PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Rita Alves Miranda
O Teatro experimental de Brecht
MESTRADO EM FILOSOFIA
SÃO PAULO
2013
PONTIFICA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Rita Alves Miranda
O Teatro experimental de Brecht
MESTRADO EM FILOSOFIA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora como exigência parcial para
obtenção do título de Mestre em Filosofia
pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, sob a orientação do Profa. Dra. Sônia
Campaner Miguel Ferrari
SÃO PAULO
2013
Banca Examinadora
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À minha família e a Bertolt Brecht.
Agradecimentos
Quero agradecer em primeiro lugar à minha família, meus pais Raul e Fátima
e ao meu irmão Ricardo, pelo apoio, dedicação e todo amor que sempre me deram.
Ao CNPq, por permitir que eu me dedicasse de corpo e alma a este trabalho.
À professora Sônia Campaner o meu profundo agradecimento pela ajuda,
parceria e mais que isso, por ter acreditado no potencial de minhas escolhas e me
encorajado a ir em frente, sobretudo quando eu tive medo.
Aos meus queridos e leais amigos que estão sempre aí comigo, dividindo as
alegrias e as angústias.
Agradeço especialmente ao Diogo Dias e à Júlia Yoshino pelas revisões e
pela amizade.
Ao Lucas por todo o carinho e companheirismo.
Resumo
Este trabalho tem por objetivo abordar a passagem de Bertolt Brecht pela
história do teatro e a influência de sua proposta na fase contemporânea da arte.
Inicialmente, analisamos a crítica de Brecht dirigida a algumas concepções
tradicionais de teatro e o caminho percorrido pelo autor para pensar a crise do
drama que se instalara tempos antes. Nesse percurso foram consideradas algumas
referências e possíveis objeções de Brecht a Aristóteles e ao modelo aristotélico de
teatro. Nesse debate polêmico, analisamos as referências ao filósofo grego, a fim de
esclarecer se o que Brecht pretendia era rejeitar mesmo Aristóteles, ou mais uma
apropriação daquele modelo formal. Sabe-se que o modelo aristotélico de teatro foi
retirado da obra Poética de Aristóteles e que sofreu apropriações segundo as
épocas, sendo uma delas a leitura burguesa. Essa leitura é rebatida por Brecht que
revê a realidade do drama burguês e percebe que era preciso que ele fosse revisto
imediatamente, pois o teatro já não atingia mais as pessoas, mas sua disposição
dependia de uma relação de passividade por parte dos espectadores.
Frente a dessa crise do drama, alguns artistas, tentaram reformulá-lo sem,
no entanto, obter sucesso. Brecht, quando deu início a seu trabalho, já tinha
conhecimento dessas tentativas e diante desses fracassos, o objetivo era fazer o
teatro inaugurar um novo lugar dentro da sociedade. Em busca do melhor lugar, ele
tem em mente um lugar de produção de consciências, opondo-se radicalmente à
logica burguesa-capitalista que buscava a alienação dos indivíduos. Assim,
localizado já fora do debate de acerto de contas com o passado, Brecht concentra-
se em seu presente e enfrenta György Lukács que se opõe a Brecht ao pensar a
arte de uma forma diferente, atribuindo a este a imagem de Formalista. Nos
ocupámos de defender Brecht também dessas acusações.
Esta dissertação, diferente do aspecto comum de textos sobre Bertolt
Brecht não se propõe a analisar minuciosamente as técnicas desenvolvidas pelo
dramaturgo na formulação do Teatro Épico, ou a falar dos aspectos formais de sua
obra, senão que se apoia numa abordagem filosófica, que passa rapidamente por
alguns momentos do pensamento do autor até chegar à fase considerada como fase
de uma concepção madura de teatro, que é também a última fase de sua carreira,
quando ele reviu muitas de suas posições anteriores. Esta fase é aquela em que ele
escreve peças como A Alma Boa de Setsuan (1939-1942) e Vida de Galileu (1938-
1939). Neste momento do trabalho nosso foco foi essa dada concepção madura da
obra do autor e as características de seu pensamento nessa época, pensamento
que tomamos como próprio brechtiano. Concentramos nossa atenção neste
momento da obra, a fim de mostrar a compatibilidade desse pensamento e uma
concepção de teatro contemporânea.
PALAVRAS-CHAVE: Bertolt Brecht. Teatro épico. Dialética. Teoria crítica. Teatro
moderno. Social. Político. Drama não-aristotélico. Educação.
Abstract
This master’s thesis aims to approach the passage of Bertolt Brecht through
the theater history and the influence of his proposal for the contemporary art. Initially,
we analyzed Brecht’s criticism towards some traditional conceptions of theater and
the path taken by the author to think the crisis of drama that had settled times before.
Along the way were considered some references and possible objections from Brecht
to Aristotle and the Aristotelian model of theater. In this controversial debate, we
analyzed the references to the Greek philosopher, to clarify weather Brecht really
wanted to reject Aristotle, or he proposed an appropriation of that formal model. It is
known that the Aristotelian model of theater was removed from the Poetics of
Aristotle and suffered different appropriations in different epochs, one of them being
the bourgeois reading. This view is refuted by Brecht, when he analyzes the reality of
bourgeois drama and realizes that it was necessary that it be revised immediately,
because the theater is no longer affecting the people, in the sense that their
willingness depended on a relationship of passivity on the part of viewers.
Facing this crisis of drama, some artists tried to reformulate it without however
succeeding. Brecht, when began his work, had knowledge of these attempts and
facing their failures, the goal was to make theater inaugurate a new place in society.
In search of the best place he has in mind a place of production of consciousness,
radically opposed to the bourgeois-capitalist logic that sought the alienation of
individuals. So, now located outside the debate of reckoning with the past, Brecht
focuses on your present and faces the ideas of György Lukács which oppose Brecht
by thinking art in a different manner and attributing to him the image of Formalist. We
also deal whit defending Brecht from these charges.
This dissertation, different from common aspect of texts on Bertolt Brecht is
not intended to scrutinize the techniques developed by the playwright in the
formulation of the Epic Theater, or talking about the formal aspects of his work, but it
is based on a philosophical approach, passing briefly through a few moments of the
author’s thought until it reaches the stage considered as a mature conception of
theater, which is also the last phase of his career, when he revised many of his
previous positions. This phase is one in which he writes pieces like The Good Soul of
Setsuan (1939-1942) and Life of Galileo (1938-1939). Being so, our focus was this
mature conception of the author’s work and the characteristics of his thinking at that
time, thinking that we take as very Brechtian itself. We focus at this moment of his
work, to show the compatibility of his thought and a contemporary conception of
theater.
Key-words: Bertolt Brecht. Epic Theater. Dialect. Critical Theory. Modern
Theater. Social. Politics. Non-Aristotelian drama. Education.
Sumário
Agradecimentos....................................................................................... 5
Resumo..................................................................................................... 6
Abstract..................................................................................................... 8
Introdução................................................................................................. 11
Capítulo 1- Brecht e o modelo tradicional de Teatro............................ 24
1.1 Brecht e a descoberta da nova função da Arte................... 24
1.2 A crítica de Brecht à tradição.............................................. 38
1.3 Brecht e Aristóteles............................................................. 65
1.3.1 O jogo emocional e perigoso da empatia ........................ 70
Capítulo 2 - Brecht e o Realismo Socialista........................................... 78
2.1 O confronto entre Lukács e Brecht..................................... 95
Capítulo 3 – O Brecht Maduro................................................................. 104
3.1 Brecht e Galileu.................................................................. 118
Conclusão ................................................................................................ 128
Referências Bibliográficas...................................................................... 143
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Introdução
É verdade, eu vivo em tempos negros. Palavra inocente é tolice. Uma testa sem rugas Indica insensibilidade. Aquele que ri apenas não recebeu ainda A terrível notícia. Que tempos são esses, em que Falar das árvores é quase um crime Pois implica silenciar sobre tantas barbaridades? Aquele que atravessa a rua tranquilo Não está mais ao alcance de seus amigos Necessitados? Sim, ainda ganho meu sustento Mas acreditem: é puro acaso. Nada do que faço Me dá direito a comer a fartar. Por acaso fui poupado. (Se minha sorte acaba, estou perdido.) As pessoas me dizem: Coma e beba! Alegre-se porque tem! Mas como posso comer e beber, se Tiro o que como ao que tem fome E meu copo d’água falta ao que tem sede? E no entanto eu como e bebo. Eu bem gostaria de ser sábio. Nos velhos livros se encontra o que é sabedoria: Manter-se afastado da luta do mundo e a vida breve Levar sem medo E passar sem violência Pagar o mal com o bem Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los Isto é sábio. Nada disso sei fazer: É verdade, eu vivo em tempos negros. [BRECHT, 2000, p.212]
Depois de certo tempo maturando alguns temas, discutindo assuntos
que diziam respeito à formação dos indivíduos, passei a acreditar mais e mais
que, se atentos às nossas vidas, há determinados momentos em que somos
capazes de perceber a valia de certas afecções, sejam elas por pessoas,
autores, ideias, escolas. E, foi assim, que há oito anos1 durante uma aula de
teatro, me vi afetada pela presença de Bertolt Brecht, uma das figuras mais
importantes da história do teatro moderno, que, a partir dali, passou também a
ter um papel decisivo em minha vida.
1 O primeiro texto lido de Brecht é o mesmo poema deste início da Introdução.
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Na época, cursava ao mesmo tempo a graduação em Filosofia e o curso
profissionalizante de teatro e posso dizer que, desde o primeiro contato com
Brecht, meu interesse extrapolou os limites do palco, fazendo-me descobrir
uma afinidade que eu entendi mais tarde que tinha a ver com o legado deixado
por aquele autor. O empenho de Brecht e a sua causa (Grund) geraram em
mim uma aproximação que dura até hoje. Se pudesse, citaria seus textos
aonde fosse, pelas ruas, para que assim como eu as pessoas também se
sentissem afetadas por eles. Por experiência, descobri que embora bastante
conhecido, Brecht, ao menos no Brasil, não é um pressuposto para quem
estuda teatro, e a surpresa e o entusiasmo daqueles que o leem e
compreendem a intenção do autor são quase certos. Penso que, apesar da
acessibilidade a seus textos hoje, ainda há um isolamento parcial de sua obra.
Alguns aspectos desta foram bastante difundidos e até apresentam uma
saturação. Porém, ainda há o que dizer.
Passada a fase da descoberta, atenta ao que aquela afinidade
despertara em mim, era impossível voltar ao que eu era antes, de maneira que
percebi que um retrocesso seria negar a mim mesma. Passei então a refletir
sobre aquilo que nasceu dessa afecção, vendo o que ela poderia acarretar de
determinante em minha formação enquanto indivíduo. Ainda em início de um
despertar formal, eu aspirava produzir algo mais do que percepções, e isso me
fez querer dar continuidade à relação com Brecht e o seu projeto, dedicando
esta dissertação de mestrado a esse encontro: à sua causa e a seu empenho,
que me inspiraram e me inspiram.
Meu desejo era escrever alguma coisa que conseguisse minimamente
traduzir o quão importante e decisivo tinha sido para mim o encontro com
Brecht e como esse sentimento estava longe de ser algo só meu, mas de
muitas outras pessoas que também haviam descoberto o autor. Com isso,
apesar de ter em mente as limitações de meu contato, que ainda era restrito
quando iniciei a pesquisa, acreditei que, assim como já tinha ocorrido com
outras pessoas, Brecht poderia me trazer a inspiração necessária para falar e
defender a ideia da qual compartilho desde o início de meu contato com o
teatro – quando ainda era uma criança –, que é a certeza de que essa arte só
tem sentido quando unida à ideia de coletivo.
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Infelizmente, logo que comecei a pesquisar Brecht, observei que por
diversos fatores o dramaturgo e sua obra tinham caído em descrédito, a ponto
de uma corrente de críticos e artistas chegar a considerá-lo ultrapassado.
Quando pensei que por um lado não seria fácil enfrentar essa corrente, ao
mesmo tempo não conseguia me convencer de que a obra de Brecht merecia
ser abandonada, pois olhando para o mundo de sua época e para o mundo de
hoje (de meu presente), o seu valor não parecia supérfluo. Para mim, diante da
realidade constatada, acredito que o seu teatro encontra-se ainda numa fase
inicial de recepção, podendo ser considerado “um elemento permanente e
ativo, cujo efeito discriminante é hoje ainda menos dispensável do que há vinte
ou trinta anos” [PASTA, 2010, p.16].
Logo, espero ter conseguido ser fiel à verdadeira causa de Brecht (que
acabei por adotar como minha também) e clara aos leitores, fazendo jus à
tarefa que eu mesma impus à minha formação individual, que é a de visar,
sempre em alguma medida, o coletivo. Pois, ao se falar de Brecht, tudo tem
que ser entendido e pensado na dimensão do todo, para além do sujeito, já que
a constituição de uma pessoa por mais isolada que seja é dependente desse
todo, tornando impossível aceitá-la como uma figura aleatória entre as demais.
Para Brecht, a vida de cada pessoa é determinada pelo mundo, o que torna o
papel de cada um também determinante dentro do todo.
Tendo em mente o ideário de coletivo, precisei saber antes de querer me
aventurar por essa afinidade os perigos que eu poderia enfrentar no caminho
escolhido, já que se tratava de pensar num trabalho acadêmico e ainda em
consideração à larga literatura existente sobre o autor. Diante da complicada
tarefa de enfrentar certa “intimidação” vinda da tradição crítica, foi a proposta
destinada à formação de um novo espectador (de um novo público de teatro)
que me fez seguir em defesa desse fim e querer mostrar a sua extensão à
contemporaneidade.
Para cumprir com a tarefa, mergulhei na história do autor e nas fases
que compuseram seu amplo trajeto no teatro, até que finalmente se chegasse
ao entendimento de como deveria se portar o novo teatro, que a meu ver –
assim como para outros intérpretes e admiradores de Brecht – contempla
também a sua fase mais madura e a mais consequente, que levou a obra de
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Brecht a outro patamar de compreensão, não podendo mais ser confundida
com aquele estágio inicial de sua carreira.
A grandiosidade dessa fase de Brecht – e a sua dificuldade também –
reside no fato dele ter levado a sua concepção de teatro a um nível pouco
limitado e doutrinário, ao contrário de como muitos o descrevem. Brecht seguiu
uma direção avessa à de muitos autores, que com o tempo se tornaram mais
rígidos. Partindo desse ponto, tratei essa possibilidade, que atravessa outra
apreensão da proposta brechtiana e a transforma também numa proposta de
influência para a formação dos indivíduos. Principalmente se aplicada a uma
sociedade que ainda hoje – como observou Theodor Adorno já há mais de
meio século e apesar do posicionamento em muitos sentidos divergente do de
Brecht – preserva a racionalização instrumental como valor maior. Uma lógica
que reclama uma transformação urgente:
A educação não é necessariamente um fator de emancipação. Numa época em que a educação, ciência e tecnologia se apresentam – agora ‘globalmente’, conforme a moda em voga – como passaportes para um mundo ‘moderno’ conforme os ideais de humanização, estas considerações de Theodor W. Adorno podem soar como um melancólico desânimo. Na verdade significam exatamente o contrário: a necessidade da crítica permanente. Após Auschwitz, é preciso elaborar o passado e criticar o presente prejudicado, evitando que este perdure e, assim, que aquele se repita. O filósofo alerta os educadores em relação ao deslumbramento geral, e em particular o relativo à educação, que ameaça o conteúdo ético do processo formativo em função de sua determinação social. Isto é, adverte contra os efeitos negativos de um processo educacional pautado meramente numa estratégia de ‘esclarecimento’ da consciência, sem levar na devida conta a forma social em que a educação se concretiza como apropriação dos conhecimentos técnicos. Parafraseando Adorno no último parágrafo da Minima Moralia, quanto mais a educação procura se fechar ao seu condicionamento social, tanto mais ela se converte em mera presa da situação social existente. É a situação do ‘sonho de uma humanidade que torna o mundo humano, sonho que o próprio mundo sufoca com obstinação na humanidade’! O desenvolvimento da sociedade a partir da Ilustração, em que cabe importante papel à educação e formação cultural, conduziu inexoravelmente à barbárie. Ou, para dizer o mesmo pelo reverso: o próprio processo que põe a barbárie aos homens ao mesmo tempo constitui a base de sua sobrevivência. Eis aqui o nó a ser desatado. A função de sua teoria crítica seria justamente analisar a formação social em que isto se dá, revelando as raízes desse movimento – que não são acidentais – e descobrindo as condições para interferir em seu rumo. O essencial é pensar a sociedade e a educação em seu devir. Só assim seria possível fixar alternativas históricas tendo como base a emancipação de todos no sentido de se tornarem sujeitos refletidos na história, aptos a interromper a barbárie e realizar o conteúdo positivo, emancipatório do movimento de ilustração da razão. Esta, porém, seria uma tarefa
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que diz respeito a características do objeto, da formação social em seu movimento, que são travadas pelo seu encantamento, pelo seu feitiço. Por isto a educação necessária para produzir a situação vigente parece imponente para transformá-la. [MAAR, apud ADORNO, p.12, 1995]
Brecht também apostou na importância de uma crítica permanente e a
citação anterior convoca o pensamento a avaliar: Quantos dos erros que
ficaram num passado histórico não muito distante, nós repetimos hoje? Com
que frequência olhamos para esse passado e revemos nossas formas de agir?
Quantos dos absurdos ali presenciados foram repetidos pouco tempo depois?
Que homens pensam hoje em suas vidas e voltam também esse pensamento
para a humanidade? A técnica, a tecnologia e o consumo desenfreado, que
implicações têm na vida dos indivíduos? O que é transformador hoje e que
dispositivos podem nos auxiliar a encarar a constante depreciação em que foi
colocada a nossa existência?
Se o teatro de Brecht (com sua extensão) não deu as respostas
necessárias, acredito que ainda é tempo do teatro contemporâneo formular
questionamentos como esses, que resultem numa outra forma de ver as
coisas, inclusive que se apoiem na concepção do autor de instalar de vez a
presença da ação do pensar também nos momentos de diversão das pessoas.
A transformação proposta pelo dramaturgo alemão não parece ter sido
ultrapassada, mas, ao invés, adiada. A conclusão a que pretendi chegar foi
que, diante dos problemas de hoje, não só os de ordem social, mas os que
assolam o campo da arte, deve-se ainda insistir na releitura de Brecht pela
descoberta daquilo que ainda está em aberto.
De um modo geral, são comuns as leituras de Brecht e sua obra que
aterrissam numa concepção de teatro restrita – distinta daquela que este texto
defendeu, e que vê na proposta deixada pelo autor uma possibilidade de
aproximar a arte da vida, vinculada também a um “conhecer-se a si mesmo” e
ao mundo, que para acontecer, demanda antes, uma relação mais consciente
com o próprio pensamento. Trazendo também a filosofia para uma situação
semelhante à da arte, notou-se que a sua presença afastada da vida das
pessoas poderia, segundo Brecht, ser retomada se fosse adquirido novamente
o gosto pela reflexão. Sendo assim, Brecht acabou conferindo a seu teatro a
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tarefa de buscar situações que permitissem pensar sobre o mundo e, assim,
pudesse ser descoberto um novo e possível contato entre filosofia, arte e vida.
Entretanto, ao iniciar o trabalho com o teatro, ainda não estava muito
claro para Brecht que caminho seguir – durante muito tempo de sua vida ele
esteve um pouco distante dos movimentos artísticos, já que primeiro
frequentou a escola de medicina e serviu como enfermeiro durante a Primeira
Grande Guerra Mundial. Assim, quando começou a escrever peças – Baal foi a
primeira, em 1918 –, além de todo o peso de uma tradição teatral, Brecht
também precisou se ambientar aos questionamentos que eram levantados
pelos intelectuais e artistas da época, sobre qual deveria ser o papel ocupado
pela arte dentro daquela sociedade, e os caminhos do teatro. Na Alemanha,
por exemplo, já havia experimentos que se utilizavam de dramaturgias não-
aristotélicas e que depois Brecht desenvolveu a seu modo.
Já ao se aproximar desse meio, Brecht percebeu que, em virtude
daquele presente incerto, era indispensável ao teatro arranjar um modo de
enfrentar a realidade, dialogar com ela. O mundo e a arte estavam em crise e a
revolta diante daquela situação fazia o teatro, também nessa situação, clamar
por intervenções radicais. Essa urgência foi o que impulsionou o jovem Brecht,
movendo-o pela esperança de estabelecer um novo teatro que pudesse ajudar
a ver que aquela era uma situação que podia e devia ser superada. Isso fez
com que ele lutasse por um teatro mais humano.
E assim decorreram 38 anos de experiência teatral – período entre os
anos de 1918 e 1956 –, sendo que até o último ano de sua vida (1956), Brecht
participou ativamente como homem de teatro. Quatro dias antes de morrer ele
ainda esteve presente num ensaio, o que demonstra a importância da vida do
teatro para ele, bem como a seriedade de seu compromisso. Contudo, é
importante destacar que dentro desse longo período de trabalho intenso, entre
formulação de teoria e montagens, os últimos 15 anos de vida de Brecht foram
marcados por uma espécie de reviravolta em seu pensamento, o que
consequentemente acabou influenciando todo o restante de sua obra e
experiências posteriores.
Essa fase é também classificada como a fase “madura” de Brecht, e o
período que a precedeu figuraria outra fase, a primeira do autor, que equivale
ao caminho percorrido pelo artista até chegar a uma compreensão que o
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satisfez. Só depois de uma longa investigação, é que se pode dizer que Brecht
encontrou uma visão que fazia jus ao seu objetivo inicial. Visão esta que ele
considerou como verdadeira possibilidade para ser aplicada dali em diante,
sempre com a finalidade de modificar a estrutura do teatro vigente – o teatro
burguês – e, encontrar um novo teatro que fosse duplamente inovador: que
divertia os espectadores (porque essa sempre foi a sua finalidade), ao mesmo
tempo que os fazia pensar. Um teatro útil para a sociedade, mas não do modo
como esta estava acostumada a pensar a “utilidade”.
Para caracterizar melhor essas “duas grandes fases” de Brecht – que
dividem a obra em dois momentos – Raymond Williams analisa e indica, os
acontecimentos daquela época que tiveram impacto sobre a cisão que ocorreu
na visão de Brecht, separando-a em duas vivências que, mesmo conectadas
por um objetivo, resultaram na divisão da obra em dois sentimentos distintos,
que por sua vez levaram Brecht a uma atitude também distinta. De pronto, “a
identificação de um sistema político como uma causa principal de sofrimento” e
depois, “a descoberta da esperança na luta contra ele”.
Com isso, a fim de facilitar o percurso do presente texto, foi escolhida
para ser defendida aquela fase que Williams define como a segunda fase de
Brecht, e com a qual José A. Pasta concorda. Sobre os momentos que passou
até chegar ao momento maduro da obra, alguns autores chegam a avaliá-los
também como fases, porém, aqui, optou-se por identificar tais momentos como
passagens que fazem a transição entre uma fase e outra.
Na primeira fase estava presente um Brecht endurecido, revoltado com a
ordem do capitalismo, que de pronto sentiu uma forte identificação com as
vanguardas artísticas (o Expressionismo), e que adiante passou por influências
como as do Teatro Político (de palanque) e Teatro Didático (ou de
aprendizagem), como o de Piscator, que o fez se juntar, de alguma forma, a
todos os debates dos quais participou na década de 20, porque tinha interesse
em primeiro lugar pela experiência que esses contatos poderiam trazer para a
sua prática com o teatro.
Dessa forma, antes de continuar, tomou-se como indispensável para
uma compreensão mais precisa de Brecht, olhar para ele antes de tudo como
um experimentador, para além da imagem de dramaturgo e teórico. Só assim,
fará sentido toda a crítica à história que vai desenvolver, assim como a
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construção do pensamento que trouxe resultados até então ainda não
presenciados na história do teatro, como é o caso da concepção de teatro da
segunda fase. Para o teórico Peter Szondi, a obra de Brecht configura uma das
tentativas de salvamento do teatro, que perto das que já existiam talvez seja
aquela que se tornou mais consequente para o teatro posterior.
Esta dissertação, portanto, tratou de alguns momentos do percurso de
Brecht que foram chaves para compreender o seu “produto” final.
Consequentemente, a partir de uma distinção mais clara dessas duas fases do
trabalho do autor, foi possível perceber também o porquê dele se comportar de
determinada forma, em se tratando de questões específicas – a exemplo do
confronto com a tradição. Na análise de Pasta, uma das relações estabelecidas
por Brecht que certamente muda na fase madura foi a relação com a tradição
clássica. Essa mudança foi decisiva tanto no desenvolvimento da teoria
brechtiana, como também na escritura das peças, em que a tradição, portanto,
contornou todo o trabalho de Brecht que investiu num movimento que
contrariava os efeitos do Esclarecimento alemão (Auflklärung). O exemplo de
Williams para o “primeiro Brecht” é dado através da peça A ópera dos três
vinténs. Esta traduz um pensamento que na época ainda estava bastante
confuso, rodeado pelo desacordo entre teoria e prática e que só foi contornado
na fase madura de Brecht 2.
Durante seu trajeto, Brecht concentrou-se em retomar características
próprias do gênero épico original de teatro – denominando-o mais tarde,
inclusive, de Teatro Épico – ao mesmo tempo em que inovou na combinação
dessas características e construiu uma nova visão de teatro, distinta da
original. Longe de desenvolver um complexo estético, como parecia se
encaminhar no começo o seu projeto, o amadurecimento constituiu uma fase
bastante radical em seu pensamento. Brecht ultrapassou a concepção da
dialética marxista e deu a ela a sua própria marca. Essa posição, confundida
ainda por muitos com a posição do começo, parecia disposta a pensar o teatro
2 Hoje “A ópera dos três vinténs” é ainda muito encenada pelos atores do herdado Berliner
Ensemble - teatro fundado por Brecht e sua mulher Helene Weigel em 1949. Na conclusão pretende-se falar sobre a espécie dessas encenações e como elas não correspondem a uma leitura contemporânea “sadia” da obra de Brecht.
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como uma espécie de instituição moral3, como procurou discutir este trabalho.
Por outro lado, entretanto, o texto também não se apoiou numa visão
construída ao acaso, tendo o estudo, que se iniciou pela leitura de textos do
próprio Brecht, coincidido com a visão desses autores, adeptos do “legado” 4
brechtiano.
Porém, há alguns erros cometidos na interpretação da obra de Brecht
que acabaram conduzindo a proposta dele a um empobrecimento.
Normalmente confunde-se bastante o papel social de seu teatro, e as críticas
estão justamente apoiadas nas criações de Brecht da primeira fase, como
exemplificado acima. Com o intuito de compreender essa obra como um todo,
ou buscando para ela algo que a definisse, Brecht é normalmente
compreendido: ou unicamente pelo ponto de vista do marxismo, ou como um
autor que escreveu só para seu tempo, que defendeu uma posição autoritária
para o teatro e para a função deste sobre o público (Publikum), como se ele
tivesse algum controle dos efeitos de seu teatro sobre cada indivíduo. Mas em
verdade, de decisivo Brecht só deixou o legado e este só deve ser
compreendido5 como aquele que pretende manter viva a ideia de que o
exercício do pensar deve estar presente em todas as instâncias da vida, e é na
elucidação dessa confusão que se concentrou a dissertação.
A visão escolhida para ser tratada e defendida aqui coincidiu e aliou-se,
em diferentes aspectos, a Peter Szondi, Gerd Bornheim, Raymond Williams,
Walter Benjamin, Roland Barthes e José A. Pasta. Pois, para esses autores, o
projeto de Brecht teve outra dimensão, que difere das críticas tradicionais e que
também se mostrou mais pertinente a uma reflexão filosófica que visa um
processo de questionamento atualizado. Do lado oposto, quando Brecht é
3 Brecht escreveu um texto, “Será por ventura o Teatro épico uma ‘instituição moral’?”, em que
se defendeu dessa acusação. O texto se encontra no livro Estudos sobre teatro. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2005. 4 Esse termo aparece com frequência em Trabalho de Brecht de José Antonio Pasta, e é
importante mencioná-lo aqui porque é dele que a tese também quer tratar, salvo algumas distinções que serão mencionadas mais adiante. 5 “A maior parte destas afirmações, senão a sua totalidade, foi escrita sob a forma de
anotações às minhas peças, no intuito de que estas viessem a ser representadas corretamente. Tal circunstância empresta-lhes um tom técnico, algo seco, como se um escultor indicasse como e onde se deveria dispor a sua escultura, e em que espécie de pedestal; tal indicação seria, também, uma indicação a frio. As pessoas a que ele se dirigisse esperariam, talvez, alguma coisa sobre o espírito dentro do qual fora concebida a escultura; mas é à custa do seu esforço pessoal que terão de extrair da indicação qualquer dado a respeito.” [BRECHT, 2005, p.251-252]
20
reduzido à união de algumas técnicas e às peças que deixou, Brecht torna-se
simplista e até de fácil superação. Em resposta às interpretações que o
colocaram nesse patamar, trazidas aqui as de HansThies Lehmann e Jacques
Rancière, esse percurso se ocupou da tentativa de desfazer alguns equívocos
na compreensão de sua obra e, assim, mostrar a amplitude real desse
trabalho. Ou seja, pensar Brecht, se possível, além do ambiente partidário e de
uma doutrina.
Brecht quis desenvolver um estilo de teatro que tivesse como resultado a
formação de uma nova atitude por parte dos espectadores. Em suma, queria
formar outro tipo de público de teatro. A presente tese propôs-se a defender a
ideia de que, dentro das preocupações de Brecht, aquela que se refere ao
público é a mais importante e à qual ele pareceu dedicar todo o seu trabalho6.
Desde as críticas ao teatro burguês, a busca por novas técnicas, o
desenvolvimento de outra visão para a diversão, até ao desapego à visão
fechada do marxismo ortodoxo, para Brecht colocou-se a questão:
será totalmente impossível fazer da reprodução de acontecimentos da vida real o propósito da arte, e portanto fazer da atitude crítica dos espectadores para com eles alguma coisa útil para a arte? Tão logo se começa a refletir sobre isso torna-se claro que uma transformação tão grande só podia ser executada mudando-se a natureza do trânsito entre plateia e palco. [BRECHT, 2002, p.98]
Assim, o trabalho é atravessado pelo seguinte roteiro de perguntas
(sendo cada uma delas respectiva a cada capítulo):
Por que Brecht foi de encontro à tradição e quis criticá-la?
Por que Brecht desconstruiu a ideia de realismo tradicional?
Por que Brecht se aproximou dos elementos do gênero épico de teatro e
os desenvolveu? Por que a peça A Vida de Galileu pode ser considerada como
o maior exemplo do legado de Brecht?
Por que Brecht ainda pode ser considerado atual?
6 “O que trouxe Brecht de volta à realidade, e por pouco não matou sua poesia, foi a
compaixão. Quando reinava a fome, revoltou-se ao lado de todos os famintos: ‘Dizem-me: Come e bebe!/ Alegra-te, já o tens!/Mas como posso eu comer e beber, quando/ Tiro ao faminto o que como, e/ O meu copo de água falta ao que morre de sede?’ A compaixão foi sem dúvida a mais tenaz e a mais fundamental das paixões de Brecht, e por isso mesmo a que ele mais procurou, e menos conseguiu esconder; adivinhamo-la em quase todas as peças que escreveu.” [ARENDT, 1991, p.274]
21
O primeiro capítulo (o mais amplo) tratou do debate de Brecht com a
tradição teatral anterior à sua época. O seu ponto de partida foi a rejeição que
fez à presença permanente do modelo clássico de representação – originário
de Aristóteles –, que por sofrer sempre novas apropriações e renovações foi
levado a um esgotamento total da forma dramática, culminando também numa
crise profunda do teatro.
Para realizar uma análise histórica do teatro, Brecht leu e estudou
autores de períodos que vão dos gregos até o século XIX, sempre atento às
mudanças relevantes de uma época para a outra. Nesse sentido, a fim de
descobrir a causa de suas referências, é possível também fazer uma
aproximação desses autores e dos acontecimentos mais relevantes dos
respectivos períodos, para se descobrir finalmente que Brecht realizou uma
espécie de classificação entre aqueles que tentaram seguir outra direção no
teatro, que não era moldada a partir dos clássicos, e os que em contrapartida
optaram sempre por reformar as ideias de Aristóteles, presentes na Póetica7.
O movimento do teatro ao longo da história, que foi acompanhado de
longe por Brecht em sua época, não pode ser compreendido se não se levar
em conta uma série de aspectos que foram determinantes a esse movimento.
Isso justifica o início desta abordagem pela análise da crítica brechtiana em
torno de uma tradição que considerou ultrapassada e que, segundo ele, tinha
sido responsável por levar a arte à crise – que, embora sendo resultado de
uma construção, só foi detectada no final do século XIX. Só nessa época é que
se iniciou um movimento não apenas de nível teórico, mas também
experimental, dentro do qual alguns artistas e intelectuais começaram a se
perguntar pelos motivos que originaram a tal crise. Concluíram daí que
precisavam repensar os modelos tradicionais que haviam sido assimilados pela
cultura burguesa.
No que observa das dificuldades circunscritas em sua época, Brecht
acreditava que a única saída para o teatro era começar com o rompimento,
mesmo que tardio, com o modo de representação pela primeira vez proposto
na Grécia antiga, reconhecido como modelo único. Era preciso destituir a forma
7 Originada de anotações das aulas de Aristóteles, esta obra tratou da poesia e da arte. Tendo
forte influência sobre a cultura ocidental, foi dela que se retirou o modelo de teatro tradicional, através de definições presentes ali, como as dos gêneros da tragédia e da comédia.
22
dramática – desenvolvida a partir desse modelo – do posto de gênero
soberano, porque as suas bases não mais se adequavam aos eventos da
realidade. Aristóteles e sua teoria tinham sido transformados em modelo de
veneração para o Ocidente desde o Renascimento, e como o filósofo grego foi
o primeiro pensador a fundamentar uma teoria sobre a poesia, ninguém havia
até então confrontado essas bases.
Era preciso romper com elas também porque, ao mesmo tempo em que
não dialogavam com a realidade, também já não faziam sentido enquanto
réplicas dos predicados gregos. Não satisfizeram Brecht as tentativas
constantes na história do teatro que tentaram acomodar esses predicados às
novas temáticas. A seu ver, o teatro pedia uma mudança de base, muito mais
profunda, que se expandiria para além do âmbito formal, intelectual e moral.
Antecipando aqui pontos da explanação vislumbrada para o primeiro
capítulo, será importante retirar a ênfase da crítica de Brecht de uma ligação
direta com Aristóteles. É verdade que o primeiro modelo referente à forma
dramática foi proposto pelo Estagirita, porém, Brecht não se preocupou em
romper diretamente com ele, pelo menos em parte. Porque uma vez tomando-
se o pressuposto de que esse modo (como tinha sido proposto originalmente
na Grécia) já não existia, a crítica que se refere ao modo aristotélico só poderia
arriscar-se a criticar aquilo que estava mais próximo de sua realidade histórica,
ou seja, as atualizações que se diziam herdeiras do padrão grego. Como
coloca Pasta, Brecht não deve ser encarado “numa espécie de anti-Aristóteles
exacerbado e raivoso, que tivesse eleito um tanto gratuitamente o estagirita
como cavalo de batalha ou trampolim ocasional para suas próprias
‘elucubrações teóricas’”. [PASTA, 2010, p.219]
Passado o trabalhoso capítulo, escolhido para ilustrar os motivos que
fizeram nascer o projeto empreendido por Brecht, o foco foram as discussões
mais recentes, das quais ele próprio participou. O segundo capítulo se
concentrou em analisar como Brecht situou o seu trabalho e a que atitude isso
o levou. Além disso, discutiu o modo como seu projeto foi recebido pela crítica
de seu tempo e que influência determinante isso teve para seu trabalho. No
centro está a recepção de Lukács e o confronto com Brecht.
Numa orientação que propõe tornar mais claras as aspirações que
inspiraram o desenvolvimento desse novo tipo de teatro, pensado e
23
experimentado por Brecht, o terceiro capítulo teve o intuito de defender a
segunda fase de Brecht, considerada aqui como a que justifica o seu legado
que foi projetado para ser levado adiante. O que interessou nesse capítulo foi
mostrar como esse modo de pensar a participação do teatro na sociedade se
tornou inédito e como a articulação resultante da combinação entre teoria e
prática que Brecht fez conseguiu romper com a forma tradicional de um modo
muito específico. Para orientar melhor a proposta deste capítulo, a partir de
Williams, a peça A vida de Galileu foi usada a exemplo do Brecht defendido da
segunda fase.
Num quarto momento a análise foi direcionada para as interpretações
mais recentes de Brecht e as apropriações de sua obra. No teatro atual é
possível perceber a grande influência de uma visão do Teatro Épico, porém,
normalmente a discussão recai num resumo das técnicas, perdendo o seu
caráter mais fundamental, que tem a ver com a causa (Grund). Com atenção à
realidade, a preocupação de Brecht continua latente hoje. Ela é – ou deveria
ser – a mesma, porque não se dissipou, mas, ao contrário, apenas se perdeu
em algum lugar, junto à reflexão sobre a arte e sobre o teatro. Assim como foi
feito com as leituras dos autores anteriores, muitos intérpretes compactuaram
para que também ele fosse aprisionado junto à corrente do que é institucional.
Hoje, infelizmente, embora ele seja reconhecido como clássico da literatura
alemã e seus textos sejam ditos com grande eloquência nos grandes teatros,
muitos poucos são usados para o mesmo fim para o qual foram escritos. Por
enquanto, restam as suas palavras e a evidência de que a proposta que ele fez
muitas vezes continua presa ao papel até hoje:
“E é precisamente porque a natureza da sociedade humana – em contraposição com a Natureza em geral – que tem permanecido, até hoje, obscura, que nos encontramos, como nos asseguram os cientistas, perplexos perante a possibilidade de um aniquilamento total de nosso planeta, que ainda mal conseguimos tornar habitável. (...) Nada mais será preciso acrescentar a estas breves notas (uma contribuição amigável para sua controvérsia), senão o meu parecer sobre o problema em causa: creio que o mundo de hoje pode ser reproduzido, mesmo no teatro, mas somente se for concebido como um mundo suscetível de modificação.” [BRECHT, 2005, p.21]
24
Capítulo 1. Brecht e o modelo tradicional de Teatro
1.1 Brecht e a descoberta da nova função da Arte
Que acontecimentos da História foram determinantes para construir a
perspectiva de Bertolt Brecht acerca da profunda crise do drama, e, assim, que
o estimularam para propor a formulação de um novo modelo de representação
para o teatro? A aproximação de alguns processos históricos é chave
necessária para compreender mais profundamente como, para cada período
na história, sempre houve um lugar determinado para a arte dentro da
sociedade; ou seja, como ela de alguma forma sempre desempenhou uma
função social. Foi nessa ideia, pelo menos, que Brecht se apoiou para construir
seu pensamento, o qual o levou a discutir a nova função para a arte proposta
pelo seu tempo. Desde o início, parecia haver somente uma saída, diante das
expectativas frustradas geradas pela construção do mundo moderno: o teatro
precisava voltar urgentemente ao lugar que unia diversão e reflexão sobre os
fatos da vida.
