Download - OLAVO SEVERO GUIMARÃES NEUTRALIDADE DE REDE
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE DIREITO
OLAVO SEVERO GUIMARÃES
NEUTRALIDADE DE REDE:
A PRÁTICA DE ZERO-RATING SOB AS ÓTICAS REGULATÓRIA E
CONCORRENCIAL
Porto Alegre
2018
OLAVO SEVERO GUIMARÃES
NEUTRALIDADE DE REDE:
A PRÁTICA DE ZERO-RATING SOB AS ÓTICAS REGULATÓRIA E
CONCORRENCIAL
Trabalho de Conclusão de Curso elaborado como requisito parcial para a
obtenção de título de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Orientador: Prof. Dr. Augusto Jaeger Junior
Porto Alegre
2018
OLAVO SEVERO GUIMARÃES
NEUTRALIDADE DE REDE:
A PRÁTICA DE ZERO-RATING SOB AS ÓTICAS REGULATÓRIA E
CONCORRENCIAL
Trabalho de Conclusão de Curso elaborado como requisito parcial para a
obtenção de título de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Aprovado em: ______de __________ de 2018.
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________________
Prof. Dr. Dr. Augusto Jaeger Junior
Orientador
_____________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Wendling
_____________________________________________________
Profª. Daniela Copetti Cravo
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Augusto Jaeger Junior, por abraçar este projeto de
trabalho e por todo o auxílio na elaboração do mesmo.
À professora Daniela Copetti Cravo, pela disposição a ajudar e pelas úteis indicações
de leitura.
Ao meus amigos, por estarem sempre presentes.
À minha família, em especial aos meus pais, aos meus avós, ao meu padrasto e à
minha irmã pelo suporte e amor incondicionais, pela compreensão e pelos exemplos e
ensinamentos de vida.
RESUMO
A neutralidade de rede é um princípio criado para combater discriminações injustas no
tratamento de pacote de dados por parte das provedoras de conexão e assim defender a
natureza inovadora da internet. Não há um consenso quanto à abrangência do princípio: há
posições mais rígidas e outras mais flexíveis. Um dos dissensos existentes é se a
discriminação positiva de custos - cobrar menos dos usuários para acessar um conteúdo ou
aplicação - seria sempre maléfica. Este trabalho analisa juridicamente a isenção de cobrança
para o acesso de um conteúdo ou aplicação, prática chamada de zero-rating, sob os vieses
regulatório (Marco Civil da Internet - Lei nº 12.965 e Decreto 8.771/2016) e concorrencial
(Lei nº 12.529/2011). Apesar das opiniões contrárias, a ANATEL entende hoje que a
neutralidade de rede adotada pelo Brasil não veda expressamente a prática de zero-rating,
estando tal estratégia comercial permitida desde que não infrinja outros dispositivos do
ordenamento brasileiro e em especial do Marco Civil da Internet. Quanto ao âmbito
concorrencial, o zero-rating pode gerar restrições verticais, categoria que exige análise
pormenorizada para o escrutínio da existência de infração econômica. Assim, ambas as
abordagens jurídicas, em verdade, exigem atenção às peculiaridades concretas de cada caso.
Este trabalho inicialmente elabora um panorama geral sobre a discussão a respeito da
neutralidade de rede; no segundo capítulo, a delineação do referido princípio no ordenamento
brasileiro é abordada; no terceiro capítulo, a monografia foca exclusivamente na prática de
zero-rating, suas nuances e seu tratamento jurídico.
Palavras-chaves: Zero-rating; neutralidade de rede; Marco Civil da Internet; concorrência;
regulação.
ABSTRACT
Network neutrality is a principle created to combat unfair discriminations in the
treatment of data packets by the internet service providers and thus defend the innovative
nature of internet. There is no consensus about the reach of the principle: there are more rigid
and more flexible positions. One of the existing dissents is whether the positive costs
discrimination - charging less from users to access some content or application - would
always be malefic. This work legally analyzes the exemption of charging for the access of a
content or an application, practice called zero-rating, under the regulatory (Brazilian Internet
Civil Mark - Act n. 12.965 and Decree n. 8.771/2016) and the antitrust approaches (Act n.
12.529). Despite the existing contraries opinions, the ANATEL understands today that the
network neutrality adopted by Brazil does not ban expressly the practice of zero-rating, thus
the commercial strategy is allowed provided that it does not infringes another dispositions of
the Brazilian legal order and of the Brazilian Internet Civil Mark specially. In the antitrust
ambit, zero-rating may generate vertical restrictions, category which requires detailed analysis
for the assessment of the existence of economic infraction. Thus, both legal approaches
actually require attention to the concrete peculiarities of each case. This work elaborates
initially a general overview over the discussion regarding network neutrality; in the second
chapter, the delineation of the referred principle in the Brazilian legal order is analyzed; in the
third chapter, the monograph focuses exclusively on the practice of zero-rating, its nuances
and its legal treatment.
Key words: Zero-rating; network neutrality; Marco Civil da Internet; competition; regulation.
LISTA DE QUADROS E ILUSTRAÇÕES
Quadro 1: Principais atores envolvidos no conflito da neutralidade de rede ................. 13
Quadro 2: Outros conceitos pertinentes com base no MCI ............................................ 14
Figura 1: Formas de discriminação de dados ................................................................ 18
Figura 2: Market share por operadora, Brasil, 2008 a 2015 .......................................... 57
ABREVIATURAS E SIGLAS
ANATEL – Agência Nacional de Telecomunicações
BEREC – Body of European Regulators for Electronic Communications
CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica
CF – Constituição da República Federativa do Brasil
CGI.BR – Comitê Gestor da Internet no Brasil
DMCI – Decreto Regulamentador do Marco Civil da Internet
e2e – End-to-End
FCC – Federal Communications Commission
IP – Internet Protocol
MCI – Marco Civil da Internet
SBDC – Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência
ZR – Zero-rating
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 10
2. NEUTRALIDADE DE REDE: ORIGEM E CERNE DA DISCUSSÃO.................. 12
2.1 O PRINCÍPIO END-TO-END........................................................................................ 14
2.2 A POSIÇÃO PRÓ-NEUTRALIDADE.......................................................................... 16
2.3 A CRÍTICA.................................................................................................................... 19
3. A NEUTRALIDADE DE REDE NO BRASIL............................................................ 23
3.1. O ÂMBITO REGULATÓRIO: A NEUTRALIDADE DE REDE NO MARCO CIVIL
E NO DECRETO Nº 8.771/2016....................................................................................... 23
3.2 O ÂMBITO CONCORRENCIAL................................................................................... 35
4. A PRÁTICA DE ZERO RATING.................................................................................. 42
4.1 O QUE É? ....................................................................................................................... 42
4.2 A ECONOMIA DO ZERO RATING.............................................................................. 44
4.3 NO BRASIL: MPF X CLARO, TIM, OI E VIVO............................................................ 54
4.4 ANÁLISE CONCORRENCIAL...................................................................................... 59
4.5 ANÁLISE REGULATÓRIA........................................................................................... 69
5. CONCLUSÃO.................................................................................................................. 74
10
1. INTRODUÇÃO
É lugar-comum hoje a afirmação de que a internet e suas inovadoras formas de rede
foram as grandes forças-motrizes do progresso tecnológico das últimas décadas. Ademais, ao
que tudo indica, será ainda a mesma tecnologia a base para outros processos disruptivos em
curso, como o blockchain, o streaming, a economia do compartilhamento e outros tantos
frutos da "destruição criativa" de Schumpeter. Só no Brasil, a internet conta com 120 milhões
de usuários, cerca de 59% da população1. A internet não é só o correio de ontem, mas também
o rádio, a televisão, o jornal.
Apesar de a internet já ser parte do nosso dia-a-dia, questões cruciais sobre sua
regulação, com alto repercussão em seu desenvolvimento, ainda não foram pacificadas na
academia, nem positivadas em muitos ordenamentos jurídicos mundo afora. É o caso da
neutralidade de rede. Em que casos uma operadora deve poder gerenciar seu tráfego ou
discriminar pacotes de dados? A resposta é complexa e deve levar em conta diversos fatores
como o impacto na inovação, na liberdade de expressão, na eficiência econômica, na defesa
ao consumidor, entre outros - não é à toa que, no mínimo, especialistas de quatro áreas
diferentes (Direito, Informática, Economia e Comunicação) estão envolvidos no debate.
Nosso trabalho estabelecerá um panorama sobre o assunto acima exposto, mas intenta
se aprofundar em um dos itens que o compõem: a prática de zero-rating - ZR. Esta conduta,
que se manifesta de diferentes formas, configura-se com a oferta de acesso a determinado
conteúdo ou aplicação de forma gratuita ou sem consumir um pacote de dados contratado. Tal
prática, ao favorecer certas aplicações e conteúdos com a isenção, estaria rompendo com a
neutralidade da rede? Estaria o protagonismo do internauta sendo lesado? Ou estaria ele sendo
beneficiado, ao poupar seu pacote de dados diante de alguns acessos? Seria o ZR sempre uma
distorção do mercado, uma prática anticompetitiva? Ou seria o ZR apenas uma saudável
diferenciação de produtos? Estas são as perguntas que motivam este trabalho. Colocando de
maneira mais objetiva, pretendemos analisar se o ZR fere a neutralidade de rede positivada
pelo Marco Civil da Internet ou a nossa ordem concorrencial. Dado que as discussões sobre
neutralidade de rede são recentes e relativamente pouco exploradas pela doutrina brasileira,
demos maior ênfase introdutória para o assunto.
Esta monografia está dividida em três partes.
1EXAME. Brasil é o 4º país em número de usuários de internet. 2017. Disponível em:
<https://exame.abril.com.br/tecnologia/brasil-e-o-4o-pais-em-numero-de-usuarios-de-internet/>. Acesso em: 13
de dez. de 2017.
11
A primeira parte abordará a origem da discussão sobre neutralidade de rede, bem
como delineará seu cerne e exporá os principais argumentos pró e contra o referido princípio.
Na segunda parte, estudaremos quais são os contornos da neutralidade de rede
positivada no Brasil, através de uma análise do Marco Civil da Internet e do Decreto
8.771/2016. Além disso, abordaremos também o aspecto concorrencial da questão, qual seja,
a pertinência da aplicação da Lei nº 12.529/2011.
Na terceira parte, estudaremos em específico a prática de ZR. Neste capítulo será feita
a conceituação e descrição da prática, bem como será procedida sua análise econômica.
Ademais, será estudado o principal caso sobre ZR no Brasil, chegando-se finalmente às
análises concorrencial e regulatória de nosso objeto.
Para efetuar nossa pesquisa, o método utilizado será dedutivo, indutivo, histórico e
dialético, a partir de análises bibliográficas da doutrina jurídica e da literatura econômica, bem
como da legislação vigente e da jurisprudência pátria. Uma vez delimitado o tema, esclarecido
o método e destacados os objetivos desta monografia, passa-se ao desenvolvimento dos
tópicos centrais.
12
2. NEUTRALIDADE DE REDE: ORIGEM E CERNE DA DISCUSSÃO
Uma considerável parte da discussão sobre zero-rating é, em verdade, uma discussão
sobre a chamada "neutralidade de rede": qual é seu alcance, o que ela protege e quais são suas
consequências sociais e econômicas. O objetivo deste capítulo é introduzir o leitor a este
debate, que não é tão conhecido e é importante para entendermos o contexto em que o ZR se
insere.
A "neutralidade de rede" é uma expressão surgida para abordar o tratamento
discricionário de conteúdos e aplicações por parte dos provedores de conexão. A autoria do
termo remete ao pesquisador estadunidense Tim Wu em 2002;2 contudo, provavelmente
encontra-se a inspiração de Wu em um artigo de Lawrence Lessig e Mark Lemely publicado
no ano anterior.3 Desde então, o tópico vem ganhando crescente importância no que tange à
regulação dos serviços de Internet. No Brasil, a expressão é encontrada duas vezes no Marco
Civil da Internet (Lei nº 12.965 de 2014), que, em seu artigo 3º, positivou a preservação e a
garantia da neutralidade de rede como princípio da disciplina do uso da internet no Brasil.
O termo atualmente abrange um espectro grande de significados na literatura, além de
diversas gradações em sua aplicação. Não obstante, procuramos neste capítulo introduzir o
leitor ao debate, ainda que não seja possível cobrir todas as correntes de pensamento. Assim,
far-se-á uma análise retrospectiva do termo, seguindo-se aos principais argumentos dos
defensores e dos críticos, para que se possibilite uma análise panorâmica das facetas
envolvidas no debate.
Antes de iniciarmos, dada a não familiaridade da maioria com este debate, elaboramos
dois quadros de conceitos; o primeiro, sobre os principais atores envolvidos no conflito, com
as definições e comentários da obra de Ramos; 4 o segundo, sobre outros conceitos pertinentes
à discussão, com base no Marco Civil da Internet.
2WU, Tim. A Proposal for Network Neutrality. Charlottesville: University of Virginia, junho, 2002. Disponível
em: <http://www.timwu.org/OriginalNNProposal.pdf> Acesso em 24 de dez. de 2017. 3LEMLEY, Mark A. e LESSIG, Lawrence, The End of End-to-End: Preserving the Architecture of the Internet
in the Broadband Era. UCLA Law Review, Vol. 48, 2001. p. 925. Disponível em:
<https://ssrn.com/abstract=247737>. Acesso em 16 de out. de 2017. 4RAMOS, Pedro H. S. Arquitetura da Rede e Regulação: a neutralidade da rede no Brasil. Dissertação de
Mestrado. Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, 2015.
13
Gênero Atores
Provedores
de Conexão
Provedores de Acesso – são empresas cuja principal atividade é prover acesso à internet para
usuários finais, em modalidades como dial-up, banda larga fixa ou banda larga móvel – 2G,
3G ou 4G –, cujas tarifas de acesso representam a maior parte das receitas dessas empresas.
Provedores de acesso também oferecem serviços de acesso à internet para provedores de
aplicações, e alguns proporcionam ainda serviços específicos na camada de conteúdo (por
exemplo, seus próprios serviços de streaming de músicas e vídeos). O desenvolvimento de
uma infraestrutura física de redes própria é o maior custo das atividades de provedores de
acesso; quando essa estrutura é insuficiente para atingir determinado usuário ou provedor de
aplicação, essas empresas contratam banda upstream de outros provedores de conexão, por
meio de acordos de interconexão.
Provedores de trânsito - são empresas cujas atividades principais envolvem a prestação de
serviços de telecomunicações a outros provedores de acesso e, em diversos casos, para grandes
provedores de aplicações. Essas empresas possuem infraestrutura física e lógica para oferecer
a provedores de acesso interconexões entre suas redes, incluindo backbones – linhas de alta
capacidade de transmissão de dados, responsáveis pelas conexões de longa distância entre as
redes que integram a internet..
Provedores
de
conteúdos e
aplicações
São empresas que entregam conteúdo e aplicações de software próprias ou de terceiros para
usuários finais. Suas fontes de receita geralmente transitam entre cobrar diretamente de
usuários finais (planos de assinatura de acesso, fees por licença de software, venda de produtos
e/ou serviços) ou modelos indiretos de monetização, como publicidade online ou cessão de
base dados de usuários. Ramos divide-os em dois grupos:
Grandes provedores de aplicação: Consomem uma quantidade enorme de recursos de
infraestrutura, como hospedagem de dados e contratação de tráfego upstream para entregar seu
conteúdo para usuários finais, o que tem levado muitas dessas empresas a buscar alternativas
para reduzir esses custos por meio de integrações verticais com players da camada de
infraestrutura da rede, ou mesmo desenvolver sua própria estrutura de rede.
Pequenos provedores de aplicações: Em geral, esses são pequenos provedores de serviços de
tecnologia e/ou software em nível local ou startups cujas atividades, ainda que possam
concorrer diretamente com grandes players, trazem algum tipo de inovação disruptiva que
pode convertê-los em um novo gigante da internet.
Usuários Usuários: São contratantes de serviços de acesso à internet, especialmente tráfego
downstream, ofertados por provedores de acesso, e também são contratantes de provedores de
aplicações. Todavia, diferente do que acontece na mídia tradicional, não há aqui uma relação
necessária de mero receptor de serviços, pois a internet permite que usuários também possam
tornar-se provedores de conteúdo, desenvolvendo seus próprios aplicativos, participando em
redes sociais, criando sites, publicando em canais de vídeo, vendendo produtos em
marketplaces etc.
Fonte: Elaboração do autor a partir da obra de Ramos.
Conceito
Internet O sistema constituído do conjunto de protocolos lógicos, estruturado em escala mundial
para uso público e irrestrito, com a finalidade de possibilitar a comunicação de dados entre
terminais por meio de diferentes redes.
Terminal O computador ou qualquer dispositivo que se conecte à internet.
Endereço de
protocolo de
internet (endereço
IP)
O código atribuído a um terminal de uma rede para permitir sua identificação, definido
segundo parâmetros internacionais.
Administrador de
sistema autônomo
A pessoa física ou jurídica que administra blocos de endereço IP específicos e o respectivo
sistema autônomo de roteamento, devidamente cadastrada no ente nacional responsável
pelo registro e distribuição de endereços IP geograficamente referentes ao País.
Conexão à
internet
A habilitação de um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela internet,
mediante a atribuição ou autenticação de um endereço IP.
Registro de
conexão
O conjunto de informações referentes à data e hora de início e término de uma conexão à
internet, sua duração e o endereço IP utilizado pelo terminal para o envio e recebimento de
pacotes de dados.
Aplicações de O conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal
14
internet conectado à internet.
Registros de
acesso a
aplicações de
internet
O conjunto de informações referentes à data e hora de uso de uma determinada aplicação
de internet a partir de um determinado endereço IP.
Fonte: Elaboração do autor com base no MCI.5
2.1 O PRINCÍPIO END-TO-END
A expressão "neutralidade de rede", ainda que levante objeções, definitivamente
popularizou-se na academia, entrou na discussão política e foi incorporada pela técnica
jurídica. Desta forma, para que os operadores do direito possam criar posições e doutrinas
sobre o assunto, é fundamental entender mais claramente as origens de tal princípio
cibernético, que remonta ao artigo "The End of End-to-End: Preserving the Architecture of
the Internet in the Broadband Era"6 e à arquitetura de rede End-to-End.
A arquitetura de rede End-to-End foi primeiramente adotada por razões técnicas de
informática e foi utilizada na programação de rede por muitos anos. Todavia, foi somente em
19817 que tal design foi explicitamente articulado como um princípio. Neste sentido, podemos
considerar o design "e2e" (como é eventualmente abreviado) como um dos princípios
fundacionais da Internet. No entanto, diferente dos princípios jurídicos, que costumam ser
produto de deliberações filosóficas acerca de valores morais abstratos, o End-to-End tem sua
origem em considerações práticas acerca de como otimizar a rede diante de possíveis falhas.
O princípio dialoga com a divisão de funções dentro de uma rede e aconselha que a
inteligência da mesma deve ser colocada nos seus "fins" (onde os usuários colocam
informações e aplicações na rede), enquanto os protocolos de comunicação da transferência
de dados entre as máquinas ("meios") devem ser o mais simples e universais quanto possível
for.
Ainda que o dito design de rede tenha emergido originalmente por questões práticas,
certos autores também apontam para um aspecto social do princípio End-to-End, baseados em
5BRASIL. Lei 12.965, de 23 de abril de 2014. Planalto. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm> Acesso em: 13 de out. de 2017. 6LEMLEY, Mark A. e LESSIG, Lawrence, The End of End-to-End: Preserving the Architecture of the Internet
in the Broadband Era. UCLA Law Review, Vol. 48, 2001. p. 925. Disponível em:
<https://ssrn.com/abstract=247737>. Acesso em 16 de out. de 2017. 7Ver: SALTZER, J.h.; REED, D.p.; CLARK, D.d.. End-to-end arguments in system design. Acm Transactions
On Computer Systems 2, v. 2, n. 4, 1984. p. 277-288. Disponível em:
<http://web.mit.edu/Saltzer/www/publications/endtoend/endtoend.pdf>. Acesso em: 24 de out. de 2017.
15
suas consequências positivas promovendo a inovação e a competitividade. Destacamos aqui
Lemley e Lessig:8
Ao invés de confiar na criatividade de um pequeno grupo de inovadores que
trabalham para as companhias que controlam a rede, o design e2e possibilita
qualquer um com uma conexão à Internet a designar e implementar um jeito melhor
de usar a Internet. Ao modelar a rede para ser neutra entre usos, a Internet criou um
ambiente competitivo onde os inovadores sabem que suas invenções vão ser usadas
se úteis. Ao manter o custo de inovação baixo, ela encorajou uma extraordinária
quantidade de inovações em vários contextos diferentes. Ao manter a rede simples e
a sua interação universal, a Internet facilitou o design de aplicações que poderiam
não ter sido originalmente visualizadas. 9 (Tradução nossa, grifo nosso)
Consoante reforça nosso grifo, a posterior ideia de neutralidade de rede de Wu parece
estar ligada às preocupações de Lessig e outros autores à época. Os princípios convergem
como reações a uma alegada ameaça ao modelo original da Internet, no qual o poder de
decisão, a inteligência da rede, efetiva-se nas pontas da conexão, que vêm a ser milhares de
internautas, sendo os provedores de rede apenas responsáveis pelo transporte de dados
requisitados. Conforme os próprios autores do artigo seminal já então reconheciam, algumas
alterações do princípio pareciam inevitáveis devido a questões de segurança da rede, com a
introdução de firewalls e outras medidas que adicionavam mais inteligência ao "meio" da
rede. Outras alterações, no entanto, traziam o medo de que o ambiente catalisador de
inovações, que sempre foi a Internet, poderia estar em risco - que é a mesma preocupação que
estimulou Wu a cunhar a expressão neutralidade de rede para representar o princípio que
guiaria a Internet a manter seu potencial inovador.10
8LEMLEY, Mark A. e LESSIG, Lawrence, The End of End-to-End: Preserving the Architecture of the Internet
in the Broadband Era. UCLA Law Review, Vol. 48, 2001. p. 925. Disponível em:
<https://ssrn.com/abstract=247737>. Acesso em 16 de out. de 2017. 9"Rather than relying upon the creativity of a small group of innovators who work for the companies that control
the network, the e2e design enables anyone with an Internet connection to design and implement a better way to
use the Internet. By designing the network to be neutral among uses, the Internet has created a competitive
environment where innovators know that their inventions will be used if useful. By keeping the cost of
innovation low, it has encouraged an extraordinary amount of innovation in many different contexts. By keeping
the network simple, and its interaction general, the Internet has facilitated the design of applications that could
not have originally been envisioned". 10Não é objetivo desde trabalho perquirir se o princípio End-to-End, dentro de sua "resignificação social", seria
um sinônimo de neutralidade de rede. Registramos aqui apenas o forte indício de inspiração.
16
2.2 A POSIÇÃO PRÓ-NEUTRALIDADE
Inicialmente, valemos-nos do próprio autor da expressão para explicitar certos
pressupostos da ideia. Conforme coloca Wu,11 a neutralidade da rede deve ser entendida
como a expressão concreta de um sistema de crenças sobre inovações, o qual tem diversos
nomes, sendo chamado por ele de modelo evolucionário. Segundo este modelo, há uma
competição entre as inovações para que a mais apta sobreviva. Aplicado à internet, esta é
vista como uma plataforma de competição entre os desenvolvedores de conteúdo e aplicações.
