo em que o antagonismo
entre o orador e seu adversrio se torna mais rpido e agudo, como p. ex.: a altercatio73
ou na sua obteno de vantagem atravs da fala ou do tipo de causa em processo.74
Nesses casos o riso serve para enfraquecer, constranger, diminuir, afugentar e refutar o
adversrio. O riso pode auxiliar tambm a constituir o do orador, ao mostr-lo
como um homem polido e urbano,75 e combater o administrado pelo adversrio,
ao abrandar a tristeza e a severidade das coisas.76
Em Quintiliano essa utilidade do riso coincide com a de Ccero e mostra toda a
utilidade do riso para conquistar o favor dos juzes ao alivi-los do cansao e saturao
da recapitulao e, sobretudo, dissolver os sentimentos tristes,77 de dio e de ira78
ocasionado pelo mouere adfectus.
Ora, toda a vantagem do riso reside justamente naqueles aspectos que se resumiu
nos captulos que antecedem De ridiculis em De oratore e De risu na Institutio
Oratoria. L esto presentes tanto o mover dos sentimentos tristes, como comiserao,
piedade, clemncia; quanto o dio, a ira e outros afins, que so justamente os
sentimentos que o riso pode neutralizar. Assim, De oratore e Institutio Oratoria
antecedem de forma semelhante seus pequenos tratados sobre o riso, e o riso para
ambos possui a utilidade de dissolver qualquer tipo de sentimento mais grave e mais
srio, angariando, por conseguinte, a simpatia dos juzes, o que estabelece entre os
textos mais um dilogo.
2.6.1.4 At que ponto o orador pode utilizar o riso?
A moderao no uso do riso insistentemente preceituada por Ccero e
Quintiliano. Ambos censuram com convico o uso de um humor aproximado da
rusticidade e dos bufes, mimos e pantomimos.
Se num momento a configurao do exigiu um homem honrado pela
72 Cf. De ridiculis, 274, 275, 279; De risu, 19. 73 V. Institutio Oratoria VI, 4. 74 V. Ccero, De inuentione I, 23-25 75 Importante lembrar como se ver na questo da moderao que o orador deve evitar no somente o riso dos bufes como tambm qualquer um que parece bruto, deselegante, inadequado. 76 De ridiculis, 236. 77 De risu, 1. 78 Ibid., 9.
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bondade e pela honestidade, agora tambm faz parte de seu evitar terminantemente
a vulgaridade e tudo o que remeta rusticidade. Opem-se ento urbanidade79 e
rusticidade.80 A primeira se caracteriza, por um lado, segundo a definio de
Quintiliano, como uma virtude na qual nada de inconveniente, nada de rstico, nada de
grosseiro, nada de extico (nem quanto ao pensamento, s palavras, voz ou aos gestos)
pode ser encontrado,81 e por outro como a expresso do humor em Ccero e
Quintiliano, conforme instrui Edwin Ramage a respeito da urbanidade82 no mundo
romano antigo,83 e em Ccero e Quintiliano mais especificamente.84
Ccero defende primeiramente que a perversidade exacerbada e a misria
extrema no devem ser motivos de riso e que o orador deve respeitar o mximo possvel
as pessoas a fim de no ofend-las, sobretudo aquelas que lhe so mais queridas.85 E
depois, no pargrafo 238, preceitua a moderao ao gracejar. Mais adiante, ele passa a
apontar quais os tipos de humor devem permanecer distncia do orador: a imitao
dos mimos e pantomimos, a mordacidade tpica do bufo,86 os maneirismos do farsista87
e, por fim, as caretas e as obscenidades.88
J Quintiliano, como em todo De risu, encontra apoio em Ccero em mais esse
aspecto do riso oratrio. Seus preceitos a respeito comeam no pargrafo 28 e