Entretanto, naquele tempo o clima era de desacordo. Nos palcos eram
mostradas exibições falsas sobre a vida, que coincidiram quando ambas as
tradições, aristocrática e burguesa, resolveram ignorar de forma abrupta os
questionamentos da sociedade, conferindo-lhes um olhar superficial através de
representações pomposas. O culto a esse tipo de exibição serviu para
evidenciar a origem da crise da arte e também para a análise de Brecht:
É extremamente importante descobrir um estilo de representação que seja simultaneamente artístico e natural. Em virtude da confusão babilônicas de estilos que reina nos palcos europeus, tal busca oferece sérias dificuldades. Existem, no fundo, dois estilos de representação nos palcos contemporâneos, estilos estes que nos aparecem, todavia, relativamente fundidos. O estilo ‘elevado’, elaborado para obra poética de fôlego e que é também possível aplicar às peças de juventude de Ibsen, ainda se encontra à nossa disposição, se bem que num estado algo conturbado. Mais do que substituído, ele foi completado pela segunda forma de representação existente, a naturalista; estas duas formas de representação têm coexistido, tal como o barco (a vela) e o barco a vapor. O estilo ‘elevado’ era, anteriormente, reservado exclusivamente para peças não-realistas, e as peças realistas tinham que se arranjar como quer
25
que fosse, ‘sem estilo’. Teatro estilizado significava o mesmo que teatro elevado. No primeiro período (o mais vigoroso) do naturalismo, copiava-se a Natureza tão fielmente que qualquer elemento estilístico seria considerado artificial. Quando o naturalismo enfraqueceu, travou compromisso múltiplos; hoje em dia, vemos também nas peças realistas uma mistura característica de desleixo e declamação. Desta mistura não se pode esperar nada. A forma elevada de representação apenas sobrevive, ainda neste coquetel, com a falta de naturalidade, a artificialidade, o esquematismo e a afetação em que tombou antes de ceder lugar ao naturalismo. E do naturalismo do período áureo apenas sobrevive o caráter aleatório e informe, a falta de imaginação, que o caracterizam mesmo no seu melhor período. É, assim, necessário procurar novos caminhos. [BRECHT, 2005, p. 115]
Porém, o clima de desilusão era anterior aos questionamentos que
surgiram na época de Brecht, que também discutiam a relação entre a
mudança da função da arte e os frutos gerados pelo modo de organização
capitalista. As coisas tinham seguido um rumo distante daquele esperado como
resultado da Revolução Francesa e do Iluminismo na França, e do
Esclarecimento (Aufklärung) na Alemanha. Com isso, quando Brecht e seus
contemporâneos começaram a buscar soluções para a crise da arte e a pensar
nos problemas da sociedade de uma forma geral é porque percebiam a
importância em não repetir escolhas como aquelas. Naquele momento, estava
em pauta o destino das novas gerações e, apesar do otimismo de Karl Marx ao
defender a hipótese do capitalismo evoluir para uma grande sociedade
igualitária, no começo do século XX todos eram intimidados pelo sistema
explorador, em seu auge, de forma ainda bem pouco consciente. Assim, era
preciso tomar cuidado com o que viria a seguir.
Por conseguinte, quando Brecht partiu para a análise da tradição - tema
dos próximos itens deste capítulo -, já tinha clara a dimensão da problemática
que o desenvolvimento do sistema capitalista trouxera à arte. Salvo devidas
generalizações, Marx já havia percebido que também a arte passara a ser vista
como produto e, assim, a ter um vínculo direto com o público nesse sentido:
como objeto de consumo e como ponto de fuga para os acontecimentos reais
que desanimavam a sociedade. Se antes o teatro, seus temas e formas de
representação estavam relacionados a uma pompa real, que idealizava a sua
26
origem com os gregos, a burguesia certamente submeteu o teatro a uma nova
função social, caracterizada por um estilo chamado Naturalismo1.
Mas, antes de Marx, Hegel já havia anunciado a morte da poesia
romântica. Mesmo assim, e desrespeitando a ruptura exigida pelas mudanças,
principalmente no novo modo de pensar – o científico –, o teatro continuou a
existir sob a mesma forma ultrapassada, ainda derivada de apropriações da
obra de Aristóteles2. Ao mesmo tempo em que ainda se insistia numa estética
com aquelas normas duradouras, pois para os tradicionalistas História e arte
eram dois movimentos separados, a realidade constatada era outro, que
demandava que alguma atitude fosse tomada.
Como uma tentativa burguesa de salvar o drama, surge o naturalismo,
que acabou por agir no sentido contrário, servindo para evidenciar a
decadência de um teatro que exaltava o subjetivismo. A política, a ética e a arte
sofriam também as consequências. A arte mudou a sua função social, mas não
mudou a abordagem. Embora o teatro já não falasse para reis e aristocratas, e
o foco fosse a classe burguesa, a forma dramática que tentaram a todo o custo
manter em pé sofreu uma reformulação: ao invés de ser definitivamente
superada, ela foi adaptada aos temas dos novos “senhores”.
Posteriormente, concluiu-se que, em se tratando de inovações artísticas,
não se fez com o drama mais do que pôr em cena os novos assuntos na
mesma configuração dos velhos, ou seja, sob as formas antigas de
representação. Com o naturalismo ocorre uma troca de personagens e uma
1 “Doutrina que proscreve qualquer idealização do real, e que até se esforça, por reação, por
valorizar sobretudo os aspectos da vida geralmente afastados por serem baixos ou grosseiros e que, no homem, provêm da natureza ... e que ele possui em comum com os animais. (...) O ideal não é aqui senão um real já existente, e mais completo do que o pretenso real que lhe opõem: passar do real ao ideal é passar de uma representação mutilada a uma representação completa daquilo que já existe atualmente e objetivamente; é simplesmente corrigir um erro, no sentido que esta palavra tem na ciência objetiva. Se esta concepção é a de Durkheim, não vejo nenhuma razão para não chama-lo naturalista. Eu chamaria naturalismo a toda doutrina para a qual a realidade, composta, aliás, de não importa que elementos, está completamente feita, e que, por conseguinte, não pode reconhecer um valor próprio irredutível ao conceito de ideal: para o naturalismo tudo é, à nascença, tudo aquilo que pode ser; só que, para concordar com a experiência, é preciso admitir que o conhecimento não se identifica com o ser de seus objetos, por outras palavras à conhecimentos falsos precedendo o conhecimento verdadeiro e que todas as diferenças se reduzem àquela que existe entre o conhecimento idêntico ao ser e o conhecimento não idêntico ao ser. Isto equivale a dizer que o naturalismo sempre levou a admitir pelo menos uma exceção ao seu princípio: o conhecer não é à nascença tudo o que pode ser, é um devir, mas um devir que tem o seu acabamento, a sua perfeição, na identificação com a realidade existente. (M. Bernès)” [LALANDE, 1999, P.719,720] 2 A questão referente à apropriação da obra de Aristóteles será discutida no item 1.3 deste
capítulo.
27
banalização dos temas. Ao inaugurar essa nova fase, o teatro passou a ter
também, uma nova função social, que colocou o homem comum, trabalhador,
pai de família no centro das tramas. Mas a mudança não atingiu os níveis que
poderia ter atingido e limitou-se antes aos assuntos do cotidiano burguês,
assim, conformando o teatro a um estilo monótono e supérfluo como aquele
praticado para entreter os aristocratas. A nova abordagem não originou outra
espécie de diálogo no campo da arte, que oferecesse questionamentos à
sociedade, mas solidificou a aceitação, por parte dos indivíduos, das coisas
como consequências de um curso natural, que ainda parecia o único caminho
possível.
Como nunca, o teatro assumia posto de aliado aos novos interesses
sociais. Por estes se basearem numa ordem que se fortalecia através do
crescimento econômico, cujo princípio era justamente a desigualdade entre
classes, era interessante que o teatro não falasse de desordem, ou de forças
contrárias que questionassem os efeitos desse crescimento. Ao invés, que ele
emocionasse as pessoas, as quais, diante de representações, eram levadas a
acreditar na existência de uma realidade sem conflitos – o que, por sua vez,
era promessa de uma conduta bem regida; ou seja, transmitir a ideia de que o
caminho que a sociedade seguia era o certo. Dessa forma, num primeiro
momento, a isenção de uma participação da arte que refletisse os verdadeiros
problemas existentes na vida daqueles homens não pareceu problemática; pelo
contrário, ela garantia adesão dos indivíduos a uma espécie de conformismo.
Eles, (os novos e membros-chefes da sociedade) produziam e
colecionavam coisas. Aqueles que tinham dinheiro para administrar como
queriam as suas casas podiam mandar em seus filhos e, assim, sentiam-se
mais livres por possuírem, dentro da sociedade, um valor: o de patriarcas.
Achavam-se soberanos daquela condição e não lhe destinavam muita reflexão,
não se preocupavam, por exemplo, com as massas desfavorecidas por esse
novo sistema. Elas permaneciam esquecidas. Sob o véu de um
desenvolvimento que parecia natural, estavam encobertos os cargos de
explorados e exploradores, o que, em realidade, era como tudo funcionava. A
sociedade racional foi construída mediante essas relações, que apesar de
parecerem novas continuavam baseadas na desigualdade política, econômica
e social, e isso explica por que hoje a história pós- Revolução Francesa é vista
28
sob uma nova ótica. Depois dela, os indivíduos não se tornaram mais livres,
nem a sociedade passou a ser igualitária, não havia alimento para todos, e a
ideia de uma mudança estrutural caía em descrédito.
Ora bem, é bastante geral a análise anterior e talvez seja até insuficiente
para explicar em quais valores a burguesia e o sistema capitalista se apoiaram
para se tornarem os centros da sociedade moderna e passarem a influenciar
também a arte. Ainda assim, serve para compreender como, dentro desse
sistema, a única saída para o teatro foi desenvolver uma visão que estivesse
de acordo com essa estrutura – ou que pelo menos não oferecesse nenhuma
espécie de confronto. Ou seja, uma visão derivada de uma consequência
histórico-social e que ao mesmo tempo tornava possível a seguinte verificação:
quando Brecht observa que, em todo o período histórico, o teatro
desempenhava a sua função, seu empreendimento só poderia ser, também, o
de mudar a concepção naturalista que nele surge após a constatação no
século XIX de que existia uma crise do drama e de que a arte em sua nova era
estava ligada à ideia de entretenimento – um modo de diversão alienador, e
que para os indivíduos passou a servir como refúgio do mundo, quando
queriam esquecer um dia duro de trabalho.
Passado o período de excitação da busca por uma hegemonia da razão,
a era científica despertou nos homens algumas preocupações que até então
não existiam. Enquanto o indivíduo se afastava da resolução dos problemas
que diziam respeito ao coletivo, os conflitos do mundo particular tornaram-se
primordiais, e aqueles assuntos restritos, menos gerais e mais limitados,
tomaram a frente no teatro. O resultado é percebido mais tarde, quando o tédio
atinge a cena. O naturalismo caracterizou-se desta forma: os temas teatrais
passaram para o núcleo das relações pessoais, abordando-as de maneira
pouco sólida. Porém, qualquer novidade vinda desse estilo também não
poderia durar muito, uma vez que falar desses assuntos, da forma como se
pretendia, dificultava a sua realização imagética, a encenação de ações
próprias daqueles temas, pois estavam demasiadamente voltados para um
mundo “interior” das personagens. Falar do sujeito tornou-se cada vez mais
difícil: solidão, isolamento, subjetividade e aniquilamento são conceitos que
aparecem no texto de Peter Szondi, Teoria do drama burguês, para
caracterizar o estado do drama quando finalmente se percebeu que ele se
29
encontrava em crise e que era preciso superá-la e recuperar a importância do
teatro dentro da cultura.
A partir da segunda metade do século XIX, arriscaram-se algumas
tentativas para livrar o estilo dramático da problemática situação em que se
encontrava. A primeira delas foi precisamente o novo estilo por essência
burguês naturalista, que mostrou-se importante para evidenciar os problemas
que a arte enfrentava e a função social que desde então ela passara a
desempenhar (como explicitado até agora). Além disso, tornou também mais
evidente a crise do drama, acabando de vez com a possibilidade de
permanência do teatro moderno, baseado somente no modelo tradicional. E
por esse motivo, Peter Szondi descreve o naturalismo como fadado ao
fracasso desde seu nascimento. Ele explica que esse estilo, por ter sido uma
tentativa de fuga de um processo histórico que amedrontava a burguesia,
providenciar a decadência cultural do sistema capitalista, só poderia constituir-
se enquanto um drama artificial, já que carecia de motivações externas que,
para existir, não se resumissem tão e somente a ações dramáticas. Anatol
Rosenfeld também apontou para o mesmo problema:
No fundo, o drama rigoroso não se ajusta à tendência básica do naturalismo de pôr no palco a realidade tal qual ela se nos dá empiricamente. Esse empenho não permite a estilização e a seleção severas da tragédia clássica. A vida como tal não tem unidade, os eventos normais não se deixam captar numa ação que tem começo, meio e fim. Na medida em que desejam apresentar no palco apenas um recorte da vida, os autores naturalistas são quase forçados a ‘desdramatizar’ as suas peças para tornar visível o fluir cinzento da existência cotidiana. [ROSENFELD, p.90, 2011]
Em outras palavras, ao tentar fugir dos reais motivos que levaram o
drama à crise e que surgiram a partir de um desacordo entre os novos
conteúdos e a permanência de uma forma dramática tradicional – ou seja,
quando a burguesia optou por não encará-los e partiu para um movimento
contrário – no mesmo sentido desviou-se da possibilidade de salvação e
encontrou a superficialidade. Quando Szondi aponta para o problema que o
naturalismo enfrentou, que parece ser semelhante ao que Brecht também
encontrará mais tarde no realismo socialista, tem em vista mais uma vez a
30
ideia de reforma do drama tradicional que Brecht tentará superar. Nas palavras
de José Antonio Pasta Jr., presentes na apresentação do livro de Szondi:
o ‘naturalismo’ se revelará uma escolha finalmente conservadora, mesmo regressiva, por abrigar-se, na representação compassiva do proletariado, como última instância de ‘naturalidade’, contra a fratura que cindia igualmente todos os indivíduos e o conjunto da sociedade. [PASTA, in SZONDI, 2001, p.16]
Se a escolha de heróis pobres a partir da perspectiva do burguês trouxe
ao naturalismo um olhar distanciado, isso aconteceu sem que tivesse sido
previsto; não foi algo pensado para fazer as classes refletirem, ou para elas
não se identificarem com os acontecimentos do palco. A decorrência disso é
que aquele movimento não fez ninguém mais consciente da realidade do
sistema e da condição indigna dos homens, ao invés, surgiu quase sem querer,
resultando na criação de um estereótipo para a classe baixa. E, mesmo não
encontrando uma aproximação real com o povo, esse drama também já não
pertencia à burguesia como antes, e, como bem identificou Brecht, tampouco o
teatro poderia pertencer mais uma vez apenas ao gênero dramático. Mesmo
que de forma superficial, um narrador distante já tinha sido chamado3. Nessa
aparição parcial do gênero épico, algo se rompeu dentro da cena naturalista e
ali inaugurou uma nova função social:
A história do teatro moderno começa com o naturalismo. Foi aí que se deram os primeiros movimentos definidos em direção a uma nova função social. A tentativa de dominar a realidade começa com dramaturgos passivos e heróis passivos. O estabelecimento da causalidade social tem início com descrições de situações. Em todas, as ações humanas são puras reações. Causalidade é premeditação. Típica é a peça de explosão. Nuvens se concentram em cima da cabeça de certas pessoas, de famílias, de grupos, aí rebenta a tempestade. O meio social tem o caráter de um fetiche, é destino. A gente representa o último ato de qualquer coisa. O novo drama começa com o não-dramático. [BRECHT, 2002, p.150]
A alienação dos indivíduos permitia um desinteresse pelos problemas da
realidade, onde o homem, ao invés de se aproximar, afastou-se cada vez mais
3 “o pano de fundo dos homens que agem e a atmosfera em que se movem passam a ser visíveis somente ao poeta que está diante deles ou os frequenta como estranho: ao narrador épico. Essa relativização do drama em função do narrador, que ele pressupõe enquanto drama naturalista, espelha-se em sua parte interna como relativização das personagens em função do meio, o qual lhes parece alienado.” [SZONDI, 2001, p.103]
31
de si e dos outros. Permanecia em aberto a sensação de que era necessário
fazer algo que aproximasse os homens de sua situação real. Para tanto, eles
precisavam se interessar antes por compreendê-la:
As falsas reproduções da vida real que eram efetuadas nos palcos, incluindo as do chamado naturalismo, levaram-no a solicitar reproduções cientificamente exatas, e o insípido espírito de ‘iguaria’, de deleite sensaborão através dos olhos e da alma, levaram-no a exigir a excelente lógica da tabuada. Este teatro rejeitou, com desdém, o culto do belo, culto então alimentado ao lado de uma aversão ao saber e de um desprezo pelo útil; e o que induziu a essa renúncia foi, sobretudo, a circunstância de não estar produzindo nada de belo naquela época. Aspirava-se a um teatro próprio de uma época cientifica e, como era muito difícil para os planejadores desse teatro requisitar ou furtar do arsenal dos conceitos estéticos vigentes sequer apenas o bastante para manter os estetas da imprensa à distância, preferiram simplesmente ameaçar afirmando o seguinte propósito: ‘extrair do instrumento de prazer um objeto didático e reformar determinadas instituições transformando-as de locais de diversão em órgãos de divulgação, ou seja, emigrar do reino do aprazível. A estética, legado de uma classe depravada que se tornara parasitária, encontrava-se num estado tão deplorável que um teatro que preferisse apodar-se de theater logo adquiria, por si, tanto prestígio como liberdade de ação. [BRECHT, 2005, p.126]
Nessa época, no auge do descompasso entre teatro e vida, alguns
grupos de artistas ao verem a situação se escancarar e temendo maiores
efeitos, passam a se expressar dentro do caos. Em busca de um
desnudamento da realidade e ao mesmo tempo da negação de uma condição
estabelecida, surge mais uma das tentativas de salvamento da arte, as
Vanguardas artísticas no começo do século XX. A distância que crescia entre
os homens, a vida e a arte resulta em questionamentos como: Qual é a função
da arte na sociedade? Qual deve ser o papel dos artistas quando a realidade
se apresenta como caótica? A respeito da atitude desses artistas, Walter
Benjamin em Experiência e Pobreza compreende-a como um ato de barbárie
que foi positiva na medida em que denunciava o fim da experiência:
Essa atitude é a oposta da que é determinada pelo hábito, num salão burguês. Nele, o ‘interior’ obriga o habitante a adquirir o máximo possível de hábitos, que se ajustam melhor a esse interior que a ele próprio. Isso pode ser compreendido por qualquer pessoa que se lembra ainda da indignação grotesca que acometia o ocupante desses espaços de pelúcia quando algum objeto da sua casa se quebrava. Mesmo seu modo de encolerizar-se – e essa emoção, que
32
começa a extinguir-se, era manipulada com grande virtuosismo – era antes de mais nada a reação de um homem cujos ‘vestígios sobre a terra’ estavam sendo abolidos. Tudo isso foi eliminado por Scheerbart com seu vidro e pelo Bauhaus com seu aço: eles criaram espaços em que é difícil deixar rastros. ‘Pelo que foi dito’, explicou Scheerbart há vinte anos, ‘podemos falar de uma cultura de vidro’. O novo ambiente de vidro mudará completamente os homens. Deve-se apenas esperar que a nova cultura de vidro não encontre muitos adversários” [BENJAMIN, 1994, 118]
Aqueles artistas, diante de um quadro de muita instabilidade, incerteza e
medo, antes e durante a Primeira Grande Guerra, quiseram anunciar o que
lhes atormentava enquanto seres que viam a humanidade caminhar no sentido
da desumanização. Num mundo que só crescia, era urgente entender por que
tudo estava acontecendo daquela forma e por que os artistas tinham ainda de
se submeter às formas tradicionais, quando estas não mais serviam para
expressar o que viam. Como dariam vida artística à percepção de que o mundo
caminhava numa direção com a qual eles não concordavam? Será que aquilo
era o que restava à humanidade e ao homem? O aniquilamento da vida?
Cansados de aderirem a uma relação doente com a arte, cansados de se
submeterem àquelas condições para corresponder às expectativas do capital,
rebelaram-se pelas vias da expressão artística:
Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, as vanguardas não se contentam mais em afirmar a vinda da arte moderna. Elas manifestam sua angústia do futuro, mistura de fascinação e revolta numa época em que os lustres da Belle Époque se apagam um por um sob o sopro das revoluções sociais e políticas. Até mesmo a adesão aos novos mitos da industrialização e da técnica adquire um tom de rebelião. ‘Manifesto’ é doravante a palavra da moda, perfeitamente apropriada para expressar a virulência das reivindicações. [JIMENEZ, 1999, p.287]
Dentre esses movimentos, em particular o Expressionismo foi o
movimento do qual Brecht mais intimamente se aproximou. Durante muito
tempo, ele foi símbolo para seu lado inconformado com a realidade da arte e
do mundo − embora mais tarde ele tenha percebido uma cisão entre aquele
modo de fazer arte e o seu. Por ter surgido primeiro na Alemanha e ter sido
considerado um dos movimentos mais importantes para a arte alemã da época,
o Expressionismo alcançou também um papel de destaque em relação às artes
cênicas. A vanguarda expressionista compreendia a arte como um retorno às
33
instâncias profundas do sujeito, em que as formas de expressão existentes não
eram suficientes para falar das verdadeiras aflições daquele tempo.
Em suma, esse movimento foi caracterizado: “o vazio formal do eu
precipita e converte-se no princípio expressionista, na ‘deformação subjetiva’
do objetivo” [Szondi, 2001, p.125]. Iniciado de dentro do eu, essa vanguarda
tentou expressar o que ali havia que não se calava. Szondi insiste ainda que o
que possibilitou ao Expressionismo toda a arrebatada explosão de criatividade,
em primeiro lugar, foi a posição isolada que aqueles artistas tomaram frente ao
mundo.
Assim, pensando que essa observação antecipa a relação pretendida por
esta dissertação, de aproximar Brecht do Expressionismo, é indispensável
destacar que na ação desse movimento Brecht descobriu algo que adiante seria
muito útil na construção do Teatro Épico: a técnica de estranhamento. Ao causar
estranhamento no indivíduo por meio de criações artísticas fundamentalmente
abstratas, ao invés de este permanecer em seu ambiente de conforto − alienado
dentro de uma ideia pronta, como era o caso da arte tradicional − conseguiu-se
que ele saísse de uma forma ainda incerta de que direção seguir. Tendo retirado
o espectador do estado de inércia, Brecht percebeu a grandeza que a
provocação de um susto, ou aparecimento de algo estranho em meio à
normalidade, poderia ter para a função da arte, que a partir dali tinha a intenção
de fazer com que os espectadores saíssem do teatro diferentes de quando
tivessem entrado, mesmo que o resultado disso fosse incerto4.
Elementos da vida que tinham sido esquecidos voltaram a ser
abordados por esses artistas que denunciaram o esquecimento, quando
resolveram “esvaziar” seus corpos e mentes de todas as emoções e
sentimentos que dentro do sistema apenas assimilavam5. O resultado, ainda
4Adiante será tratado mais profundamente o distanciamento no sentido de Brecht, porém é
visível a influência dos expressionistas dentro do olhar do autor em questão. 5 [BENJAMIN, 1994, p. 119]: “Podemos agora tomar distância para avaliar o conjunto. Ficamos
pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do ‘atual’. A crise econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra, a próxima guerra. A tenacidade é hoje privilégio de um pequeno grupo dos poderosos, que sabe Deus não são mais humanos que os outros; na maioria bárbaros, mas não no bom sentido. Porém, os outros precisam instalar-se, de novo e com poucos meios. São solidários dos homens que fizeram de novo uma coisa essencialmente sua, com lucidez e capacidade de renúncia. Em seus edifícios, quadros e narrativas a humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura. E o que é mais importante: ela o faz rindo. Talvez esse riso tenha
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que não tenha gerado plena consciência do que acontecia, gerou um olhar
mais “acordado”, que, por sua vez, possibilitou ver de forma mais distanciada
alguns fatos que antes eram simplesmente assimilados sem qualquer
julgamento. Um olhar atento, que poderia se destinar a recomeçar e a tentar
salvar a arte não mais através do olhar viciado da burguesia:
O homem é visto pelo expressionismo, conscientemente, como abstractum. E, com a renúncia altiva às relações intersubjetivas, que devem velar a ‘imagem do humano’, sucede a recusa da forma dramática, que para o dramaturgo moderno se nega a si mesma porque aquelas relações se tornaram frágeis. [SZONDI, 2001, p.126-127]
Sim, as relações tornaram-se frágeis, mas revertendo-se a situação, elas
poderiam tornar-se fortes, e o homem poderia encontrar a transformação,
fazendo nascer algo novo com relação à vida e à arte. Foi nisso que acreditou
Brecht, e com esse intento que começou um trabalho responsável por pensar
em que nível se daria uma mudança de função da arte efetiva. Como visto, a
cultura ocidental seguia ligada a uma estrutura empenhada em produzir no
palco fantasias em relação à vida, ditando preceitos morais sobre certo e
errado, para o bem de uma “ordem” social. Se não se empenhasse em mudar
drasticamente essa configuração que limitava os alcances do pensar, seria
muito difícil que alguma mudança se concretizasse e consequentemente
tornasse possível o acesso da arte às vias do pensamento e às capacidades
que julgava propiciadoras de uma transformação da sociedade.
Antes de chegar a Brecht, depois de falar do expressionismo como uma
das tentativas de salvamento do drama, Szondi passa a sua análise por Erwin
Piscator, considerado pressuposto de referência para Brecht e o teatro político.
Isso porque Piscator, afinal, desenvolveu o teatro político − ainda que para
Brecht ele adquira um novo sentido. Ambos foram herdeiros do naturalismo,
aponta Szondi, quando o teatro passou a abordar as temáticas sociais e delas,
então, se originou. Dessa forma, assim como o expressionismo, o movimento
de Piscator também abriu portas para o teatro pensado por Brecht. Seu
principal mérito reside na seguinte observação:
aqui e ali um som bárbaro. Perfeito. No meio tempo, possa o indivíduo dar um pouco de humanidade àquela massa, que um dia talvez retribua com juros e os juros dos juros.”
35
(...) Piscator corrige a falsificação que o ‘drama social’ comete necessariamente com a oposição entre o estado alienado e reificado no plano temático e a imediatez intersubjetiva no campo do postulado formal. Ao processo histórico de reificação e de ‘socialização’, que a transposição dramática para o intersubjetivo inverte e suprime, Piscator assegura a forma adequada invertendo novamente a encenação. [SZONDI, 2001, p.129]
Um processo de abertura às experiências que pensavam a mudança de
função da arte6 já tinha sido iniciado quando Brecht começou a trabalhar com o
teatro. Sua concepção atribui ao teatro a função de emancipar o sujeito, o que
o motivou a ir além da explosão do expressionismo e do modo político em
Piscator e seguir potencializado por todos os movimentos que aconteciam no
campo da arte e que confirmavam a possibilidade de uma grande mudança.
Como essa ideia será desenvolvida mais adiante, o que vale comentar neste
momento é que Brecht afastou-se de Piscator pois acabou compreendendo
que o teatro ia além da política, e a dimensão social adquiria novas proporções.
Pouco preocupado com o desenvolvimento propriamente artístico do teatro
político, Piscator acabou transformando o palco em lugar de propaganda
política, e isso faz Brecht admirá-lo, mas pretender outra coisa. Contra a apatia
e a passividade dos indivíduos frente aos acontecimentos de nível social,
Brecht parte da seguinte elaboração:
A problematização das relações intersubjetivas coloca em questão o próprio drama, visto que sua forma as afirma justamente como não problemáticas. Daí a tentativa de Brecht de opor ao drama ‘aristotélico’ – teórica e praticamente – um drama épico e ‘não-aristotélico’. [SZONDI, 2001, p.134]
6 “Qual rumo a seguir? A fusão das duas formas de representação – a romântico-classicista e a naturalista-, num coquetel romântico- naturalista, foi uma síntese de fraquezas. Dois rivais titubeantes que se agarravam um ao outro para não tombarem redondamente no chão. A fusão produziu-se, quase inconscientemente, por concessões mútuas, por desistências tácitas de princípios, por corrupção, em suma. Todavia, tal síntese, consciente e vigorosamente realizada, seria a solução. A oposição entre arte e Natureza pode ser transformada numa oposição fecunda, se, em vez de eliminá-la da obra de arte, lhe dermos coesão. Tínhamos, assim, por um lado, uma arte que criava para si própria sua Natureza, seu mundo, um mundo que era precisamente o da arte, que pouco tinha a ver e pouco queria ter a ver com o mundo real; e tínhamos, por outro lado, uma arte que se esgotava copiando o mundo, apenas, e que desse modo consumia quase completamente a sua fantasia. O que nós ora precisamos de fato é de uma arte que domine a Natureza, necessitamos de uma realidade moldada pela arte e de uma arte natural.” [BRECHT, 2005, p.116]
36
Esse novo drama que será chamado de não-aristotélico, antes de
qualquer coisa, exigia uma grande participação do espectador, e isso, aliado a
toda a estrutura épica, resulta numa mudança completa da relação entre o
teatro e a diversão:
O processo sobre o palco já não esgota completamente a encenação, ao contrário do que se dava no drama, em cujo seio a encenação ocupava papel secundário (o que é historicamente apreensível com o desaparecimento do prólogo no Renascimento). O processo é objeto de narrativa do teatro, que se relaciona com ele como o narrador épico faz com o seu objeto: só da contraposição de ambos resulta a totalidade do espetáculo. Da mesma maneira, o espectador não é deixado de fora do espetáculo, tampouco é sugestivamente envolvido (‘iludido’) nele de modo que deixe de ser espectador, mas é contraposto ao processo como espectador, e o processo lhe é apresentado como objeto de sua consideração. Visto que a ação da obra não se constitui em domínio exclusivo, ela já não pode mais metamorfosear o tempo da representação em uma sequência absoluta de presentes. O presente da representação é como que mais largo que o da ação; por isso, o olhar fica atento não apenas ao desfecho, mas também no andamento e ao que passou. No lugar da direção dramática com objetivos definidos entra a liberdade épica de demorar-se e repensar. Visto que o homem agente não é mais que objeto do teatro, é possível ir além dele e perguntar por motivos de sua ação. De acordo com Hegel, o drama mostra somente o que no ato do herói se objetiva a partir de sua subjetividade e o que subjetiva a partir da objetividade. Ao contrário, no teatro épico, em correspondência com sua intenção sociológica e cientifica, há uma reflexão sobre a ‘infra-estrutura’ social dos atos em sua alienação objetiva. [SZONDI, 2001, p.136]
Assim, já não há na proposta de teatro de Brecht a diversão ao modo
burguês, como entretenimento. O palco emociona, mas não ilude. A diversão
adquire um novo sentido, que cobra atividade do público. Brecht acreditava
que, ao se cobrar essa atividade, as pessoas solicitadas perceberiam a
importância da presença delas para a constituição da sociedade, ou seja, como
produtoras e colaboradoras de um meio comum.
Isso também servirá como uma ligação entre a arte e a educação, que
funciona para repensar o ensino quando se fala da participação do sujeito em
sua própria formação. Ele não é formado por seus mestres, mas por ele
mesmo, e quanto maior o alcance dos questionamentos, pressupõe-se um
interesse maior também. Movidas por ele, as pessoas se aproximariam da
possibilidade de redescobrir a diversão, que deixa de ser mera distração
37
superficial que nada acrescenta aos indivíduos. Desse novo modo, eles podem
por eles mesmos adquirir conhecimento e a isso atribuírem um prazer imenso:
É voz corrente que existe uma diferença marcante entre aprender e divertir-se. É possível que aprender seja útil, mas só divertir-se é agradável. É preciso defender o teatro épico contra qualquer possível suspeita de se tratar de um teatro profundamente desagradável, tristonho e fatigante. [BRECHT, 2005, p. 67]
38
1.2 A crítica de Brecht à tradição
O que permanece obscura é a fonte do fracasso. Será que as formas de arte têm seu ciclo de vida prescrito? Talvez não exista principio de conservação na energia poética. É evidente que o empreendimento grego e elizabetano parecem repousar sobre as costas de todo o drama posterior com um peso fatigante do precedente. Ou será que o coração da crise se encontra no interior da sociedade? Será que os poetas dramáticos do século XIX fracassaram em produzir boas peças porque não tinham teatros necessários nem o requisito do público à disposição? GEORGE STEINER
O drama que se desenvolveu antes da Revolução Francesa, apesar de
permeado por uma série de aspectos burgueses, como analisou Szondi, ainda
não se tratava daquele que será o drama burguês em crise, visto na parte anterior,
que atinge seu auge com o Naturalismo. A obra de Szondi, Teoria do drama
burguês, assim como a crítica de Brecht, percorre todo o conjunto de autores que
deram início ao processo de descoberta da nova posição do teatro e que foram
responsáveis também pelo modo como o drama burguês se desenvolveu.
O teatro do século XVIII e começo do XIX, como se verá, era ainda
bastante distinto em sua prática do teatro burguês do final do século XIX. É isso
o que Brecht percebe, e esta segunda parte do capítulo destina-se justamente a
essa análise que ele dirigiu a alguns autores tradicionais do teatro, na tentativa
de tornar mais claro o que era preciso combater nessa tradição. Para guiar este
texto, buscou-se alguns de seus trechos reunidos em Estudos sobre teatro e
Diário de Trabalho – vol. 1. A intenção é compreender como começou e se
desenvolveu a crítica do dramaturgo alemão, uma crítica que se estabelece
principalmente no período pós- Revolução Francesa (1789-1789).
Sabe-se que antes de alcançar esse novo momento na história do
Ocidente, mais próximo da realidade moderna e da nova postura adquirida pelo
teatro, Brecht direcionou sua atenção para a pesquisa dos fatores históricos
específicos desse período. Estes determinaram adiante o seu modo de pensar
e a radicalidade a que se reportaria o teatro, que ele pensou como forma de
efetuar uma transformação completa das bases que compunham a
representação teatral aristotélica, a qual se refere durante o seu trabalho.
39
Nas interpretações mais recentes, observou-se que já antes havia
dúvidas quanto ao alcance das mudanças sociais que a revolução poderia
promover. Hoje, já com o olhar do presente, há uma vasta reflexão sobre os
limites que atingiu. Avalia-se até que ponto ela teria evoluído em relação ao
que realmente defendeu, uma vez que acabou priorizando os interesses de
uma determinada classe. De qualquer forma, foi às vésperas da Revolução
Francesa que se deu o primeiro grande confronto entre o velho e o novo. Este
mudou para sempre as relações entre os homens, inclusive no campo da arte,
fazendo surgir no teatro uma reflexão que começa a questionar o
aprisionamento às formas tradicionais de representação, fazendo com que as
novas frentes teóricas se ocupassem dos possíveis futuros do drama.
Um retorno a esse passado, anterior e posterior à revolução,
desempenhou um papel importante no trabalho de Brecht. Ele quis diferenciar
os movimentos que desejaram superar a condição tradicional de representação
daqueles que simplesmente se adaptaram, recorrendo a antigos modelos –
sendo que o segundo caso mostrou-se a Brecht como fonte de problemas para
o drama. Sua investida talvez fique mais clara se se retomar a ideia do alcance
de revoluções como a francesa. Brecht se empenhou em arquitetar, próximo
aos de seu tempo, uma mudança no teatro, mais transformadora do que a
anterior havia sido. É, portanto, natural que quisesse voltar a certos eventos e
autores dessa época, a fim de que, ao verificar os desvios, pudesse pensar
algo para além de uma adaptação econômico-social. Nesse retorno, o que
Brecht percebeu é que muitos daqueles considerados tradicionais haviam se
afastado do que poderia ter se tornado uma verdadeira transformação, ao
decidir priorizar o apego à antiga forma de representação:
a tragédia deixou de ser realidade formal da representação, substituída pelo drama, mas persistiu como especulação estética e como consciência crítica do real. Na outra ponta, décadas depois, o drama se torna impossível como forma de totalização subjetiva. Sua superação produtiva só será alcançada por aqueles dramaturgos capazes de inventar modos narrativos de encenar ações individuais como parte de processos mais amplos, capazes de mostrar novamente relações supra-individuais, o que exigiu uma superação entre sujeito da representação e objeto representado.
1 [CARVALHO,
apud SZONDI, 2004 p.11]
1 Nessa citação, presente na apresentação ao livro de Szondi, Sérgio Carvalho reitera e
antecipa a reflexão que se quer desenvolver sobre a presença dos elementos estéticos trágicos
40
Como a mudança atingiu os assuntos presentes no drama, que por sua
vez renasce a partir desse período? Como e por que isso aconteceu, e para
que tipificação se dirigiu o drama é o que se pretende investigar aqui, seguindo
alguns dos exemplos dados por Brecht. No que diz respeito à vitória da ciência
nas almas humanas, cujo fundamento era um pensamento primordialmente
racional, quais são os novos ideais estéticos que surgem daí em diante? Em
que medida a transformação moral do homem no século XVII interferiu no rumo
do teatro? Anterior à Revolução, o teatro do final do século XVII é pioneiro do
nascimento de um conflito de ideais, que nunca foi solucionado. Ao invés,
permaneceu e ganhou novas proporções na segunda metade do século XVIII,
quando se desenvolveu o pensamento iluminista francês, que teve influência
direta dentro da arte, estendendo-se também para as teorias sobre teatro.
Nesse período, de um lado existiam as representações da tragédia grega, a
qual constantemente sofria apropriações pelos adeptos do neoclássico, que a
interpretavam como convinha aos interesses da época. Por outro lado, porém,
já era possível vislumbrar que o futuro do drama (ainda incerto) se distanciava
dos interesses trágicos clássicos conservados até então. O indivíduo
gradualmente passava a ocupar posto no centro do conhecimento e, por
consequência, também das temáticas do drama − o que não seria permitido se
se tratasse de um ambiente trágico.
Antes disso, entretanto, figuras emblemáticas do teatro como William
Shakespeare, por exemplo, trouxeram novos tons à história do teatro.
Shakespeare foi responsável por retratar a tragédia de uma forma ainda não
vista, e é por esse motivo que até hoje é considerado uma exceção na história
do teatro. A importância deste dramaturgo para as épocas futuras, como observa
Raymond Williams em Tragédia Moderna, reside no fato de ele ter dado à ideia
de trágico uma nova leitura. Brecht reflete sobre o dramaturgo inglês e aponta
para a especulação segundo a qual suas peças não foram escritas apenas por
ele, mas por um coletivo, o que lhe interessa enquanto reflexão:
mesmo após a mudança do drama, culminando em sua crise, e a tentativa de superação desses elementos por parte de autores como Brecht.
41
o que me leva a pensar que um pequeno coletivo produziu as peças de Shakespeare não é que eu acredite que uma pessoa sozinha não poderia ter escrito essas peças porque uma pessoa sozinha não poderia ter tanto talento poético, ser versada em tantos assuntos e ter uma tão vasta educação geral. Só acho que tecnicamente as peças são montadas de um modo que me induz a acreditar que eu reconheço nelas os métodos de trabalho de um coletivo. (...) O uso de peças antigas, a necessidade de formar um repertório, a redação de papeis para determinados atores, o caráter das peças que mais parecem cópias com anotações para o ponto, os papeis apressadamente alinhavados, o amor ingênuo ao teatro, o engenhoso artesanato, o fato de os elementos líricos e os filosóficos serem totalmente teatrais e destituídos de qualquer existência independente, tudo isso indica que o autor pode ter sido um ator ou diretor de cena. [BRECHT, 2002, p.144]
De qualquer forma, Shakespeare se destaca entre os demais autores na
história do teatro e é tratado como exceção pelo fato de, ao privilegiar os temas
próprios da Era Elisabetana em suas peças – que se dirigiram à vida humana e
à condição do indivíduo –, ele não se limitou às regras clássicas da forma
trágica. Chegou inclusive a ignorar muitas delas e quando o fez, e porque o fez,
abriu um novo leque de possibilidades para as obras futuras, uma vez que
através dessa “desobediência às regras” concedeu certa liberdade aos artistas.
Hoje, mesmo não havendo escritos teóricos desse autor que pudessem atestar
sua intenção de inaugurar um estilo próprio, reconhece-se que sua obra, além
de trazer para o teatro uma nova qualidade, foi a primeira a realmente se
estabelecer como um modelo que fizesse frente à tragédia clássica francesa.