Os defensores de tal modelo não confiam que um potencial titular da rede vá saber de
antemão apontar o caminho ótimo de inovação. Isto porque o melhor caminho é difícil de
prever e qualquer que seja o encarregado de tal função irá sofrer de vieses cognitivos (como a
predisposição a continuar fazendo as coisas do modo atual de negócios), que faz com que seja
improvável que ele faça as decisões certas, mesmo que tenha ótimas intenções - pondera ainda
Wu.12
Neste sentido, a neutralidade de rede garantiria que a disputa de atenção dos
consumidores na internet permanecesse isonômica, apenas baseada nos julgamentos dos
consumidores internautas. Estes, diante de conexões sem bloqueios ou discriminação de
custos ou de velocidade por motivos de conteúdo, origem, destino, aplicação ou equipamentos
utilizados, iriam premiar os melhores e mais aptos conteúdos e plataformas com sua conexão.
Então, em uma abordagem básica, podemos dizer que a neutralidade de rede está
essencialmente ligada à ideia de não discriminação injusta de conteúdos e aplicações por parte
dos provedores de conexão.
Wu considera que a neutralidade de rede é um jeito útil de falar sobre discriminação;
ao mesmo tempo, no entanto, ele pontua que nem ele, nem ninguém acredita em um sistema
que afaste completamente a discriminação.13 O autor oferece metáforas que podem ajudar a
elucidar a posição dele. Na área trabalhista, as pessoas querem ter o direito de demitir um
funcionário ruim, de discriminar com base na habilidade. Em eleições, aceitamos que o
governo não deixe que crianças de doze anos votem, que ele discrimine com base na idade.
11
WU, Tim, Network Neutrality, Broadband Discrimination. Journal of Telecommunications and High
Technology Law, Vol. 2, 2003. p. 145. Disponível em: <https://ssrn.com/abstract=388863>. Acesso em: 12 de
out. de 2017. 12Ibidem, p.146. Acesso em: 12 de out. de 2017. 13
WU, Tim e YOO, Christopher "Keeping the Internet Neutral? Tim Wu and Christopher Yoo Debate" Federal
Communications Law Journal : Vol. 59: Artigo 6, 2007. p. 577. Disponível em:
<http://www.repository.law.indiana.edu/fclj/vol59/iss3/6>. Acesso em: 1 de out. de 2017.
17
Mas ainda que um banimento absoluto de discriminações seja ridículo, argumenta o autor,
isto não nos faz questionar a pertinência de leis contra a discriminação. Isto porque a
discriminação seria como a gordura: há boas e ruins. Discriminações de conteúdo para evitar
congestionamentos de rede ou para evitar ataques de hackers são exemplos de situações para
as quais a neutralidade de rede não se aplicaria.
Wu usa uma metáfora com a rede elétrica para ilustrar o problema a que a neutralidade
de rede é direcionada: a hipótese de que uma companhia elétrica fizesse um acordo com a
Samsung para que os refrigeradores da General Eletric abastecidos por tal rede não
funcionassem mais tão bem.14 Na seara da Internet, imaginemos outro exemplo. A
neutralidade da rede determina que um usuário que escolhe usar o Google como site de
pesquisa deve ter as mesmas condições de acesso de um usuário do mesmo plano de banda
larga que acessa o Bing, pois, do contrário, caracterizar-se-ia um direcionamento de conteúdo
por parte do provedor de rede, enviesando esta.
O possível interesse de um direcionamento como este é visível sobretudo em casos
nos quais o grupo empresarial da provedora de conexão possui alguma empresa prestando um
serviço semelhante ou concorrente: a quebra da neutralidade seria uma medida para prejudicar
a concorrência. Por exemplo, em 2004, usuários da Brasil Telecom relataram não terem
conseguido usar o Skype.15 O suposto bloqueio foi negado pela operadora; a equipe técnica do
Skype, no entanto, desacreditou tal narração. Independentemente da versão que adotarmos
como verdadeira, não é irrazoável supor que, a menos a curto prazo, poderia haver um
interesse da Brasil Telecom em prejudicar uma aplicação que dispensasse o uso do telefone.
Assim, a presença de regulação garantindo a neutralidade de rede como regra seria
fundamental.
Alguns defensores da neutralidade de rede estendem tal princípio não só à
concorrência entre aplicações diretamente concorrentes; a neutralidade de rede também
impediria o provedor de banda larga de oferecer velocidades de conexão diferentes para
pesados pacotes de vídeos e pequenos pacotes de dados de um e-mail escrito. Esta foi a
situação no caso norte-americano Netflix versus Comcast (2014), quando a empresa de
streaming alegou que seus usuários estavam recebendo conexão de inferior qualidade da
14WU, Tim and YOO, Christopher "Keeping the Internet Neutral?: Tim Wu and Christopher Yoo Debate"
Federal Communications Law Journal : Vol. 59: Artigo 6, 2007. p. 582. Disponível em:
<http://www.repository.law.indiana.edu/fclj/vol59/iss3/6>. Acesso em: 1 de out. de 2017. 15FOLHA DE SÃO PAULO, Brasil Telecom bloqueia soft de telefonia via web, dizem usuários. 13 nov. 2004.
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u17342.shtml>. Acesso em: 12 de nov.
de 2017.
18
provedora de conexão, enquanto esta afirmou se tratar de congestão sistêmica. Ao fim, um
polêmico acordo de conexão direta resolveu a lentidão, estabelecendo-se uma fast lane ("raia
rápida") para a Netflix em troca de contraprestações financeiras. 16 De qualquer forma, o caso
endossou o movimento pela neutralidade de rede.
O caso do Skype, se de fato ocorreu, tratou-se de uma discriminação por bloqueio. Já a
Comcast teria discriminado a Netflix através da diminuição da velocidade de conexão, o que
seria uma discriminação negativa de velocidade. O zero rating, gênero de prática comercial
que é objeto do nosso trabalho, enquadra-se na discriminação por preço positiva. Ramos
sintetiza assim as formas de discriminação possíveis:
Figura 1: Formas de discriminação de dados
Fonte: Ramos, Pedro H. S. (2015). Arquitetura da Rede e Regulação: a neutralidade da rede no Brasil.
Dissertação de Mestrado. Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, p. 30.
Para auxiliar a compreensão do âmago deste debate, e considerando que as diretivas de
uma neutralidade de rede podem variar conforme o autor, valemos-nos novamente do trabalho
de Ramos.17 Para o autor, os principais elementos constitutivos da neutralidade de rede,
abordados na maior parte dos trabalhos sobre o assunto, são os seguintes:
- O princípio da neutralidade da rede impõe a provedores de acesso a obrigação de
não bloquear o acesso de usuários a determinados sites e aplicações, sendo também
vedado aos provedores de acesso arbitrariamente reduzir a velocidade ou dificultar o
acesso entre aplicações idênticas ou similares;
- A neutralidade da rede impede a cobrança diferenciada para acesso a conteúdos e
aplicações específicas, sendo livre a cobrança de tarifas diferenciadas conforme a
velocidade de acesso ou volume de banda utilizada; e
16CNN, Netflix and Comcast strike deal to allow faster speeds. 23 fev. 2014. Disponível em:
<http://money.cnn.com/2014/02/23/technology/netflix-comcast-streaming-deal/index.html>. Acesso em: 12 de
nov. de 2017. 17RAMOS, Pedro H. S.. Arquitetura da Rede e Regulação: a neutralidade da rede no Brasil. Dissertação de
Mestrado. Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. 2015. p. 25.
19
- Os provedores de acesso devem manter práticas transparentes e razoáveis a
respeito de seus padrões técnicos de gerenciamento de tráfego.
Sintetizando, os defensores da neutralidade de rede acreditam haver suficientes
incentivos econômicos para os provedores de conexão discriminarem injustamente - isto é,
sem motivos técnicos razoáveis - contra conteúdos ou aplicações, por motivos de integração
vertical, parcerias comerciais ou técnicas anticoncorrenciais. Tais discriminações, sejam
prejudicando provedores de conteúdo e aplicação menores, sejam beneficiando players
maiores, teriam efeitos devastadores na inovação e no bem-estar do consumidor, podendo
afetar até a liberdade de expressão na internet em hipóteses extremas. Por isso, haveria a
necessidade de uma regulação estabelecendo a neutralidade de rede e vedando certas
condutas.
2.3 A CRÍTICA
A neutralidade de rede, embora até positivada esteja em nosso país, está longe de ser
uma unanimidade entre especialistas da área do Direito, da Informática e da Economia. Nos
Estados Unidos da América, enquanto a defesa da neutralidade de rede é encabeçada por
Lawrence Lessig e Tim Wu, temos Christopher Yoo como um dos críticos mais ferozes.
Iremos sintetizar aqui os pertinentes levantamentos opostos, sobretudo baseadas na obra do
referido crítico.
Yoo considera que o próprio princípio End-to-End, muito citado pelos defensores da
neutralidade de rede, em verdade não corrobora com a ideia.18 Conforme exposto
anteriormente, o dito design de rede foi antes fundado sob constatações técnicas,
posteriormente adquirindo significado de ideal social. Com base na primeira ideia, o crítico
entende que uma regulação impondo a neutralidade de rede como regra não seria aconselhada.
A razão para a inteligência estar nas pontas seria advinda de uma análise custo-benefício.
Adicionar inteligência e funções ao meio da rede, ao invés de mantê-la simples e universal,
poderia aumentar suas funcionalidades; contudo, o custo seria uma performance de rede
reduzida. Todas as aplicações, então, teriam de arcar com tal custo, ainda que elas não
recebessem nenhum benefício decorrente daquela função específica. A solução para esse
18YOO, Christopher. Beyond Network Neutrality. Harvard Journal of Law & Technology, v. 19, n. 1, 2005. p.
23. Disponível em: <http://jolt.law.harvard.edu/articles/pdf/v19/19HarvJLTech001.pdf>. Acesso em: 2 de out.
de 2017.
20
tradeoff teria sido manter funções específicas para as aplicações nas pontas da rede. Assim,
Yoo entende que a correta aplicação do princípio End-to-End implica uma complexa análise
custo benefício, que seria muito mais condizente com a análise caso a caso das discriminações
de tráfego de rede do que com a imposição do padrão de neutralidade de rede.
Yoo19 defende que a neutralidade de rede, no estado atual da Internet, não é nem
viável, nem desejável, sequer pelos defensores do dito princípio. O autor considera que a
Internet atual, que é um verdadeiro fenômeno de massa, é muito diferente daquela uma vez
usada basicamente para comunicação acadêmica com arquivos de texto. Uma mudança
fundamental apontada pelo crítico é o contínuo crescimento dos serviços de streaming de
vídeo e VoIP (Voice over IP20), que são extremamente sensíveis a qualquer atraso no
recebimento de dados. Neste sentido, o desvio da neutralidade de rede poderia dar margem a
serviços mais adaptados ao consumidor, como, por exemplo, o surgimento de provedores last
mile21 especializados em conexão para conteúdos e aplicações sensíveis a pequenos atrasos
(vídeos e VoIP), ou especializados em operações comerciais que envolvam maior segurança
de rede.
Ademais, a rede de hoje já não seria neutra, conforme alguns críticos, que
exemplificam que mesmo o TCP/IP há vários anos tem padrões de direcionamento e
favorecimento de pacotes de dados. Desta forma, o termo neutralidade de rede seria algo mais
esteticamente atraente (ao remeter à liberdade de escolhas) do que efetivamente desejável, se
levado ao extremo. Além disso, Yoo22 e Faulhaber23 desdenham da comprovação empírica de
consequências negativas da violação da neutralidade de rede, considerando-as mais
especulações do que problemas realmente enfrentados na atualidade.
Portanto, Yoo opina que, ao invés de estabelecer o ônus da prova às partes que
quiserem desviar da arquitetura de rede desenhada pelos defensores da neutralidade, o
legislador não deveria se comprometer com quaisquer dos lados do debate, permitindo que
ambas as abordagens sigam adiante até que os efeitos econômicos fiquem mais claros. O
19
YOO, Christopher. Beyond Network Neutrality. Harvard Journal of Law & Technology, v. 19, n. 1, 2005. p.
23. Disponível em: <http://jolt.law.harvard.edu/articles/pdf/v19/19HarvJLTech001.pdf>. Acesso em: 2 de out.
de 2017. 20Tecnologia que permite o envio de mensagens de voz por meio de redes baseadas no protocolo TCP/IP.
Exemplos populares são o Skype e o Whatsapp. 21"Última milha" refere-se ao último ponto de ligação de uma estrutura de telecomunicação, aquele que faz a
ligação ao usuário final. 22Ver item 19. 23
FAULHABER, Gerald. Economics of Net Neutrality: A Review . Communications & Convergence Review, v.
3, n. 1, 2011. p. 5-6. Disponível em: <http://assets.wharton.upenn.edu/~faulhabe/Econ_Net_Neut_Review.pdf> .
Acesso em: 24 de dez. de 2017.
21
crítico considera que presunções a favor de uma arquitetura de rede impedem de antemão
qualquer benefício de outras abordagens e que determinar se uma particular prática vai ajudar
ou lesar a competição entre provedores de conteúdo é frequentemente difícil, se não
impossível.
Além disso, a teoria econômica é usada por críticos para pontuar que os proponentes
da neutralidade de rede estão mirando no objeto errado. Yoo argumenta que um dos
fundamentos básicos da teoria econômica da integração vertical é que qualquer cadeia de
produção será tão eficiente quanto seu menos competitivo elo.24 Como resultado, políticas
concorrenciais deveriam focar em identificar os elos de produção que são mais concentrados e
mais protegidos por barreiras de entrada e então arquitetar regulações para aumentar sua
competitividade. Na indústria de banda larga, o level de produção que é mais concentrado e
protegido por barreiras seria a last mile. Assim, políticas sobre a regulação da Internet
deveriam ser guiadas pelo impacto na concorrência no referido nível de produção, e a
neutralidade de rede, ao contrário disto, direciona sua atenção para preservar e promover
competição entre os provedores de conteúdo e aplicações, o qual já é o level de produção mais
competitivo e que teria a maior probabilidade de se manter desta forma.
Yoo argumenta ainda que a regulação com alvo no elo dos conteúdos e aplicações,
além de ser um erro de foco, pode desestimular a entrada de novos players no mercado de
provedores de conexão, bem como reduzir os investimentos em infraestrutura de rede. 25 Isto
porque acarreta em uma restrição nas possibilidades de negócio, o que diminuiria o valor de
mercado e a viabilidade econômica para diversas empresas atuarem.
Economistas também apontam para o fato de serem os custos com a rede física da
internet praticamente bancados pelos usuários finais, posto que os provedores de conteúdo e
aplicações não arcam com nenhum custo pelo aumento da conexão por eles estimulados. Por
este motivo, uma visão de neutralidade de rede muito estrita poderia impedir que os custos
fossem repassados também para os provedores de conteúdo, o que levaria os usuários a
pagarem mais. Sob essa ótica, a neutralidade de rede, em termos de custos econômicos,
poderia não estar sempre alinhada ao interesse do usuário. Posto de outra forma, haveria um
tradeoff: de um lado, menor preço de conexão aos usuários; do outro, diminuição na
diversidade de conteúdos.
24YOO, Christopher. Beyond Network Neutrality. Harvard Journal of Law & Technology, v. 19, n. 1, 2005. p.
15. Disponível em: <http://jolt.law.harvard.edu/articles/pdf/v19/19HarvJLTech001.pdf>. Acesso em: 2 de out.
de 2017. 25Ibidem, p. 16.
22
Conforme exposto, as críticas aparecem por diferentes abordagens: seja apontando,
sob a ótica da informática, para uma inconsistência da neutralidade de rede enquanto
continuação dos princípios fundacionais da Internet; seja levantando, sob a ótica da economia,
possíveis consequências nefastas, como a redução do investimento em infraestrutura física de
rede e a manutenção de altos custos para os usuários finais. Vale frisar que as referidas
críticas deram margem a posições intermediárias, concepções de neutralidade de rede mais
flexíveis. Foge do escopo deste trabalho esgotá-las. Assim, já introduzida a discussão sobre
neutralidade de rede, paira o questionamento: qual visão adotou o nosso legislador? Esta
questão, que ainda está incipiente, será objeto de análise do próximo capítulo.
23
3. A NEUTRALIDADE DE REDE NO BRASIL
Conforme afirmamos anteriormente, a discussão sobre ZR está hoje muito associada
ao debate sobre neutralidade de rede. Já introduzido tal debate numa perspectiva mais ampla,
pretendemos neste capítulo analisar qual foi a neutralidade de rede positivada no Brasil.
Afinal, como já registrado anteriormente, o debate é amplo e abrange posições intermediárias
àquelas de defesa da neutralidade estrita e de rejeição total do princípio. Por conseguinte,
diante da escolha do país de adotar a neutralidade de rede como princípio, faz-se necessário
perquirir qual neutralidade foi escolhida, se foi uma versão mais rígida ou uma mais flexível.
No Brasil, o princípio foi positivado pelo MCI, importante diploma que regula várias
facetas da internet. Começamos este capítulo com um curto histórico do surgimento do MCI
como um todo. Analisaremos brevemente então os princípios do diploma, tecendo ligações
com o princípio em pauta neste capítulo. Em um próximo momento, o art. 9º e sua
regulamentação serão analisados, completando a análise da estrutura regulatória da
neutralidade de rede no Brasil. Por fim, analisaremos a possibilidade de enquadramento da
questão enquanto objeto também do direito concorrencial.
3.1 O ÂMBITO REGULATÓRIO: A NEUTRALIDADE DE REDE NO MARCO CIVIL E
NO DECRETO Nº 8.771/2016
3.1.1 O Marco Civil da Internet: um breve histórico
No Brasil, após um longo processo deliberativo, em 23 de abril de 2014, o Marco Civil
da Internet foi sancionado pela então presidente Dilma Rousseff, entrando em vigência dois
meses após a sua publicação, marcando a primeira clara regulação sobre internet no país e
estabelecendo o princípio da neutralidade de rede como prática padrão. Em 11 de maio de
2016, foi publicado em edição extra do Diário Oficial da União o Decreto nº 8.771, editado
também pela então presidente Dilma Rousseff em um de seus últimos atos legislativos antes
da suspensão de suas funções. O decreto regulamentou o Marco Civil, sendo um dos seus
objetos a especificação das hipóteses admitidas de discriminação de pacotes de dados e de
degradação de tráfego na internet, ou seja, a melhor delineação das exceções à neutralidade de
rede. Tais exceções serão posteriormente tratadas no subitem 3.1.3; neste subitem, faz-se
breve histórico das discussões sobre o MCI em âmbito nacional.
24
As primeiras discussões legislativas sobre internet apareceram na década de 1990, com
a criação do Comitê Gestor da Internet (CGI.br) em 31 de maio de 1995 através da Portaria
Ministerial nº 147 (posteriormente sua existência foi reforçada pelo Decreto nº 4.829 de
200326). Logo após a dita criação, foram surgindo propostas legislativas para regular a
internet, entre elas tendo destaque, segundo Papp, questões como comércio eletrônico,
assinatura virtual e crimes digitais, como fraude e pornografia.27
Já em 1999 surgiu na Câmara dos Deputados o PL 84/1999, que, conforme Papp,
agrupava as proposições legislativas de crimes digitais defendidas até então.28 Este projeto de
lei viria a ser a famosa "Lei Azeredo", por conta das modificações que o então Senador
Eduardo Azeredo (PSDB-MG) havia introduzido no texto original em seus trabalhos na
Comissão de Educação do Senado Federal, no ano de 2006.
A "Lei Azeredo" - que chegou a ser aprovada no Senado e voltou à Câmara por conta
das modificações havidas - causou imensa polêmica e provocou críticas de diversos setores da
sociedade. Muitos apontaram que a lei, além do teor questionável e da técnica precária, iria
contra a experiência internacional, que recomendava um marco regulatório cível antes de um
criminal.29 A lei criaria vários tipos penais digitais e era dotada de diversas imprecisões
geradoras de insegurança, sendo o projeto até acusado de "AI-5 Digital" por alguns ativistas.
A indignação nos parece compreensível. A título de exemplo de imperícia legislativa,
em seu artigo 163, o referido diploma tipificava como crime (pena de 1 a 6 meses ou multa)
"destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia ou dado eletrônico alheio". Já o artigo 298
criminalizava "falsificar ou alterar, no todo ou em parte, dado informático ou documento
particular verdadeiro". Ora, é extremamente vaga a definição de "dado", podendo tais artigos
abranger condutas triviais, como a de um sujeito que delete ou modifique um arquivo
qualquer do pendrive de outrem.
Por sua vez, o artigo 22 do projeto, em seu inciso III, determinava a obrigação dos
provedores "de informar, de maneira sigilosa, à autoridade policial ou judicial, informação em
seu poder ou que tenha conhecimento e que contenha indícios da prática de crime sujeito a
26
BRASIL. Decreto n. 4.829, de 3 de setembro de 2003. Planalto. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4829.htm>. Acesso em: 20 de set. de 2017. 27
PAPP, A. C. Em nome da internet: os bastidores da construção coletiva do Marco Civil. São Paulo, 2014. p.
21. Disponível em: < https://issuu.com/annacarolinapapp/docs/em_nome_da_internet>. Acesso em: 20 de set.
de 2017. 28PAPP, loc. cit. 29Destacamos a voz de Ronaldo Lemos, fundador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-Rio. Ver:
LEMOS, Ronaldo. Internet brasileira precisa de marco regulatório civil. UOL Notícias. Disponível em:
<http://tecnologia.uol. com.br/ultnot/2007/05/22/ult4213u98.jhtm>. Acesso em: 20 de set. de 2017.
25
acionamento penal, cuja prática haja ocorrido no âmbito da rede de computadores sob sua
responsabilidade". O mesmo artigo dispunha que os provedores eram obrigados a guardar por
três anos os dados de endereçamento eletrônico da origem, destino, hora, data e a referência
GMT da conexão efetuada por meio de rede de computadores.
Sem o objetivo de nos aprofundar na análise do referido projeto de lei, cabe notar sua
importância histórica, na medida em que a indignação com a defeituosa e impertinente
proposta legislativa mobilizou setores da sociedade civil e evidenciou a necessidade de um
marco civil para a internet, que, de tal forma, acabou nascendo como uma reação à "Lei
Azeredo".30
No ano de 2009, a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça reuniu
esforços com o Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas para a
elaboração de uma plataforma que efetuasse de maneira colaborativa uma consulta pública a
respeito do MCI. Para tal, foi usado o Cultura Digital – site que fora há pouco criado, mantido
pelo Ministério da Cultura em conjunto com a Rede Nacional de Pesquisa (RPN). Assim, em
29 de outubro daquele ano, o site faz a convocação oficial à sociedade para que se
inaugurassem os debates. 31
Após 160 dias e mais de 800 contribuições de internautas, no dia 8 de abril de 2010,
um anteprojeto de lei foi disponibilizado no mesmo portal para que se iniciasse a segunda fase
de discussões. A segunda fase viria a ter mais comentários, que foram divididos conforme
artigo ao qual se referiam, sendo ela encerrada no dia 30 de maio de 2010, com 1.168
contribuições. O tema da responsabilidade civil por conteúdos publicados, nesta fase, foi o
que chamou maior atenção das participações, conforme relata Papp.32
Então, após análise dos comentários e com a contribuição de profissionais como
Guilherme de Almeida, Paulo Rená, Ronaldo Lemos, Carlos Affonso, Pedro Mizukami, Joana
Varón, Pedro Augusto, entre outros, foi enfim elaborado um projeto a ser enviado à Casa
Civil.33 Tal texto, no entanto, foi encaminhado ao Congresso para análise (PL 2.126/2011)
somente em 24 de agosto de 2011, sendo o Deputado Alessandro Molon (PT-RJ),
posteriormente, designado relator. Finalmente, após meses de tramitação, em 23 de abril de
30Em novembro de 2012, a Lei Azeredo, aprovada, foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff (Lei nº
12.735/2012). No entanto, já bastante modificada - restaram apenas 4 dos 23 artigos originais. Ver: BRASIL, Lei
Nº 12.735, de 30 de novembro de 2012. Planalto. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12735.htm>. Acesso em: 03 de out. de 2017. 31Ver: <http://migre.me/mN58e>. Acesso em: 02 de out. de 2017. 32PAPP, A. C. Em nome da internet: os bastidores da construção coletiva do Marco Civil. São Paulo, 2014. p. 58.
