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  • PENA E CULPA ()

    Heleno Cludio Fragoso()

    1. O princpio bsico do Direito Penal da Culpa em relao pena o de que ela se funda a culpabilidade do ru. A culpa do condenado o fundamento da medida da pena que lhe imposta1, sendo estranhos aplicao da epna todos os elementos que no se refiram maior ou menor reprovabilidade do ato. A vida anterior e a conduta posterior no podem aqui ser valoradas de modo autnomo, mas to s como sintomas de maior ou menor culpabilidade na prtica do delito e isto porque a medio da pena a realizao da justa retribuio no caso particular2. A medida da culpa dada pela medida da violao do dever3.

    s insuficincias da justa retribuio para os efeitos preventivos atende-se atravs do sistema do duplo binrio (doble via), com a aplicao de medidas de segurana para os criminosos habituais ou por tendncia.

    Construiu nessa base a doutrina alemo um sistema de grande perfeio tcnica, cerrado em seus pressupostos lgico-formais, arrancando de princpios ticos altamente respeitveis.

    2. Fora da Alemanha, no entanto, com raras excees, no encontramos na legislao e na doutrina a mesma pureza sistemtica, mas, sim, no que tange aplicao da pena, expressa referncia personalidade do ru e sua capacidade de delinqir4, bem como a elementos objetivos, dificilmente relacionados com a vontade do agente.

    Comunicao apresentada ao Colquio Internacional realizado em Santiago do Chile de 3 a 13 de abril de 1973,

    sob os auspcios do Instituto de Ciencias Penales.

    Professor Titular da Fac. Direito Candido Mendes. 1 Projeto alemo, E. 1962, 60(1).

    2 Maurach, 63, I, 1 e segs.

    3 Stooss, Lehrbuch, 18: Je grsser die Pflichtwidrigkeit, desto schwerer die Schuld.

    4 Cod. Penal italiano, art. 133.

  • A preveno especial tem dominado o processo de aplicao da pena em muitos sistemas de direito, notadamente o anglo-americano, com o critrio do processo penal em duas fases, a pena indeterminada, as medidas especiais de tratamento para os jovens adultos delinqentes, etc. Expressa referncia reabilitao social como fim da pena est prevista em textos constitucionais e em numerosos Cdigos Penais e projetos recentes5.

    3. Diversamente do que ocorre com os demais ramos do direito, em que o juzo se realiza no julgamento de uma relao jurdica, no Direito Penal julga-se o homem acusado da prtica de um delito. A figura do ru domina o processo penal e est presente com a maior intensidade na motivao da sentena condenatria e na aplicao da pena.

    A experincia judiciria revela que os juzes atendem personalidade do ru de forma preponderante inclusive em seu processo de convencimento quanto procedncia da acusao. Embora nos faltem estudos concludentes sobre os fundamentos psicolgicos do veredicto6, pode-se afirmar sem perigo de erro que a pena escolhida, dentro dos limites estabelecidos pela lei, basicamente tendo-se em vista a pessoa do acusado.

    4. O critrio do duplo binrio teve a misso histrica de possibilitar a harmonia do sistema penal, estabelecendo medidas de segurana detentivas para os imputveis perigosos e para os semi-imputveis, aplicadas sucessivamente pena.

    Salva-se a simetria do sistema quando se prev ao lado da pena privativa da liberdade, que se funda e se mede pela culpabilidade do agente, a medida de segurana detentiva que se funda e se mede por sua periculosidade.

    5 Cf. Alternativ-Entwurf 1 (1). Veja-se o que prescreve o 3005 do Projeto de Cdigo Penal Federal americano

    (Study Draft of a New Federal Criminal Code, 1970), sobre o presentence report para aplicao da pena pelo tribunal. 6 Esses estudos remontam ao trabalho de Mittermaier e Liebmann, Schwurgerichte und Schoffengerichte,

    1908/1910, encontrando exemplo na pesquisa sobre o jri feita pela Universidade de Chicago (Jury Project), desde 1953. Cf. Zeisel-Kalven-Buchholz, Delay in Court, 1959; Zeisef-Kalven, The American Jury, 166.