Ao não seguir à risca as exigências da tragédia clássica, preferindo
adequar-se às condições exigidas pela época, Shakespeare
despretensiosamente2 fez ver para além do confronto entre o novo e o velho –
o que será bastante usado pelos iluministas – como o teatro sempre
desempenhara uma função social e como ela sempre fora histórica, tendo em
cada período o seu sentido particular. Nota-se que essa função não podia mais
restringir-se à aristocracia, mas precisava falar do povo, pois, como comenta
Anatol Rosenfeld, ao agir diretamente sobre as pessoas, o teatro não tinha a
função de apenas divertir, mas de falar qualquer coisa sobre cada época,
2 “A maior parte dos dramas modernos tem sido escrita para demolir uma teoria antiga ou provar
uma nova. Nenhuma outra forma literária tem sido tão sobrecarregada por conflitos de definição e objetivo. Os teatros ateniense e elisabetano foram inocentes do debate teórico. As Poéticas são concebidas depois do fato, e Shakespeare não deixou manual de estilo. No século XVII, essa inocência e a consequente liberdade da vida imaginativa estavam perdidas para sempre. Daí em diante, os dramaturgos tornaram-se críticos teóricos.” [STEINER, 2006, p. 23]
42
cedendo espaço para as construções morais de seu tempo. Por isso, saber de
outras direções dadas à tragédia e perceber que Shakespeare inaugurara uma
corrente de novas ideias tornou-se posteriormente importante para a discussão
sobre a forma tradicional. Raymond Williams atentou para essa diferença e
mostrou a proximidade disso com aquilo que servirá como assunto para a
posteridade, e que interessa a todos que buscam uma compreensão mais
plena da história e de como se desenvolveu o teatro:
No corrente contraste verbal entre tradicional e moderno, há sempre uma pressão para comprimir e unificar as variadas reflexões do passado em uma única tradição, ‘a’ tradição. No caso da tragédia, há pressões adicionais de um tipo específico: a suposição da existência de uma tradição comum greco- cristã, que deu origem à civilização ocidental. A tragédia é, à primeira vista, um dos mais simples e poderosos exemplos dessa continuidade cultural. Ela une, culturalmente, gregos e elisabetanos. Congrega helenos e cristãos em uma atividade comum. É fácil ver quão conveniente e indispensável é essa ideia de tragédia. A maioria dos estudos sobre o assunto foi de forma inconsciente determinada justamente por essa suposição e por um desejo de difundir e propagar essa interpretação. Em certas épocas da nossa própria história, a revitalização da tragédia foi uma estratégia estabelecida pela consciência da necessidade de uma tradição. Em nosso século, especialmente, em que houve uma impressão muito difundida de que aquela civilização estaria sendo ameaçada, o uso da ideia de tragédia para definir toda uma importante tradição em vias de ser destruída por um presente ingovernável tornou-se bastante evidente. E no entanto o que está em jogo não é meramente uma questão que vá contra essa suposição: a de que não haja uma tal continuidade. O que está implicado, aqui, é mais a compreensão de que uma tradição não é o passado, mas uma interpretação do passado: uma seleção e avaliação daqueles que nos antecederam, mais do que um registro neutro. E, se assim é, o presente, em qualquer época, é um fator na seleção e na avaliação. Não é o contraste, mas a relação entre o moderno e tradicional aquilo que interessa ao historiador da cultura. [WILLIAMS, 2002, p.34]
Assim, quando se pensa a retomada da tragédia clássica na história do
teatro e se descobre que ela sempre teve uma função, é possível perceber o
quanto aquele processo histórico de conflitos e de aspectos contraditórios foi
decisivo para o teatro. Tais conflitos não podem ser ignorados porque permitem
compreender melhor o que ocorreu com o Iluminismo, que segundo Peter
Szondi, por se configurar como um movimento heterogêneo, teve como
resultado um drama burguês que já nasceu confuso e que mesmo em meio a tal
confusão pretendia contrapor-se a essa tragédia constantemente revitalizada.
43
Szondi atenta para o fato de que antes do século XVIII, quando as teorias
realmente começaram a se debruçar sobre a elaboração de um modelo, havia
dramas que já falavam de heróis e de temas burgueses. Nesse meio, ele cita
obras do tempo de Shakespeare. Com isso, pretende demonstrar que, do
mesmo modo que sempre houve a retomada dos moldes da tragédia clássica,
também em certo momento uma luta passou a existir. Esta, ainda que
inconsciente, não era fruto da simples aparição da nova classe, uma vez que
não se resumiu ao movimento revolucionário surgido na França, mas que talvez
fosse mais bem compreendida se pensada como um transbordamento do novo
frente à forma clássica, naturalmente ultrapassada pelo movimento do tempo.
Em Teoria do drama burguês, Szondi conclui que quando o drama
burguês nasceu não obstante sua intenção enquanto drama sério (genre
sérieux), que buscava aproximar-se mais da nova realidade, ele acabou por
retomar as antigas formas, gerando mais uma vez uma incoerência histórica.
Ao mesmo tempo, dada incoerência não fora prevista pelos primeiros autores
do século XVIII, os quais no momento em que desenvolveram suas teorias não
eram ainda capazes de compreendê-las e fazer com que atingissem a cena.
Havia uma compreensão a nível filosófico que não podia ainda ser
transmitida pela dramaturgia, uma vez que o modelo e as regras formais não
haviam sido repensados, fazendo com que na prática tudo fosse diferente. O
problema entre forma e conteúdo parecia ainda não ter sido percebido, e se tinha,
não havia um debate entre a filosofia e a arte. Nessa época os autores não se
questionavam sobre a inadequação formal, porque a arte ainda era considerada
uma atividade menor, incapacitada de dizer as coisas de forma clara.
Entre os ditos maquinadores da revolução na França no século XVIII
esteve Voltaire, que embora reconhecido como um dos mais importantes
iluministas foi também considerado uma das figuras mais conservadoras dentro
do movimento; seja ao apostar no poder da poesia ao invés da prosa, ao
conservar as três unidades3, ou por negar Shakespeare e colocá-lo no liame
dos autores que ignoraram a antiga ordem regida por “propriedade, ordem e
verossimilhança”. Sobre isso, Carlson comenta:
3 As três unidades de ação – ação, lugar e tempo –, presentes na teoria de Aristóteles como
partes que formam o todo de uma peça, já tinham sido ignoradas por Shakespeare.
44
Um interesse algo maior no espetáculo visual (especialmente o exótico), embora não a ponto de desafiar a unidade de lugar; uma liberdade algo maior na expressão, embora para não erodir a forma poética francesa tradicional; uma liberdade algo maior no assunto, permitindo que figuras da história francesa se juntem aos gregos e romanos como temas possíveis; e uma nova ênfase no emocional, especialmente o sentimental – isso, essencialmente, exaure as suas inovações. [CARLSON, 1997, p. 142]
Acontece que, assim como Voltaire, muitos iluministas ocuparam-se em
recriar uma ética que não confrontasse os novos interesses dos homens
comuns, que antes de tudo ansiavam por liberdade. Isso por si só já impunha à
ideia de revolução certos limites, e o teatro continuaria, principalmente a partir
desse momento, atrelado a uma nova moral – posto que a mais antiga,
vinculada à Igreja, tornara-se. Ali, ela se empenhava em atender os interesses
da (nova) classe 4, que queria ascender em todos os campos da sociedade e
ditar seus desejos para a arte.
O drama moderno por essência burguês nasce nesse contexto, com a
busca pela significação de uma nova forma de vida e de pensar, sob a qual
ainda não se tinha muito domínio. Ele é a mistura de gêneros e ideias que já
existiam, sob o olhar de um novo espírito que necessitava se manifestar. Um
dos destaques desse novo trato dado ao teatro é Denis Diderot, considerado
um dos idealizadores da revolução: teórico e dramaturgo 5 francês, com ideais
burguesas, reconhecido por Volpe como o maior crítico “racionalista-ilustrado”6.
Diderot começou a estudar e a introduzir no teatro questões universais através
do núcleo vivido pelos personagens do drama, e isso não deixou de ser notado
por Brecht, que lhe dirige uma atenção especial. A partir daquele momento,
quando quer falar do mundo, o teatro se volta primeiro para o ambiente
particular, um aspecto que estava presente em Diderot.
Por essa razão é que se atribui frequentemente a esse autor francês o
desenvolvimento do drama burguês “em sua intenção mais profunda”7 e uma
4 “uma nova classe, rica, ativa, inteligente e irrequieta: a burguesia, senhora do comércio e da
indústria, iluminada pelos intelectuais que faziam parte dela – e por isso consciente de sua grande força e dos seus direitos.” [SAVIOTTI, p. 83] 5 Ainda sobre esse iluminista é importante lembrar que, embora convicto de que queria
colaborar para mudar o rumo da arte teatral, com suas investidas em criar espetáculos, pouco conseguiu obter de efeito em sua época, no que diz respeito a ter sido um bom dramaturgo. 6 Brecht leu Diderot e chegou a usar um de seus personagens. Uma das referências a esse
pensador francês está presente no primeiro volume de seu Diário de Trabalho. 7 VOLPE, 1972, p.62.
45
decorrente preocupação com a verdade da época − ainda que de uma maneira
teórica. Essa prioridade fez com que se procurasse para ser representado no
palco algo fora do classicismo, algo novo. Diderot pretendia trazer para o palco
de modo mais fiel o cotidiano, pois percebeu que naquele momento os temas
do espaço diário comoveriam muito mais do que os remetidos aos deuses da
Grécia Antiga. Havia por parte dos iluministas uma preocupação com a
educação, que via uma possibilidade na representação de fatos do cotidiano,
na presença destes no teatro. Nesse sentido, Diderot foi especial porque dentre
os demais do mesmo movimento, mesmo que somente no plano teórico,
conseguiu antecipar a reflexão que trouxe o teatro para o cotidiano. Alguns dos
dramas humanos continuam sendo os mesmos, como amor, morte, traição,
mentira, dor; porém, é o trato dado a estes que muda, sendo diferente daquele
dado aos antigos nas tragédias gregas:
Mas eis, ao mesmo tempo, a natureza, a cujo culto se dedicaram Diderot e Rousseau, responsável talvez pelo fato de as duas heroínas do drama burguês mencionadas por Diderot, a mãe e a esposa, não pertencerem à condição burguesa e à cidade, mas à natureza [SZONDI, 2004, p.110]
A preocupação com aspectos como a “experiência cotidiana”8 e a
“simplicidade da ação” 9 (por exemplo, o núcleo familiar) fez com que Diderot
como autor buscasse lidar de forma coerente com os mesmos, uma vez
preocupado com a realidade da época. Agiu como articulador da mudança social
que estava em processo, na qual ainda se confundiam muitos valores antigos
com os novos valores burgueses. Tornou-se, assim, um dos preconizadores das
direções tomadas pelo teatro moderno, por se preocupar com o conteúdo que
queria tratar, sem se importar em ignorar muitas das regras mais tradicionais do
teatro, merecendo mais tarde a atenção especial de Brecht:
Diderot apoia as unidades, pelo menos na medida em que elas favorecem a verossimilhança, e permite mudanças de cena ou lapsos de tempo apenas quando ocorrem entre atos, prática que o realismo moderno seguiu fielmente. Em vez do diálogo tradicional, rítmico, rimado e altamente consciente, Diderot preconiza (e usa em sua
8 SZONDI, 2004, p.111
9 IDEM
46
própria peça) frases truncadas e irregulares copiadas da fala cotidiana. [CARLSON, 1997, p. 148]
Diderot, entretanto, aparece também vinculado a ideias de cunho moral,
como o bem, a virtude, ou o vício, assim como os demais pensadores
iluministas. Ainda assim, deve-se distingui-lo dos demais do mesmo
movimento, que na época, aliás, fizeram dele um alvo de críticas por querer se
aproximar do que acreditava e pelo seu desejo de estar longe de um apego à
dramatização da vida pautada exclusivamente pelas exigências trágicas. Além
disso, o autor francês é visto como aquele que antecipou o distanciamento
posteriormente desenvolvido por Brecht, ao optar por não privilegiar os ideais
emocionais no drama10, em consideração aos efeitos benéficos que isso
poderia trazer à plateia. Sobre a aproximação que Brecht faz a Diderot, cabe a
reflexão sobre o que o teria levado a escolher esse autor. O que se constata é
que dentre tantos autores contemporâneos a esse iluminista, Brecht identificou
ali uma figura ousada, quando de sua tentativa de oferecer ao teatro daquele
momento um novo tipo de abordagem, que permitisse abarcar a realidade e
pensar sobre ela, ainda que de forma parcial, devido às limitações impostas
pela época:
A Revolução Francesa e as guerras napoleônicas mergulharam os homens comuns na corrente da história. Submeteram-nos às pressões da experiência e do sentimento as quais, em tempos anteriores, foram prerrogativas perigosas de príncipes, homens de Estado e soldados profissionais. (...) Uma parte crescente da vida privada tornara-se agora exposta aos clamores da história. E essa parte aumentava com a expansão dos meios de comunicação. Ignorante da catástrofe vizinha, o espectador elisabetano e neoclássico assistia ao Hamlet ou à Fedra, com uma certa paz de espírito, ou ao menos desarmado contra a poesia e o choque da peça. O novo homem ‘histórico’, pelo contrário, chegava ao teatro com um jornal em seu bolso. Aí poderia haver fatos mais desesperados e sentimentos mais provocativos do que aqueles que o dramaturgo teria e se preocuparia em mostrar. O público não tinha dentro de si a qualidade do silêncio mas uma emoção em excesso e tumulto. [STEINER, 2006, p.66]
Seria possível fazer arte com peças relevantes – no sentido prático e
teórico – para os homens do presente e futuro, sem que se tivesse de carregar
10
CARLSON, 1997, p.151.
47
o fardo de cumprir todo o detalhamento formal exigido pelos exemplos do
passado? Diderot acreditou nisso – como fez Brecht posteriormente –
aproximando-se de uma atitude semelhante à do realismo que viria mais tarde.
É certo que o dramaturgo francês não revolucionou a ponto de buscar uma
forma que servisse de contraponto total aos antigos arquétipos, mas ele
conseguiu perceber quando as regras destes não cabiam no que pretendia,
uma vez que muitas bloqueavam essa aproximação do teatro com a realidade.
E dado que naquela época as mudanças se concentravam no desejo burguês
de ascender socialmente, a arte começou a ser pensada para influenciar
também o homem nesse sentido. Para Brecht, Diderot é até certo ponto
diferente dos autores da mesma época, o que o leva a se interessar pela leitura
do autor francês. Em uma das observações de seu diário, comenta estar
“mergulhado” nessa leitura:
Leitura de Jacques, o fatalista, de Diderot: chama a atenção não emitirmos sinais de uma sensualidade refinada na Alemanha. O amor ali (veja-se Fausto) é algo celestial ou algo diabólico, um dilema de que escapamos porque o transformamos num hábito. Os únicos nomes nesse campo são Goethe e Mozart, e este último sabiamente ambientou seus dramas de amor em solo estrangeiro. Na lírica não há nada entre o etéreo, histérico e incorpóreo e as canções obscenas das garçonetes de bar. Keller tem certos méritos, Heinrich Mann descreve só excessos. Parece que na Idade Média esta é outra área de cultura que só o clero parece ter cultivado. A aristocracia alemã era incapaz de hedonismo, também a burguesia era puritana em seus ideais, e vulgar na realidade. Os estudantes alemães ‘faziam aquilo’ após consumir cerveja em quantidades tais que teriam deixado qualquer outro incapaz de qualquer coisa a não ser vomitar enquanto copulava. Seria higiênico para os alemães ter sua primeira comédia de amor (sua mandrágora) na forma de um drama Lutero-e-Kätter... [BRECHT, 2002, p.174]
Agora, em relação ao tradicionalismo criticado por Brecht, através da
leitura de autores como Diderot e da comparação dos movimentos culturais
que aconteceram na França e Alemanha (seu país), ele conseguiu visualizar as
diferenças determinantes entre esses dois processos. Na Alemanha, porque o
processo foi diferente de uma revolução na prática, como acontecera na
França, a arte acabou ficando mais presa às antigas regras, e as mudanças
atingiram muito mais o plano do pensamento alemão do que a estrutura da
sociedade. Ali, tudo caminhou socialmente de outra maneira, e não obstante a
influência da Revolução Francesa e a unificação de seu território, a Alemanha
48
não conseguiu se desprender de uma atitude ligada aos pressupostos dos
modelos clássicos; permanecia muito presa a uma estrutura econômico-social
mantida pelos feudos, na qual atuava uma aristocracia ainda bastante
presente. Na França, embora tivesse se demorado até chegar à revolução, o
processo havia sido mais radical:
O desenvolvimento econômico na Alemanha ficara atrás do da França e da Inglaterra. A classe média alemã, fraca e dispersada em numerosos territórios com interesses divergentes, dificilmente poderia projetar uma revolução. Os poucos empreendimentos industriais existentes eram como que ilhas dentro de um sistema feudal que se eternizava. O indivíduo, na sua existência social, ou era escravizado ou escravizava seus semelhantes. Não obstante, poderia ao menos perceber, enquanto ser pensante, o contraste entre a realidade miserável que existia por toda a parte e as potencialidades humanas que a nova época liberara; e, como pessoal moral, poderia preservar a dignidade e a autonomia humanas, pelo menos na sua vida privada. Assim, enquanto a Revolução Francesa começava por assegurar a realização da liberdade, ao idealismo alemão cabia apenas se ocupar com a ideia de liberdade. Os esforços concretos para o estabelecimento de um tipo de sociedade racional haviam sido transpostos, na Alemanha, para o plano filosófico e transpareciam nos esforços para o conceito de razão. [MARCUSE, 1978, P.18]
11
O homem da burguesia alemã parecia, em realidade, não ter plena
consciência de que o processo ocorrido na França era possível também ali,
naquele país. Como aparece na citação de Marcuse, havia um processo
industrial que aos poucos era agregado ao espaço dos feudos. Porém, e talvez
devido a essa inserção, não se desenvolveu uma maturidade da nova classe
que a fizesse investir na possibilidade de abolir de vez o regime aristocrático,
por meio de um movimento revolucionário. Os indivíduos acostumavam-se às
condições que dispunham socialmente, ao mesmo tempo que começavam a
elaborar um pensamento influenciado pelos valores propagados na revolução
dos franceses. Inaugurava-se uma nova fase na Alemanha, só que ela se
dirigia ao plano das ideias.
Que efeitos surtiram essas circunstâncias nos aspectos do drama?
Como pensar o teatro na Alemanha e o aparecimento do drama burguês ali,
sem a característica agressiva do movimento revolucionário da França em
11
Na obra Razão e Revolução, Hebert Marcuse analisa a influência do processo revolucionário francês na Alemanha e, ao mesmo tempo, apresenta os porquês dessa mesma influência não ter alcançado o plano prático (social) como alcançou o teórico e as consequências que isso teve para a cultura e pensamento alemães.
49
relação à ordem de um regime velho? Que aspecto o estado ameno dessa
classe média alemã dará ao novo drama? Assim como na França, o movimento
neoclássico alemão era forte12, mas paralelo a isso, já tinha surgido também ali
a ideia de um novo drama. No plano inicial dessa formação e como percursor
do que viria a ser mais tarde o teatro burguês alemão, destacou-se G. Lessing,
que, de acordo com a interpretação de Szondi, não conseguiu relacionar o
surgimento do drama burguês a um evento social, como a ascensão dessa
classe13.
Em Diderot e para os demais iluministas, essa conexão entre a mudança
do drama como consequência da mudança da sociedade já era mais clara em
muitos sentidos. Ao passo que para os alemães, e entre eles Lessing, as
modificações do drama foram compreendidas de maneira diferente, como
oriundas de um ciclo histórico natural de aparecimento da classe burguesa no
ambiente feudal, o que excluía a importância de uma revolução sócio-política.
Como observa Szondi, Lessing considerou mesmo sem ter tanta certeza que
esse aparecimento estava relacionado à “supressão da cláusula dos
estados”14, que “foi um ato imediato de emancipação e da expansão burguesa
como também a abolição de outros privilégios.” 15, mas não como algo que
interferiria totalmente na organização da sociedade, que continuava a reunir
burgueses e aristocratas num mesmo ambiente. O movimento alemão
correspondente ao Iluminismo francês, conhecido como Esclarecimento
(Aufklärung), nasceu e se desenvolveu sobretudo como um movimento teórico.
Ele tinha muito pouco de prático, pois na prática teatral, por exemplo, ainda era
12
“A finalidade da tragédia não é a resignação, mas o restabelecimento da justiça no mundo da peça e a harmonia na alma do espectador. Qualquer meio que conduza a esse fim é permissível, segundo Hardsdoerfer, mesmo a mistura do cômico com o sério e a total rejeição das unidades” [CARLSON, 1997, p.160]. Citação a exemplo de uma das apropriações dos clássicos, surgida no século XVIII da Alemanha. 13
“Embora seja ocioso repreender Lessing pelo descuido de deslocar as posições do poder politico e econômico – como se houvesse ‘o’ inglês e ‘o’ francês, como se o sujeito normativo da comédia diderotiana fosse sociologicamente visto como idêntico ao da molieresca −, deve-se notar que Lessing não coloca o advento do novo gênero em relação com a ascensão da burguesia. Se essa relação está talvez constituída para nós, o fato de ela não entrar em absoluto no campo de visão dos principais teóricos da Alemanha (enquanto em Lillo e Diderot o drama burguês é legitimado realmente com argumentos especificamente burgueses, embora não com a pretensão da burguesia ao que era reservado até então às testas coroadas e a príncipes) é, no entanto, constitutivo para uma explicação do drama burguês no século XVIII nos termos da sociologia da literatura.” [SZONDI, 2004, p.148] 14
SZONDI, 2004, p.147 15
IDEM.
50
o clássico que dominava. Para Szondi, o caminho possível para relacionar as
diferentes posições dessas culturas e de seus autores está em Benjamin:
O herói, o santo, a vítima, eis – para empregar um conceito de Walter Benjamin – três caracteres sociais, cuja diversidade corresponde às diferenças políticas e sociais na posição da burguesia inglesa, francesa e alemã do século XVIII. A tarefa da sociologia da literatura é menos reencontrar essas diferenças na realidade representada das peças do que tornar claras as mediações – por exemplo, na técnica do drama ou na estética do efeito – pelas quais as obras e suas teorias foram condicionadas historicamente – e isso significa também socialmente. [SZONDI, 2004, P.174]
Brecht teria dito que o caminho seguido pela burguesia alemã, distinto
do trajeto francês, influenciou o drama alemão em todas as instâncias. Uma
vez isento daquela que foi considerada a herança mais importante da
revolução para o mundo − a influência política enquanto luta de classes − o
drama burguês da Alemanha foi designado para outro papel. Szondi explica
através da leitura de Lessing que entre os conflitos tratados pelo novo drama
dentro daquele contexto, a luta passou a ser travada entre burgueses e outros
burgueses, ao invés de ter o peso de uma luta social da classe nova com a
velha aristocracia. Isto, por sua vez, teve implicações diretas na forma
dramática, principalmente quando surgem atitudes como a de Lessing, ao
reaviver e reelaborar o sentido de compaixão (apropriado de Aristóteles) e
tomá-lo como parte fundamental para a ação nas peças:
Os nomes de príncipes e heróis podem dar a uma peça pompa e majestade, mas em nada contribuem à comoção. O infortúnio daqueles cujas circunstâncias se aproximam ao máximo das nossas penetra naturalmente mais fundo em nossas almas; e se temos compaixão por reis, então a temos por eles na qualidade de homens e não como reis. Se sua condição faz suas desgraças algumas vezes mais importantes, não por isso as faz mais interessantes. Embora povos inteiros possam se ver implicados nelas, nossa simpatia exige um objeto singular, e um Estado é um conceito demasiado abstrato para nossos sentimentos. [LESSING, apud SZONDI, 2001, p.158]
Mas por que Lessing quis retornar a antiga compaixão? Em primeiro
lugar, sobre isso é preciso pensar que para ele a Antiguidade despertava uma
vida nova. Essa concepção podia ser útil para uma história da humanidade, na
qual ele acreditava, pois não se falaria mais apenas da compaixão por reis uma
51
vez que a realidade da cidade era muito mais ampla. Ao invés, poderia se
retomar, por exemplo, o sentimento de compaixão para Aristóteles, que
também era mais amplo por ter a ver com o Estado. Ao pensar na retomada de
alguns valores antigos, Lessing estava fazendo uma apropriação de forma a,
não copiá-los, mas buscar neles forças produtivas para novas ideias. E talvez
tenha sido essa a atitude com a qual Brecht simpatizou, pois é assim que ele
procederá também, usando dos clássicos para servir aos novos e potencializar
a ideia de “novo”.
Nota-se que, apesar de não ter visto a mudança do drama como
consequência da nova configuração social, segue em Lessing uma visão que
conferiu ao teatro um aspecto mais humano. Mais uma vez como em Diderot –
se é possível uma aproximação entre os dois autores –, foram tratados os
aspectos comuns aos homens que não necessariamente tinham relação com o
papel desempenhado por eles dentro do coletivo, mas que se direcionavam
para os ambientes intersubjetivos. Isto, por sua vez, permitiu que novamente se
ignorasse algumas das regras rígidas do antigo modelo dramático, que não
cabiam para tratar desses ambientes.
Ainda que Lessing não compreendesse claramente a dimensão de todos
aqueles eventos que ocorriam na época dentro da sociedade, para a arte já era
possível pressentir que alguma coisa mudara quanto à forma e conteúdo do
drama. Então, quando Brecht vai atrás de evidências no trabalho de autores
como Lessing, que certamente investiram em inovações para a ação
dramática, o faz porque quer pensar nessas tentativas, nas quais, mesmo a
consciência ainda não conseguindo abarcar todo sentido da mudança, já
representava para a época uma exceção.
Por fazer um acordo entre o novo e o velho, a exemplo do que havia
realizado Shakespeare, e pelas demais concessões, Lessing é visto na
Alemanha como o teórico do drama alemão da época que mais se aproximou
dos iluministas franceses no que diz respeito a buscar um compromisso com a
verdade. Ele notou algo que para nós pode parecer óbvio, mas que para a
época ainda não era: o dramaturgo deve escrever para seu tempo e mesmo
que se fizessem apropriações de Shakespeare, por eles terem escrito em
culturas diferentes, tinham respectivamente outra forma de se relacionar com a
vida, que não cabia mais ao novo mundo reproduzir.
52
Lessing é um dos primeiros a reconhecer não ser mais possível
empreender uma volta rigorosa aos gregos, porém, considerou inevitável uma
aproximação a Aristóteles, mesmo que feita de forma distinta dos franceses.
Ele viu na tradição o privilégio adquirido pelos antigos conceitos que
pessoalmente julgou úteis para fundamentar sua própria teoria do drama. Na
visão de Steiner, é este o grande triunfo de Lessing: aceitar a descendência
dos gregos, ao mesmo tempo em que rejeita uma reprodução da arte alemã
como a do neoclassicismo francês, que até então predominava.
Logo, o drama em sua nova fase, apesar das inovações, continuou a
buscar nas formas antigas suporte para se firmar. Não é, portanto, isso que
interessa a Brecht nesses autores, mas as temáticas introduzidas a partir daí, e
a importância da função social destas. E mesmo que essas formas estivessem
presentes, já perdiam ali certa credibilidade para o que na época se tornou
mais importante, como falar dos indivíduos em suas vidas privadas.
Ao suprimir a dialética entre vivências públicas e privadas, ao considerar as vontades individuais como supostamente universais, a teoria do drama burguês oitocentista almejou criar nas obras uma unidade sentimental que se comunicasse com o público. Preservada na intimidade dos sujeitos honestos, a autoconsciência se oferece como ponto fixo pelo qual se transmite o sentimento de melancolia diante dos desacertos da vida. [SZONDI, 2004, p.15]
Como já dissemos anteriormente, as referências de Brecht precisam de
uma atenção especial. Ele mesmo chegou a admitir que em seus textos
teóricos muitas informações foram incluídas, sem que a elas desse grandes
explicações, principalmente em seus diários, como quando se referiu a Diderot,
ou a Lessing. No caso de Lessing, buscou-se em outros autores referências a
seu trabalho na esperança de, através delas, compreender por que quando se
referiu a Schiller, Brecht afirmou que “o teatro de Lessing era ainda bem
diferente nesse aspecto.” [BRECHT, 2002, p.190].
Quando o grande impulso pela novidade e a descoberta dos novos ares
da razão passaram, percebeu-se um limite na “unidade sentimental” que era
explorada nos novos temas e que facilmente se esgotava. A perda dessa
unidade começa a ser sentida e, curiosamente, não só no teatro − onde tudo
era mais aparente por se tratar de uma representação que, querendo ou não,
53
não apenas compartilhava a visão desses homens, mas também e
principalmente na vida dos homens. Sendo o sentimento a nova forma da arte,
esta se vê atrelada a uma idealização que ganha mais representatividade em
autores como, por exemplo, Wolfgang Goethe e Friedrich Schiller:
O sentimento de vida dos românticos alemães e, em seguida, do romantismo universal estava determinado pela experiência dolorosa de fragmentação: como intelectuais requintados sentiam-se ‘alienados’ (o termo surgiu entre eles) da natureza e como que despedaçados entres os polos do intelecto e do instinto, do subjetivismo individual e da integração no coletivo, da civilização e da inocência primitiva. Justamente por serem intelectuais requintados aspiravam à simplicidade elementar (daí o exotismo e o indianismo), e justamente por se sentirem intimamente dissociados, ansiavam por épocas que se lhes afiguravam sintéticas e integrais (daí o medievalismo). O indivíduo romântico sente-se aniquilado pelas limitações que a sociedade lhe impõe. (...) ‘A poesia romântica é uma poesia universal e progressiva. Sua destinação não é apenas a de reunir de novo todos os gêneros separados da poesia e de pôr a poesia em contato com a filosofia e a retórica. (...) Só ela é infinita, como também livre, reconhecendo como princípio que a arbitrariedade do poeta não admite nenhuma lei que se lhe imponha. ’(Friedrich Schlegel, 116.° Fragmento, publicado no periódico ‘Athenaum’, 1798-1800) [ROSENFELD, 2011, p.67-69]
A realidade social passava a ser tratada com certa indiferença pelos
dramaturgos e teóricos. Tornava-se pano de fundo, porque no drama
“romantizado” o que passou a predominar foram os desejos postulados pelo
Idealismo Alemão de tratar a vida a partir do olhar do sujeito. Nesse
acomodamento, com medo de que a unidade perdida ficasse cada vez mais
evidente, os autores parecem se preocupar com a liberdade da razão e a
emancipação do sujeito, desviando-se para um mundo recluso e fechado, onde
eles pudessem atender às exigências do novo modo de pensar. Nesse sentido,
o “aburguesamento”, por exemplo, não é considerado por Goethe como cheio
de virtudes, mas permeado por tendências as quais ele acreditava reduzir as
possibilidades do drama16. O autor romântico considerava os temas trágicos,
por exemplo, muito mais dignos de representação por conta de seu alcance
universal.
16
A classe aristocrata perdia cada vez mais o seu posto, e no lugar dela, os burgueses, que não tinham um apego aos modelos clássicos, começam a ser negados por esses autores, como, por exemplo, Goethe e Schiller, que apostavam no idealismo e primavam por uma identidade nacional alemã mais apegada aos valores tradicionais.
54
Dessa forma, Goethe, por exemplo, adota uma concepção de drama
mais fechada, e, ao retomar certos valores do passado, espera conferir àquela
atualidade um sentido mais nobre, mais tradicional. Ou seja, desejava construir
um drama detentor de um poder de enraizamento que modificasse o aspecto
confuso e sombrio adquirido pelo novo homem em sua relação com o mundo e
com a arte. E por sua vez, a tradição a que recorreram os autores alemães
dessa época favoreceu Shakespeare e primou pelos efeitos do trágico.
Vejamos na seguinte citação o que diz Brecht acerca dessa dada “‘renovação’
formalista”, que sempre seria em certo nível artificial:
a grandeza das obras clássicas reside na sua grandeza humana, e não numa grandeza de fachada.(...) Em lugar do pathos autêntico dos grandes humanistas burgueses, surgiu o falso patético dos Hohenzollern, em lugar do ideal surgiu uma idealização (...) O maravilhoso humor de Goethe no Fausto zero não se harmonizava com o pendor solene e olímpico atribuído aos clássicos, como se o humor e uma autêntica dignidade fossem antagônicos! (...) a deturpação chegou a tal extremo – utilizando de novo o Fausto zero como exemplo – que acontecimentos tão relevantes do poema, como o pacto do grande humanista com o Diabo, que é tão importante para a tragédia de Gretchen – sem o pacto ela decorreria de maneira diferente ou não decorreria, sequer –, eram simplesmente omitidos, pois se tinha, provavelmente a ideia de que numa obra clássica o herói podia apenas se comportar heroicamente. Evidentemente, só é possível realizar o Fausto, ou mesmo o Fausto zero, à luz do Fausto transformado e purificado do final da segunda parte, que vence o diabo e que transforma o seu viver infecundo, a sua fruição da vida pelas artes do Diabo, em produtividade; que será desta esplêndida metamorfose se saltarmos as suas fases iniciais? Se nos deixarmos intimidar por uma concepção falsa, superficial, decadente e tacanha de classicismo, não lograremos jamais uma representação viva e humana das grandes obras. O autêntico respeito que estas obras podem e devem exigir requer que desmascaremos o respeito hipócrita, servil e falso. [BRECHT, 2005, p.123,124]
Essa afirmação retoma um processo hereditário que se dá através dessa
renovação dos clássicos e que existiu antes de Goethe, com Goethe e que
continua a existir após Goethe. Cabe então a questão: uma tradição que se
alimenta sempre de outra e que, assim, passa a servir como barreira para aquilo
que surge de novo não estaria na contramão das novas obras de arte e seus
avanços? Mesmo que de certa forma ainda limitados para discutir os recentes
problemas da humanidade, pois ainda faltava elaborá-los, os teatros de Diderot e
de Lessing tiveram uma função importante, no sentido de instaurar a presença
de uma mudança no teatro, a qual já tinha começado. Logo, a retomada pelos
55
autores alemães depois do período da revolução, no século XIX, compreenderá
um ponto fundamental na crítica de Brecht, na medida em que, como se verifica
adiante, essa tradição será responsável por firmar e conservar valores do
passado, que permanecerão como guia para a arte do futuro, tornando-a
carregada de conceitos, cada vez mais difícil de ser superada.
Quando então Brecht se refere ao teatro de Schiller e o compara com
Lessing, como exposto anteriormente, critica negativamente o primeiro, a fim
de estabelecer uma ligação das diferenças entre esses autores com a
mudança ocorrida no teatro alemão a partir desse período. Uma mudança que,
em realidade, equivale a uma volta ao passado: a vitória do romantismo com
seu idealismo sobre os aspectos da teoria de Lessing, que, bastante
influenciado pela erupção dos sentimentos de mudança vindos da revolução,
pensava num teatro mais concreto. Para Brecht, os românticos transportam o
drama para um espaço afastado dessa realidade quando idealizam as
temáticas. Com isso, promoveram uma perda das possíveis mudanças para o
destino do drama, um movimento que Brecht situará como problemático para o
futuro das representações:
Estou lendo Schillers Flucht aus Stuttgart (A fuga de Schiller de Stuttgart), de Streicher. Noto diferenças na maneira de trabalhar que resultam das diferenças entre as teorias aristotélicas e as não-aristotélicas do drama. Schiller arquiteta as cenas dramáticas, também os monólogos, dá grande importância às ‘passagens brilhantes’ e introduz seus efeitos com cuidado. Tudo visa a despertar o entusiasmo, a arrebatar, a encantar, tanto moral quanto esteticamente. Personagens magnânimos, tensas complicações, explosões retóricas, demonstrações de paixões avassaladoras, estimulação de controvérsias de tirar o fôlego – todos esses efeitos se tornam irresistíveis. A misère tem fim instantâneo e a Alemanha tem seu poeta nacional. O fenômeno do teatro novamente se manifestando, com seu efeito-d, diante da nova classe burguesa e da nação, atravessa uma fase em que a apresentação da realidade é totalmente subordinada à teatralidade (o teatro de Lessing era ainda bem diferente nesse aspecto). O interesse vital do gênero humano por sua própria humanidade que pode encontrar expressão no teatro, e forma a base para todas as emoções, pode se ver neste ponto, que é principalmente um interesse pelo teatro, isto é, exclusivamente pela apresentação no palco. Não é, digamos sem rodeios, o que é representado, i.e., o que acontece entre os (e no interior dos) homens, que interessa ao dramaturgo, mas precisamente as emoções que podem ser suscitadas por essa representação. Schiller precisa sempre de muito tempo para encontrar ‘assuntos’ e enredos que possam ‘suportar o peso’ de suas emoções. Não que as condições não lhe interessem, não que ele não proteste apaixonadamente e ofereça sugestões; só que é sobretudo o teatro e
56
a oportunidade de usar assuntos e emoções para o teatro que o faz escrever. Isto dá origem a uma arte que está em contato com a realidade e contém realidade, mas que sacrifica totalmente a realidade à arte. [BRECHT, 2002, p.190]
Schiller idealiza, e com isso leva à cena a beleza das palavras. Brecht
não desmerece sua intenção de pensar um modo de libertar o homem, porém,
ao se preocupar demasiadamente com a perfeição formal, pecou quanto ao
conteúdo. A partir daí não é Lessing que passa a ocupar o lugar de autor que
inspiraria os próximos, mas a glorificada tradição alemã pertencerá a Goethe e
a Schiller. Brecht está preocupado em definir o novo teatro como
essencialmente não- aristotélico e percebe essa glorificação como um tributo à
forma bela dos textos desses autores, que, por transportarem o teatro para o
campo idealístico, tornaram cada vez maior a distância da realidade e
ajudaram também a construir a crise dramática, que só seria percebida mais
tarde. Não à toa, ainda em Estudos sobre teatro de Brecht é possível encontrar
um texto dirigido especificamente a Schiller, intitulado “Será por ventura o
Teatro épico uma ‘instituição moral’?” 17.
No entendimento de Brecht, Schiller está entre os autores da história do
teatro que, ao cederem às adequações formais, trouxeram para a cena frases e
passagens de efeito estético, transformando o teatro num centro das suas
exposições moralistas18. Logo, as novas apropriações dos aspectos clássicos
que nascem no século XIX desviam-se do movimento histórico – ao buscarem
conforto e não o acharem na realidade – e desligam-se dos acontecimentos
reais que podiam ser problematizados no palco. Nesse sentido, o teatro
burguês era diferente quando surgiu: “quase todo o século XIX – excetuando-
se o breve interlúdio romântico – é denominado pelo que se convencionou
chamar de ‘peça bem feita’, adaptação superficial aos padrões rigorosos da
tragédia clássica.” [ROSENFELD, 2011, p.77]
A obrigação moral que Schiller deu ao teatro, ele a justificou com o fato
da Revolução Francesa não ter cumprido uma de suas promessas mais
essenciais: a de trazer liberdade. Liberdade, Igualdade e Fraternidade eram os
ideais da revolução, no entanto, eles não passaram da abstração. O mundo
17
Resposta ao texto de Schiller “O palco visto como uma instituição moral” de 1784. 18
Por outro lado, coloca F. Nietzsche na direção contrária, lembrando dele como um dos primeiros (e únicos) a revelar indignação perante os elementos morais da obra de Schiller.
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posterior não viveu essa harmonia, e, embora bastante prometida pelos
iluministas e seus herdeiros, a ideia de liberdade não havia ainda se firmado
nas consciências. Assim, os indivíduos não podiam e não conseguiam se sentir
seguros com todas as mudanças, porque o pensamento ainda não as
compreendia. Com o passar do tempo, essa sensação só veio a crescer, e a
saída encontrada por Schiller foi de que os homens podiam ser guiados nesse
sentido através da arte. Ele viu no teatro um caminho para abrigar na mente do
sujeito, finalmente, a ideia de liberdade.
Contudo, a investida nas escolhas morais, defendidas de início como
possíveis aliadas a um jogo “descompromissado” da imaginação, resultou
numa imposição moral. Esta, a posteriori, tornou-se problemática, pois para
atingir a responsabilidade moral da arte, Schiller precisou submeter o
compromisso com a realidade, transportando-a para o campo da idealização.
Tudo isso acompanhado do interesse do artista, que, por deixar imperar sua
vontade, consequentemente pôs em risco a liberdade dos outros indivíduos
que se sentiam ludibriados por suas frases bem compostas.