Disponível em: < https://issuu.com/annacarolinapapp/docs/em_nome_da_internet>. Acesso em: 20 de set. de
2017. 33Ibidem, p. 62.
26
2014, o MCI foi sancionado pela então presidente Dilma Rousseff, entrando em vigência dois
meses após a sua publicação.
Como podemos ver, o MCI é um diploma recente, e mais ainda é o DMCI. A
neutralidade de rede brasileira, portanto, ainda é uma figura em construção, existindo pouca
doutrina atualizada sobre o assunto e menos ainda consensos sólidos. Com a escassez de
fontes, demos significativo enfoque às manifestações existentes da agência competente e
quais pistas elas nos dão sobre futuras interpretações. Trata-se da ANATEL, que, forte no
artigo 19, XVIII34 da Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº. 9.472), bem como no artigo 17
do DMCI,35 é o órgão competente para tratar da questão em seu âmbito regulatório.
O MCI e o DMCI intencionalmente deixaram ainda diversas questões bem abertas a
interpretações, e será a agência a encarregada pelo estabelecimento de melhores parâmetros
para as análises de neutralidade. Justamente por estarem pendentes, coube-nos apenas
demonstrar possíveis posições e vias interpretativas sobre muitas questões.
3.1.2 Princípios, fundamentos e objetivos
O MCI elenca a preservação da neutralidade de rede como princípio logo em seu
artigo 3º, IV. No entanto, já no inciso seguinte, o legislador a baliza ao equiparar tal princípio
à preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede por meio das medidas
técnicas compatíveis. Vejamos:
Art. 3o A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios:
I - garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de
pensamento, nos termos da Constituição Federal;
II - proteção da privacidade;
III - proteção dos dados pessoais, na forma da lei;
IV - preservação e garantia da neutralidade de rede;
V - preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por
meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo
estímulo ao uso de boas práticas;
VI - responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos
da lei;
VII - preservação da natureza participativa da rede;
34Art. 19. À Agência compete adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o
desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade, legalidade,
impessoalidade e publicidade, e especialmente:
(...) XVII - compor administrativamente conflitos de interesses entre prestadoras de serviço de
telecomunicações;
XVIII - reprimir infrações dos direitos dos usuários;
XIX - exercer, relativamente às telecomunicações, as competências legais em matéria de controle, prevenção e
repressão das infrações da ordem econômica, ressalvadas as pertencentes ao Conselho Administrativo de Defesa
Econômica - CADE; 35Art. 17. A Anatel atuará na regulação, na fiscalização e na apuração de infrações, nos termos da Lei no 9.472,
de 16 de julho de 1997.
27
VIII - liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde
que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei.
Parágrafo único. Os princípios expressos nesta Lei não excluem outros
previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria ou nos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. (Grifos nossos)
Desta maneira, nosso legislador demonstrou sua preocupação de que uma visão de
neutralidade muito engessada pudesse impedir o país de adotar técnicas benéficas de
segurança e estabilidade de rede, o que, conforme já registramos, é praticamente um consenso
no debate. No entanto, chamamos atenção para a preservação da funcionalidade de rede, que,
conforme entendimento da ANATEL, inclui não só a funcionalidade da rede como um todo,
mas também de suas aplicações e serviços individualmente considerados:
(...) é fato, contudo, que a lei reconheceu, como não poderia deixar de fazê-lo, que
variados serviços e aplicações exigem tratamentos distintos para que possam
funcionar adequadamente. Ambos os princípios de uso da internet estão claramente
dispostos no art. 3º da referida lei: (...)36
Entendemos que tal distinção é importante. Afinal, já que a preservação de ambos são
princípios, a funcionalidade de rede será considerada conjuntamente com a neutralidade de
rede - eventualmente ocorrendo conflitos. Se a primeira abrange também a funcionalidade de
aplicações e serviços individualmente considerados, inferimos que o desempenho satisfatório
da função para a qual uma aplicação ou serviço foi desenvolvido é um elemento que pode vir
a balizar a neutralidade de rede - e vice-versa, a ser ponderado pela ANATEL.
Continuando nossa análise, em seu artigo 2º, a referida lei ainda se fundamenta no
respeito à liberdade de expressão, bem como no respeito a outros valores e objetivos, dos
quais destacamos para nossa análise o exercício da cidadania em meios digitais, a abertura, a
livre iniciativa, a livre concorrência, a defesa do consumidor e a finalidade social da rede.
É digno notar, ainda, o potencial conflitante do princípio da neutralidade de rede com
o fundamento da lei no respeito à livre iniciativa (art. 2º, V) e o princípio da liberdade dos
modelos de negócios promovidos na internet (art. 3º, VIII) - ainda que a lei estabeleça
claramente, para a prevalência do segundo, o requisito de não conflitar com outros princípios,
incluso o da neutralidade. Uma interpretação mais originalista sugeriria que o segundo
princípio foi inserido na lei principalmente para deixar claro que o MCI não veda a
possibilidade de as provedoras de rede oferecerem planos com diferentes velocidades ao
36
BRASIL. ANATEL. Manifestação sobre a regulamentação da neutralidade de rede prevista no MCI. Maio,
2016. Disponível em: <goo.gl/DFvtPP>. Acesso em: 08 de dez. de 2017.
28
consumidor.37 De qualquer forma, o fato é que os dinâmicos mercados da internet, em seus
múltiplos modelos negociais, diversas vezes suscitam análises quanto à obediência à
neutralidade de rede - como é o caso da execução de zero-rating. Neste sentido, os referidos
dispositivos oferecem uma via argumentativa de defesa.
Adiante, estabelece o MCI, em seu artigo 4º, o objetivo do diploma, qual seja, a
promoção (I) do direito de acesso à internet a todos, (II) do acesso à informação, ao
conhecimento e à participação na vida cultural e na condução dos assuntos públicos, (III) da
inovação e do fomento à ampla difusão de novas tecnologias e modelos de uso e acesso; e
(IV) da adesão a padrões tecnológicos abertos que permitam a comunicação, a acessibilidade
e a interoperabilidade entre aplicações e bases de dados. Tais objetivos comunicam-se com
vários tópicos abordados até aqui, inclusive gerando tradeoffs.
A promoção do direito de acesso à internet a todos está diretamente relacionada a um
baixo custo da contratação da internet. Todavia, como vimos no item 2.2, uma das principais
críticas à neutralidade de rede é o fato de haver uma escolha econômica entre promoção da
diversidade de conteúdos e baixas tarifas de uso da internet. Seguindo tal linha de raciocínio,
este é mais um inciso que deverá ser ponderado em conjunto com o princípio da neutralidade
de rede.
A inclusão da promoção do acesso à informação, ao conhecimento e à participação na
vida cultural e na condução dos assuntos públicos sugere consideração especial a iniciativas
de negócio que facilitem a conexão da população com sites de informação pública
governamental, bem como a iniciativas que facilitem o exercício do direito à informação e
fomentem a educação de maneira geral.
A promoção da inovação e do fomento à ampla difusão de novas tecnologias e modelos
de uso e acesso guarda relação com a neutralidade de rede, por ser a promoção da inovação,
sobretudo a nível de conteúdos e serviços, o grande foco da neutralidade de rede. Contudo, tal
objetivo estende-se além do nível de conteúdos e pode gerar discussões. É possível entender
que a promoção da inovação, ao abranger também o mercado a nível de provisão de conexão,
e considerando a menção à difusão de novos modelos de uso e acesso, seria uma brecha para
novas modalidades de negócio, tais como serviços de internet especializados em certos tipos
de pacotes de dados. Por exemplo, uma conexão especial para certos conteúdos audiovisuais.
37
FALCÃO. Márcio e BORBA, Júlia. Nova versão do Marco Civil da Internet libera venda de pacotes
sem discriminar conteúdo, Jornal Folha de São Paulo, 11 de dezembro de 2013, disponível em
<http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/12/1384035-nova-versao-do-marco-civil-da-internet-libera-venda-
de-pacotes-sem-discriminar-conteudo.shtml>. Acesso em: 23 de out. de 2017.
29
Por outro lado, o próprio DMCI, em seu artigo 10º, preceitua que as ofertas comerciais devam
preservar uma internet única.38
Finalmente, a promoção da adesão a padrões tecnológicos abertos que permitam a
comunicação, a acessibilidade e a interoperabilidade entre aplicações e bases de dados reforça
a visão do Legislador sobre a internet, que deve prezar pelo caráter universal e pela
receptividade e compatibilidade técnica a novas aplicações.
Vimos neste item que o MCI estabeleceu uma série de princípios, fundamentos e
objetivos que devem orientar a aplicação do diploma. Percebemos também que, enquanto
dispositivos abertos, sua interpretação pode não ser uníssona, havendo a possibilidade de
conflitos entre eles. Sobre tais conflitos, Ramos sugere como solução uma hermenêutica
teleológica:
A resposta a esses conflitos não pode ser uma mera exclusão de um princípio em
favor de outro; seria errado presumir a contradição per se entre as regras do Marco
Civil sem antes buscar uma investigação hermenêutica mais profunda que parta da
premissa de que o Marco Civil é, na verdade, um sistema jurídico dotado de
coerência interna (entre suas próprias disposições) e externa (considerando seu
locus no ordenamento brasileiro). O objetivo de uma hermenêutica teleológica da
neutralidade da rede no Marco Civil é, portanto, a superação de contradições por
meio da integração da moldura teleológica em si, e não pela mera eliminação de
prescrições normativas específicas em favor de regras gerais abstratas.39
Uma vez estudadas as diretrizes gerais de aplicação do MCI, guiamo-nos para a análise
do artigo da lei que trata da neutralidade de rede.
3.1.3 O artigo 9º e sua regulamentação
No Capítulo III do MCI, que trata da provisão de conexão e de aplicações de internet,
temos a primeira Seção dedicada à neutralidade de rede, composta por um único artigo, o qual
dispõe o seguinte:
Art. 9o O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o
dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção
por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.
§ 1o A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos
termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV
do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê
38Art. 10. As ofertas comerciais e os modelos de cobrança de acesso à internet devem preservar uma internet
única, de natureza aberta, plural e diversa, compreendida como um meio para a promoção do desenvolvimento
humano, econômico, social e cultural, contribuindo para a construção de uma sociedade inclusiva e não
discriminatória. 39RAMOS, Pedro H. S. Arquitetura da Rede e Regulação: a neutralidade da rede no Brasil. Dissertação de
Mestrado. Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, 2015. p. 133.
30
Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá
decorrer de:
I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e
aplicações; e
II - priorização de serviços de emergência.
§ 2o Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no § 1o, o
responsável mencionado no caput deve:
I - abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 da Lei no 10.406,
de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil;
II - agir com proporcionalidade, transparência e isonomia;
III - informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente
descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de
tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e
IV - oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e
abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.
§ 3o Na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem como na
transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou
analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo. (Grifos
nossos)
O caput estabelece como regra o tratamento isonômico entre os pacotes de dados,
independentemente tanto de critérios objetivos (serviço, aplicação ou conteúdo), quanto de
critérios subjetivos (terminal, origem e destino). Novamente colacionamos pertinente
entendimento da ANATEL:
Entende-se que a discriminação (ou degradação) de tráfego vedada é aquela eventual
ou sistematicamente aplicada entre serviços e aplicações com os mesmos requisitos
funcionais, não sendo uma infração ao princípio da neutralidade de rede o
tratamento diferenciado (ou seja, a discriminação) de serviços e aplicações que
apresentem distintos requisitos funcionais. Considera-se isonômica a manipulação
dos pacotes de dados de cada serviço ou aplicação de acordo com as “leis” que
governam sua adequada prestação aos usuários da internet. Trata-se de assegurar a
qualidade dos serviços prestados e de se atingir uma boa experiência para os
consumidores.40 (Grifo nosso)
Neste sentido, entende-se que há categorias diferentes de serviços e aplicações, cada
qual com seus requisitos funcionais, sendo vedadas a discriminação ou a degradação de
tráfego apenas quando praticadas internamente em um grupo de aplicações funcionalmente
homogêneas. Em verdade, o entendimento bem cristaliza o conceito de isonomia. Conforme
coloca Ramos,41 "pacotes com requisitos técnicos diferentes ou com fins sociais específicos
poderão ser discriminados, sempre que o objetivo for promover uma 'igualdade material' entre
eles".
40
BRASIL. ANATEL. Manifestação sobre a regulamentação da neutralidade de rede prevista no MCI. Maio,
2016. Disponível em: <goo.gl/DFvtPP>. Acesso em: 08 de dez. de 2017. 41 RAMOS, Pedro H. S.. Arquitetura da Rede e Regulação: a neutralidade da rede no Brasil. Dissertação de
Mestrado. Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, 2015. p. 100.
31
Adiante, o §1 do referido artigo estabelece a exceção decorrente da priorização de
serviços de emergências, que, como o DMCI especificou, abrange as situações de (i)
comunicações destinadas aos prestadores dos serviços de emergência, ou comunicação entre
eles e de (ii) comunicações necessárias para informar a população em situações de risco de
desastre, de emergência ou de estado de calamidade pública.
O dispositivo também estabelece outro desvio à regra, este mais sujeito a posteriores
debates sobre sua extensão: a quebra do tratamento isonômico por conta de requisitos técnicos
indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações. Tal desvio também foi
aprofundado pelo DMCI, que assim dispõe:
Art. 5o Os requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada de
serviços e aplicações devem ser observados pelo responsável de atividades de
transmissão, de comutação ou de roteamento, no âmbito de sua respectiva rede, e
têm como objetivo manter sua estabilidade, segurança, integridade e
funcionalidade.
§ 1o Os requisitos técnicos indispensáveis apontados no caput são aqueles
decorrentes de:
I - tratamento de questões de segurança de redes, tais como restrição ao envio
de mensagens em massa (spam) e controle de ataques de negação de serviço; e
II - tratamento de situações excepcionais de congestionamento de redes, tais
como rotas alternativas em casos de interrupções da rota principal e em situações de
emergência.
O caput do artigo determina os sujeitos jurídicos que devem observar os ditos
requisitos técnicos. Fora isso, tal dispositivo coloca a estabilidade, a segurança, a integridade
e a funcionalidade da rede como finalidades dos tais quesitos, em harmonia ao princípio da
preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, já visto no artigo 3º do MCI.
Ademais, fica expressa a vontade do Legislador de melhor delinear o que seriam os requisitos
técnicos indispensáveis à prestação adequada de serviços e aplicações, estabelecendo ele as
hipóteses de (i) tratamento de questões de segurança de redes e (ii) tratamento de situações
excepcionais de congestionamentos de redes. Dentro de cada inciso são dados exemplos, os
quais não devem ser considerados taxativos.
Para vislumbrarmos melhor a linha interpretativa do dispositivo supracolacionado que
a ANATEL provavelmente deve seguir, devemos considerar que há algum tempo a agência
vem manifestando posição por uma regulação não exaustiva, que possibilite a adequação a
novos padrões tecnológicos. A respeito disto, pertinente é este excerto da manifestação da
ANATEL sobre a regulamentação da neutralidade de rede à época da elaboração do DMCI
(partes selecionadas):
32
TEMA 1: PRESTAÇÃO ADEQUADA DE SERVIÇOS E APLICAÇÕES
(...)
Ao ver da Anatel, a regulamentação do referido inciso [I do art. 9º, MCI] não deve
buscar ser exaustiva e detalhada demais, sob pena de se tornar obsoleta rapidamente
frente à dinâmica evolução das tecnologias de telecomunicações. Assim, os
requisitos técnicos suficientes para garantir a qualidade e a prestação adequada dos
serviços e aplicações devem ser previstos como critérios e princípios gerais, sem,
contudo, serem abstratos por demais de maneira a possibilitar exceções além das
previstas no Marco Civil da Internet.42
Digno de registro é que, independentemente do motivo da discriminação de tráfego ou
gerenciamento de rede, sempre deverá o provedor de conexão tornar transparentes suas
motivações, conforme dispõe o DMCI, em alinhamento ao art. 9º, § 2º, III do MCI:
Art. 7o O responsável pela transmissão, pela comutação ou pelo roteamento
deverá adotar medidas de transparência para explicitar ao usuário os motivos do
gerenciamento que implique a discriminação ou a degradação de que trata o art. 4o,
tais como:
I - a indicação nos contratos de prestação de serviço firmado com usuários
finais ou provedores de aplicação; e
II - a divulgação de informações referentes às práticas de gerenciamento
adotadas em seus sítios eletrônicos, por meio de linguagem de fácil compreensão.
Parágrafo único. As informações de que trata esse artigo deverão conter, no
mínimo:
I - a descrição dessas práticas;
II - os efeitos de sua adoção para a qualidade de experiência dos usuários; e
III - os motivos e a necessidade da adoção dessas práticas.*
3.1.4 Considerações
O MCI e o DMCI estabeleceram diretrizes básicas a respeito do tratamento de pacote
de dados por parte dos provedores de conexão e confirmaram que o Brasil adotou o princípio
da neutralidade de rede e sua preocupação com a internet enquanto ambiente aberto, pró-
inovação e guiado pela autonomia dos usuários. Contudo, algumas questões e práticas não
foram expressamente solucionadas pelos diplomas.43 Pode-se perceber, contudo, a diretriz
geral adotada pelo legislador e principalmente a linha interpretativa que a ANATEL tende a
seguir nestes primeiros períodos. Assim manifestou-se a agência, já em momento ulterior ao
DMCI, ao opinar sobre a prática de zero-rating:
42
BRASIL. ANATEL. Manifestação sobre a regulamentação da neutralidade de rede prevista no MCI. Maio,
2016. Disponível em: <goo.gl/DFvtPP>. Acesso em: 08 de dez. de 2017. 43
Assim percebeu também Roberta Westin, em momento anterior ao DMCI, no entanto: "Nota-se que, apesar da
lei em questão [MCI] ter contemplado pilares básicos relacionados ao uso e funcionamento da Internet, muitas
respostas às particularidades e práticas envolvendo o gerenciamento de rede ainda não foram efetivamente
dadas". WESTIN, Roberta. Neutralidade de Rede: Quem Ganha e quem perde? In ARTESE, Gustavo. Marco
Civil da Internet: Análise Jurídica sob uma Perspectiva Empresarial. São Paulo: Editora Quartier Latin do
Brasil, 2015. p. 136-157.
33
(...) fundamentada nos distintos atos que se sucederam no tratamento da questão
neutralidade, observadas as competências institucionais dos órgãos envolvidos, é
possível atestar antecipadamente que: i) qualquer visão estrita e fundamentalista
do princípio neutralidade de redes resta completamente afastada no arranjo
brasileiro e ii) dispõe o país do aparato regulatório-institucional necessário,
adequado e suficiente para enfrentamento de eventuais questões associadas à
matéria, por complexas que sejam.44 (Grifo nosso)
Tal visão, conforme o seguinte relato, parece congruente com a posição final adotada
pelo MCI. O projeto de lei do relator adotara uma perspectiva mais radical sobre a
neutralidade de rede, o que foi alterado durante o trâmite do projeto. Neste sentido, cabe a
análise da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados apresentada no Texto de
Referência acerca do Marco Civil da Internet para o "fique por dentro":45
1) Neutralidade de redes
Nesse quesito, os Substitutivos apresentados pelo relator ao longo da tramitação
da matéria foram alterando o conceito de neutralidade. As versões anteriores só
permitiam a interferência no tráfego para resolver problemas técnicos e priorizar
tráfego de serviços de emergência. Essa neutralidade quase absoluta, que poderia dar
maior transparência para o usuário, poderia transformar-se em aumento de custos,
pois, para se manter a mesma velocidade para todos os serviços (por exemplo, email
e vídeos), seria necessária maior infraestrutura. Para as operadoras de
telecomunicações, esse conceito de neutralidade dificultaria a otimização da rede e a
geração de novos negócios (por exemplo, priorização de determinados parceiros).
(...)
A atual redação suaviza o conceito de neutralidade, pois indica que a
“degradação do tráfego” poderá ser feita para dar suporte a serviços de
emergência e para atender “requisitos técnicos indispensáveis à prestação
adequada dos serviços”. A versão em análise evoluiu também ao prever que o
gerenciamento da neutralidade deverá ser realizado com “proporcionalidade,
transparência e isonomia”, deverá “informar previamente ... as práticas de
gerenciamento” e “abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais”.
(Grifos nossos)
Podemos também analisar a escolha do legislador usando-se da divisão temática
adotada pela ANATEL à época da manifestação sobre a regulamentação da neutralidade de
rede. A agência dividiu o debate em cinco tópicos: (1) Prestação adequada de serviços e
aplicações, (2) Relações entre os agentes envolvidos e (3) Modelos de negócios, (4)
Comunicações de emergência e (5) Bloqueio de conteúdo a pedido do usuário.
44 BRASIL. ANATEL. Manifestação no Inquérito Administrativo n° 08700.004314/2016-71. 45
NAZARENO, Cláudio. Nota técnica: Texto referência acerca do Marco Civil da Internet para o “fique por
dentro”. Brasília: Consultoria Legislativa, 2014. p. 6. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/a-
camara/documentos-e-pesquisa/fiquePorDentro/temas/marco-civil/texto-base-da-consultoria-legislativa-pdf >.
Acesso em: 04 de nov. de 2017.
34
O primeiro tópico trata das exceções à neutralidade de rede baseadas em requisitos
técnicos indispensáveis para a adequada prestação de serviços e aplicações. Para esta
temática, nosso Legislador optou por não se ater a detalhes, estabelecendo diretrizes e
critérios gerais, a partir dos quais a ANATEL, frente a casos concretos, analisará a legalidade
das condutas.
O segundo e o terceiro tópico versam sobre a relação entre os agentes do mercado da
internet e os potenciais modelos de negócios que ela origina. Nesta seara, nosso legislador não
elencou a priori nenhum modelo de negócio proibido. Assim, os diferentes tipos de acordos e
práticas, tais como zero rating e fast lanes, devem ser compatíveis com o objetivo de uma
internet única, aberta e acessível, sendo o veredito de legalidade apenas dado após análise ex
post do negócio, em que custos e benefícios sociais serão sopesados. É neste sentido que a
ANATEL, bem como os órgãos de defesa concorrencial e consumerista, devem monitorar os
acordos comerciais de forma extensiva, mas intervir de modo cirúrgico, sempre após
detalhada análise concreta de potenciais prejuízos e benefícios. Estes tópicos dialogam
diretamente com o objeto de nosso trabalho e serão ainda retomados.