completam o preceito de Ccero a respeito das pessoas: importante que o orador leve
em conta o lugar onde usa as palavras, pois a linguagem chula convm aos rudes, e as
alegres e moderadas convm a todos. Depois, j no pargrafo 29, imita Ccero ao
preceituar que o orador permanea longe da mordacidade do bufo e da imitao dos
mimos, alm de toda obscenidade. De resto, Quintiliano instrui tambm que o orador
no fale picantemente em todas as ocasies (apenas quando necessrio),89 no seja
escarnecedor numa causa atroz nem zombeteiro numa que inspira comoo,90 no se
79 Cf. De ridiculis, 236. 80 De risu, 17. 81 V. De risu, 107. 82 V. De ridiculis, 231, 236; De risu, 4, 8, 30. 83 RAMAGE, E. S.. Early roman urbanity. In: The American Journal of Philology, vol. 81, No. 1: 1960, pp. 65-72. 84 RAMAGE, E. S.. Urbanitas: Cicero and Quintilian, a contrast in attitudes. In: The American Journal of Philology, 1963, vol. 84, No. 4, pp. 390-414. 85 De ridiculis, 237. 86 Ibid., 244-247. 87 Ibid., 251-252. 88 Ibid., 253. 89 De risu, 30. 90 Ibid., 31.
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mostre petulante91 e, enfim, que utilize do riso com dignidade, pois isso custa caro se
seu preo a honra.92
Como apontei mais acima, a tipologia do riso do orador pe em oposio a
rusticidade e a urbanidade. Sobre isso, importante anotar que, alm da definio de
urbanitas de Quintiliano (De risu, 107), da qual se define tambm a rusticitas,93 pois
ela o seu contrrio, h tambm um tipo de humor caracterstico do vulgo e do
campons. Nesse ambiente, o riso tinha espao nas mais diversas festas que ocorriam
anualmente entre as pessoas dessa classe social, entre elas estavam as Saturnalia, que
comeavam em 17 de dezembro e homenageavam Saturno; as Lupercalia (em
homenagem a Luperco ou Pan), iniciadas em 15 de fevereiro; as Liberalia, em 17 de
maro (que eram festas em honra de Baco); e as Floralia, que eram jogos florais em
honra a Flora, a meretriz, e ocorriam em abril. Nelas, o riso estava marcado atravs das
grosserias, obscenidades, inverses, licenciosidades, bebedeiras etc., que caracterizam
esses doze dias de festa. Tambm faziam parte desse riso rstico os mimos que tiveram
sua origem no helenismo e consistiam originalmente em representaes extemporneas
ou imitaes ridculas de aspectos da vida comum em algumas festas e se
transformaram mais tarde em farsas dramaticamente construdas, e as pantomimas, que
eram danas mmicas com acompanhamento musical, geralmente sem palavras, e que j
era popular entre os gregos nos tempos clssicos. justamente dessa categoria de
humor e situaes que tanto Ccero quanto Quintiliano instruem ao orador para que se
mantenha afastado ao gracejar.
2.6.1.5 Quais so os gneros do ridculo?
Como vimos, os gneros de riso so introduzidos por Ccero e Quintiliano em
vrios pontos dos tratados e das mais diversas formas. Quanto aos supostos equvocos
na categorizao dos modelos de ditos ridculos, tanto de um quanto de outro j discorri
mais acima, ao separar uma parte exclusiva para o assunto com fim de mostrar que
tambm nisso Quintiliano se assemelha a Ccero no trato da matria.
91 Ibid., 33 92 Ibid., 35. 93 Ramage (1961: p. 484) afirma ser difcil isolar as peculiaridades do discurso rstico porque, em primeiro lugar, isso depende na maior parte das vezes por uma observao randmica espalhada pelas obras de Ccero e depois porque se tratam de definies e descries intangveis.