Mais uma vez, a hora da verdadeira transformação na maneira de lidar
com assuntos pertinentes e não reconfortantes da condição humana, ou social,
daquele momento − ou seja, dos problemas referentes a ela − foi afastada
propositalmente para dar lugar a um embelezamento, a uma bolha ilusória de
“certezas” exigidas por esse novo homem. Afinal, se é aceito que a ciência não
trouxe definitivamente essas “certezas”, não caberia à arte camuflar essa
constatação proporcionando uma posição reconfortante em relação à vida? A
arte assume então o papel da esperança:
Desde a Revolução Francesa, quando, como uma torrente, o imenso fluxo dos pobres inundou pela primeira vez as ruas da Europa, houve muitos revolucionários que, como Brecht, agiram por compaixão e esconderam, por vergonha, a compaixão sob a capa das teorias científicas e da retórica insensível. Foram, porém, muito poucos os que entenderam o insulto suplementar que representava para a vida humilhada dos pobres o facto de os seus sofrimentos permanecerem na sombra e não ficarem registados na memória da humanidade. [ARENDT,1991,p.277]
O herói agora tem sobre as costas o grande fardo de carregar uma
moral, de defendê-la com sua imagem. Suas ações são determinadas por uma
58
mensagem universal que vê no acaso um obstáculo à ideia de completude a
que quer retornar. O fim do século XVIII prepara uma tradição que
posteriormente será dirigida por cânones. É neste ponto − o qual Brecht, como
crítico de seu país e de todo tradicionalismo, acreditou ter influenciado na
transformação da Alemanha em um país fascista − que a análise do caminho
percorrido pelo homem passa a ser, segundo ele, decisiva também para o
futuro do teatro e da arte. Mais uma vez os gregos foram para o mundo − e
também Shakespeare; autores de grande influência como Schiller e Goethe,
que também firmaram seus moldes na corrente histórica, influenciando todo o
teatro posterior, principalmente o teatro alemão. E, pelos acontecimentos
dados a partir do século XIX, a influência desse idealismo mostrou as suas
desvantagens:
A estética do Romantismo não se podia considerar ainda afirmação certa e completa dum novo conceito acerca da arte. Todavia era uma renegação enérgica dos velhos formalismos, e dentro dela estava ‘em gérmen’ a verdade que os teóricos do Belo, pouco mais tarde, afirmarão. [SAVIOTTI, p.112]
É claro que não se pode negar que houve algo de muito criativo nessa
exasperação do espírito idealista que, tomado de surpresa pelas novidades do
novo mundo, quis pô-las à prova, quis experimentar e acreditou que
conseguiria. No entanto, os efeitos que daí derivaram não eram os mais
esperados, principalmente quando se percebeu que nem tudo que era teoria de
teatro funcionava na prática. Efeitos de querer cobrir o que a nova estética não
teve capacidade técnica para abarcar foram que novamente a promessa de
inovação retomou o foco da cena e mais uma vez a teoria prevaleceu em
discordância com a prática.
A partir dessa promessa constrói-se uma tradição que debate a vigência
das antigas regras do teatro. Nesse meio, muitos autores que faziam
apropriações dessas obras (uns mais, outros menos) foram reconhecidos por
suas novas interpretações dos clássicos, e prevaleceu a interpretação e a
rigorosidade da Poética de Aristóteles ao invés de se procurar elaborar novos
métodos (que careciam ainda de experimentações). O que decorreu desse
apego muito tem a ver com o Idealismo. A produção intelectual ultrapassava as
59
inovações como as da montagem das peças, ou da produção de dramaturgias
atualizadas, o que também provocou uma luta de egos por parte dos artistas.
Aquilo que se nomeou subjetivismo, ou concepções particulares dos autores,
dominou o nível do teatro, gerando uma crise por não se saber de que maneira
os conteúdos do drama deveriam ser abordados. Depois de Schiller, vários
nomes vieram acrescentar-se ao novo núcleo da tradição alemã − em sua
maior parte nutrida por esse idealismo. Os destaques na Alemanha foram
Hölderlin, Hegel, Wagner, Nietzsche:
A faxina linguística em que me meti com os Epigramas finlandeses dirige naturalmente meus pensamentos para a evolução da poesia. Que decadência! Aquela esplêndida unidade, tão cheia de contradições, desmoronou logo depois de Goethe; Heine seguiu a linha totalmente profana, Hölderlin, a linha totalmente pontifical. Destas, a primeira viu a crescente dissipação da linguagem, porque a naturalidade só pode ser alcançada por meio de pequenas infrações das regras formais. Além do mais, isso é sempre um negócio bastante irresponsável, e o efeito que um poeta obtém por ser epigramático o absolve de toda e qualquer obrigação de se empenhar na busca de efeitos poéticos, sua expressão se torna mais ou menos esquemática, desaparece toda a tensão entre as palavras, e a escolha de palavras passa a ser descuidada: à luz de padrões poéticos, bem entendido, pois a poesia lírica tem seu próprio substituto para o chiste. O poeta só representa a si mesmo. [BRECHT, 2002, p.111]
19
Nessa citação, mais uma vez aparece aquilo que Brecht criticará em
Schiller, que, segundo ele, desencadeou uma série de autores com as mesmas
pretensões: de reservarem a si mesmos os efeitos e os alcances possíveis da
poesia. Como contraponto dessa tradição de autores, Brecht vê em Hegel uma
exceção, embora ele mesmo não leve adiante a teoria estética do filósofo. Ao
mesmo tempo, se por influência de Karl Marx ou não, o certo é que ainda
assim, reservou a essa teoria uma notável admiração20:
19
Nas notas de seu diário, do qual foi retirada a citação, vemos uma série de autores a que ele se dirige indiretamente. Realistas ou idealistas, isto nos mostra que mesmo não concordando com muitas vertentes, Brecht ainda assim se utiliza de tudo aquilo que poderá ser proveitoso para seu teatro. No caso, a citação se encaixa aqui quando falamos do idealismo, afim de mostrar o que pensa Brecht disso. Acerca do realismo, será propriamente tratado no próximo capítulo, de que é tema central. 20
Talvez mais interessante que a admiração por Hegel é admiração que Brecht parece ter por Friedrich Nietzsche, que, embora não se pretenda desenvolver tal relação nesta dissertação, ajuda a refletir sobre o modo como lida com a moral. Salvo o que mais tarde proveio de uma equivocada apropriação da obra de Nietzsche, no exemplo do confronto com Schiller, Brecht destaca Nietzsche como o primeiro a fazer uma crítica dura e coerente aos aspectos morais desse tipo de teatro.
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A reprodução que Hegel faz da teoria aristotélica da arte na introdução à sua estética é de uma beleza extraordinária. O enunciado chave me parece ser este: ‘Assim estabelece-se como objetivo final de seres humanos que vivem juntos, e do Estado, que todas as potencialidades humanas e todas as energias individuais devem desenvolver-se por todos os lados e em todas as direções a fim de alcançar expressão. Mas essa visão formal logo suscita a questão da unidade em que essas várias formações estarão contidas, e da meta única que lhes servirá de conceito básico e objetivo final. Assim como o conceito de Estado, o conceito de artes também suscita por um lado a necessidade de um alvo que seja comum às partes individuais, e por outro lado a necessidade de um alvo substancial preponderante. [BRECHT, 2002, p.27]
Mas dentro do aspecto da tradição, desenvolve-se já na Alemanha de
Goethe, Schiller, Kant e Hegel aquilo que se denominou aspecto negativo da
admiração destinada aos antigos. Tal admiração passa a gerir a formação do
homem racionalizado como aquele que quer a todo custo formar sua figura à
“imagem e semelhança” dos gregos “evoluídos”. Estando presente na
educação e nos valores avançados da sociedade científica, esse modo de
formação atinge diretamente o olhar, o gosto dos homens e os leva a acreditar
num ideal de perfeição, que só poderia trazer consequências graves quando
transportado para um ambiente artístico.
Além de aprisionados, os artistas passam a buscar uma arte cada vez
mais separados da intenção, de um sentimento artístico real – pensando que
ainda agora se falou da arte enquanto fenômeno – antes de qualquer coisa
baseada na forma. Ao mesmo tempo, que forma deveria ser essa que guiaria
os olhares racionalizados da sociedade? Novamente, seria o ideal grego, e
nesse sentido, não houve mais reflexão a não ser procurar meios, subterfúgios
para convencer as mentes humanas de que aquilo sim era arte. Assim, é em
Nietzsche citado por Brecht que aparece uma visão que antecipa a sua crítica:
Em suma, para Nietzsche nossa educação é um logro, não somente no plano individual, mas no plano da cultura histórica. O irreparável é este déficit de vida em benefício do adestramento secular, tendo em vista a produção do homem domesticado, ‘animal gregário, ser dócil,
Agora sob outro aspecto, que é o fascínio de Nietzsche e Hegel pelos gregos, assim como entrará também Wagner (que como sabemos, teve seus ideais mais tarde totalmente incorporados pelo Nacional Socialismo), é interessante trazer aqui o dado de que Brecht também partilhava do mesmo arrebatamento. Ele também possuía um fascínio pelos gregos.
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doentio, medíocre, o europeu de hoje’. O homem, este ‘aborto sublime’ está assim pronto a reunir-se à multidão indiferenciada dos indivíduos submetidos à moral, à religião, às mistificações ideológicas, submetidos a estas tutelas que são o Estado, a Igreja, ou então a estes poderes espirituais que são a Ciência e a Moral. [JIMENEZ, 1999, p.245]
Pensando no desenvolvimento de uma mentalidade e nas
consequências desta no que diz respeito à vida do homem e como acabará por
se relacionar com a arte, é questionável a premissa que atribui somente a Hitler
a origem dos elementos de um pensamento como o nazista. Os ideais que
promoveram o tal nacionalismo exacerbado já estavam presentes na
constituição da cultura alemã muito antes da ascensão do partido ao poder.
Outro fato é que os alemães conheceram, antes de tudo se tornar absurdo e
irreversível, a sua fase de ouro e de maior desenvolvimento de uma
nacionalidade, de um espírito alemão, o que os fez acreditar, ou pelo menos
querer acreditar, que eles eram a grande cultura do mundo e por sua vez uma
cultura apoiada numa descendência Greco- Romana. Brecht volta-se
totalmente contra esta pretensão do movimento nacionalista alemão:
A tradição não se apaixonou por este aspecto ‘engajado’ da filosofia da arte dos antigos. Ela, o mais das vezes, ignorou esta implicação da arte na vida concreta dos indivíduos. Preferiu promover e legar à posteridade os aspectos mais lisonjeiros do mito grego: a ‘calam grandeza e a nobre simplicidade’ da arte assim como a grande elevação espiritual das filosofias platônica e aristotélica, levemente afetadas por séculos de interpretações se não duvidosas, pelo menos interesseiras. [JIMENEZ, 1999, p.229]
Ou ainda como observou Nietzsche já em sua época:
No drama wagneriano, sopra o espírito trágico dos gregos anterior à sua própria decadência. Pelo menos, ele o espera. Esperança logo desenganada já nas primeiras representações da Tetralogia no Festspielhaus de Bayreuth. Os espectadores não são gregos ressuscitados que aplaudem as grandes missas wagnerianas, mas sim bons alemães que ainda não souberam ‘superar’ sua vitória sobre a França: ‘O momento em que começava a rir secretamente de Richard Wagner foi aquele em que ele preparava para desempenhar seu último papel diante daqueles bons alemães, apresentando-se como um fazedor de milagres, como um salvador, como um profeta e mesmo como um filósofo.’ Nada naquele teatralismo preparado para seduzir as multidões entusiastas poderia aparentar-se à saúde das festas dionisíacas. [JIMENEZ, 1999, p.250]
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Finalmente, chega o momento de tentar encontrar uma solução para as
perguntas que levaram à escrita deste capítulo e ao enveredamento pela história
do teatro. De início pensou-se o seguinte: por que Brecht critica o modo
aristotélico de representação? Com que intuito ele retoma determinados períodos
históricos para fundamentar a sua crítica à permanência desse modelo?
Percorreu-se um extenso período da história até aqui e foi necessária
uma recorrência para além das referências de Brecht, a fim de compreendê-lo.
Assim, voltou-se à sua crítica, ponderando se esta podia ser entendida como
uma negação de alguns autores e teorias; ou ainda se houve, dentre as
sinalizações feitas por ele e durante sua volta histórica, momentos em que se
concentrou nas exceções que o ajudariam a justificar, com maior critério, a
crença de que houve mudanças, propostas por essas exceções, que ao
reverem as estruturas do teatro fizeram contraponto ao modelo tradicional,
mesmo que por breves períodos e com um alcance prático limitado:
Sobre a concisão do estilo clássico: quando omito muita coisa numa página conservo a palavra noite, digamos na frase ‘quando a noite chegou’, sua plena significação na mente do leitor. A inflação é a morte de toda a economia. Para as palavras é melhor que dispensem seu séquito e se enfrentem umas às outras por sua própria conta e com a máxima dignidade. E é totalmente falso dizer que os clássicos esquecem os sentidos dos leitores; pelo contrário, contam com eles. Nossos sensualistas são como a medula espinhal: para experimentar qualquer sensação nas solas dos pés têm que andar emproados como os Napoleões. [BRECHT, 2002, p.104]
Diante de tudo o que se pode entender por ponto de afinidade de Brecht
com esses autores, verifica-se que além dele não ter dirigido a sua crítica
especificamente ao teatro dos gregos, não negou a importâncias das obras
clássicas e tampouco se concentrou num critério de julgamento, considerando-
as boas ou ruins. O olhar de Brecht está sempre atento a essas simplificações,
opondo-se a análises desse tipo. É claro que ele tem uma afinidade maior por
certos autores da história, mas em sua análise, está mais preocupado em
destacar quais os eventos que permitiram ao drama instalar-se na crise, para
que ele mesmo não os repetisse. Brecht defende inclusive a representação dos
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clássicos − quando julgado necessário −, mas pelo olhar distanciado do
presente, sob os efeitos formais do novo teatro21:
Encontramos no domínio da representação teatral uma tradição que, impensadamente, se atribui a um patrimônio cultural hereditário, se bem que essa tradição apenas sirva para prejudicar a obra, que constitui o autêntico patrimônio hereditário. Ao fim, portanto, o que efetivamente tem foros de tradição é o progressivo dano que se tem infligido às obras de arte. Cada vez mais, a bem dizer por desleixo, tomba maior quantidade de pó sobre as grandes obras da pintura antiga, e, quando se fazem reproduções delas, reproduzem-se também, mais ou menos diligentemente, as manchas de pó. Perde-se, assim, sobretudo, a frescura original da obra clássica, o caráter que possuía outrora, surpreendente, novo e criador, e que era uma das suas características essenciais. A forma de representação tradicional coaduna-se ao comodismo dos encenadores, dos atores e do público, simultaneamente. Substitui-se a profunda emotividade das grandes obras por um mero temperamento dramático, e o processo de cultura a que se submete o público é, em contraste com o espírito combativo dos clássicos, tíbio, acomodatício e com fraco poder de intervenção. Com o tempo, tal circunstância origina, naturalmente, uma terrível monotonia, para a qual os clássicos em nada contribuem. (...) É preciso ter tudo isso em mente, quando nos dispomos a representar uma obra clássica. Temos de encarar a obra de uma forma nova, não devemos nos apegar à perspectiva decadente, fruto do hábito, através da qual esta nos foi apresentada nos teatros de uma burguesia decadente. Não devemos aspirar a ‘inovações’ de caráter forma, alheia à obra. (...) A grandeza das obras clássicas reside na sua grandeza humana, e não numa grandeza de fachada. [BRECHT, 2005, p. 121-123]
O trecho acima, por exemplo, compõe o texto, “A obra clássica
intimidada”, escrito em 1954 e é importante para que se possa perceber que
não só o autor não negou os clássicos como se preocupou em destacar a
importância destes. A discórdia de Brecht é com a tradição. Esta, que se
ocupou da reprodução de obras que de alguma forma contrariava o passado,
impedia a origem de uma nova arte porque não permitia transformações, mas
se posicionava pretensiosamente contrária a essas mudanças, conservando
sempre os aspectos próprios dos antigos modelos.
Brecht, que começou o seu trabalho quando o drama já estava imerso
numa crise profunda, quis defender o novo modo de teatro, que praticamente
se impõe, confirmando a sua importância ao empreender a sua análise
21
Essa questão será mais bem compreendida quando se tratar do que ele pretende com o realismo (segundo capítulo), porém, para adiantar, em se tratando da volta aos clássicos, pode-se dizer que Brecht entende que a compreensão do passado poderia ser feita pelos indivíduos, se num retorno a fatos desse passado, eles pudessem tirar dali as suas próprias conclusões.
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histórica. O que ele deduz dessa análise é que, quando a tradição barrou o
avanço de novas ideias, aquilo podia ser considerado uma “falha” que impedia
o despertar de novas experiências no drama. Para que ele pudesse reviver,
Brecht precisou encontrar um modo de representação que o transportasse para
longe da tradição, da pompa formalista. Era preciso afastar o teatro novamente
das “falhas” derivadas de um apego fantasioso ao velho mundo. Assim, como
elas diziam respeito a essa constante reprodução dos clássicos e apropriação
do modo aristotélico de representação, era preciso criar um novo modo, que
ele conclui como sendo um modo não-aristotélico, porque se oporia a todas
aquelas regras ditadas pela tradição, portanto, por essência aristotélica.
65
1.3 Brecht e Aristóteles
Abranger a dramaturgia ocidental sob o conceito de dramaturgia aristotélica é viável na medida em que se tratar de apresentações imitativas (nachahmende Darstellungen), segundo as quais não somente os artistas imitam a representação de certos homens, mas também como uma apresentação em que a imitação dos artistas e, com ela, a imitação dos homens representados e imitados ocorra por meio de um ato de empatia. No decorrer dos séculos, diverso povos produziram dramaturgias que se distinguem facilmente umas das outras. As mais importantes seriam a grega, a dramaturgia dos mistérios, a dramaturgia dos jesuítas, a espanhola, a elisabetana, a francesa clássica e alemã do século XVIII. A forma de transitar entre o palco e a plateia, contudo, sempre foi a empatia aristotélica. [BRECHT, 1998, p.169-70]
1
Aristóteles confere à imitação e à catarse poética uma função de educação crítica. É evidente que suas considerações ‘estéticas’ dependem de uma teoria da verdade e do absoluto, mas seria totalmente insuficiente expor o conceito platônico de belo ou a teoria aristotélica de mimese unicamente do ponto de vista filosófico ou metafísico. Isto seria fazer pouco caso da influência considerável que estes princípios, estéticos e artísticos, nascidos na Grécia antiga, exerceram sobre o conceito de arte no Ocidente, do pensamento medieval até as revoluções industrial, cientifica e técnica da segunda metade do século XIX. [JIMENEZ, 1999, p.193]
Apesar da crítica de Brecht à tradição estar endereçada especificamente
a um teatro que, como se viu, se desenvolve depois da Revolução Francesa −
o teatro burguês −, não se pode esquecer que na base desse desenvolvimento
sempre esteve presente, como ponto de apropriações das mais diversas, a
obra de Aristóteles, conforme se mostrou no primeiro item deste capítulo.
Afinal, foi graças ao filósofo grego que o teatro teve a sua primeira teoria.
Desse modo, torna-se incontestável, através da leitura de alguns escritos de
Brecht sobre esta, a existência de uma oposição a alguns conceitos que se
estabeleceram ali e que desde então se propagaram com base naquela obra.
Há, no entanto, certos limites nessa oposição, e a proposta desta parte é
pensar quais então, seriam eles, pois percebeu-se, com o estudo de Brecht e
pelas leituras de seu trabalho, que esse ainda é um problema em aberto
quando se fala em Teatro Épico. Mais ainda porque, segundo a própria
denominação dada por Brecht, ele desenvolveu um teatro “não-aristotélico”.
1 Este trecho foi selecionado e traduzido por Luciano Gatti. Retirado de Werke. Große
kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe. Band 22-1, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1988.
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Este processo, contudo, não aconteceu do nada. Brecht, apesar de
saber das diferenças entre a dramaturgia aristotélica original e a dramaturgia
aristotélica construída com o tempo, nota que da mais antiga à recente, sempre
existiram alguns pontos e que diziam respeito a um sistema de regras formais.
Quando quer buscar em Aristóteles algumas causas para o desenvolvimento
do drama ter se tornado tão problemático, o fez porque, assim como com a
tradição, queria descobrir modos de romper finalmente com essa estrutura há
tanto sustentada dentro do teatro. Quais partes daquilo que compreendeu de
Aristóteles apresentam-se como ações problemáticas para um drama, do modo
como quis construir, e quais ele mesmo utiliza a favor de sua nova construção?
Essa é uma questão polêmica, pois, como se viu nos itens anteriores do
capítulo, Brecht não se reportou diretamente ao teatro que existia na Grécia,
mas rejeitou a vigência de um único modelo na história, criado a partir dessa
mesma teoria sobre a poesia, a teoria aristotélica.
Quanto ao retrocesso que realiza, de início Brecht enfrenta um problema
quanto ao limite de sua própria crítica. Há algum tempo já se sabia que era
impossível pensar na concretização de tragédias como as dos gregos, num
mundo posterior a eles. Ainda assim, continuavam as inúmeras tentativas de
retomar, de forma rigorosa ou “livre”, o antigo modelo. Por esse simples (mas
às vezes muito pouco notado) motivo, a crítica de Brecht deve ser separada
das interpretações que, segundo José A. Pasta, alcunham Aristóteles o
principal alvo de oposição de Brecht. É importante separar os limites dessa
crítica, para tornar mais ampla a discussão da proposta brechtiana:
Pode-se fazer hoje um espetáculo com o Édipo Rei? Se se pretende remontar a autenticidade imediata da experiência ática, o impasse radical revelar-se-á incontornável. Mesmo numa peça com um enredo ‘fácil’, como o Édipo Rei, essa crua história apenas encobre para o espectador hodierno o próprio sentido da tragédia: ela se transforma numa historieta pequeno-burguesa, que se repete em todos os apartamentos das grandes e das pequenas cidades – o elemento trágico desaparece. Morre a deus, morrem as Eríneas e todas as forças manipuladoras do destino. Desse outro ‘personagem’ maior, que é a peste, desnudaram-se todos os segredos: a ignorância já não mata. E mesmo a realeza do rei tornou-se elemento decorativo. Mas a tragédia antiga é essencialmente política: se Édipo não é rei, nem pode ser trágico. Está claro: a montagem atual de uma tragédia grega não faz um espetáculo, não vai além de uma tentativa que voa às cegas, um experimento talvez interessante. [BORNHEIM, 1992, p.226]
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Desde a difusão da obra de Aristóteles, que se deu mais fortemente na
Renascença, muitas disputas surgiram quanto às interpretações do grego. Sua
famosa obra, Poética, ficou conhecida como a primeira teoria a oficializar as
definições das formas da tragédia e da comédia, que já eram antes praticadas
nos palcos. Mais tarde, todos aqueles que lidaram com teatro se depararam
com esses pressupostos e disso criou-se uma dependência que pôde ser
verificada nuns períodos mais, noutros menos ao longo da história do teatro.
Quando, então, Brecht se voltou para essa teoria, buscou destacar “pontos-
chave” desta (já apropriada), os quais julgou terem passado a desempenhar
um efeito problemático sobre o público, ao receberem determinada atenção.
Consagrou-se no teatro uma tradição que não conseguia mais escrever
tragédias como as da Grécia. Ao invés,, por querer continuar atrelada a esse
sistema de regras clássicas – porque este gerava conforto e certeza –, tentou
todos os modos de criar através da reprodução destas a ilusão de um mundo
ainda comandado pelo mito, mesmo que esse mundo na prática já não fosse
manejado dessa forma. Com o olhar sobre a história, Brecht julga um tipo de
apropriação como essa grosseira e superficial, porque sempre se baseou numa
forma determinada − ainda que ela não fizesse mais sentido − apenas para
servir aos interesses das classes dominantes das sociedades do Ocidente.
Raymond Williams coloca as seguintes perguntas sobre essa dependência:
O que parece estar em jogo mais exatamente é um tipo específico de morte e de sofrimento e uma específica interpretação dessas duas questões. Alguns dos acontecimentos e reações são trágicos, outros não. Por mera influência daquilo que foi sancionado e por causa de nossa avidez natural em aprender, é possível dizer e repetir essa frase, sem que uma contestação real seja feita. E estar, a um só tempo, dentro e fora de um tal sistema implica uma redução ao desespero. Porque ainda há duas perguntas que precisam ser consideradas. É realmente correto afirmar que aquilo a que chamamos tradição carrega um significado tão claro e unívoco? E, seja qual for a nossa resposta a isso, quais são as relações reais que deveríamos ver e seguir entre a tradição da tragédia e o tipo de experiência a que estamos sujeitos em nossa própria época, e à qual nós, de modo simplista e talvez erroneamente, chamamos trágica? [WILLIAMS, 2002, p.31]
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Pleno século XX. a arte e o teatro passavam por diversas
transformações, e, entre as inúmeras tentativas de adaptação ao novo mundo,
essa perspectiva de mudança sempre se dava no limite da reforma, ou seja, no
limite das releituras que retornavam às características elementares de origem
nos gregos. É então nesse momento, quando Brecht decide “desbancar” os
ideais clássicos tradicionais e propor uma nova forma de fazer teatro, não-
aristotélica, não à toa, que essa questão se torna uma espécie de karma em
seu caminho, e que o irá acompanhar através das críticas posteriores de sua
teoria, vivas até hoje.
Em resumo, o que então ele pretende quando critica o drama aristotélico
é alcançar a ruptura desse teatro. Ao mesmo tempo, afirmou também que o
modo de dramaturgia aristotélica poderia continuar existindo, ou seja, que ele
não queria acabar com toda essa espécie de representação, mas acreditava
que havia outro caminho possível, totalmente o inverso de muitos
“conceitos/práticas” conservados pelo tempo. Porque esteve muito mais
preocupado em dar ao teatro uma nova leitura, pensando sempre adiante, não
se deteve em questões que exigiam um rigor teórico, muitas vezes apenas
tratando de enumerá-las. Essa análise também foi feita por Bornheim, − que
enfatizou a importância da prática para Brecht − que fez com que ele visse
para além dos autores alemães e do teatro que se desenvolveu no país,
também e com foco em determinadas questões, a figura de Aristóteles:
é essa prática que acaba funcionando em sua cabeça – prática que exibe o Aristóteles presente nos palcos alemães a partir da interpretação de Lessing e de suas subsequentes metamorfoses: era a prática aristotélica alemã que Brecht via em cena. O fato, entretanto, não autoriza que, em nome de Lessing e daquela prática, se esqueça o velho Aristóteles dos tempos áticos. [BORNHEIM, 1992, p.213]
O que fez propriamente com que Brecht se envolvesse com a leitura de
Aristóteles para romper com o modelo dramático, ao invés de simplesmente se
deter na luta contra o teatro burguês? É que através de sua análise, Brecht
considerou que alguns efeitos dos mais fundamentais para caracterizar um
teatro fantasioso e alienante surgiram com Aristóteles – a mimeses, a empatia,
a catarse – embora o desenvolvimento problemático tenha sido posterior.
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Justo, portanto, que ele quisesse, mesmo que indiretamente, ao menos rever
essas disposições iniciais, conhecendo os conceitos em sua base. Em outras
palavras, pode-se dizer que Brecht “cortou o mal pela raiz”. Ele acreditou que
indo às origens – assim como fizeram autores como Lessing, que quiseram
retomar as verdadeiras regras aristotélicas – seria possível finalmente rebater
aquela estrutura.
Bornheim destaca ainda que, embora o centro da crítica de Brecht fosse
os palcos alemães, há uma crítica a Aristóteles que, por ser mais indireta, soa
para muitos intérpretes (inclusive para ele) como uma análise superficial, em
que ele contesta aquilo que, por razões históricas, é incontestável. Como se
Brecht cometesse uma espécie de anacronismo. Disso, a pergunta que fica é:
até que ponto Brecht se opõe aos conceitos presentes na Poética?
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1.3.1 O jogo emocional e perigoso da empatia
A tragédia grega da forma como foi descrita por Aristóteles tinha por
objetivo levar o espectador a um determinado estado emocional. Brecht
entende esse jogo como algo que sempre foi perigoso para a relação entre
palco e plateia. O conceito de empatia (Einfühlung), que dentro da tragédia era
o caminho encontrado que permitia levar o público ao resultado catártico –
esperado num fim trágico – desenvolveu-se de tal forma que, principalmente a
posteriori com as apropriações, o teatro, seja na representação de uma história
ou de um acontecimento, passou a se situar totalmente dentro dessa relação
que Brecht acreditou se sustentar na ilusão. Com base nisso é que resolve
nomear o seu trabalho como a criação de um teatro “não-aristotélico”:
Mas num breve ensaio, escrito provavelmente por volta de 1935, e que pretende ser uma ‘Crítica da Poética de Aristóteles’, Brecht prende-se à catarse, definida por ele como ‘a purificação do espectador do terror e da piedade através da imitação de ações que suscitam terror e piedade’ (III, 2), e o seu resultado estaria na empatia que desperta no espectador. Está precisamente nesse processo provocador da empatia o traço decisivo que determina a dramaturgia aristotélica, segundo Brecht, ‘sendo indiferente à utilização ou não das regras introduzidas por Aristóteles’ (III,2). A questão toda termina restringindo-se, assim, à concentração dos efeitos da ação ao nível das emoções – e é exatamente isso que deve ser rejeitado por uma dramaturgia não-aristotélica.[BORNHEIM, 1992, p.215]
A catarse (Katharsis) – a finalidade trágica – foi mencionada por Brecht
como um obstáculo à tentativa de criar um teatro que construísse uma nova
relação com o público. Para compreender melhor isso é necessário, no
entanto, fazer algumas separações. Exclusivamente para os gregos, essa
finalidade trágica tinha o sentido restrito e deveria purificar as emoções
suscitadas durante a representação, as quais segundo Aristóteles deveriam ser
respeitadas, sendo sempre a compaixão e o temor. Havia um processo,
conhecido hoje como ritualístico, para levar o público a sentir essas tais
emoções; entre elas estava em primeiro lugar a mimeses2, que aliada a outros
2 Essa mimese artística, grosso modo, é uma imitação elaborada com fim de atingir seus alvos,
que, neste caso, são os temas da tragédia ou da comédia. Seja imitando situações nobres e
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artifícios utilizados na tragédia (como a música) tinha a intenção de criar um
vínculo emocional com o público, o que recebeu o nome de empatia.
Brecht também procura separar o sentido do efeito da empatia
despertada nos espectadores, através da ação mimética no teatro aristotélico
praticado pelos gregos – em que havia uma ingenuidade quanto à ação sobre
os espectadores – daquele que ela adquiriu mais tarde, passando a uma ação
manipulada para exercer poder sobre as mentes dos indivíduos. Esse,
entretanto, é um desenvolvimento do alto capitalismo, que deu origem a
versões cada vez mais exageradas dessa manipulação, tornando-se o grande
exemplo que se tem: o poder conquistado pela mídia nos dias atuais.
A empatia de um modo mais geral é a identificação do sujeito com as
personagens e com as situações representadas, o elo mais poderoso entre o
palco e plateia, provocado pela ação mimética. Esse elo, porém, teve sempre
muito pouco de racional, e é nesse ponto que Brecht investe mais ferozmente
contra a prática de um teatro aristotélico. As emoções provocadas por essa
identificação na tragédia tradicional deveriam resultar na catarse. Sobre ela, diz
Brecht:
Nós designamos uma dramaturgia como aristotélica quando esta empatia é provocada por ela, sendo inteiramente indiferente se com ou sem o emprego das regras mencionadas por Aristóteles. O ato psíquico singular da empatia é realizado de maneira muito variada no decorrer dos séculos. [BRECHT, 1988, p.171-2]
3
Mas em que sentido essa empatia (identificação) pode ser tão grave que
se tornou alvo do combate de Brecht da teoria aristotélica? Em primeiro lugar,
Brecht percebe que ela não é algo específico do teatro burguês, mas que
sempre existiu: “A forma de transitar entre o palco e a plateia, contudo, sempre
foi a empatia aristotélica” [BRECHT, 1998, p.169-70]4. Salvo as controvérsias
acerca do sentido próprio que a empatia tinha para Aristóteles − porque
dignas de respeito, ou apresentando cenas ridículas sobre os homens. De qualquer forma, quando se trata de arte, ela nasce com a intenção de produzir ilusão. Caso contrário, não seriam tratadas por tanto tempo como as melhores representações, aquelas que mais fielmente imitaram o objeto abordado. Não se atribuiria àquelas que “enganam” melhor o mais alto valor. 3 Trecho traduzido por Luciano Gatti em Werke. Große kommentierte Berliner und Frankfurter
Ausgabe. Band 22-1, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1988. 4 IDEM.
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sempre se dependeu da interpretação da obra do filósofo, por terceiros −, o
que importa para o trabalho e as investigações de Brecht é que ela toma o
centro de sua crítica. Pois, ao se basear num elo emocional entre o espectador
e o que acontece no palco, sempre se manteve fora do teatro o julgamento
crítico dos acontecimentos retratados.
A identificação consiste em um “colocar-se no lugar das personagens”
por parte dos espectadores, que ao se deterem nesse exercício passam a
sentir o que estão vendo antes de pensar sobre, e isto, adiante, principalmente
com a chegada à estrutura capitalista burguesa, acabou se transformando
numa fonte poderosa de alienação e controle sobre os indivíduos. Além disso,
Platão já havia atentado para o perigo que essa imitação (a mímesis) poderia
ter sobre os homens, servindo como uma arma para tais manipulações5.
Conduzidas de uma forma em que se privilegiam os sentimentos, as
pessoas são incapazes de tomar distância dos acontecimentos retratados na
representação, como nota Brecht. Há um vazio que se instala no pensamento,
pelo fato dele não ter sido convocado, e é claro que isso se deve
primeiramente a Aristóteles (apesar de ser preciso insistir sempre nas
derivações), pois para o filósofo a catarse era o fim esperado da tragédia.
Porém, essa é mais uma interpretação. Ainda que muitas tenham julgado que
Aristóteles enfatizou o efeito da catarse, ele, no entanto, tratou dela apenas
indiretamente em Poética, ao passo que na República ela já tinha aparecido
5 Para Platão, esse conceito não existe em detrimento de uma relação inofensiva e benéfica,
mas realiza-se como uma cópia que, e enquanto tal, tem por objetivo enganar os indivíduos. Para alertá-los e com o intuito de que a ela se faça frente, Platão distingue dois tipos de mímesis. De um lado, a mimese natural, inerente a todos os homens, e de outro, agora seguindo a concepção de Aristóteles, aquela que. por parte de seres com vocação para improvisar e dar a ênfase desejada combinando com “harmonia e ritmo”, faz nascer a poesia. Platão acredita que a mimese é perigosa em primeiro lugar para os indivíduos que, sem conhecimento, não são “esclarecidos” quanto à própria natureza. Dessa forma, tomados por uma aproximação sentimental, deixam-se levar por aquilo que lhes é representado nessa mimese artística, que, como ele acredita, ilude e por isso é capaz de atingir a inteligência desses homens. Ao que consta, esse sentido se subverte em Aristóteles e depois é possível vê-lo ser apropriado, propagado como princípio fundamental do teatro e depois refutado por Brecht. Uma vez aceita como natural ao homem e usada em prol da educação também na arte, a produção mimética pode ser vista sendo empregada com a finalidade que havia sido negada por Platão. Ela (a mimeses) assume assim, um sentido negativo também para o homem dito consciente. E quando Platão diz que a inteligência desses cidadãos é atingida por esse efeito, vê-se nisso uma aproximação da insistência de Brecht e daqueles que como ele, combateram a alienação, de que um comportamento assim da arte em relação ao seu público só pode levá-lo a se tornar não ativo, participando da sociedade, mas um escravo de sua ignorância, que ao contrário de combatida é nutrida pela mimeses.
73
mais claramente definida e relacionada à música. Sobre essa “confusão”,
Bornheim considera-a uma falta de Brecht e atenta:
Não que o problema da força das emoções não exista em Aristóteles, e que ele não tenha sido crítico em relação a tal força. Num texto do estagirita, que Brecht certamente não chegou a conhecer – se o tivesse conhecido certamente ter-se-ia servido dele com fartura, pois parece adaptar-se como uma luva às críticas brechtianas e até mesmo à própria situação da dramaturgia burguesa – e que se encontra na parte final do tratado intitulado Política, Aristóteles se refere justamente à violência das emoções. O trecho é o mais importante dos escritos de Aristóteles sobre catarse, e começa prometendo uma análise do tema a ser desenvolvida no ‘tratado sobre poesia’; presume-se que essa promessa, ou bem não foi cumprida, ou então, se foi, o texto perdeu-se. [BORNHEIM, 1992, p. 219-220]
Ou seja, hoje ainda existem dúvidas tanto em relação ao posicionamento
de Brecht sobre a leitura de Aristóteles estar correta, quanto ao fato de em
Aristóteles as coisas serem mesmo da forma como ficaram conhecidas, como é o
caso da catarse. De qualquer forma, uma anunciação foi feita pelo grego, e Brecht
deixa claro que não busca naquela origem a mesma empatia desenvolvida pelo
alto capitalismo, mas que seu objetivo é atingir a estrutura, atingir a base com
profundidade, a fim de não repetir o mesmo movimento superficial das muitas
reformas feitas dentro do teatro. Portanto, para ele, a imposição de um efeito
como a catarse coloca em jogo todo o rumo da representação, que já se
encontrava aprisionada a uma postura que esperava causar no espectador,
apesar de não ter o sentido negativo como o do teatro burguês.
Tanto atores quanto espectadores são afastados da realidade para a
construção de histórias ilusórias. Há um reconhecimento de uma realidade,
porém, ela é manipulada para concentrar-se no jogo emocional, onde o lado
crítico é claramente deixado de lado:
A conclusão está longe de permitir, contudo, que se avance sem mais que a tese de Brecht esteja errada, pois realmente existe hoje uma farta dramaturgia na qual a hegemonia das emoções implica até mesmo um certo comprazer-se na ignorância. [BORNHEIM, 1992, p.219]
Brecht não poderia, portanto, ser a favor de uma dramaturgia que tem por
objetivo estabelecer esse tipo de ligação entre palco e plateia. O problema das
74
interpretações feitas por ele, ao que se conclui, é que, por não conseguir
desvincular o seu olhar atento das mazelas provocadas pelo teatro burguês,
quando propõe um olhar sobre os antigos, a fim de assim fazer as distinções
necessárias entre a apropriação e o original, cai na armadilha de sua rejeição se
tornar em certa medida falsa. Como diz Bornheim, a rejeição atinge a dimensão
do superficial e não consegue alcançar a profundidade crítica desejada.
De qualquer forma, não é possível fazer uma cisão entre um Brecht
descontente com a burguesia, seu teatro e seus valores, e aquele que busca
nas origens do teatro razões para que aquilo que teve início ali se
desenvolvesse da forma como se desenvolveu. Pode-se pensar num Brecht
que agirá em relação à prática teatral de maneiras distintas, mas o seu
posicionamento contrário ao modo tradicional de teatro é e sempre será um
posicionamento radical, pensando sempre no momento de sua realidade:
Não se trata de encontrar em Aristóteles, como modo de recepção da obra de arte pelo espectador, a empatia que ocorre hoje como empatia com o indivíduo do alto capitalismo. Temos, contudo, nos gregos, aquilo que sempre entendemos por catarse, em cuja base podemos supor alguma forma de empatia, e da qual decorrem entre nós circunstâncias muito distantes. A postura do espectador concebida como inteiramente livre, crítica, e a partir de soluções puramente terrenas para as dificuldades não é a base para catarse. [BRECHT, 171-2]
Se, no entanto, para esclarecer a que tipo de dramaturgia Brecht se
contrapõe seja necessário vasculhar na história a sua origem e percussores,
pode-se então dizer que ela é a dramaturgia aristotélica, porque primeiro foi
formulada por Aristóteles. Por outro lado, não se poderia pensar − assim como
se fez com o marxismo, ou com o próprio Brecht − que tal dramaturgia tratava-
se de um modelo fiel ao original. Na verdade, consistia em uma generalização
cuja natureza se deve, assim, não ao seu formulador, mas às apropriações
sempre posteriores.
Segundo Bornheim, a empatia que Brecht pretendeu combater só existiu
daquela forma particular no teatro burguês, porque só ali a presença do sujeito
tinha um peso tão grande. Um erro frequente com relação aos gregos, por
exemplo, é esquecer o sentido de coletivo que tinha o teatro na Grécia, muito
diferente dos tons subjetivistas adquiridos mais tarde. No teatro burguês, a
75
subjetividade pôs-se a favor do fator social, e isso destoa totalmente de
Aristóteles, que dava outra dimensão a esses fatores tão decisivos para as
representações modernas.
Logo, quando Brecht diz que a forma de transitar entre palco e plateia
sempre foi a empatia, além de se pautar na história do teatro e assim como
quase sempre fez quando se referiu a Aristóteles, está pensando no rearranjo
que quer promover dentro do teatro, na ruptura É desse modo que se pode
afirmar que a sua crítica é e não é remetida ao Estagirita. Como se verá no
próximo capítulo, a ideia de Brecht de empreender um projeto crítico para o
público de teatro se desenvolverá cada vez mais, até ele chegar à sua fase
mais madura e se concentrar num redirecionamento das emoções.
As emoções serão convocadas para dar empolgação ao espírito crítico.
