Para além do punitivismo: tensões e conciliações entre a criminologia crítica e a
criminologia feminista
Camila Damasceno de Andrade1
Resumo: Assim como a criminologia crítica evidenciou o papel do capitalismo e do racismo
para a manutenção do sistema penal, a criminologia feminista demonstrou como a
dominação patriarcal integra as estruturas do controle punitivo. Contudo, enquanto aquela
se insurge contra os processos de criminalização, a criminologia feminista apela ao discurso
punitivista que identifica no direito penal uma forma de reduzir os altos índices de violências
de gênero. Destarte, este artigo tem o escopo de trazer elementos para a construção de
uma criminologia crítica de cunho feminista, motivado pela exclusão das perspectivas de
gênero nos mais afamados discursos criminológicos e, também, pela discordância em
relação ao pleito criminalizante do feminismo. Analisam-se as similitudes e diferenças entre
a criminologia feminista e a criminologia crítica e se propõe a formulação de uma
criminologia que concilie as duas perspectivas, acolhendo as experiências femininas sem
clamar pela expansão do controle penal.
Palavras-chaves: criminologia; feminismo; violência.
Introdução
Sendo a desigualdade entre mulheres e homens um traço caracterizador da
modernidade, presente, se não em todas, ao menos na maioria das sociedades, o
pensamento feminista surgiu não apenas como meio para problematizar as situações de
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Graduada em Direito pela UFSC. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Integrante do Grupo de Pesquisa Brasilidade Criminológica e do Programa de Extensão Universidade sem Muros, ambos coordenados pela Prof. Vera Regina Pereira de Andrade no PPGD/UFSC. Endereço eletrônico: [email protected]. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5917338636063851.
opressão, mas veio elaborar uma profunda crítica do mundo social ao conceber o
patriarcado como uma das estruturas que regem e controlam a dinâmica da sociedade. Ao
combater os argumentos legitimadores dessas desigualdades, a contribuição do pensamento
feminista foi crucial para denunciar a situação inferiorizada das mulheres como resultado de
padrões de opressão.
Classificando o gênero como um sistema de organização social que toma o sexo
biológico como ponto de partida para a atribuição de papeis e estereótipos às mulheres e
aos homens, o feminismo vai denunciar a construção cultural de modelos idealizados do
feminino e do masculino. Demonstrou, portanto, que a discriminação em função do sexo
não tem raiz em características biológicas, mas em causas sociais (MENDES, 2014, p. 86), e
que o gênero não é somente o elemento constitutivo das relações sociais que se baseiam
nas diferenciações entre os sexos, mas é uma estrutura primária que significa as relações de
poder (SCOTT, 2008, p. 64).
A dominação masculina se projeta em todo um conjunto de instituições que mantém
e reforçam a noção de que a adequação aos papeis e estereótipos de gênero constitui um
consenso. O feminismo veio desnudar o caráter histórico do patriarcado, demonstrando que
a inferiorização feminina não passa de construção social que foi naturalizada,
fundamentando-se no domínio do homem sobre a mulher através da violência - esta
vinculada à própria definição do masculino - e promovida por meio de todas as instâncias
sociais (MENDES, 2014, p. 86-87).
Tendo isso em vista, a militância feminista se empenhou em batalhar por leis de
enfrentamento às violências de gênero e obteve vitórias no plano legislativo ao conseguir a
aprovação, por exemplo, da Lei Maria da Penha. No entanto, o pleito criminalizante do
feminismo não tem o condão de modificar a estrutura patriarcal que sustenta a violência
doméstica, ainda que seja capaz de, ao menos formalmente, desgastar as fronteiras
artificialmente construídas entre o público e o privado. Assim, é preciso pensar em projetos
políticos que viabilizem a redução das violências de gênero praticadas contra as mulheres ao
mesmo tempo em que combatam as violências institucionais que recaem sobre os estratos
sociais mais vulneráveis.