O quarto tópico diz respeito às exceções do inciso II do art. 9º do MCI, das quais o art.
8º do DMCI trata. Aqui, opta o legislador por elencar duas situações específicas
(comunicação para aviso de desastre e para/entre serviços de emergência), mas ao mesmo
tempo faz ele remissão à já existente normatização sobre o assunto vinda da ANATEL,
confiando na experiência legislativa da agência.
Por fim, o quinto tópico diz respeito à possibilidade de o provedor de conexão
bloquear o acesso a determinados conteúdos (pornografia, por exemplo) a pedido dos
usuários. Esta exceção à neutralidade de rede não foi acolhida pelo legislador, que deixou que
tal limitação de conteúdo ocorra apenas utilizando-se de ferramentas digitais nos próprios
terminais de uso.
Abordamos neste item o noviço marco regulatório sob o qual está regido o princípio
da neutralidade de rede e o objeto de nosso estudo. Trata-se de uma regulação que cuidou em
ser maleável, trazendo dispositivos que serão calibrados no momento em que se configurar
necessária a manifestação da ANATEL. 46 São, enfim, diplomas conscientes de que lidar com
46
No mesmo sentido, conclui Ramos: "(...); o Marco Civil não é uma lei perfeita; está longe disso, e há uma
textura aberta para que aplicadores do Direito atuem. A regulação da neutralidade da rede no Brasil trouxe
consigo custos e benefícios aos atores do mercado, e é papel dos reguladores não ficar em presos a análises
unicamente gramaticais, devendo manter um olhar vigilante nas consequências de aplicação dessa regra para a
sociedade e para o desenvolvimento do País; (...)". In: RAMOS, Pedro H. S.. Arquitetura da Rede e Regulação: a
35
um mercado inovador como o da internet exige todo o cuidado possível, sob pena da
obsolescência. No próximo item trataremos da dimensão concorrencial da neutralidade de
rede, que dialoga, mas não se confunde com a faceta regulatória.
3.2. O ÂMBITO CONCORRENCIAL
Diferentemente da regulação sobre a neutralidade da internet, cujo debate ainda é
relativamente recente, o Direito Concorrencial moderno conta com mais de um século de
história. 47 Credita-se o pioneirismo das legislações anticoncorrenciais ao Canadá, que editou,
em 1889, o Act for the Prevention and Supression of Combinations formed in Restraint of
Trade, seguido pelos Estados Unidos da América com seu Sherman Act (1890). Desde então,
cada vez mais países vêm adotando legislações para reprimir abusos econômicos.
No Brasil, há sólida doutrina a respeito do assunto, bem como sedimentada
experiência. O primeiro esboço de proteção econômica antitruste veio no governo de Getúlio
Vargas. Neste sentido, em conformidade com as Constituições de 1934 e 1937, que já
promoviam a defesa da economia popular, sobreveio o Decreto-lei 431/1938, que, na alínea
23 do seu art. 3º, criminalizava quem promovesse, por meio de artifícios, alta ou baixa dos
preços de gêneros de primeira necessidade com o objetivo de tirar lucro ou proveito. No
entanto, maior continuidade com o Sistema de Defesa Econômica atual se vê a partir do
Decreto-lei 7.666/1945, diploma da seara administrativa, e não penal, que criou a Comissão
Administrativa de Defesa Econômica - antecessora do atual Conselho Administrativo de
Defesa Econômica (CADE).
O momento atual brasileiro é o de celebração do sexto aniversário da atual Lei de
Defesa da Concorrência, de nº 12.529/2011 que veio a substituir a Lei nº. 8.884/1994. Em seu
art. 1º, o novo diploma dispôs como seus ditames a prevenção e a repressão às infrações
contra a ordem econômica, orientado pelos princípios constitucionais de liberdade de
iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e
repressão ao abuso do poder econômico. Em relação ao diploma anterior, o atual consolidou
mudanças institucionais, unificando funções outrora de secretarias no CADE, com o fim de
evitar sobreposição de competências. Ademais, entre outras alterações, houve uma
neutralidade da rede no Brasil. Dissertação de Mestrado. Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio
Vargas, 2015. p. 196. 47OLIVEIRA, Gesner; RODAS, João Grandino. Direito e economia da concorrência. 2.ed. São Paulo: Rev. dos
Tribunais, 2013. p. 18.
36
modernização do sistema de análise de atos de concentração, além de alterações no
procedimento para análises de condutas e no controle em si, com avanços no programa de
leniência.48
3.2.1 A aplicação da Lei nº 12.529/2011 diante da provisão de conexão
A interpretação da CF, da Lei 12.529/2011, do MCI e do DMCI, seja conjunta, seja
separadamente, parece-nos inequívoca ao apontar a aplicação do nosso Sistema de Defesa da
Concorrência ao âmbito dos mercados de provisão de conexão para a internet.49 Em seu artigo
170, IV, a Carta Magna prevê a livre concorrência como um dos princípios da nossa ordem
econômica. O artigo 173, § 4º acrescenta que "a lei reprimirá o abuso do poder econômico
que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos
lucros". Conforme bem notou a representação do MPF que deu origem ao inquérito sobre ZR
no CADE, "a Constituição Federal, ao tratar da repressão ao abuso do poder econômico
(art.173, §4º), não excepciona quaisquer setores, situação corroborada pelo quanto disposto no
artigo 31 da Lei 12.529/2011".50
Ademais, em seu artigo 2º, V, o MCI elenca como seu fundamento o respeito à livre
concorrência; no artigo 9º, § 2º, IV, por sua vez, reforça o diploma que, mesmo nas hipóteses
admitidas de discriminação ou degradação do tráfego, são vedadas condutas
anticoncorrenciais. Para que não restem dúvidas, dispõe o DMCI em seu artigo 19 que "a
apuração de infrações à ordem econômica ficará a cargo do Sistema Brasileiro de Defesa da
Concorrência, nos termos da Lei no 12.529".
Ou seja, não há nada em nosso ordenamento isentando o mercado de internet da
análise concorrencial. Tampouco a regulação sobre o assunto indica qualquer substituição do
controle concorrencial pela regulação e fiscalização da ANATEL: pelo contrário, os diplomas
regulatórios enfatizam a competência do CADE, conforme já demonstramos. Assim, claro
fica que no controle jurídico da internet, como ocorre em outras áreas de nossa economia,
48Para ler mais sobre as inovações do diploma atual, ver: CORDOVIL, Leonor et al. Nova Lei de Defesa da
Concorrência comentada: Lei 12.529, de 30 de novembro de 2011. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p.
31-41. 49Assim considerou também a Superintendência Geral do CADE na Nota Técnica 34 do Inquérito
Administrativo nº 08700.004314/2016-71: " (...) não há dúvidas sobre a competência do CADE para analisar
práticas anticoncorrenciais concretas dos agentes econômicos envolvidos no mercado de Internet, por força da
Lei nº 12.529/11 e ainda da previsão expressa no Decreto nº 8.771". BRASIL, CADE. Nota técnica 34/2017.
Setembro, 2017. Disponível em: <goo.gl/2x5ogx>. Acesso em: 28 de nov. de 2017. 50Art. 31. Esta Lei aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer
associações de entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem
personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal.
37
coexistem perfeitamente os âmbitos regulatórios e concorrenciais: o SBDC fiscaliza as
condutas anticoncorrenciais e a ANATEL fiscaliza as infringências ao MCI e ao DMCI.
3.2.2 A neutralidade de rede como uma questão concorrencial
A possibilidade jurídica de aplicação do diploma antitruste ao âmbito da internet não
só existe, como também a própria questão da neutralidade de rede em diversos aspectos
carrega uma tonalidade claramente concorrencial, ao se preocupar com o poder de mercado e
os potenciais abusos de poder econômico, bem como com integrações verticais e distorções
na concorrência. De fato, esta é a principal ótica de muitos economistas sobre o assunto, como
expressa Faulhaber:
Bem pode haver outras imperfeições de mercado (como externalidades associadas
com mercados de duas pontas), mas poder de mercado e a habilidade para agir de
modo anticompetitivo é como muitos economistas veem a questão da neutralidade
de rede.51 52 (Tradução nossa)
Não é por menos que há autores que até defendem ser o direito concorrencial por si só
já suficiente ou ao menos mais adequado para solver o problema que a neutralidade de rede
combate.53 De qualquer forma, mesmo convictos defensores de uma incisiva abordagem
regulatória reconhecem a evidente ligação entre os assuntos. Um exemplo disso é a
comparação de Lawrence Lessig:
"End-to-end” or, to update the language, “network neutrality” is the equivalent of
perfect competition because it creates an environment, or platform, upon which
competition among applications and content happens with minimum interference by
51"There may well be other market imperfections (such as externalities associated with two-sided markets), but
market power and the ability to behave anticompetitively is how many economists see the issue of net neutrality" 52
FAULHABER, Gerald. Economics of Net Neutrality: A Review . Communications & Convergence Review, v.
3, n. 1, 2011. p. 11. Disponível em: <http://assets.wharton.upenn.edu/~faulhabe/Econ_Net_Neut_Review.pdf> .
Acesso em: 24 de dez. de 2017. 53
Neste sentido, ver, por exemplo:
(a) Baumol, William; Cave, Martin;Cramton, Peter; Hahn, Robert; Hazlett, Thomas; Joskow, Paul; Kahn,
Alfred; Litan, Robert; Mayo, John; Messerlin, Patrick; Owens, Bruce; Pyndick, Robert; Savage, Scott; Smith,
Vernon; Wallsten, Scott; Waverman, Leonard; e White, Lawrence. Economist´s Statement on Network Neutrality
Policy. AEI Brooking Institutions, Março, 2007; (b) TEREPINS, Sandra. Neutralidade de rede: uma análise
concorrencial da discriminação do conteúdo e aplicativos pelo detentor de rede de internet banda larga. V Prêmio
SEAE (2010). Concurso de Monografias em Defesa da Concorrência e Regulação Econômica (categoria
profissionais). Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) do Ministério da Fazenda. 2010. Disponível
em: < http://seae.fazenda.gov.br/premio-seae/edicoes-anteriores/edicao-2010/v-premio-seae-
2010/Tema_1_3_lugar_Sandra_Diagramado.pdf>. Acesso em: 14 de nov. de 2017. (c) FERRONATO,
Fernanda. Regulação e poder na Internet: o direito antitruste como alternativa à imposição da neutralidade da
rede proposta pelo Marco Civil. 10.º Concurso de Monografia Levy & Salomão. São Paulo, 2014.
38
the network or platform owner. Like a traditional marketplace, or a modern stock
market, a neutral network assures that in the negotiation between buyer and seller, or
innovator and consumer, the network itself plays little or no substantive role. All the
power within this negotiation is shifted to the edge, to those economic actors directly
responsible for innovation and growth in network applications and content—namely,
consumers and innovators.54 55 (Grifo nosso)
Em nosso estudo, observamos que os autores pró-neutralidade de rede não só
reconhecem a conexão do tema com a defesa da concorrência, como também não se opõem à
uma análise concorrencial - ocorre apenas que eles acreditam que a questão exceda tal área.56
Sobre a transcendência da neutralidade de rede em relação à política antitruste, assim opinam
Barbara van Schewick e Frischmann: 57
There are many related normative commitments at stake in the network
neutrality debate, including market values such as promoting allocative and
productive efficiency, innovation, and economic growth but also various nonmarket
values such as education and increased participation in cultural and political
processes. As has become apparent above, network neutrality regulation may have
countervailing effects on some of these values. Thus, ultimately, the decision for or
against network neutrality may require a trade-off. This makes it even more
important to identify and take account of the various values at stake.58
Desta forma, para a maioria dos defensores da neutralidade de rede, valores que não
são essencialmente mercadológicos, como a educação e a participação cultural e política, têm
um papel importante na discussão e talvez não sejam completamente abarcados pela discussão
concorrencial. Neste sentido, em matéria de regulação, justificativas não econômicas também
existem, conforme sustentam autores como Cass Sunstein e Stephen Breyer:
54LESSIG, Lawrence. Hearing on the future of the internet. Testemunho realizado no U.S. Senate Committee on
Commerce, Science and Transportation em 22/04/2008. Disponível em:
<http://msl1.mit.edu/furdlog/docs/hearings/2008-04-22/lessig.pdf>. Acesso em: 14 de nov. de 2017. 55"Ponta-a-ponta ou, para atualizar a linguagem, "neutralidade de rede" é o equivalente à competição perfeita
porque ela cria um ambiente, ou plataforma, sob o qual a competição entre aplicações e conteúdos acontece com
a mínima interferência da rede ou do titular da plataforma. Como em um tradicional mercado, ou uma moderna
bolsa de valores, uma rede neutra assegura que nas negociações entre comprador e comprador, ou inovador e
consumidor, a rede em si tem pouco ou nenhum papel substantivo. Todo o poder dessa negociação é transferido
para a ponta, para aqueles atores econômicos diretamente responsáveis pela inovação e o crescimento em
aplicações e conteúdo de rede - isto é, consumidores e inovadores." (Tradução nossa, grifo nosso). 56Exemplo disso encontra-se em: Ramos, Pedro H. S.. Arquitetura da Rede e Regulação: a neutralidade da rede
no Brasil . Dissertação de Mestrado. Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, 2015. p. 33. 57 FRISCHMANN , B. M.; VAN SCHEWICK, B. Network neutrality and the economics of an information
superhighway: A reply to Professor Yoo. Jurimetrics, 2007. p. 426-427. 58"Em jogo no debate sobre neutralidade de rede há vários compromissos normativos relacionados, incluindo
valores de mercado como promover eficiência produtiva e alocativa, inovação e crescimento econômico, mas
também vários valores que não são de mercado, como educação e maior participação nos processos cultural e
político. Como ficou aparente acima, a regulação da neutralidade de rede pode ter efeitos compensatórios em
alguns desses valores. Logo, em última instância, a decisão a favor ou contra neutralidade de rede pode requerer
um trade-off. Isso faz com que seja ainda mais importante identificar e levar em conta os vários valores em
jogo." (Tradução nossa)
39
Some regulatory programs can be understood as an effort to promote
nonmarket values, or democratic aspirations, or considered judgments on the part of
some segments of society. Some people, for example, may want public affairs and
educational programming on television, even though their own consumption patterns
favor situation comedies; they may want environmental law to protect pristine areas
whether or not they use public parks; they may support regulation to protect
endangered species even if they do not take steps to visit or study such species.
Social or cultural norms may encourage political participants to seek regulation of
this kind even if there is no conventional market failure. Similar justifications have
been offered for regulation of the Internet; some defenders of such regulation argue
that traditional economic justifications are out of place because the Internet is a
mixed commercial, public, and social infrastructure that supports an incredible
variety of market and nonmarket systems and user activities thay yield private,
public, and social goods. The social value of the Internet exceeds its market value.59 60
Fazemos a ponderação, ainda, de que, cada vez mais, a internet é o jornal, o rádio e a
televisão de ontem. As mídias sociais, por exemplo, atualmente têm um peso enorme na
distribuição de conteúdos jornalísticos. Aspectos como a apresentação das notícias e a
visibilidade das mesmas para os leitores, que eram definidos pela edição de um jornal, hoje
muitas vezes são definidos por algoritmos de redes sociais. Com efeito, em nossa visão, a
internet, por conta de todos os seus aspectos funcionais, atualmente tem valor de comunicação
social. Portanto, o debate em relação a ela deve considerar dimensões políticas que
transcendem àquelas econômicas que são tratadas no direito concorrencial, tarefa para qual o
direito da regulação aparece como adequado. A experiência europeia aponta para a mesma
direção, conforme podemos ver neste relatório da Comissão Europeia sobre ZR:
(...) much of the literature recognises that the effects of zero-rating arise from its
impact on competition amongst ISPs and content providers, and therefore antitrust
authorities may need to address zero-rating practices. Such assessments will take
place in parallel to the regulatory constraints on zero-rating practice s that arise from
net neutrality regulation.61 62
59"Alguns programas regulatórios podem ser compreendidos como um esforço para promover valores que não
são do mercado, ou aspirações democráticas, ou julgamentos tomados por parte de algum segmento da
sociedade. Algumas pessoas, por exemplo, podem querer assuntos públicos e programas educativos na televisão,
ainda que seu próprio padrão de consumo favoreça comédias de situação; eles podem querer leis ambientais para
proteger áreas intocadas usando eles parques públicos ou não; eles podem apoiar regulação para proteger
espécies ameaçadas mesmo que eles não tomem medidas para visitar ou estudar tais espécies. Normais sociais ou
culturais podem encorajar participantes políticos para buscar regulação desse tipo mesmo que não haja nenhuma
falha de mercado convencional. Justificativas similares têm sido oferecidas para a regulação da Internet; alguns
defensores de tal regulação argumentam que justificativas econômicas tradicionais estão deslocadas porque a
Internet é uma mista infraestrutura comercial, pública e social que suporta uma incrível variedade de sistemas
mercadológicos e não-mercadológicos e atividades de usuários que produzem bens públicos, privados e sociais.
O valor social da Internet excede o seu valor de mercado." (Tradução nossa) 60BREYER, Stephen G. et al. Administrative Law and Regulatory Policy: Problems, Texts and Cases. 7. ed.
Nova Iorque: Wolters Kluwer Law & Business, 2011. p. 11. 61Comissão Europeia (Org.). Zero-rating practices in broadband markets. Bruxelas: Dotecon Ltd, 2017. p.11.
Disponível em: <http://ec.europa.eu/competition/publications/reports/kd0217687enn.pdf>. Acesso em: 25 de
nov. de 2017.
40
De qualquer forma, ainda que não seja a única esfera a abranger a questão, o direito
concorrencial deve ser aplicado. No nosso ordenamento jurídico, tal potencial subsunção
encontra abrigo. Embora não haja nenhuma referência direta à neutralidade de rede na Lei de
Defesa da Concorrência, vemos que diversas condutas que violariam tal princípio, ou o
colocariam em risco, poderiam também ser enquadradas como anticoncorrenciais. Isto fica
claro ao observarmos os comandos do artigo 36 da referida lei, que delineia as infrações da
ordem econômica. Grifamos alguns deles de especial pertinência:
Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de
culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam
produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência
ou a livre iniciativa;
II - dominar mercado relevante de bens ou serviços;
III - aumentar arbitrariamente os lucros; e
IV - exercer de forma abusiva posição dominante.
(...)
§ 3o As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem
hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da
ordem econômica:
(...)
III - limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado;
IV - criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao
desenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou
financiador de bens ou serviços;
V - impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas,
equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição;
VI - exigir ou conceder exclusividade para divulgação de publicidade nos
meios de comunicação de massa;
VII - utilizar meios enganosos para provocar a oscilação de preços de
terceiros;
(...)
X - discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por
meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda
ou prestação de serviços;
(...)
XVIII - subordinar a venda de um bem à aquisição de outro ou à
utilização de um serviço, ou subordinar a prestação de um serviço à utilização
de outro ou à aquisição de um bem;
Concluindo este item, demonstramos que a discussão jurídica concorrencial também é
legal e pertinente ao âmbito da neutralidade de rede e do zero rating. No próximo capítulo,
62"(…) muito da literatura reconhece que os efeitos do ZR resultam dos seus impactos na competição entre
provedores de conexão e provedores de conteúdo, e portanto as autoridades antitrustes podem precisar tratar de
práticas ZR. Tais avaliações vão ocorrer em paralelo com as restrições regulatórias na prática de ZR que advêm
da regulação de neutralidade de rede." (Tradução nossa)
41
nos dedicaremos à análise direcionada de nosso objeto, quando iremos também analisar a
aplicabilidade dos dispositivos grifados à prática.
42
4. A PRÁTICA DE ZERO-RATING
Nos capítulos anteriores, ambientamos o leitor à discussão sobre neutralidade de rede,
delineamos os contornos nos quais o princípio foi positivado no Brasil e demonstramos como
a análise concorrencial também se mostra pertinente à temática. Neste capítulo, afunilamos a
análise e a direcionamos para o nosso objeto. Neste sentido, inicialmente é feita uma breve
conceituação e descrição da prática. Em um segundo momento, é procedida uma análise
econômica do ZR, balanceando-se os fatores em jogo com uso do instrumental e da
linguagem daquela ciência. Adiante, tratamos então de descrever o principal caso sobre ZR no
Brasil, relatando alguns argumentos e considerações trazidos no processo, os quais já
adiantam, de certa forma, os itens posteriores. Nestes últimos, finalmente tecemos a análise
concorrencial e regulatória de nosso objeto.
4.1 O QUE É?
O termo zero-rating abrange mais de um tipo de prática; o aspecto em comum é que
todas resultam na oferta de acesso a determinado conteúdo ou aplicação de forma gratuita ou
sem consumir um pacote de dados contratado. A ANATEL assim sintetizou as diferentes
manifestações de tal tática comercial:63
a) Tarifação zero por escolha da própria prestadora - a prestadora de serviço de
telecomunicações elege, segundo critérios pautados em uma decisão interna, certos
conteúdos ou aplicações que, quando acessados pelo usuário, não gerarão qualquer
tipo de custo;
b) Tarifação zero para aplicações ou serviços de emergência - o acesso a
aplicações ou serviços de utilidade pública específicos não são cobrados do usuário;
c) Dados patrocinados - nesse caso, o patrocinador arca com os custos dos dados
trafegados pelo usuário final quando destinarem-se ao acesso a website específico ou
utilização de determinado aplicativo;
d) Gerenciamento de dados - consiste no gerenciamento de tráfego direcionado a
provedores de conteúdo, a fim de que estes se utilizem de períodos de menor
demanda de tráfego, os quais são consequentemente mais baratos, para entrega de
seu conteúdo de forma mais eficiente;
e) Dados como recompensa - ocorre quando uma marca, desejando engajar
determinado consumidor, lhe oferece a possibilidade de acesso a dados móveis, com
custo zero, como recompensa por assistir um vídeo específico, baixar certo
aplicativo ou realizar determinada ação desejada;
f) Publicidade direcionada - nesse caso, direciona-se a publicidade de determinado
produto àqueles consumidores que, segundo informações de seu acesso,
efetivamente têm interesse. Nesse caso, o usuário que baixar o aplicativo ou acessar
o conteúdo desejado não pagará por tê-lo feito;
63BRASIL. ANATEL. Manifestação no Inquérito Administrativo n° 08700.004314/2016-71.
43
g) Dados corporativos - permite que determinada instituição arque apenas com
acesso a dados corporativos. Os dados pessoais serão custeados pelo próprio
funcionário. (Grifos nossos)
Este trabalho tratará das modalidades "a", acesso gratuito e "c”, acesso patrocinado.
Desde 2010 tais modalidades vêm, sobretudo no mercado mobile (provisão de conexão para
celulares), emergindo cada vez mais em diversos países.64
No Brasil, uma rápida incursão nos planos oferecidos pelas operadoras brasileiras já
mostra a presença do ZR. Quanto à modalidade, não se conhece os exatos termos do ZR
brasileiro. Algumas reportagens encontradas sugerem que as operadoras são remuneradas por
meio de compensações, como publicidade nos sites.65 Por sua vez, o inquérito sobre ZR
instaurado diante do CADE concluiu pela existência de ambos: acordos patrocinados, bem
como práticas sem aparente contrapartida. Assim, tem-se que os dois tipos de ZR já
ocorreram no Brasil e provavelmente ainda ocorrem.