Brecht não é tão cético quanto a crer que elas deviam servir como um impulso
criador e não como diminuidoras da potência de ação dos indivíduos. Por isso
tornou-se tão desafiador e importante para ele despertar o público para certo
estado emocional, sem recair no jogo cego da empatia. Nas representações
tradicionais, os acontecimentos misturam-se com as emoções de tal forma que
fica difícil discernir as causas. O que em Aristóteles é um jogo entre verdade e
aparência, o que num primeiro momento pode parecer paradoxal, mas que
conseguia unir emoção e conhecimento, para Brecht passa de outra forma,
para o mesmo resultado; e o que no teatro burguês era pura emoção é
renovado com outros ares.
Ainda sobre esse confronto direto vale ainda uma última reflexão: Brecht
fez questão de se comportar como uma figura polêmica, principalmente depois
das críticas que recebeu de seus contemporâneos. Como coloca José A.
Pasta, cansado de se esconder, ou simplesmente porque julgava injustas
muitas das colocações a seu respeito, pode-se pensar que Brecht quis entrar
na provocação dos intelectuais. Assim, como reação às acusações feitas a ele,
que até hoje dão o que falar, uma das perguntas colocadas é se a postura em
relação a Aristóteles não teria se desenvolvido dessa maneira de propósito. Ou
seja, se ele quis mesmo agir de modo contraditório, justamente para causar
desconforto aos seus contemporâneos. Será que Brecht não estava já
defendendo aquilo que colocou mais tarde: produzam com os clássicos algo
novo? Todos sempre tão preocupados em ler e estudar corretamente os
76
gregos, ser-lhes fiéis, e Brecht de repente lê Aristóteles e essa leitura é vista
como superficial?
Será que isso não fazia parte de seu jogo enquanto o homem de seu
tempo que foi, muito mais preocupado com o presente e o futuro do que em
olhar para os clássicos de um modo tradicional? Talvez essa seja só mais uma
suposição que permanecerá em aberto, mas é interessante pensar que, como
dito anteriormente, Brecht nunca quis de fato confrontar os gregos a ponto de
dizer que estavam errados, mas ele certamente olhou para a disposição do
teatro burguês e pensou nisso.
Ao ler Aristóteles, talvez ele quisesse mesmo mostrar a origem de todo o
erro, a falta de liberdade em se seguir à risca modelos que não faziam mais
sentido para os homens. Talvez ele quisesse dizer: “Vocês com os seus
moralismos, com toda essa técnica, esse intelectualismo na leitura dos
clássicos, dizem-se tão esclarecidos, dominadores dos saberes e escrevem
peças que não promovem reflexão alguma; são vocês, então, os principais
desvirtuados das intenções dos antigos”.
Além disso, a fase de Brecht em que ele critica Aristóteles é quando ele
ainda tentava definir um teatro que não recaísse no problema de se tornar um
teatro vago. Ele quer desenvolver regras como faz o pensamento científico,
mas colocando-as também sujeitas a revisões e a exceções. Essa atuação
pretensamente científica nasceu de uma insatisfação com a realidade, que o
impulsionou, em primeiro lugar, a submeter essa realidade a um olhar de
negação, rebatê-la com um sistema tão estruturado (ou até mais) que o antigo,
e, mais tarde enfim, como se verá no terceiro capítulo desta tese, chegar à
seguinte conclusão: para tal sistema se manter adiante, diferente de como se
mantinha o aristotélico, seria necessário que ele se tornasse um sistema
“manejável (praticável) para o espectador”. Era assim como Brecht queria que
o mundo fosse visto através do olhar do novo teatro.
Muitas conjecturas que avaliam a postura de Brecht são possíveis, mas
em verdade, se ele só tivesse visto pontos admiráveis na obra de Aristóteles,
provavelmente não existiria hoje um teatro “não-aristotélico”, não teria ele
rompido da forma que rompeu com a tradição e, mais, não se daria luz a um
modo de representar em tantos aspectos inverso a Aristóteles. Será que Brecht
77
estava mesmo querendo ser fiel ao que ele mesmo defendeu? Que um clássico
deveria estar sempre em construção?
77
Capítulo 2. Brecht e o Realismo Socialista
Se queremos ter uma literatura verdadeiramente popular, viva, combativa, totalmente imbuída da realidade e abrangendo totalmente essa realidade, temos de ser capazes de acompanhar a rápida evolução da realidade. As grandes massas trabalhadoras estão já em marcha. A atividade e a brutalidade dos seus inimigos é prova disso. BERTOLT BRECHT
O foco deste capítulo é apresentar o debate histórico marcado pelo
confronto entre Bertolt Brecht e George Lukács. Um debate que tratou a crise
na arte, que, apesar de anunciada a partir do século XIX, só foi percebida um
pouco antes da explosão da primeira guerra mundial e pensada mais tarde, já
passada a guerra. O capítulo anterior serviu para inserir Brecht nesse contexto,
em que, uma vez entendido que a evolução do modelo capitalista de produção
reservou para a arte uma função observada como doentia, ou equivocada, pois
equivalia a uma transformação da arte em algo, a serviço de um ideário,
percebe-se a necessidade de se pensar a superação dessa função através da
criação de outra. Nesse momento, nasce de modo mais significativo a
discussão que pensou essa mudança, além de pensar a cisão entre forma e
conteúdo, algo teoricamente impossível na concepção de uma obra de arte.
É também no mesmo período que artistas e intelectuais começam a
apostar em determinados caminhos que fizessem novamente a função da arte
mudar, para que ela pudesse então lidar com a questão social (urgente
naquele momento) de uma forma consciente. Para recuperar o prestígio, a arte
precisava lidar com isso naquele momento, ao invés de se refugiar. E no final
da década de 20 e início da de 30, Brecht dá início ao seu período
experimental em busca de novos caminhos. Que técnicas deveriam ser usadas
a partir dali pelos artistas, para promover o reencontro entre a forma e o seu
respectivo (porque há um) conteúdo? Brecht encontrará não um modo, mas
alguns meios novos para lidar com a criação. Mas por ter dado ênfase ao
aspecto experimental dessa nova relação, não será bem compreendido. É
justamente sobre essa recepção e a não compreensão de sua proposta real
que este capítulo tratará.
78
Além dos autores escolhidos para situar a discussão, vários intelectuais
(como Adorno, Benjamin e outros autores da escola de Frankfurt, por exemplo)
pensaram o papel que a arte deveria desempenhar dali em diante na
sociedade, depois do choque provocado pelas vanguardas artísticas do
começo do século XX. Passada essa onda de eventos, veio se acrescentar à
atmosfera pesada imposta pela guerra um questionamento sobre os rumos da
técnica e da sociedade, e sobre o que tudo aquilo representava em termos de
mudanças para as futuras criações.
Pode-se dizer previamente que, embora Brecht e Lukács tenham
seguido direções opostas, ao mesmo tempo dividiram o anseio comum em
relação à arte, um anseio próprio da época: vê-la ocupando uma posição
melhor que aquela que passara a ocupar com a burguesia. Brecht, de um lado,
depositou uma forte esperança num recomeço, pressupondo a derrubada das
clássicas regras dramáticas e apostando em experimentações. No entanto, de
outro lado estava Lukács, que ao mesmo tempo em que defendia o ideário
socialista, queria recuperar a arte clássica contra a concepção burguesa. Ele
queria ver a arte retomar a crença dos homens, na totalidade que tinha sido
derrotada pelo processo de organização capitalista, um processo em si
desintegrado. Para isso, Lukács se oporá a Brecht e a todos aqueles que
tentaram trazer para aquele ambiente mais evidências da instabilidade do
mundo e da realidade; aqueles que quiseram aprender a conviver com essa
condição do homem de não mais se sentir completo.
O que interessa a este capítulo, além de situar esses dois autores dentro
de seu conhecido debate sobre o expressionismo1, é compreender realmente
em que pontos suas visões se tornaram tão distintas. Nessa época (ainda
prévia à fase madura), ele já se distanciava de um projeto partidário, marxista
no sentido ortodoxo, porque embora ele reconhecesse a importância da
militância, que poderia ajudar a concretizar a mudança radical do ponto de vista
social, ela sozinha não atingia o cerne do problema da arte, da forma como
1 A base que guiará a discussão são alguns textos em que os autores expuseram suas
posições sobre o expressionismo e a importância da vanguarda naquele momento, publicados
no volume Um capítulo da história da modernidade estética: Debate sobre o expressionismo.
Machado, Carlos Eduardo Jordão - São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.
79
Brecht acreditava que ele deveria ser abordado. Mesmo assim, seu
posicionamento acabou parecendo para muitos descaso, insuficiência
intelectual, e ele foi comparado a mais um pequeno artista burguês ainda que
sua postura tenha ido além.
Como dito acima, ambos os lados, tanto o de Brecht como o de Lukács,
estavam preocupados com o rumo da arte. Talvez porque o debate tenha se
dado entre intelectuais e artistas, ele ficou mais complicado, mas um ponto
comum a todos tem de ser destacado: o descontentamento com a arte
decorativa burguesa. A discussão entre os dois agravou-se quando começaram
as acusações por parte de Lukács. Em 1934, em “Debate sobre o Formalismo”
ele acusou escritores de vanguarda de serem formalistas, e dali seguiu-se um
debate extenso sobre o andamento da arte moderna, contra a qual Lukács se
posicionava.
Brecht desde o início considerou que para se distanciar da função da
arte burguesa, a nova arte precisava encontrar outras formas de se manifestar
que não retrocedesse buscando os antigos modelos, mas que, levada pelo
impulso deixado pelas vanguardas, pudesse evoluir para outro formato. Já que
a arte burguesa havia assimilado o modo tradicional de representação baseado
nos conceitos aristotélicos, era preciso ir além, arriscar não só novos
conteúdos, mas encontrar para estes formas que condissessem com o que
eles tratavam. Quando quer a formulação de um teatro afastado da forma
envelhecida e busca no passado as causas para a situação da arte de seu
tempo, Brecht desempenha um papel importante, que lhe dará força para
rebater concepções como a de Lukács. Qual a origem dos elementos de
barbárie dentro de uma cultura?2 Era preciso descobri-los para impedir que
eles continuassem se propagando:
A herança cultural era objeto polêmico desde a época de Lenin: a cultura clássica dos museus (burguesa) e a ‘cultura proletária’. Como se verá, no debate sobre o expressionismo, o enfrentamento teórico em relação à cultura do passado e em relação à nova arte (as vanguardas históricas). A complexidade do contexto histórico apresentava problemas teóricos e práticos qualitativamente novos. [MACHADO, 1998, p. 117]
2 “Não se pode chegar a uma nova cultura na medida em que não se atingem as raízes da
barbárie que destrói esta cultura; na medida em que são mantidas de pé as relações de propriedade existentes.” [BRECHT, apud MACHADO, 1998, p.111]
80
Vale lembrar então que aquele debate, que já tinha começado um pouco
antes, inaugurou uma fase no pensamento estético e a arte nunca mais seria
vista como antes. Mas, como lembra Peter Szondi, isso já não era novidade para
Brecht, que depois de tomar conhecimento desses movimentos que evidenciaram
essa situação de crise, de cisão entre os dispositivos de forma e conteúdo,
decidiu começar o seu projeto. Manteve desde o início um compromisso com a
renovação formal no teatro (em consideração ao que a abordagem dos
conteúdos exigia) e diante disso, recusava-se a aceitar que o conteúdo era mais
importante que a forma, assim como não conseguia ver possibilidade em
concretizar mais uma vez uma adaptação do velho modelo formal, porque isso
culminaria sempre no desacordo entre uma forma gasta e novos temas.
Pode-se citar, por exemplo, a visão romântica, que tomou o conteúdo
como distante da forma, ao recriar dentro de um núcleo fechado em si mesmo
a totalidade da vida. Ali, o conteúdo era justamente o da busca de sentido, mas
esse movimento acabou provando que não havia mais totalidade. Como lembra
Francisco Posada, o conflito nasceu daí, quando surgiu uma unidade normativa
na forma, que ao mesmo tempo apresentou a desarmonia como tema. Com o
drama moderno, começou a ser discutida a “‘antinomia interna’ que, em cada
obra em particular, estabelece-se entre o ‘enunciado da forma’ e o ‘enunciado
do conteúdo’. Ambos, assim, criticam-se um no outro os limites próprios e,
dessa forma, reciprocamente se historicizam.” [SZONDI, 2001, p.13]
Brecht por sua proposta foi então acusado de ser um formalista por parte
dos opositores de seu tempo, que interpretaram as intenções de seu trabalho
como dirigidas exclusivamente à busca de formas, decidindo afastá-lo da
posição de um artista realmente preocupado com o destino do teatro. A verdade,
no entanto, é que ele não se adaptou às visões mais dogmáticas justamente
porque sua preocupação principal não era nem conteúdo, nem forma e sim uma
nova compreensão do que os dois enunciados deveriam proporcionar um ao
outro. Ele não agiu como um realista porque não se propôs a retratar um
universo fechado, como o realismo tradicional. Brecht queria começar pelo
começo e a isso ele dedicou o tempo que na terra lhe foi dado, e levando em
conta essa sua preocupação ele poderia ser visto como propõe Jameson:
81
Brecht poderia ser um rude filistino como é o próprio Lukács quando se refere às correntes mais herméticas do modernismo; mas rejeitou a condenação que este faz das técnicas então experimentais em nome de um supostamente decadente ‘formalismo’, propondo discutir o assunto em termos da ‘realidade’ mais do que do ‘realismo’ [JAMESON, 2013, p.61]
Dentre as causas para defender uma nova relação do teatro com a
realidade, aparecia a preocupação fundamental de Brecht – presente também
quando se voltou para a tradição –, que era antes de qualquer coisa, o público
(Publikum) de teatro e a atitude que intencionou despertar para alcançar a
mudança (Veränderung) de função da arte3. Alguns críticos de Brecht ainda o
pensam sob as acusações que começaram naquela época, ainda o veem como
um formalista preocupado em criar um sistema de regras formais para o teatro,
como o acusou Lukács.
Sob o mesmo nível de acusações, Lukács também rejeitou o
expressionismo defendendo a ideia de que se tratava de mais um produto de
artistas pequeno-burgueses4 que se ocuparam em criar uma arte puramente
ilusória e nada eficaz, do mesmo modo que fora o naturalismo. O
expressionismo era, portanto, a continuação de uma arte vaga, inconsistente.
Acontece que por volta de 1928, Lukács viu em suas concepções estéticas a
possibilidade de vinculá-las às pretensões do partido comunista e, por mais
que não se possa dizer que os ideais estéticos passaram a estar moldados aos
interesses políticos, a combinação entre ambos fortaleceu a visão romântica de
Lukács sobre a arte. Aproximando-se de Stálin, Lukács passou a defender o
partido comunista russo:
Mas todas elas não ultrapassam, tanto conceitualmente como emocionalmente, sua imediaticidade, não buscam a essência, isto é, a conexão real das suas vivências com a vida real da sociedade, as
3Definimos no item 1.3 do primeiro capítulo desta dissertação.
4 “Lukács formula várias censuras ao expressionismo literário. Considera que, de certo modo,
culmina a linha de decadência que vai do naturalismo ao simbolismo, passando pelo impressionismo. Todas estas correntes deformam a adequada captação artística da realidade, entendendo por esta última uma totalidade de manifestações, de vínculos contrapostos e dinâmicos. Esta deformação ultrapassa a essência dessa mesma realidade, isto é, o reflexo dos momentos decisivos, dos traços típicos. (...) O expressionismo comporta uma ruptura e queda em relação a seus predecessores imediatos. O expressionismo é a representação do isolado, do destroçado; em uma palavra, do caos.” [POSADA, 1970, p.6-7]
82
causas ocultas que provocam objetivamente estas vivências, aquelas mediações que ligam estas vivências à realidade objetiva da sociedade. Pelo contrário, é exatamente a partir desta imediaticidade – de forma mais ou menos consciente – que elas criam espontaneamente, o seu estilo artístico. [LUKÁCS, apud MACHADO, 1998, p. 205]
Lukács trabalha noutro sentido, distinto do de Brecht. Sempre defendeu
uma estética particular para a arte, tradicional, que deveria ter como objetivo
transmitir a noção de totalidade que ele acreditava já ter existido na história do
teatro, mas que, por desvios, se perdera. Para ele, artistas que se
preocupavam em buscar novas formas desempenhavam um papel contrário ao
da busca do sentido perdido. Num tempo como aquele, cheio de desilusões
entre os homens, era preciso, segundo Lukács, transmitir segurança através do
significado de uma nova ordem social por meio de formas, que não precisavam
ser encontradas uma vez que já existiam.
Em contrapartida à investida partidária de Lukács, Brecht propõe um
questionamento com outro direcionamento. Na vida, de que se pode ter
realmente certeza além da morte? Brecht desconfiava dessas realidades
construídas para fazer o espectador escolher um lado determinado. Porém,
para compreender isso, é primeiramente necessário saber que tratou a
realidade com o pensamento de que, se havia alguma certeza quanto a ela, é
que é mutável e constituída por essas transformações de evolução rápida.
Portanto, desde o início, também não poderia propor fincar seus pés em
nenhuma concepção de teatro (como a do realismo) que buscasse ou
permanecer como tradição, ou corresponder a um período em específico. Era
preciso, antes, chamar a consciência dos espectadores utilizando – e por que
não? – todos os aparatos disponíveis.
Brecht aproxima-se de um modo de reflexão que, como disse Jameson,
está interessado na realidade, mas esse interesse não pode ser confundido
com realismo. Como um anti-idealista que mantinha em primeiro lugar um
compromisso com o público, Brecht não queria aprisionar seus espectadores a
uma visão fechada da realidade, mas ambientá-los na mutabilidade dos fatos,
aproximando-os dessa instabilidade, para que sentissem a vertigem. E então,
que se acostumassem a experimentar, a buscar saídas para lidar com esse
dado da realidade:
83
Brecht não nos dá a descrição da realidade com sua solução: entrega-nos um problema com aqueles fatores decisivos que o determinam, para que estejamos em condições de chegar por nós mesmos à solução. O sentimento implícito da obra se prolonga no espectador; a peça ultrapassa o marco da representação ou da leitura, mas não, como alguns sustentam, para ser completada pelo público e sim para que o público encontre algo que está aí, ainda quando requer, para tornar-se patente, a existência de sua produtividade crítica. Quando coloca e defende a necessidade de distanciamento entre a obra e o público, é apenas lógico que Brecht ponha em dúvida todas as diversas variantes de adesão, aproximação ou entusiasmo acrítico inerente ao realismo tradicional e que encobre sob o nome de ‘identificação’. [POSADA, 1970, p. 224-225]
Naquele tempo, a classe a que Brecht queria se aliar era, sem dúvida, o
proletariado. Pelo interesse na luta de classes, ele começou a pensar, com
vistas no que tinha ocorrido no passado, que para a superação da tal crise
séria do drama era preciso muito mais do que regras. O teatro do presente
deveria construir um diálogo com o público, coisa que nunca existiu no
desenvolvimento problemático do teatro naturalista burguês. A apropriação dos
preceitos formais tradicionais não havia gerado uma reflexão sobre a realidade
que subvertesse a condição do proletário e que fizesse ele se sentir, não
apenas incluso, mas parte constituinte daquela sociedade.
Desde já, quer se defender aqui a posição de Brecht como a de um
artista que, em termos de consequências para a arte, conseguiu ser mais
revolucionário que aqueles os quais, como Lukács, se reconheciam nessa
posição. Ele quis atingir os indivíduos de um modo que ainda não tinham sido
atingidos. Queria produzir aquela mudança que Schiller já havia percebido que
a Revolução Francesa fora incapaz de alcançar, ao não internalizar nos
indivíduos o sentimento de liberdade, mas concretizando-a artificialmente de
outros modos, fazendo-os acreditar que eram livres.
A verdade, no entanto, é que para eles esse sentimento de liberdade
não se concretizou, e Brecht buscou aprender com o passado que em
determinados aspectos ele precisava ser superado. Nesse sentido, ele
precisava transgredir a ideia do socialismo como uma imposição dos mais
intelectualizados sobre as massas e tentar produzir nelas o acordo com a
realidade. A sua medida seria, então, a da pluralidade, de subjetivação do
84
palco, da questão ao invés da solução. Era essa a forma em que ele podia
compreender o teatro enquanto promovedor de transformações.
Foi no teatro épico que Brecht encontrou a possibilidade de construir esse
diálogo com o coletivo, uma vez que acreditava que o gênero dramático não era
capaz. Na Alemanha, entretanto, tempos antes de Brecht entrar para o teatro,
muitos grupos já faziam experiências com o gênero épico como forma de
combater a arte burguesa. As vanguardas artísticas tinham deixado suas marcas
e depois que passaram, sob a influência delas, artistas e teóricos procuravam
um estilo de arte mais útil, que se preocupasse com a colocação dos problemas
que percorriam a situação daquela época, de um mundo pós-guerra5:
Pois em Brecht é menos uma questão de situar um dado indivíduo numa classe social preexistente, com seus valores ideológicos e aparência específica, do que de transcender o duplo padrão de eventos individuais e coletivos. É como se recontar eventos individuais como históricos não fosse meramente uma técnica satírica, mas também um novo modo de conhecimento. [JAMESON, 2013, p.89]
Nesse contato, porém, mesmo influenciado por muitas das ideias dos
novos artistas – muitas das quais ele se apropriará para desenvolver sua
própria corrente –, Brecht tentou, mas não se viu inserido em nenhum molde
fechado de arte. Começou a trabalhar por meio de uma veia artística baseada
em experimentos e com uma visão também não tão carregada de conceitos.
Foi só ao experimentar uma série de técnicas novas que Brecht verificou que
muitas delas não funcionavam para chegar ao que desejava e, portanto, era
preciso experimentar mais até alcançar aquilo que pretendia.
Por acreditar nessa característica de experimento que tinha a arte é que
Brecht nesse ponto fez a defesa do movimento expressionista – pela qual
também foi acusado pelos intelectuais de seu tempo. Ocorreu que, numa atitude
diferenciada da posição arbitrária adotada por eles, aproximou-se do
expressionismo e o defendeu enquanto movimento libertador, cuja intenção
consistia em livrar os homens de uma lógica doentia, repetitiva e pouco criadora.
Embora as vanguardas tivessem despertado os indivíduos muito mais pelas vias
da expressão, não é correto negar – ainda que muitos como Lukács tenham
5Aqui nos referimos à Primeira Grande Guerra Mundial.
85
tentado fazê-lo – a importância delas enquanto movimentos que afirmaram antes
de tudo a vida, ao expressarem o descontentamento com a realidade.
O que se quer reiterar é que, como modelo, por compartilhar uma visão
também idealista da arte, o expressionismo não serviu a Brecht. Ele lhe coube
na medida em que rompeu com a arte tradicional, mesmo que o período tenha
sido breve. Ali, conseguiu mostrar que há sempre novas possibilidades de
expressão, que ainda há espaço, e muito, para a criação. Brecht se valeu dessa
atitude efêmera e ao mesmo tempo contestadora, que, enquanto tal, não devia
ser ignorada, nem vista apenas por um prisma negativo. Acerca dos limites de
sua aproximação com o expressionismo e seus efeitos, em 1938 escreveu:
A recordação do expressionismo é para muitos a recordação de tendências libertadoras. Eu próprio também estava naquela altura contra o ‘exprimir-se’ por profissão (veja as minhas notas para os atores no Versuche (Ensaios)). Assumi uma atitude cética perante esses acidentes penosos e inquietantes em que alguém ‘sai fora de si’. Para onde é que ele sai, então? Pouco tempo depois veio a se perceber que eles se tinham libertado da gramática, mas não do capitalismo. (...) Mas creio que as libertações devem também ser sempre levadas a sério. Muitos encaram ainda hoje com desagrado a condenação indiscriminada do expressionismo, porque temem que assim se reprimam atos de libertação só pelo fato de o serem, uma libertação de prescrições limitativas, de velhas regras que se tornaram algemas, e porque temem que assim se tente uma fixação a processos de descrição que se adequariam a proprietários, depois mesmo de estes terem sido eliminados. Para me servir de um exemplo da política: quando se quer combater o golpismo tem de se ensinar a Revolução (e não a evolução). [BRECHT, apud MACHADO, 1998, p.246]
Nessa citação, deixou claro não ser um adepto do expressionismo, como
muitos o classificaram na primeira fase de produção de suas peças6 pelos
efeitos estéticos que ele retirara do movimento. Nisso tudo, é possível perceber
os tons mais próximos da realidade que a sua crítica adotou, uma vez que não
preocupado com a permanência formal do movimento artístico. Contudo, o que
interessa é destacar que, tanto a arte de vanguarda como a sua, tinham em
6 As primeiras peças de Brecht são consideradas de cunho expressionista. São elas: Baal
(1918), Tambores na Noite(1922) e Selva das cidades(1922) as principais. No entanto, Rosenfeld ao falar da terceira peça, atenta para o seguinte: “A peça antecipa toda uma linha de teatro de vanguarda, linha que Brecht logo abandonaria. Cedo notou que a abstração expressionista tende a projetar o problema focalizado para além do campo de determinada fase histórica, dando-lhe uma eternidade metafísica que condena o homem, em definitivo, a uma existência absurda.” [ROSENFELD, 2011, p.71]
86
comum a proposta de realizar um confronto com os modelos tradicionais.
Ambas atestaram o caráter incerto da sociedade. Apesar das vanguardas
terem influenciado a arte posterior muito mais acerca dos aspectos formais
desenvolvidos por elas, ainda assim o projeto de teatro pensado por Brecht
incluiu um projeto de confrontação baseado naquelas mudanças.
No entanto, leitura de que a arte de Brecht proporcionou esse confronto
real é de Walter Benjamin, que inclusive acrescentou que muitos dos pontos
mais importantes da obra de Brecht foram encontrados justamente enquanto
ele tentava confrontar o modelo originário, pois uma vez que aquele modelo
tinha se mantido como referência por tanto tempo, um confronto real, uma
rejeição promoveria no mínimo o encontro com seu contrário.
Para que não passasse o momento de pensar as inovações, como foi
talvez o que acontecera com as vanguardas, reagindo como um inovador,
Brecht apressou-se a pensar o teatro épico e, assim, “ensinar a revolução” para
os que viessem depois dele. Lembrando mais uma vez que a sua atitude não
aceitava o estigma que toma a realidade por uma sucessão de eventos
naturais, o teatro só tem sentido se conseguir mostrar aos homens que tanto
eles como o mundo são mutáveis (veränderlich), e a atitude conservada por
tanto tempo levou os espectadores a aceitarem que tudo era derivado dessa
causa natural e os impedia de olhar para o que viam e pensar que talvez aquilo
pudesse ser visto de outro modo. Brecht, parafraseando Benjamin, quis
“confrontar” de vez essa concepção, e nas palavras de Rosenfeld:
O homem não é exposto como ser fixo, como ‘natureza humana’ definitiva, mas como ser em processo capaz de transformar-se e transformar o mundo. Um dos aspectos mais combatidos por Brecht é a concepção fatalista da tragédia. O homem não é regido por forças insondáveis que para sempre lhe determinam a situação metafísica. Depende, ao contrário, da situação histórica que, por sua vez, pode ser transformada. O fito principal do teatro épico é a ‘desmistificação’, a revelação de que as desgraças do homem não são eternas e sim históricas, podendo por isso ser superadas. [ROSENFELD, 2011, p.150]
Tempos antes, no contato com estudos que buscavam uma nova
abordagem que se baseasse na troca entre palco e plateia e que unisse essas
forças ao invés de separá-las, Brecht encontrou o Teatro Didático. Mais tarde,
87
por causa da questão moral exigida por essa forma, do modo como lhe foi
apresentada, acabou por ampliar a ideia das peças didáticas e levá-las a outra
esfera de sua teoria. Ao didático, Brecht também atribuiu uma nova dimensão:
Sabe-se que um dos objetivos do teatro brechtiano é a incorporação crítica do espectador ao espetáculo. Ele não é alguém que assiste passivamente aos eventos apresentados sobre um palco situado à distância, mas é integrado ao espetáculo como um convidado a tomar posição sobre perante as cenas que presencia. As peças de aprendizagem, escritas para os atuantes e não para um público eventual, seriam apenas o caso mais explícito de um processo que altera a função que o teatro costumava conferir ao espectador. Sendo assim, é razoável então supor que Brecht levasse em conta o grau de consciência de seu público ao elaborar as peças e conduzir os ensaios. Pela mesma razão, também seria possível dizer que a encenação posterior de suas peças tem que lidar com a dificuldade de atualizar a sua função pedagógica para um público muito distinto daquele originalmente visado por Brecht. [GATTI, 2012, p.11]
Através do contato com essa técnica, porém, Brecht conseguiu
aprimorar a nova concepção entre público e montagem, aquela que
despertaria os indivíduos para um novo estilo de diversão. Conseguiu com
isso ampliar o sentido da mudança de função do novo teatro. E, se o teatro
didático enquanto modelo formal também não satisfez o autor, ao menos
conferiu uma extensão maior à sua obra, ao mesmo tempo em que serviu
para firmar o combate à arte burguesa.
Desse teatro e das experimentações feitas a partir do modelo didático,
Brecht compreendeu que o homem ao qual não se oferecem respostas,
quando aberto à escuta, preserva certo desconforto, e este incômodo, por sua
vez, se instala na consciência. A busca pelo entendimento, ou pela solução
da pergunta formulada, moveu-o numa ação crítica, e ele se comportou como
um analista de fatos. Um novo campo de possíveis respostas, ou mais
perguntas, se abriu. O indivíduo agora não se sentiria mais aprisionado ao
ambiente familiar. Esse trajeto Brecht pareceu ter compreendido como algo
possível e próprio a uma função didática do teatro. Elaborado de uma forma
menos presa à didática compreendida tradicionalmente, Brecht esperava que
esse processo de busca por parte do espectador fosse despertado
naturalmente durante a peça, de forma que as pessoas o concluíssem na
vida, através de suas ações e reflexões:
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Sobre a questão do realismo: o ponto de vista habitual é o de que quanto mais facilmente pode a realidade ser reconhecida numa obra de arte, mais realista é ela. Contra isto eu gostaria de propor a equação segundo a qual quanto mais reconhecivelmente é dominada a realidade na obra de arte, mais realista ela é. O reconhecimento direto da realidade é muitas vezes impedido por uma apresentação que mostra como dominá-la. O açúcar descrito por um químico perde sua reconhecibilidade. Este é obviamente um exemplo extremo, apenas demonstra os (distantes) limites. De qualquer modo deve-se olhar para ver se o artista é um realista, i.e., procede realisticamente em seu escrito, expõe todos os véus e embustes que obscurecem a realidade e intervém nas ações reais de seu público. Além disso, você não deve apegar-se à forma e simplesmente comparar a forma e uma obra com a de outra e extrair desta uma forma realista; fazer isso é puro formalismo, mesmo que a forma em questão provenha de uma obra realista.” [BRECHT, 2002, p.102]
Aos opositores, Brecht e suas tentativas mostraram-se, no entanto, não
como propiciadoras de uma nova e possível teoria, mas como enrijecimento
técnico. Talvez porque Brecht, numa época em que a “profissão intelectual”
estava em alta, tenha recusado a comportar-se como um, o curioso nas
acusações é que elas, no entanto, partiram daqueles que se diziam também
defensores de uma mudança tanto social, quanto artística. Ou seja, dos que
diziam estar dispostos a discutir uma nova abordagem para arte que servisse
para se opor à burguesa, a fim de se consolidar como arte moderna.
Ao mesmo tempo, foi talvez durante esse processo que Brecht descobriu
o significado profundo da responsabilidade de se criar um teatro novo. Ele
poderia sim se utilizar de técnicas existentes e até se apropriar de formas para
construir uma nova. Ele o fez. Mas, por outro lado, depois de conhecer o
expressionismo, o teatro didático e até o realismo socialista, Brecht reconheceu
que para realmente confrontar, subverter, transformar, era preciso ir mais
longe, buscando um modo de fazer teatro que não se guiasse por dogmas, ou
por preceitos morais edificantes.
O teatro épico, como Brecht o desenvolveu em sua fase madura, será o
foco do terceiro capítulo desta tese. Porém, por ora, para trazer à tona ainda
mais as consequências desse trabalho enquanto rompimento, o texto de
Benjamin é fundamental. Para Benjamin, a técnica da interrupção faz do
teatro épico um teatro verdadeiramente revolucionário, porque surpreende ao
deslocar aquilo que parecia normal acontecer em determinada ação e
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conferir-lhe o aspecto de incomum. Brecht causa espanto quando desarticula
a ordem esperada:
A interrupção da ação, que levou Brecht a caracterizar seu teatro como épico, combate sistematicamente qualquer ilusão por parte do público. Essa ilusão é inutilizável para um teatro que se propõe a tratar os elementos da realidade no sentido de um ordenamento experimental. Porém as condições surgem no fim dessa experiência, e não no começo. De uma ou de outra forma, tais condições são sempre as nossas. Elas não são trazidas para perto do espectador, mas afastadas dele. Ele as reconhece como condições reais, não como arrogância, como no teatro naturalista, mas com assombro. O teatro épico, portanto, não reproduz as condições, ele as descobre. A descoberta das condições se efetua por meio da interrupção das sequências. Mas a interrupção não se destina a provocar uma excitação, e sim a exercer uma função organizadora. Ela imobiliza os acontecimentos e com isso obriga o espetador a tomar uma posição quanto à ação, e o ator, a tomar uma posição quanto à ação, e o ator, a tomar uma posição quanto ao seu papel. Mostrarei, com um exemplo, como em sua seleção e tratamento dos gestos Brecht limita-se a transpor os métodos da montagem, decisivos para o rádio e para o cinema, transformando um artifício frequentemente condicionado pela moda em um processo puramente humano. Imaginemos uma cena de família: a mulher está segurando um objeto de bronze, para jogá-lo em sua filha; o pai está abrindo a janela, para pedir socorro. Nesse momento, entra um estranho, a sequência é interrompida; o que aparece em seu lugar é a situação com que se depara o olhar do estranho: fisionomias transtornadas, janela aberta, mobiliário destruído. Mas existe um olhar diante do qual mesmo as cenas mais habituais da vida contemporânea têm esse aspecto. É o olhar do dramaturgo épico. [BENJAMIN, 1994, p.133-134]
A interrupção da ação, portanto, é provocada dentro da encenação,
quando Brecht intenciona chamar a atenção para determinado acontecimento,
que em representações ditas ‘tradicionais’ era esperado um desenvolvimento
natural. Porém, como no caso do teatro brechtiano o intuito é justamente
“desnaturalizar” esse processo, muito bem conhecido pelas representações
naturalistas, ele se utiliza da interrupção da ação de um fato decisivo dentro da
história, para mudar o seu sentido, mudar toda a configuração, como explicou
Benjamin na citação anterior. Assim, a interrupção é o que se poderia chamar
de técnica utilizada por Brecht para ajudar a concretizar mais a fundo tudo
aquilo que envolve distanciar o espectador.
E por não acreditar na separação entre forma e conteúdo, no teatro de
Brecht tudo acontece simultaneamente. Isso se comprova ainda mais porque,
diferente da maioria dos teóricos da arte, ele também foi dramaturgo e diretor.
90
Logo, como diretor, lidava diretamente com a montagem das peças, estava
sempre em contato com a prática. Já era de se esperar que se irritasse com o
fato de, enquanto artista, ter de se justificar em relação àquilo que os críticos
não compreendiam, muitas vezes porque não eram produtores como ele. Só
quando experimentou diversas técnicas é que Brecht percebeu que construir
um modelo formal fechado não resolveria o problema da arte, e se necessário
ele estava disposto a acrescentar, a tirar e a modificar o que fosse até alcançar
os efeitos desejados7.
Nesse caminho, também cheio de incertezas, mas com objetivos reais,
não só a oposição entre presente e passado acontecia, mas também, entre
movimentos da mesma época e até de bases ideológicas iguais, como é o caso
do marxismo. Brecht não quis submeter suas ideias aos interesses de nenhum
partido político, entretanto, isso não quer dizer que não tivesse uma visão
política. Além disso, uma vez que o teatro só existia porque era antes de tudo
um evento público, para Brecht ele seria sempre um evento político. Mas até
mesmo nesse ponto, o que entrou em questão para ele, a partir de
determinado momento, foi descobrir em que consistia esse “político” e como
ele poderia ser manejado para que não se caísse mais uma vez numa espécie
semelhante ao teatro burguês, ou seja, alienante.
Antes de prosseguir à apresentação do que se constitui para Brecht a
ação do político sobre os espectadores de teatro, é necessária uma exposição
sobre suas relações particulares com o marxismo, ao mesmo tempo
distanciando-se das intenções do partido comunista 8 . Ao se aproximar do
marxismo ortodoxo como do partido comunista Russo e das visões de muitos
intelectuais que estabeleciam a ação revolucionária pelas correntes da
instrução e do convencimento, Brecht logo se afastou, passando a desenvolver
7 Vale lembrar que as portas do lugar onde ensaiava seus atores estavam sempre abertas para
o público entrar e participar da construção do que seria encenado. Essa participação era fundamental para Brecht. Isso explica por que o exílio durante a guerra tornou-se tão sufocante para ele: porque não podia desenvolver o seu teatro que só tinha razão de ser em contato com o seu público. O espectador desempenhava uma função tão fundamental para Brecht que quando teve que se exilar para fugir da perseguição nazista, o efeito desse exílio sobre ele foi devastador, porque a montagem de suas peças não tinha sentido para esse público. É o que aponta a professora Iná Camargo Costa da USP em seu depoimento que aparece em Brecht e o cinema, uma coleção de filmes das obras de Brecht para o cinema e um documentário sobre a vida do autor, reunidos e lançados pela Versátil Home Video. 8 Este capítulo não fará referiência à fase em que Brecht decidiu morar na RDA (República
Democrática Alemã), nem à hipótese levantada por alguns de ele ter abdicado de seus ideais para obter benefícios do partido.
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suas ideias paralelamente às ações partidárias, e acabou vendo um perigo
nessas ações, quando percebeu que elas seguiam um rumo semelhante ao do
realismo burguês:
Tanto o realismo burguês como o realismo socialista convencional pretendem impor-nos uma visão de mundo e não um modelo de compreensão; desejam, ademais, que esta visão se converta em nosso próprio espaço (graças à identificação). A perspectiva de Brecht é diferente, posto que, segundo ele, os problemas devem ser formulados ao público a partir de sua realidade, sem expulsá-lo dali, a fim de que adote uma atitude crítica perante a questão colocada. [POSADA, p.230]
Não obstante, Marx teve sim um papel fundamental para Brecht, como
analisa José A. Pasta. Diferente do marxismo escolar (como o marxismo
ortodoxo), quando Brecht realmente se aproximou de Marx deixando de lado as
leituras comuns, foi que ele descobriu por si a validade daquela aproximação, a
que Pasta chamou de ‘afinidade eletiva’. Para ele, foi esse contato que
provocou o primeiro “refluxo” de Brecht em relação à sua própria obra, e a
partir dali ele começou a examinar seus trabalhos anteriores, distanciando-se
de sua própria produção para depois dar um novo rumo a ela. É esse espírito
político que nasce em Brecht depois de um entrosamento mais verdadeiro com
Marx, que faz com que o dramaturgo comece a buscar um relacionamento de
outra ordem, com a influência política de seus espetáculos sobre os
espectadores. Foi então que ele passou a formular perguntas ao invés de
tentar convencer o público de aceitar o que ele entendia por certo:
Brecht irá vivificar pela perspectiva própria e empenhada o seu estudo do marxismo, ao mesmo tempo que irá ampliar a sua ação da teoria marxista e extrair muitas de suas consequências, à semelhança de Benjamin, em um domínio que não é preferencialmente analisado pelo próprio Marx. A percepção brechtiana do marxismo será, por isso, uma contribuição, inventiva e heterodoxa:perfeitamente diversa de um estudo do marxismo que se fizesse exclusivamente a partir da observação da alheia inserção econômica, a experiência brechtiana do marxismo se fará a partir de sua própria inserção, de artista e intelectual, organização da produção, e será assumida no corpo mesmo de seu trabalho” [PASTA, 2010, p.284]
92
Para Pasta, Brecht se reconheceu e, ao mesmo tempo, se estranhou no
marxismo. Assim como a visão de política, o sentido especial que Marx teve
para Brecht não pôde ser sentido ainda nas produções da época do debate
com Lukács, mas certamente para ele já se manifestou uma tensão entre
aquilo que ele ainda não conseguiu definir bem: sua ideia de marxismo e o
marxismo do realismo socialista. Só na sua fase madura é que Brecht se
apropriou de uma noção que jamais o faria tratar a realidade de forma niilista
como o marxismo dessa época.