Com base nesses pressupostos, esta pesquisa tem o escopo de confrontar a
criminologia crítica e a criminologia feminista, enfatizando as tensões entre os referidos
saberes teóricos e, também, os pontos de conciliação entre eles. Como referencial teórico,
adotam-se as contribuições das teorias críticas feministas sobre os estudos de gênero, bem
como o arcabouço teórico desenvolvido pela criminologia crítica e pela criminologia
feminista. Utilizando o método indutivo, examina-se, inicialmente, o discurso sustentado
pela criminologia crítica e, em seguida, as contribuições apresentadas pela criminologia
feminista. Enfim, expõem-se as suas similitudes e diferenças, demonstrando que a
harmonização entre elas é possível. Pretende-se, com isso, trazer elementos para a
construção de uma criminologia que seja, simultaneamente, crítica e feminista, que se
posicione contra as opressões de gênero sem, necessariamente, apelar ao sistema criminal.
1 A criminologia crítica
A chamada criminologia crítica, cuja gênese pode ser atribuída às análises de Rusche
e Kirchheimer acerca da relação histórica entre sistema punitivo, estrutura do mercado de
trabalho e condições sociais, foi posteriormente maturada com o advento do paradigma da
reação social e, especialmente, com a publicação da obra de Alessandro Baratta. Ao
afirmarem existir uma reciprocidade entre as formas punitivas e as relações de produção,
Rusche e Kirchheimer (2004, p. 18-20) romperam com os princípios que regem a ideologia
da defesa social e negaram a narrativa idealista e evolucionista da história da punição, que
fazia crer, até então, que o progresso agia como motor primordial para as mudanças
históricas. Segundo Andrade (2015, p. 190-191), a história oficial do sistema punitivo
pressupõe o progresso como a direção corrente seguida pelo passar do tempo, como se as
penas corporais de outrora tivessem sido substituídas por um modelo humanista que prevê
a privação de liberdade como pena máxima. A criminologia crítica, no entanto, vai
demonstrar o idealismo do discurso jurídico, que valoriza a prisão ao encobrir a barbárie por
ela perpetuada ainda nos dias atuais.
A criminologia crítica engloba um conjunto de teorias criminológicas que,
desenvolvidas a partir do paradigma da reação social, têm em comum o criticismo diante do
controle penal, compartilhando de uma análise materialista e, nos dizeres de Baratta (2011,
p. 26), macrossociológica do sistema de justiça criminal. Mas não se utiliza,
necessariamente, de um referencial teórico marxista, apesar de muitos de seus autores
iniciais compartilharem uma interpretação materialista marxista, ainda que não ortodoxa
(ANDRADE, 2015, p. 189).
O objeto de estudo da criminologia enquanto disciplina científica foi alterado com a
ruptura paradigmática instituída pela teoria do labelling approach, que contraria a ideia
antropológica de que o criminoso nasce criminoso, ou desenvolve o comportamento tido
como marginal em razão de uma anormalidade biológica. Ao passo em que o chamado
paradigma etiológico instrumentalizou a criminologia para buscar as causas do crime e da
criminalidade, a ótica da reação social propõe que o processo de construção social da
criminalidade passe a ser encarado como o objeto da criminologia (BARATTA, 2011, p. 159-
161). O arcabouço teórico construído a partir dessa revolução paradigmática passou, então,
por uma revisão crítica que conduziu à emergência de uma criminologia de cunho crítico que
deixa de pensar o crime como uma realidade ontológica e apriorística, mas que o
compreende como resultado de processos seletivos e desiguais de criminalização que
impõem o rótulo de desviante a determinadas pessoas. A criminologia crítica, portanto,
busca investigar as estruturas sociais que conduzem à criminalização, ressaltando que o
desvio e o desviante são frutos do controle social.
