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Universidade Federal do Rio de Janeiro
PRISCILA GONSALEZ FALCI
OS MARTRIOS NA CONSTRUO DE SANTIDADES
GENDERIFICADAS: uma anlise comparativa dos relatos da Legenda
urea
Abril
2008
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NDICE
Introduo
1. Apresentao...................................................................................................... p.01
2. Pressupostos tericos ........................................................................................ p. 05
3. Discusso Bibliogrfica .................................................................................... p. 10
4. Jacopo de Varazze e a Legenda urea: reflexes ............................................ p. 19
Captulo 1 - Jacopo de Varazze e a Legenda urea: relaes entre
contexto e produo
1. Apresentao .................................................................................................... p. 26
2. Jacopo de Varazze e a Legenda urea: algumas consideraes
2.1 Relaes entre o contexto e a vida do dominicano ..................................... p.28
2.2 Consideraes sobre hagiografia e santidade ............................................... p.40
2.3 A Legenda urea ......................................................................................... p.44
2.3.1 Objetivos e destinatrios .................................................................... p. 46
2.3.2 O sculo XIII na Legenda urea: As rivalidades entre os mbitos civil e
espiritual .................................................................................................. p. 51
3. Consideraes parciais .......................................................................................... p. 54
Captulo 2 - As relaes de poder e a retomada do martrio sangrento:
A proteo da cristandade
1. Apresentao .................................................................................................... p. 57
2. O merecimento da coroa do martrio: variaes sobre o tema ......................... p. 58
3. O surgimento da Ordem dos Irmos Pregadores .............................................. p.63
4. A heresia ctara
4.1 Conceituando heresia .................................................................................. p.68
4.2 Os ctaros: Algumas respostas da Igreja e as relaes com a Ordem Dominicana
............................................................................................................................. p. 69
5. As cruzadas: entre guerra santa e peregrinao ................................................ p.76
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6. O surgimento da Ordem Dominicana e a Legenda urea: uma anlise do martrio
imaginrio de Domingos de Gusmo .......................................................... p.81
7. Consideraes Parciais ...................................................................................... p.84
Captulo 3 Algumas mrtires da Legenda urea e a construo de
santidades genderificadas: um estudo individual e comparativo
1. Santa Anastcia, a viva virgem ....................................................................... p.87
2. Santa gata, a santa gloriosa ............................................................................ p. 92
3. Santa Juliana e o temor do demnio ................................................................ p.106
4. Santa Eufmia, a santa nobre ........................................................................... p.110
5. Santa Catarina, a sbia de Alexandria ............................................................. p.118
6. A aplicao do mtodo comparado: resultados preliminares ......................... p. 129
Captulo 4 - Alguns mrtires da Legenda urea e a construo de
santidades genderificadas: um estudo individual e comparativo 1. So Vicente, o vitorioso .................................................................................. p.133
2. So Jorge: o drago e o sinal-da-cruz ............................................................ p.140
3. So Marcelino, o papa .................................................................................... p. 149
4. So Pedro Mrtir, o inquisidor ....................................................................... p. 151
5. So Tiago, o cortado ....................................................................................... p. 159
6. A aplicao do mtodo comparado: resultados preliminares .......................... p.165
Concluso.............................................................................................. p.171
Referncias Bibliogrficas ................................................................... p.178
Anexo..................................................................................................... p.187
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INTRODUO
1. Apresentao
A elaborao da presente dissertao de mestrado um desdobramento de nosso
estudo monogrfico, intitulado A construo de santidades genderificadas na Legenda urea:
Os relatos de Santo Ambrsio e de Santa Eugnia. Ambos foram realizados sob a orientao
da Prof. Dr. Andria C.L. Frazo da Silva.
A monografia foi desenvolvida a partir das reflexes suscitadas sobre os
concomitantes processos de construo da santidade e da identidade de gnero para um
determinado personagem, em textos hagiogrficos. Nesse trabalho, analisamos as relaes
desses processos em dois relatos presentes na compilao conhecida como Legenda urea1 a
saber: o de Santo Ambrsio (p.355/364) e o de Santa Eugnia (p.763/766). Conclumos que,
apesar da santidade ser inerente a ambos personagens, ela evidenciada e comprovada no
mbito social por percursos diferentes. Nesse sentido, tanto a afirmao da qualidade divina
como a prpria estruturao das narrativas so frutos de construes genderificadas.2
Ressaltamos que a importncia dessa etapa na graduao foi dupla para nossa
formao. Alm de aprofundarmos as nossas reflexes acerca dos Estudos de Gnero, tivemos
um maior contato com a obra LA do sculo XIII, compilada pelo dominicano Jacopo de
Varazze. E foi durante as nossas leituras que percebemos a constante e detalhada descrio
reservada s penas e maceraes sofridas pelos mrtires.
Portanto, comeamos a questionar o porqu deste destaque. Seria este parte da retrica
do compilador da hagiografia ou serviria a outros propsitos? Se levarmos em considerao
que Jacopo tambm priorizou documentos contemporneos s perseguies, como os mrtires 1 A partir desse momento, iremos nos referir a essa obra pela sigla LA. 2 Ao utilizarmos o termo genderificadas remetemo-nos a palavra anglo-saxnica gender. Este termo pressupe a anlise dos processos sociais e das relaes de poder envolvidos nas construes dos gneros, ou seja nas construes genderificadas.
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serviam aos interesses da Igreja, no sculo XIII? Como as relaes de poder institudas no
mbito religioso aparecem nos relatos de martrios antigos? Qual o papel das maceraes
somticas dos santos nas construes de uma santidade genderificada? Essas so as principais
questes que permearam nossa pesquisa para as quais elaboramos algumas hipteses
explicativas, que apresentaremos no decorrer dessa introduo.
A partir dessas questes iniciais, desenvolvemos nossa pesquisa, cujo objetivo central
foi examinar as estratgias narrativas utilizadas nos relatos sobre os mrtires selecionados
para a construo de santidades genderificadas. Em outras palavras, pensamos acerca das
relaes entre as identidades de gnero e as de santidade formadas em cada relato
considerando elementos como a posio social ocupada pelo cristo martirizado e o motivo
real do martrio.3 Mas, o que significaria o martrio no mbito do cristianismo?
A temtica martrio foi difundida por obras hagiogrficas, a partir do sculo II,
devido s perseguies aos cristos, o que conferiu outra significao a esse termo grego que
designava, originariamente, testemunha (martyr). O mrtir ou testemunha de Cristo passou
a ser aquele que, apesar de nunca ter visto ou ouvido Cristo em vida, estaria to convencido
da verdade do cristianismo que preferia morrer a renegar sua f.
Segundo Lucy Grig, no artigo Torture and truth in late antique martiriology,4 o mrtir
era um soldado de Cristo que confrontava a fora do mal, representada, nesse momento, pelo
estado romano. Este personagem desejaria a sua morte, exacerbando as torturas, j que, dessa
forma, quanto maiores fossem os seus sofrimentos, maior seria a demonstrao da vitria
crist coroada com a sua morte. Segundo a autora, os mrtires se tornaram os heris da Igreja
ps-Constantino, ganhando um significativo papel como representantes da Igreja triunfante.
3 Sublinhamos o motivo real do martrio, pois, mesmo nos relatos sobre personagens contemporneos s perseguies aos cristos, a defesa da f nem sempre era a verdadeira motivao para a execuo. 4 GRIG, Lucy. Torture and truth in late antique martiriology. Early Medieval Europe. v.2, n.4, p.321-336, 2002. p. 322.
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Concordamos com Rino Fisichella, no verbete Martrio , presente no LEXICON.
Dicionrio Teolgico Enciclopdico,5 que afirma que os martrios, construdos pelos
hagigrafos, foram norteados pela unio de quatro noes: a ecclesia, j que sem a Igreja no
haveria o martrio; o dom da vida, pelo mrtir simbolizar a doao da vida em nome de um
amor maior representado pela f; a cristologia, pois deixar-se morrer era seguir o exemplo de
Cristo, que deu a vida pelos irmos; e a defesa da verdade do Evangelho, j que o mrtir no
morre por si, mas para testemunhar sua f diante de seu perseguidor.
Aps o reconhecimento do cristianismo como religio oficial pelo Imprio, como
destaca Nri de Almeida Souza no artigo Hipteses sobre a natureza da santidade,6 a Igreja
iniciou um processo de exaltao da vida asctica. Essa nova modalidade de expresso da f
crist caracterizava-se por uma intensa ascese, com a valorizao da exposio do corpo alm
dos limites biolgicos, atravs de penitncias, das maceraes, da abstinncia sexual, dos
jejuns, entre outros, sendo identificada como martrio branco ou espiritual. Ou seja, a vida
asctica mantinha uma proximidade com o martrio de sangue: a superao da dor fsica.
Assim, nos anos iniciais do medievo, os santos eram aqueles que iam alm da condio
humana evidenciando, dessa forma, sua excepcionalidade em vida.
No sculo XIII, a sociedade ocidental passava por transformaes7 que despertaram o
desejo por um novo ideal de vida religiosa, acompanhado por uma diferente percepo da
santidade, que dentre outros aspectos, encontramos a retomada do desejo pelo martrio
sangrento, contudo, com uma marcada releitura. O mrtir no era mais o perseguido pela sua
f, mas sim aquele que morria na defesa da cristandade, contra os inimigos da Igreja e da
justia. 5 FISICHELLA, Rino. Martrio. IN: _____. PACOMIO, Luciano & PADOVESE, Luigi (Orgs.) Lexicon. Dicionrio Teolgico Enciclopdico. So Paulo: Loyola, 2003, p. 467-468. 6 SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: o Santo, o Heri e a Morte. Signum, n.4, p.11-46, 2002. 7 Segundo a pesquisadora Brenda Bolton, as mudanas ocorridas a partir do sculo XI, como o aumento populacional, o crescimento das cidades e do nmero de ofcios especializados, a formao de grupos maiores e mais dinmicos, a difuso de uma pregao no oficial, o contato com as heresias, entre outros, traziam uma valorizao do indivduo, o desenvolvimento da religiosidade leiga e a tentativa de retorno vita apostolica como interpretada a partir do Novo Testamento. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies 70, 1983.
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Nesse perodo, segundo Blasucci, o ideal de martrio aparecia na produo
hagiogrfica em diferentes acepes: vinculado ao desejo de martrio, indicando a perfeio
interior do cristo, que estaria disposto a dar a vida em nome da cristandade, caso a situao
se apresentasse; relacionado uma vida recheada de sacrifcios e obras de penitncia, que
seria a continuidade do martrio branco e morte do santo por testemunhar a sua f atravs da
defesa diante dos inimigos da cristandade, que era uma retomada do ideal do martrio de
sangue diferente de sua acepo durante s perseguies aos cristos.