A problemática que se insere na discussão do que quis desenvolver e do
que desenvolveu Brecht nas suas experimentações dialoga com o fato de sua
visão não comportar um pensamento fechado em si mesmo, ou arquitetar um
sistema com regras rígidas para serem seguidas à risca. Existiram alguns
autores que encontraram formas próprias e inovadoras, mas que só serviram
enquanto aplicadas a eles mesmos, não podendo sequer ser reproduzidas.
Kafka e Beckett são exemplos que foram reconhecidos e elogiados por T.
Adorno por terem conseguido encontrar uma forma que estivesse em
verdadeiro diálogo com os conteúdos e onde, nesses casos, a separação das
partes se tornava ainda mais impossível. No entanto, na história da literatura,
esses autores foram exceções, como Shakespeare em relação à tragédia, por
exemplo.
Brecht não condiz com esse tipo de autor – que como Kafka ou Beckett
conseguiu encontrar um modelo único, mas que também só funcionava se
aplicado ao universo daqueles artistas – o que torna mais difícil compreender
se de fato ele conseguiria lançar o teatro de experimentação ao futuro e assim
chegar finalmente ao objetivo final, de construção de uma nova espécie de
espectador. Sobre esse espírito contestador, pode-se dizer de Brecht que, em
estilo anárquico, ele acreditava que o caminho traçado para encontrar
respostas lhe garantiria muito mais possibilidades para criar e obter os efeitos
desejados sobre a consciência do público, do que as próprias respostas9.
Ora, para se compreender realmente o pensamento brechtiano, é
necessário incluir o pensamento dialético no trato com a realidade. Tratando-a
9 “A realidade pode ser ‘refletida’ de diversos modos. O realismo de uma obra não se define em
referência a outra obra; o realismo não é um conjunto de recomendações formais, mas uma confrontação de escolas. Uma obra é realista quando ‘revela’ uma realidade. Não se pode pré-determinar os meios de que se vale o artista para consegui-lo.” [POSADA, 1997, p.20]
93
como um complexo de contradições que dificilmente encontram solução na
simples dissipação dos acontecimentos, ou na escolha de um dos lados, é
possível verificar seus efeitos, por exemplo, quando transportados para o
ambiente do teatro. Neste, a separação deixa de ser importante, e é aceita a
coexistência deles. Há sempre conflitos e a harmonia não consiste em aceitar o
mundo como homogêneo, mas o seu contrário.
O trato dado por Brecht à dialética também se diferencia dentre os demais
que tentaram abordá-la. Ele percebeu que há uma grande barreira entre a
idealização e as verdades impostas aos autores. O realismo socialista, que
prometera confiar à dialética de Marx seu ponto de apoio para analisar os fatos
do mundo real, também caiu em falso: “está na hora de se começar a deduzir a
dialética da realidade, em vez de deduzi-la da história das ideias, e usar
exclusivamente exemplos selecionados da realidade.” [BRECHT, 2002, p.61]
A força que Brecht via presente na arte estava relacionada à função
social que ele acreditava que ela poderia conquistar. Uma força produtiva que,
segundo ele, excitaria a transformação da realidade, do sistema, a partir de um
novo modo de construir o pensamento crítico. Isso seria possível, entretanto,
com a participação de um coletivo, ou seja, fazendo dos espectadores
produtores. Para Brecht, era fundamental criar condições para que essas
consciências se desenvolvessem de forma plena, crítica. Nesse sentido, a
interpretação de Roland Barthes da atitude de Brecht é conveniente aqui
porque o transporta para longe das acusações que o trataram como formalista.
Segundo o autor francês, Brecht foi o maior defensor de um teatro
verdadeiro. Um teatro que não procurava dar definição às coisas, mas
compreendê-las e aceitar que para todo o dado de realidade haverá inserida,
pelo menos, uma contradição. Como diz Barthes: “não existe uma ‘essência’ da
arte eterna, mas que cada sociedade deve inventar a arte que melhor a ajudará
no parto de sua libertação.” [BARTHES, 2011 p.130] Para tanto, era preciso que
os olhos, ouvidos, enfim, os corações estivessem dispostos a receber esse novo.
Havia naquele momento uma postura de apatia por parte dos indivíduos
para com a vida (e consequentemente também com a arte), que estava
acabando com as relações e com a essência coletiva da humanidade. No
entanto, as pessoas preferiam se isentar dessa responsabilidade, não reagiam
aos acontecimentos, mesmo sendo eles na maioria das vezes, inaceitáveis.
94
Barthes é certeiro quando defende o teatro de Brecht, que, além de
verdadeiramente revolucionário para ele, era um teatro da solidariedade e não
do contágio. O autor que divide aquilo que vê com a plateia não querendo
convencê-la, mas espera que esta possa formular seus juízos próprios, sem
pretensões de promover verdades, ele não espera o contágio, não exerce essa
função. O contágio carrega um tom de segundas intenções, porque espera que
o público se submeta a seus ditos. Isso nosso autor não quer:
Ora, surge um homem cuja obra e pensamento contestam radicalmente essa arte nesse ponto ancestral que acreditávamos, pelas melhores razões do mundo, ser ‘natural’; que nos diz, desprezando toda tradição, que o público só deve engajar-se pela metade no espetáculo, de modo a ‘conhecer’ o que lhe é mostrado, ao invés de se submeter a ele; que o ator deve dar à luz essa consciência denunciando seu papel, não o encarnando; que o espectador não deve nunca identificar-se completamente com o herói, de sorte que ele permanece sempre livre para julgar as causas, depois os remédios de seu sofrimento; que a ação não deve ser imitada, mas contada; que o teatro deve cessar de ser mágico para se tornar crítico, o que será ainda para ele o melhor modo de ser caloroso. [BARTHES, 2011, p.130]
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2.1 O confronto entre Lukács e Brecht
Na arte existe o ato de fracasso e o parcialmente conseguido. Os nossos metafísicos têm que compreender isto. As obras podem tão facilmente fracassar porque dificilmente dão certo! Uns calam-se porque lhes falta o sentimento, outros porque o sentimento lhes tolhe a fala. Este não se liberta do fardo que pesa sobre ele, mas apenas da sensação de falta de liberdade, aquele dá cabo da sua ferramenta, porque a usaram tempo demais para o explorar. O mundo não é obrigado a ser sentimental. Mas, a partir das derrotas, que não podemos deixar de constatar, não se pode tirar a conclusão de que não deve haver mais lutas. [BRECHT, in CARVALHO, 1998, p.246]
No texto acima, quando Brecht se refere aos “metafísicos”, o faz no
sentido de expor aquilo que considerou mais problemático em sua época para
uma evolução da arte revolucionária: os intelectualismos que se mostravam
perspicazes ao barrarem a liberdade de criação dos artistas. Algo que também
será denunciado por autores que concordavam com Brecht, como é o caso de
seu amigo, o pensador Walter Benjamin. Brecht, preocupado com a velocidade
e as consequências do desenvolvimento do capitalismo, crê que não há mais
tempo para o teatro conceder espaço a guerras ideológicas e que aqueles que
diziam querer uma transformação deveriam aliar-se aos que estavam prontos a
fazê-lo, ao invés de brigarem por aquilo que “teoricamente” se tratava de um
interesse em comum. Pois, construindo juntos, certamente os ganhos seriam
muito maiores e a humanidade teria a sua lição dada10.
No entanto, foi em meio a um desacordo intelectual dessa natureza que
se desenvolveu o debate travado com Lukács. Brecht foi acusado por Lukács
de não fazer realismo, porque era desse modo que os intelectuais do realismo
socialista procediam; classificavam as obras entre realistas e não realistas.
Sobre essa atitude, mais uma vez se nota, para além das divergências
estéticas entre os dois, como as visões políticas de cada um se tornaram fator
10Brecht não chegou a publicar, além dos textos de Debates sobre o expressionismo, aquilo que ele pensava sobre Lukács, pois temia que isso enfraquecesse a luta contra o fascismo: “Principalmente, Brecht não desejava provocar um conflito aberto numa ocasião em que a vitória do fascismo impunha uma atitude discreta para não aumentar as divergências no campo antifascistas. Esse procedimento diplomático contribui para que as teses de Lukács se impusessem, e a consequência disso foi a vitória do ‘realismo socialista’, com os pobres resultados que se conhecem e que, mais tarde, iriam provocar o desagrado do próprio Lukács.” [ROSENFELD, 2011, p.69-70]
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decisivo. Enquanto Lukács foi guiado pela ideia humanista de arte e a visão
política do marxismo ortodoxo, que desprezava qualquer tipo de “rebeldia”,
Brecht de outro lado, já aderira ao teatro experimental.
Empenhado em também defender os interesses do partido, Lukács
aproximou-se cada vez mais de uma visão idealista de realismo e assim, com a
esperança de retomar a sensação de totalidade, negou qualquer arte que
provocasse desagrado, por não dar aos homens a coerência de que eles
precisavam. Lukács acreditava que através da assimilação dos conceitos certos,
eles poderiam se sentir seguros novamente, retomando uma segurança na
realidade, que tinha se perdido. Para tanto, o caminho que ele encontrou como
mais apropriado foi o de trazer de volta as formas do humanismo e aplicar-lhes
os novos conteúdos, que construiriam a nova imagem do homem social.
Lukács pensava que, ao rejeitar as tendências e retomar um modelo que
ele considerava completo em si mesmo, a arte poderia voltar a transmitir o que
havia de perdurável na vida, e dessa forma eram manejadas as
representações. Embora essa fosse parte de uma concepção estética com a
qual Lukács já se identificava antes de sua filiação ao partido, ele tornou-se
ainda mais rigoroso ao defender a não existência de um meio-termo, ou de
dúvidas, porque isso enfraqueceria o movimento. Era preciso, sim, transmitir a
ideia de que na obra de arte, tudo se completa através de um princípio em que
as partes funcionam como interdependentes.
Para Lukács, a nova ordem social quando prometeu tornar os homens
ideologicamente livres, donos de si e de suas vidas, trouxe com ela a perda da
objetividade e uma sensação de desapego, de insegurança sobre o futuro11.
Qual ideologia ampararia aqueles espíritos? A preocupação com a produção e
o desenvolvimento econômico desenfreado, sem que houvesse um
esclarecimento de como tudo acontecia e para onde mundo ia, resultou no
aprofundamento do individualismo, em que os homens se sentiam cada vez
11 “Os princípios universais de liberdade transformaram-se num estorvo para os homens que, beneficiando-se eles mesmo de uma mudança como essa, veem à sua frente uma procura que se amplia infinitamente, de outras classes e povos, e que ameaça submergir e destruir a sua própria identidade recém-adquirida. Alguns poucos homens se atêm aos seus princípios, comprometendo-se com uma revolução social geral. Mas a maioria faz concessões, usa de subterfúgios ou procura adiar e a mais destrutiva forma desse colapso – porque a simples reação é facilmente reconhecida – é a característica substituição de revolução por evolução como um modelo social.” [WILLIAMS, 2002, p. 98]
97
mais sozinhos. Esse individualismo, como consequência, acabou
desestabilizando qualquer posicionamento de forças contestadoras12:
(...) a função da arte burguesa foi a de agrupar o público em volta da ideologia moderna, ou, como se diz, da consciência social de classe da burguesia. Inscrita como se achava e se acha a arte, dentro de uma economia mercantil, seu valor de consumo, de ‘uso, dependia de uma relação prévia, que estava já plena dos padrões culturais do caso: individualismo, ética da liberdade pessoal, secularização de Deus e deificação do homem, etc. quando existia uma grande coesão social e as estruturas capitalistas não se achavam na flagrante contradição em que se acham, os artistas possuíam, em sua tarefa de produção, um raio de movimento muito maior. Agora, somente lhes restam duas opções: a rebeldia ou a adesão sem reservas. [POSADA, 1970, p. 223]
De outro lado e ao mesmo tempo, Brecht questionou a ortodoxia
pretendida por Lukács. Um encontro “fictício” com a totalidade seria mesmo
capaz de acabar com o estado caótico do mundo? Autores como Lukács
acreditaram que, uma vez construída aquela conexão objetiva que não existia
em tempos de crise13, era possível restabelecer o elo de confiança com os
espectadores, e isso fortalecia a luta social. O encontro da unidade perdida
seria capaz de representar que o estado problemático, que teve origem com o
avanço do capitalismo, estava superado.
Contudo, Brecht criticou esse tipo de visão (como a de Lukács e dos
marxistas ortodoxos) porque para ele nenhuma organização estética ou política
seria capaz de devolver à humanidade uma harmonia que sempre foi ilusória e
que ali estava mais do que evidente. Não é possível voltar a um estado anterior
ou a um período histórico em que tudo parecia fazer mais sentido. A tentativa
de retomar formas antigas e adaptá-las aos novos conteúdos resultaria,
12 Essas ideias foram retiradas de História e Consciência de classes, em que Lukács defende a importância de um marxismo ortodoxo. 13
“Nosso mundo tornou-se infinitamente grande e, em cada recanto, mais rico em dádivas e perigos que o grego, mas, essa riqueza suprime o sentido positivo e depositário de suas vidas: a totalidade. Pois totalidade, como prius formador de todo fenômeno individual, significa que algo fechado pode ser perfeito; perfeito porque nele tudo ocorre, nada é excluído e nada remete a algo exterior mais elevado; perfeito porque nele tudo amadurece a própria perfeição e, alcançando-se, submete-se ao vínculo. Totalidade do ser só é possível quando tudo já homogêneo, antes de ser envolvido pelas formas; quando as formas não são uma coerção, mas somente a conscientização, a vinda à tona de tudo quanto dormitava como vaga aspiração no interior daquilo a que se devia dar forma; quando a saber é virtude e a virtude, felicidade; quando a beleza põe em evidencia o sentido do mundo.” [LUKÁCS, 2000, p.31]
98
portanto, sempre numa atitude formal. O problema aí é que tanto Lukács como
Brecht estavam em luta contra o formalismo, mas em polos opostos:
(...) a literatura proletária se esforça por aprender formalmente a partir de obras do passado. Isso é natural. Reconhece-se que não se pode pura e simplesmente passar por cima de fases anteriores. O novo deve ultrapassar o velho, mas deve ao mesmo tempo tê-lo dentro de si, ‘superá-lo’. Tem de se reconhecer que há agora uma nova aprendizagem, uma aprendizagem crítica, uma aprendizagem transformadora e revolucionária. Há coisas novas, mas que nascem de luta com as velhas, não sem estas, nem a partir do nada. Muitos esquecem a aprendizagem ou tratam-na desdenhosamente, como questão formal, enquanto outros consideram o momento crítico como questão formal, como qualquer coisa de óbvio. [BRECHT, apud MACHADO,p.253]
O medo de Lukács era de que, caso o mundo continuasse sem a ideia
de totalidade, o homem se perdesse cada vez mais em ideias vagas, sem
objetivo, como soava para ele a busca por inovações formais. Para ele a busca
tinha que ser por ideais, que, no caso, seriam trazidos pela figura do homem
total que se esperava alcançar através do realismo crítico. A ideia de que a
totalidade se perdera, isso podia ser percebido mais friamente no romance – a
forma do drama que para ele substituíra a tragédia grega 14 –, mas em
momentos como aquele, de crise, era melhor que não se apostasse no que
ainda era incerto, como por exemplo os experimentos de Brecht, que se
apoiavam numa teoria nova sobre teatro.
Ou seja, em conformidade a essa avaliação, Lukács estava preso a
conceitos que atrelavam a sua figura à de um conteudista. O apego ao
conteúdo e a despreocupação em buscar novas formas culminaram, porém, na
retomada daquelas já existentes. Uma regressão que, como se sabe, foi
rejeitada por Brecht principalmente porque se propunha um teatro que salvaria
a arte do estado em que ela tinha se instalado, e não havia nada de
revolucionário em copiar antigos modelos. Sobretudo a busca por um sistema
de regras que se pretendia completo em si mesmo era uma falha que já tinha
sido experimentada anteriormente.
No entanto, Lukács e os conteudistas opuseram-se contra todas e
quaisquer tentativas de expressar a ausência dessa totalidade, pois confiavam
14
Teoria que defende na obra Teoria do Romance.
99
que era possível a sua construção. Mas, para autores como Brecht, defender a
presença da totalidade era criar uma ilusão, conferindo à arte um aspecto
otimista diante da dura realidade. No fundo, tratava-se da apropriação de uma
arte passada, ou seja, mais uma vez nesse sentido, não deveria ser tratada
como realista, mas como uma arte totalitária:
Os aluviões do realismo crítico dentro do novo universo estendem-se de modo natural; a transição do realismo crítico para o realismo socialista deve realizar-se suavemente, quase imperceptivelmente. Na medida em que o realismo crítico vá transformando sua atitude de repúdio ao capitalismo numa atitude positiva de índole socialista, a conversão será mais fácil e cumulativa, e ele trabalhará como um receptáculo dos mais ricos tesouros artísticos da literatura universal. [POSADA, 1997, p. 124]
Nisso tudo, é possível enquadrar a atitude de Lukács e seus aliados
como responsável por levantar mais uma vez na história a bandeira
indiretamente mencionada no primeiro capítulo, que, por querer manter um
vínculo com valores antigos, barrou novas ideias, mesmo que essa não fosse
inicialmente a intenção. Os desvios típicos de cada época, por exemplo, foram
deixados de lado, e para artistas como Brecht eles eram dados fundamentais,
assim como ele entendia por fundamental a compreensão desses desvios –
como é o exemplo do expressionismo – porque eles muitas vezes causaram
um movimento rumo à mudança, tratando como possível a superação do
ilusionismo criado pelo modelo, que por muito tempo só se manteve por essa
característica de fazer os homens acreditarem numa ordem harmônica e única.
Entende-se agora porque uma reflexão destinada aos espectadores
também não foi bem acolhida pela ideologia do realismo socialista. Ali existia o
interesse de convencer e não de levar os indivíduos a pensar. Os mais
intelectualizados, como é a posição em que Lukács e os demais do partido se
colocaram, pretendiam convencer os espectadores de que aqueles ideais eram
a saída e que para atingir a revolução e uma nova ordem, era necessário que o
público se submetesse e aceitasse o que propunham como verdade, sem
propor questões que atrasariam o processo.
No item anterior deste capítulo, mostrou-se como a crença de Brecht
estava baseada na construção conjunta entre palco e plateia. A partir daí,
compreende-se por que quando entra em contato com aquilo que pretendia o
100
partido comunista, Brecht encontra motivos para acreditar que só poderia surgir
dali um sistema tão alienante quanto aquele que tinha se tornado o burguês. E
mais tarde isso se evidenciou quando o realismo socialista optou por retratar no
palco a realidade como consistente, sendo que o que mais havia nela eram
dúvidas e incertezas. Aquele tipo de realismo, assim como o burguês, queria
levar o espectador a aceitar que os ensinamentos ali transmitidos no palanque
seriam suficientes para torná-lo apto a construir suas visões críticas próprias.
Ao que constatou Brecht, essa forma não trazia nada de diferente daquilo
proposto até então e, portanto, ele não poderia deixar de atribuir o fracasso
daquele realismo a atitudes como essa, que fez o movimento que o teatro
burguês tinha seguido.
Brecht investiu num teatro que, antes de tudo, servisse à classe
“desinformada” porque acreditou na possibilidade de ajudar a produzir
consciências. E quando se refere à “produção” de consciências não a uma
“formação”, quer-se trazer a dimensão dada por Brecht e observada por Walter
Benjamin, de um teatro em que os espectadores são produtores ao assumirem
uma atitude crítica. Ao contrário do que exige o sistema capitalista – uma ação
produtiva dentro do sistema, num trabalho que, por outro lado, afasta o
indivíduo de uma atitude crítica perante a vida –, no teatro brechtiano, os
indivíduos se divertem com essa posição, no domínio que eles em conjunto
com o palco adquirem sobre os fatos da realidade, e não mais como o teatro
burguês, em que eles eram levados a esquecê-los. Esse teatro visa trazer à
consciência dos espectadores um esclarecimento de que, embora eles possam
se sentir à parte no processo de produção da era científica, sem eles ela não
existiria, e que assim como tudo na vida, o homem deve, sim, querer se
responsabilizar por aquilo que produz, pois só assim ele poderá ter domínio de
si mesmo e depois da realidade:
O teatro pode, assim, levar seus espectadores a fruir a moral específica da sua época, a moral que emana da produtividade. Tornando a crítica, ou seja, o grande método da produtividade, um prazer, nenhum dever se deparará ao teatro no campo da moral; deparar-se-ão, sim, múltiplas possibilidades. A sociedade pode mesmo extrair prazer de tudo o que apresente um caráter associal, desde que o apresentem como algo vital e revestido de grandeza; assim nos revela, com frequência, forças intelectuais e inúmeras capacidades de especial valia, empregadas porém, evidentemente,
101
com propósitos destruidores. Ora bem, a sociedade pode mesmo gozar livremente, em toda a sua magnificência, dessa torrente que irrompe catastroficamente, desde o momento que lhe seja possível dominá-la, passando nesse caso a corrente a ser sua. [BRECHT, 2005, p.137]
Brecht e Benjamin concordavam que a “inteligência de esquerda” da
Alemanha naquela época carecia de repensar suas abordagens. Benjamin
tratou disso num texto intitulado “Melancolia de Esquerda”, quando pensou os
poemas de Erich Kästner como exemplos de um ‘ativismo’ pretendido por essa
pequena burguesia de esquerda que se posiciona como classe revolucionária,
mas que, na verdade, reveste suas ações de hipocrisia, de não-ação por se
prender ao sentimento melancólico perante à realidade social e econômica e
tão somente a ele: “o ódio que ela proclama contra a pequena burguesia, tem
um aspecto próprio de pequeno burguês por sua intimidade excessiva.”
[BENJAMIN, 1986, p.138]
Esse é, por exemplo, o caso de Lukács, que se inflamou desse ódio, e
mesmo sabendo do esgotamento de uma ordem que pertenceu ao passado,
insistiu em seu resgate nos confins, pondo em risco a possibilidade de uma
efetiva revolução política dentro da arte, o que Benjamin discute na citação:
Os poemas de Kästner pertencem às pessoas de alta renda, esses fantoches tristes e canhestros, cujo caminho passa pelo meio dos cadáveres. Com a solidez de sua blindagem, a lentidão de seus movimentos, a cegueira de suas ações, esses indivíduos, como um café na city, depois do fechamento da bolsa. Não admira que a sua função seja a de reconciliar esse tipo consigo mesmo, produzindo a identidade entre a vida profissional e a vida privada que as pessoas chamam de humanidade, mas que é de fato bestial, porque, nas condições atuais, a verdadeira humanidade só pode consistir na tensão entre os dois polos. Nessa polaridade se localizam a reflexão e a ação. Produzi-la é a tarefa que qualquer lírica política, e a sua realização mais rigorosa se encontra, hoje, na poesia de Brecht. Em Kästner, ela cede lugar à arrogância e ao fatalismo. É o fatalismo dos que estão mais longe do processo produtivo, e cuja furtiva atitude de cortejar a conjuntura é comparável à atitude do homem que se dedica inteiramente a investigar os misteriosos caprichos da sua digestão. É certo que os movimentos viscerais nesses versos têm mais de gasoso do que de sólido. A melancolia e a obstrução intestinal sempre estiveram associadas. Mas, desde que no corpo social os sucos gástricos deixaram de funcionar, um ar sufocante nos persegue. Os poemas de Kästner em nada contribuem para purificar o ambiente. [BENJAMIN, 1994, p.77]
102
Havia ideias revolucionárias que não vingavam porque, por mais que
aqueles autores se dirigissem ao proletariado e solidarizassem com as classes
desfavorecidas – não só economicamente, mas também a nível intelectual –
mais uma vez, como fizera a burguesia ao desenvolver o naturalismo, não
havia um diálogo real entre as duas partes. O que houve foi um acomodamento
dentro do primeiro aspecto que normalmente estimula uma revolução; a
confrontação da realidade e a negação da mesma.
A construção entre palco e plateia tinha a intenção de reverter essa
atitude – entendida por Brecht e Benjamin como reacionária – para outra
verdadeiramente revolucionária, onde todos participam. Por esses motivos é
que Brecht e Benjamin não se consideravam marxistas ortodoxos, ao contrário
de Lukács, para quem a arte não tinha autonomia dentro da sociedade. Para os
marxistas ortodoxos havia uma ideia pronta do que se queria falar, ela
funcionava como uma forma didática, que, por sua vez reduzida ao efeito
conservador, concedia aos indivíduos uma visão pronta do mundo. Sob essas
determinações a arte nunca seria realista. Como vimos, o realismo para Brecht
não significava olhar para os fatos e aceitá-los, mas é arte enquanto criadora
de novidades, ou seja, enquanto produtora das próprias impressões, não se
resumindo ao senso-comum. O que se pode trazer de inovador para o
ambiente do teatro não vem construído, mas mobiliza o espectador a ser ativo,
a construir também:
A diferença entre forma e técnica é, pois, decisiva. Técnica é uma forma desligada de seu conteúdo, convertida em instrumento, destinada a viver sucessivas confrontações com uma temática até que, uma vez alcançada a correspondência desejada pelo artista, recobre seu caráter de forma. O interesse de Brecht pela técnica não deriva de uma vontade de dissolver a forma do conteúdo; é, porém, o desejo sempre renovado de encontrar novas formas para novos conteúdos. Mas a crítica normativa assumiu, perante esta questão da técnica, uma posição que pouco ajuda os escritores. Ela é subestimada em favor de generalizações preconcebidas, fala-se de perpetuar o realismo crítico sem examinar os aspectos formais e técnicos próprios dos diversos realistas que viveram dentro de diferentes classes sociais e em tempos diferentes. [POSADA, 1970, p. 221]
Nem o teatro burguês, nem o teatro comunista, mostraram ao indivíduo
que ele tinha poder para agir sobre a realidade. Não tinham a intenção de fazer
103
o espectador compreender, não o incitaram a analisar a história e a criticá-la,
porque havia interesses políticos e econômicos por detrás. O teatro burguês,
inserido num sistema econômico regido pela exploração, construiu a sua base
a partir da reificação e alienação dos indivíduos. O teatro comunista, que
deveria ser o contraponto desse teatro, limitou-se à luta de classes, à igualdade
econômica e esqueceu-se de investir numa igualdade intelectual:
Necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as sensações, as ideias e os impulsos que são permitidos pelo respectivo contexto histórico das relações humanas (o contexto em que as ações se realizam), mas, sim, que empregue e suscite pensamentos e sentimentos que desempenhem um papel na modificação desse contexto. [BRECHT, 2005, p.142]
Nesse capítulo procurou-se expor como a despreocupada busca formal
de Brecht o tornou ao olhar de Lukács15, um formalista. O que se encontrou foi
que não somente ele não poderia ser considerado um formalista, como
também aqueles que o acusaram acabaram seguindo esse viés. Descobriu-se
também que Brecht não elaborou um modelo fechado, e isto será desenvolvido
no próximo capítulo, no qual se mostrará como ele, mais certo daquilo que não
queria, empreendeu objetivamente o seu projeto para a formação de um novo
público de teatro, sem se limitar aos excessos promovidos por um modelo
fechado fadado a tornar-se ultrapassado, ao não respeitar a característica da
realidade como transformável:
‘Toda a nova meta exige novos métodos.’ O novo teatro é ‘novo’ porque houve uma ‘troca de sua função social’. O teatro épico procura contribuir para a transformação da sociedade, valendo-se dos meios aptos para suscitar no espectador uma atitude favorável a essa transformação. Em outras palavras o teatro deve dar-nos imagens válidas da vida coletiva, que nos ensinem as condições nas quais vivemos, permita-nos compreendê-las ou refletir sobre elas para podermos atuar. [POSADA, 1970, p.54]
15
Nesse capítulo, quis-se incluir à pesquisa a polêmica entre Lukács e Brecht, a fim de se compreender como Brecht entendeu o realismo. No entanto, deve-se acrescentar aqui que, assim como Brecht, também Lukács passou por fases, e numa última com relação a Brecht, conseguiu reconhecer seu valor artístico. É possível observar pelas peças referidas por Lukács, como “A alma boa de Setsuan” e “Vida de Galileu”, que elas se referem à última fase do autor, justamente a que interessa para o próximo capítulo, quando ele finalmente conseguiu resolver artisticamente aquilo que a teoria como a de Lukács não entendia, quando os dois debateram na década de 30 as questões que apresentamos aqui.
104
Capítulo 3. O Brecht maduro
Outrora pensei: em tempos distantes Quando tiverem ruído as casas onde moro E apodrecido os navios em que viajei Meu nome ainda será lembrado Juntamente com outros. Porque louvei as coisas úteis, o que no meu tempo era tido como vulgar Porque combati as religiões Porque lutei contra a opressão ou Por um outro motivo. Porque fui a favor dos homens e tudo Coloquei em suas mãos, honrando-os assim Porque escrevi versos e enriqueci a língua Porque ensinei o comportamento prático ou Por qualquer outro motivo. Por isso achei que meu nome ainda seria Lembrado, em uma pedra Estaria meu nome, retirado dos livros Seria impresso nos novos livros. Mas hoje Concordo em que seja esquecido. Por que Perguntariam pelo padeiro, havendo pão suficiente? Por que Seria louvada a neve que já derreteu Havendo outras neves para cair? Deveria haver um passado, havendo Um futuro? Por que Deveria meu nome ser lembrado?
1
Um filho da era científica. Admirador das grandes conquistas da raça
humana, de repente, se viu surpreendido pela quantidade de atrocidades
provocadas por essa mesma raça e decidiu que era preciso direcionar o olhar,
que só podia estar equivocado. Tendo tudo às mãos, não deveria mais ser
aceitável a esse homem, fora de sua figura de bárbaro e de total selvagem,
continuar comportando-se como tal, principalmente diante da oportunidade de
se posicionar cada vez mais como um ser racional, cada vez mais afastado de
sua condição primitiva enquanto ser-bicho. Bertolt Brecht parece sempre ter
acreditado na evolução da humanidade nesse sentido e, como se tentou
1 Poema de Bertolt Brecht, “Por que deveria meu nome ser lembrado?”. Poemas (1913-1956).
Seleção e tradução de Paulo César de Souza – São Paulo: Ed. 34, 2000.
105
explanar nos dois capítulos anteriores, acreditou também que houve desvios,
tomadas de decisão precipitadas que fizeram o homem, orgulhoso de seus
feitos, reduzir as grandes possibilidades a ações pequenas, tantas delas
carentes de sabedoria, que se esperava como ação do esclarecimento do novo
homem.
Por esses motivos é que Brecht se voltou nos primeiros anos de sua
carreira para a descoberta dessas conflitantes decisões. Atividade à qual ele se
dedicou durante algum tempo para mostrar que, talvez, o grande erro para elas
terem acontecido tivesse sido sempre a falta de calma, a exasperação idealista
que fez com que as escolhas imediatas se transformassem em valores fixos,
cujo desapego parecia impossível. Na primeira fase de seu trabalho, ele
mesmo interpretou um papel semelhante e escolheu precipitadamente certos
caminhos. Mas como tinha a insatisfação a seu favor, pôde escolher também
rever as decisões que fez no começo e, assim, sua obra conquistou um lugar
inesperado. É sobre esse lugar que este capítulo quer tratar.
No início da carreira, Brecht aceitou alguns conceitos já estabelecidos,
assumindo de pronto um compromisso sério com a denúncia e a crítica, para
ver se sentia em seu íntimo o que significava realmente a criação de um teatro
político – a aproximação do teatro como o de Piscator, por exemplo, é uma
delas. Porém, ele descobriu através da junção entre experimentos teóricos e
práticos que para que o teatro que ele queria se tornasse palpável, não poderia
se bastar a construir verdades, ou a distribuir conceitos já formulados, mas
teria que insistir numa espécie de atuação que promovesse a emancipação dos
indivíduos.
Portanto, através dos acontecimentos da história que analisou, Brecht
justificou tudo aquilo que deveria ser negado e também o que os homens
deveriam retomar (a exemplo das construções áureas do passado), se
quisessem fortificar a construção de um bem comum, que sempre exigiu tanto
trabalho: a convivência entre os semelhantes, a dimensão de um coletivo para
além das relações de submissão e soberania. Se Brecht, primeiro, esteve
preso à ideia de defesa dos fracos e oprimidos, e buscou denunciar as
injustiças que rondavam o mundo capitalista, com uma observação
amadurecida do termo social, ele passou a acreditar que o caminho para
combater essas injustiças deveria ser outro. Descobriu, então, que deveria
106
seguir potencializando os questionamentos que poderiam significar, por fim, o
abandono das antigas crenças e dogmas.
Um princípio inabalável guiou Brecht em sua empreitada e permaneceu
ileso em sua busca: aquele que compreende que toda a construção é ao
mesmo tempo desconstrução e que em todo o aparecimento há muito de
desaparecimento. Tanto na teoria quanto na prática, Brecht agiu conduzido por
isso e são os resultados desse trabalho que este capítulo pretende abordar,
porque a segunda fase do autor (que na introdução deste texto se prometeu
defender) é finalmente a concretização de um abdicar ininterrupto, sofrido por
qualquer artista e pensador que ama a causa motivadora de suas produções.
E assim como o amor tem muito de liberdade (ao contrário do que o
tempo glorificou), o envolvimento de Brecht com seu trabalho e a produção
teatral também teve muito de querer libertar e de, a todo o custo, se exercitar
para que nem a vaidade, nem os apelos de suas carências tomassem conta de
tudo o que seu espírito poderia produzir de grandioso – que era fazer do teatro
um lugar de transformação tanto dos artistas quanto dos espectadores:
Em contraste, o teatro épico conserva do fato de ser teatro uma consciência incessante, viva e produtiva. Essa consciência permite-lhe ordenar experimentalmente os elementos da realidade, e é no fim desse processo, e não no começo, que aparecem as ‘condições’. Elas não são trazidas para perto do espectador, mas afastadas dele. Ele as reconhece como condições reais, não com arrogância, como no teatro naturalista, mas com assombro. Com este assombro, o teatro épico presta homenagem de forma dura e pura, a uma prática socrática. É no indivíduo que se assombra que o interesse desperta; só nele se encontra o interesse em sua forma originária. Nada é mais característico do pensamento de Brecht que a tentativa do teatro épico de transformar, de modo imediato, esse interesse originário num interesse especialista. O teatro épico se dirige a indivíduos interessados, que ‘não pensam sem motivo’. Mas essa é uma atitude que eles partilham com as massas. No esforço de interessar essas massas pelo teatro, como especialistas, e não através da ‘cultura’, o materialismo histórico de Brecht se afirma inequivocamente. ‘Desse modo, teríamos muito breve um teatro cheio de especialistas, da mesma forma que um estádio esportivo está cheio de especialistas.’ Em consequência, o teatro épico não reproduz condições, mas as descobre. A descoberta das situações se processa pela interrupção dos acontecimentos. O exemplo mais primitivo: uma cena de família. A mulher está amassando um travesseiro, pra jogá-lo na filha; o pai está abrindo a janela, para chamar a polícia. Nesse momento, aparece na porta um estranho. Tableau, como se costumava dizer, no princípio do século. Ou seja: o estranho se depara com certas condições – travesseiro amarfanhado, janela aberta, móveis destruídos. Mas existe um olhar diante do qual mesmo as cenas mais habituais da vida de família apresentam um aspecto semelhante.
107
Quanto maiores as devastações sofridas por nossa sociedade (e quanto mais somos afetados por elas, juntamente com nossa capacidade de explicá-las), maior deve ser a distância mantida pelo estranho. [BENJAMIN, 1994, p.81-82]
Distanciamento, interrupção. Montagem, estranhamento, teatro não-
aristotélico, teatro épico, teatro didático. Todos esses conceitos compõem em
parte o teatro que Brecht defendeu e juntos formam uma modalidade
inovadora, cuja regra irrevogável é que cada processo deverá ser sempre
único, uma experiência. Embora tenham sido aplicados de maneira endurecida
no começo, com o tempo a intimidade criada na combinação dessas técnicas e
revisão dessas aplicações conduziu a uma visão totalmente diversa da função
tradicional de teatro. E é esse o núcleo desta dissertação: essa tal visão, que
Brecht construiu através de suas experiências e a que ele finalmente chega –
no período entre a década de 30 e 40. Aquele trajeto traçado pelo jovem Brecht
até a sua fase mais madura permitiu que ele se aproximasse cada vez mais da
responsabilidade com o fator social, até que se visse de tal forma
comprometido que a sua maior preocupação – a relação entre palco e plateia –
se tornou tão essencial a ponto de não mais se ver um artista criando uma obra
de arte, mas lançando a sua obra como um projeto de futuro.
Anteriormente mostrou-se como a necessidade de uma mudança na
função social da arte sempre determinou a frente da ação de Brecht. Pode-se
dizer inclusive que, se alguma vez quis desenvolver algum método (já que é
tão frequente relacionarem a sua figura à de um metódico), certamente ele
valeu mais propriamente para a forma como lidou com seus objetivos e pelo
fato de saber exatamente aonde queria e poderia chegar. Não saiu por aí,
produzindo como um apaixonado cego por sua criação, e mesmo que não
tivesse ideia de como chegar ao que pretendia, também não se deu por
satisfeito até que conseguisse mostrar o que era aquilo que sonhara para o
teatro. Brecht partiu de uma especificidade em sua obra para depois ampliá-la:
“dinamicidade irredutível que o transforma num trabalho radicalmente e por
definição em progresso, trabalho que não sabe ‘acabar-se’ senão como
autoultrapassamento contínuo, em interna, digamos, revolução permanente.”
[PASTA, 2010, p.255]. Há segundo, José A. Pasta, uma continuidade entre o
Brecht de 1926 e o de 1954. Mas, particularmente, no que diz respeito aos
108
clássicos, há uma espécie de oposição, porque o segundo Brecht se propôs a
retomá-los enquanto que o primeiro defendeu o afastamento dessas obras e
priorizou os novos e desconhecidos autores.
Passada a fase de negação, Pasta analisa o movimento realizado por
Brecht e passa a vê-lo como um clássico em construção, que ele relaciona com
uma espécie de “legado brechtiano” – o que inclui tanto a denúncia ao abuso
dirigido às obras pela tradição, como também o seu projeto de se tornar ele
mesmo um clássico. A ideia, portanto, de pretender que sua obra se firme
como clássica – de uma maneira bastante particular, que ele teria desenvolvido
com o legado – estende-se para outros campos de seu pensamento, inclusive
à despretensão mencionada no capítulo anterior de se portar como um
intelectual:
Sua atitude em relação ao aproveitamento dos clássicos e à postura clássica variou notavelmente ao longo de sua vida, como iremos observar noutra parte, mas, no que se refere às limitações e malefícios de tal condição, sua atitude foi inalteravelmente a mesma, e de clara consciência, como o atestam escritos tão distantes entre si, separados por uma guerra mundial, pela experiência do nazismo, dos anos de exílio e pelo retomo à Alemanha dividida. Nisso é que tal atitude nos interessa, pois também em relação a esta consciência é que ganha sentido, em sua especificidade, o projeto clássico de Brecht, tal como acreditamos que ele se define. Se realmente há, em Brecht, uma opção de corte clássico, dialeticamente a ela, ao se definir, deve incluir nos seus cálculos o risco de neutralização. [...] Haveria, assim, colaboração e embate simultâneos entre a obra de Brecht e a sua divulgação, de modo que a elevada taxa de redundância na sua crítica brechtiana nos atrapalha e nos ajuda, mas não desfaz, para este trabalho, o nó do seu tema; ela nos reconduz a ele, como se está vendo, e tratar-se de continuar a trabalhá-lo – pois o estatuto dessa redundância depende do estatuto da classicidade em Brecht e, nesta passagem, pouco pudemos levantar mais que a variação de algumas hipóteses. Sua verificação, como vimos pouco anteriormente, depende, por seu turno, de que se apanhe o projeto clássico no movimento de sua constituição e contradição internas. De resto trata-se, também neste caso, de seguir a indicação do próprio Brecht que, ainda a respeito dos clássicos e da barragem de redundância que os afeta , diz: ‘[...] precisamos iluminar seu conteúdo ideológico original, extrair sua importância nacional e portanto internacional; precisamos estudar a situação histórica da época em que a obra foi escrita, a natureza particular do autor e a perspectiva que adotou.’ [...] Em todo caso, ele acrescenta, algo consolatoriamente, para nós, que ‘esse estudo apresenta algumas dificuldades das quais já se falou e ainda se falará muito’, mas adverte, em seguida, para outro ‘obstáculo’, que chamou de ‘intimidação pelos clássicos’, ou seja, o risco de ficarmos medusados pela ampliação desmedida de sua grandeza.” [PASTA, 2010, p.130-132]
109
Uma vez que a intimidação diante dos clássicos era provocada pela
tradição, quando Brecht quis fazer jus a essas heranças precisou primeiro
negar essa ação por parte dos tradicionalistas. E mesmo que depois tenha sido
visto como negador dessas grandes obras, demonstrou com as análises
dirigidas a Aristóteles, a Diderot, Lessing e Goethe como estava equivocada
essa posição que o considerava um radical nesse sentido, como se quisesse
por acaso apagar, ou menosprezar as produções históricas2. A radicalidade
atribuída a Brecht, tinha a ver com a forma de lidar com elas. Sua crítica quis
de maneira irônica e consequente repelir aquelas apropriações que geraram
frutos desfavoráveis para o avanço das criações artísticas. Não à toa, quando
Brecht se ocupou da tradição alemã, que inclui autores como Schiller, seu
descontentamento muito próximo àquele que o afastou de Lukács tinha a ver
com a construção de uma visão idealista por parte desses autores, que, por
concederem privilégios demais à moral, esqueceram inevitavelmente do que
para ele era muito mais importante: o aspecto social das obras. E foi esse
aspecto que esteve sempre no centro para Brecht, até quando se aproximou de
obras do passado.