A ideologia da defesa social, sustentada pelo discurso oficial da dogmática jurídico-
penal, baseia-se em princípios maniqueístas que opõem o criminoso à pessoa "normal",
patologizando a conduta desviante. Alardeando a ideia de que as leis penais têm o condão
de defender o interesse social, já que as condutas tipificadas como crime ofenderiam,
teoricamente, bens jurídicos fundamentais, essenciais aos cidadãos "de bem", ela é
resultado de uma confluência de preceitos da Escola Liberal Clássica e da Escola Positiva.
Destarte, a ideologia da defesa social pressupõe o fictício contrato social do liberalismo para
afirmar que os delitos elencados na lei penal violam os principais interesses de toda a
comunidade (BARATTA, 2011, p. 42-43).
Ainda que a Escola Liberal Clássica e a Escola Positiva não respeitem a uma mesma
unidade ideológica, elas compartilham de um modelo de ciência penal integrada (BARATTA,
2011, p. 41), em que dogmática jurídica e concepções sociais e individuais estão conectadas.
A primeira se origina com as teorias contratualistas contemporâneas à Ilustração, que
conferem ao Estado a titularidade sobre os meios de repressão (WEBER, 2004, p. 56-57),
colocando as liberdades individuais como limite ao poder estatal de punir. Autores como
Beccaria e Carrara integram os seus principais marcos (ANDRADE, 2015, p. 53-54).
Já a Escola Positiva, inaugurada por Césare Lombroso e sua antropologia criminal,
tem o positivismo como inspiração, tendo inaugurado a criminologia enquanto disciplina ao
atribuir um ar de cientificidade ao seu discurso. É a criminologia positivista que desenvolve
com profundidade o discurso patologizante da criminalidade ao reduzir a criminologia à
investigação das causas da criminalidade e à explicação causal do comportamento criminoso
individual. A visão etiológica por ela difundida posiciona a criminologia como uma ciência
auxiliar da dogmática penal, pois aceita acriticamente as definições de crime por ela
desenvolvidas (ANITUA, 2008, p. 305). No Brasil, é Nina Rodrigues (1957, p. 157-158) o
principal expoente da Escola Positiva. Difundindo a teoria lombrosiana, ele potencializa a sua
matriz racista ao apontar a mestiçagem como o problema central do país, advogando pelo
embranquecimento da nação e sugerindo uma gestão diferencial do crime a partir de
critérios raciais, já que enxergava nos negros uma raça inferior e propensa à delinquência.
Muito embora haja uma aparente contraposição entre a criminologia positivista e os
ideias liberais da Escola Clássica, as suas diferenças residem apenas no que concerne à
culpabilidade do delinquente. Desse modo, o embate entre as duas escolas se restringe, na
verdade, à atitude interior do sujeito desviante ao cometer o delito, porquanto, na medida
em que a Escola Clássica sustenta a reprovabilidade moral de sua conduta, a Escola Positiva
atribui a ela um sentido biopsicológico de periculosidade social. Por outras palavras, mesmo
que discordantes, as suas conclusões convergem para a necessidade de um projeto penal
apto a defender a sociedade do mal gerado pelo crime (BARATTA, 2011, p. 43). E é a
ideologia da defesa social que surge para cumprir esse papel.
A criminologia crítica vai analisar o horizonte de projeção do sistema penal,
apontando as estruturas e os atores protagonistas da sua atuação. Ademais, vai denunciar
que o desvio é construído socialmente a partir de condicionamentos globais determinados
econômica e politicamente, demonstrando que os interesses sociais que movimentam a
produção legislativa não são, na realidade, comuns a toda a comunidade, mas pertencentes
a uma parcela da sociedade, particularmente, aos grupos sociais mais favorecidos. Aqueles
que têm o poder de definir o que é e o que não é crime têm a possibilidade de construir uma
realidade e de qualificá-la. A criminalidade, nesse sentido, não corresponde a uma qualidade
subjetiva do autor da conduta delitiva, mas decorre de um processo social de rotulação que
atribui à determinada pessoa o status de criminoso (BARATTA, 2011, p. 118).