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Quintiliano reutiliza alguns exemplos de anedotas, respostas ridculas ou ditos
ridculos, para com eles ilustrar sua categorizaes que, como se viu, condizem apenas
em parte com aquelas determinadas por Ccero. Entre esses exemplos lembramos a
resposta de Ctulo a Filipe, que lhe indagava: Por que ladras?, ao que ele respondeu:
Porque vejo um ladro!94; a anedota do siciliano que, ouvindo um amigo queixar-se
de que a esposa se enforcara num p de figo lhe disse: Por favor, d-me uma muda
dessa rvore para eu plantar!95; e aquilo que Nero disse a respeito de um pssimo
escravo: Ningum pode ser considerado mais fiel que ele. Para ele nada est escondido
ou trancado.96
Por outro lado, relativizadas aquelas imperfeies de categorizao, podemos
ver que uma boa quantidade de ditos ridculos (alguns baseados em figuras, outros em
tropos, outros em tpicos oratrios etc.) tambm coincide entre Ccero e Quintiliano. A
meu ver, os exemplos mais marcantes so o uso da metfora, da ironia e da alegoria
para a criao de ditos ridculos.97 No entanto todos revelam, alm de criatividade, a
obedincia aos critrios de moderao preceituados. Na medida do possvel, e tendo em
mente no me estender mais que os textos traduzidos, analisando indefinidamente
gneros e exemplos, procurei no corpo da traduo mostrar como esses recursos
funcionam em alguns exemplos de gneros de faccia ou urbanidade. Quando foi
tambm possvel, apontei se Quintiliano acolhia diretamente algum gnero, se o inseria
em outra categoria ou se dele fazia outro uso.
De fato, os exemplos de ditos ridculos apresentados por Ccero e Quintiliano
so inmeros e fazem parte de uma grande lista: constam entre ambos exemplos de ditos
ridculos advindos de hiprboles, uso de versos e provrbios, paronomsia,
ambigidade, interpretao de nomes, fatos da histria etc.
Juntamente com os outros aspectos vistos at aqui, sobretudo as cinco perguntas,
tentarei expor, ao concluir este trabalho, quais desses gneros e exemplos so acolhidos
por Quintiliano.
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94 Cf. De ridiculis, 220; De risu, 81. 95 Cf. De ridiculis, 278; De risu, 88. 96 Cf. De ridiculis, 248; De risu, 50. 97 V. De ridiculis, 261-262 e De risu, 61, 68, 69.
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Documentada a relao entre os dois textos nos mais variados aspectos, resta
colher do texto de Quintiliano aquilo que ele acolhe de Ccero. Abordei De risu por
meio das cinco perguntas feitas por Csar no pargrafo 235 de De ridiculis. Atravs da
busca da definio, do motivo, do seu importante auxlio ao orador no exerccio da
persuaso, dos aspectos da moderao no seu uso e do elenco dos gneros e suas
categorizaes, pude abordar o texto de Quintiliano com o mesmo mtodo que Ccero
utilizou para tratar da matria. Utilizar ento as perguntas para colher de Quintiliano o
que ele colhe de Ccero se revelou adequado, correto, necessrio e oportuno, muito
longe de uma escolha. Com efeito, no haveria opo melhor do que aquela
determinada por Ccero, que, sendo anterior, influenciou Quintiliano. Este escreveu De
risu permeado no somente pelo teor dessas perguntas, como tambm por outros
aspectos que acredito j ter demonstrado aqui e que espero deixar visveis ao concluir o
trabalho.
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MARCVS TVLLIVS CICERO De oratore II, 216291
(De ridiculis) Traduo e Notas
216 (LIV) [...]Suauis autem est et uehementer saepe utilis iocus et facetiae; quae,
etiam si alia omnia tradi arte possunt, naturae sunt propria certe neque ullam artem
desiderant. In quibus tu longe aliis mea sententia, Caesar, excellis; quo magis mihi
etiam aut testis esse potes nullam esse artem salis aut, si qua est, eam tu potissimum nos
docere."
