Download - OBRA-PRIMA DE CHICO XAVIER FOI DEFORMADA E …
OBRA-PRIMA DE CHICO XAVIER FOI DEFORMADA E (DULTERADA PELA
FEB! PESQUISA DE PROF DIREITO, JUIZ FEDERAL, PHD LINGUÍSTICA
PAULO E ESTÊVÃO: O DESACERTO EDITORIAL NO RELANÇAMENTO DO
CLÁSSICO ESPÍRITA
Carta aberta de João Batista Júnior - Professor do Curso de Direito da Universidade do
Estado da Bahia, Juiz Federal da Subseção Judiciária de Vitória da Conquista-
Ba. Mestre em Linguística Histórica e Doutor em Linguística e Cultura pela
Universidade Federal da Bahia
Senhor Presidente da Federação Espírita Brasileira.
Dirijo-me a Vossa Senhoria para, no propósito de cooperar com a missão institucional da
Federação Espírita Brasileira de conservar a integridade literária, bem
como doutrinária, das obras por ela publicadas em nome da difusão do Espiritismo
Cristão, dar-lhe conhecimento de alguns dos acentuados desacertos gráficos nas
recentes edições e tiragens da obra Paulo e Estêvão, de Francisco Cândido
Xavier/Emmanuel.
De logo, apresento-lhe o plano metodológico da exposição, composto fundamentalmente
pelo confronto de duas edições: a 17ª (do 127º ao 136º milheiro), de 1981 – que reproduz
rigorosamente a 1ª edição, de 1941 –, e a 45ª (7ª impressão), de 2014.
Convém deixar em destaque que os senões adiante antepostos aos mais novos
relançamentos, em formato 160x230 mm, não se fundam na má observação dos
trânsitos ortográficos que têm se operado na comunidade lusofônica. Em todo caso, não
é inoportuno relembrar, para fins de esclarecimento prévio, que, como se sabe, o
primeiro Acordo Ortográfico entre Brasil e Portugal se deu em 1931, a que se seguiriam
dificuldades de aprovação legal. Enquanto isso, o Vocabulário Ortográfico da Língua
Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, edição de 1940, era ratificado
unanimemente pela Academia Brasileira de Letras em 29 de janeiro de 1942, antes,
portanto, de ser por aqui tornado oficial o Formulário Ortográfico, de 1943. Entre este e
o Acordo de 1931 levantaram-se algumas divergências que a Convenção Ortográfica, de
1945, tentou suprimir, mas que terminou sendo aprovada somente em Portugal, ficando
a ortografia no Brasil vinculada ao Formulário de 1943.
Não passa despercebido a qualquer leitor atento que a 1ª edição da obra Paulo e
Estêvão, de 1941, se filiou claramente ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa,
da Academia das Ciências de Lisboa. Posteriores revisões respeitaram essa opção
ortográfica até o advento da Lei 5.765/1971, que, de conformidade com o parecer
conjunto da Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de Lisboa,
exarado a 22 de abril de 1971, segundo o disposto no artigo III da Convenção Ortográfica,
celebrada em 29 de dezembro de 1943 entre Brasil e Portugal, implantou a abolição do
trema nos hiatos átonos, do acento circunflexo diferencial na letra e e na letra o, da sílaba
tônica das palavras homógrafas de outras em que são abertas a letra e e a letra o, exceção
feita da forma pôde, que passou então a ser acentuada por oposição a pode, além do
acento circunflexo e do grave com que se assinala a sílaba subtônica dos vocábulos
derivados em que figura o sufixo mente ou iniciados por z.
Ao sobrevir o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, de 1990, que entrou em vigor
no início de 2009, no Brasil, e em 13 de maio de 2009 em Portugal, a Federação Espírita
Brasileira procurou igualmente adequar suas reediçõesaos novos estalões normativos.
Em realidade, ao longo dos anos tem sido claramente identificável a zelosa preocupação
da FEB em produzir edições cuidadas, o que inclui as mencionadas adequações à moldura
gramatical vigente. Além disso, atenta à percepção de que o médium Francisco Cândido
Xavier psicografava, como diriam os romanos, currente calamo – ou seja, em grande
velocidade na transmissão sináptica da junção neuromuscular –, o que muitas vezes
deixou à vista pequenas imprecisões, a primeira revisão editorial legitimamente procurou
escoimá-las antes da impressão definitiva.
De presumir, então, que tenham sido similares a esses os fins que guiaram a proposta de
atualização da obra em foco pelo recente Acordo Ortográfico, o que, porém, nemsempre
foi seguido à risca, como se vê, ilustrativamente, da grafia “instrui-lo-ei a respeito”,
constante da 45ª edição (p.51), que desatendeu à exigência, mesmo sob as novas regras
do Acordo, de que o i em posição final de palavra oxítona, quando antecedido de outra
vogal com que forme hiato, deve ser acentuado, como já vigorava sob a vigência das
normas anteriores, o que explica que, na 17ª edição, tivesse sido acertadamente escrito
“instruí-lo-ei a respeito” (p. 55).
Mas não édesse tipo de fato editorial que cuida este exame submetido à sua apreciação, e
sim daquelas alterações que, além de arredarem as escolhas estilísticas dos Autores,
instalaram trocas ortográficas indevidas.