São as dinâmicas entre os macropoderes político/punitivo, econômico/financeiro e a
microfísica dos poderes sociais - hierarquizações de gênero e raça, por exemplo - que
movimentam o controle penal e demarcam as divisões entre normalidade e patologia,
sanidade e loucura, ordem e desordem. Considerando que o controle penal contemporâneo
é, necessariamente, consequência de interações entre Estado, mercado e sociedade, não é
apressado concluir que a integralidade das desigualdades sociais está refletida no sistema
penal (ANDRADE, 2012, p. 161).
2 A criminologia feminista
É necessário perceber, contudo, que a operacionalidade seletiva do sistema penal
não se restringe às camadas economicamente desprivilegiadas, nem às minorias étnico-
raciais. Leva em conta, também, a organização social de gênero, aprisionando aqueles que
contrariam os preceitos da estrutura patriarcal. Destarte, a inferiorização dos negros e dos
pobres é acompanhada por uma inferiorização das mulheres que é basilar para a
sustentação do sistema, sejam elas vítimas ou autoras de delitos.
O controle penal, como já falado, não se esgota na atuação institucional do Estado
através de sua dimensão stricto sensu (polícia, Ministério Público, judiciário, prisão,
manicômios), mas engloba todo o conjunto de mecanismos do controle social difuso
(família, escola, religião, mídias, moral, medicina, mercado de trabalho). Nesse sentido, a
mecânica do sistema penal é composta por um macrossistema penal formal que é
circundado por microssistemas informais e simbólicos, sendo todos sustentados por
estruturas que fornecem os elementos para a sua reprodução ideológica (ANDRADE, 2012,
p. 133-134). Assim, além de ser alimentado por uma estrutura capitalista e racista, o sistema
penal também se apoia na dominação patriarcal.
A desconsideração desses microssistemas e, especialmente, do suporte que a
estrutura patriarcal fornece ao sistema penal revela o sexismo que permeia o discurso oficial
da dogmática jurídica e parte dos estudos criminológicos. A reprodução cotidiana de práticas
sociais hegemônicas que associam intimamente cada gênero a um sexo biológico (BIROLI;
MIGUEL, 2014, p. 81) denota a importância do sistema binário de gênero para o sistema
penal. O feminismo e a sua variante criminológica - a criminologia feminista, que será
abordada doravante - se estabelecem, então, contra o modelo dado de relação sexo/gênero.
A criminologia feminista surge como resposta ao esquecimento da mulher e da
opressão de gênero nos discursos sobre o sistema de justiça criminal. Objetivando dar
visibilidade às especificidades da condição feminina em face da violência estrutural do
sistema penal, a formulação de um discurso criminológico feminista não se resume a
reinterpretar e estender o alcance das categorias criadas pelas construções teóricas
anteriores. Entende-se que a mera inserção das relações de gênero em teorias marcadas por
estruturais exclusões das experiências femininas não pode ser feita sem distorcê-las, porque
elaboradas sob parâmetros sexistas. Assim, apesar de os discursos criminológicos já
consolidados se aplicarem parcialmente às mulheres, eles não conseguem dar conta de sua
posição periférica dentro da sociedade, que não se confunde, embora esteja
intrinsecamente relacionada, com a marginalização socioeconômica tão bem estudada pela
criminologia crítica.
Nessa senda, a criminologia feminista vai apontar o sexismo dos discursos
criminológicos hegemônicos que desconsideram o debate de gênero em suas análises,
trazendo, também, elementos para a configuração de um novo saber criminológico,
edificado sobre uma epistemologia de viés feminista. Outrossim, ela vai discutir os altos
índices de violência contra as mulheres e questionar o discurso da criminologia crítica, que,
ancorado numa perspectiva abolicionista, não admite o apelo ao sistema penal sequer
quando utilizado para a proteção das mulheres. Conforme Campos e Carvalho (2011, p. 151),
a criminologia feminista vai se estruturar como um discurso de denúncia que privilegia as
opressões de gênero em suas análises, podendo ser classificada como uma perspectiva
político-criminal.