Defendemos que estas distintas expresses vinculadas ao martrio indicariam a
importncia da qualidade de mrtir nas operaes de convencimento utilizadas pela Igreja.
Em outras palavras, as distintas modalidades, inseridas em contextos especficos,
configuraram-se de acordo com as relaes de poder estabelecidas pela e com a Santa S.8
Partindo dessas reflexes, iniciamos nossa pesquisa calcada na comparao de alguns
captulos da mesma obra, com a base terica nos estudos de gnero. Ao efetivar tal proposta
no mestrado, objetivamos compreender melhor as peculiaridades da LA em relao aos
processos de construo de gnero e de santidade. Logo, a nossa comparao, norteada pela
nossa questo de pesquisa, no visa comparar duas obras, mas a construo de dois discursos,
um sobre o feminino e outro sobre o masculino, dentro de um mesmo texto. Ou seja,
exploramos uma modalidade de Histria Comparada, que rompe com a idia de que s h
comparao em Histria quando correlacionamos duas sociedades diferentes ou dois
fenmenos diferentes, mas de mesma natureza, presentes em uma mesma sociedade.
Por fim, sublinhamos que como nosso interesse est nos relatos dos martrios da LA,
essa obra no foi examinada integralmente. Portanto, estabelecemos como critrio de seleo
dos relatos a ateno que reservada s descries das penas somticas, j que analisamos a
existncia de uma relao entre a nfase dada s torturas sofridas e a construo da identidade
de gnero. Neste sentido, desconsideramos os santos que apenas foram adjetivados de
8 Ressaltamos que, nesse trabalho, destacamos as relaes estabelecidas com os hereges, os infiis e os pagos.
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mrtires, aqueles que, na obra, apenas citado o tipo de morte sofrida, aqueles cujo o
falecimento no ocorreu claramente nas condies de mrtir9 e os que no foram nomeados
como tal. A partir dessa seleo, escolhemos alguns relatos sobre santos e santas, para anlise
e comparao.
Seguindo esses critrios, selecionamos 10 relatos, a saber: Santa Anastcia (p.103-
105); So Vicente (p.189-191); Santa gata (p.256-260); Santa Juliana (p.266-267); So
Jorge (p.365-370); So Marcelino (p.378-379); So Pedro Mrtir (p.387-400); Santa Eufmia
(p.810-812); Santa Catarina (p.961-967); e So Tiago, o cortado (p.974-977).10
Ressaltamos que nossa proposta foi destacar as narrativas sobre personagens de
distintos lugares ou funes sociais; como soldados, nobres, pregadores, papas e etc. No
entanto, destacamos que as mulheres mrtires, nas narrativas da LA selecionadas, so
enquadradas na sociedade apenas pela sua relao com personagens masculinos, possuindo os
papeis de me, viva, solteira, e etc.
2. Pressupostos tericos
Inicialmente, fundamental esclarecermos nossa postura em relao pesquisa
histrica, estabelecendo nossos pressupostos tericos e os conceitos de identidade e santidade
utilizados. Como nosso interesse reside na percepo e no estudo dos processos de construo
9 Blasucci afirma que o testemunho de f que o mrtir fornecia poderia assumir trs distintas formas: diante de tribunais ou suportando prises e maltratos por causa da f, contudo sem morrer (confessor que era o martrio incompleto ou incoativo advindo da confisso da f atravs da palavra); atravs de uma vida crist seguida com perfeita observncia da lei divina (martrio branco, do qual trataremos a seguir); e o testemunho selado com a morte (martrio perfeito, ou consumado ou de sangue). Contudo afirma que em todas essas modalidades e significaes de martrio foram acentuadas na relao entre esses personagens e Cristo, j que eles simbolizariam a extenso do seu sacrifcio de sangue. Como trabalharemos apenas com a ltima expresso de martrio, tomamos cuidado para no selecionarmos relatos sobre confessores, tambm presentes na LA, j que sofreram punies somticas como os mrtires. BLASUCCI, Antonio. Martrio, imolao, sacrifcio. In: GUIMARES, Almir Ribeiro (Org.). Dicionrio Franciscano. Petrpolis: Vozes, 1999. p.416-420. 10 Cabe sublinharmos que as pginas dos relatos referem-se as da edio brasileira realizada por Hilrio Franco Jr. JACOPO VARAZZE. Legenda urea; vida de santos. So Paulo: Companhia das Letras, 2003.
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de santidades genderificadas, nossa base terica encontra-se nos Estudos de Gnero,11 tal
como proposto pela historiadora Joan Scott.
Profundamente influenciada por Michel Foucault, Scott afirma que gnero o saber a
respeito das diferenas sexuais. Scott utiliza o conceito saber aplicando-o, segundo o filsofo,
como a compreenso produzida pelas culturas e sociedades sobre as relaes humanas.12
Essa produo do saber encontra-se no social, logo, consideramos que a concepo de gnero
e suas implicaes possuem viso marcadamente politizada. Ou seja, as construes de
gnero e sexo envolvem escolhas, interesses e relaes de poder.
Assim como Joan Scott, a pesquisadora Jane Flax, no artigo Ps-modernismo e
relaes de gnero na teoria feminista,13 defende que o paradigma identificado como ps-
moderno condio sine qua non para guiar os estudos de gnero. Dessa forma, essa teoria
contesta o aspecto racional e objetivo da cincia, nega sistemas explicativos gerais, no aceita
categorias como homem, mulher, feminino, masculino nem dicotomias como, por
exemplo, natureza-cultura, mulher-homem fixas e universais, descartando os aspectos
naturalizados oriundos da lgica biolgica. Em suma, partindo desses pressupostos,
questionamos e propomos a desconstruo/ construo de determinados conceitos, j que no
so naturais, estveis, trans-histricos.
Partindo desses pressupostos, destacamos que, no perodo medieval, o discurso
hegemnico construdo sobre o gnero era caracterizado por uma viso misgina. Segundo
11 Para mais informaes sobre os pressupostos dos Estudos de Gnero e as suas relaes com corpo e sexo, cf. FLAX, Jane. Ps-modernismo e relaes de gnero na teoria feminista. In: HOLLANDA, Helosa Buarque (Org). Ps-modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p. 217-250; GULLEY, A. Heo Man Ne Waes": Cross-Dressing, Sex-Change, and Womanhood in Aelfric's Life of Eugenia. Mediaevalia: A Journal of Medieval Studies, v. 22, n.1, p.113-131, 1998; LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo. Corpo e gnero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 2001; SCOTT, Joan. Gnero: uma categoria til para os estudos histricos. Educao e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, dez. 1990; _____. Histria das mulheres. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da Histria. So Paulo: Unesp, 1992. p. 64-94; _____. Prefcio a Gender and Politics of History. Cadernos Pagu, n.3, p.11-27, 1994; SILVA, Andria C. L. Frazo da. Reflexes metodolgicas sobre a anlise do discurso em perspectiva histrica: paternidade, maternidade, santidade e gnero. Cronos: Revista de Histria, Pedro Leopoldo, n. 6, p. 194-223, 2002; _____. Reflexes sobre o uso da categoria gnero nos estudos de Histria Medieval no Brasil. Caderno Espao Feminino, v.11, n.14, p. 87-107, jan./ jul. 2004. 12 SCOTT, Joan. Op.cit., p.12. 13 FLAX, Jane. Op.cit., .p. 217-250.
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Laqueur,14 homens e mulheres eram identificados como variantes vertical e hierarquicamente
ordenados do mesmo sexo: o masculino, superior, e o feminio, inferior. Sendo a diferena
qualitativa, ou seja, quanto mais prximo do masculino, mais perfeito e perto de Deus. As
fronteiras entre o masculino e o feminino eram, portanto, de grau, no de espcie. Havia um
nico sexo, cujas variaes relacionavam-se a uma ordem superior, que transcendia o
biolgico. A patir desses elementos, consideramos o sexo uma construo situacional, que
apenas pode ser entendido dentro do contexto de luta sobre gnero e poder.
Neste sentido, o gnero antecede ao biolgico,15 pois, nesta perspectiva, qualquer
olhar construdo sobre o natural cultural. No estamos com isso negando a materialidade do
corpo, apenas ressaltando que a compreenso do corpo no se fundamenta puramente no
biolgico. No artigo O corpo e a reproduo da feminilidade: uma apropriao feminista de
Foucault,16 a filsofa Susan Bordo discute os conceitos de corpo inteligvel e de corpo
prtico a partir das concepes culturais construdas acerca dos corpos. Segundo Bordo,
atravs de discursos filosficos, cientficos e estticos, o corpo ganha sentido, tornando-se
inteligvel. E esses mesmos discursos podem funcionar como regras e regulamentos prticos,
que condicionam o corpo, adaptando-os socialmente, tornando-os teis.
Encontramos postura semelhante no antroplogo Jos Carlos Rodrigues, no livro Tabu
do corpo,17 no qual argumenta que cada cultura atribui significados especficos aos
comportamentos e/ ou elementos relacionados materialidade orgnica, alm de inibir ou
exaltar impulsos instintivos. A constncia de determinados discursos e representaes do
corpo acabam internalizando-os e tornando-os parte do controle e da disciplina pessoal
14 LAQUEUR, J. Op. Cit. 15 Para mais informaes sobre o lugar do corpo, cf. CANNING, Kathleen. The Body as Method? Reflections on the Place of the Body in Gender History. Gender and History, v. 11, n. 3, p.499-513, nov. 1993; BORDO, Susan e JAGGAR, Alison M. Gnero, corpo, conhecimento. Rio de Janeiro, Record: Rosa dos Tempos, 1997; FEHER, Michelet et al. (Ed.). Fragmentos para uma historia del cuerpo humano. Madrid: Taurus, 1990; MONTSERRAT, Dominic. Changing bodies, changing meaning. Studies on the human body in Antiquity. London, New York: Routledge, 1998; RODRIGUES, Jos Carlos. Tabu do corpo. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1986; _____. O corpo na Histria. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999; PORTER, Roy. Histria do corpo. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da histria. Novas perspectivas. So Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. p. 291-327; LAQUEUR, Thomas. Op.cit. 16 BORDO, Susan e JAGGAR, Alison. Op. Cit. 17 RODRIGUES, Jos Carlos. Tabu do corpo... Op.Cit.