As observações abaixo expostas não têm a pretensão de ser exaustivas, porquanto a
releitura dessa obra clássica de minha parte sempre se fez mais em nome do alinhamento
com a luminosa filosofia aí anunciada. Todavia, mesmo mergulhado na exploração do
conteúdo da obra em sua recente edição, não pude deixar de notar que seus desvios
ortográficos e estilísticos comprometem o feitio literário dos Autores.
Não é fora de propósito pôr em evidência que todo autor tem seu próprio estilo, o que traz
à cena as célebres palavras extraídas do discurso pronunciado por Buffon na Academia
Francesa, a 25 de outubro de 1753: “Le style c’est l’homme même”. Isso explica
a credibilidade de obras mediúnicas como a notável Parnaso de Além Túmulo, capaz de
arrancar admiração do rigoroso crítico literário, embora cético quanto ao
Espiritismo, Agripino Grieco, como reconheceu, em entrevista ao Diário da Tarde, em
1944, quando de observação feita em relação aos escritos psicografados por Chico Xavier
e atribuídos a Augusto dos Anjos e Humberto de Campos.
Nessa pesquisa de identidade literária, busca-se, quase sempre, delimitar os
chamados estilemas, que são recorrências ou traços característicos do estilo. A dupla
Chico Xavier/Emmanuel, aqui focalizada como unidade autoralpela íntima comunhão
de propósitos entre ambos, tinha igualmente os seus, os quais, afora adaptações
ortográficas, convidam a ser deixados intactos.
Feito esse prólogo, passo a apresentar as imprecisões identificadas na 45ª edição
de Paulo e Estêvão, pondo em cotejo, repita-se, os trechos nela contidos com os que se
encontram na 17ª edição:
1.“O feitor designou Jeziel, incontinente” (p. 50, 45ª edição). Basta consultar as edições
antigas para verificar que os Autores se valeram de outra forma gráfica, como se lê da
página 52 da 17ª edição: “O feitor designou Jeziel, incontinenti”.
Esse deslize poderia passar à conta de desatenção tipográfica se essa primeira impressão
não fosse logo desfeita pelas repetições encontráveis muitas páginas à frente:
“Incontinente, tomou o caminho de Jope” (p. 166); “um tribuno militar
organizou incontinente um troço de soldados” (p. 412). Na 17ª edição, assoma a real
preferência dos Autores: “Incontinenti, tomou o caminho de Jope” (p. 83); “um tribuno
militar organizou incontinentium troço de soldados” (p. 464).
Incontinenti é latinismo adverbial lexicalizado na língua portuguesa e, em razão
disso, sem adaptação morfológica, mesmo após a citada Reforma Ortográfica de 1971,
ficando assim mantida essa forma nas grandes obras de referência lexicográfica:
“incontinenti (nên). [Adapt. do lat. in continenti.] Adv. Sem demora; sem intervalo; sem
interrupção; sem detença; imediatamente” (Novo dicionário Aurélio da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 933).
Da mesma ordem é o ensinamento de Rocha Lima: “9. Incontinenti – latinismo –
significa imediatamente; sem demora, intervalo ou interrupção: ‘Reconhecemo-nos
incontinenti, com igual espanto’ (Monteiro Lobato)” (Gramática normativa da língua
portuguesa. 30. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, p. 315).
Incorporado, pois, à língua portuguesa sem acentuação e sem grifo, tal como consta da 5ª
edição, de 2009, do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia
Brasileira de Letras, tem sido adotado tanto por escritores célebres quanto pelo culto
padrão redacional das leis brasileiras, como se vê de dispositivos do Código
Civil Brasileiro, instituído pela Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002: “A doação verbal
será válida, se, versando sobre bens móveis e de pequeno valor, se lhe seguir incontinenti
a tradição” (art. 541, parágrafo único); “se houver instruções do comitente proibindo
prorrogação de prazos para pagamento, ou se esta não for conforme os usos locais, poderá
o comitente exigir que o comissário pague incontinenti” (art. 700); “se o transporte não
puder ser feito ou sofrer longa interrupção, o transportador solicitará, incontinenti,
instruções ao remetente” (art. 753).
A alteração foi, portanto, indevida.
2. Na 45ª edição, depara-se com este trecho: “Estêvão era uma inteligência poderosa e
mostrara, ao morrer, uma paz impressionante, acompanhada de valores espirituais
que o infundiam assombro” (p. 176).
Salta aos olhos que houve adulteração da regência verbal, porquanto o
verbo infundirrege acusativo de coisa e dativo de pessoa, e, no caso, o objeto direto dele
já é assombro, sendo completamente descabida a inserção do pronome o no contexto
da sentença, por não exercer aí qualquer função sintática. A redação das versões antigas,
por óbvio, jamais cometeria esse tipo de pecado linguístico: “Estêvão era uma
inteligência poderosa e mostrara, ao morrer, uma paz impressionante, acompanhada de
valores espirituais que infundiam assombro” (17ª edição, p. 195).
A mudança de regência do verbo, ao introduzir verdadeiro corpus alienum,
positivamente não tem abonação gramatical.
3. Na 17ª edição, os Autores assim compuseram a seguinte passagem: “os coríntios
riam gostamente” (p. 431). Na atualização feita pela 45ª edição, grafou-se: “os coríntios
riam gostosamente” (p. 383).