Identificando no sistema penal uma forma de reduzir os índices alarmantes de
violência contra a mulher, a criminologia feminista entende que inserir o debate de gênero
entre as preocupações do direito penal é um passo necessário para a extinção ou redução da
violência generificada. Observa-se, com isso, a tensão entre os saberes crítico e feminista: ao
passo em que a criminologia crítica tem como pilar a insurgência contra os processos de
criminalização, a criminologia feminista recorre ao discurso punitivista e batalha pela
expansão do controle penal.
No Brasil, a criação da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) é reconhecidamente
uma vitória do movimento feminista, assim como a recente inclusão do feminicídio no
Código Penal foi igualmente festejada. A criminologia feminista, então, vem pleitear pelo
agravamento das punições, pela ampliação do rol de condutas tipificadas como crime, pela
inserção de novas hipóteses qualificadoras, causas de aumento de pena e circunstâncias
agravantes, crendo que a legislação penal tem a capacidade de garantir a segurança
feminina, porque inibiria as condutas violentas perpetradas contra as mulheres.
O direito penal é instrumentalizado, pelo feminismo, para dar visibilidade aos
comportamentos violentos contra as mulheres. É utilizado, portanto, simbolicamente, com o
intuito de modificar a percepção social relativa a esses problemas ao estender a regulação
estatal às situações de violação dos direitos das mulheres. Ainda que a pena não seja
efetivamente aplicada aos autores dos delitos, entende-se que a tipificação da conduta
como crime é capaz de criar novos valores e intervir na simbologia social que reproduz a
dominação masculina (CAMPOS, 1998, p. 53-54).
Ademais, sabe-se que o controle social sobre os corpos femininos toma por base a
redução do gênero ao privado (LUGONES, 2008, p. 93), encarando as mulheres como
naturalmente inadequadas para o desempenho de funções na esfera pública e atribuindo a
elas, desde sempre, a responsabilidade pelas ocupações da esfera privada (OKIN, 2008, p.
307). A consequência dessa atribuição prévia de papeis sociais em função do sexo é, por sua
vez, a dependência das mulheres em relação aos homens, que tem no campo das finanças
familiares a sua principal expressão. Assim, a binariedade entre espaço público e privado,
que restringe a vida das mulheres ao ambiente da domesticidade, é enfraquecida com a
possibilidade de intervenção estatal no o âmbito doméstico.
Para muitas mulheres, resguardar a privacidade nas relações afetivas familiares
corresponde a proteger um espaço de violência de gênero, no qual elas são as principais
vítimas. Ao invés da privacidade atuar no sentido de uma defesa dos afetos, na prática ela
preserva condutas agressivas fundamentais para a reprodução da dominação masculina. Por
outras palavras, a ausência de intervenção estatal na esfera privada sob a alegação da
necessária proteção da privacidade nada mais é do que uma garantia de liberdade aos
homens para violentar, humilhar e objetificar mulheres. Assim, a manutenção da dualidade
convencional entre vida pública e vida privada impede a tematização da violência doméstica,
encarada como um problema particular e naturalizada como constitutiva das relações entre
mulheres e homens (BIROLI; MIGUEL, 2014, p. 42).
A não existência de legislação penal que regule as violências contra as mulheres traz,
também, efeitos simbólicos consideráveis: ao mesmo tempo em que o patrimônio privado é
extensamente protegido pelas leis brasileiras, a vida e integridade física das mulheres é
relegada a uma posição de inferioridade. Não estabelecer punições aos autores dessas
condutas não só pretere a relevância dessas violências, mas objetifica e disponibiliza o corpo
feminino para as violações masculinas (CAMPOS, 1998, p. 53).
Considerando que a violência de gênero perpetua uma ordem social que não protege
as mulheres das violações cometidas em sua intimidade, a ausência de intervenção penal
estabiliza essas relações de poder e assegura a supremacia masculina no âmbito doméstico
(BIROLI; MIGUEL, 2014, p. 34; CAMPOS, 1998, p. 55, 58).