Atualmente, a Claro oferece isenção em seus planos ao aplicativo Whatsapp
(mensagens instantâneas de texto, mídia e áudio), bem como a um aplicativo da própria
empresa, Claro Músicas (streaming de músicas).66 Já a Tim, além da isenção ao Whatsapp em
seus planos, oferece na modalidade pós-paga 7, 10 ou 15 gigabytes para uso livre e a mesma
quantia para uso exclusivo em canais de vídeo parceiros (Netflix, Cartoon Network Já, Looke
e Esporte Interativo Plus).67
No passado, a prática de ZR entre as principais empresas brasileiras e as redes sociais
Facebook e Twitter também ocorreu.68 No entanto, ela foi interrompida, o que mostra que
nem sempre tais estratégias são bem-sucedidas. Neste sentido, ao cessar tal modalidade, o
então presidente da Claro, Carlos Zenteno, afirmou que a decisão era motivada apenas por
motivos comerciais, em nada se relacionando com potenciais complicações com o Marco
Civil (de fato, a empresa seguiu a isenção com o Whatsapp).69
64
RAMOS, Pedro H. S.. Arquitetura da Rede e Regulação: a neutralidade da rede no Brasil . Dissertação de
Mestrado. Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, 2015. p. 152. 65EXAME, "A Claro não cobrava pelo acesso às redes sociais desde 2013, sendo remunerada por meio de
compensações como publicidade nos sites", Abril, 2015. Disponível em:
<https://exame.abril.com.br/tecnologia/claro-corta-acesso-a-twitter-e-facebook-mas-eleva-franquia/>. Acesso
em: 24 de nov. de 2017. 66Disponível em <http://www.claro.com.br/ainda-nao-sou-cliente#>. Acesso em 20 de nov. de 2017. 67 Disponível em < http://www.tim.com.br/rs/para-voce/planos>. Acesso em 20 de nov. de 2017. 68
SILVA, L.N.,LEURQUIN, P.,BELFORT, A; Os acordos de zero-rating e seus impactos concorrenciais:
os limites da regulação da neutralidade de rede; 2016. Revista de Direito da Concorrência, Vol. 4, nº 1, maio
2016. p. 40. 69 EXAME, loc. cit.
44
Um exemplo da modalidade patrocinada ocorre nos Estados Unidos da América,
onde a empresa AT&T oferece abertamente a possibilidade de provedores de conteúdo e
aplicações pagarem para ter o acesso a eles isentado.70 No entanto, em nível mundial, nem
sempre a modalidade patrocinada se exterioriza neste formato de oferta pública.
O ZR tende a ser visto pelos usuários como algo positivo: afinal, a impressão é de que
se está obtendo algo a custo reduzido ou nulo. Ademais, entusiastas consideram a iniciativa
como mais um passo em direção a um globo completamente online. Exemplo disso é a
iniciativa Free Basics,71 encabeçada por Mark Zuckerberg, que firmou parceria entre a rede
social Facebook e seis empresas provedoras de conexão. A iniciativa fornece hoje acesso
gratuito à mídia social e outros conteúdos selecionados em 60 países, sendo 26 deles na
África. Zuckerberg afirmou ser o objetivo do projeto levar a conexão para o mundo todo, o
que seria um direito humano.72
Contudo, a estratégia comercial encontra diversos críticos, que alegam que ela distorce
a concorrência, limita a liberdade de escolha dos usuários e afeta a inovação e a liberdade de
expressão. Ademais, principalmente em países extremamente pobres, alega-se que o ZR
poderia minar a própria compreensão do que a internet realmente é ou pode ser, ao entregar ao
usuário sob o rótulo de "internet grátis" uma experiência limitada e passiva.
Os argumentos serão melhores analisados de acordo com sua pertinência temática.
Para qualquer juízo, consideramos que a compreensão econômica do assunto se faz
importante - motivo pelo qual analisaremos tal aspecto no próximo item.
4.2 A ECONOMIA DO ZERO-RATING
4.2.1 A internet como um mercado de dois lados
Para entendermos melhor o aspecto econômico da questão, o conceito de mercado de
duas pontas, ou de dois lados (two-sided market), aparece útil:
70Ver: <https://developer.att.com/sponsored-data>. Acesso em: 22 de nov. de 2017. 71Ver: < https://info.internet.org/en/story/free-basics-from-internet-org/>. Acesso em: 21 de nov. de 2017. 72THE GUARDIAN, "Mark Zuckerberg says connectivity is a basic human right – do you agree?". Janeiro,
2014. Disponível em: <https://www.theguardian.com/global-development/poverty-matters/2014/jan/03/mark-
zuckerberg-connectivity-basic-human-right>. Acesso em: 22 de nov. de 2017.
45
The idea of two-sided markets is simple: an intermediary offers interconnection
services to two (or more) distinct groups of customers, the function of which is to
connect the groups together for purposes of communication and transaction.7374
Este é o caso da provisão de internet:
De um lado, estão os usuários que desejam acessar os serviços existentes na
rede, fazendo downloads. Do outro lado, tais serviços são disponibilizados pelos
provedores de serviços através de uploads que realizam na rede. Também os
usuários podem se conectar com outros usuários, sendo o e-mail o exemplo mais
conhecido. Há também os propagandistas que desejam alcançar a atenção dos
usuários e o fazem via provedores de serviços como o Google. Todos estes agentes
relacionam-se por meio de uma plataforma, no caso, a rede física de
telecomunicações que suporta o tráfego da internet.
A característica econômica importante dos mercados de duas pontas é que há
externalidades positivas passíveis de serem apropriadas por todas as pontas. No caso
da internet, quanto mais usuários finais, mais valor a plataforma terá para os
provedores de serviços e quanto mais serviços estes últimos ofertarem, mais valor é
agregado à rede para os usuários finais.75
Não só as externalidades positivas podem ser aproveitadas pelas pontas, mas também
as negativas podem impactá-las. No caso da internet, um congestionamento causado pelos
usuários certamente afetaria também os provedores de conteúdo, por exemplo.
Outros casos de mercados neste formato são os de cartões de crédito e de sites de
vendas, como o Ebay. No primeiro caso, quanto mais lojas aceitam determinada bandeira,
tanto mais tendem os usuários a adotá-la; da mesma forma, quanto mais usuários adotam uma
bandeira, tanto mais tendem as lojas a aceitá-la. O mesmo ocorre em sites que intermediam
compradores e vendedores online: o maior número de vendedores no site atrai mais
compradores e vice-versa. Assim, vemos que, neste tipo de mercado, o intermediário
geralmente tem o interesse de aumentar a adesão de ambos os lados.
No mercado da internet, os provedores de conexão seriam o referido intermediário.
Para eles, portanto, haveria, sob esta abordagem, um interesse a longo prazo de aumentar
tanto o número de usuários quanto de conteúdos e aplicações. No entanto, observamos que,
em situações de integração vertical ou de afiliações comerciais com grupos empresariais de
73
FAULHABER, Gerald. Economics of Net Neutrality: A Review . Communications & Convergence Review, v.
3, n. 1, 2011. p. 12. Disponível em : <http://assets.wharton.upenn.edu/~faulhabe/Econ_Net_Neut_Review.pdf> .
Acesso em: 22 de nov. de 2017. 74A ideia de um mercado de dois lados é simples: um intermediário oferece serviços de interconexão para dois
(ou mais) grupos distintos de consumidores, a função do qual é conectar os grupos juntamente para propósitos de
comunicação e transação. (Tradução nossa) 75FAGUNDES, Jorge; MATTOS, César; ROCHA, Maria Margarete da; LIMA, Marcos; NISHIJIMA, Marislei.
Nota técnica: economia da neutralidade de rede. Revista do IBRAC, Vol.24, 2013.
46
aplicações e conteúdos, tal interesse poderia ser alterado, ao menos no curto prazo, a depender
do nível de competição do mercado.
Segundo Rochet e Tirole,76 essencial característica de um mercado de dois lados é o
fato de a distribuição da cobrança entre os dois lados (a estrutura do preço) interferir no
volume de uso total da plataforma. Assim, por exemplo, consideremos que um intermediário
cobra uma taxa "tA" de um lado e "tB" do outro, sendo "tT" a soma do total entre as duas:
tT= tB + tA
Se o volume total de uso da plataforma é influenciado com mudanças de tB enquanto tT
é mantido constante, estaríamos diante de um mercado de dois lados, conforme os autores. Ou
seja, nesta configuração de mercado, não só quanto é cobrado importa, mas também de quem.
A estrutura do preço, por conseguinte, não é neutra neste tipo de situação.
Não só tal estrutura não é neutra, como também varia conforme o mercado. Como
observa Faulhaber,77 a estratégia de precificação depende principalmente de duas
elasticidades de demanda: (i) a elasticidade de demanda para cada grupo em relação à
mudança de preços e (ii) a elasticidade de demanda para cada grupo em relação a mudanças
no tamanho do outro grupo. Ou seja, não havendo restrições legais de cobrança, o incentivo
do intermediário seria trabalhar caso a caso com tais variáveis de modo a obter o maior ganho
possível.
4.2.2 Três questões econômicas relevantes
Entendido qual seria, em regra, o interesse e a estratégia comercial do intermediário,
cabe analisarmos quais são os interesses econômicos relevantes para a sociedade, para que
posteriormente analisemos estratégias de políticas públicas. Novamente partiremos de
Faulhaber,78 para quem há três questões de eficiência econômica importantes em relação ao
debate sobre a internet.
76ROCHET, J.C e TIROLE, J. Two-Sided Markets: An Overview. Março, 2004. p.10-11. Disponível em:
< http://web.mit.edu/14.271/www/rochet_tirole.pdf>. Acesso em: 22 de nov. de 2017. 77
FAULHABER, Gerald. Economics of Net Neutrality: A Review . Communications & Convergence Review, v.
3, n. 1, 2011. p. 14. Disponível em : <http://assets.wharton.upenn.edu/~faulhabe/Econ_Net_Neut_Review.pdf> .
Acesso em: 22 de nov. de 2017. 78Ibidem, p. 7-8.
47
A primeira questão é a chamada pelo referido autor de eficiência estática, que é
pautada em modelos econômicos padrões que analisam se há perdas de eficiência em um
mercado por conta de falhas de mercado, como monopólios ou externalidades. Neste trabalho,
traduziremos ela como custo de acesso e qualidade da experiência.
Os modelos padrões de eficiência citados acima por vezes não abordam a segunda
questão, que é a de eficiência do investimento. Os investimentos feitos pelas empresas são
extremamente importantes, na medida em que eles determinam se o segmento irá se
desenvolver de maneira adequada. Observamos que tal questão é especialmente importante
em países como o Brasil, em que o custeio da infraestrutura de rede dá-se sobretudo pela ação
privada. Assim, o segundo fator a ser levando em conta é o impacto no investimento.
A terceira questão é a de eficiência inovativa. Principalmente influenciados por
Schumpeter, economistas acreditam há décadas que a inovação é um dos maiores fatores de
crescimento econômico. No entanto, não há um modelo padrão para a inovação e isso cria
dificuldades para incorporar tal fator no corpo da análise econômica. Os economistas têm
assumido que os incentivos para inovar são baixos, já que os inventores e inovadores têm em
geral dificuldade de capturar a renda de suas criações (esta é uma das justificativas
econômicas para as leis de propriedade intelectual). Em algumas circunstâncias, os custos da
inovação podem até superar os benefícios, como em competições de mercado em que só o
inovador melhor sucedido aufere todos os lucros. Por tais motivos, há economistas que
defendem ser necessária a intervenção do governo nesta seara para corrigir os incentivos.
a) Custo e qualidade da experiência
No item 2.3, ao expormos algumas críticas ao postulado da neutralidade de rede,
registramos que os custos com a rede física da internet são praticamente bancados pelos
usuários, posto que os provedores de conteúdo e aplicações não arcam com nenhum custo
pelo aumento da conexão por eles estimulados. O Facebook e o Netflix, por exemplo, em uma
situação sem qualquer acordo com as operadoras, apenas pagam pelo acesso de seus vários
computadores à internet - isto é, como usuários, não pagando nada a mais pelo alcance aos
internautas e os consequentes acessos a seus conteúdos, os quais afetam a capacidade física de
rede. Desta maneira, se a fornecedora de rede interliga dois papéis - o de fornecer conteúdos e
48
aplicações e o de acessar, mas só o segundo é cobrado, conclui-se que este arcará com a maior
parte dos custos do negócio79.
O ZR, em suas ambas modalidades, pode servir de estratégia comercial para manter os
clientes atuais adimplentes80 ou para angariar mais clientes através da diferenciação de
serviços. Isto é: se a empresa conseguisse discriminar preços e diferenciar produtos de modo a
atingir os "consumidores marginais" - os que têm menos disposição ou capacidade para pagar
- ela poderia gerar mais receitas. O ZR seria uma discriminação de preço competitiva, algo
saudável na economia81. A estratégia ainda pode estimular o consumo de dados, já que, ao
acessar alguns conteúdos isentos, como o Facebook, o usuário se depara e eventualmente clica
em diversos links externos, os quais, por sua vez, consomem a franquia comprada.
No ZR patrocinado, há uma entrada de receita para as operadoras ainda mais certa do
que as referidas acima. Nesta modalidade, provedores de conteúdo e aplicações bancam frente
aos provedores de conexão o custo de acesso aos seus endereços eletrônicos.
Estes acréscimos de receita, na opinião de autores pró-ZR, possibilitariam uma
reestruturação do preço de uso da plataforma. Assim, em um mercado com competição
razoável, uma hipótese é que tal redução seria repassada aos usuários; do contrário, a
concorrência poderia fazê-lo e captar clientes. Note-se que, mesmo que uma diminuição
nominal do preço não ocorresse, com a sua manutenção, estar-se-ia pagando a mesma quantia
por um pacote de dados maior, significando uma diminuição do custo per megabyte para o
usuário.
No caso do ZR gratuito, a receita adicional da empresa não fica tão evidente quanto
nos casos patrocinados. O aumento de uso das redes poderia ser compensado pelo
alargamento da base de usuários, conforme explicado acima, ou mesmo por receitas
publicitárias advindas dos conteúdos e aplicações próprios.
Diversos autores, como Bárbara Van Schewick82, desdenham que o ZR geraria uma
redução de preço para o usuário. Há ainda quem considere que o ZR pode inclusive aumentar
a tarifa do usuário. Nesta direção:
79
FAGUNDES, Jorge; MATTOS, César; ROCHA, Maria Margarete da; LIMA, Marcos; NISHIJIMA, Marislei.
Nota técnica: economia da neutralidade de rede. Revista do IBRAC, Vol.24, 2013. p. 9. 80No Brasil, por exemplo, o ZR só tem sido concedido pelas operadoras a usuários adimplentes de planos pós-
pagos ou com crédito positivo no plano pré-pago. 81EISENACH, Jeffrey A.. The Economics of Zero Rating. Nera Economic Consulting. Março, 2015. p. 6.
Disponível em: <http://www.nera.com/content/dam/nera/publications/2015/EconomicsofZeroRating.pdf .>.
Acesso em: 22 de nov. de 2017. 82SCHEWICK, Barbara Van. Network Neutrality and Zero-rating. Contribuição à FCC. 2014. p. 3. Disponível
em: <https://ecfsapi.fcc.gov/file/60001031582.pdf>. Acesso em: 22 de nov. de 2017.
49
If price discrimination such as zero - rating is not banned, mobile operators have an
incentive to favour their own services by zero-rating the usage (selling gigabytes at
zero cost) while collectively overpricing the gigabyte usage of all other internet
services.83 84
A afirmação se embasa no relatório da Digital Fuel sobre competitividade no acesso à
internet mobile na Europa em 2014:
The most alarming finding by far was sharp hikes in the price of mobile internet
usage (€/Gigabyte) by operators that have launched during 2014 own zero-rated
data-hungry video services such as on-demand film stores and mobile TV. Similarly
a European operator that has launched zero-rated unlimited YouTube access over 4G
has at the same time tripled the price of open mobile internet usage (€/Gigabyte).85 86
O relatório da Comissão Europeia sobre ZR considerou os achados supracitados
especulativos e pouco rigorosos87. Cabe ressaltar que o órgão europeu, embora não tenha
achado evidências de aumento de preços por conta da ZR, ressaltou a necessidade de
transparência e controle contra propagandas enganosas, posto que ofertas de planos ZR
poderiam seduzir os clientes, ainda que com preços mais caros do que planos comuns88.
Quanto à experiência do usuário, há hipóteses em que ela não parece prejudicada, em
nossa visão. Em falando-se de experiência, falamos basicamente da amplitude do acesso
(número de sites) e da velocidade do mesmo. No ZR patrocinado dentro de um pacote de
dados, por exemplo, o acesso à internet segue da mesma maneira de sempre. O internauta não
tem acesso a menos sites, tampouco menos velocidade. Com o ZR gratuito, a situação
também não se altera no aspecto do alcance e da velocidade da conexão, a despeito dos
possíveis efeitos adversos acima apontados.
83
DROSSOS, Antonio. The Real Threat to the Open Internet Is Zero-Rated Content, World Wide Web
Foundation, 2015. Disponível em:
<http://research.rewheel.fi/downloads/Webfoundation_guestblog_The_real_threat_open_internet_zerorating.pdf
>. Acesso em: 22 de nov. de 2017. 84"Se a discriminação de preço tal como a do zero-rating não é banida, as operadores de celulares têm um
incentivo a favorecer seus próprios serviços isentando o uso (vendendo gigabytes a zero custo), enquanto
sobretaxam coletivamente o uso do gigabyte de todos os outros serviços da internet" (Tradução nossa) 85
DIGITAL FUEL MONITOR. EU28 & OECD mobile internet access competitiveness report Q4 2014.
Helsinki, 2014. Disponível em: < http://research.rewheel.fi/insights/2014_nov_premium_q4_update/>. Acesso
em: 22 de nov. de 2017. 86"O achado mais alarmante de longe foram as acentuadas subidas no preço de uso da internet móvel
(€/Gigabyte) por operadoras que tinham lançado durante 2014 seus próprios serviços de vídeo isentados e
pesados, como filmes a demanda e TV móvel. Similarmente, uma operadora europeia que lançou acesso
ilimitado e isento para acesso do Youtube pelo 4G ao mesmo triplicou o preço de uso da internet móvel aberta
(€/Gigabyte)" (Tradução nossa) 87Comissão Europeia (Org.). Zero-rating practices in broadband markets. Bruxelas: Dotecon Ltd, 2017. p. 120.
Disponível em: <http://ec.europa.eu/competition/publications/reports/kd0217687enn.pdf>.
Acesso em: 22 de nov. de 2017. 88Ibidem, p. 121.
50
Um caso diferente é quando ocorre o ZR patrocinado fora de um pacote de dados: isto
é, quando a isenção a determinado site ou aplicação é dada sem que haja um pacote de dados
com conexão livre a outros sites, ou mesmo em uma situação em que o pacote para acessos
exteriores aos isentados é muito baixo, de modo a engessar o usuário na área zero-rated.
Neste caso, a amplitude do acesso é atingida.
Alguns autores argumentam na linha de que um acesso limitado é melhor que nenhum
acesso. Ramos sintetiza tal visão:
Por essa perspectiva, usuários de planos zero-rating estão sendo beneficiados com a
possibilidade de acessar o seu conteúdo favorito gratuitamente, o que significa que a
internet é, para esse usuário, mais valiosa e útil. Especialmente no caso de redes
sociais e sites de conteúdo educativo, dar a usuários a capacidade de acessarem esses
conteúdos gratuitamente pode expandir suas capacidades89, promover a participação
social e política90 e dar acesso a mais informação e conhecimento.
Outros, todavia, consideram que um acesso limitado pode ser altamente prejudicial, por
nublar todas as potencialidades que a rede oferece:
The pragmatists, and the carriers, say that it is worth allowing poorer populations
around the world (now barred by the high cost of Internet access) to see part of the
Internet. But the cost of such services is the future of the Internet. Those users may
never move to “real” Internet access, satisfied with their “free” access to a walled
garden of chosen services.91 92
Neste sentido, diante de uma experiência estreita e menos ativa, os usuários poderiam
até não compreender quão amplas e dinâmicas são as possibilidades da rede.
b) Incentivo ao investimento
Sobretudo as opiniões pró-ZR, abordam a questão do investimento. No setor de
provisão de conexão, conforme coloca Jeffrey Eisenach,93 os investimentos tendem a ser
grandes em infraestrutura física e R&D (Research and development), e eles em boa parcela
89
A utilização dessa expressão aqui é uma referência direta ao conceito de capacidade de Sen (1999). 90
Uma série de trabalhos tem enfatizado a importância de redes sociais para o aperfeiçoamento da democracia.
Nesse sentido, ver Earl e Kimport (2013) e Mackinnon (2012). 91"Os pragmáticos e as transportadoras dizem que é digno permitir a populações mais pobres ao redor do mundo
(hoje barradas pelo alto custo do acesso à internet) ver parte da internet. Mas o custo de tais serviços é o futuro
da internet. Tais usuários podem nunca se mover para o real acesso à Internet, satisfeitos com o seu "livre"
acesso a um jardim murado de serviços escolhidos" (Tradução nossa) 92CRAWFORD, Susan. Zero for Conduct. 2015. Disponível em: <goo.gl/HnTMEq>. Acesso em: 15 dez. 2017. 93EISENACH, Jeffrey A.. The Economics of Zero Rating. Nera Economic Consulting. Março, 2015, p.4.
Disponível em: <http://www.nera.com/content/dam/nera/publications/2015/EconomicsofZeroRating.pdf.>.
Acesso em: 22 de nov. de 2017.
51
independem da quantidade de usuários. Assim, com este alto custo fixo de entrada, faz-se
importante que as empresas tenham meios flexíveis para angariar clientes, gerar receita e
abater tais valores; do contrário, poder-se-ia desincentivar o investimento.
Como já discutido anteriormente, o ZR potencializa a receita das operadoras.
Concluindo, o argumento aqui é que o ZR forneceria maiores possibilidades de receita às
operadoras de conexão, o que aumentaria o valor econômico da rede, incentivaria o
investimento no setor e se reverteria em bem-estar para o consumidor no longo prazo.
Em contraste a essa visão, opositores do ZR, como Bárbara Van Schewick94,
argumentam que não há nenhuma prova, nem garantia para a afirmação de que a prática se
reverteria em menores preços ao consumidor ou investimentos infraestruturais, sendo a
suposição dependente do nível de competição do mercado e, por tal, altamente especulativa.