216 [...] Por outro lado,98 o gracejo suave e muitas vezes extremamente til,99
como tambm o so as faccias,100 que de fato esto relacionadas natureza e no
98 O pequeno tratado sobre o riso, tambm chamado De ridiculis, se insere no Livro II de De oratore, especificamente onde Ccero comea a tratar da inuentio.O livro II inicia-se com Ccero dirigindo-se ao irmo Quinto falando sobre a famlia, Crasso, Antnio, de fatos da vida e sobre a arte, de cuja digresso afirma que todas as artes possuem sua autonomia, mas a eloqncia no possui um campo definido. Comeava o segundo dia na casa de campo de Crasso em Tsculo, onde j estavam o anfitro Licnio Craso, Marco Antnio, Quinto Mcio Cvola Augur, Caio Aurlio Cota e Pblio Sulpcio, quando ali chegaram Lutcio Ctulo e seu irmo, Jlio Csar Estrabo. Assim, depois dos cumprimentos e de uma pequena conversa entre aqueles que l estavam e os novos visitantes, a palavra foi dada a Antnio, que ficou incumbido de falar sobre a inuentio. Ao comear sua interveno, ele primeiro diz que ainda que no haja uma arte da eloqncia, nada h de mais esplndido do que um orador completo, e depois faz um elogio ela na forma de belssimas perguntas sobre a oratria: Que canto mais doce pode ser encontrado do que um discurso harmonioso? Que poema mais apto h do que um perodo artificioso? Qual ator mais jucundo ao imitar a verdade do que o orador a defender um caso real? Que mais refinado e sutil do que uma seqncia de pensamentos agudos? Que mais admirvel do que iluminado pelo esplendor de palavras? Que mais completo do que um discurso repleto de contedos?. Ento, expe quais so os trs gneros de discurso: o gnero deliberativo (que trata sobre uma ao do futuro), o demonstrativo ou epidtico (que trata sobre uma ao do presente) e o judicirio (que trata de uma ao do passado). A seguir, faz algumas consideraes sobre o gnero demonstrativo, um paralelo entre a historiografia e a oratria, entre outros comentrios e prescries. Trata ainda das competncias do orador (ele deve estar preparado para falar sobre qualquer assunto e no pode recusar um que seja, deve falar do mal e do bem, do honesto e do desonesto, do til e do intil, do virtuoso e do vicioso etc.), sobre os elementos da arte e mais adiante, entre os pargrafos 7884 dos tipos de causas e das cinco partes (membra) do discurso, que so: 1 a inuentio, onde se encontra aquilo que se vai dizer; 2 a dispositio, onde se organiza aquilo que se encontrou; 3 a elocutio, que adorna com palavras as idias obtidas na inuentio; 4 a memoria, que o prprio nome explica o que vem a ser; 5 a actio, que a execuo do discurso. Mais adiante, depois de tratar dos talentos e qualidades desejveis num orador e da escolha de um modelo a imitar, alm de outras consideraes no menos importantes, Antnio chega propriamente ao campo da inuentio, ao qual, como dissemos, o discurso sobre o riso, De ridiculis, pertence. Surgem ento os trs objetivos do orador: probare (que consiste em provar que o orador defende a verdade), conciliare (que consiste em captar a simpatia dos ouvintes) e mouere (que consiste na capacidade do orador em levar os ouvintes a um estado de nimo exigido pela causa que ele defende). Na seqncia, Antnio discorre sobre a importncia do conciliare para o xito na persuaso e desenvolve as regras que constituem os recursos do mouere, que so, a princpio, despertar nos ouvintes, a depender da causa, sentimentos de complacncia, ira, piedade, indignao etc. Da a possibilidade de provocar o riso uma alternativa qual pode recorrer o orador para desfazer os efeitos pelo primeiro recurso mouere (piedade, compaixo etc.). Dessa parte do livro II (e, por conseguinte, da inuentio) se inicia De ridiculis, que se estende do 216 at o 291.