3 Tensões e conciliações
Partindo do pressuposto de que a dominação masculina se mantém e se reproduz
por meio de instituições que alimentam uma lógica androcêntrica que desiguala homens e
mulheres, a criminologia feminista entendeu o patriarcado como uma das estruturas que
sustentam o próprio controle social formal e legitimam a alegada inferioridade feminina
(MENDES, 2014, p. 88). O controle penal reproduz os mecanismos de dominação que
oprimem as mulheres, estando, por sua vez, na base da manutenção da organização social
de gênero.
Ao colocar as perspectivas femininas no centro da investigação acerca do controle
punitivo, a criminologia feminista percebeu o cárcere como resultado de um sistema
patriarcal que recorre à violência para fundamentar o domínio do homem sobre a mulher. A
institucionalização estatal da violência generificada expõe a fluidez das fronteiras entre
espaço público e privado, pois absorve do controle social difuso da família e da moralidade
os elementos necessários para subjugar as mulheres também no âmbito formal.
Além de retratar as relações sociais entre os sexos, a violência simboliza o "eu"
masculino e atravessa os métodos punitivos contemporâneos, decorrentes de aplicações e
interpretações masculinizadas do direito penal (CAMPOS; CARVALHO, 2011, p. 152;
MENDES, 2014, p. 92). Sendo um sistema intrinsecamente androcêntrico e que,
historicamente, já se voltou contra as mulheres2, é possível afirmar que o controle penal é
2 As mulheres foram perseguidas pelo sistema penal desde o período inquisitorial, com a redação do Malleus Maleficarum pelos dominicanos Heinrich Kramer e James Sprenger, que transformou a caça às bruxas na
estéril para a sua proteção. Agravando a dominação masculina nas relações de gênero, o
aparato punitivo multiplica a violência contra a mulher ao desmoralizá-la e culpabilizá-la,
mesmo quando vitimada pelo delito (ANDRADE, 2012, p. 131-132).
Denunciando, portanto, a ineficácia do sistema penal no que se refere à proteção das
mulheres contra a violência, a criminologia feminista demonstrou que ele promove, na
verdade, uma dupla ou tripla agressão contra a mulher: não é capaz de prevenir novas
situações de violência (ANDRADE, 2012, p. 131); subvaloriza as especificidades das violências
de gênero quando a mulher ocupa a condição de vítima (CAMPOS; CARVALHO, 2011, p. 152)
- violências perpetradas, frequentemente, no ambiente doméstico e decorrentes, muitas
vezes, de relações afetivo-familiares -; e agrava a punição quando a mulher é sujeito ativo do
delito, submetendo-a a penalidades extra-oficiais não aplicadas aos homens - estupros e
humilhações perpetradas por agentes penitenciários, negação da maternidade, revistas
íntimas, escassez de absorventes, etc.
Nota-se que, de maneira análoga à criminologia crítica, que evidenciou o papel do
capitalismo e do racismo para a manutenção do sistema penal, a criminologia feminista
operou importantes mudanças no pensamento criminológico, demonstrando que a
dominação patriarcal também integra as estruturas do controle punitivo. No plano
epistemológico, por conseguinte, os saberes crítico e feminista se complementam e
contribuem para a desconstrução da concepção ontológica da criminalidade e da
racionalidade etiológica da criminologia tradicional, ampliando as suas formas de
abordagem e os horizontes de investigação. Porém, no plano político-criminal emergem
relevantes conflitos entre os referidos modelos criminológicos, que recorrem a projetos
bastante distintos e até antagônicos para buscar solucionar os problemas que lhes são
apresentados (CAMPOS; CARVALHO, 2011, p. 153).
principal atividade do Tribunal do Santo Ofício, além de iniciar um complexo processo de custódia das mulheres que as excluiu do espaço público ao confiná-las nos reservados espaços do lar ou do convento. Da mesma forma, as políticas de higienização do século XIX perpetuaram o estereótipo da mulher como naturalmente pérfida, maliciosa e predisposta ao crime. Todavia, ainda que permaneçam custodiadas e controladas pelos processos de criminalização e vitimização, as mulheres perderam, hoje, o protagonismo nas análises criminológicas, que passaram a enfocar a figura do homem delinquente (MENDES, 2014).