Gostamente é forma adverbial vernácula, encontrável nos autores clássicos de
maior feição lusitanizante. Assim é que, entre os contemporâneos, se lê do escritor e
jornalista angolano João Melo no conto “Madinusa”: “(...) alheia a esses receios de G.W.
Bush — que, como os brasileiros, eu chamaria gostamente de ‘bobos’” (Contos do mar
sem fim. Rio de Janeiro: Pallas, 2010).
Também no Brasil a expressão está presente em alguns cronistas, como Pedro Rogério
do Couto Moreira, nascido em 1946: “Meio? - ri gostamente o escritor. - Era
inteiramente” (Jornal Amoroso: Edição Vespertina. Brasília: Thesaurus Editora, 2007,
p. 159).
Os Autores de Paulo e Estêvão fizeram, então, uso consciente, pois, na introdução,
tinham usado forma alternativa: “Templos e devotos entregam-se, gostosamente, às
situações acomodatícias” (17ª edição, p. 8; 45ª edição, p. 8).
Aqui, a revisão editorial desafeiçoou-se inteiramente do talhe estilístico aposto à obra.
4. Na 17ª edição, há recorrente estilema dos Autores: trata-se do uso da locução até a.
Confira-se esta passagem da 17ª edição: “Saulo de Tarso, com a profunda sinceridade que
lhe caracterizava as mínimas ações, só queria saber que Deus havia mudado de resolução
a seu respeito. Ser-lhe-ia fiel até aofim” (p. 204). A 45ª edição alterou para “ser-lhe-ia
fiel até o fim” (p. 183).
Não é a única ocorrência modificativa. O trecho “ei-la junto do companheiro, nas lides
do tear, até às horas mais avançadas” (17ª edição, p. 247) foi transmudadoem “ei-la
junto do companheiro, nas lides do tear, até as horas mais avançadas” (45ª edição, p.
222).
Inexiste incorreção na utilização de até a em lugar apenas de até. A esse respeito, adverte
bem Antônio Houaiss:
“(...) como prep., é indiferentemente correto associá-la ou não a outra preposição (ir a[té]
o parque ou ir a[té] ao parque; caminhar a[té] a igreja ou caminhar a[té] à
igreja) (...) atualmente, é mais comum em Portugal o emprego associado à
prep. a, enquanto no Brasil as utilizações pendulam; historicamente, até o sXVII, usou-
se na língua apenas até; nesse mesmo século foi que começou a surgir até a, com o art.
fem. (até à, até às), e posteriormente com o art. masc. (até ao, até aos); grandes escritores
dos sXIX e XX alternaram o emprego do até preposicionado com o até sem preposição,
por vezes na mesma obra (Machado de Assis, por exemplo)” (Dicionário Houaiss da
língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, verbete até, p. 331).
A adoção de até à constitui, então, marca estilemática dos Autores, difusa por suas obras,
como se lê, entre outras, de Renúncia (14ª edição, 1983): “trabalhar devotadamente, até
à vitória” (p. 12); “amparai nossos espíritos até ao dia” (p. 24-25); “ansioso por defender
Madalena até ao fim” (p. 205-6).
Não se trata de traço único nessa preciosa produção em que há, aqui e ali,
registros estilístico-gramaticais deliberadamente lusitanizantes. Bom exemplo se tem
no seguinte passo: “Tamanho o movimento de necessitados de toda sorte, que há
muito Simão não mais podia entregar-se a outro mister” (17ª edição, p. 61). O emprego
de há muito sem flexão, quando deveria estar em correlação com tempo verbal
imperfeito, não tem o referendo de gramáticos mais ortodoxos (ALMEIDA, Napoleão
Mendes de. Gramática metódica da língua portuguesa. 35. ed. São Paulo: Saraiva,
1988, p. 534), mas é avalizado por Celso Cunha e Lindley Cintra (op. cit., p. 528), sendo
corrente sobretudo em autores portugueses.
Outro traço de relevo no manejo literário de Chico Xavier/Emmanuel diz respeito à
colocação dos pronomes átonos. Deliberadamente, eles operam com extrema anteposição
clítica à esquerda, como nos seguintes trechos: “Se hei de abandonar a dádiva de Pedro a
pessoas que lhe não podemreconhecer o valor que lhe atribuímos (...). E temo que os
adeptos de Jesus te não possam compreender de pronto” (17ª ed., p. 243; 45ª ed., p. 219).
Trata-se de forma de colocação conhecida como apossínclise, muito comum entre
os clássicos até o início do século XX, a exemplo desses versos de Fernando
Pessoa/Ricardo Reis: “Não a ti, Cristo, odeio ou te nãoquero” (Obra poética. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 271).
Sob a égide da influência do padrão lusitano, nessa quadra histórica, o primeiro Código
Civil brasileiro, promulgado em 1916, com sua forma gestada pelo rigor do aceso debate
entre o gramático Ernesto Carneiro Ribeiro e Rui Barbosa, jurista e seu ex-aluno, trouxe
construções com essa abonação: “Art. 94. Nos atos bilaterais, o silêncio (...) constitui
omissão dolosa, provando-se que sem ela se não teria celebrado o contrato”.