Por outro lado, um experimento da FCC, na visão de Faulhaber, fornece irrefutável
evidência empírica a respeito da sensibilidade dos investimentos em relação a concepções
estreitas da neutralidade de rede:
The FCC’s own actions have provided the irrefutable empirical evidence that
imposing network neutrality regulation on a telecommunications asset dramatically
decreases its value, and thus decreases incentives to invest . In March 2008, the FCC
conducted what amounted to a natural experiment in network neutrality regulation:
It held an auction for the 700 MHz spectrum in which it encumbered the winner of
the C block to operate under open access network neutrality regulation. No such
regulation was imposed on the A and B blocks of the same 700 MHz spectrum. A
perfect natural experiment of the effect on the value of a telecoms asset of imposing
network neutrality regulation. The result? Verizon paid $0.76/MHz-Pop for the
encumbered spectrum; the mean winning bid price of the A and B block spectrum
was $1.89/MHz-Pop (Levin, 2008).95 96
Sem o intuito de encerrar tal debate, cremos que a experiência é válida e sugere que
restrições aos modelos de negócios pode de fato desincentivar o investimento na área. A
ausência de restrições, contudo, pode por si só não garantir investimento e preços baixos, a
94
SCHEWICK, Barbara Van. Network Neutrality and Zero-rating. Contribuição à FCC, 2014. Disponível em:
<https://ecfsapi.fcc.gov/file/60001031582.pdf>. Acesso em: 22 de nov. de 2017. 95
FAULHABER, Gerald e FARBER,David. “The Open Internet: A Customer-Centric Approach”. International
Journal of Communication 4, 2010. p. 302-342, p. 331. Disponível em:
<http://ijoc.org/index.php/ijoc/article/viewFile/727/411>. Acesso em: 22 de nov. de 2017. 96"As próprias ações da FCC forneceram a irrefutável evidência empírica de que impor regulação de neutralidade
de rede em um ativo de telecomunicações diminui dramaticamente seu valor, e assim diminui os incentivos para
investir. Em Março de 2008, a FCC conduziu o que equivaleu a um experimento natural em regulação de
neutralidade de rede: ela efetuou um leilão pelo espectro 700 MHz no qual ele onerou o vencedor do bloco C a
operar sob regulações de neutralidade acesso aberto. Tal regulação não foi imposta nos blocos A e B do mesmo
espectro 700 MHz. Um perfeito experimento natural do efeito no valor de um ativo de telecomunicação de impor
regulações de neutralidade de rede. O resultado? A Verizon pagou $0.76/MHz-Pop pelo espectro onerado; o
preço médio de lance ganhador dos blocos de espectro A e B foi $1.89/MHz-Pop." (Tradução nossa)
52
depender do nível de concorrência do setor. Naturalmente, isto exige maiores estudos e
análises casuísticas.
c) Inovação
Vimos que, na visão de muitos economistas, a configuração de internet que prevaleceu
até então onera financeiramente o usuário e protege os provedores de conteúdos e aplicações.
De fato, vários autores reconhecem que esta configuração possibilita um subsídio aos
provedores de conteúdo e aplicações. Dentre eles, autores que defendem ferrenhamente a
neutralidade de rede, como Tim Wu.97 Para eles, esta ausência de taxas facilita que um
usuário se transforme em um provedor de conteúdo ou aplicação. O consequente subsídio
seria válido em nome da inovação e da criação, que teriam fortes externalidades positivas e
características de bens públicos (que determinariam uma produção abaixo do ótimo
econômico sem tal incentivo). Ao fim e ao cabo, tratar-se-ia de "um subsídio ao criativo e
empreendedor às expensas do passivo e consumidor".
Neste sentido, o ZR poderia desincentivar novas produções de aplicações e conteúdos.
Afinal, se tais serviços já encontram altas taxas de insucesso em uma internet com condições
igualitárias, qual seriam as perspectivas doutra maneira? Ao competirem com concorrentes a
cujo acesso é gratuito, o sucesso ficaria ainda mais distante, o que inibiria novos negócios. O
ZR, para seus opositores, oferece às operadoras de conexão a possibilidade de escolher os
ganhadores e perdedores da Internet, o que romperia com a lógica da competição na rede. O
sucesso dos conteúdos e aplicações dependeriam, assim, mais de sua afiliação comercial do
que de sua aptidão para atender ao usuário.
Críticos do ZR pontuam que a prática é altamente mercadológica e não tende a
favorecer conteúdos educacionais ou produções sem fins lucrativos. Neste sentido, Van
Schewick, ao analisar o programa "Binge On" da empresa T-Mobile, encontra alguma
evidência e conclui que o ZR mina o potencial da internet enquanto espaço de expressão livre:
The forty-two providers currently in Binge On deliver mostly commercial video
entertainment – not user-generated, educational or non-profit video.If T- Mobile
continues to favor entertainment from commercial providers over other content, it
turns the mobile Internet offered by T-Mobile into an optimal platform for
97LEE, Robin S.; WU, Tim. Subsidizing Creativity through Network Design: Zero-Pricing and Net Neutrality.
Journal Of Economic Perspective. Estados Unidos da América, p. 61-76. 2009. Disponível em:
<http://www.people.fas.harvard.edu/~robinlee/papers/NetNeutrality.pdf>. Acesso em: 22 de nov. de 2017.
53
commercial entertainment at the expense of all other speakers. This undermines the
potential of the Internet as a democratic space for free expression.98 99
A base empírica existente permite-nos afirmar outro aspecto do ZR: ele tende a
favorecer aplicações e conteúdos de terceiros já populares entre os usuários, inclusive
isentando algumas vezes mais de uma aplicação com o mesmo perfil comercial100. Isto traz à
tona o fato de que os provedores de conexão planejam sua política de ZR com base no que os
consumidores desejam. Neste sentido, não haveria conflito com o interesse do usuário.
Por um lado, portanto, não há interesse dos provedores de conexão em afetar a
competição e a inovação no mercado de conteúdos e aplicações, pois isso diminui o valor
atual e futuro da rede para os usuários. Por outro lado, há ocasiões especiais em que outras
variáveis poderiam exercer pressões adversas nesse interesse.
Uma destas situações é em casos de ZR da operadora em favor de aplicações e
conteúdos próprios. Neste caso, há possível interesse das operadoras em afetar a competição
do mercado. Tal situação ocorre muito na atualidade, inclusive no Brasil, onde, conforme
referimos acima, a Claro oferece ZR para sua aplicação "Claro Músicas", colocando-a em
vantagem em relação ao Spotify, Deezer e outras aplicações existentes que fornecem
conteúdo de áudio.
Como já referido, a base de dados para mensurar o real impacto do ZR no mercado e
na inovação ainda é muito restrita. No entanto, é razoável afirmar que o tipo de oferta ZR e
mesmo o tamanho dos pacotes de dados de cada país devem ser variáveis importantes nesta
dinâmica. Neste sentido, é de se esperar também que ZR de aplicações com baixo consumo de
dados, como o Messenger ou o Instagram, tenha menos consequências que o ZR de aplicações
pesadas como streaming de vídeos. Da mesma forma, em países com altos limites de dados,
como na Suécia ou na Finlândia, é mais difícil de o ZR afetar a escolha do consumidor em
98VAN SCHEWICK, Barbara. T-Mobile’s Binge On Violates Key Net Neutrality Principles. Stanford, 2016. p. 4.
Disponível em: <https://cyberlaw.stanford.edu/downloads/vanSchewick-2016-Binge-On-Report.pdf>. Acesso
em: 28 de nov. de 2017. 99"Os quarenta e dois provedores atualmente no Binge On oferecem majoritariamente vídeos comercias de
entretenimento - não vídeos gerados pelo usuário, educacionais, ou sem fins lucrativos. Se a T-Mobile continuar
a favorecer entretenimento de provedores comerciais sobre outro conteúdo, isso torna a internet móvel oferecida
pela T-Mobile uma ótima plataforma para entretenimento comercial às custas de todos as outras vozes. Isto mina
o potencial da internet enquanto espaço democrático para a livre-expressão." (Tradução nossa) 100Neste sentido, ver:
(a) Comissão Europeia (Org.). Zero-rating practices in broadband markets. Bruxelas: Dotecon Ltd, 2017. p.
129. Disponível em: <http://ec.europa.eu/competition/publications/reports/kd0217687enn.pdf>. Acesso em: 28
de nov. de 2017; (b) RAMOS, Pedro Henrique Soares, Towards a Developmental Framework for Net Neutrality:
The Rise of Sponsored Data Plans in Developing Countries. p. 11. In: TELECOMMUNICATIONS POLICY
RESEARCH CONFERENCE, 2014. Disponível em: <https://ssrn.com/abstract=2418307>. Acesso em: 28 de
nov. de 2017.
54
relação à operadora ou aos conteúdos e aplicações do que em países com menores pacotes de
dados.101
4.3 NO BRASIL: MPF X CLARO, TIM, OI E VIVO
Analisemos o único registro de denúncia do ZR no Brasil. Em 3 de junho de 2016,
ofereceu o Ministério Público Federal (MPF) representação em face das operadoras Claro,
Tim, Oi e Vivo, que, em conjunto, detêm quase 100% do mercado nacional de telefonia
móvel. As acusações eram várias: quebra do tratamento isonômico dos pacotes de dados,
distorção da competição, desestímulo à inovação, distorção da liberdade de expressão e
criação de incentivos nefastos que levariam ao aumento de preços para o consumidor.102
O MPF estima em sua representação que 253,6 milhões de usuários sejam potenciais
usuários de planos ZR no Brasil. O parquet ministerial cita, ainda, alguns exemplos da
prática, tais como o plano "Acesso Facebook, Twitter e Whatsapp", da Claro, em que os
referidos conteúdos não seriam descontados da franquia de dados. A Tim e a Oi são citadas
com modelos semelhantes, com seus planos "Controle Whatsapp" e "Facebook e Twitter
Grátis", respectivamente. A Vivo, por sua vez, é referida com um modelo um pouco diferente,
em seus pacotes "Vivo Internet Redes Sociais". Através destes, a operadora venderia pacotes
de megabytes exclusivamente destinados a tais aplicações a um preço mais barato que os
pacotes neutros. O MPF registra também que o Facebook e o Whatsapp, aplicativos isentados,
pertenceriam ao mesmo grupo econômico e seriam, respectivamente, o primeiro e o segundo
aplicativos mais baixados do mundo.
Ainda que diante do CADE, cuja competência é concorrencial, a representação opinou
pela infringência, por parte das operadoras, da neutralidade de rede prevista no Marco Civil.
Também sob a ótica do direito do consumidor, entendeu o MPF ser o ZR uma vulneração da
função social do contrato, por incutir no preço pago pelo consumidor comum o custo das
isenções. A tentativa das operadoras, à época, de cobrança de franquia de dados para banda
larga fixa também foi usada de argumento pelo para convencer o Conselho de que práticas
lesivas ao consumidor estavam em rota.
101Comissão Europeia (Org.). Zero-rating practices in broadband markets. Bruxelas: Dotecon Ltd, 2017. p. 11.
Disponível em: <http://ec.europa.eu/competition/publications/reports/kd0217687enn.pdf>. Acesso em: 28 de
nov. de 2017. 102A representação do Ministério Público Federal está disponível em: <goo.gl/e4biE6>. Acesso em: 28 de nov.
de 2017.
55
No plano do Direito Concorrencial, foco da representação, esta argumentou que a
referida prática falseava a concorrência e gerava a dominação artificial do mercado. Subsumiu
ainda os planos das operadoras ao disposto no § 3° do art. 36 da nossa lei antitruste:
"III - limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado; IV - criar
dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa
concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços,(.) X -
discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação
diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de
serviço (...)"
O MPF citou precedente do CADE no caso Schincariol versus Ambev para sustentar
que "não é necessário que haja fechamento completo do mercado para que uma conduta seja
reputada anticompetitiva", sendo o aumento de custos rivais por si só já digno de repressão
antitruste. Para a representação, a distinção entre a modalidade patrocinada e gratuita também
era irrelevante, postos que de qualquer maneira restaria a prejudicada a livre concorrência,
com criação de barreiras à entrada e prejuízo à inovação. A conquista de mercado decorrente
da prática não seria em razão de ganhos de eficiência, não sendo ela, portanto, recepcionada
pela nossa ordem econômica. Além disso, o parquet ministerial reservou um item de sua
manifestação para tratar da potencial disseminação da conduta, caso permitida.
A representação questionou também a ausência de racionalidade econômica na
conduta (presumindo um ZR gratuito, provavelmente), já que a medida comportaria perda de
receitas e não haveria "almoço grátis". Assim, insinuou o MPF que, em um mercado
oligopolizado pelas quatro operadoras, o ZR significaria aumento de preços ao consumidor.
Por fim, a representação da lavra de Lafayete Petter trouxe exemplos internacionais de
decisões contra o ZR, notadamente do Chile, Noruega, Áustria, Holanda, Alemanha e
Eslovênia.
Houve no processo inúmeras manifestações: das rés, da ANATEL, de empresas
interessadas - tais como Facebook, Google e Linkedin - e de associações da sociedade civil,
como a Proteste. O relatório completo fugiria ao escopo deste trabalho, motivo pelo qual
passaremos diretamente para a análise da Nota Técnica 34,103 a qual sugeriu o arquivamento
do inquérito e foi acolhida integralmente pela Superintendência Geral (SG) no despacho nº
1275/2017.104
103BRASIL, CADE. Nota técnica 34/2017. Setembro, 2017. Disponível em: <goo.gl/2x5ogx>. Acesso em: 28 de
nov. de 2017. 104BRASIL, CADE. Despacho nº 1275/2017. Disponível em < goo.gl/9s96Lt>. Acesso em: 28 de nov. de 2017.
56
A nota técnica pontua que foi constatada a existência no Brasil de dois tipos de ZR,
quais sejam, tarifação zero por escolha própria da operadora e dados patrocinados.
Inicialmente, propõe-se o documento a analisar a questão da neutralidade de rede, ainda que
alienígena à competência do CADE.
Nesta seara, a visão adotada pela SG é de conformidade com as manifestações da PFE,
da ANATEL e do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Para este
último órgão, haveria interpretação indevidamente ampla do princípio da neutralidade de rede
pelo MPF. A discriminação/priorização de que trata o princípio seria relacionada a questões
de tráfego de rede, não a questões comerciais. Vantagens econômicas que estimulem o uso de
determinadas aplicações pelos usuários não estariam aí enquadradas.
A nota faz ainda um panorama internacional, argumentando que não havia tratamento
uniforme à questão e que os efeitos da prática ainda eram desconhecidos, o que exigiria
cautela. Aliás, sobre estes efeitos, a nota traz investigação105 realizada pelas pesquisadoras
Roslyn Layton e Monica Elaluf-Calderwood acerca do cenário no Chile, Holanda e Eslovênia
- países citados na representação como exemplos de banimento do ZR. Segundo as
pesquisadoras, não foi possível encontrar, em nenhum dos três países, evidências quanto à
afirmação de que, diante de uma oferta de zero rating, os usuários não iriam além do
conteúdo de acesso gratuito. Tampouco foi possível encontrar evidências de que haveria
fechamento a outros conteúdos por parte das operadoras que aplicam acesso gratuito a
determinados conteúdos. Conclui a nota que as condutas denunciadas não violam o Marco
Civil da Internet, nem o Decreto 8.771/2016.
A nota analisa então a conduta enquanto infração econômica à luz da Lei
12.529/2011. Nesta seara, a tese de defesa das rés foi acolhida. Diz a nota que práticas
verticais, como a discriminação de preços ou de condições de contratação, não são,
necessariamente, ilícitos antitrustes, mas sim comportamentos normais no mercado,
motivados por várias razões de ordem prática e econômica, sendo, muitas vezes, conduta
legítima. Registra ainda a análise que, de acordo com as normas do SBDC, as restrições
verticais são anticompetitivas quando implicam a criação de mecanismos de exclusão dos
rivais, seja por aumentarem as barreiras à entrada de outras empresas, seja por elevarem os
custos dos competidores; ou ainda quando produtores, ofertantes ou distribuidores - com
105
LAYTON, Roslyn e ELALUF-CALDERWOOD, Silvia Monica, Zero Rating: Do Hard Rules Protect or
Harm Consumers and Competition? Evidence from Chile, Netherlands and Slovenia. Agosto, 2015. Disponível
em <https://ssrn.com/abstract=2587542>. Acesso em: 05 de dez. de 2017.
57
significativo poder de mercado - impõem restrições sobre os mercados relacionados
verticalmente ao longo da cadeia produtiva.
A nota preceitua três etapas para a análise concorrencial de uma conduta: (1) sua
delineação, (2) a definição de seu mercado relevante e análise se há posição dominante e (3)
análise custo-benefício. Apenas com as presenças de posição dominante e impactos líquidos
negativos poder-se-ia falar em infração econômica.
Neste sentido, já delineada a conduta, a análise técnica usa-se dos seguintes dados da
ANATEL para concluir que há presença de poder dominante das rés no mercado de telefonia
móvel:
Figura 2: Market share por operadora, Brasil, 2008 a 2015.
Fonte: BRASIL. ANATEL. Manifestação no Inquérito Administrativo n° 08700.004314/2016-71.
Interessante observar que a análise técnica rejeitou a alegação da Oi. Esta em sua
manifestação argumentou não haver presença de poder dominante, posto que o mercado
relevante em tela abrangeria também o mercado de banda larga fixa, já que os aparelhos
mobile bem podem se conectar a redes wi-f, o que diminuiria o market share da empresa.
Usando-se do Herfindahl-Hirschman index (HHI), corrente índice medidor de
concentração de mercado, a ANATEL encontrou pontuação um pouco abaixo dos 2500
pontos. A análise pondera que embora isso pudesse sugerir um mercado de telefonia móvel
moderadamente concentrado no Brasil, não se poderia desconsiderar que se trata de um
segmento econômico altamente intensivo em capital, o que tornaria tal dado relativo. Nesta
58
direção, considera a nota que há uma concentração do mercado em 4 grandes players e que
condutas discriminatórias de um desses agentes poderia sim prejudicar a concorrência no
mercado verticalmente relacionado.
O veredito técnico então analisa brevemente o mercado de conteúdos e aplicações.
Pondera-se que tal mercado quase não tem barreiras à entrada, sendo o desenvolvimento e
lançamento de tais serviços relativamente rápidos (cita-se exemplo do Whatsapp, cuja
primeira versão foi desenvolvida em 6 meses), além de ser extremamente disruptivo e com
potencial de crescimento inquestionável. O caráter multi-homing do mercado também foi
frisado: muito comumente, utilizam-se os usuários simultaneamente de mais de uma
aplicação/conteúdo com a mesma funcionalidade. Ainda que com todas estas constatações,
resguardou assim a análise:
"(...) embora na grande maioria das aplicações, haja evidências de que as barreiras à
entrada sejam baixas, em outros, as participações de mercado são elevadas e pode
haver uma série de dificuldades à entrada, não podendo se concluir que em qualquer
cenário do mercado de conteúdo as empresas que nele atuam não possuem, em
algum grau, posição dominante."106
O relatório passa então a analisar as condutas das rés sob a ótica concorrencial. Quanto
à Vivo, o veredito concluiu que as ofertas de "Pacotes Redes Sociais" da empresa seriam
complementares aos pacotes tradicionais, aos quais os clientes deveriam já estar vinculados.
Ademais, em comparação a outros pacotes complementares, foi entendido que não há
subsídio claro a nenhum provedor de conteúdo ou aplicação, estando o preço por megabyte
condizente com outros pacotes.
Não obstante, a própria empresa assumiu praticar o ZR na modalidade patrocinada
com certos varejistas - tal ZR, no entanto, só seria aproveitado pelo usuário que tivesse
créditos ativos. Ou seja, uma vez findado o pacote de dados, também o ZR ficaria
impossibilitado. Segundo o CADE, isto mostra a racionalidade econômica da conduta, que
seria incentivar o usuário a se manter adimplente e ao mesmo tempo auferir receita extra do
lado dos provedores de conteúdo e aplicações.
A Nota Técnica, na parte que analisa individualmente a conduta das rés, tem diversos
trechos de acesso restrito, o que torna a compreensão um pouco prejudicada. Ainda assim,
depreende-se que a Vivo afirmou em sua manifestação que sequer havia uma relação
contratual com o Facebook, e que não haveria exclusividade em quaisquer dos acordos que a
106BRASIL, CADE. Nota técnica 34/2017. Setembro, 2017. Disponível em: <goo.gl/2x5ogx>. Acesso em: 28 de
nov. de 2017.
59
operadora tinha firmado. Tal documento ainda frisa não haver qualquer verticalização
subjacente às condutas denunciadas pelo MPF em relação à Vivo. Com tais considerações,
afastou-se o potencial anticompetitivo das práticas.
As considerações em relação à Oi, à Tim e à Claro foram parecidas, posto que também
a conduta das mesmas assim eram. Neste sentido, foi frisado, a exemplo da Vivo, que os
benefícios só seriam usufruídos pelos os usuários adimplentes ou com crédito ativo. Neste
sentido, a estratégia do ZR teria como racionalidade econômica o aumento da adimplência e a
possibilidade de atrair novos usuários que se identifiquem com as condições propostas. Todas
as empresas negaram qualquer acordo de exclusividade com provedores de conteúdo e
aplicações, e as empresas Oi e Tim também negaram qualquer remuneração por parte de redes
sociais. Desta forma, a decisão por uma ou outra rede social teria sido feita unicamente com
base na preferência dos usuários. O relatório assumiu a defesa das rés no sentido de que a
preferência do usuário é que determinaria quais aplicativos seriam alvo de uma oferta nos
moldes citados, e não que a escolha do usuário seria influenciada pela gratuidade ofertada no
acesso a determinados aplicativos.
Em conformidade com o exposto, a Nota Técnica 34, adotada integralmente pelo
CADE, concluiu que não havia evidências que provassem a lesão à inovação, tampouco
prejuízo ao consumidor. No caso do acesso patrocinado, o relatório técnico ainda enfatiza a
comparação, levantada pela defesa da Oi, com o modelo 0800 da telefonia, em que a parte que
recebe a ligação recebe o custo o da chamada e é perfeitamente aceito. O arquivamento foi a
medida enfim adotada pelo CADE, reforçando-se que tal ato não obstaria futuros inquéritos
diante de novas evidências.
4.4 ANÁLISE CONCORRENCIAL
Já descrevemos a prática do ZR, demonstrando que ela, em verdade, abrange uma
gama grande de estratégias comerciais e frisando que, no presente trabalho, elegemos as
modalidades gratuita e patrocinada como nosso foco. Dentro de tais modalidades, mostramos
sutilezas importantes, como, na modalidade gratuita, a eventualidade de a aplicação isenta ser
de propriedade da operadora (concentração vertical). Analisamos os aspectos econômicos da
prática, quando registramos também que o ZR deve ter impactos diferentes conforme o peso
em dados da aplicação ou conteúdo isentados, bem como o tamanho dos pacotes locais e o
nível de competição dos mercados. Justamente por o ZR guardar sutilezas, a análise
60
concorrencial do ZR não pode, nem deve fugir à abordagem clássica do direito concorrencial,
que é a posteriori e sempre sujeita à regra da razão, pela qual custos e benefícios sociais serão
sopesados, extraindo-se sempre quais são as consequências líquidas de cada caso concreto.107
Como vimos, essa é a visão atual do CADE. Feitas tais ressalvas, analisaremos, à luz do
direito concorrencial brasileiro, possíveis implicações jurídicas da prática, bem como
eventuais desdobramentos e nuances que podem exigir maior preocupação concorrencial.
4.4.1 O art. 36 da Lei nº 12.529/2011
A lei brasileira de defesa da concorrência trata das infrações econômicas no artigo 36,
que dispõe em seu caput que configurará ilicitude qualquer ato que causar, poder causar ou
intentar causar os efeitos de: limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre
concorrência; aumentar arbitrariamente os lucros do agente econômico; dominar mercado
relevante de bens ou serviços; ou quando se tratar de abuso de poder dominante.