Na apropriação da qual se serviu, Brecht retomou heróis, autores e
técnicas. Defendeu esse uso, e a sua defesa estava pautada na causa que o
guiou desde o início, que o impedia também de ficar deslumbrado e fazer mais
uma vez das apropriações, meras cópias. Na contramão de uma ação
tradicional, ao mesmo tempo em que fazia usufruto daquelas histórias,
conseguiu reafirmar também a crítica à tradição, à manutenção da ideia de
continuidade dos acontecimentos e projetar aquilo que queria que fizessem de
2 “Neste sentido, estes escritores reatam com uma longa tradição, ao entrar na ‘discussão
sobre tais caracteres [que] não se interrompe desde Aristóteles’ – discussão em cujo extenso curso sua intervenção passa a constituir um estágio para sempre fundamental. É contra este pano de fundo de uma longa tradição que ganha dimensão clássica até mesmo o que seu gesto tem de ruptura, tanto no uso goethiano de seu Faustrecht, quando na incitação de Schiller ao declarar que ‘o assunto moderno impõe, cada vez mais, uma aproximação dos gêneros’. O caráter clássico desta ruptura, paradoxo aparente, denuncia-se sobretudo no movimento nada precipitado ou impensado da fusão dos gêneros; ao contrário, se ‘impõe que se aproximem’ épico e dramático, evita-se cuidadosamente a criação da forma ‘monstruosa’, do hibridismo disforme ou quimérico: isto se faz com prudência e análise, abandonando-se o rigor da forma herdada – e que representa uma conquista – apenas naquilo em que sua superação orgânica e ponderada se revela indispensável sob o crivo da reflexão e da análise. Daí ressaltar Lukács que ‘a enorme importância de seus escritos teóricos que analisam a essência deste período [...] reside em que eles explicam de uma parte a necessidade histórica e objetiva do caráter problemático de seus próprios esforços e, de outra parte, deduzem precisamente desta base contraditória as leis formais específicas da arte moderna, a saber, de um classicismo contemporâneo.” [PASTA, 2010, p. 211]
110
sua obra. Através da experimentação, conseguiu finalmente derrubar a
conhecida e respeitada “grandeza artificial das obras clássicas”3, cedendo um
verdadeiro respeito àquelas histórias que, de tanto repetidas (sempre do
mesmo modo), estavam perdendo o valor e já não conseguiam dizer mais nada
sobre o velho mundo, tampouco sobre o novo. Brecht, ao agir dessa forma,
deixou uma contribuição valiosa para o passado, presente e futuro. E a noção
de obra, como algo sempre em construção, ele atribuiu à própria obra,
defendendo ainda que conhecimento histórico deveria servir às novas épocas
para fazê-las avançarem e não para reduzi-las:
Há alguns aspectos pelos quais, sob condições determinadas, o estabelecimento de um projeto clássico pode ganhar um radical poder de contestação, muito fácil de não ser percebido – quando não tem pior sorte e, diante de outras formas de ruptura, às vezes menos importantes, porém mais gritantes ou embandeiradas, é confundido com o vulgar conservadorismo, senão com a própria reação. [PASTA, 2010, p. 255]
Por isso, a classificação do “projeto clássico de Brecht” feita por Pasta
especifica o sentido da obra do dramaturgo como uma propriedade inacabada,
que é como Brecht concluiu que ela deveria ser entendida. Com o tempo, ele
pareceu ter encontrado a fonte de sobrevivência de seu teatro. E diferente do
que se esperava no começo, como o projeto de um sistema tão completo como
3 “Mas o elemento radicalmente novo na postura de Brecht, mais do que o dado básico do novo
reconhecimento de validade da retomada dos clássicos, está no conjunto das condições em que ela é proposta. Elas agora obedecem a traçado seguro, cuja nitidez denuncia a existência do ponto de vista firme e perfeitamente focado. Entre elas reencontramos as críticas à velha tradição de encenação dos clássicos e à sua ‘renovação formalista’. A junção dessas críticas à proposta fundamental de historicização dos clássicos, neste texto, entretanto, longe de surgir apenas por disseminação ou por mera justaposição, realiza-se já como articulação antiética de seus três termos, cada um deles, além disso, perfeitamente delineado e esclarecido. Apenas a historicização, que se opõe a ambas, pode ao mesmo tempo superar a ‘tradição de deterioração das obras clássicas’ e desmistificar a ‘resposta formalista’ que a renovação anacronizante pretende lhe contrapor. A historicização, por sua vez, surge como ruptura daquela ‘grandeza’ artificial das obras clássicas, anteriormente mencionada, ruptura que só se obtém mediante sua cuidadosa re-contextualização (das obras clássicas), capaz de neutralizar a transmissão, ‘a vácuo’ da herança que é constitutiva da classicidade burguesa. Principalmente, aí, se consolida a politização da perspectiva artística: estamos diante de um pensamento que já inclui uma consideração integrada da função da herança. O Brecht que produz este texto, em 1954, é aquele que já executou o gesto calculado e estratégico da recuperação de Lenz e já definiu a função propedêutica dos clássicos nacionais; é o Brecht da reorganização da herança, enfim, ao mesmo tempo que o fundador de uma nova tradição. O próprio convite à retomada dos clássicos que aí se faz já tem, ele mesmo, um valor de intervenção: é o gesto de um homem que definiu com integralidade uma práxis política da cultura e, sem oscilação, é capaz de propô-la executá-la exemplarmente.” [PASTA, 2010, p.247-248]
111
o de Aristóteles, a concepção de Brecht assumiu de vez que, se dentro da
história o teatro sempre teve e teria uma função social – e que ela é
determinada conforme a época –, então as experimentações sempre deveriam
seguir novos rumos, o que sugeria que consequentemente haveria um “não
apego”. Semelhante ao que de certa forma conclui Luciano Gatti sobre o
sentido que a peça de aprendizagem (ou didática) adquiriu para Brecht, que,
como já se viu anteriormente, também se tornou muito mais largo que o sentido
normativo comumente relacionado à pedagogia, e está muito relacionado ao
projeto dele:
O atributo da permanência condiz pouco com a intenção de Brecht. Seria mais razoável ver nessas peças indicações para experimentações e exercícios de grupos interessados em retomar algumas das questões propostas, sem, contudo, pretender recuperar os contornos de uma encenação original canônica. Ao referir-se à Medida, o próprio Brecht salientou que a peça constituía-se apenas de uma estrutura básica, sendo que caberia à encenação incluir novas cenas esboçadas a partir da experiência concreta dos ensaios. Brecht, ao encenar suas peças também as modificava com base nas necessidades da época de encenação. A fidelidade a um original é estranha a seu projeto, o que situa tal teatro diante de uma dupla crítica à noção de peça de repertório: deveríamos aceitar a efemeridade de uma conjunção histórica e teatral irrepetível, com a consequente renúncia à possibilidade de tornar a encenar tais peças; ou então caberia enfrentar o risco da infidelidade e do desrespeito ao texto e às técnicas do mestre, mas também o risco da experimentação e da liberdade, com o intuito de ‘testar’ a conjunção de componentes de uma experiência teatral passada com outros do presente mais recente. Questões como essas deveriam estar no horizonte da atualização estratégica brechtiana de refuncionalização da prática teatral. [GATTI, 2012, p.11]
Essa fase de maturidade compreende, portanto, o alcance de Brecht a
uma visão complexa sobre o comportamento do novo teatro com relação ao
público e à concretização da possibilidade dessa experiência, que visava
alcançar a mudança de função da arte através da formação de uma nova
espécie de espectador. Embora tenha finalmente descoberto uma possível
maneira de chegar a esse encontro, Brecht percebeu que só teria sentido
defendê-la se tivesse uma continuidade depois de sua morte, pois não seria da
noite para o dia que o teatro, viciado numa estrutura tradicional, conseguiria
transformar os indivíduos e a sociedade. Isso Brecht presenciou em suas
experiências.
112
Novamente recorrendo à tese defendida por Pasta, é de extrema
importância para a compreensão das intenções brechtianas notar como a
disposição em fazer de si um patrimônio coletivo transformou Brecht num
artista ainda mais admirável. O desapego da imagem de artista e pensador
como produtor de conhecimentos – ou daquele que espera alcançar uma
legitimidade tal que lhe desse certo poder dentro do teatro sempre intacto – fez
com que estivesse permanentemente na busca de aprimorar-se e de ser
surpreendido por novas descobertas:
Não é outra coisa senão ao trabalho de dar a essa dimensão exemplar coletiva, que Brecht chamou organização para a glória, ou para o escândalo, trata-se de organizá-los em exemplaridade. Esta moralidade não era professoral ou dogmática, mas da ordem de uma moral interrogativa, por isso mesmo uma moralidade ou um impulso, um desejo e uma necessidade ética em movimento. Dos elementos que a configuram, já temos a dimensão coletiva associada a sua preocupação de exemplaridade, elementos cujo sentido, mais adiante, devemos explorar melhor. [PASTA, 2010, p.64-65]
“Para uma concepção coletiva de poesia”, Brecht tornou-se também um
ser coletivo. Além de ter seu espírito tomado por esse sentimento, aquilo que
praticou em todos os campos de sua vida denotou essa preocupação. Isso
explica por que sua vida era o teatro, por que para Brecht fazer teatro era viver
e não fazê-lo era o mesmo que estar morto. Essa dimensão que priorizava o
coletivo fez dele um nômade dentro da história. Um homem contra a
propriedade intelectual, artística, contra a ideia de obra como propriedade.
Assim também para a política e para outros campos da vida como as relações
entre as pessoas. Propriedade é algo que caracteriza bem a burguesia e
Brecht opôs-se à consagração da tradição e dos monumentos.
No entanto, se a intenção do projeto de Brecht era deixar algo para uso
das próximas épocas, ele precisava criar não apenas o que negasse a tradição,
mas algo que servisse para substituí-la, para fazer o contraponto. Apesar de ter
começado com uma postura que defendia o que Raymond Williams chamou de
“falsa moralidade”, conseguiu driblar esse momento e não chegou a rejeitar a si
mesmo, ou a negar o que fez antes dessa superação, como a escrita das
113
peças Baal, ou A ópera dos três vinténs em sua juventude4. Encarou a fase de
adepto do Expressionismo, ou do Teatro Didático, aproveitando-se das
experiências para potencializar um Brecht que sempre existiu, mas que como
destaca Williams carecia de algo que com certeza não tinha a ver com seus
valores, ou com qual direção seguir. O que lhe faltava era aquilo que sempre
marcou qualquer artista: conseguir que suas aspirações teóricas alcançassem,
enfim, a prática. Isso sempre se estabeleceu como um árduo desafio para
Brecht, principalmente por saber exatamente aquilo que não queria que seu
teatro se tornasse. Assim, para tudo o que via, o olhar tinha que ser o da
descoberta, do teste:
‘Em teoria’ é a expressão correta. Brecht havia de fato descoberto a sua teoria, na ideia de uma visão, mas a prática não estava lá, na peça, propriamente dita. Ele considerou que seu ‘estilo épico’ obrigaria a ‘pensar acima’, ao passo que o ‘estilo narrativo’ do ‘drama aristotélico’ (esses termis bai têm nenhum sentido histórico ou crítico – são termos do manifesto do próprio desenvolvimento criativo de Brecht) obrigava a ‘pensar de dentro’. Ele se utilizou de efeitos de distanciamento para levar o espectador à atitude de ‘alguém que, à vontade, fuma e observa’. Mas Brecht estava ele mesmo ainda confuso – ele mesmo não alcançara um distanciamento – e havia mais relaxamento do que ação real de assistir a um distanciamento – e havia mais relaxamento do que ação real de assistir ao espetáculo ou de pensar. A peça, na verdade, adequava-se com facilidade àquilo que ‘o espectador deseja ver’: crime e frieza não como estruturais na sociedade, mas vividos em um bairro romântico e teatralizado. Está claro que muitos especuladores, aceitos na sua geração como escritores e artistas, tiveram atividades nesse bairro: tornando o vício e o crime teatrais cheios de cor e distanciados, de uma maneira simplificada, de modo que uma falsa sociedade pudesse evitar a necessidade de olhar para si mesma. Brecht, suponho, nunca foi um deles, mas ainda assim estabeleceu-se, por algum tempo, em um bairro vizinho, no qual o sofrimento era também encoberto. Ele se decidiu por um padrão de sentimento convencional dissidente, no qual tem, ainda, companhia: o artista agridoce que, confrontado com uma sociedade imoral, pode exibir a imoralidade como uma espécie de verdade. As pessoas compram e vendem umas às outras, em A ópera dos três vinténs, e também em telas de cinema e páginas de livros sem conta, de modo frio – e apenas ocasionalmente, com sentimentos de fachada – mas sempre com brilho, com espirituosidade, com o grande número musical. E lógico, essa é a vida; pois quem, enquanto dura o número, teria a energia de dizer ‘isso não é a vida’? Quando finalmente encontra as palavras, ele é de
4 “Durante a leitura dos atos 3, 4 e 5 de Tambores na noite senti tamanha insatisfação que
pensei na possibilidade de eliminar a peça. Só a convicção de que a leitura pertence à história e que esta não pode ser falsificada, bem como a impressão de que minhas convicções e capacidades atuais teriam menos valor se as minhas anteriores não fossem conhecidas – supondo que tenha havido melhora nelas – me impediram de fazer uma pequena fogueira com a peça. Por outro lado, a supressão não é suficiente, o que está errado deve ser corrigido.” [BRECHT in Pasta, 2010, p.250]
114
todo modo ingênuo, e um moralista. Mas a verdadeira moral é que podemos todos fingir ser mais cheios de vida e radiantes do que somos, distribuindo a imundície fria e calculada pelas prostitutas de bom coração e contratando velhacos que são, ao menos, honestos, que conhecem o jogo da hipocrisia e que podem ir além da seriedade dos velhos preceitos. [WILLIAMS, 2002, p.252-253]
No extenso caminho percorrido, se houve alguma conclusão a que ele
chegou, certamente foi a de perceber que até mesmo os resultados e as
conquistas deveriam ser constantemente reconsiderados para evitar a recaída
numa permanência formal, que, com o passar do tempo, em se tratando de
arte, estaria irremediavelmente fadada à improdutividade, ao fracasso. Para o
que propôs durante a fase madura, a peça que melhor se encaixa numa visão
não-dogmática de teatro é, segundo Williams, Vida de Galileu5. Com ela, o
dramaturgo conseguiu finalmente atingir aquilo que já aparecia na teoria, mas
não enquanto ação, como exposto na citação acima.
Entretanto, muito embora o teatro de Brecht tenha passado por diversos
questionamentos ligados ao desencontro entre teoria e prática, hoje, com o
olhar do presente, é possível ver que nesse impasse (que durou décadas),
havia algo bastante natural. Poucos notam, mas Brecht não poderia ter traçado
um percurso mais coerente senão aquele que traçou, cheio de dúvidas e
reconsiderações. Inclusive, se analisado o movimento de sua obra como
evolutivo, fica seguramente insatisfatório seguir as leituras que sancionam
precisamente as fases desse trabalho, até o momento em que ele chegou a
encontrar uma prática capaz de abordar os assuntos como imaginava, porque,
afinal, tudo pelo que passou fez parte de um mesmo processo. O que Brecht
encontrou de definitivo para o teatro e para a arte em geral foi a necessidade
do artista de não se dar por satisfeito, necessidade que o faz permanecer
sempre com a busca.
Ainda que o teatro brechtiano se pretendesse livre, não deixaria de ser
específico porque, afinal, queria atingir uma determinada função social –
significando que a experimentação sempre manteria um vínculo com a teoria e
vice-versa. Ora, retomando a ideia defendida no capítulo anterior, Brecht ao
invés de se concentrar na hipótese de criar um novo Realismo preferiu
5 Vida de Galileu foi escrita entre 1938-1939, traduzida por Roberto Schwarz, col. Teatro
Completo, em 12 volumes. Vol. 6. Bertolt Brecht. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
115
classificar a si mesmo como um experimentador. Logo, a peça de Brecht que
revisitou a história de Galileu Galilei quis dar a essa história um novo
direcionamento, pautado naquele que, talvez, se constitua como o maior
impasse do homem moderno: a dúvida entre defender aquilo em que acredita,
ou fazer o que precisa fazer para sobreviver:
Mais uma vez a questão não é: ”deveríamos admirar ou desprezar Galileu?”. Não é essa a pergunta que Brecht nos propõe. O que ele indaga é o que acontece com a consciência quando aprisionada num impasse entre moralidade individual e social. A submissão de Galileu pode ser explicada e justificada, no âmbito individual, como um meio de ganhar tempo para poder dar continuidade ao seu trabalho. Mas o ponto que escapa à compreensão, aqui, é qual é a finalidade do trabalho. Se a finalidade da ciência é permitir que todos os homens possam aprender e compreender o seu mundo, a traição de Galileu é fundamental. Separar o trabalho de sua finalidade humana é, e Brecht vê isso, trair os outros e desse modo trair a vida. Não se trata, ao final, do que pensamos de Galileu como um homem, mas dos que pensamos dessa conclusão. A peça traz esse tema à consciência não como um problema, mas como uma ação viva. Afirma-se, às vezes, que o marxismo de Brecht foi obstáculo, ou, quando muito, um dado irrelevante para o seu drama. E, no entanto, é precisamente nesse modo de olhar o mundo que reside a ação dramática. Estamos acostumados ao martírio e ao indivíduo em conflito com a sua sociedade. Mas não estamos acostumados a esse modo radicalmente diferente de ver uma experiência que é, em geral, mais facilmente mediada por essas convenções mais antigas [WILLIAMS, 2002, p.259-260]
De súbito, a obra de Brecht ultrapassou ele próprio. Ela mesma lhe
mostrou que caminho seguir, para que não se perdesse como se perderam as
obras daqueles artistas que, ao deixarem a vaidade e o medo comandarem,
não conseguiram ver além do que já existia. A pretensão de ser lembrado tinha
pouco a ver com ele mesmo. Rodeado por colaboradores, amigos e pelo
público, ele nunca trabalhou sozinho. Em realidade, ele nunca conseguiu, nem
se propôs a se separar do coletivo, porque sua primeira e última instância
sempre foi o outro. Ter a consciência de que nem todos têm de fato noção de
sua situação real, das condições precárias dos indivíduos, é uma coisa que
Brecht não quis enfrentar sozinho. Ele quis propiciar a esses indivíduos um
meio em que eles junto aos demais conseguissem, mais do que entender
racionalmente, sentir o que significava esse senso de coletivo, embutido na
escolha individual de cada um, como a de Galileu:
116
O reconhecimento é um fato da história, a conhecida acerbidade da luta revolucionária. Mas, enquanto essa é vista como um processo, pode ser atravessada, resolvida, modificada. Ao passo que, se é vista, mesmo que por um breve momento, como uma posição estática – uma abstrata condição do homem ou da revolução – transforma-se numa nova alienação: uma exposição interrompida antes do envolvimento, uma tragédia posta em suspensão e generalizada diante do choque da catástrofe. Em nossos dias, numa complexidade conhecida, é a inflexível acerbidade de um regime revolucionário que passou a impedir a própria revolução. Essa acerbidade, no entanto, ao defrontar-se com os homens transformados em pedra, encontra os herdeiros da luta que, em função de si própria, vivem de um modo novo e com novos sentimentos e que, incluindo a revolução na sua vida diária, respondem à morte e ao sofrimento com uma voz humana. [WILLIAMS, 2002, p. 263-264]
As tentativas de Brecht com os experimentos permitiram que ele
percebesse, cada vez mais, como se tornara imprescindível fazer dos
espectadores produtores de suas próprias consciências, muito diferente de se
limitar a produzir uma consciência que eles simplesmente aceitassem. Afinal,
se Brecht queria construir uma obra com dimensões clássicas e de uma forma
incomum, precisava fazer com que suas peças possibilitassem, a cada
montagem, verdadeiras novas experiências. O ponto de partida para essa
transformação: o enfrentamento da problemática relação entre o que acontecia
no palco e o que era recebido pela plateia, que se baseava no que foi
apresentado no primeiro capítulo sob a forma das emoções, a empatia. Brecht
desfez a lógica da influência psicológica das peças burguesas, e esse é um
pressuposto que acompanhou o seu teatro até o fim.
Depois disso, passou a percorrer (até chegar a Galileu) um caminho que
buscou a invenção de novos meios que conseguissem fazer do teatro um lugar
de reflexão, de produção de novas ideias e possibilidades para as situações da
vida em sociedade. Nesse percurso, Brecht descobriu que precisaria muito do
público para conseguir chegar lá. Como não queria um espectador que, como
foi dito, se resignasse a aceitar tudo aquilo que lhe fosse apresentado, sem
questionar, investiu mais e mais na formulação de perguntas e não deu as
respostas. A partir daí, ele esperou que a iniciativa em responder, depois de
avaliar tudo o que aconteceu, fosse uma atitude desejada pelo próprio
espectador, que como um indivíduo que possui consciência deve exercitá-la
sempre, inclusive no momento de se divertir. E “se divertir” para Brecht inclui o
exercício de refletir, o que não precisa ser de uma forma pesada como a das
117
suas primeiras obras (quase forçosa), mas de uma forma mais profunda e ao
mesmo tempo mais leve também, como configura o exemplo de Vida de
Galileu.
118
3.1 Brecht e Galileu
Tendo agora em mente a fase madura de Brecht, quais características
da peça Vida de Galileu fazem dela um bom exemplo (talvez o melhor) da
investida do dramaturgo em querer despertar uma nova atitude dos
espectadores no que diz respeito àquilo que faltava em seus textos? Aliás, em
que aspectos é possível perceber a própria figura de Brecht na de Galileu,
como duas figuras socráticas? De que forma essa ligação pode ser
evidenciada dentro do contexto da peça? Vida de Galileu é considerada um
grande exemplo de Teatro Épico, de teatro não-aristotélico, de teatro
brechtiano. Que elementos estão presentes nessa peça que a tornam
especial?
Em primeiro lugar, é possível de pronto destacar trechos dentro da peça
que fazem da afirmação de Williams, de que nela “a consciência é ação”, uma
afirmação bastante plausível. Não à toa são pertinentes também as
semelhanças encontradas entre a visão de Brecht e de Galileu, que levam a
pensar inclusive na personagem de Galileu como uma alegoria da própria
experiência do autor. Centrando, portanto, essa abordagem na análise desse
texto é de fato possível perceber todos os aspectos mais gerais do pensamento
brechtiano dessa época (ou seja, da fase madura), como é, por exemplo, a
retomada da figura “clássica” de Galileu, que traz à tona assuntos que
permaneciam vivos. A investida em desligar todos os tipos de conhecimento –
como a ciência (no caso de Galileu) e arte (no caso de Brecht) – da imagem
plena e segura de Aristóteles remete a uma estrutura da sociedade que, ainda
muito dependente desses saberes para manter uma ordem, deve ser
transformada.
Desde a escolha do tema à criação das personagens, bem como o
desenvolvimento dos diálogos, Brecht pareceu ter se concentrado no objetivo
de estabelecer como constante uma ligação com o público através da reflexão.
Inevitavelmente, diante de uma série de questionamentos que são colocados
como ação na peça, o espectador (se atento) era levado a considerar as
situações e avaliá-las. Durante toda a peça, Galileu é testado em defesa do
119
“novo sistema copernicano”, mas até onde pode ir? Até onde o homem pode ir
com as suas crenças num mundo em que os conhecimentos não param de
avançar? A mesma pergunta Brecht dirige ao pensamento religioso, que
sempre se sobrepôs a todo o conhecimento que fosse de encontro aos
interesses da Igreja. Até quando o homem deve ignorar o que vê em respeito
àquilo cuja existência não tem provas? A seguinte passagem da peça abre as
portas de um novo mundo. Nela aparece também o esforço de Brecht
querendo deixar a mensagem dos novos tempos, chamando a atenção dos
espectadores sem parecer um idealista utópico:
Muros e cascas, tudo parado! Há dois mil anos a humanidade acredita que o Sol e as estrelas do céu giram em torno dela. O papa, os cardeais, os príncipes, os sábios, capitães, comerciantes, peixeiras e crianças de escola, todos achando que estão imóveis nessa bola de cristal. Mas agora nós vamos sair, Andrea, para uma grande viagem. Porque o tempo antigo acabou, e começou um tempo novo. Já faz cem anos que a humanidade está esperando alguma coisa. (...) E surgiu um grande gosto pela pesquisa da causa de todas as coisas: saber por que cai a pedra, se a soltamos, e como ela sobe, se a jogamos para cima. Não há dia em que não se descubra alguma coisa. Até os velhos e os surdos puxam conversa para saber das últimas novidades. Já se descobriu muita coisa, mas há mais coisas ainda que poderão ser descobertas. De modo que também novas gerações têm o que fazer. (...) o tempo antigo passou, e agora é um tempo novo. Logo a humanidade terá uma ideia clara de sua casa, do corpo celeste que ela habita. O que está nos livros antigos não lhe basta mais. Pois onde a fé teve mil anos de assento, sentou-se agora a dúvida. Todo mundo diz: é, está nos livros – mas nós queremos ver com os olhos. [BRECHT, 1991, p.57]
O trecho anterior aparece logo no começo da peça e é ele que guiará
Galileu ao longo da trama. Ao mesmo tempo, ele também é Brecht defendendo
a tese central de sua visão: que a humanidade precisa querer olhar para as
coisas e aceitar que elas mudam, ao invés de sempre optar por elas
permanecerem paradas. É nesse sentido que Brecht convocou os
espectadores a se tornarem, também eles, descobridores de novos
continentes. E assim dá início à jornada de Galileu, que é a personificação do
distanciamento, o grande símbolo do Teatro Épico e do teatro não-aristotélico
da forma como Brecht finalmente concretizava. Sobre essa questão é preciso
fazer algumas considerações.
120
A peça traz em seu todo o distanciamento prometido6, estudado e que
Brecht ampliou e adotou como sentido para o teatro. A diversão que propôs e o
jogo estão também comprometidos com essa relação de distância que ele
construiu em textos como Vida de Galileu. Nas suas primeiras obras, essa
distância não penetrava totalmente a concepção de um teatro não-aristotélico,
e por isso se diz que as peças do início tinham um peso muito forte, ou que
eram pouco divertidas. Até então, Brecht usava o distanciamento como técnica
de montagem e ainda não tinha muito clara a dimensão que essa técnica
poderia vir a ter em seu teatro, assim como a sua visão da política, que no
início ainda tinha um sentido bastante reduzido e que mais tarde também foi
ampliada por ele. Porém, a dimensão dada pelo dramaturgo a essa que era
uma técnica adaptada do teatro chinês transformou-se em uma estrutura muito
mais profunda, que permitiu tanto a derrubada de uma estrutura aristotélica,
como também a entrada das outras técnicas que foram desenvolvidas por ele.
Logo, o distanciamento como princípio do teatro épico faz o teatro como
um todo adquirir novas possibilidades. Isto por que não são mais as ações das
personagens que narram os acontecimentos, não é um narrador apenas que
faz esse trabalho, mas todos se transformam através dos gestus7 e do texto,
em narradores: atores, dramaturgo e plateia. O sentido de coletivo se estende
para além da montagem. Os atores admitem que estão ali para contar uma
6 “O mais discutido dos conceitos brechtianos – o de distanciamento – é o que pede maior
revisão. Muita gente que trabalha com o "efeito de distanciamento" se esquece de sua ligação íntima com a tradição cômica. Considerado apenas como técnica, é coisa muito antiga, presente em qualquer triangulação de comediante popular. Aparece, por exemplo, quando uma mulher de camisola observa todo o esforço do seu marido ao entrar de madrugada em casa sem fazer barulho, na volta culpada da farra. E essa suspensão inusitada de um objeto do olhar pode ser feita por muitos elementos do espetáculo, além dos atores: iluminação, música, legenda. [...] O distanciamento brechtiano não é, contudo, apenas uma técnica cômica, tal como é hoje utilizado pela publicidade. Assim como grande parte do riso pede uma visão moral (os tipos cômicos têm graça porque reprovamos suas obsessões, que eles juram ser inexistentes), o efeito de distanciamento é uma técnica de prazer em bases morais. Retira-nos de nossa posição individual e nos lança na moral de um grupo, de uma classe social. Em Brecht a mecanicidade e os automatismos criticados ainda são os da sociedade burguesa tradicional, hoje quase extinta. O problema atual do distanciamento não é de ordem técnica, mas moral." Este é um trecho de uma publicação do diretor, dramaturgo e crítico teatral Sérgio de Carvalho, para o jornal Folha de São Paulo, no dia 08 de Fevereiro de 1998, no Caderno Mais!. 7 Trata-se de um conceito também bastante aprofundando por Brecht. Ao contrário dos gestos
que são realizados pelos atores em uma típica peça dramática burguesa, os gestus que o teatro épico expõe não traduzem nada. Nem estado de espírito, nem sentimentos das personagens. Porque eles não têm essa função normativa de, em auxílio completarem a ação. Pelo contrário, os gestus para Brecht devem causar estranhamento e muitas vezes transmitir um sentido que contraria as palavras.
121
história e que gostariam que todos (a plateia) participassem. Tudo no teatro
brechtiano realiza a função de distanciar o indivíduo para outro lugar em que
ele pode ver as coisas acontecendo, independentes umas das outras, e pode
alcançar o entendimento daquilo que na dramaturgia tradicional só lhe era
permitido sentir através de dramas articulados de forma a iludi-lo. O espectador
distanciado passa a se portar como um observador, sentindo as emoções que
são muito mais promessa e esperança, do que aqueles sentimentos
despertados pela experiência do sofrimento de um herói.
Galileu é levado de propósito por Brecht a não agir como se esperava de
um herói. Ele não é um herói e tampouco no sentido burguês. Ele sabe que
suas escolhas têm um preço e que aquela vontade idealista de seguir com a
sua vontade sem medir as consequências não contribuiria para o progresso da
ciência que ele esperava obter – a ação de um herói idealista provavelmente
seria escolher a fogueira. No entanto, Galileu sabe que nenhum homem que
acredita na transformação deveria isolar-se e querer estar sozinho nisso. Se
ele morresse não poderia escrever o que, escondido, entregou a Andrea.
Brecht comprovou através dessa ação que, mesmo obedecendo a um sistema
e seguindo as ordens deste para sobreviver, é possível buscar uma saída
como fez Galileu. E não importam tanto as formas de fazê-lo, desde que a
motivação do indivíduo vise o coletivo. A confirmação da intenção do autor
aparece na frase dita por Galileu em resposta à de Andrea – seu discípulo, que
se decepciona quando seu mestre renuncia à verdade perante a pressão da
Inquisição. Galileu, que era como um herói para Andreas, depois de renunciar,
diz: “Infeliz a terra que precisa de heróis” [BRECHT, 1991, p. 154] Ele mesmo,
portanto, não se via como um herói.
A aposta maior de Brecht no homem racional foi ele ter descrito Galileu
como um homem que, muito diferente dos heróis, sente fome, tem vontades
que são humanas. Como poderiam os homens acreditar na transformação que
deve partir deles, se continuassem se pautando em heróis com poderes sobre-
humanos, ou pessoas conformadas com seu destino? Brecht, ao mostrar o
descontentamento de Galileu em, por exemplo, ter que ensinar coisas que para
ele já estavam ultrapassadas, para poder ter o que comer, ao invés de poder
se dedicar aos próprios estudos, que também significavam um
comprometimento com a sociedade (como Brecht via as descobertas
122
científicas), não descreve como um homem tem que se portar. Ao descrever
Galileu como um homem com vontades que não são egoístas, mas que
simplesmente tinham outro objetivo, retira a ideia da impossibilidade de outros
homens se portarem dessa forma por serem escravos desse ser humano, ou
por não serem heróis. Ou seja, Brecht provocou uma distância dentro da peça,
mas antes há uma aproximação, que faz com que as coisas, casos como o de
Galileu, passem da improbabilidade para a possibilidade.
Logo em seguida à renúncia de Galileu, Brecht incluiu na peça uma
frase que retirou da obra Discurso (Discorsi), do próprio Galileu Galilei, ao que
parece bastante plausível para afirmar a ação de Galileu como uma saída
bastante possível para o comportamento de um homem. Afinal, como conclui
Andrea mais tarde, “O medo da morte é humano. Fraquezas humanas não têm
nada a ver com ciência.” [BRECHT, 1991, p.164]:
“Não será claro que um cavalo pode quebrar as patas, se cair numa altura de três braças ou quatro, enquanto que a um cão, como também a um gato, mesmo caindo de uma altura de oito ou dez braças, ou a um grilo que caísse do alto de uma torre, ou uma formiga que viesse da Lua, não aconteceria nada? Assim como animais menores são relativamente mais resistentes e mais fortes que os maiores, também as plantas menores resistem melhor: um nogueira de duzentas braças não poderia sustentar em proporção a massa de galhos que a nogueira pequena sustenta, e a natureza não pode deixar que um cavalo fique do tamanho de vinte cavalos, ou que um gigante cresça dez vezes, a não ser que altere a proporção de todos os seus membros, especialmente dos ossos, que precisam ser fortalecidos em medida muito maior que a proporcional. – A suposição comum, de que máquinas grandes e pequenas têm resistência igual, é claramente enganosa.’ [GALILEU in Brecht, 1991, p. 254]
Se a vontade de Galileu era que a Igreja aceitasse as suas provas e o
bom-senso a fizesse rever os conceitos herdados de Aristóteles, ele se sentiu
mal com a renúncia, mas não se portou como um arrependido, ou como
alguém que mudou de ideia. Nesse ponto há mais uma virada de Brecht, muito
semelhante àquela que ele mesmo deu em sua vida, considerando os altos e
baixos de sua obra. Ao mostrar que Galileu, mesmo depois de renunciar,
continuou pesquisando e escrevendo os resultados de sua pesquisa, Brecht
quis lidar com a situação de Galileu de uma forma que causasse a interrupção
123
daquilo que era esperado, por exemplo, se se tratasse de uma dramaturgia
aristotélica. Como no seguinte diálogo com Andrea:
Galileu: Eu terminei os Discorsi. Andrea: Os Diálogos sobre duas ciências novas: a mecânica e a queda dos corpos? Aqui? Galileu: Eles me dão tinta e papel. Os meus superiores não são tontos. Eles sabem que vícios arraigados não se arrancam de um dia para o outro. Eles me protegem das consequências desagradáveis, me tomando as folhas, uma por uma. Andrea: Meu Deus! Galileu: Você disse alguma coisa? Andrea: O senhor, lavrando água! Eles lhe dão papel e tinta para que o senhor se acalme! Como é que o senhor pôde escrever, com essa finalidade diante dos olhos? Galileu: Eu sou escravo dos meus hábitos. Andrea: Os Discorsi nas mãos dos padres! E Amsterdã e Londres e Praga dariam tudo por eles! Galileu: Eu imagino as lamentações de Fabrizio, sacudindo a cabeça, mas em segurança, em Amsterdã. Andrea: Dois ramos novos do conhecimento, a mesma coisa que perdidos! Galileu: Certamente será animador, para ele e mais alguns outros, saber que pus em jogo os últimos míseros restos de meu conforto para fazer uma cópia, atrás de minhas costas, por assim dizer, usando os restos de luz das noites claras de seis meses. Andrea: O senhor tem uma cópia? Galileu: A minha vaidade me impediu até agora, de destruí-la. Andrea: Onde ela está? Galileu: ‘Se o teu olho te irrita, arranca o olho fora.’ Quem quer que tenha escrito essa frase, sabia mais sobre o conforto do que eu. Suponho que seja o pináculo de estupidez entregar essa cópia. Mas como eu não consegui deixar o trabalho científico, tanto faz, vocês fiquem com ela. A cópia está no globo. Se você estiver pensando em levá-la para a Holanda, a responsabilidade é toda sua. Nesse caso, você teria comprado de alguém que tem acesso ao original, no Santo Ofício. Andrea vai até o globo. Tira a cópia de dentro dele. Andrea: Os Discorsi! Folheia o manuscrito. Andrea lê: ‘O meu propósito é expor uma ciência novíssima que trata de um assunto muito antigo, o movimento. Através de experimentos descobri algumas de suas propriedades que são dignas de ser conhecidas.’ Galileu: Precisava empregar o meu tempo nalguma coisa! Andrea: Isto vai fundar uma nova física. Galileu: Ponha debaixo do casaco. Andrea: E nós achávamos que o senhor tinha desertado. A minha voz era a que gritava mais alto contra o senhor! Galileu: É assim que devia ser. Eu lhe ensinei a ciência, e eu abjurei a verdade. Andrea: Isto muda tudo. Tudo. Galileu: É? Andrea: O senhor escondeu a verdade, diante do inimigo. Também no campo da ética o senhor estava séculos adiante de nós. Galileu: Explique isso, Andrea. Andrea: Como o homem da rua, nós dizíamos: ele vai morrer, mas não renega jamais. O senhor voltou: eu reneguei, mas vou viver. Nós dizíamos: as mãos dele estão sujas. O senhor diz: melhor sujas dos que vazias.
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Galileu: Melhor sujas do que vazias. A frase é realista. Podia ser minha. Ciência nova, ética nova. [BRECHT, 1991, p. 161,162]
E ele poderia ter dito à Igreja que não abriria mão de sua verdade e
assim, acabaria queimado como Giordano Bruno tempos antes. Mas Galileu,
tendo noção de seu fim, não abjura contente, mas também não crê que a
melhor saída seja a fogueira, e quando mais tarde é levado por Andrea a falar
disso, não mostra arrependimentos também. A saída mais simples talvez fosse
mesmo morrer, mas pelo quê? Quantos homens morreram como mártires. E o
mundo ficou melhor? Querer receber mérito de herói também não é uma forma
egoísta? Essa questão nunca fora levantada porque os homens sempre se
apoiaram na ideia de heróis para construir uma história em muitos momentos
fictícia, idealizada. Hoje se sabe de muitos exemplos em que as coisas
mudaram tão facilmente de lado, porque a escolha era uma ficção. Por que não
transformar também o que seria o fim em começo de novas possibilidades,
como fez Brecht?
Os pontos em comum com a visão madura de Brecht são inúmeros e
podem ainda ser encontrados em toda a peça. Ela é um presente de Brecht à
razão humana. Ele a instigou e creu no seu poder, e é isso que a peça defende
em primeiro plano. Aquilo que o jovem Brecht queria transmitir sobre a
transformação do mundo pelos homens e o tom sério desse compromisso
aparece em Vida de Galileu, assim como aparece também a discussão que ele
expandiu ao longo da obra, sobre a forma de aprendizagem dos indivíduos
estar totalmente atrelada às vivências destes, e como a premissa da mera
apreensão dos valores estava errada diante do que uma nova didática
propunha.