Modernamente, esse uso foi abandonado no Brasil, que tem sua alocação clítica (por
sinal, algumas vezes utilizada nesta mensagem) bem menos rigorosa até do que aquela
adotada pelo atual Código Civil, conquanto não seja desagradável ao ouvido nativo – ao
contrário do anterior – o giro preferido pela nova redação do art. 147: “Nos negócios
jurídicos bilaterais, o silêncio (...) constitui omissão dolosa, provando-se que sem ela o
negócio não se teriacelebrado”.
Para que essa mudança frasal tivesse lugar, foi necessária nova lei. Com muito mais
razão, não se considera lícita a intromissão revisora na confeição literária de
um escritor, porquanto somente a ele seria dado fazê-lo.
Tratando-se de Francisco Cândido Xavier/Emmanuel, o erudito travo estilísticocompõe
o sabor em suas obras. Por essa razão, aí se descobrem vocábulos como maniatados,
constante da 17ª edição (p. 523), que, por felicidade, foi deixado intacto na 45ª (p. 463),
e archeiros (17ª ed., p. 477; 45ª ed., p. 423). Ambos os lexemas se apresentam hoje com
certo sabor de arcaísmo quando postos em contraste com manietadose arqueiros, mas
coexistem bem, por todo o texto, com o uso de expressões tidas como rebuscadas, que,
podendo até induzir a erro os menos avisados, gozam, porém, de vernaculidade, como na
frase “atento ocargo oficial que ocupava” (17ª edição, p. 130), felizmente
também mantidana 45ª (p. 118), pois aí não se trata da locução prepositiva atento a, mas
sim do particípio passado do verbo atentar, que é empregado, embora menos comumente
no Brasil, no sentido de “levado em consideração; visto, ponderado”
(HOUAISS, op.cit., p. 333), como neste trecho do respeitado filólogo e lexicógrafo
português Rebelo Gonçalves: “atento ouso que se lhes há dado e o registo que, por isso,
já lhes tem cabido em obras lexicais” (Tratado de ortografia. Coimbra: Tipografia
Atlântida, 1947, p. 198, nota 4).
Outra palavra cujo significado tradicional tem diferido do contemporâneo é volúpia, que
integra o seguinte trecho: “Antes, revoltava-se contra o Messias Nazareno, em cuja ação
presumia tal ou qual incompreensível volúpia de sofrimento” (17ª edição, p. 209; 45ª
edição, p. 191). O uso atual não raro tem tonalidade semântica de prazer sensual; todavia,
em Francisco/Emmanuel, é o mesmo empregado pelos clássicos, inclusive
por Guillon Ribeiro na tradução de O Evangelho segundo o Espiritismo: “Se
unicamente buscásseis a volúpiaque uma ação boa proporciona (...)” (108ª edição, 1994,
p. 222).
Por essas poucas amostras lexicais se vê que os Autores movimentavam-se pela língua
portuguesa com a mestria dos clássicose seus usos cultivados. Em descuido para com
a predileção autoral por essa modelagem literária, a revisão terminou por fazer
coexistir na obra aquelas formas menos usuais, já citadas, com outras submetidas a
impróprias atualizações. Com efeito, alterou-se céptico(17ª edição, p. 209)
para cético (45ª edição, p. 190). Mesmo que se argumente que a atualização ortográfica
deva conformar-se com a craveira nacional vigente, isso não explicaria que o
lusitanismo de conjeturas(17ª edição, p. 203) fosse deixado sem alteração na 45ª edição
(p. 182), quando, em realidade, o uso brasileiro correntio é conjectura. Mais
contraditório foi manter sem alteração ditério (17ª edição, p. 291; 45ª edição, p. 259)
se a conformação gráfica utilizada no Brasil é dictério.
O câmbiofoi, por conseguinte, infeliz.
Mas mais infeliz ainda mostraram-se ser as alterações sem o avalde qualquer norma,
tal como se deu quanto ao uso da função anafórica do pronome, que não dispensa a
reverência da inicial maiúsculaquando se reporta a nome próprio de entes sagrados.
Assim é que muito elegantemente os Autores escreveram: “Preciso servir Àquele que se
dignou arrancar-me das trevas do mal” (17ª edição, p. 236). Contudo, a 45ª edição preferiu
forma menos reverente: “Preciso servir àquele que se dignou arrancar-me das trevas do
mal” (p. 213).
Disso tudo vai-se percebendo que, se não se interferisse nas opções ortográficasdos
Autores, ainda que incomuns no Brasil, não se teria o resultado pouco apreciável de
ranhuras na unidade estilística da obra.
5. Em outro caso, a alteração produziu completa deformação de sentido, podendo-se
suspeitar que aqui a desatenção tenha tido origem na semelhança morfológica entre os
vocábulos. Eis a passagem na 17ª edição: “Em seguida, fez a leitura dos ensinos de
Jesus, respigando algumas sentenças do Mestre Divino nos pergaminhos esparsos” (p.
227). O verbo respigartem significado muito claro: “2. t.d. recolher (o que os outros
disseram ou fizeram)” (HOUAISS, op.cit., verbete respigar, p. 2.439).