Tanto o feminismo como outros movimentos sociais, tais qual o movimento negro,
ambientalista e LGBT, enxergam no direito penal uma possibilidade de tutela de interesses
fundamentais até então negligenciados pela legislação, crendo que a expansão do controle
punitivo está apta a tutelar as minorias sociais mais débeis e violentadas. Contudo, as
demandas punitivistas desses movimentos acrescentam munição ao discurso legitimador do
sistema penal, ignorando que esse mesmo sistema foi edificado sobre uma estrutura
individualista incapaz de proteger interesses coletivos (ANDRADE, 2015, p. 294).
Tais reivindicações se revelam contraditórias para o próprio sistema penal, que, ao
mesmo tempo em que atende aos anseios por criminalização primária desses sujeitos e
grupos minoritários (potencial humanista-garantidor), prova, na prática, a ineficácia das
garantias prometidas e a sua debilidade na proteção dos grupos vulneráveis, visto que se
assenta num projeto classista, racista e sexista que se volta, predominantemente, contra os
menos favorecidos no momento da criminalização secundária (potencial técnico repressivo)
(ANDRADE, 2015, p. 294). Verifica-se, outrossim, que o diálogo entre o direito e a sociedade
é muito mais complexo do que sugere o pleito feminista pela utilização simbólica do direito
penal em prol das vítimas de violência. Ele não deve ser encarado como um simples meio de
publicizar e politizar a questão, uma vez que seus efeitos concretos sobre os criminalizados
são perversos, estigmatizantes e destacadamente insuficientes para a modificação da
estrutura patriarcal (CAMPOS, 1998, p. 54).
O direito penal se volta, especificamente, para as manifestações de violência
individual, enfocando a figura do agressor e deixando de lado toda a estrutura que alimenta
o seu comportamento violento (BARATTA, 1993, p. 47, 49). Não se esforça, de modo algum,
para modificar esse cenário, investindo seus esforços em investigar, denunciar e aprisionar
os membros das camadas sociais mais débeis, majoritariamente jovens negros, de baixa
renda e baixa escolaridade3, ignorando a violência exercida pelos homens brancos
integrantes das classes médias e alta.
3 Segundo dados do Sistema Nacional de Informação Penitenciária (Infopen) de dezembro de 2014, 61,67% da população carcerária brasileira é negra, ao passo em que essa etnia representa 51% da população nacional.
A operacionalidade seletiva do sistema penal colhe os seus alvos no interior dos
estratos mais marginalizados ao mesmo tempo em que imuniza os crimes praticados pelos
mais abastados. Assim, o preço da visibilidade conquistada pelo feminismo com a extensão
do controle penal às violências de gênero será pago, quase exclusivamente, pela juventude
negra e pobre, já vitimada pelo racismo cotidiano e pelas opressões de classe.
A criminologia crítica trouxe importantes contribuições a respeito da eficiência do
discurso criminalizante. As funções oficiais declaradas da pena criminal (neutralização,
retribuição, reeducação e prevenção) se caracterizam por uma trajetória de profunda
ineficácia, pois a reprimenda corporal, além de dificilmente lograr êxito na tarefa de
ressocializar o encarcerado, não exerce relevante efeito inibitório sobre a sociedade,
apresentando-se, na realidade, como mera vingança social contra o condenado. Portanto,
mais do que ineficaz, a pena e o próprio direito penal apresentam funções reais de eficácia
invertida em relação às suas funções declaradas, que são substituídas, na prática, por
funções latentes opostas (ANDRADE, 2012, p. 221-222).