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corporal. Por conseguinte, normas e regras sobre o corpo so apresentadas como naturais. O
historiador Roy Porter, no artigo Histria do corpo, complementa; o corpo no pode ser
tratado pelo historiador, simplesmente como biolgico, mas deve ser encarado como mediado
por sistemas de sinais culturais.18
Assumimos para nosso estudo que no corpo e atravs dele que se inscrevem os
elementos de determinada cultura, inclusive os de gnero. Nesta lgica, os corpos das
mulheres e os corpos dos homens no so naturalmente imbudos dos mesmos smbolos e
significados, pois so historicamente construdos. E por possuir historicidade, o corpo e seus
limites so flexveis.19
Desta forma, reafirmamos que no existe uma materialidade orgnica inteligvel fora
de uma perspectiva cultural. Mas nossa compreenso dos pressupostos dos estudos de gnero
no descarta a materialidade orgnica na fabricao de sentidos, j que o corpo um dos
lugares onde se travam lutas de poder genderificadas. Assim, o entendimento dos homens e
das mulheres das suas especificidades corpreas fruto de relaes de gnero pr-existentes.
Toda a construo sobre uma dada viso de gnero realizada e mantida sobre um
determinado grupo de indivduos e em um momento e espao.
Sustentamos, como Jane Flax,20 que as relaes de gnero constituem todos os
aspectos da experincia humana, sendo constituintes dela. A categoria gnero toca nas
relaes entre sexos diferentes, entre indivduos do mesmo sexo, na construo das
identidades e sexualidades individuais e coletivas, abragendo um complexo conjunto de
relaes sociais. Todos esses elementos esto presentes na construo dos significados,
variantes no tempo e espao, dos gneros e dos sexos. Eles estabelecem os efeitos de serem
atribudos a uma ou outra categoria dentro das prticas sociais concretas como, por exemplo,
18 PORTER, Roy. Op.Cit. 19 De acordo com o antroplogo Jos Carlos Rodrigues, no livro O corpo na Histria, j citado, cada cultura atribui significados especficos a comportamentos e/ ou elementos relacionados materialidade orgnica, alm de inibir ou exaltar impulsos instintivos. Dessa forma, as normas e regras sobre o corpo so apresentadas como naturais. 20 FLAX, Jane. Op. Cit.
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a insero nas relaes de poder. Contudo, em nossa pesquisa, utilizamos essa categoria de
anlise integrada ao conceito de identidade, sendo assim, importante explicarmos como o
compreendemos e o empregamos.
No artigo Identidade e diferena: introduo terica e conceitual, Kathryn
Woodward21 analisa o conceito de identidade na perspectiva dos estudos culturais. A autora
afirma que a identidade obrigatoriamente relacional, ou seja, sua construo realizada
atravs da delimitao abstrata e simblica de diferenas. Para existir, uma identidade precisa
de outra, externa e distinta dela.
A relao entre diferentes identidades construda culturalmente e sua percepo
depende das escolhas realizadas. Nesse sentido, ao marcamos determinadas diferenas,
obscurecemos outras.22 Outro elemento base na construo da identidade a identificao. A
autora afirma que a identificao resulta de aparentes similaridades, nas quais no h
conscincia da diferena. Em suma, a identidade resultante de um flexvel jogo de delimitar,
manter e questionar diferenas e similaridades.
Nesse sentido, a construo e a manuteno de identidades vinculam-se a dois
processos distintos e concomitantes; o social e o simblico. Segundo Woodward, a marcao
simblica o meio pelo qual damos sentido a prticas e s relaes sociais, (...). por meio
da diferenciao social que essas classificaes da diferena so vividas nas relaes
sociais.23 Nesta lgica, as diferenciaes extravasam o simblico, sendo percebidas nas
relaes do indivduo com seus pertences e nas suas prticas sociais.
Em nossa perspectiva, algumas ressalvas so necessrias. A primeira que a
identidade, a sexualidade, o gnero, o sexo e o corpo no esto obrigatoriamente interligados,
um no determinante de outro. Por enquadrar-se em processos de significao, a relao
21 WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferena: introduo terica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferena: a perspectiva dos estudos culturais. Petrpolis: Vozes, 2000. p.7-72. 22Ainda nesta questo, defendemos que, alm das mltiplas associaes simblicas nas construes de identidade, estas so realizadas por duas perspectivas, muitas vezes conflitantes: a individual e a externa ao indivduo, mas atribuda a ele. 23 Ibidem. p.14.
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entre essas categorias culturalmente varivel e historicamente especfica. Assim, ao
pensarmos sobre identidades de gnero estamos preocupados com processos de significao,
com os sistemas simblicos, com as relaes sociais e com as de poder imputadas nelas.
Partindo desses pressupostos, trabalhamos de forma relacional a constituio do gnero e da
santidade.
Sublinhamos que empregamos o conceito santidade conforme Andria Frazo
Cristina da Silva, no artigo Reflexes sobre o uso da categoria gnero nos estudos de Histria
Medieval no Brasil (1990 2003), considerando que essa categoria seria o conjunto de
comportamentos, atitudes e qualidades que num determinado lugar e tempo so critrios para
considerar o indivduo como venervel, seja pelo reconhecimento oficial da Igreja ou no.24
Nesse sentido, tambm seria uma produo histrica, particular e dinmica, isso porque,
assim como as construes de gnero, as de santidade so realizadas a partir de relaes de
interesse e poder estabelecidas em cada momento histrico.
Vamos nos deter um pouco sobre a expresso santidades genderificadas. Esta foi
adotada pois em nosso trabalho interessa-nos as relaes entre os corpos e os processos de
construo das identidades de gnero e as de santidade. A partir do estudo destes trs
elementos, o corpo, a santidade e a identidade de gnero , que no so naturais mas
construdos, vamos pensar sobre as diferenas e as semelhanas existentes nos percursos dos
mrtires nas narrativas selecionadas.
3. Discusso Bibliogrfica
Em nosso debate bibliogrfico, optamos por dois caminhos complementares para a
seleo das obras. O primeiro diz respeito aos trabalhos que tratam do martrio, pensando-o,
de alguma forma, em relao ao corpo e/ ou ao gnero. Em seguida, focamos em textos que
24 SILVA, Andria C.L. da. Reflexes sobre o uso da categoria gnero... Op. Cit. p.101.
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analisam os martrios da LA pela perspectiva terica dos Estudos de Gnero. Nossa discusso
centrou-se nesses materiais, contudo, apenas destacamos os objetivos centrais de cada texto,
ou seja, no faremos uma anlise exaustiva de cada um, j que nossa finalidade apresentar
os diferentes modos pelos quais esse tema j foi explorado.
Inicialmente, destacamos os textos nos quais o martrio foi trabalhado em relao com
corpo no Imprio Romano e nas descries literrias da Antigidade Tardia e da Alta Idade
Mdia. Ainda mantendo-nos nessa abordagem, trataremos da sexualizao dada ao martrio
sofrido pelas virgens. Fecharemos essa parte inicial com anlise dos argumentos centrais de
trs artigos que utilizaram a categoria gnero para o estudo dessa temtica.
Aps essa viso mais geral, deteremo-nos nas pesquisas que estudaram as relaes
sociais implicadas nos martrios do sculo XIII, examinando as associaes estabelecidas
entre a Igreja e os novos mrtires. Em seguida, focalizaremos nossa ateno em trabalhos que
analisam os corpos martirizados na LA, para, por fim, concluirmos com o nosso
posicionamento frente a tais obras e como nossa pesquisa contribuir para enriquecer o debate
sobre tal tema.
Investigando a relao do ideal de martrio com o poder imperial romano destacam-se
os artigos de Merrall Llewelyn Price, Purifying violence: Santity and the somatic, de 2001,25 e
de Philippe Buc, Martyre et ritualit dans lantiquit tardive. Horizons de lcriture
mdivale ds rituels, de 1997.26 Em ambos, temos a defesa de uma marcada ligao entre o
martrio e o Imprio Romano,27 com o foco no corpo condenado do mrtir, que por poder
adquirir aspectos sagrados, alteraria o significado da justia romana e das punies somticas,
25 PRICE, Merrall Llewelyn. Purifying violence: Santity and the somatic. Gender and Medieval Studies Conference, York, January 5-7 2001. Disponvel em http://tango.lib.uiowa.edu:8003/smfs/search.taf?function= detail&Layout_0_uid1=39336. Consulta em 20/08/2008. 26 BUC, Pilipphe. Martyre et ritualit dans lantiquit tardive. Horizons de lcriture mdivale ds rituels. Annales. Histoire, Sciences Sociales, v.52, n.1, p. 63-92, 1997. 27 Destacamos que h outros textos que, ao trabalharem a relao entre o cristianismo e o Imprio Romano, mencionam a questo do martrio de forma pontual, por isso no foram utilizados nessa discusso. Cf.: BENKO, Stephen. Pagan Rome and the Early Christians. London: B. T. Batsford, 1985; BERR, Jean de. L'aventure chrtienne. Paris: Stock, 1981; BOWERSOCK, Glen Warren. Martyrdom and Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 1995; SORDI, Marta. Los Cristianos y el Imperio Romano. Madrid: Encuentro, 1988; STE CROIX, G. E. M. de. Por que fueron perseguidos los primeiros cristianos? In: FINLEY, Michael. I. (Org.). Estudios sobre Historia Antigua. Madrid: Akal, 1981. p. 253-78.
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trazendo a presena de Deus diante dos que assistiam ao espetculo e dos que o comandavam.
Llewelyn ainda articula essa hiptese a uma funcionalidade especfica das obras hagiogrficas
contemporneas s perseguies. Para o autor, elas no apenas reafirmavam esse carter
divino, como tambm relembravam e subvertiam o espetculo somtico, descrevendo-o de
forma santificada e sexual.
Atravs do estudo de autores cristos e no-cristos antigos, Judith Perkins, no texto
The Suffering Self: Pain and Narrative Representation in the Early Christian, publicado em
1998,28 trata do surgimento de uma cultura do sofrimento pessoal, na Igreja Antiga, na qual
o ato de sofrer valorizado como base para uma relao mais ntima com a divindade. Nesse
sentido, a presena da dor, da doena e do padecimento, o que inclui o martrio, simbolizava a
vitria crist e a afirmao divina.
Mara Amparo Pedregal Rodrgues, no artigo Las mrtires cristianas: gnero,
violencia y dominacin del cuerpo femenino,29 de 2000, argumenta que a dor fsica sentida
pelos mrtires possua uma incidncia especial sobre o corpo das mulheres, por conta da
contruo dos arqutipos femininos, sendo, geralmente, associado ao material, submetido as
leis da natureza, caracterizado pela debilidade e pela passividade. Nesse sentido, Rodrgues
defende que o tratamento fornecido ao corpo nos relatos das santas mrtires, entre os sculos
II e IV d.C., permitia aos autores cristos apresent-las sob uma aparente subverso de sua
debilidade fsica em razo do sexo (infirmitas sexus) e da violncia, deliberadamente
experimentada por elas como via para transgredir as estruturas de gnero da sociedade pag.