Como apontado anteriormente, Brecht não se satisfez com o resultado
de suas primeiras obras como A ópera dos três vinténs, e isto porque a sua
crítica tinha assumido um tom pesado, de negação, que ao mesmo tempo não
lhe permitiu produzir um florescimento do teatro por estar demasiadamente
preso à negatividade. Com isso, ainda que a história de Galileu tenha sido
escrita quando o mundo apontava poucos sinais de melhora (1938-1939),
Brecht conseguiu escrever uma peça que perpassa as angústias acerca das
coisas que ainda impediam os homens de ir em frente, mas que consegue
125
deixar em aberto, pondo em questão valores dos mais antigos, que tais coisas
ainda se encontram espalhadas no presente do autor.
Quanto ao alcance de uma análise sobre a concepção de Brecht, há
ainda uma observação necessária e, em certa medida, surpreendente a se
fazer. Nos tempos de exílio em que Brecht só pôde ler, estudar e elaborar a
teoria, longe da prática, ele chegou ao impasse que certamente não existia da
mesma forma para aqueles que eram somente teóricos, que é o problema da
importância de uma experiência prática para o teatro que queria fundar. Esse
ponto não só configurou um problema para Brecht, mas apresenta-se agora,
neste texto. A ele também se impôs uma dificuldade, que tem a ver com os
limites com que a Filosofia lida quando quer falar da experiência. No caso da
obra de Brecht, tudo se complica ainda mais porque ele estava construindo
essa experiência, ela não era dada, apesar de ser precedida por uma teoria.
Seria possível analisar a concepção do teatro brechtiano pensando como
inserir as técnicas utilizadas dentro de uma peça como Vida de Galileu?
Certamente como especulação, ou até como é comum dizerem da teoria de
Brecht, como idealização. Assim como existe uma vasta literatura sobre o
significado das técnicas que constituem esse teatro, existem relatos de
experiências com elas que refletem a validade da proposta de Brecht8.
Agora, pensando no papel do trabalho da Estética sobre uma obra como
a de Brecht, só através de uma prática da análise de seus textos é que se
descobre o quão difícil é o trabalho sem a experiência. E por esse motivo, este
8 Brecht pretendeu construir um teatro que fosse uma imagem praticável do mundo. Um
modelo de compreensão das relações humanas em sociedade. Interessava-se por muitas formas de ação, especialmente as negativas: como as pessoas se enganam, se exploram, se mutilam, se odeiam. A certa altura da vida, comparou sua dramaturgia a um planetário, por meio do qual o público poderia compreender, com a tranquilidade de quem está parado, observando o movimento das personagens. Para minimizar a aversão à sua abordagem científica, despertada especialmente nos cultores da arte absoluta, ele escolheu essa imagem de serenidade celestial. No entanto, o céu estrelado do planetário está ali para ensinar que os movimentos dos astros obedecem a leis. Complexas, variáveis, mas compreensíveis. Para quem diz que no caso das pessoas em sociedade é diferente, Brecht responderia: "Do ponto de vista de uma bola, no meio de um jogo qualquer, as leis do movimento também são praticamente inconcebíveis". Por isso ele gostava de relatos históricos e sentimentais de desastres, de grandes atos confusos, ocorridos não por má influência do destino, mas por falhas evitáveis de gente desastrada ou mal intencionada. Os acontecimentos humanos têm antecedentes históricos, contexto de classe, circunstâncias de tempo e espaço. Desenvolvem-se segundo trajetórias descontínuas e inconstantes, que podem ser acompanhadas. O céu de Galileu não é menos ou mais poético do que qualquer outro. “A arte não se opõe ao mistério, mas pode combater a mistificação.” A frase tem autoria de Sérgio de Carvalho, um dos fundadores da Cia do Latão, um dos grupos mais reconhecidos no Brasil por suas experiências com o teatro proposto por Brecht.
126
texto, por seguir a direção de destrinchar a visão a que chegou Brecht na fase
quase final de seu trabalho com o teatro, optou ao mesmo tempo por se isentar
de criar o que seria uma proposta prática da peça analisada, respeitando assim
a vontade do próprio autor. Mas como é importante ainda sugerir exemplos que
reflitam o que seria um produto fiel à concepção brechtiana, que se pretendeu
contínua, fica a critério da conclusão deste trabalho resolver esse desgosto
com dados atuais, sobre o que poderia vir a ser considerada uma continuidade
de Brecht, assim como aqueles trabalhos os quais Brecht certamente
demonstraria insatisfação. Antes, contudo, vale colocar como registro parte de
um poema escrito por ele entre os anos de 1926 e 1933, que não chega a
traduzir exatamente aquela liberdade de apropriação das obras como da fase
madura.
Quanto tempo Duram as obras? Tanto quanto Ainda não estão completas. Pois enquanto exigem trabalho Não entram em decadência. Convidando ao trabalho Retribuindo a participação Sua existência dura tanto quanto Convidam e retribuem. As úteis Requerem gente As artísticas Têm lugar para a arte As sábias Requerem sabedoria As duradouras Estão sempre para unir/ As planejadas com grandeza São incompletas. (...) Quem dará duração às obras? Os que viverão no tempo delas. Quem escolher como construtores? Os ainda não- nascidos. Não deves perguntar: como serão eles? Mas sim Determinar. (...) O desejo de fazer obras de longa duração Nem sempre dever ser saudado. Quem se dirige aos não-nascidos Muitas vezes nada faz pelo nascimento. Não luta e no entanto quer vitória. Não vê inimigo A não ser o esquecimento. Porque deveria todo vento durar eternamente?
127
Uma boa sentença pode ser lembrada Enquanto teronar a ocasião Em que foi boa. Certas experiências, transmitidas em forma perfeita Enriquecem a humanidade Mas a riqueza pode se tornar demasiada Não só as experiências Também as lembranças envelhecem. Por isso o desejo de emprestar duração às obras Nem sempre deve ser saudado. [BRECHT, 2001, p.85-88]
128
Conclusão
Agora é tempo de voltar o olhar para o presente e descobrir nesse
presente a reclamada presença de Bertolt Brecht. Diz-se que depois de sua
passagem pelo teatro, nunca mais a concepção de montagem e representação
foram as mesmas. Nunca mais se voltou ao mesmo lugar dos grandes dramas
que conseguiam retirar o homem do mundo e transportá-lo para um universo
mediado e suplantado pelas ilusões. Brecht e a vasta pesquisa que
empreendeu em prol de um teatro foram responsáveis por instalar um caos na
função da dramaturgia, que estava, a partir de então, irremediavelmente
voltada a pensar e falar sobre os problemas dos homens. E, mesmo que não
tenha sido ele a começar o movimento de contestação dos velhos modelos,
certamente há muito a se agradecer a seu esforço.
Na travessia que percorreu as fases do autor, as surpresas foram
constantes, e qualquer método usado para compreendê-las teve logo de ser
abandonado – esta talvez tenha sido a maior descoberta feita até agora dentro
do trabalho de Brecht, de que um método só existe como inspiração e que isso
basta. Esse método não é como se acreditou durante algum tempo, ele não
existe como um lugar seguro e confortável, disponível àqueles que pretendem
percorrer e dar continuidade ao movimento começado pelo dramaturgo alemão.
É no desconforto, na insatisfação e na angústia que nunca cessam, que se
move a contemporaneidade, dentro desse novo espaço de relação com o
teatro, que foi inaugurado por Brecht.
Neste momento, talvez seja de grande importância falar da influência
que a filosofia chinesa1 teve na teoria de Brecht. A partir dos estudos que fez
sobre essa filosofia, pôde desenvolver de forma mais clara e também
metafórica o comportamento esperado para uma doutrina como a sua. Aquelas
ideias que nasciam de um desejo de impor uma ordem ao pensamento, Brecht
se afastou delas e seguiu por um sentido avesso ao das dominações. Fugiu da
lógica que estava viciada em sistemas que não respeitavam a liberdade dos
1 Referência retirada da coleção espanhola Narrativa Completa, vol.3. Esta edição é composta pelas
Historias del Señor Keuner e Me-ti Libro de los Cambios, sendo o segundo um estudo feito por Brecht a partir de obras chinesas em que ele aborda algumas noções importantíssimas para compreender o pensamento que ele desenvolve com relação ao teatro, a ligação com a Filosofia e com a vida.
129
indivíduos e que queria que eles comprassem uma ideia pronta, inclusive,
daquilo que eles deveriam entender por liberdade. Consequentemente, Brecht
estava rejeitando também a promessa desses sistemas de que pudesse existir
para as coisas qualquer esperança de eternidade.
Durante muito tempo os homens tinham se concentrado em pensar de
uma forma equívoca. Um tipo de pensar que não os fazia produzir coisas boas
para uma vida em sociedade. Porém, só muito tempo depois de tudo já
funcionar dessa forma é que a atenção se voltou para os problemas gerados
por essa disposição, permitindo que se descobrisse que o homem tinha sido
educado para comportar-se de um modo que o levava a um pensamento
neurótico sobre a vida; que ele tinha sido projetado pela técnica. Dessa forma,
quando as reflexões na época de Brecht se voltaram para evidência de que o
mundo tinha caminhado na direção contrária à afirmação da vida, o artista
apareceu com a sua vontade de fazer tudo mudar de posição. Então, a sua
compreensão do mundo teve, necessariamente, que se expandir, indo além de
diferenciar os justos dos injustos. A expansão encaminhou-se para a
descoberta dos dispositivos que fazem de uma pessoa egoísta e de outra
render-se à submissão.
Então o dramaturgo decidiu investir no combate às morais que se
estabeleciam como verdades e que determinavam o funcionamento da
sociedade. Passou, então, a agir em defesa da revisão constante desses
princípios morais, porque eles impunham que as situações fossem vistas de
forma muito limitada. Por esses motivos, o teatro de Brecht tem uma ligação
muito mais forte com o fazer desaparecer as coisas. Diz-se que o social
ocupou o papel central de sua obra e isso é verdade. Mas para mostrar como a
preocupação fundamental de Brecht era o espectador é preciso pensar em sua
concepção de montagem como um laboratório. Nesse laboratório, não é
possível encontrar fórmulas com efeito semelhante para todos os indivíduos. É
preciso descobrir que a pluralidade só é respeitada quando se produzem
princípios ativos que não bloqueiam a reflexão de alguma forma, como
respostas que fazem as pessoas irem para suas casas satisfeitas:
130
Muitos veem o teatro como casa De produção de sonhos. Vocês atores são vistos Como vendedores de drogas. Em seus locais escurecidos As pessoas se transformam em reis e realizam Atos heroicos sem perigo. Tomado de entusiasmo Consigo mesmo ou de compaixão por si mesmo Fica-se sentado, em feliz distração esquecendo As dificuldades do dia a dia – um fugitivo. Todo tipo de fábula preparam com mãos hábeis, de modo a Mexer com nossas emoções. Para isso utilizam Acontecimentos do mundo real. Sem dúvida, alguém Que aí chegasse de repente, o barulho do tráfico ainda nos ouvidos E ainda sóbrio, mal reconheceria sobre essas tábuas O mundo que acabou de deixar. E também Saindo por fim desses seus locais, Novamente o homem pequeno, não mais o rei Não mais reconheceria o mundo e se acharia Deslocado na vida real. Muitos é verdade Veem essa atividade como inocente. Na mesquinhez E uniformidade de nossas vidas, dizem, sonhos São bem- vindos. Como suportar Sem sonhos? Mas assim, atores, seu teatro torna-se Uma casa onde se aprende a suportar A vida mesquinha e uniforme, e a renunciar Aos grandes atos e mesmo à compaixão Por si mesmo. Mas vocês Mostram um falso mundo, descuidadamente juntado Tal como os sonhos o mostram, transformado por desejos Ou desfigurado por medos, tristes Enganadores. [BRECHT, 2000, p.240]
Com isso, a pergunta assume o foco nos palcos tipicamente brechtianos.
Insatisfeitos, os espectadores são “obrigados” a levar as perguntas para casa
para fazerem o que bem entenderem com elas, e apesar de Brecht ter a
certeza de que esses questionamentos poderiam levar os indivíduos a reavaliar
tudo aquilo que se põe diante deles e, consequentemente, levá-los a agir de
uma forma mais produtiva e benéfica à sociedade, ele sabia também que não
era possível prever os resultados de tudo aquilo. Ao avançar com a história das
perguntas, suas experimentações passaram a se concentrar no objetivo da
emancipação intelectual dos espectadores. A reinvenção da dialética foi uma
chave importante para Brecht abarcar o papel desses questionamentos.
Havia um desgaste em ser coerente. As dramaturgias durante muito
tempo investiram nisso. O papel importante de Brecht, que seguiu numa
direção oposta dessa busca por coerência, buscou abordar de forma profunda
o que significava realmente a coexistência dos contrários. A dialética
desenvolvida por Brecht não tinha a ver, portanto, com a lógica transmitida pela
131
dialética marxista, porque ela combatia qualquer tipo de formulação de
respostas dada pelos artistas ao público. Com base nas experimentações e no
que viu dos projetos socialistas e dos teatros de palanque, Brecht desenvolveu
uma dialética que não deu as respostas de como deveriam se comportar os
indivíduos. Ele antes perguntou: Será que existe um modo de comportamento?
Ou vários?
Acontece que hoje a questão não é mais tanto a de tentar defender se
Brecht foi ou não um bom diretor, ou se seus textos de fato conseguiram
exprimir aquilo que ele queria. O que interessa ao nosso tempo vai muito mais
na direção de o usarmos como inspiração do que como método. Com base
nisso, foi tomada aqui a liberdade de expor aquela que deveria ser considerada
uma apropriação relevante do teatro brechtiano para os contemporâneos e
aquelas que, por outro lado, devem ser revistas, criticadas, porque não só não
estão de acordo com aquilo que terminou por defender o autor, mas também
desmerecem a força de suas reflexões. Em resumo, deve-se pensar na
questão de Brecht hoje como aquela que, como uma moeda, possui dois lados:
o lado das apropriações que deram certo e o lado das que não deram.
No entanto, pensar nessa dualidade talvez não fosse o mais adequado,
mas fazendo jus à presente defesa, nesse sentido é preciso assumir certa
radicalidade se se pretende defender a presença de Brecht no teatro
contemporâneo. Circula hoje por aí um Brecht já difamado, que estaria
ultrapassado para aqueles que resumiram a sua obra à luta de classes e ao
sentido político, com a presença de um pensamento de esquerda, comunista.
Fato é que a visão de Brecht tinha uma afinidade grande com as ideias
comunistas, já que a base de sua constatação sempre foi o capitalismo: seu
modo de organização e todos os problemas das relações promovidos por ele.
O problema não está em compreendê-lo dessa forma, mas reside no fato de as
ideias de esquerda nas últimas décadas terem sido soterradas pelos
movimentos de direita, o que fez com que Brecht também perdesse seu
espaço. No entanto, a perda desse espaço também diz respeito a como a
crítica entendeu mal o sentido político de sua obra. Afirma-se isso porque não à
toa a discussão com Lukács foi trazida aqui. Fundamentalmente, ambos
(Brecht e Lukács) tinham as mesmas preocupações em relação ao social.
Porém, como descrito, a forma como Lukács achava que devia ser abordada a
132
questão social dentro da arte distanciou-os. E justamente porque Brecht se
opôs de forma radical àquela ideia defendida pelo partido socialista, que não
fazia os indivíduos pensarem, mas lhes dava gratuitamente não só os meios,
mas também as respostas daquilo em que eles deveriam acreditar.
Porque muitos colocaram Brecht ao lado desse tipo de ideal, corre hoje
uma concepção de seu teatro que reduz, e muito, o campo de ação de sua
proposta. Afinal, o Brecht da segunda fase deixou bastante clara a mensagem
de que era preciso continuar o seu projeto, que ele não o daria como acabado
e que o teatro épico estava apenas começando a plantar suas raízes. O que
nos mostrou Brecht foi justamente que se o encarássemos como ele encarou
os clássicos, talvez, conseguíssemos ir muito além do que ele foi. Talvez
conseguíssemos ver a grande mudança que pensava para a relação entre os
espectadores e o teatro, caso o teatro fosse capaz de mudar a sua função.
Uma relação não mais alicerçada pelas emoções, mas que fosse sustentada
por algo a mais, como por acaso a reflexão.
Como Galileu, Brecht também apostou muito no bom-senso dos
indivíduos. Não que houvesse alguma coisa que ele pudesse ter feito nesse
sentido, mas o que se concretizou foi que muitos entenderam que ele
estipulara metas e um sistema bastante ortodoxo de abordagem de suas
técnicas, assim como o uso rigoroso de seus textos. Lendo seus escritos,
acredito hoje que Brecht apenas quis dar direções. Ele apenas quis colocar a
dúvida num lugar onde não se esperava que aparecesse. Porém, como é
comum querer retirar uma espécie de percepção conclusiva acerca do autor,
algumas conclusões sobre Brecht foram, em muitas maneiras, precipitadas.
Talvez até esta também seja, mas acredito que valha a pena tentar, assim
como há um grande número de experimentos com essa obra que deram
exatamente a validade que lhe cabia.
Posto isto, quis trazer aqui duas figuras contemporâneas que costumam
ser bastante duras com Brecht, no que diz respeito ao significado de um teatro
com um sentido político como o dele. Os críticos Hans Thies Lehmann e
Jacques Rancière, apesar de defenderem concepções distintas de teatro,
posicionam-se claramente contrários a um teatro que contenha a presença do
sentido político como é no caso de Brecht. E aqui acrescento que a minha
intenção seguiu no sentido de defender Brecht em relação a essa definição que
133
se retirou de sua obra. Meu objetivo não foi, porém, desconsiderar as
concepções defendidas pelos autores com relação ao papel da arte, ou dos
conceitos que cada um possui do artístico. O me interessou foi revelar que
visões como as que eles têm de Brecht podem promover um empobrecimento
às possibilidades de vermos um teatro brechtiano sendo aplicado hoje.
Como já disse antes e reitero, se o sentido político da obra de Brecht
levado em conta (como parece) é o sentido mais comum aos seus críticos, de
fato esse sentido seria bastante limitado. Porém, como também vim
defendendo até agora, há uma grande diferença entre o Brecht da fase jovem e
o Brecht da fase madura, e de um para o outro, o sentido de político muda.
Novamente, para o primeiro Brecht, que ainda estava muito próximo das lutas
sociais e o social também era limitado, há ainda muito forte a presença de
temas e personagens voltados para defender uma mensagem de
conscientização das causas.
Como para Brecht, entretanto, tudo passou a ser menos decisivo e ele
passou a querer que os espectadores pensassem por eles mesmos – embora a
tentação em querer falar das injustiças fosse grande –, ele mudou, e foi quando
descobriu o verdadeiro espectador produtor. Aquela visão autoritária de Brecht,
portanto, passou para o plano do que se assemelha mais com a ideia de
“mestre ignorante” defendida por Rancière em seu livro2.
Mas Rancière e Lehmann3 pensam a luta do teatro e da arte hoje como
uma luta que não pode mais ser mediada pelo político da forma como foi. Esta
já teria sido vencida. Agora, a luta é travada antes de tudo pelos sentidos.
Dessa forma, Brecht teria sido ambicioso demais ao pensar na atitude que
queria ver despertada nos espectadores. Por sua vez, também essa é a crítica
que se tornou mais recorrente quando se reflete acerca da presença de um
teatro brechtiano nos palcos hoje. De fato, descobriu-se através de uma prática
“inspirada” na teoria de Brecht que as pessoas que iam àquele tipo de teatro
2 No livro O mestre ignorante (2010), Jacques Rancière desenvolve um pensamento acerca da
emancipação intelectual, pondo em cheque as formas tradicionais de ensino e aprendizagem. Noutra obra de sua autoria, O Espectador Emancipado (2010), Rancière fala dessa mesma emancipação, mas do ponto de vista dos espectadores e é aí, então, que aborda o teatro de Brecht, questionando os efeitos pretendidos por este sobre o público. 3 O texto de referência de Hans Thies Lehmann é o livro Escritura Política no Texto Teatral
(2009).
134
não saíam de lá promovendo a revolução graças ao que tinham visto. Mas isto
se deveu também ao modo como tal apropriação foi feita.
Em consideração ao que descobri da obra de Brecht até agora, sou
levada ainda a discordar de uma tradição crítica que, a exemplo de Rancière e
Lehmann, fez uma leitura de Brecht visando o sentido que o político tinha para
ele. Para esses autores parece que Brecht tratou o espectador como se fosse
passivo, enquanto que, como vimos, Brecht tratou o espectador como um igual.
A atitude de Brecht não podia ser diferente, pois o que ele estava
combatendo em primeira instância era claramente o fim “maligno” em que tinha
sido direcionado o teatro dentro da sociedade capitalista, que queria ser
consumido pelo público. Logo, devo concluir que todas as tentativas teóricas e
práticas que incluem Brecht dentro de uma lógica que é determinista e
moralizadora incorrem num erro grave e tem a ver com o modo como o próprio
Brecht ficou reconhecido dentro do teatro, como se ele sempre tivera as
mesmas ideias e não passado por uma revisão de si mesmo.
Hoje, quando vemos Brecht ser encenado do mesmo modo que se
encenam os dramas burgueses, ou seja, adaptado a um sistema de regras
formais, vemos uma leitura que o transporta para longe de seu objetivo do final
de sua carreira, que era o de tornar-se um clássico em construção. Não vemos
essas leituras colocando Brecht e a sua teoria à prova de novas experiências.
O que aconteceu é que a sua obra também sofreu uma institucionalização,
transformada numa espécie de obra grandiosa da esquerda comunista que
ficou no passado.
Gostaria de trazer como exemplo dessa institucionalização um grupo de
teatro do qual talvez se esperasse que fosse seguir os passos de Brecht, a
companhia do teatro Berliner Ensemble, à qual me referi na introdução e que é
a mesma que ocupa o teatro fundado por Brecht em Berlim. Essa companhia é
hoje uma grande atração turística na Alemanha e, com um teatro grandioso
como o de uma ópera, impressiona com toda a quantidade de recursos
técnicos disponíveis para as encenações dos textos de Brecht e de outros
autores.
Quando quis conhecer o Berliner Ensemble, pensava que finalmente
poderia assistir a uma peça em que eu veria Brecht sendo aplicado,
experimentado, alterado. Mas devo confessar que me desanimei quando assisti
135
à encenação da Ópera dos Três Vinténs, recentemente trazida a São Paulo
numa parceria entre a companhia e o artista Bob Wilson. Não havia nada de
brechtiano além do texto, que como é costume da companhia foi encenado na
íntegra. Com efeitos especiais notáveis, que incluíram uma luz magnífica,
maquiagens e figurinos estonteantes, além da técnica dos atores, que é
indiscutível, não havia nada de experimento naquela encenação, e a prova
cabal disso foi que os textos de Brecht e a trilha sonora não sofreram
adaptações, tampouco foram atualizados, convocados a discutir questões da
atualidade.
Normalmente, são preservadas nesse tipo de montagem – que não é
promovido apenas pelo Berliner Ensemble, mas comum de se ver quando um
texto de Brecht é montado – também as técnicas desenvolvidas por Brecht e
pela dramaturgia não-aristotélica, como é o caso dos gestus e do efeito de
distanciamento. Mas infelizmente, somente isso. Ainda retirada toda a graça e
valor da teoria e da obra de Brecht, essa leitura ficou também registrada como
uma leitura possível e oficial, já que o grupo é referência no mundo todo.
Brecht ficou conhecido por muitos como autor incorporado à tradição, sem
valor de atualização, maçante por seus textos engajados, que teriam feito
sentido em sua época, mas que não eram promissores para mudar a atitude
dos espectadores de nossa época em relação à vida. O Brecht propagado por
esse tipo de assimilação certamente é o mesmo Brecht que queria que os
espectadores aceitassem a mensagem que ele queria passar. Ou seja, um
Brecht que, de fato, deveria ser afastado das representações contemporâneas.
Entretanto, como essa é uma leitura que ignora aquele Brecht que
escreveu peças como Vida de Galileu, ou que estava mais próximo da filosofia
chinesa, devo também dizer que ela não condiz com aquilo que se deve
esperar da presença de Brecht no teatro hoje. Por outro lado, a exemplo do
que poderia se considerar uma presença ainda bastante produtiva, interessante
para nossos dias, trago a esta conclusão a montagem feita pelo Grupo Galpão
do Folias a partir dessa obra de Brecht sobre a história de Galileu Galilei.
Assisti duas vezes à peça Folias Galileu, concebida pelo grupo Galpão
do Folias, cuja sede está localizada no centro de São Paulo. O espaço não é
monumental e inclusive o grupo passa por dificuldades financeiras, mas até
hoje as peças a que assisti no espaço foram experiências muito distintas umas
136
das outras, e isso mostra o empenho da direção do grupo, sempre atenta ao
que significa a pesquisa no teatro, bem como a preocupação em proporcionar
aos espectadores cada vez novas vivências. Ao mesmo tempo, se pudesse
caracterizar uma linguagem própria do grupo, diria que para eles não pode
faltar a aproximação do contemporâneo, assim como também é característico
do grupo uma aposta numa não-representação, em que os atores emprestam
seus corpos e disposição para contar a história, cada um assumindo o lugar de
uma personagem, mas nenhum deles assume um comportamento, ou trejeitos
diferentes daqueles que o definem na vida real. No programa da peça, o
pequeno texto ilustra a proposta dessa leitura:
Do FOLIAS no seu GALPÃO DO FOLIAS ressurge historicamente GALILEU GALILEI. Do seu jeito... da sua forma. Claro que sempre se conta qualquer história a partir do seu próprio olhar! É óbvio! É óbvio? Pode parecer óbvio, mas basta olhar para a pessoa que está ao seu lado e verificar que o que ela enxerga é e sempre será algo diverso do seu. É impossível ver a mesma coisa! É impossível ver a mesma coisa? O mesmo olhar só é possível quando criado a partir de uma relação. Surge um novo olhar. No nosso caso surge uma nova cena. Da própria cena... De quem vê de quem é observado... De quem se vê sendo observado observando a cena... De quem se vê sendo observado por alguém que se vê observando a cena ... ad infinitum ...ad universum...ad Galileum... As condições ideais para algo novo, transformador e revolucionário, só surgem quando todos os conceitos já conhecidos e os que estão por vir se misturam. Condições ideais? Algo novo? Surgimento? Todos os conceitos? Já conhecidos? Estão por vir? Duvidemos ou estanquemos. Misturar talvez seja o caminho. Ou inventarmos um novo verbo... CALEIDOSCOPISCAR
4
Portanto, o olhar brechtiano que existe no grupo não é um olhar que está
a serviço de certo tipo de linguagem que pretende seguir fielmente os passos do
Teatro Épico. A identificação com a visão de Brecht que vem sendo usada pelo
grupo há anos é algo que pode ser notado, mas que mais do que uma
apropriação das técnicas e dos textos, está ligada à captação da essência do
legado de Brecht. Chega a ser difícil até, definir exatamente o que nas
montagens do grupo é e não é inspirado nesse legado, pois tudo ali está imbuído
de seu pensamento, e este condiz muito com aquele que defendi até agora,
como aquele que deveríamos insistir e apoiar em nossa época. A compreensão
de um teatro livre e ao mesmo tempo político é o que está em jogo.
4 Texto retirado do programa da peça Folia Galileu encenada pelo grupo Galpão do Folias.
137
Quando o grupo deu início à proposta de montar uma peça baseada na
Vida de Galileu de Bertolt Brecht, já sabiam desde o começo que não
contariam aquela história de um modo convencional. Vale destacar que,
quando se trata dos textos de Brecht, há sempre a dificuldade com relação aos
direitos autorais que estão ainda sob a posse da família do autor. Mas para
uma abordagem como a do Folias isso não constituiu um problema, uma vez
que eles queriam contar uma história e para isso era preciso que eles se
apropriassem dela de uma forma que aquele se tornasse de fato algo como o
nome da peça, Galileu Folias.
Ainda mais próximo de Brecht, o processo todo já começou bastante
empenhado em se tornar um projeto coletivo, e digo isso porque dessa vez,
além do grupo de atores, foram selecionadas também algumas pessoas
externas que tivessem algum vínculo com teatro, para acompanhar o processo,
que estivessem interessadas em aprender sobre o processo de montagem do
grupo, em conjunto com essa proposta de contar a história do Galileu Galilei de
Brecht, trazendo-a para o ambiente de nossa época.
Entre os estudantes, uma amiga passou a fazer parte do grupo e
durante a concepção do espetáculo era inesperado que eles participassem
como atores, mas isso acabou acontecendo para alguns que, além de
acompanharem a concepção do espetáculo, ajudaram a construí-la. Primeiro
construíram um exercício que foi apresentado alguns meses antes da peça
estrear e, depois, também como atores na peça, como guias de pequenos
grupos de espectadores.
Mas que grupos de espectadores? Sim, essa é uma das peculiaridades
dessa experiência, o que me faz chegar ao momento de relatar alguns pontos
baseados naquilo que pude observar e refletir e que espero que sejam
satisfatórios para demonstrar, como o grupo Galpão do Folias desenhou com
essa montagem, de modo inovador, a presença de Brecht em nosso tempo, e
além disso, a importância de salientar que ela não aconteceu a 50 anos atrás,
quando a figura de Brecht era mais pulsante no teatro brasileiro, mas está
acontecendo agora:
1. Logo no começo da peça, a plateia é dividida em pequenos grupos e
cada um é conduzido por um guia de uma cena a outra. Os espectadores são
levados de um espaço a outro para construir a ideia de que eles entraram
138
numa busca junto com Galileu e que não é a peça (os atores e cenários) que
se move até ao público, mas o público que circula de uma cena a outra, até
que todos os grupos tenham assistido a todas as cenas, para assim serem
levados novamente ao palco principal, no centro do teatro.
2. Todos os ambientes do espaço do teatro foram usados e
transformados em palcos de cenas, desde o banheiro até a parte de fora do
teatro, na rua, onde fica a bilheteria. Esses espaços serviram à criação. Por
exemplo, a bilheteria serve de confessionário. Isso demonstra a assimilação
pelo grupo da ideia de Brecht de que nós reinventamos as coisas e os
espaços, e aquilo que para uma situação teria determinada função pode muito
bem vir a ter outra de acordo com a nova situação proposta. Há uma cena que
se passa do lado externo do teatro, onde a rua também é chamada a atuar. Do
outro lado da rua há um bar, para onde a atriz que representa a personagem
Virginia (filha de Galileu) se dirige, levando os funcionários do bar a
participarem como se fossem atores da cena, dando um grito para ela e
oferecendo-lhe uma bebida.
3. Os espectadores assistem ao mesmo número de cenas, mas nunca
na mesma ordem, o que depende do guia. Eu mesma, nas duas vezes que
assisti à peça, pude ter duas experiências totalmente diferentes, apesar de ter
assistido às mesmas cenas.
4. Nem todas as personagens da peça original foram usadas nesse
processo. O grupo criou novas personagens a partir do texto (como é o caso da
mãe de Ludovico) e a maioria não representa apenas a personagem, mas
resume algumas entidades que estavam presentes no texto de Brecht. Por
exemplo, dois atores representaram o Andrea criança e o Andrea adulto. A
Dona Satri define o povo, a simplicidade. A mãe de Ludovico, que no livro não
existe como personagem (é apenas mencionada), representa uma espécie de
poder da riqueza, atualizada para os dias de hoje, mas algo muito interessante
da peça é que Galileu não aparece. Ele é tema das falas das personagens, ele
e sua descoberta configuram a discussão central da peça.
5. Há um jogo instalado entre presente e passado. Se em uma cena
somos colocados num momento em que Galileu já abjurou, nos é levantada a
pergunta do que ele deveria fazer. Além disso, como não somos transportados
para um mundo distante do de hoje, a peça passa a mensagem de que Galileu
139
é um homem que poderia muito bem estar vivo hoje, e um clima de “as coisas
estão acontecendo agora” é constante durante toda a peça.
6. A compreensão do efeito de distanciamento também não é igual
àquela que estamos acostumados a ver, nos palcos onde encenam Brecht. A
particularidade está em os atores agirem o tempo todo como as personagens;
não como se estivessem representando coisa alguma, mas são eles mesmos
emprestando-se para aquela história. Do mesmo modo, a disposição dos
ambientes reverte o sentido de plateia, como se os espectadores estivessem
dentro da história – o que de fato estão. Sem eles a peça não existe porque os
atores não contracenam uns com os outros, mas cada cena é feita por um ator
só, que contracena com o público. Por exemplo, há uma cena em que somos
levados a uma conversa com a personagem a mãe de Ludovico e nela a atriz
nos oferece chá e biscoitos, ao mesmo tempo em que fala conosco.
7. A peça começa com a personagem de Andrea mais velho que vai à
casa de Galileu, como na peça de Brecht, mas diferente do texto original, a
filha de Galileu, Virginia, diz a Andrea que ele vai ter que esperar. E assim é. O
ator que faz Andrea fica sentado no “palco” à espera de Galileu, enquanto os
espectadores seguem na “busca” pelo conhecimento, andando de uma cena à
outra. No final, todos voltam ao palco, e Andrea descobre que Galileu, depois
de abjurar, continuou escrevendo.
Tudo o que descrevi e tantos outros aspectos que poderiam ser tidos
por dados por uma experiência relevante (que por si só poderia também
resultar numa dissertação) foram impressões que retirei desta montagem que
me deixou bastante satisfeita, uma vez que pude ver a aplicação das ideias de
Brecht sem a dureza com que costumam ser aplicadas. Em todas as cenas a
que assisti (umas mais, outras menos) me senti provocada a pensar por
diversos pontos de vista a situação de Galileu, que nada mais é do que a
situação de um homem comum. E ao mesmo tempo, ainda não sei bem se
devido à junção de todos os elementos que compõem a montagem, percebi
que qualquer pessoa que fosse assistir seria capaz de entender de que se trata
a peça, qual é exatamente a história, o que fez Galileu, por que o fez e as
consequências de suas escolhas. Isso só mostra como não é o uso rigoroso de
cada uma das palavras de Brecht que poderá potencializar uma transformação,
porque ela existe em cada um de nós.
140
Assim, Folias Galileu pode ser considerado um exemplo fidedigno do
modo como penso a partir dessa pesquisa, que Brecht queria ser lembrado
depois de sua morte, além de conseguir mostrar como ele ainda pode e deve
ser usado. Ali, assim como teria feito Brecht, eles se arriscaram e realmente
experimentaram. Sem medo, caminharam junto com o autor e foram a fundo
em suas mudanças. Ao invés de se prenderem ao Brecht da primeira fase,
avançaram e foram de encontro à fase madura. A atualização de sua obra era
algo que Brecht convocou, algo que ele fez em vida. As técnicas também não
poderiam mais servir sempre da mesma forma, e por esse fato deram “errado”
e continuam dando todas aquelas montagens que tratam a sua obra como um
clássico da literatura alemã. Fizeram de Brecht um produto chato, previsível,
que se enquadra (curiosamente) naquele lugar do teatro de entretenimento
onde só é bonito esteticamente, mas que não promove novas experiências.
Que não questiona nem mesmo a obra enquanto algo possível ou não.
Portanto, hoje, quando pensamos que Brecht encontrou um modo de ser
que é político, devemos pensar sempre nele num sentido indireto. E se
buscarmos nele o mesmo sentido encontrado e criticado por Rancière e
Lehmann, certamente nos decepcionaremos, pois o Brecht que causa impacto
é aquele que nos pergunta sobre aquilo que pensamos, aquele que traz à tona
a importância de se retornar a uma filosofia prática e presente também no
teatro, que nos ajude a pensar em nossas práticas e que não permaneça
apenas problematizando, de fora, afastada dos problemas mais comuns e
simples do dia-a-dia do mundo. Um Brecht como esse é aquele que nos manda
embora para casa com a pergunta: E você, o que pensa?
Por fim, para concluir este trabalho, quis de trazer aqui uma entrevista já
não tão recente (2003), mas que foi concedida por um dos fundadores de outra
companhia bastante experiente na pesquisa com Brecht na cena
contemporânea brasileira, a Companhia do Latão:
Brasil de Fato: Como é fazer teatro político hoje em dia? Sérgio de Carvalho: Melhor do que há dez anos, porque a arte brasileira volta a pensar em politização. Mas preocupação social não significa tratamento crítico. Nem toda imagem da desigualdade gera um movimento de mudança, em quem vê ou em quem faz. A Companhia do Latão conseguiu superar o "sentimento socializante" graças ao marxismo. Sem um diálogo com o materialismo dialético e
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sua tradição crítica seria impossível representar as contradições do capitalismo brasileiro. BF: Como o público reage a uma proposta política no teatro? Carvalho: Em uma sociedade dividida em classes, não se pode querer um teatro que unifique os sentimentos da platéia. Isso seria criar uma unidade falsa. Como nossa matéria artística é a contradição, não fazemos o teatro realista da vida como ela é. Importa mais mostrar a vida como ela não devia ser. Mas é sempre uma alegria encontrar platéias que tendem a uma posição antiburguesa. Há poucos dias um grupo de 40 operárias da indústria química foi ver O mercado do gozo. No debate ficou claro que elas tiveram uma compreensão sofisticada da forma da peça porque entendem, na prática, que a exploração do trabalho não é ficção. (...) BF: De que forma outros grupos teatrais que atuam no campo social trabalham esse tema? Carvalho: Hoje em dia até o teatro comercial posa de crítico do sistema. Espectadores pagam 70 reais o ingresso para lamentar a corrupção dos poderosos, em chave de comédia de costumes. Isso ameniza a culpa de uma elite que acredita ser autocrítica. A notícia boa é que existem vários grupos novos tentando uma reflexão social mais ampla. Mesmo que a maioria ainda esteja na fase da compaixão pelos pobres, ou da condenação superficial da violência, existe uma vontade de ativar os conflitos e torná-los mais claros. BF: O teatro pode provocar ação efetiva, ou apenas reflexão? Carvalho: É óbvio que o teatro não tem o alcance quantitativo da indústria cultural. No entanto, a qualidade da relação teatral é muito intensa. Enquanto a televisão faz da realidade uma ficção, no teatro, a relação viva entre os atores sempre ameaça a credibilidade das imagens mistificadoras. A possibilidade de provocar reflexões é grande. E, como escreveu Marx, a teoria também pode se converter em a ação material. Em vários momentos históricos de intensa agitação política, o teatro teve participação fundamental. Um lacaio da revista Veja, templo da mediocridade nacional, praguejou antes das eleições contra a vitória do PT, com medo que ela enchesse as ruas de teatro. Se isso vier um dia a acontecer, terá que ser como conflito, não como festa: é essa a vocação do teatro – a contradição. Só por isso tem algo a produzir contra o "suave terror totalitário" da indústria cultural. É uma tarefa coletivizante, de construir um sentido comum: para quem está no palco, o teatro impõe o trabalho de equipe. Para quem vê, impõe a experiência do convívio público. Seu potencial de desalienação só se realiza coletivamente.
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E será mesmo que a ideia de Brecht para a construção de um coletivo é
tão utópica? Qual o momento que o mundo está enfrentando hoje? As pessoas
estão se juntando por causas, fala-se muito em uma sociedade que “acordou”
para suas condições. É o caso do Brasil, em que as pessoas resolveram sair
às ruas ao mesmo tempo em que se vê o despreparo delas, que traduz uma
imaturidade política que é produto de uma espécie de educação e sistema
articulados entre si para levar os indivíduos a não pensar.
5 Esta entrevista foi retirada do site da Companhia do Latão. Trata-se de uma entrevista dada por Sérgio
de Carvalho ao jornal Brasil de Fato em 2003. A entrevista na íntegra pode ser encontrada pelo link: http://www.companhiadolatao.com.br/html/fortuna/entrevistas.htm#p2.
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Parece que chegamos a um esgotamento das formas de isolamento e
de um individualismo, e talvez essa seja a hora oportuna para falar dessa
construção coletiva. Há muitas pessoas cansadas, e ainda que elas sempre
tenham existido, agora, conforme o desconforto aumenta, aumentam também
as formas de expressá-lo. Até o desconforto do poder do Estado tem sido
confrontado e vemos os governos tomando medidas desesperadas para poder
esconder das pessoas aquilo para que elas até então estavam “adormecidas” .
A revolta contra as mídias opressoras tem sido um ponto agravante, e a
insatisfação cresceu muito depois que se verificou na prática, indo às ruas para
reivindicar por direitos básicos dentro da democracia, algo muito diferente do
que lhes era mostrado pela televisão e pelos meios de comunicação. Os
grandes representantes da informação no Brasil foram desmascarados e
embora ainda falte muita adesão, alguma coisa na ilusão foi quebrada. Talvez,
mais do que nunca seja o momento oportuno para surgirem novas inspirações
como aquela que se pode retirar da obra de Brecht. Pois, afinal, por onde
andará, agora, o nosso esclarecimento?
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