Pela transcrição do texto se percebe incontroversamente que somente caberia
dizer mesmo respigar, jamais respingar, como muito equivocadamente consta da 45ª
edição: “Em seguida, fez a leitura dos ensinos de Jesus, respingandoalgumas sentenças
do Mestre Divino nos pergaminhos esparsos” (p. 206). Embora não seja rigorosamente
necessário, convém lembrar que respingar é “lançar borrifos ou pingos (de líquido)”
(HOUAISS, op.cit., verbete 2respingar, ib.), o que deixa à mostra sua completa
inadequação ao texto.
6. Em certo momento, a revisão parece ter querido propositadamentealijar a obra
da seleção lexical feita pelos Autores, pondo em seu lugar outra de duvidoso acerto. É
o que se pode observar do seguinte passo da 45ª edição: “Aonde iremos com semelhantes
excessos de interpretação, a respeito um mistificador vulgar” (p. 85). Além da ausência
da preposição “de”, que deve obrigatoriamente seguir-se a “a respeito”, descobre-se, no
confronto com a 17ª edição, que a interferência foi muito mais deformante: “Aonde
iremos com semelhantes excessos de interpretação, em torno de um mistificador vulgar”
(17ª edição, p. 92).
Nenhuma inconveniência, seja de que ordem for, emerge da locução prepositiva em
torno de; ao contrário, no contexto, revela-se muito mais sóbria.
7. Como já dito, a velocidade da atividade psicográfica, feita “ao correr da pena”, pode
produzir pequenos lapsos que autorizam a correção por parte dos responsáveis pela
revisão e pela edição. Embora haja pouquíssimos deles na obra em questão, aqui e ali se
detectam alguns que poderiam ter sido legitimamente retificados tanto pelas tiragens
antigas quanto pelas atuais, em vez de focarem-se estas na pretensa correção do que
jamais deveria ter sido alterado.
Eis alguns desses lapsos:
a. "(...) aquele gesto de confiança e carinho, tratando-o como um irmão” (45ª edição, p.
206), redação também encontrada na 17ª edição (p. 228). Esse arranjo fraseológico,
todavia, gera ambiguidade e, por isso, convida ao uso do chamado objeto direto
preposicionado, a fim de que não se possa ser levado a pensar que “irmão” seja sujeito.
Introduz-se, então, o acusativo preposicionado para burlar a anfibologia. Nesse caso, teria
sido melhor construído o período em exame da seguinte maneira: “(...) aquele gesto de
confiança e carinho, tratando-o como a um irmão”.
As gramáticas, mesmo as mais populares, sempre alertaram para esse emprego peculiar.
A esse respeito, Domingos Paschoal Cegalla ensina: “Objeto direto preposicionado (...)
3) quando precisamos assegurar a clareza da frase, evitando que o objeto direto seja
tomado como sujeito: ‘Tratava-me sem cerimônia, como a um irmão.’ (O. Bilac)”
(Novíssima gramática da língua portuguesa. 27. ed. São Paulo: CEN, 1985, p. 296).
No mesmo sentido, ensinam os filólogos Celso Cunha e Lindley Cintra em obra de
referência: “1. O objeto direto costuma vir regido de preposição a: com os verbos que
exprimem sentimentos: Não amo a ninguém, Pedro. (C. dos Anjos, M, 196)” (Nova
gramática do português contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985,
p. 138).
O objeto direto preposicionado constitui, pois, regra da gramática da língua portuguesa
com coloração estilística, já tendo, a propósito, merecido atenção de estudiosos
estrangeiros, a exemplo de Karl Heinz Delille na obra intitulada Die geschichtliche
Entwicklung des präpositionalen Akkusativs im Portugiesischen(Romanisches
Seminar der Universität Bonn, 1970).
Os Autores de Paulo e Estêvão estavam perfeitamente cônscios desse emprego, tanto
que, muitas páginas depois, escreveram: “(...) aproximou-se do ex-rabino e o abraçou
efusivamente, como se o fizesse a um irmão amado” (17ª edição, p. 271; 45ª edição, p.
305).
b. Ambiguidade que poderia ser corrigida pelos primeiros revisores e pelos atuaisé
localizável nesta passagem: “Os israelitas mantinham viva a ideia da expulsão dos
missionários, quando um incidente ocorreu em auxílio deles” (17ª edição, p. 360). O uso
do anafórico “destes” calharia melhor que “deles”, expungindo qualquer dúvida sobre
quem foi auxiliado pelo incidente. Todavia, na 45ª edição, o trecho ambíguo permaneceu
inalterado (p. 318).
c. Outro bloco em que houve pequena imprecisão encontra-se na página 269, da 17ª
edição: “Saulo viveu em Cafarnaum horas deliciosas para seu espírito emotivo.
Fora olocal das pregações do Mestre; mais adiante, a casinha de Simão Pedro”.
Conquanto o texto tenha assim sido mantido na 45ª edição (p. 241), muito provável que
os Autores tenham querido dizer “fora ao local das pregações do Mestre; mais
adiante, à casinha de Simão Pedro”.
d. Na passagem seguinte, razoável concluir que ou os Autores empregaram uma
forma não dicionarizada no Brasil ou então houve lapso gráfico: “Essas palavras eram
ditas num tom de convicção tão ardente que o próprio charlatão israelita se fizera lívido.
Barnabé também empalidera, enquanto o nobre patrício observava o ardoroso pregador”
(17ª edição, p. 336).