No entanto, apesar de sua comprovada capacidade para superar as limitaes de sua natureza,
seguem sendo, para pagos e cristos, essencialmente, corpos sexuados que precisam ser
controlados.
28 PERKINS, Judith. The Suffering Self: Pain and Narrative Representation in the Early Christian Era. New York: Routledge, 1995. 29 RODRGUEZ, Mara Amparo Pedregal. Las mrtires cristianas: gnero, violencia y dominacin del cuerpo femenino. Studia historica. Historia antigua, n.18, p. 277-294, 2000.
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No livro de Dominic Montserrat, de 1998, Changing bodies, changing meaning.
Studies on the human body in Antiquity,30 encontramos um caminho de pesquisa diferenciado.
O argumento principal que os autores cristos da Antigidade Tardia e da Alta Idade Mdia
utilizavam-se da destruio fsica para a produo e a promoo do culto aos mrtires. Os
relatos de martrios funcionariam, assim, como uma das operaes de convencimento da
Igreja. Por fim, Montserrat distingue o tratamento dado s virgens mrtires nas obras crists.
Ela afirma que a mortificao da virgem representaria um ato de violncia sexual. As
construes eram, neste sentido, genderificadas.
Kathleen Kelly Coyne, no artigo Useful virgins in Medieval Hagiography, de 1999,31
tambm confere uma natureza sexual aos martrios das virgens. Todavia, ao contrrio de
Montserrat, defende que o elemento sexual estaria impregnado de contedos moralizantes,
como a celebrao da castidade e supresso das tentaes do corpo. Coyne sublinha que,
apesar destas vitrias, o martrio no fornecia um status superior para a santidade das
virgens, j que esta somente era construda e comprovada a partir de forte violncia. Por fim,
articula a flexibilidade do corpo torturado das virgens com a Igreja, sob as perseguies
pags. A virgem torturada funcionava como um artifcio cultural que no apenas preservaria a
memria da Igreja como tambm comprovava o seu carter divino, no mundano.
Em perspectiva distinta, no artigo Significaciones de los martirios de Eulalia de
Mrida, de 1999, Raquel Homet32 trabalha com a comparao de dois relatos sobre o martrio
de Eullia; um hino do sculo IV e uma Paixo do sculo VII. No primeiro, a virgem
martirizada assume um comportamento violento em resposta aos mpetos sexuais do
Imperador, sendo assim, o foco estaria na relao entre o paganismo e o cristianismo, com o
estabelecimento da Igreja triunfante.
30 MONTSERRAT, Dominic. Changing bodies, changing meaning. Studies on the human body in Antiquity. London e New York: Routledge, 1998. 31 COYNE, Katheleen Kelly. Useful virgins in Medieval Hagiography. In: CARLSON, Cindy L. et WEISL, Angela Jane (Ed.). Constructions of Widowhood and Virginity in the Middle Ages. New York: St. Martin's Press, 1999. p.135-164. 32 HOMET, Raquel. Significaes de los martirios de Eulalia de Mrida. In: _____. et al. Aragon en la Edad Media XIV-XV. Zaragoza: Universidade de Zaragoza, 1999. p.759-775.
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Na anlise da paixo, Homet aponta que haveria uma construo do governante da
cidade como um ser encarnado pelo mal. A autora defende que, nessa paixo, a fora
espiritual da virgem mrtir encontrava-se na resistncia aos tormentos sofridos pela sua f.
Assim, Homet conclui que, apesar de ambos os documentos colocarem nfase no martrio
como testemunho de Eullia, o tratamento dado profundamente diferente.
Considerando essas diferentes abordagens, daremos relevo ao trabalho da
pesquisadora Maud Burnett McInerney, no livro Eloquent virgins from Thecla to Joan of Arc,
de 2003,33 que aponta que o tratamento dado s virgens mrtires, nos documentos, variou
segundo o sexo do autor. Ela analisa textos de Ambrsio, Tertuliano, Hidelgarda, Hrotsvitha,
entre outros. A partir desse estudo, ela defende que em cada perodo histrico h duas
retricas sobre as virgens mrtires: uma masculina e uma feminina.
Segundo McInerney, na perspectiva dos autores masculinos, as narrativas eram
construdas a partir da falta de conhecimento do corpo feminino, apresentando um marcado
voyerismo, perceptvel nas descries da violncia sexual e das torturas somticas. Nestas
narrativas, as personagens eram diminudas exaltao de sua pureza virginal e de valores
como obedincia, passividade, vulneralibilidade e silncio. No entanto, ao comparar com
textos de autoras femininas, ela percebe a construo de narrativas que colocam as virgens
mrtires como ativas e inteligentes, capazes de realizarem suas prprias escolhas, e poderosas
ao lidarem com homens vis e injustos. Sendo assim, a proposta dessas obras era que, atravs
da virgindade, as personagens exercessem seu potencial como mulheres. McInerney conclui
que o corpo da virgem foi descrito e percebido de modos diferenciados pelos autores
estudados, possuindo implicaes sociais, teolgicas e de gnero distintas.
Conclumos a primeira parte de nosso debate bibliogrfico com trs textos que
apresentam outras possibilidades de considerar o papel do martrio: The Severed Breast: A
33 MCINERNEY, Maud Burnett. Eloquent virgins from Thecla to Joan of Arc. New York: Palgrave Macmillan, 2003.
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Topos in the Legends of Female Virgin Martyr Saints, de Kirsten Wolf, de 1997;34 Heo Man
Ne Waes": Cross-Dressing, Sex-Change, and Womanhood in Aelfric's Life of Eugenia, de
Alison Gulley, de 1998;35 e no mais recente, de 1999, Gender and Martyrdom, de Evelyn
Birge Vitz.36 Apesar de trabalharem com diferentes obras hagiogrficas, as trs autoras
estabelecem que o mrtir era um smbolo de renncia da materialidade em favor da
espiritualidade. A tortura e a morte eram assimiladas como garantias de salvao, ao
anteciparem o pagamento de uma dvida. Em vista disso, as punies somticas auxiliariam
na absolvio da alma.
Esse segundo momento de nossa apresentao uma reflexo que foi fundamental
para nossa pesquisa, por tratar o tema martrio no mesmo recorte temporal que o nosso, alm
de focar nos santos mendicantes ao analisar as relaes entre a Igreja e os novos mrtires,
no sculo XIII. Trabalharemos com as propostas dos artigos Martyrdom, Popular veneration
and Canonization, de James Ryan, de 2004,37 e Os mrtires da Legenda urea: a reinveno
de um tema antigo em um texto medieval, de Carolina Coelho Fortes, de 2005.38
Ryan afirma que a Igreja incentivava os missionrios franciscanos a rumarem s terras
dos infiis e dos pagos, com o propsito da converso, afirmando que aqueles que perdessem
a vida na defesa da cristandade teriam os pecados perdoados e a entrada certa no reino de
Deus.39 Contudo, o autor argumenta que queles que morreram para proteger a f crist, e,
portanto, em uma situao similar aos mrtires das perseguies, no tiveram a sua santidade
reconhecida pela Igreja Romana.
34 WOLF, Kristen. The Severed Breast: A Topos in the Legends of Female Virgin Martyr Saints. Archiv fr Nordisk Filologi, v.112, p. 97-112, 1997. 35 GULLEY, Alison. Op. Cit. 36 VITZ, Evelyn Birge. Gender and Martyrdom. Medievalia et Humanistica, n. 26, p.79-99, 1999. 37 RYAN, James. Missionary saints of High Middle Ages. Martyrdom, Popular veneration and Canonization. The Catholic Historical Review, v. 90, n.1, p.1-28, 2004. 38 FORTES, Carolina Coelho. Os mrtires da Legenda urea: a reinveno de um tema antigo em um texto medieval. In: LESSA, Fbio & BUSTAMANTE, Regina (Orgs.). Memria e Festa. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 375-400. 39 Ryan sublinha ainda que o Papa Inocncio III escreveu algumas cartas para as ordens dominicana e franciscana garantindo a recompensa para as pessoas ligadas a essas ordens que morressem em nome de Cristo. No entanto, as canonizaes s comearam a partir do sculo XIV. RYAN, James. Op. Cit. p.5.
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Ele atribui essa cautela em realizar novas canonizaes ao fato de que o
reconhecimento oficial da santidade poderia endossar os cultos populares que, muitas
vezes, eram sobre pessoas que foram renegadas pela Igreja, como os herticos e os cismticos.
Assim, passou a haver a necessidade de uma investigao sobre a santidade, trazendo essas
esferas das prticas populares para seu controle e aprovando os que eram de seu interesse.
Possuindo uma hiptese semelhante, Carolina Fortes complementa que o influxo de novos
santos foi visto como uma ameaa ao status de cultos mais antigos e tradicionais, e tambm
levantou o espectro de uma Igreja fragmentada na qual toda pequena comunidade veneraria
santos diferentes.40
O objeto central do artigo de Fortes , contudo, a retomada do tema martrio pela LA.
Segundo a historiadora, o fato de Jacopo ter-se baseado, principalmente, em obras da
Antigidade Tardia e da Alta Idade Mdia, que abordavam os sculos I-IV, fez com que a
santidade martirolgica tivesse papel de destaque na compilao. A autora argumenta que
Jacopo, ao escolher mrtires que se colocavam frente aos poderes seculares que lhe eram
contemporneos, estaria tratando de questes relativas a seu tempo.41
Por tratar das formas como esses personagens apareciam na LA e as relaes entre as
maceraes somticas, o sofrimento e a santidade, destacamos o trabalho de Nri de Almeida
Souza intitulado Hipteses sobre a natureza da santidade: o Santo, o Heri e a Morte, de
2002.42 A autora constri a hiptese que Jacopo de Varazze utilizou-se do sofrimento e da
mortificao para construir um tipo especfico de santidade ligada a ascese e ao martrio.
Assim, o martrio na LA relacionar-se-ia com a subverso dos sentidos e sentimentos, em que
a vida terrena do santo d-se com a permanente exposio do corpo aos limites da
sobrevivncia.43 Assim, o que aconteceria ao corpo santo atestaria o destino de sua alma.
40 FORTES, Carolina Coelho. Ibidem. p.7. 41 Nesse sentido, a LA marcaria a idia que, invariavelmente, os perseguidores seriam punidos pelos seus atos. 42 SOUZA, Nri de Almeida. Op. Cit. 43 Ibidem. p.13.
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Nesse sentido, ela afirma que esta compilao divulga um ideal de santidade que derrota a
morte ao entregar-se a ela.