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requerem arte101 alguma, ainda que todas as outras coisas possam ser transmitidas por
uma arte102. Nos quais, a meu ver, tu, Csar, excedes de longe aos outros;103 pelo que,
99 Cf. Quint. (VI, 3,1 e nn.): Huic diuersa uirtus quae risum iudicis mouendo et illos tristes soluit adfectus et animum ab intentione rerum frequenter auertit et aliquando etiam reficit et a satietate uel a fatigatione renouat (Diversa a essa, /h/ uma virtude que provocando o riso do juiz no somente dissolve os sentimentos tristes, como tambm afasta com freqncia o nimo da ateno aos fatos, bem como algumas vezes o reanima e renova da saturao e da fadiga). Semelhante a Quintiliano, a introduo do tratado do ridculo em Ccero se refere ao outro recurso que tem por objetivo ganhar a simpatia do juiz ou dos ouvintes, a saber: a excitao dos sentimentos de comoo ou piedade para com a causa do cliente conforme a prpria causa requeira e dependendo do que o orador queira desenhar para si e para seu cliente perante aqueles que o ouvem ou aquele que julgar a causa. Parece tambm semelhante a Quintiliano, o efeito que o riso pode causar nesses sentimentos, se quem os excita o adversrio. Assim, se o advogado da causa contrria quis despertar sentimentos de afeto, piedade, comoo, emoes diversas a respeito de seu cliente e de sua causa, o riso pode funcionar na anulao desses efeitos, tornando a ateno e simpatia do juiz ou dos ouvintes favorveis sua causa, e ao mesmo tempo desfazendo aquela impresso positiva provocada e conquistada pelo adversrio. dessa situao que resulta a utilidade dos gracejos e das faccias. 100Iocus e facetiae so elementos opostos queles sentimentos de dio, ira, indignao, comiserao, complacncia, piedade etc. No entanto, facetiae o termo escolhido por Ccero para definir o instrumento do ridculo oratrio. Isso se evidencia, de um lado, pela maior quantidade de ocorrncias da palavra em De ridiculis (nas mais diversas formas morfolgicas) e, por outro, pelo fato de que essas ocorrncias se fazem quase que totalmente com o objetivo de caracterizar, preceituar e categorizar o termo. Quanto ao termo iocus, observamos que sua presena no texto se equivale ao termo facetiae (cf. 216, 229, 238, 239, 248, 285 etc.), mas em uso comum durante o discurso, diferentemente de facetiae que se configura em gneros nos pargrafos 218 e 239 (v. 251, 252). 101 No somente neste pargrafo, mas tambm nos demais, a palavra arte refere-se ao conceito de Ars (): um conjunto de regras extradas da experincia, que preceituam determinado fazer criativo de modo que este se torne perfeito e adequado vontade de seu realizador e no se permita a ao do acaso em sua execuo; cf. Quintiliano II, 17, 41: Confirmatur autem esse artem eam breuiter. Nam siue, ut Cleanthes uoluit, ars est potestas uia, id est ordine, efficiens, esse certe uiam atque ordinem in bene dicendo nemo dubitauerit, siue ille ab omnibus fere probatus finis obseruatur, artem constare ex perceptionibus consentientibus et coexercitatis ad finem utilem uitae, iam ostendimus nihil non horum in rhetorice inesse (v. tambm Ccero, Brutus 29, 111, Cleantes, Frag. 790). No trecho anotado, primeira apario do termo em De ridiculis, a traduo literal poderia ser transmitidas pela arte ou transmitidas por um mtodo ou conjunto de regras ou ainda ensinadas por um mtodo ou arte ou conjunto de regras. No entanto, por um lado, essa