A recente edição preferiu tratar a ocorrência como deslize gráfico e tomou o vocábulo
por empalidecer. Menos mal se ficasse somente nisso; todavia, avançou para adotar o
imperfeito como tempo verbal: “Essas palavras eram ditas num tom de convicção tão
ardente que o próprio charlatão israelita se fizera lívido. Barnabé também empalidecia,
enquanto o nobre patrício observava o ardoroso pregador” (45ª edição, p.298)
Esqueceu-se aí que o tempo verbal mais apropriado, em nome da correlação, certamente
seria o mais-que-perfeito, como deixa entrever a própria forma sintética contida no texto
das primeiras edições: empalide[ce]ra. Deve ser lembrado que, ao contrário do
imperfeito, que designa um fato passado, mas não concluído, o mais-que-perfeito revela
uma ação que ocorreu antes de outra, já acontecida. No trecho em questão, nota-se que
tanto o charlatão israelita quanto Barnabé já tinham empalidecido com a retórica paulina
antes que o patrício romano começasse a observar.
O período, então, tomando-se por certo que o verbo é mesmo empalidecer, deveria ter
sido redigido nas novas edições da seguinte forma: “Essas palavras eram ditas num tom
de convicção tão ardente que o próprio charlatão israelita se fizera lívido. Barnabé
também empalidecera, enquanto o nobre patrício observava o ardoroso pregador”.
e. Um capítulo em que dificuldades da língua se avolumam, sem que se possa cunhar
regulação rígida para todos os casos, diz respeito à virgulação. Como bem observam
Celso Cunha e Lindley Cintra, “o ritmo acelerado da vida intensa de nossos dias obriga-
nos, necessariamente, a uma elocução mais rápida” (op.cit., p. 114). Isso afeta
profundamente o modo pelo qual se apõem as vírgulas, que são indicativas de pausas
melódicas de breve duração, mas dependentes do ritmo que se pretende fazer representar.
Por isso convivem normalmente vírgula e ausência dela em trechos funcionalmente
similares, como os seguintes, transcritos por Celso Cunha e Lindley Cintra (op.cit., p.
628):
“‘Depois levaram Ricardo para a casa da mãe Avelina’ (J. Lins do Rêgo, U, 320)
‘Depois, tudo caiu em silêncio’ (Castro Soromenho, TM, 261).”
Em algumas situações, contudo, não é demasiado inferir que a aposição da vírgula fosse
o mais adequado a fazer. Em Paulo e Estêvão, há pelo menos um exemplo dessa ordem.
Observe-se o seguinte passo, mantido inalterado pela 45ª edição (p. 122): “Foi pela
manhã de um dia muito claro, que o futuro rabino, cercado de alguns companheiros e
soldados, bateu à porta da casa humilde” (17ª edição, p. 131). Não é inapropriado
sustentar que melhor quadraria aí a vírgula para isolar o aposto, o que fica nítido na
seguinte reelaboração: “Foi pela manhã, de um dia muito claro, que o futuro rabino,
cercado de alguns companheiros e soldados, bateu à porta da casa humilde”.
Perdoado esse pecadilho do novo escrutínio editorial ao deixar de melhorar o período,
a revisão andou muito mal em suprimir pausas pertinentes da edição original.
A vírgula a seguir, de oração reduzida seguida de oração subordinada explicativa
restritiva, em que há equivalência com oração adverbial, é irrepreensível: “Incapaz de
compreender as circunstâncias que lhe haviam modificado os planos e esperanças da
vida,imputava o insucesso dos seus sonhos de mocidade (...)” (17ª edição, p.171).
Não que essa pausa se submeta a qualquer cânone impermeável, tanto que Manuel
Bandeira, avesso a exageros puristas, escreveu em Itinerário de Pasárgada: “Depois de
certa hora os alunos externos voltavam para suas casas e eu ficava sozinho na grande sala
dos fundos do edifício” (Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986,
p. 50). Mas isso é prerrogativa do autor, não do revisor. Portanto, ilegítima a
supressãona 45ª edição: “Incapaz de compreender as circunstâncias que lhe haviam
modificado os planos e esperanças da vida imputava o insucesso dos seus sonhos de
mocidade (...)” (p. 156).
Em outro caso, a omissão da vírgula lançada na edição original desfigurou
completamente o sentido da oração. A redação “se é assim ... replicou o outro, vencido”
(17ª edição, p. 246) transformou-se, na 45ª, em “se é assim ... replicou o outro vencido”
(p. 221), produzindo um errôneo sentido textual, como se existisse mais de um vencido.
Virgulação até certo ponto comezinha, como a que separa as inserções apositivas, já
citada, não foi ainda alvo de zelo em mais um lugar da nova edição, como se vê do
confronto do irretocável passo “os fariseus formalistas, da sinagoga, não mais se
insurgiam contra as atividades do ‘Caminho’” (17ª edição, p. 261) com o que
aparece truncadamente na 45ª como “os fariseus formalistas da sinagoga, não mais se
insurgiam contra as atividades do ‘Caminho’” (p. 234).