Ainda dentro dessa mesma temtica, no artigo Reprsentations du corps dans la
Lgende Dore, de 1976, Marie-Christine Pouchelle44 enfatiza que Jacopo de Varazze no
nega a importncia do corpo para os mrtires, pelo contrrio, a obstinao dos santos em
expor a carne em si o objeto de suas preocupaes. A dor proporcionaria uma ligao entre
dois plos, o privilegiado (a alma) e o anulado e desprezado (o corpo), permitindo que o santo
existisse entre o plano terreno e o espiritual. O aspecto sexual do martrio tambm apontado
pela autora: a dor fornece prazer. Neste ponto, Pouchelle sublinha que as descries das
maceraes e dos sofrimentos assumem, em muitos momentos, um carter ertico. Conclui
que a assimilao do prazer carnal s torturas corresponderia converso de splicas em
delcias, fenmeno comum dentre os relatos da LA.
Refletindo sobre as obras apresentadas na primeira parte de nossa apresentao
bibliogrfica, verificamos que o martrio examinado em relao ao Imprio Romano e s
leis e prticas civis pelos autores Llewlyn45 e Buc,46 que percebem que a presena do corpo
do mrtir conferia ao espetculo somtico a possibilidade do divino. No entanto, para alguns
autores, o sofrimento foi tratado de duas formas distintas nos documentos contemporneos s
perseguies. Perkins47 defendeu que os textos antigos valeram-se deste para afirmao da
vitria crist em relao aos seus perseguidores e no outro artigo analisado, Montserrat48
percebe que os documentos da Antigidade Tardia e da Alta Idade Mdia exploraram as
punies sofridas, possibilitando o desenvolvimento e a expanso do culto aos mrtires.
A autora Montserrat tambm trabalha a questo do tratamento concedido s virgens
mrtires, nas obras crists, percebendo-o como profundamente sexualizado. Em contrapartida,
44 POUCHELLE, Marie-Chistine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise, v.4, p. 293-303, 1976. 45 LLEWLYN, Merrall. Op. Cit. 46 BUC, Pierre. Op. Cit. 47 PERKINS, Judith.Op.Cit. 48 MONTSERRAT, Dominc. Op. Cit.
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Coyne49 defende que a conotao sexual dos relatos possuiria um marcado teor moralizante,
adequado aos preceitos religiosos. J as obras de Homet50 e o de McInerney,51 ao trabalharem
comparativamente dois documentos sobre o modelo martirial de Eullia e sobre os escritos
masculinos e femininos sobre as virgens, respectivamente, mostram que o contedo e as
conotaes dadas aos documentos analisados so marcadamente diferentes.
Por ltimo, Wolf,52 Gulley53 e Vitz54 percebem o martrio como a libertao da alma
aprisionada no corpo. Sendo assim, a partir do plano geral do debate, destacamos que o
martrio foi tratado pelos pesquisadores como smbolo do divino e da vitria do cristianismo,
e, no caso das virgens, imbudo de aspectos sexualizados. Contudo, destacamos a colocao
do mrtir como um importante representante da Igreja triunfante sobre os seus inimigos.
No entanto, para o sculo XIII, Ryan55 defende que a Igreja assumiu um
comportamento ambguo em relao aos novos mrtires. Se, por um lado, os incentivava para
rumarem s terras dos infiis e pagos para convert-los, prometendo a coroa do martrio para
os que falecessem; por outro se mostrava indiferente s canonizaes destes. No artigo de
Fortes,56 temos como justificativa que a Igreja procurava, nesse momento, regulamentar e
controlar os cultos populares.
Por fim, sublinhamos os trabalhos de Pouchelle57 e Souza58 acerca das maceraes
somticas sofridas pelos mrtires na LA. As autoras apontam que Jacopo utiliza-se do
sofrimento para construir um tipo ideal de santidade, afirmando que o compilador colocaria a
dor como parmetro definidor do destino da alma da pessoa.
Assim, encontramos pesquisas que trabalharam com a temtica martrio com outras
preocupaes, como a virgindade ou o corpo martirizado, contudo nenhuma esteve atenta s
49 COYNE, Katheleen Kelly. Op.Cit. 50 HOMET, Raquel. Op.Cit. 51 MCINERNEY, Maud Burnett. Op. Cit. 52 WOLF, Kristen. Op. Cit. 53 GULLEY, Alison. Op. Cit. 54 VITZ, Evelyn Birge. Op. Cit. 55 RYAN, James. Op. Cit. 56 FORTES, Carolina Coelho. Op. Cit. 57 POUCHELLE, Marie-Chistine. Op.Cit. 58 SOUZA, Nri de Almeida. Op. Cit.
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construes de identidades de gnero relacionadas s de santidade dentro desses relatos. Neste
sentido, nosso trabalho avanar por um caminho ainda muito pouco explorado, discutindo as
particularidades dos mrtires da LA na construo de santidades genderificadas. Acreditamos,
portanto, que nosso estudo apresenta novas vises e possibilidades, enriquecendo o debate
realizado sobre tal tema.
3. Jacopo de Varazze e a Legenda urea: reflexes metodolgicas
Jacopo de Varazze entrou na Ordem Dominicana em 1244. Seguiu anos estudando,
pregando e ensinando os preceitos cristos calcados no Evangelho, no nordeste da Pennsula
Itlica. Foi eleito Provincial da Ordem Dominicana na Lombardia, em 1267. Alguns
pesquisadores apontam que o gnoves teria participado dos captulos de Luca, em 1288, e de
Ferrara, em 1290. Assim, ele estava imerso nos preceitos dominicanos, como tambm na
hierarquia eclesistica, que certamente influenciaram na organizao da compilao, que
respeitou o calendrio litrgico estabelecido pela Igreja e utilizado pela Ordem.
A data de produo dessa compilao vista como controversa e vaga. Concordamos
com Carolina Coelho Fortes, que, na sua dissertao Os atributos masculinos das santas na
Legenda urea. Os casos de Maria e Madalena,59 aps avaliar diferentes hipteses, situa a
primeira redao no incio da dcada de 60 do sculo XIII. Destacamos que a tradio
hagiogrfica, nesse momento, valorizava o modelo de santidade asctica e martiriolgica.
mister destacarmos que como o trabalho emprico de nossa pesquisa se centra no
exame comparativo dos relatos de mrtires presentes na LA selecionados, optamos por
trabalhar com duas edies da obra. A primeira a recente edio brasileira de 2003,
organizada por Hilrio Franco Jr., com 175 captulos. Sua base est na edio crtica de T.
59 FORTES, Carolina Coelho. Os atributos masculinos... Op.Cit.
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Graesse,60 por sua vez, fundamentada em outras verses, a saber: a francesa do abade J.-B.
Roze, de 1967, e a inglesa de G. Ryan e H. Ripperger, de 1941. Para enriquecer a anlise e
contornar certos problemas relacionados traduo, cotejamos o texto com a edio
eletrnica, em latim, de Giovanni Paolo Maggioni, baseada no estudo de dezenas de
manuscritos contemporneos compilao.61
H um intenso debate sobre a prpria organizao textual original da obra, que
questiona quantos foram os captulos compilados diretamente por Jacopo, que variam entre
175 e 182. Esse debate figura como um dos maiores problemas em se trabalhar com a LA: as
modificaes que sofrera durante os sculos. Esses questionamentos devem-se,
principalmente, existncia de, aproximadamente, 1100 manuscritos da obra.
Devido a essa difuso da compilao e de seus muitos manuscritos, ela considerada
um marco histrico, perpetuado atravs de diversas edies ao longo dos sculos. Como
sofreu acrscimos e revises ao longo dos anos, afirmamos que a compilao foi resultado de
um longo processo intelectual, coerente com as prprias experincias religiosas do
compilador. Durante nossa pesquisa, aprofundamos tais questes e aspectos, correlacionando-
os s prprias escolhas de Jacopo.
A metodologia aplicada em nossa pesquisa foi a identificao e problematizao dos
diversos elementos que configuram a narrativa do martrio, e que a tornam um todo de
sentido. Para tanto, trabalhamos com o levantamento de informaes dos relatos selecionados
que foram organizadas em quadros de leitura especficos aos nossos interesses.62 Estes foram
analisados individual e comparativamente.
Nossa aplicao do mtodo baseia-se nas argumentaes do socilogo Paul Veyne, no
livro O Inventrio das diferenas, 63 e do historiador Jrgen Kocka que, no artigo Comparison
60 Edio impressa em 1845, reimpressa em 1890 e em 1969 com o ttulo Legenda urea, vulgo histria lombardica dicta. 61 IACOPO DA VARAZZE. Legenda urea su CD-ROM. Texto latino delledizione critica a cura de Givanni Paolo Maggioni. Firenze: SISMEL-Galuzzo, 1999. 62 Cf. ANEXO 1 QUADROS DE LEITURA UTILIZADOS. 63 VEYNE, Paul. O inventrio das diferenas. Histria e Sociologia. So Paulo: Brasiliense, 1983
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and beyond,64 apresenta sua definio de comparao: Para os propsitos desse comentrio
eu quero enfatizar que comparar em Histria significa discutir dois ou mais fenmenos
histricos sistematicamente a respeito de suas singularidades e diferenas de modo a se
alcanar determinados objetos intelectuais. 65
Nesse trabalho, Kocka ainda afirma que os objetivos da comparao iro variar
segundo a perspectiva terica do pesquisador, fornecendo quatro diferentes propsitos do
mtodo: heursticos, descritivos, analticos, paradigmticos.
Heuristicamente, a comparao permite ao pesquisador visualizar questes e
problemas que no seriam percebidos ou pensados de outra forma. De forma descritiva, o
exerccio comparativo possibilita ao historiador determinar as singularidades de cada caso, e,
ao delimit-las, podendo question-las e modific-las. J analiticamente, o mtodo permite o
estabelecimento de explicaes histricas para os fenmenos atravs de analogias. Por ltimo,
o propsito paradigmtico: o comparativismo serve tambm para distanciar o pesquisador do
objeto com o qual j possui familiaridade, ampliando seu espao de reflexo, evidenciando
diferentes possibilidades para a compreenso dos processos histricos.
Nossa abordagem enquadra-se nas propostas desse autor. Nesse sentido, ao comparar
os relatos de cada mrtir, particularizamos cada narrativa, percebendo como as semelhanas e
as diferenas entre elas associam-se construo de uma santidade genderificada,
particularizando as narrativas. Alm disso, o comparativismo nos permitiu pensar questes e
hipteses que no poderiam ser percebidas de outra forma, construir explicaes histricas
para compreenso da funcionalidade da LA como um todo e dos relatos individual e
comparativamente.