preposio determinante que rege o agente da passiva, poderia proporcionar palavra arte o sentido hodierno de arte como obra artstica em contraposio s obras no artsticas como, p.ex., uma pintura cubista em oposio a uma planta de engenharia destinada construo de um edifcio, o que me obrigou a retirar o artigo definido na preposio na forma sinttica e colocar um indefinido na forma analtica para que aquela acepo hodierna enfraquecesse, fortalecendo assim a acepo tcnica do termo. Por outro lado, preferi manter a palavra tcnica no corpo da traduo, para que ela mostre, como acontece no texto latino, que o termo arte engloba no somente este aparato tcnico obtido pela experincia e transformado em teoria, como tambm a constituio de uma doutrina, que tem a finalidade de instruir e a prerrogativa de ser transmitida (cf. Quintiliano I, 14, 5; Ccero, De inuentione I, 5, 7; De oratore I, 4, 15). 102 Cf. 218. Em De inuentione ( 98106), Ccero prescreve uma partio (precisamente uma tripartio) e os lugares-comuns que devem ou podem constar na perorao no fazendo constar ali o riso como recurso ou lugar-comum. Por outro lado, o prprio Ccero diz em De oratore ( 184) que o recurso do mouere (incluindo a por lgica o riso) pode ser usado, alm de na perorao, tambm no exrdio e na narrao, e isso faz saber que embora De oratore no trate da perorao especificamente onde De ridiculis se situa, o recurso do riso dali pertencente lembrado. Conclui-se ento, a partir dessas observaes e do trecho anotado (lembro: que de fato esto relacionadas natureza e no requerem arte alguma, ainda que todas as outras coisas possam ser transmitidas por uma arte), que provavelmente o uso do riso no se encaixa numa doutrina semelhante ao que ocorre em De inuentione, uma vez que ele tem seu habitat na altercao, no jogo existente entre o discurso e a rplica, entre esta e a trplica, entre a fala ou pergunta e a devida resposta, como aponta Ccero aqui mesmo em De ridiculis ( 219, 220, 223-226, 229, 230) e Quintiliano em De risu ( 4, 7, 1114, 75, 81). Por outro lado, como o prprio Ccero
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de novo a meu ver, podes ser testemunha de que no existe arte alguma que trate das
palavras picantes104 ou se existir, s o mais apto a nos ensin-la.
217 Ego uero, inquit, omni de re facilius puto esse ab homine non inurbano quam de
ipsis facetiis disputari. Itaque cum quosdam Graecos inscriptos libros esse uidissem de
ridiculis, non nullam in spem ueneram posse me ex iis aliquid discere. Inueni autem
ridicula et salsa multa Graecorum nam et Siculi in eo genere et Rhodii et Byzantii et
praeter ceteros Attici excellunt ; sed qui eius rei rationem quandam conati sunt
artemque tradere, sic insulsi exstiterunt, ut nihil aliud eorum nisi ipsa insulsitas
rideatur.
217 Na verdade disse Csar ,105 julgo ser mais fcil para um homem no
inurbano106 discutir a respeito de qualquer outro assunto do que sobre as faccias.107 Eu,