Entende-se, então, que criminalizar as violências de gênero, em que pese todo o
arcabouço teórico desenvolvido pelo feminismo, não se configura como um instrumento
adequado para a proteção das mulheres, nem como uma solução para resolver os
problemas decorrentes de uma estrutura social sexista e violenta. Igualmente, tentativas de
reconciliação e a aplicação de penas restritivas de direitos como alternativa ao
encarceramento também não têm gerado efeitos positivos no combate à violência. Nessa
senda, novos desafios são impostos tanto à criminologia crítica quanto à criminologia
feminista: aquela não pode mais ignorar as relações desiguais de poder entre homens e
mulheres sustentadas pela preservação da dualidade público/privado; e esta não pode
deixar de lado a seletividade racista e classista do sistema penal e a ineficácia da
criminalização para a segurança das mulheres.
Analfabetos, alfabetizados informalmente ou com instrução formal até o ensino fundamental completo são equivalentes a 72,13% dos encarcerados, sendo que a maior parcela destes é a relativa àqueles que têm ensino fundamental incompleto (BRASIL, 2016). As estatísticas de 2014 não contemplaram a divisão dos encarcerados por renda.
Considerações finais
Percebe-se que a criminologia feminista tem se apresentado muito mais receptiva à
criminologia crítica do que o contrário. Ao passo em que esta ignorou, por décadas, as
contribuições do feminismo e de suas categorias centrais, aquela incorporou com mais
facilidade os aportes teóricos desenvolvidos pela criminologia crítica, apontando, inclusive,
novas ressalvas à utilização do sistema penal por parte das mulheres ao denunciar o sexismo
que lhe acompanha historicamente.
Por outro lado, a demanda punitivista do feminismo não pode ser desconsiderada.
Expressiva parcela do feminismo ainda clama por mais punição e criminalização, crendo na
eficácia da pena e na ideologia que sustenta o discurso oficial da dogmática penal.
Harmonizar a criminologia crítica e a criminologia feminista passa pelo
estabelecimento de projetos político-criminais que viabilizem a redução das violências de
gênero praticadas contra as mulheres ao mesmo tempo em que combatam as violências
institucionais que recaem sobre os estratos sociais mais vulneráveis. Um projeto crítico
feminista deve, portanto, empenhar-se na criação de pautas de ação que atendam,
simultaneamente, aos interesses das mulheres violentadas e das camadas sociais mais
débeis, estas compostas tanto por homens quanto por mulheres.
Ao propor a investigação das relações entre o controle social e as desigualdades de
gênero, a perspectiva feminista permite uma compreensão ainda mais globalizante do
universo do sistema penal. Destarte, uma criminologia que seja ao mesmo tempo feminista
e crítica deve deslocar o enfoque da visão androcêntrica da criminalidade para a análise e
julgamento dos impactos do controle formal e informal sobre a mulher, seja como autora ou
como vítima do delito. Sem se conformar com os altos índices de violência contra as
mulheres, deve reconhecer a ineficácia da pena para o combate das violências de gênero,
compreendendo que toda a estrutura da lei é fundamentada na dominação patriarcal. A
adesão ao pleito abolicionista, então, não significa relegar a violência generificada ao âmbito
privado, mas enfrentá-la sem recorrer à repressão penal.
Portanto, a construção de uma criminologia crítica feminista tem o condão de
suscitar nova virada paradigmática no pensamento criminológico, pois formulada sob os
parâmetros de uma epistemologia feminista. Agregando a perspectiva do sistema sexo-
gênero como elemento indissociável do controle social e das relações de poder, as reflexões
feministas não só permitem a denúncia das discriminações misóginas que permeiam a
academia, como podem ser tomadas como um novo paradigma do conhecimento que
trabalha a partir da marginalidade, conferindo pertinência a fatos e fenômenos sem
significância sob o prisma de outras interpretações.
Referências
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