O emprego da vírgula que se segue a uma conjunção adversativa, ainda mais quando
demarca aposto, é de comum conhecimento. O período seguinte, da 17ª edição, está,
então, muito bem balizado pelas pausas: “Festo recebeu a comissão, cavalheirescamente,
e mostrou-se inclinado a atender, mas, prudente por índole e por dever do cargo, declarou
que...” (p. 483). Na 45ª edição, a opção altera o ritmo indevidamente: “Festo recebeu a
comissão, cavalheirescamente, e mostrou-se inclinado a atender mas prudente por índole
e por dever do cargo, declarou que...” (p. 428).
Por último, entre outros exemplos dos descuidos virgulatórios na reedição da clássica
obra espírita, deve ser aqui transcrita parte do trecho das plangentes palavras de Abigail
a Saulo: “Para lembrar e seguir tuas advertências, recordava que me chamaste a atenção,
à última vez que nos encontramos, para a amizade de Zacarias e de Ruth” (17ª edição, p.
177). Na 45ª edição, a beleza da pausa melódica foi banida de forma incompreensível:
“Para lembrar e seguir tuas advertências recordava que me chamaste a atenção, à última
vez que nos encontramos para a amizade de Zacarias e de Ruth” (p. 161).
8. Enxertia de forte desafeição ao espírito ideológico da obra está na Nota da Editora
de n. 5, constante da página 17, da 45ª edição: “Antiga cidade da Grécia, no Peloponeso,
junto ao Golfo Sarônico, no istmo de Corinto. São Paulo visitou-a em 55, em sua
passagem rumo a Jerusalém”.
São, apócope de santo, usa-se antes de nomes iniciados por consoante. Todavia, ambos
os termos antepositivos pertencem à hagiografia católica; por isso mesmo, ao serem
introduzidos em texto espírita, se mostram completamente desambientados. Sem ser
preciso ingressar na discussão conceitual de santidade nos domínios espiritistas, pode-se
seguramente afirmar que neles não se empregaessa noção como apelo denominativo
da elevação moral dos espíritos.
Ainda mais relevante é ter em conta que a forma hagiográficaafasta-se rematadamente
da estética literária dos Autores, que, em nenhum momento da obra, a utilizam, nem
mesmo nas notas marginais. Por isso é que se lê do seguinte passo do Autor espiritual
da obra em nota: “1) As observações de Paulo na Epístola aos Gálatas (2:11-14) referem-
se a um fato anterior à reunião dos discípulos. – (Nota de Emmanuel)” (17ª edição, p.
378). A observação de pé de página foi reproduzida sem modificação na 45a edição (p.
334).
Como que, então, se pode transigir que notas alheias a um autor, destoemde
sua própria maneira de construí-las e promovam, ademais, mixórdia
doutrinária? Mesmo que, por algum pouco crível argumento, se admitisse esse adjunto
adnominal, não deveria se ficar indiferente ao fato de que Paulo, na altura histórica da
nota, ainda era Saulo e, portanto, longe dos elevados dotes morais que assinalarão sua
passagem pela Terra.
9. Recurso editorial que costuma ser útil na reedição de obra clássica de
cunho histórico é a apresentação de notas explicativas, meio de que, na obra Paulo e
Estêvão, o Autor espiritual se serve algumas vezes, com a devida parcimônia, ao lado
daquelas produzidas originariamente pela Editora da FEB.
Na 45ª edição, essas notas da Editora se multiplicaram, agora com novidade:
a apresentação de significações. Palavras como sobrolho (p. 39), singultos(p.
47), algibeira (p. 54), capitoso (p. 66), onusto (p. 68), chanfalho (p. 125), astenia (p.
212) e posca (p.272) mereceram verbetes inéditos, à maneira de glossário. Discute-se,
nos domínios neurocognitivos da Linguagem, se o cérebro precisa mesmo desses aportes
marginaispara entrar na intimidade significacional dos vocábulos pouco conhecidos.
Parece que não, já que termos corriqueiramente usados não se prendem, de ordinário, a
consultas prévias de significados dicionarizados, uma vez que estes se deixam aflorar
naturalmente pelas recorrências das oposições estruturais nos textos à medida que se
passa cada vez mais a frequentá-los.
Mas, tendo-se como certo que sejam úteis tais notas, fica-se a pensar qual critério de
seleção terá sido usado no caso em apreço, uma vez que palavras nada usuais
como adusto (p. 82), estos (p. 171), desfaçado (p. 198), repto (p. 237), repeso (p.
257), latagão (p. 328) e esmar(p. 374) ficaram alheias a qualquer atenção lexicográfica,
como se fossem de uso costumeiro por toda sorte de leitor.
Quanto às notas de geografia histórica, que tiveram seu número significativamente
aumentado, são elas passíveis do mesmo questionamento quanto ao critério
adotado. Trazem-se esclarecimentos sobre o que seriam e onde se localizariam Cencreia
(p. 17) e também Cefalônia, Nicópolis e Citium, estas três reunidas na mesma página 49,
da qual se lê, também, a primeira menção a Nea-Pafos, localidade que será novamente
lembrada algumas vezes mais à frente da obra, como na página 294, onde aparece ao lado
de Amatonte, que mereceu a nota de número 37.
Nea-Pafos, contudo, não recebeu nota alguma da 45ª edição. Mas, por coerência editorial,
bem que merecia. Desde 1962, escavações promovidas pelo Departamento de
Antiguidades de Chipre trouxeram à luz do mundo modernos prédios públicos e
edificações particulares e eclesiásticas, em trabalho que tem merecido outros
empreendimentos arqueológicos de pesquisadores da Europa, Estados Unidos e Austrália.