diz ( 232), o relativo distanciamento desses matizes retricos no impede que preceitos sejam estabelecidos a respeito do riso. 103 Sobre a superioridade de Csar: v. 23, 98; III 8, 30; Brutus 48, 117 (festiuitate ... facetis); De officiis I, 37, 133. 104 Traduo literal: no existe arte alguma que trate sobre os sais. A palavra salis em latim tem o sentido de sal em portugus. No texto ela possui a acepo de algo que funciona como um tempero do discurso (cf. Quintiliano VI, 3, 19: Salsum igitur erit quod non erit insulsum, uelut quoddam simplex orationis condimentum, quod sentitur latente iudicio uelut palato, excitatque et a taedio defendit orationem. Sales enim, ut ille in cibis paulo liberalius adspersus, si tamen non sit inmodicus, adfert aliquid prpriae uoluptatis, ita hi quoque in dicendo habent quiddam quod nobis faciat audiendi sitim. (Portanto, a palavra picante ser semelhante quilo que no insosso, como que um simples tempero do discurso, que sentido por uma percepo latente, tal qual acontece com o paladar, e que estimula e afasta o discurso do tdio. De fato, so coisas picantes: assim como o sal espalhado na comida com um pouco de abundncia mas sem exagero d a ela algo do seu prprio gosto, tambm o dito picante possui no discurso algo que cria em ns a sede de ouvi-lo). Como em portugus raro, seno inexistente, o uso do termo sal com essa acepo e, alm disso, existe em nossa lngua o termo picante com sentido de algo que provoca gracejo e/ou humor e/ou riso misturando esse sentido ao contedo srio de um discurso, preferi substituir o termo sal pelo termo picante (acrescido de palavras), que preserva aquela noo de tempero ou de algo que provoca o apetite e ao mesmo tempo remete por si prpria idia de leve malcia ou de mordacidade. Demais, como expliquei no pargrafo 2 (n. 344) de De risu por que l e ocasionalmente aqui traduzi dictum por dito picante, tambm devo explicar que neste pargrafo no o fiz do mesmo modo para preservar a essncia da palavra conforme descrita acima. A ela somei o termo em plural palavras, para que textualmente houvesse mais clareza, embora preferisse evitar a perfrase palavras picantes. 105 O narrador que aparece entre as falas dos interlocutores Ccero, que se dirige ao irmo Quinto. 106 O trecho original traz uma dupla negao: homine non inurbano. Em portugus essa duplicidade traduzida em simples afirmao (non inurbanus/urbano). Ocorre que em latim h tambm o adjetivo urbanus, o que deixa em perspectiva a possibilidade de Ccero ter pretendido demarcar o grau de urbanidade que qualifica um homem a discorrer sobre as faccias. De acordo com Ramage (1963: p. 391) a ocorrncia de non inurbanus funciona em Rhetorica ad Herennium (IV, 51, 64) para caracterizar um escravo polido ou inteligente, alinhado, simptico. Assim, se levarmos em considerao outro artigo em que o prprio Ramage discorre sobre a urbanidade (Ramage, E. S. Early Roman Urbanity. In: The American Journal of Philology, vol. 81, n 1, 1960: pp. 6572.), no qual ele estabelece trs acepes para
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depois que li alguns livros escritos pelos gregos, denominados De Ridiculis,108 cultivei
alguma esperana de que poderia aprender algo deles. Encontrei muitas coisas ridculas
e picantes109 dos gregos. Afinal, neste gnero sobressaem no somente os Sicilianos,
como tambm os Rdios, os Bizantinos e, acima dos demais, os ticos.110 Mas aqueles
que tentaram empreender algum mtodo111 e arte a respeito do assunto, tiveram
resultado to insosso que nada neles seria risvel, no fosse a prpria insipidez.
218 Qua re mihi quidem nullo modo uidetur doctrina ista res posse tradi. Etenim
cum duo genera sint facetiarum, alterum aequabiliter in omni sermone fusum, alterum
peracutum et breue, illa a ueteribus superior cauillatio, haec altera dicacitas nominata
est. Leue nomen habet utraque res! quippe; leve enim est totum hoc risum mouere.