Com argumento similar ao propsito descritivo da comparao, Paul Veyne afirma
que nenhum objeto peculiar por natureza, ou seja, de forma absoluta. Nesse sentido, o
objeto s se individualiza em relao a uma teoria ou em relao a outro. Assim, a adoo de
64 KOCKA, Jrgen. Comparison and beyong. History and Theory, v.42, p.39-44, feb. 2003. 65 Ibidem. p.39.
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uma constante trans-histrica, com o uso de uma teoria que fornea os conceitos,
fundamental para a passagem da descrio para a anlise.
Nesse sentido, a discusso acerca dos significados do ideal de martrio, no sculo XIII,
foi fundamental para a nossa pesquisa, porque, seguindo a proposta de Veyne, acreditamos
que podemos contrapor os martrios da LA, particularizando-os. Atravs da comparao entre
os relatos analisados, conclumos que o elemento norteador de todos eles a ligao entre a
salvao da alma e o modo de vida cristo. Em outras palavras, seguir uma vida recheada de
boas obras, condizente com os valores cristos, era a forma de garantir a salvao da alma.
Nossa dissertao, alm dessa introduo, possui quatro captulos e a concluso, que
passamos a apresentar. No nosso primeiro captulo desenvolvemos o objetivo de estudar o
processo de elaborao da LA, tendo em vista as trajetrias religiosa e intelectual de Jacopo
de Varazze e o contexto por ele vivido. Essa preocupao est em sintonia com a perspectiva
de que a produo de determinado documento tambm um acontecimento, e, como tal, deve
ser desvendado como construo discursiva.
Nesse captulo analisamos as transformaes ocorridas na pennsula itlica, no sculo
XIII, em consonncia com a biografia de Jacopo de Varazze, tendo em vista as relaes
estabelecidas com/ pela Igreja e com/ pela Ordem Dominicana, duas instituies nas quais ele
esteve inserido. Optamos por esse tipo de correlao para centralizarmo-nos nos fatos com os
quais teriam tido maior proximidade e, portanto, influenciado na produo literria do
dominicano. A seguir, focalizamos nosso estudo na sua mais famosa obra e documento
utilizado por nossa investigao emprica: a LA. Nessa parte, iniciamos com reflexes sobre o
gnero hagiogrfico, buscando familiarizarmo-nos com seus objetivos e suas particularidades,
e, assim, relacionando-os a uma funcionalidade prtica da santidade.66 A partir dessas
anlises, direcionamos nossa ateno quanto s singularidades da compilao, estudando as
relaes entre a estruturao individual dos relatos, bem como a organizao geral da obra, 66 Ao utilizarmos a expresso funcionalidade prtica da santidade, estamos aludindo aos usos desta para benefcios pessoais ou institucionais distintos como o incentivo a peregrinao ao lugar de culto de determinado santo, o que atraa doaes e fiis.
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com os discursos extratextuais com os quais Jacopo pde ter tido contato. Nesse sentido,
tambm discutimos a possvel data de sua produo, destinrios, edies e manuscritos.
Nesse captulo, defendemos a hiptese de que Jacopo teria escolhido redigir uma
hagiografia, ou melhor, elaborar uma conpilao, por esta no ter uma rigidez dogmtica,
logo, permitia a abordagem de temas distintos. Ao colocarmos o estudo dos relatos sobre
Santo Ambrsio, (p.355/364) e So Pelgio (p.1003/1024), no final do captulo, reafirmamos
a nossa hiptese de que Jacopo, ao compilar a LA, objetivou responder questes especficas
s relaes de poder nas quais estava inserido, como a valorizao do poder eclesistico, a
preocupao em determinar as doutrinas herticas como errneas, entre outras.
Para explorar como as questes estudadas aparecem na LA, analisamos o captulo de
Pelgio sobre argumentando acerca das associaes entre o poder imperial e o religioso,
especificamente de Frederico II e dos papas, construdas por Jacopo. Alm disso,
investigamos o captulo de So Ambrsio no qual acreditamos que o dominicano argumenta
claramente acerca da interao entre a Santa S e o mbito civil.
Nosso segundo objetivo foi discutir as acepes do tema martrio presentes em
momentos especficos do perodo medieval, procurando compreender o porqu de sua
retomada no sculo XIII. Para tanto, exploramos essa temtica pelo desenvolvimento dos
movimentos herticos e das cruzadas, pela atuao dos missionrios mendicantes e pela
instaurao da Inquisio, tendo em vista a participao da Santa S e da Ordem Dominicana
nesses fenmenos. Por fim, buscamos perceber como Jacopo abordou, na LA, o processo de
martirizao, pensando sobre o que ele considerou meritrio da coroa de mrtir.
Nossas consideraes sobre essas temticas foram abordadas no segundo captulo.
Nesse, estudamos alguns caminhos para a compreenso da retomada do martrio, no sculo
XIII, investigando as particularidades desse fenmeno tendo em vista as relaes de poder
estabelecidas com a Ordem Dominicana e com a Igreja. Assim, defendemos que a promessa
do martrio foi um elemento fundamental nas operaes de convencimento eclesisticas.
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Tambm analisamos o desenvolvimento dos movimentos herticos, especialmente dos
ctaros, e o papel da Ordem Dominicana e da Igreja no combate a esse grupo religioso. Nossa
preocupao residiu na percepo de como essas relaes influenciaram a produo da
compilao. Em relatos distintos, ao longo da LA, temos o confronto de santos com hereges,
contudo uma narrativa ganha destaque: o do emblemtico Santo Domingos de Gusmo,
organizador da Ordem. Ao estudarmos essa narrativa, conclumos que Jacopo considerava a
morte por um herege como meritria do martrio, o que seria um incentivo pregao dos
irmos dominicanos.
Ainda no segundo captulo, estudamos a posio da Santa S nos movimentos
cruzadistas. Nesse sentido, pensamos no ideal norteador das cruzadas e em sua proximidade
ao da Guerra Santa, ambas ligadas noo de guerra justa. Seguindo nossa lgica,
levantamos a hiptese de que coroa do martrio fora colocada como recompensa aos que
morreram em uma Cruzada, assim como na guerra santa, por ambas serem justas.
Ressaltamos que tambm estudamos a participao dos missionrios mendicantes, que, cabe
ressaltar, obtiveram incentivo papal.
Sobre essas questes, elaboramos como hiptese que a retomada dessa temtica foi
realizada por hagigrafos, nesse momento, como tambm pela prpria Igreja Catlica (atravs
de cartas papais, prometendo o reconhecimento do martrio aos que morressem na defesa da
cristandade como cruzadistas, soldados da Guerra Santa, Inquisidores, missionrios
mendicantes). Jacopo de Varazze, diante desse cenrio, selecionou relatos com os quais
pudesse postular questes especficas ao seu interesse (como a valorizao do poder
eclesistico, a preocupao em determinar as doutrinas herticas como errneas, entre outras)
como tambm para incentivar os movimentos cruzadistas e os irmos mendicantes
missionrios, especialmente os dominicanos. Ao final desse captulo, analisamos o martrio
imaginrio narrado no relato sobre So Domingos de Gusmo (p.614/ 631), organizador da
ordem dominicana; objetivando correlacionar as reflexes realizadas com a obra.
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Reservamos os dois ltimos captulos para a apresentao e o exame dos dez relatos
selecionados, primeiro individual e, depois, comparativamente, sendo o terceiro reservado ao
estudo das narrativas das mulheres e o quarto ao dos homens, seguindo a proposta de Kocka.
Nestes, investigamos como a santidade textualmente construda em suas ligaes com o
processo genderificao, estabelecido atravs das relaes de poder. Por fim, comparamos
esses apontamentos finais, visando a percepo das semelhanas e diferenas entre eles, tendo
em perspectiva a construo das santidades genderificadas, e, dessa forma, particularizando-
as.
Aps a comparao dos relatos, defendemos que a LA no possui uma unidade de sentido,
sendo uma seqncia de topos. O elemento em comum aos captulos a defesa da vida crist para
alcanar a salvao. Nesse sentido, os santos da LA funcionariam como exemplos a serem
seguidos, contudo eles so santos porque nasceram com a marca da graa divina, o que a vida
terrena deles apenas serviu para comprovar.
Nossa dissertao est organizada segundo as normas postuladas pelo SiBI publicadas na
3 edio do Manual para elaborao e normalizao de Dissertaes,67 de 2004 e as aprovadas
pelo CEPG em 1997. Assim, ressaltamos que as referncias bibliogrficas esto de acordo com a
norma brasileira Informao e Documentao Referncias Elaborao (ABNT / NBR
6023), de 2007.
67 PAULA, Elaine Baptista de Matos et al. Manual para elaborao e normalizao de Dissertaes Teses. Srie Manuais de Procedimentos, n.5, 3 ed. Rio de Janeiro: SiBI, 2004.
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CAPTULO 1
Jacopo de Varazze e a Legenda urea: relaes entre contexto e
produo
1. Apresentao
Neste captulo, discutiremos como as relaes estabelecidas pela Ordem Dominicana e
a Igreja influenciaram Jacopo de Varazze1 na produo da obra intitulada Legenda urea.
Para tanto relacionamos o contexto da Pennsula Itlica com alguns dados biogrficos do
dominicano para, a seguir, ponderarmos sobre a compilao. Nesta anlise, refletimos acerca
da organizao, manuscritos, objetivos e possveis destinatrios, que serviram no
direcionamento de nosso olhar quanto s singularidades da LA, atravs da relao entre sua
estruturao e os discursos extratextuais.
Segundo o filsofo Foucault, discurso a compreenso produzida pelas culturas e
sociedades acerca dos diferentes aspectos da organizao social, estando presente nas prticas,
representaes e instituies. Contudo, [essa] produo do discurso ao mesmo tempo
controlada, selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de procedimentos.2 Em
suma: existem formas distintas de delimitao e controle sobre os discursos. Assim,
1 Para mais informaes sobre Jacopo de Varazze e a LA cf. AIRALDI, Gabriella. Jacopo da Varagine tra santi e mercanti. Milano: Camunia, 1988; BAUDOT, Jules. Jacques de Voragine. In: AMANN, mile; MANGENOT, Eugne et VACANT, Alfred (dir.) Dictionnaire de thologie catholique. Paris: Librairie Letouzey et An, 1939; DONDAINE, Antoine. Le dominicain franais Jean de Mailly et la Lgende Dore. Archives dhistoire dominicaine, 1, 1946; BOUREAU, Alain. Les estrucutures narratives de la Legenda Aurea: de la variation au grand chant sacre. In: DUNN-LARDEAU, Brenda (org.). Legenda Aurea: Sept Sicles de Diffusion. Actes du Colloque international sur le Legenda Aurea: textes latin et brainches vernaculaire. Montreal-Paris: Bellarmin-Vrin, 1986; REAMES, Sherry. The Legenda Aurea: A reexaminat of its paradoxical History. Wisconsin: University Press, 1985; WYZEMA, Teodor de. Introduction In: La Lgende dore. Paris: Seuil, 1960. p. 18-19. 2 FOULCAULT, Michel. A ordem do discurso. So Paulo: Loyola, 1996. p.9.