Mais recentemente, os pesquisadores australianos descobriram, nessa antiga cidade que
se situava a sudoeste da famosa ilha mediterrânea, um teatro construído no século III a.C,
além de arquitetura helenística típica.
O mesmo se pode dizer da ausência de qualquer nota sobre Palmira, referida na página
209, da 45ª edição. A antiquíssima cidade síria, situada quase que a exato meio caminho
entre o mar Mediterrâneo e o rio Eufrates, era, nessa locação geográfica, parada
obrigatória para muitas caravanas das rotas comerciais da época. Objeto de escavações
desde 1929, tornou-se há pouco tempo alvo de pesar mundial porque, sob o controle da
intolerância religiosa do Estado Islâmico, vários dos seus monumentos históricos foram
reduzidos a pó.
45ª edição 2014 alterada
Senhor Presidente, com essas modestas observações, que por aqui se encerram, torna-se
recomendável que a Federação Espírita Brasileira, como fiel depositária dos direitos de
publicação dessa e de outras obras do fértil conúbio mediúnico entre Francisco Cândido
Xavier e Emmanuel, que lhe foram confiados em nome da alta missão institucional de
que está investida, possa doravante ficar atenta à necessidade de preservar a
originalidade autoralconstante da 1ª edição, por tanto tempo respeitada nas que se lhe
seguiram.
Pode-se ser levado a refletir que o rigor com certas exigências normativas seja excessivo,
por se estar em tempos em que o jugo da disciplina purista perdeu força censória.
Esse tipo de licença, entretanto, não pertence ao editor, mas ao autor, ainda mais
quando, além de trocas de regras gramaticais ao talante do revisor, se pretende
interferir na própria composição estilística, cuja beleza pode estar em
ser indissociáveis forma e fundo, mais ou menos como, ao som de linda canção, se frui
sua estética sem que se cindam letra e música. Esse é o sentimento dos que, ao longo de
mais de seis décadas, leram as belas páginas de Paulo e Estêvão, induzidos
pela confiança inconsciente de que o arranjo literário terá atendido aos cuidados dos
Autores.
Não que esse tipo de intervenção imprópria seja incomum. Ao contrário, o prurido
revisortem atuado, ao longo dos anos, como temível espantalho na vida de escritores e
poetas. Autran Dourado, ao se reportar a erros de revisão e a alterações a pretexto de
correção na sua obra Uma vida em segredo, desabafou acidamente: “Me dedico com
paixão à minha escrita, passo às vezes mais de um ano escrevendo um livro e não há de
ser um revisor, nas suas poucas horas de trabalho com o meu livro, que vai me ensinar
como escrever”, pois, segundo ele, “tenho o direito de não abrir mão de minhas
particularidades para ninguém” (apud ROCHA, Diva Vasconcelos da. Comunicação
(mimeo.) apresentada ao I Congresso Internacional de Filologia portuguesa. Niterói,
1973).
Um dos mais expressivos nomes da poesia de língua portuguesa, Manuel Bandeira, vez
por outra dava de cara com esses cacoetes “corretivos”. Conta ele que, ao traduzir
Hölderlin, compôs estrofe de Metade da Vida dessa forma: “Peras amarelas/ E rosas
silvestres/ Da paisagem sobre a/ Lagoa” (op.cit., p. 93). O linotipista, achando improvável
que se pudessem combinar “peras” e “rosas”, mudou para “heras amarelas”...
Mas a melhor tirada do poeta pernambucano contra o vezo corretor, e que serve
de advertência geral, veio da conhecida passagem de Saudades de Quixeramobim: “Eu
vivia encantoado na sala da frente, que ia de oitão a outro, com várias sacadas para o
largo, mobiliada (atenção, revisor: não ponha ‘mobilada’, que é palavra que eu detesto!)
com uma cama de vento, uma cadeira e um lavatoriozinho de ferro” (op.cit., p. 503).
É duvidoso que Chico Xavier, mesmo com seu encantador franciscanismo lírico, deixasse
de sinalizar ar contrafeito para com as idiossincrasias editoriais na republicação da
obra. Emmanuel talvez fosse ainda menos condescendente. À parte esse exercício
conjectural, em caráter objetivo o que fica mesmo é o alvitre para que se preserve o
engenho literário dos Autores como testemunho eloquente de que
as ausências devam ser sempre respeitadas.
Atenciosamente.
Brumado, Bahia, 8 de dezembro de 2017.
João Batista de Castro Júnior (Professor do Curso de Direito da Universidade do Estado
da Bahia, campus XX, Brumado. Juiz Federal titular da 1ª Vara da Subseção Judiciária
de Vitória da Conquista-Ba. Mestre em Linguística Histórica e Doutor em Linguística e
Cultura pela Universidade Federal da Bahia).
[grifos do autor, sublinhados com grifos nossos; junção de palavras é da cópia do texto
para o facebook; o original primorosamente escrito está intocável no conteudo e forma]
Fonte Notícias
PAULO E ESTÊVÃO: O DESACERTO EDITORIAL NO RELANÇAMENTO DO
CLÁSSICO ESPÍRITA