218 Motivo pelo qual, segundo minha opinio, parece que por nenhum modo
doutrinrio112 se possa tratar desse assunto. Com efeito, h dois gneros de faccias,113
o termo urbanitas, entre elas a de que o conceito envolve uma ida de refinamento desenvolvida pelo habitante da cidade e outra que ope o humor urbano ao rstico (cf. De officiis I, 29, 104), iremos perceber a marcante diferena entre os termos urbanitas, que se desenvolve naturalmente em urbanus, -a, - um, (cf. Quintiliano VI, 3, 21 e 94; Ccero, De officiis I, 29, 104), e o non inurbanus, que se desenvolve de forma semelhante, denotando polidez e ausncia de rusticidade; o que faz entender em certa medida que est qualificado a discutir sobre as faccias qualquer homem minimamente polido ou que no tenha mais no falar e nos modos (cf. Ramage, op. cit.: p. 66) os maneirismos do homem do campo. Da ter eu escolhido para a traduo a frase no inurbano no somente neste e nos demais pargrafos de De ridiculis, como tambm em todas as ocorrncias do termo em De risu. 107 Aqui o termo facetiae estabece uma relao com o termo non inurbanus. Isso no ocorre meramente da forma como se explicou na nota anterior, mas sim conceitualmente. Se na nota anterior o texto indica haver necessidade de aptido para que um homem discorra sobre as faccias, ser no inurbano, aqui a ateno recai sobre a relao existente entre o conceito de urbanitas e de facetiae. Conforme j se disse, facetiae parece estar em evidncia para o resto do texto quando Ccero as mostra relacionadas natureza e no a uma arte, e quando permeia o texto com a palavra facetiae (e todas suas derivaes morfolgicas). 108 Talvez Ccero esteja se referindo ao livro II da potica de Aristteles, ao de Teofrasto e a algum livro de Grgias sobre o riso. De qualquer maneira nenhum dos trs chegou at ns, e h tambm a possibilidade de Ccero ter lido outros textos que no estes (v. De risu, 11). 109 Na nota 104 explico por que traduzi salsum por picante. 110 Pela lgica da enumerao de povos, conclui-se que Ccero est se referindo unicamente ao povo tico, que se comportava da maneira como explica Quintiliano (XII, 10, 17): era um povo refinado e sensvel, mas que no suportava redundncias. Segundo o prprio Quintiliano, essa caracterstica foi assimilada na definio do estilo oratrio tico, que se opunha ao Asitico, que tambm tem no povo homnimo a origem da definio do seu estilo (O povo asitico sempre fora inclinado pompa e ostentao). Um pouco sobre o estilo asitico e seu rival, o tico, se encontra em De risu, 41. 111 Entende-se aqui rationem (ratio,-onis mtodo) como doutrina, e esta com a acepo apresentada na nota 101. 112 Cf. 216, n. 101; Quintiliano II, 14, 5; Ccero De inuentione I, 5, 7; De oratore I, 4, 15. 113 Explico na nota 177, que tanto l como aqui Ccero utiliza duas acepes para o mesmo termo, dvida agravada pelo fato de Ccero tambm incluir no 243 o gnero de faccia de assunto entre os gneros de faccia cavilao sem incluir os outros (de palavras e de palavras e assunto, cf. 239 e 248, respectivamente) em algum outro gnero.
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um dos quais distribudo igualmente pelo discurso, e o outro muito incisivo e breve;
aquele foi chamado pelos antigos de cavilao, e este de mordacidade.114 Tanto um
como outro recebem um nome desimportante, porquanto todo ato de provocar o riso
desimportante.115
219 Verum tamen, ut dicis, Antoni, multum in causis persaepe lepore et facetiis
profici uidi. Sed cum illo in genere perpetuae festiuitatis ars non desideretur natura
enim fingit homines et creat imitatores et narratores facetos adiuuante et uultu et uoce
et ipso genere sermonis , tum uero in hoc altero dicacitatis quid habet ars loci, quom
ante illud facete dictum emissum haerere debeat, quam cogitari potuisse uideatur?
219 Todavia, como dizes, Antnio, tenho visto que amide muita vantagem se obtm
nos processos por meio da amenidade116 e das faccias.117 Mas, de um lado, naquele
gnero de contnua graa no dizer,118 a arte no necessria afinal a natureza produz
os homens, cria os imitadores119 e os narradores facetos, ajudando com as feies, a voz
e com o prprio gnero de discurso ; 120 por outro lado, qual o lugar da arte neste
114 As faccias que se estendem pelo discurso constituem um tipo de humor que se espalha por frases, oraes, perodos, captulos etc. J as faccias de morda