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concordamos com Andria C. L. Frazo da Silva, que defende que nenhum discurso
absoluto, autnomo ou imutvel, j que sofre interferncias constantes.3
Segundo Roger Chartier, na obra Cultura escrita, literatura e histria: Conversas de
Roger Chartier com Carlos Aguirre Anaya, Jess Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio
Saborit,4 estes esto estruturados nos enunciados, assim como no prprio sistema de
organizao da obra. Portanto, consideramos imprescindvel familiarizar-se com a natureza do
texto, sua estruturao e forma. Em outras palavras, assumimos um tratamento ao documento
histrico considerando que a sua produo tambm um acontecimento que, como tal, deve
ser desvendada como construo discursiva.
Comearemos com a realizao de uma contextualizao da Itlia, no sculo XIII,
contudo nossa preocupao residir nas condies em que a Ordem Dominicana surgiu,
apontando a relao entre esta e a Igreja. Como assinalamos, a nossa proposta traar
reflexes sobre alguns elementos contemporneos ao nascimento de Jacopo a partir do estudo
da bibliografia e da LA.
Em seguida, nossa anlise ser relacional, ou seja, procuraremos associar
acontecimentos da vida de Jacopo com o cenrio poltico-religioso da Itlia. Ressaltamos que
nossa ateno esteve direcionada aos elementos extratextuais mais imediatos ao compilador,
pensando nos desafios enfrentados por essas organizaes e em como essas influenciaram na
produo literria do dominicano. Por fim, centralizaremos-nos na compilao, realizando
algumas consideraes sobre a mesma.
Terminaremos com a anlise de dois relatos presentes na obra, a saber: Santo
Ambrsio e So Pelgio. Nesta, objetivamos perceber como e em que medida as relaes
entre os mbitos civil e religioso, aqui estudadas, aparecem na obra, defendendo a nossa
hiptese de que Jacopo utilizou-se da LA para postular questes de seu tempo.
3 SILVA, Andria C. L. Frazo da: Reflexes metodolgicas sobre a anlise do discurso em perspectiva histrica: paternidade, maternidade, santidade e gnero. Cronos: Revista de Histria, Pedro Leopoldo, n. 6, p. 194-223, 2002. 4 CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e histria: Conversas de Roger Chartier com Carlos Aguirre Anaya, Jess Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. Porto Alegre: ArTmeD, 2001.
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2. Jacopo de Varazze e a Legenda urea: algumas consideraes
2.1 Relaes entre o contexto e a vida do dominicano
Segundo a historiografia, no sculo XIII ocorreram algumas mudanas no mbito
euromediterrnico, como um marcado desenvolvimento ecnomico com a melhoria das
tcnicas empregadas, o crescimento das trocas comerciais, o surgimento de ofcios
especializados, a revitalizao das cidades e um notvel aumento demogrfico,5 iniciados
desde os sculos XI e XII. Esses fenmenos teriam sido mais perceptveis na Itlia, por esta j
representar um ponto de encontro entre o Ocidente e o Oriente, favorecendo uma circulao
de homens e idias.6
A expanso das cidades italianas foi favorecida, principalmente, por uma maior e
melhor explorao dos campos somada intensificao das relaes comerciais.7 Sobre esse
tema, Leopold Genicot, no livro Europa no siglo XIII, argumenta:
El siglo XI y sobre todo el XII, ya haban definido um estatuto urbano: em el orden privado, el disfrute de libertates que supriman o que por los menos fijaban y reducan las cargas senoriales; en el orden privado, la detentacin de certos atributos de la potestas. Y para asegurar el respecto de estos privilegios, para ejercer estos poderes, se haba creado um organismo prprio, concejalia o consejo. El siglo XIII conslido esta situacin.8
5 Segundo Franco Cardini, um dos resultados dessas trocas comerciais e culturais foi o surgimento da primeira forma de lngua verncula, comum s reas que passavam por um processo similar de urbanizao. O autor no especifica qual teria sido esta. ____. A Itlia entre os sculos XI e XIII. MONGELLI, Lenia Marcia. (coord.): Mudanas e rumos: o Ocidente medieval (sculos XI-XIII) . Cotia: bis, 1997. p.85-107. p.87. 6 Para mais informaes sobre o contexto da Pennsula Itlica cf. ABULAFIA, David. Italy in the Central Middle Ages: 1000-1300. Oxford: Oxford University Press, 2004; CAMMAROSANO, Paolo. Storia dell'Italia medievale. Dal VI all'XI secolo. Roma-Bari: Laterza, 2001; DEAN, Trevor. The Towns of Italy in the Later Middle Ages. Manchester: Manchester University Press, 2000; GENICOT, Leopold. La Europa nel siglo XIII. Barcelona: Labor, 1976; HYDE, John Kenneth. Society and politics in medieval Italy: the evolution of the civil life, 1000-1350. New York: St. Martin's Press. 1973. 7 Nesse processo, destacou-se o comrcio martimo realizado por Gnova, Veneza e Pisa. 8 GENICOT, Leopold. Op.Cit. p.68.
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Robert Ian Moore, no artigo La alfabetizacin y el surgimiento de la hereja, ca. 1000-
ca. 1105,9 defende que, no sculo XIII, a sociedade ocidental passou por um processo de
alfabetizao, associado diretamente a uma clericalizao. Partindo de um argumento
similiar, Indro Montanelli e Roberto Gervaso, no livro Itlia: os sculos decisivos, afirmam
que o mbito clerical possua duas vantagens sobre o laico. A primeira diz respeito a certo
monoplio cultural exercido pelo clero que seria o principal responsvel pelo ensino. A
segunda seria que a entrada na clerezia figuraria uma mudana do status social de
determinada pessoa, tornando mais fcil o seu acesso aos cargos militares e civis, reservados
a membros das fileiras nobilirias. Em suma, eles afirmam que o ingresso no mbito clerical
significaria que:
Sua origem proletria era cancelada, e ele se eximia da competncia dos tribunais civis para responder somente aos eclesisticos. Entrar para igreja, em suma, era o nico modo de evadir-se de uma condio social subalterna, o nico caminho que abria perspectivas de uma promoo.10
Nesse processo de clericalizao e estabelecimento de uma sociedade urbana, ocorreu,
concomitantemente, o crescimento do analfabetismo e da autoridade conferida aos livros.
Ambos acabaram se tornando marcadores sociais de diferena cada vez mais visvel, sendo
considerados parmetros definidores da clerezia, como o prprio celibato.11
Segundo Leopold Genicot, a complexidade dos assuntos citadinos e a utilizao cada
vez mais habitual da escrita motivaram os burgueses a confiar aos clrigos partes da
administrao das cidades, que passavam a proporcionar, alm de servios espirituais,
como tambm os de carter administrativos e governamentais.12 Contudo, cabe sublinharmos
que isso no implicou em um aumento da autoridade episcopal ou de qualquer outro tipo nas 9 MOORE, Robert Ian. La alfabetizacin y el surgimiento de la hereja, ca. 1000- ca.1105. In: GARCIA, Maria Loring Isabel. La Edad Media a debate. Madrid: Akal, 2003, p. 552-570. 10 MONTANELLI, Indro et GERVASO, Roberto. Itlia: os sculos decisivos (Idade Mdia, ano 1000 a 1250. O nascimento das comunas). So Paulo: IBRASA, 1968. p.29. 11 Ididem. p. 556. 12 Ressaltamos o cuidado com esse tipo de argumentao, afinal no intencionamos indicar que o processo de alfabetizao clerical ocorreu de forma homognea para o clero inteiro. Defendemos que este estaria, ainda, mais retrito ao alto clero.
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cidades. Pelo contrrio, desde o sculo XII, a autoridade eclesistica sofria uma diminuio
gradual como el poder jurisdiccional ms importante de la ciudad,13 ficando cada vez mais
atrelada ao civil.
Nessa conjuntura, as escolas catedralescas desempenhavam um papel cada vez mais
relevante nas cidades europias. No final do sculo XII e incio do XIII, foram se
desenvolvendo as primeiras universidades, que eram, inicialmente, associaes privadas de
estudantes e docentes, objetivando um reconhecimento oficial das autoridades, alm de uma
concesso de benefcios econmicos e jurdicos.
O cenrio poltico-religioso italiano estava conturbado pelas contendas entre o papado
e o imprio germnico.14 Segundo Cardini, apesar do poder eclesistico ter tentado construir
uma autonomia diante das potncias seculares, a cria romana no conseguiu evitar a
influncia dos poderes leigos fortes. Nessa mesma poca, a renovao da vida religiosa
comeou a ser registrada atravs de buscas por uma reforma na Igreja, para elevar seu nvel
cultural e promover um movimento destinado a incentivar maior ateno s almas,15 estando
relacionada a uma definitiva separao das hierarquias eclesisticas em relao aos poderes
laicos.16
O monacato direcionou os primeiros mpetos reformadores reafirmao e ao
fortalecimento do primado do pontfice sobre os bispos, objetivando libertar o pontificado do
imprio. Segundo Brenda Bolton, no livro A reforma na Idade Mdia,17 a Igreja tornara-se
negligente e mundana nas suas atividades. Reinava a simonia, isto , o abuso do trfico de
13 WALEY, Daniel. Las ciudades-repblica italianas. Madrid: Guadarrama. 1969. p.56. 14 Segundo Cardini, desde o sculo X, o papado esteve a mrce da dinastia dos tonidas que, a partir do privilegium Othonis de 962, estabeleceu que os papas deveriam jurar fidelidade ao imperador. Alm disso, Oto I e seus sucessores passaram a intervir mais na Igreja, fundando bispados e abadias. O autor afirma que estes episdios deram incio a um processo denominado investidura leiga. Esta era marcada pelo controle da Igreja pelo poder do Estado (Cesaropapismo), do qual surgiria, posteriormente, o fnomeno chamado querela das investiduras. CARDINI, Franco. Op. Cit. p. 88. 15 Ibidem. 16 Brenda Bolton defende que, inicialmente, os ideais reformadores dos mosteiros de Cluny, Brogne e Gorze estavam direcionados ao retorno a uma viso idealista da Igreja nos primeiros tempos, a ecclesia primitiva dos apstolos. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies 70, 1983. p.21. 17 BOLTON, Brenda. Op. Cit.