No parágrafo 3º daquele dispositivo há uma lista de condutas que, gerando os efeitos
previstos nos incisos do caput, serão consideradas anticoncorrenciais. A lista, consoante
entendimento pacífico do CADE, não é exaustiva, dada a complexidade do tema e a
multiplicidade dos fatores envolvidos para a análise concorrencial de uma conduta.108
O inciso I do referido artigo, que trata do efeito de limitar, falsear ou de qualquer
forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa, é certamente sujeito de escrutínio
em situações de ZR. Leonor Cordovil assim descreve a livre concorrência e a livre iniciativa:
Livre iniciativa é a permissão ao particular para se lançar na atividade econômica
sem a necessidade de qualquer autorização do Poder Público. A livre concorrência
dela se diferencia por se tratar não da garantia de liberdade de empreendimento, mas
sim do princípio econômico segundo o qual a fixação de preços não deve resultar de
atos de autoridade, mas do livre jogo das forças do mercado109. A livre iniciativa é a
entrada no jogo, a livre concorrência é o jogo em si.110
107
SILVA, L.N., LEURQUIN, P., BELFORT, A; Os acordos de zero-rating e seus impactos concorrenciais:
os limites da regulação da neutralidade de rede. Revista de Direito da Concorrência, Vol. 4, nº 1, maio 2016, pp.
21-56. p. 49. 108BRASIL. CADE. Cartilha do CADE, 2016. p. 14. Disponível em: <http://www.cade.gov.br/acesso-a-
informacao/publicacoes-institucionais/cartilha-do-cade.pdf>. Acesso em: 05 de dez. de 2017. 109CORDOVIL, Leonor. A intervenção do Estado nas telecomunicações: a visão do direito econômico. Belo
Horizonte: Fórum, 2005. p. 75. 110CORDOVIL, Leonor et al. Nova Lei de Defesa da Concorrência comentada: Lei 12.529, de 30 de novembro
de 2011. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 104.
61
No caso do ZR, opositores costumam alegar o efeito de falseamento ou distorção da
livre concorrência. Sobre esta, em termos mais econômicos e específicos, assim descreve o
autor Tércio Sampaio Ferraz Júnior:
A livre concorrência de que fala a atual Constituição como um dos princípios da
ordem econômica (art. 170, IV) não é a do mercado concorrencial do século XIX de
estrutura atomística e fluida. Trata-se, modernamente, de um processo
comportamental competitivo que admite gradações tanto de pluralidade quanto de
fluidez. É este elemento comportamental - a competitividade - que define a livre
concorrência. A competitividade exige, por sua vez, descentralização de
coordenação como base da formação dos preços, o que supõe livre iniciativa e
apropriação privada dos bens de produção.111
Os efeitos de dominar o mercado relevante de bens e serviços e de abusar da posição
dominante também têm destaque nas discussões aqui em tela. Em verdade, tais efeitos
implicam também restrição à livre concorrência e à livre iniciativa. Ocorre que todo domínio
de mercado ou abuso de posição dominante atenta contra a livre concorrência ou a livre
iniciativa ou gera aumento arbitrário de lucros. O inverso, no entanto, não é verdadeiro: nem
todo atentado contra a livre concorrência ou a livre iniciativa se trata de domínio de mercado
ou abuso de posição dominante.112
A interpretação do dispositivo tem distinguido o exercício abusivo do poder de
mercado já existente (inciso IV) da consolidação da dominação de mercado em si, quando
realizada por meios abusivos (inciso II).113 114 Com efeito, o domínio de mercado acima
referido tem um sentido específico, que não o da conquista resultante de processo natural
fundado na maior eficiência em relação aos demais competidores. Trata-se, sim, de dominar
de modo artificial, através de práticas anticoncorrenciais.
Segundo o site oficial do CADE, ocorre posição dominante quando uma empresa ou
grupo de empresas controla parcela substancial de mercado relevante como fornecedor,
intermediário, adquirente ou financiador de um produto, serviço ou tecnologia a ele relativa
de tal forma que seja capaz de, deliberada e unilateralmente, alterar as condições de
111
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A economia e o controle do Estado. O Estado de São Paulo, edição de
04.06.1989 apud CORDOVIL, Leonor et al. Nova Lei de Defesa da Concorrência comentada: Lei 12.529, de 30
de novembro de 2011. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 47. 112FORGIONI, Paula Andrea. Os fundamentos do antitruste. 7. ed. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 2014. p. 139-
140. 113TAUFICK, Roberto Domingos. Nova lei antitruste brasileira: a Lei 12.529/2011 comentada e a análise prévia
no direito da concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 159. 114O mesmo autor registra que a interpretação é duvidosa, já que o inciso só fala em dominação, sem qualquer
predicado. O autor conclui que, em verdade, ocorreu imperícia técnica do Legislador.
62
mercado.115 Tais condições referem-se principalmente ao processo de formação dos preços. Já
o exercício abusivo daquele poder é o uso de tal posição para finalidades anticompetitivas, ato
que pode se exteriorizar de diversas maneiras. Neste sentido, como referido, nossa lei (art. 36,
§3.º) elenca várias hipóteses exemplificativas.
4.4.2 O ZR como restrição vertical da concorrência
As hipóteses mais pertinentes à nossa questão são a dos incisos III, IV e X116, que são
os dispositivos levantados pela referida representação do MPF sobre ZR. Analisaremos
também o enquadramento no inciso XVIII,117 levantado pela Associação dos Consumidores
Proteste no mesmo inquérito. Os incisos citados descrevem atividades predatórias118 e são
condutas que tentam excluir o concorrente através de diferentes táticas de fechamento
vertical.
Se as práticas horizontais sempre foram vistas com grande receio, a visão em relação
às práticas restritivas verticais, como o fechamento de mercado, variou com o tempo. A ideia
de que restrições verticais são uma prática concorrencialmente lesiva foi fortemente abalada
nas décadas de 70 e 80 com as críticas da Escola de Chicago, conforme sintetizou o
conselheiro do CADE César Mattos:
O núcleo da crítica de Chicago seria, conforme Rey e Tirole (2005)119, que "há
apenas um único mercado de produto final e, portanto, um único poder de
monopólio a ser explorado, não sendo óbvio como um monopolista poderia estender
o seu poder de monopólio". Ademais, Ordover, Saloner e Salop (1990) destacam ser
muito pouco claro porque os "lucros perdidos no segmento upstream" devido a uma
eventual estratégia de fechamento vertical contra o rival no segmento downstream
"deveriam exceder os lucros downstram incrementados''?120 121
115 BRASIL. CADE. Perguntas gerais sobre defesa da concorrência, 2016.
Disponível em: <http://www.cade.gov.br/servicos/perguntas-frequentes/perguntas-gerais-sobre-defesa-da-
concorrencia>. Acesso em: 05 de dez. de 2017. 116III - limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado; IV - criar dificuldades à constituição, ao
funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de
bens ou serviços; X - discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação
diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços; 117XVIII - subordinar a venda de um bem à aquisição de outro ou à utilização de um serviço, ou subordinar a
prestação de um serviço à utilização de outro ou à aquisição de um bem. 118TAUFICK, Roberto Domingos. Nova lei antitruste brasileira: a Lei 12.529/2011 comentada e a análise prévia
no direito da concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 202. 119REY,P. e TIROLE, J: A primer on Foreclosure. Handbook of Industrial Organization. 2005. Orgs.:
Armstrong,M. e Porter, R. New Holland. 120"Há outras críticas relevantes apontadas pelos autores contra a teoria de fechamento vertical padrão. Conforme
Ordover, Saloner e Salop (1990) 'i) o fornecimento de matérias-primas a rivais não é, necessariamente,
reduzido... porque a sociedade integrada também reduz a sua demanda por matéria-prima produzida por
fornecedores independentes... será necessário, apenas, um rearranjo, nas relações de fornecimento'; ii) os
fornecedores restantes podem não ter incentivos para aumentar o preço da matéria prima' e então, uma recusa de
63
A contribuição dos referidos pensadores foi demonstrar que o máximo lucro que
poderia ser obtido em uma cadeia produtiva seria o lucro de monopólio de um único elo,
conforme explica Paulo Furquim de Azevedo:
A presença de dois monopólios consecutivos, ambos fazendo incidir uma margem
de monopólio sobre seu custo, não resultaria em dois lucros de monopólio, mas em
um lucro conjunto inferior ao que seria obtido por um único monopolista, no que
ficou conhecido na literatura econômica como "dupla margem".122
Posteriormente, nos anos noventa, tal visão foi sendo reformada. Novos trabalhos
baseados na teoria dos jogos e em modelos formais recuperaram a racionalidade econômica
de condutas anticompetitivas tendo restrições verticais por instrumento. A máxima da Escola
de Chicago sobre o lucro máximo de monopólio foi aceita; no entanto, os novos trabalhos
indicaram que pode haver restrições verticais com o fim de proteger - e não aumentar - lucro
de monopólio preexistente.123 Esta estratégia ficou conhecida como fechamento de mercado.
Tanto nos EUA, quanto na União Europeia, as decisões tornaram-se mais criteriosas,
como demonstra o caso da Microsoft diante das alegações de venda casada de sistema
operacional e de navegador da internet.124 A análise pormenorizada passou, assim, a ser
recomendação diante da problemática do fechamento vertical.
Uma das abordagens possíveis para coibir o ZR seria o enquadramento no inciso
XVIII, §3º do art. 36, que trata da venda casada. Tal abordagem foi levantada, no Brasil, pela
fornecimento por um fornecedor não aumentará o custo dos rivais; iii) existe a probabilidade de que os
competidores objeto do fechamento integrem com os fornecedores restantes; iv) mesmo que o preço da matéria-
prima suba, o fornecedor integrado teria de ser compensado pela perda de lucros dos seus rivais. A necessidade
dessa compensação pode reduzir a probabilidade de fusão; v) já que o concorrente que sofreu o fechamento se
coloca numa situação desvantajosa, ele passa a disputar o recurso escasso a montante"" [ "i) The supply of input
available to rivals is not necessarily reduced... because the integrated firm also reduces its demanda for inputs
produced by unintegrated suppliers... it merely will necessitate a rearrangement in supply relationships'; ii)
'remaining suppliers may not have the incentive to raise their input prices', and, then, the denial of supply by one
supplier will not raise rival costs; iii) the likelihood of foreclosed competitors integrate vertically with remaining
suppliers; iv) even if input prices increases, the supplier that integrated would have to be compensated by the
forgone potencial extra profits obtained by theirs rival. This compensation can decrease the profitability of the
merger 'possibly to the point that no merger occur'; v) since the firm that is foreclosed is placed at a
disadvantage, it ought itself to participate in the bidding for the scarce upstream resource'"]. 121BRASIL. CADE. Voto do Conselheiro César Mattos no Ato de Concentração 08012.000836/2009-23.
Requerentes: Polimix Concreto Ltda. e Camargo Côrrea Cimentos S.A. Disponível em:
<http://anexos.radaroficial.com.br/f415b5cb314fa4f91352e9f5ae787534.pdf>. Acesso em: 05 de dez. de 2017. 122AZEVEDO, Paulo Furquim de et al. Restrições Verticais e Defesa da Concorrência. In: MATTOS, César
Costa Alves de et al. Direito Econômico Concorrencial. São Paulo: Saraiva, 2013. Cap. 5, p. 203. 123 Ibidem. 124
OLIVEIRA, Gesner; RODAS, João Grandino. Direito e economia da concorrência. 2.ed. São Paulo: Rev. dos
Tribunais, 2013. p. 78.
64
Associação dos Consumidores Proteste.125 Esta é a hipótese de um ofertante impor, para a
venda de determinado bem ou serviço, a condição de que o comprador também adquira outro.
Roberto Taufick assim coloca:
Por sua vez, se um agente com poder de mercado em um mercado relevante usa a
força do seu produto nesse mercado para alavancar a venda de um produto em outro
mercado no qual, em geral, não tem poder de mercado ("em geral", porque o
objetivo pode não ser criar poder de mercado, mas aumentá-lo/consolidá-lo),
configura-se uma infração concorrencial, pois esse agente estará restringindo as
opções no mercado em que o seu produto não tem força (e, portanto, há outras
opções viáveis) ao seu produto, apenas, pela exclusão artificial dos seus
concorrentes (ou seja, não porque seja mais eficiente nesse mercado, de tal modo
que a imposição do seu produto menos eficiente gerará uma perda de bem-estar para
o consumidor pela redução das suas opções de compra e pela perda de qualidade).126
Pensemos em nosso objeto. Um provedor de conteúdo ou aplicação é consumido
quando é acessado - afinal, a maioria deles ganha a maior parte de suas receitas com
publicidade, ou mesmo toda ela, sendo o número de acessos o grande atrativo de anúncios.
Poder-se-ia argumentar que, ao vender um pacote de dados junto com aplicações e conteúdos
isentados, estar-se-ia efetuando a venda casada de ambos. Em nossa opinião, este
enquadramento é difícil, pois o ZR, em todas as suas modalidades, de maneira alguma obriga
alguém a acessar (consumir) as aplicações e conteúdos isentados. Cremos que esta subsunção
só poderia ser cogitada havendo ZR de uma aplicação pesada, como as de streaming de vídeo,
aliado a um baixo pacote de dados - que de fato impossibilitasse a utilização de outra
aplicação - e à ausência de oferta de outras opções de pacotes. Neste caso específico, a
operadora estaria utilizando-se de sua posição no mercado para forçar o internauta a acessar
uma aplicação que ele normalmente não acessaria, se houvesse concorrência, caracterizando
então uma dominação artificial.
A principal análise quanto ao ZR recai nos tipos previstos nos incisos III, IV e X, §3º
do art. 36.127 Quanto ao inciso III, que trata da discriminação de preços, a resolução 20/1999
do CADE bem aborda a conduta128:
125MOBILE TIME, Zero rating: Proteste recorre contra decisão do Cade de arquivar investigação, 2017.
Disponível em: <http://www.mobiletime.com.br/11/09/2017/zero-rating-proteste-recorre-contra-decisao-do-
cade-de-arquivar-investigacao/476522/news.aspx>. Acesso em: 09 de dez. de 2017. 126TAUFICK, Roberto Domingos. Nova lei antitruste brasileira: a Lei 12.529/2011 comentada e a análise prévia
no direito da concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 241. 127
Neste sentido: "Embora a plasticidade da rede – e seu funcionamento horizontal e não hierárquico –possa
dificultar a aplicação de dispositivos da Lei 12.529/2011, se realçado algum abuso da conduta (gratuita ou
patrocinada), poderíamos enquadrar eventuais acordos de zero-rating em restrição vertical, operados entre
provedores de acesso e de conteúdo. Nesse caso, os dispositivos caracterizadores da infração seriam os
incisos III, IV e X, do art. 36, da Lei 12.529/2011." SILVA, L.N., LEURQUIN, P.,BELFORT, A; Os acordos
65
Esta prática, amplamente disseminada nas economias modernas, não é
intrinsecamente anticompetitiva, na medida em que, embora aumentando os lucros
do produtor, pode não afetar o bem-estar dos consumidores ao não restringir, ou até
ao aumentar, o volume de transações no mercado. A análise específica se torna
particularmente relevante neste caso, especialmente pela variedade de formas em
que pode ocorrer a discriminação de preços.
(...)
Em situações em que uma empresa tem controle parcial ou total sobre uma
rede ou infraestrutura essencial, a discriminação de preços pode servir para elevar o
custo do concorrente, com efeitos nocivos à livre concorrência.
O ZR é de fato uma discriminação positiva de preços em relação a alguns provedores
de conteúdo, favorecimento que poderia também criar dificuldades à constituição, ao
funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa concorrente, ou mesmo limitar seu acesso
ao mercado - hipóteses dos outros dois incisos. A análise específica, então, faz-se necessário.
Com a finalidade de investigar se restrições verticais têm efeito de
fechamento de mercado, a jurisprudência do SBDC invariavelmente percorre os
seguintes passos, cada um deles sendo uma condição necessária para que o
fechamento de mercado seja uma estratégia factível e racional do ponto de vista
econômico.129 Primeiramente, uma das partes do contrato deve deter posição
dominante a montante ou a jusante, em geral presumida por meio de elevada
participação de mercado ou por diferenciação vertical, no caso de mercados de
produtos diferenciados.
(...)
Em segundo lugar, o controle vertical deve ser suficiente para impor prejuízo
a concorrentes efetivos ou potenciais, por meio de restrição de acesso a insumos ou
canais de distribuição. Para que essa segunda condição seja observada, a estrutura de
mercado, a rivalidade entre os demais concorrentes e barreiras às entradas devem ser
tais que a elevação de preços - ou, mais genericamente, a restrição de acesso - seja
sustentável por tempo suficiente para excluir concorrentes ou bloquear a entrada.
(...)
Uma vez constatada a potencialidade lesiva do controle vertical, a análise
percorre o seu terceiro e último passo, que consiste em verificar se do controle
vertical não decorrem eficiências relevantes, suficientes para compensar os prejuízos
à concorrência.130
de zero-rating e seus impactos concorrenciais: os limites da regulação da neutralidade de rede. Revista de Direito
da Concorrência, Vol. 4, nº 1, maio 2016, pp. 21-56. p. 48-49. 128 BRASIL. CADE. Resolução nº 20, de 20 de junho de 1999. Disponível em:
<http://www.cade.gov.br/assuntos/normas-e-legislacao/resolucao/resolucao-no-20-de-9-de-junho-de-
1999.pdf/view>. Acesso em: 11 de dez. de 2017. 129No âmbito do CADE, são ilustrações desse procedimento os Atos de Concentração ns. 08012.009500/2003-
31, Conselheiro-Relator Luís Fernando Rigato Vasconcellos; 08012.003632/2001-97, Conselheiro-Relator
Ricardo Villas Bôas Cueva; 53500.002423/2003, Conselheiro-Relator Luís Carlos Thadeu Prado; e os Processos
Administrativos ns. 08012.009991/1998-82, Conselheiro-Relator Roberto Pfeiffer; 08012.006636/1997-43,
Conselheiro-Relator Luís Fernando Rigato Vasconcellos; 08012.003048/2001-31, Conselheiro-Relator Paulo
Furquim de Azevedo; 08012.003805/2004-10, Conselheiro-Relator Fernando de Magalhães Furlan;
08012.008678/2007-98, Conselheiro-Relator Luís Fernando Schuartz. 130AZEVEDO, Paulo Furquim de et al. Restrições Verticais e Defesa da Concorrência. In: MATTOS, César
Costa Alves de et al. Direito Econômico Concorrencial. São Paulo: Saraiva, 2013. Cap. 5, p. 209-210.
66
Conforme o autor, uma vez constada a presença de posição dominante, restaria saber
se tal discriminação de preços seria suficiente para excluir os concorrentes ou bloquear
entrada no mercado e, em caso positivo, sopesar os benefícios e prejuízos sociais. Sobre a
segunda parte do procedimento, faz-se pertinente aqui, no entanto, expormos melhor um
argumento trazido pela representação do MPF no inquérito relatado no item 4.3. Naquela
ocasião, o parquet ministerial citou precedente do CADE no caso Schincariol versus Ambev
para sustentar que "não é necessário que haja fechamento completo do mercado para que uma
conduta seja reputada anticompetitiva".
No caso citado, a Ambev foi multada por conta de um programa de fidelidade com
descontos para pontos de venda conforme volume consumido, que foi considerado
anticoncorrencial. O acórdão em tela131 dispôs que o programa desestimulava o acesso a
novos entrantes, pois aumentava artificialmente os custos de entrada e permanência no
mercado de cervejas. Além disso, foi considerado que o programa criava dificuldades às
empresas concorrentes já existentes, seja aumentando seus custos de publicidade e marketing,
seja diminuindo artificialmente suas margens. A prática da Ambev foi enquadrada nos incisos
IV e V do artigo 21 nossa antiga lei da concorrência (Lei nº 8.884/94), cuja redação é idêntica
aos incisos III e IV, §3º do art. 36 do nosso atual diploma antitruste.
Encontramos, portanto, duas perspectivas quanto à segunda etapa de verificação de um
fechamento vertical. Independentemente disso, só o caso concreto dará informações
suficientes para verificar se a discriminação de preços tem a capacidade de excluir ou
bloquear a concorrência, ou unilateralmente criar a ela dificuldades à constituição, ao
desenvolvimento e ao funcionamento.
A terceira etapa da verificação é a análise econômica de custos e benefícios sociais.
Tal análise já foi em parte adiantada em tópicos anteriores. Traremos aqui uma lista de
elementos elencados pelo relatório da Comissão Europeia sobre ZR que devem ser
considerados para avaliar os impactos de uma prática ZR na competição.132
Em nossa pesquisa sobre ZR, observamos que as discussões sobre o assunto
demonstram preocupação sobretudo com a competitividade no mercado de conteúdos e
aplicações. Um aspecto interessante do referido relatório é que ele traz à tona considerações
131BRASIL. CADE. Processo Administrativo nº 08012.003805/2004-10. Representante: Schincariol.
Representada: Ambev. Relator: Conselheiro Fernando de Magalhães Furlan. Brasília, 22/07/2017. Disponível
em: <http://anexos.radaroficial.com.br/b7b29a4da7bf542dce316a206a014474.pdf>. Acesso em: 11 de dez. de
2017. 132Comissão Europeia (Org.). Zero-rating practices in broadband markets. Bruxelas: Dotecon Ltd, 2017. p.128.
Disponível em: <http://ec.europa.eu/competition/publications/reports/kd0217687enn.pdf>.
Acesso em: 11 de dez. de 2017.
67
para que também a competitividade a nível de provisão de conexão não seja afetada com a
prática. No documento, o órgão europeu conclui que estratégias ZR podem tanto aumentar a
eficiência quanto ter efeitos anticompetitivos. Assim, as práticas parecem ser benéficas
quando aumentam o volume de transações, mas levantam preocupações concorrenciais
quando elas são usadas para extrair o excedente do consumidor ou fechar o mercado para
competidores que não são capazes de replicar as ofertas.
Neste sentido, o relatório elenca alguns pontos a serem avaliados para a medida do
impacto de um ZR no mercado de provisão de conexão. Em primeiro lugar, o documento
registra que em geral preocupações relacionadas à discriminação de preços e ao
empacotamento ("bundling") emergem quando a firma agente detém poder de mercado em ao
menos um dos produtos empacotados.
A extração de excedente do consumidor envolveria, no caso de ZR, cobrar mais de
consumidores que estão interessados em maiores pacotes de dados ou planos ilimitados
enquanto conserva a taxa daqueles que estão primariamente interessados em acessar tipos
específicos de conteúdo através de pacotes de dados pequenos, mas com tais conteúdos
isentados. Isto envolveria oferecer ao consumidor um menu de tarifas no qual o ZR é mais
comum ou mais extenso em pacotes com limites menores. Todavia, o documento registra que
é difícil de estabelecer se uma estratégia como essa seria primariamente direcionada a extrair
excedente do consumidor ou se ela teria também um efeito de aumentar as transações do
mercado. Além disso, observa o órgão europeu que na atualidade as operadoras tendem a
praticar o ZR sobre um espectro grande de planos, o que não indicaria uma tentativa de
segmentar consumidores para extrair o excedente do consumidor.
Quanto a preocupações com fechamento de mercado, ainda em se tratando das
empresas de provisão de conexão, o relatório em questão conclui que tais riscos emergem
quando outras empresas não podem replicar uma estratégia de desconto ou empacotamento
praticada. Isto aconteceria tipicamente na presença de um conteúdo isentado suficientemente
atrativo para determinar a opção do consumidor por uma operadora e de um ZR com algum
grau de exclusividade, seja por conta de algum acordo entre duas empresas, seja por se tratar
de uma aplicação de propriedade própria da operadora.
O relatório lista também elementos a serem considerados para a avaliação do potencial
impacto do ZR na competição entre provedores de conteúdo e aplicações. De início, o
documento reconhece que um conteúdo ou aplicação isentado ganha uma vantagem sobre
seus competidores. Em se tratando de ZR gratuitos de aplicações ou conteúdos de terceiros, é
68
considerado que a decisão por isentar algum acesso reflete as preferências dos usuários, o que
não parece distorcer a competição naquele mercado, mas sim adicionar outra dimensão: a
competição por ter seu aplicativo ou conteúdo isentado passa a ser uma nova maneira de
tentar atrair usuários para o serviço. Desta maneira, no ZR gratuito, a prática é consequência
de uma tentativa de discriminação de preços por parte das operadoras, o que não deveria
levantar preocupações concorrenciais, a menos que a competição no mercado de provisão de
conexão seja inefetiva. No caso de ZR patrocinado, o relatório só vê maiores preocupações
se, no acordo, a operadora assumir não isentar outras aplicações similares e se o acordo cobrir
uma parcela grande do público-alvo, seja porque a operadora tem poder de mercado, seja
porque a aplicação tem acordos de exclusividade com várias operadoras.
Observação especial é feita quanto ao ZR em caso de aplicações e conteúdos da
própria operadora. Neste caso, pontua a Comissão Europeia que a integração vertical pode dar
tanto a habilidade, quanto o incentivo para o fechamento de mercado. Assim, caso a
operadora tenha algum nível de poder de mercado, o ZR pode restringir a competição no
mercado de conteúdos e aplicações, a menos que a operadora ofereça aos concorrentes a
opção de ter seus serviços livre de taxas em termos que não discriminem em favor dos seus
próprios conteúdos e aplicações.
Por fim, outro apontamento interessante do relatório europeu é referente ao ZR de
grupos de aplicações. O órgão europeu problematiza a ideia de que o ZR de um grupo de
aplicações seria preferível ao ZR de uma só aplicação. Se, por um lado, aquele ZR de fato
deixa a competição entre as aplicações incluídas na prática inafetada, por outro lado ele deixa
mais difícil para novas empresas entrar no mercado, já que elas iriam competir contra um
portfólio maior de empresas. Ademais, o ZR poderia dar margem para restrições horizontais,
se a elegibilidade para a inclusão na promoção for dependente de restrições técnicas ou outros
requerimentos, e tais critérios fossem combinados entre as operadoras e as empresas isentadas
de modo a dificultar novos entrantes. Neste último caso, contudo, o relatório reconhece que o
problema não seria o ZR em si, mas sim tais acordos com requerimentos restritivos.
Portanto, bem como o ZR em si não é um bloco monolítico, também sua análise
concorrencial dependerá de diversas nuances que só serão auferíveis no caso concreto. No
presente item, tentamos dar um panorama dos enquadramentos jurídicos possíveis no
ordenamento brasileiro, bem como apontamos possíveis nuances a serem especialmente
consideradas na análise do impacto da conduta no bem-estar do consumidor. No próximo
item, procederemos à análise regulatória do tema.
69
4.5 ANÁLISE REGULATÓRIA
Neste último item, por fim analisaremos a prática de ZR de acordo com a legislação
existente no âmbito regulatório - qual seja, o MCI e o DMCI. Retomaremos aqui parte do que
já foi visto no capítulo 3 deste trabalho, quando debatemos o enquadramento regulatória da
neutralidade de rede no Brasil. Portanto, dispensaremos maiores introduções conceituais e
analisaremos qual o tratamento jurídico que o nosso ordenamento dá ao ZR.
Antes da elaboração do DMCI, apenas com base no MCI, alguns autores entenderam
que o ZR era ilícito em nosso país:
Se o regulamento do Marco Civil da Internet não indicar uma flexibilidade da
compreensão rígida da neutralidade de rede, os acordos de zero-rating deverão ser
compreendidos como ilícitos, com base no caput do artigo 9° do próprio Marco
Civil.133
Ramos, também em momento anterior à regulamentação do MCI, considerou que o
ZR gratuito era vedado pelo MCI, sendo o ZR patrocinado e o ZR para serviços de
emergência, no entanto, permitidos.134 Sem abordar estas nuances, opinou Carlos Eduardo de
Oliveira, em 2014, contra a licitude da prática de isenção:
A oferta gratuita de acesso à determinada aplicação é uma estratégia de marketing,
pois evidentemente tanto o provedor de conexão, que amplia sua base de usuários e
o volume de tráfego por suas redes, quanto o provedor de aplicações, que
incrementa o potencial publicitário de seu serviço, têm benefícios econômicos
indiretos por essa oferta.
Ocorre que, ao estimular o acesso a determinada aplicação (como o Facebook), o
provedor de conexão viola o princípio da neutralidade de rede, pois privilegia o
conteúdo de uma aplicação em detrimento de outro, redirecionando (ou estimulando
o redirecionamento) o internauta a determinada aplicação.
Ora, por que o provedor de aplicação só dará privilégio a uma determinada aplicação
(como o facebook) em detrimento de outra (como o orkut)? Isso não é admitido.135
A vedação do ZR diante da neutralidade de rede encontra respaldo na opinião de
importantes defensores da neutralidade de rede no cenário internacional, como Bárbara Van
133
SILVA, L.N., LEURQUIN, P.,BELFORT, A; Os acordos de zero-rating e seus impactos concorrenciais: os
limites da regulação da neutralidade de rede. Revista de Direito da Concorrência, Vol. 4, nº 1, maio 2016, pp.
21-56. p. 47. 134
RAMOS, Pedro H. S.. Arquitetura da Rede e Regulação: a neutralidade da rede no Brasil. Dissertação de
Mestrado. Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, 2015. p. 165-175. 135
OLIVEIRA, C. E. E. de. Aspectos principais da Lei n. 12.965 de 2014, o Marco Civil da Internet: subsídios à
comunidades jurídicas. Brasília: Senado Federal, 2014. p. 8. Disponível em:
< https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-148-
aspectos-principais-da-lei-no-12.965-de-2014-o-marco-civil-da-internet-subsidios-a-comunidade-juridica>.
Acesso em: 11 de dez. de 2017.
70
Schewick, para quem os efeitos da prática se equiparam aos de degradações de tráfego, de
modo que ela deveria ser considerada igualmente uma quebra da neutralidade de rede. A
autora expressa que a conduta deveria ser banida de antemão, dado que a análise ex post
deixaria o público com o ônus de trazer as queixas, o que geraria consideráveis custos
sociais.136 Bárbara Van Schewick, junto a Lawrence Lessig, Tim Wu e outros 33
pesquisadores assinaram uma carta à Federal Trade Comission com diversas recomendações
legislativas, dentre elas, o banimento do ZR.137
O Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da Fundação Getúlio Vargas do Rio de
Janeiro participou da consulta pública sobre a regulamentação do Marco Civil da Internet e na
ocasião, segundo reportagem de portal do Terra,138 também manifestou que o ZR seria
incompatível com o ZR. Aliás, mesmo após a regulamentação, com a promulgação do DMCI,
diversos especialistas continuaram interpretando que o ZR seria vedado, incluindo membros
do CGI.BR, conforme reportagem da página "Convergência Digital", da UOL.139 No entanto,
a mesma reportagem deixou claro que a questão levantou opiniões divergentes dos diferentes
departamentos jurídicos consultados.
Sobre divergência, iniciamos a explorá-la com o exemplo de Demi Getschko,
Conselheiro do Comitê Gestor da Internet do Brasil (CGI.br) desde 1995:
Pode ser que alguns serviços, devido a acordos comerciais, não gastem minha
franquia, e isso pode ter efeitos em áreas como a de competição ou a econômica
mas, em meu entendimento, se o meu livre arbítrio em usar o que contratei estiver
preservado, e se os "pacotes de dados" não forem priorizados, não perco
neutralidade com isso. Penso, assim, que a discussão sobre bytes que gastam a
136
SCHEWICK, Barbara Van. Network Neutrality and Zero-rating. Contribuição à FCC, 2014. p.1-2. Disponível
em: <https://ecfsapi.fcc.gov/file/60001031582.pdf>. Acesso em: 18 de dez. de 2017. 137ANNANY, Mike et al. Professors letter to FCC, 2015. Disponível em:
<https://cyberlaw.stanford.edu/downloads/ProfessorLetterToFTC-20150129.pdf>. Acesso em: 18 de dez. de
2017. 138
TELE.SÍNTESE, "Zero rating contraria Marco Civil da Internet, afirma FGV-RIO". Fevereiro, 2015.
Disponível em: < http://www.telesintese.com.br/zero-rating-contraria-marco-civil-da-internet-afirma-fgv-rio/>.
Acesso em: 18 de dez. de 2017. 139" 'O decreto veda acordo pagos para priorização. Como acredito que o zero rating constitui uma forma de
prioridade, defendo que acordos pagos para zero rating estariam vedados', sustenta o especialista em Direito da
Internet e sócio da Advocacia José Del Chiaro, Ademir Pereira Junior. (...) O colega de CGI.br Eduardo Parajo
sublinha a mesma questão. 'O Decreto diz que os modelos de cobrança precisam preservar uma internet única. É
claro que agora cada artigo será olhado com lupa. Mas aparentemente está proibido os acordos do tipo ‘zero
rating’, qualquer privilégio está bloqueado. Vai exigir muita criatividade para interpretar isso de forma diferente',
diz ele. (...) A advogada da Proteste e igualmente integrante do Comitê Gestor, Flávia Lefèvre, destaca também
as vedações aos acordos que não descontam as franquias de dados. 'Ficou claro que práticas comerciais como o
‘zero rating’ estão coibidas, assim como o Freebasic do programa Internet.org do Facebook', afirma.”
CONVERGÊNCIA DIGITAL, "Zero rating: Marco Civil proíbe ou não acordos comerciais com as OTTs?"".
Maio, 2016. Disponível em:
<http://www.convergenciadigital.com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveTemplate=site&UserActiveTe
mplate=mobile%252Csite&infoid=42398&sid=4/>. Acesso em: 18 de dez. de 2017.
71
franquia e outros que não gastam, cabe dentro de uma rede que não restringe o
arbítrio do usuário, tecnicamente neutra. Poderia isso deformar o cenário
competitivo e econômico? Pode ser.
Mesmo assim, não é missão do Marco Civil tratar desse aspecto.140
Também a Associação Brasileira de Direito da Tecnologia da Informação e das
Comunicações (ABDTIC) opinou nesta direção na consulta pública sobre a regulamentação
do MCI:
(...) a garantia de isonomia que consta do artigo 9º do MCI impede a adoção de
modelagens de tráfego que levem à concessão de privilégios em termos de
velocidade ou tratamento técnico, pelas prestadoras de telecomunicações, a uma
determinada aplicação, em detrimento de aplicações concorrentes.
É dizer, a neutralidade de rede, nos termos do MCI, nada tem a ver com
modelos de negócios diferenciados e/ou tratamentos de tarifação conferidos por uma
prestadora de telecomunicações a um provedor de aplicação, no exercício de
liberdades previstas na própria Lei, limitando-se apenas a disciplinar um dever de
isonomia no tráfego de dados.141
A despeito das outras opiniões citadas, de que o ZR seria um privilégio a alguns
conteúdos e, portanto, feriria a neutralidade de rede, a manifestação da ANATEL no inquérito
aberto no CADE sobre ZR seguiu esta segunda linha.142 Esta perspectiva, que também foi
ratificada naquele inquérito pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e
Comunicações, percebe a vedação à discriminação prevista no artigo 9º do diploma como
uma garantia de isonomia no tratamento técnico dos pacotes de dados em seu percurso na
rede. Isto é, a rede sempre teria de dar condições iguais para os pacotes de dados, sem
priorizações injustificadas, bloqueios arbitrários ou concessão de privilégios de velocidade. A
(não) tarifação dos pacotes de dados estaria em campo comercial exterior a tal vedação,
encontrando-se protegida pela liberdade dos modelos de negócios prevista no art. 3º, VIII do
MCI. Tal fato, contudo, não impediria a análise de condutas ZR com evidências de efeitos
sociais negativos.
A ANATEL, em sua manifestação no referido inquérito, usou o exemplo do Chile para
sustentar que uma visão tão estrita da neutralidade de rede, como a que veda expressamente o
ZR, seria desaconselhada. O referido país, que em 2010 foi pioneiro em legislação sobre a
140GETSCHKO, Demi. O Marco Civil não é a cura de todos os males, 2015. Estadão. Disponível em:
<http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,o-marco-civil-nao-e-a-cura-de-todos-os-males-imp-,1631597>.
Acesso em: 18 de dez. de 2017. 141Manifestação da Associação Brasileira de Direito da Tecnologia da Informação e das Comunicações
(ABDTIC) na consulta pública sobre a regulamentação do MCI. Maio, 2015. Disponível em: <goo.gl/SsvgKK>.
Acesso em: 18 de dez. de 2017. 142BRASIL. ANATEL. Manifestação no Inquérito Administrativo n° 08700.004314/2016-71.
72
neutralidade de rede, proibiu o ZR em 2014.143 144 A interpretação das autoridades locais foi,
em sintonia com as primeiras visões aqui expostas, de que a discriminação positiva de preços
efetuada pelo ZR seria uma das discriminações vedadas pela neutralidade de rede. No entanto,
conforme relato da agência brasileira, o governo chileno tem tido dificuldades em sustentar a
consistência de tal decisão. Isto é afirmado pois o Chile acabou permitindo posteriormente a
iniciativa Wikipedia Zero - um ZR da referida enciclopédia online. Na ocasião, segundo a
Fundação Wikimedia145, as autoridades chilenas, ao darem o aval aos organizadores da
Wikipedia Zero, afirmaram que o caso não se encaixaria na vedação realizada, que foi
direcionada a práticas específicas que ocorriam no momento da edição do Ofício proibitivo.
Também o exemplo europeu é trazido pela agência na defesa de uma análise ex post da
conduta. O argumento é de que os textos legais brasileiros e europeus quanto à neutralidade
de rede são muito semelhantes, e que a interpretação do BEREC (grupo técnico assessor da
União Europeia) para o dispositivo se assemelha àquela defendida em nosso país pela
ANATEL, no sentido de não entender contida na neutralidade de rede a vedação completa de
qualquer prática de ZR. O BEREC entende que, no caso de um pacote de dados contratado se
esgotar e só às aplicações e conteúdos ZR for permitido acesso, há quebra imediata da
neutralidade de rede. Em outros casos, no entanto, não haveria uma vedação per se, mas sim
uma avaliação caso a caso.
Quanto ao cenário internacional, pertinente também é abordar a situação norte-
americana. De acordo com a Open Internet Order de 2015, a prática de ZR também não era
vedada per se, sendo o veredito efetuado de acordo com o caso concreto.146 Em Janeiro de
2017, no final da gestão de Tom Wheeler (alinhado aos democratas), um relatório da FCC
afirmou que práticas de ZR da Verizon e da AT&T apresentavam fortes indícios de violação
às regras da neutralidade de rede do país.147 Ocorre, contudo, que as discussões sobre o tema
nos Estados Unidos da América estão bastante politizadas, com o partido republicano
143CHILE, Lei 20.453 de 26 de Agosto de 2010. Biblioteca del Congreso Nacional de Chile. Disponível em:
<https://www.leychile.cl/Navegar?idNorma=1016570>. Acesso em: 18 de dez. de 2017. 144CHILE. Subsecretaria de Telecomunicaciones. Ofício Circular nº 40/DAP 13221/F-51 de 14 de Abril de 2014.
Disponível em:
<http://www.subtel.gob.cl/transparencia/Perfiles/Transparencia20285/Normativas/Oficios/14oc_0040.pdf> .
Acesso em: 18 de dez. de 2017. 145WIKIMEDIA, “Ente regulador chileno le da la bienvenida a Wikipedia Zero”. 2014. Disponível em:
<https://blog.wikimedia.org/es/2014/09/23/ente-regulador-chileno-le-da-la-bienvenida-a-wikipedia-zero/>.
Acesso em: 18 de dez. de 2017. 146ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. FCC. Policy Review of Mobile Broadband Operators’ Sponsored Data
Offerings for Zero-Rated Content and Services, 2017. p.3. Wireless Telecommunications Bureau Report:.
Disponível em: <https://apps.fcc.gov/edocs_public/attachmatch/DOC-342987A1.pdf>. Acesso em: 18 de dez. de
2017. 147Idem.
73
adotando oposição às regras de neutralidade de rede. Com efeito, sob a nova gestão de Ajit
Pai (alinhado ao atual presidente Donald Trump), a FCC revogou o dito relatório e encerrou
inquéritos afins.148 Não só isso, a gestão republicana também revogou recentemente toda a
Open Internet Order, o que parece dar início a uma completa nova abordagem do tema
naquele país.149 150
Conforme exposto, há, grosso modo, duas perspectivas opostas no que tange às
praticas de ZR no âmbito regulatório. A primeira delas, defendida em geral por proponentes
de uma neutralidade de rede mais estrita, enxerga na discriminação contida no ZR uma
violação do referido princípio. Isto ocorreria principalmente porque a prática significaria uma
interferência da operadora na interação do usuário na rede. Ao eleger os acessos que seriam
isentados, as empresas provedoras de conexão invariavelmente distorceriam a competição no
mercado de conteúdos e aplicações e minariam o ambiente inovador que a internet vem sendo
desde os seus primórdios. Por conseguinte, as práticas comerciais de ZR descritas neste
trabalho deveriam ser per se vedadas.
A segunda delas, sustentada em geral por defensores de uma visão mais maleável de
neutralidade de rede, não enxerga necessariamente a discriminação efetuada através do ZR
como violadora. Embora grande parte destes autores reconheça que a prática tem algum
potencial maléfico e que pode gerar consequências negativas para o desenvolvimento da
internet em alguns casos, eles entendem que o ZR pode também ser positivo, por expandir o
acesso à rede, por possibilitar práticas de negócio inovadoras e geradoras de valor, entre
outros argumentos expostos neste trabalho. Assim sendo, nem sempre a tática comercial do
ZR ofereceria perigo ao ambiente inovador da internet ou restringiria as escolhas do usuário,
não devendo ela ser terminantemente proibida, portanto.
Independentemente da perspectiva preferida, o fato é que, conforme expusemos em
mais de um momento deste trabalho, a ANATEL vem adotando a segunda interpretação, o
que nos permite afirmar que, neste momento, o ZR em si não é ilícito no Brasil. Contudo,
suas consequências poderão e deverão ser monitoradas, sendo então possível alguma
consequência no âmbito regulatório se, no caso concreto, houver colisão com dispositivos e
princípios do MCI e do DMCI.
148BROADCASTING & CABLE. FCC's Wireless Bureau Dumps Zero-Rating Report, 2017. Disponível em:
<http://www.broadcastingcable.com/news/washington/fccs-wireless-bureau-dumps-zero-rating-report/163063>.
Acesso em: 18 de dez. de 2017. 149Comunicado do site oficial da FCC. Restoring Internet Freedom, 2017. Disponível em:
<https://www.fcc.gov/restoring-internet-freedom>. Acesso em: 18 de dez. de 2017. 150Este trabalho foi concluído apenas 4 dias após a decisão, havendo ainda a possibilidade de anulação judicial.
74
5. CONCLUSÃO
No presente trabalho, intentou-se a realização de uma análise acerca da prática do ZR
em suas modalidades gratuita e patrocinada e de sua legalidade nos âmbitos regulatório e
concorrencial. Dado que o debate se insere em uma discussão mais ampla sobre neutralidade
de rede, esta também foi analisada neste trabalho. Sob ambas as óticas, como demonstramos
nesta monografia, uma avaliação caso a caso se faz fundamental, motivo pelo qual, para além
da análise jurídica convencional, também demos ênfase a diferentes nuances que podem
existir na prática e a quais seriam seus impactos possíveis, de acordo com a literatura. Diante
do exposto, destacam-se as seguintes considerações extraídas ao longo do estudo:
a. A neutralidade de rede é um princípio criado para combater discriminações
injustas no tratamento de pacotes de dados por parte dos provedores de
conexão, com o fim de proteger a natureza aberta e pró-inovação da internet e
assegurar a liberdade de expressão e a autonomia do usuário. Não há consenso
sobre a abrangência do princípio e existem posições intermediárias: alguns
defendem uma aplicação mais rígida, outros advogam por mais flexibilidade.
Além disso, trata-se de uma questão multifacetada, que deve considerar
impactos econômicos, bem como impactos políticos, já que a internet é hoje
um meio de comunicação social.
b. O legislador brasileiro adotou o referido princípio no art. 9º, caput do MCI ao
estabelecer o tratamento isonômico entre os pacotes de dados,
independentemente tanto de critérios objetivos (serviço, aplicação ou
conteúdo), quanto de critérios subjetivos (terminal, origem e destino). O
diploma, embora bem tenha estabelecido diretrizes gerais para o assunto, não
exauriu todas as situações possíveis.
c. O ZR é a prática de isentar de custos o acesso a algum conteúdo ou aplicação
na internet. A prática não é homogênea, podendo se exteriorizar de mais de
uma forma. Justamente por isso, é uma conduta que pode tanto aumentar a
eficiência do mercado e estender a penetração da internet na população, quanto
ocasionar efeitos anticoncorrenciais e desestimular a inovação.
d. No âmbito regulatório, não houve vedação expressa ao ZR. Ainda assim, parte
da doutrina entende que a prática estaria abrangida pela vedação de
75
discriminação estabelecida no art. 9º do MCI. A ANATEL, no entanto, vem
adotando posicionamento contrário a este, no sentido de que a discriminação
do referido dispositivo abrange apenas a esfera técnica de gestão de tráfego,
estando excluída a esfera comercial de cobrança. Portanto, pode-se afirmar que
a prática atualmente é lícita, desde que não conflitante com outros dispositivos
estabelecidos em nosso ordenamento.
e. No âmbito concorrencial, a postura consolidada do CADE diante de restrições
verticais, como as que o ZR pode vir a ocasionar, é de que a análise será ex
post. Por conseguinte, conclui-se que não há de antemão qualquer vedação per
se ao ZR, restando a constatação de infração concorrencial sempre pendente de
evidências do caso concreto.
Efetuamos este trabalho em busca de conhecimento, e não de certeza. Ao fim dele, de
fato, permanecem dúvidas. Empiricamente ainda estão pouco claros os efeitos que as
diferentes abordagens de neutralidade de rede ou sua ausência causam. Neste sentido, também
os diversos modelos de negócios que com tal princípio dialogam, como é o caso do ZR,
também necessitam de estudos empíricos mais detalhados para que se possa delinear melhores
diretrizes para seu tratamento. Por este motivo e pelos apontamentos teóricos trazidos ao
longo deste trabalho, consideramos acertada a não vedação completa do ZR; no entanto, não
defendemos a liberação cega, sendo necessária a vigilância, sobretudo diante de certas
nuances apontadas neste trabalho, como a presença de integração vertical ou a incidência de
exclusividade nos acordos que geram a prática.
76
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