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dignidades eclesisticas, e os leigos exerciam uma influncia desproporcionada na nomeao
de dignitrios da Igreja.18
Nesse sentido, a reforma foi caracterizada pela suspenso do clero nicolata e
simonaco de suas funes,19 que objetivava, dentre outras coisas, uma separao definitiva
entre os mbitos eclesistico e laico,20 procurando limitar a influncia deste naquele.21
Destacamos que uma das reaes contrrias a essas medidas partiu, justamente, de famlias
nobilirias, de cujas fileiras provinham os altos cargos prelatcios.22
A reforma pode ser dividida em dois plos com objetivos diferentes: um que propunha
um retorno a uma releitura da ecclesia primitiva dos apstolos e da pobreza de Cristo, com
uma ateno especial relevada pregao da palavra do Senhor; e o outro que pretendia
reforar a unidade da Igreja sob a administrao papal.23 As conseqncias dessa oposio
foram sentidas no fim do sculo XII, com o fortalecimento das tentativas laicas24 de retorno
ao Evangelho e a vita apostlica, com o destaque vida comunitria e pobreza.
Cardini sublinha ainda que, praticamente, no ocorreu uma reforma efetiva na
pregao, o que aumentou o desejo dos leigos por aes pastorais direcionadas ao saeculum e
por uma maior participao laica na ecclesia. Os monges, tentando responder a tais
demandas, atuaram como pregadores. Contudo, os sermes utilizados no respondiam s
novas necessidades espirituais urbanas. Como resultado, temos o desenvolvimento da
pregao no-oficial concomitante percepo de que a forma de vida reclusa e o clero
secular eram insuficientes e/ ou sem o devido preparo para a ao pastoral junto aos fiis.
18 Ibidem. p. 20. 19 importante ressaltar que no consideramos que a reforma colocou um fim definitivo a essas prticas, sendo ainda mencionadas, quase que duzentos anos depois, no IV conclio de Latro. 20 Sobre esse processo, Cardini coloca que o imperador [refere-se a Henrique IV], amparado pelo clero alemo, tomou posio contra a deciso papal, mas Gregrio agravou a situao proclamando em 1075 a superioridade do pontfice sobre o imperador: ao papa cabiam as insgnias do imprio e a ele atribua-se o poder de depor o imperador e, portanto, de liderar os sditos deste da obrigao de fidelidade. CARDINI, Franco. Op.Cit. p. 90. 21 Segundo Franco Cardini, esse processo teria iniciado no conclio lateranense de 1059, quando, com a eleio do Papa Nicolau III, estabeleceu-se que a eleio do pontfice seria confiada a um colgio cardinalcio. 22 Idem. 23 BOLTON, Brenda. Op.Cit. p. 21 24 Cardini e Bolton, nos respectivos livros supracitados, defendem que os movimentos espirituais, j iniciados, refletiam as inquietaes laicas em relao vida religiosa proposta pela Santa S, estando em consonncia com as mudanas ocorridas nos meios social, econmico e poltico.
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A compreenso desse processo importante por ele ter possibilitado o surgimento, no
fim do sculo XII, de movimentos dissidentes que a Santa S considerou herticos, como os
albigenses,25 os valdenses e os humiliati,26 mas que atraram muitos adeptos, sobretudo no
sudeste europeu, justamente pela ao pastoral de seus pregadores.27 Da mesma forma, no
sculo XIII, a Igreja vislumbrou o nascimento, organizao e estabelecimento de associaes
laicas que aprovou, como as Ordens Mendicantes.28
De acordo com Jacques Le Goff, no seu artigo As Ordens Mendicantes,29 a atrao
que algumas Ordens, como a Franciscana e a Dominicana,30 sentiram pelas cidades estaria
relacionada diretamente ao processo de urbanizao. Nestas, a vaga ortodoxa31 facilitou o
contato de homens e mulheres com heresias, principalmente a dos ctaros e os valdenses,
ameaando a ordem crist.32 Ambas possuam propostas em sintonia com as necessidades
espirituais laicas e uma atuao na defesa dos preceitos defendidos pela Santa S.
Estas ordens destacaram-se pela inspirao em Cristo, releituras de uma Igreja
primitiva defendendo valores de pobreza, humildade e obedincia, alm do exerccio de um
postulado mais ativo voltado ao meio urbano, caracterizado por um forte trabalho assistencial
e pela pregao calcada no estudo das Escrituras.33 Assim, Hilrio Franco Jr, na apresentao
da edio brasileira da LA, argumenta:34
25 Analisaremos a heresia ctara ou albigense no captulo II. 26 Em 1184, tanto os valdenses como os humiliati foram excomungados pelo decreto Ab abolendam, sob o pretexto de pregarem ilegalmente e por possuirem pontos de vistas deturpados sobre a f e os sacramentos cristos. De fato, ambos os movimentos procuravam viver sob a conformidade da vita apostolica, sendo que eles se autoconsideravam em conformidade com os ideais da ortodoxia, no protestando contra a Igreja. BOLTON, Brenda. Op. Cit. p. 63. 27 LAWRENCE, Clifford Hugh. The Friars. The impact of early mendicant movement on Western society. Nova Iorque: Longman. 1994. p. 3. 28 Destacamos que a Ordem Dominicana figurou como uma exceo, j que foi formada por clrigos desde seus primrdios. 29 LE GOFF, Jacques. As Ordens Mendicantes. In: BERLIOZ, Jacques. Monges e religiosos na Idade Mdia. Lisboa: Terramar, 1994. p. 227-241. 30 O aumento quantitativo das Ordens foi tal que no Conclio de Lyon, em 1274, reconheceu apenas quatro Instituies, trazendo-as para o seio da Santa S: a dos Frades Menores, a dos Pregadores, a dos Irmos da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo e a dos Eremitas de Santo Agostinho. 31 Ao colocar a expresso vaga ortodoxa fazemos aluso a atuao do clero secular e do monacato vista como insuficiente frente s demandas espirituais especficas das cidades. 32 Ibidem. p. 228. 33 Uma das principais diferenas entre essas ordens era o fato da Ordem Dominicana ter optado pela posse de bens materiais que os franciscanos, para auxiliar na formao intelectual dos pregadores. Portanto, segundo
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Uma das melhores expresses desse novo quadro global tinha sido exatamente o surgimento das Ordens Mendicantes, cuja prtica despojada (no possuam bens materiais), humilde (viviam de esmolas), de apego natureza (especialmente os franciscanos), de intensa pregao e represso aos hereges (sobretudo os dominicanos), atendia melhor que as velhas ordens monsticas s novas necessidades espirituais e sociais. 35
Em nosso trabalho, destacamos a Ordem dos Irmos Pregadores, cujo nome j
indicaria seu objetivo central: a pregao.
A Ordem Dominicana particularizou-se por ter sido, desde seus primrdios,
constituda apenas por clrigos; alm da busca pelo equilbrio entre pregao e erudio,
valorizando o estudo sistemtico da Bblia na formao dos futuros pregadores. Seu
reconhecimento ocorreu em um momento conturbado para a Igreja que lidava com novos
desafios, como o combate aos distintos movimentos herticos, aos infiis e aos pagos; bem
como as conflituosas relaes com o poder imperial. Para compreenso acerca das contendas
entre o papado e o imprio nesse momento, cabe refletirmos sobre o cenrio poltico-religioso
estabelecido desde o incio do sculo XIII.
Segundo Montanelli e Gervaso, o papa Inocncio III (1198-1216) foi tutor de
Frederico II, confiando-lhe a alguns doutos da Igreja para sua formao educacional. Em
1209, aps a morte de seu pai, Henrique VI, ocorreu a coroao do imperador do Sacro
Imprio Romano-Germnico, Oto IV (1198-1215), prncipe de Brunswick, na baslica de So
Pedro.
Nesse momento, o papado apoiava Oto que, em compensao, reconheceu o Estado
Pontifcio e seus limites, confirmando os direitos da Igreja sobre a Siclia. No entanto, logo
depois desse reconhecimento, o imperador desgostoso com sua recepo em Roma, permitiu
que seu exrcito espalhasse-se pelos territrios toscanos, inclusive o Reino da Siclia, que
Antonio Linage Conde, os dominicanos aceitaram terras e propriedades conventuais . Cf. ___. Las ordenes mendicantes. Madrid: Histria 16. 1985. p.14. 34 JACOPO VARAZZE. Legenda urea; vida de santos. FRANCO JR., Hilrio (trad.). So Paulo: Companhia das Letras, 2003. 35 Ibidem. p.13.
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nesse momento, por doao, pertencia ao pontificado. Em resposta a essa traio, Inocncio o
excomunga em 1210.
O antema era mais uma arma poltica que espiritual, possuindo um forte poder
sugestivo sobre a populao. Nesse sentido, aps a excomunho, Oto ficou enfraquecido,
sendo destitudo por alguns prncipes, em Nuremberg, que coroam Federico II, com o apoio
de Inocncio III.36
Em 1211, Frederico II, que j havia reunido um exrcito com o objetivo de restaurar o
imprio a fora em 1209, ocupou Constance e recebeu a coroao oficial em Mainz em 1212.
Segundo David Abulafia, no livro Italy in the middle central ages,37 ele teria ficado oito anos
restaurando a ordem no reino germnico. Durante esse perodo, ocorreu uma segunda
cerimnia de coroao, em 1215, em Aachen, que lhe concedeu o ttulo de Rei da Germnia.
No mesmo ano, ele se autocoroou Rei de Roma.
Frederico II possua o apoio do papa Inocncio III, que, em troca, exigiu do rei o
retorno do reconhecimento dos privilgios e direitos que Oto havia concedido Igreja. E,
principalmente, a promessa de nunca unir a coroa da Siclia do imprio. Assim, em 1220,
ele foi coroado, pela terceira e ltima vez, como Imperador em Roma. Contudo, segundo
Cardini, em 1216, um ano aps o reconhecimento da Ordem Dominicana, com a morte do
papa, Frederico II considerava-se livre do juramento e, portanto, concedeu ao filho, Henrique,
o ttulo de rei dos romanos, tornando-o seu herdeiro. Dessa forma, tomando para si a coroa.
O sucessor de Inocncio, Honrio III (1216-1241), objetivava principalmente a
reconquista de Jerusalm e a cristianizao da Terra Santa. Ele coroou o imperador em 22 de
novembro de 1220, na baslica de So Pedro, e Frederico II comprometeu-se a defender os
privilgios e o patrimnio da Igreja, colocando-se como forte aliado no extermnio dos
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