  • foroso reconhecer, no entanto, que o critrio do duplo binrio est em falncia completa. J MEZGER, em seu tempo, adludindo Alemanha, referia-se a Krisis der Zweispurigkeit, com relao particularmente custdia de segurana (Sicherungsverwahrung) do 42 e StGB7. A pena privativa da liberdade se cumpre ou deve cumprir para a recuperao social do delinqente, ou seja, como uma medida de segurana. Por outro lado, a medida de segurana, pelo s fato de ser detentiva, mantm o seu carter aflitivo, algumas vezes mais grave do que o da prpria pena.

    Os estabelecimentos destinados ao cumprimento das medidas de segurana detentivas para imputveis em geral no foram sequer construdos. As casas de custdia e tratamento e os institutos de trabalho, de reeducao e ensino a que alude, por exemplo, o CP brasileiro de 1940, salvo uma ou outra malograda experincia, no chegaram a funcionar, em trinta anos de vigncia da lei que os instituiu.

    Particularmente vulnervel era, de resto, a soluo legal para os semi-imputveis que, segundo a lei deveriam primeiramente receber tratamento (medida de segurana) e, em seguida, pena. Isso porque so em parte responsveis e passa parte de responsabilidade no dispensava a pena que lhe corresponde, embora atenuada. O absurdo dessa soluo, inspirada na geometria do sistema, fez com que passasse a prevalecer o critrio vicariante da legislao sua, admitindo-se que, pelo menos nessa rea, pena e medida de segurana se equivalem.

    5. Reconhece-se, por outro lado a crise da priso, declarada fator crimingeno e deformante da personalidade8, e, pois, inadequada como soluo penal, embora despida, em nosso tempo, de todo aspecto aflitivo a execuo da pena privativa da liberdade.

    Motins e conflitos graves nas prises em vrios pases comoveram a opinio

    pblica revelando que a populao carcerria constituida por homens e mulheres marginalizados, que sofrem o impacto de uma condio social inferior e que, nessa perspectiva, se sentem perseguidos por todo um sistema policial-judicirio dominado

    7 Cf. MEZGER-BLEI, Strafrecht, Ein Studienbuch, 110.

    8 P. Coppola e al., La prisonizzazione, in Quaderni di Criminologia Clinica

  • pela ineficincia, a corrupo e a brutalidade. A reeducao em tais circunstncias simplesmente um mito.

    Unificam-se as penas privativas da liberdade, abandonando-se assim toda inspirao retributiva quanto a esse tipo de pena9. Os pases cuja legislao previa uma pluralidade de penas privativas da liberdade, em geral nenhuma distino faziam quanto execuo entre uma e outra espcie de pena10 e isto porque a experincia penitenciria demonstrou que os presos devem ser classificados segundo a sua personalidade, e no conforme a pena que lhes tenha sido imposta.

    6. O CP brasileiro de 1969 (que ainda no entrou em vigor e cujo texto ser provavelmente muito alterado no que se refere ao sistema das penas e sua execuo) proclamando a sua fidelidade ao Direito Penal da Culpa, manteve o critrio da pluralidade de penas privativas da liberdade, recluso e deteno (art. 36), atendendo s conseqncias jurdicas dessa distino (fiana, suspenso condicional e livramento condicional). Previu, embora timidamente, a substituio da recluso por deteno e a da deteno pela pena de multa (arts. 38 e 46).

    Para os criminosos habituais ou por tendncia estabeleceu regime de pena relativamente indeterminada11, eliminando as medidas de segurana detentivas para os imputveis. A Exposio de Motivos (n 26) esclarece que isso significa o reconhecimento de que os objetivos a que visam as medidas de segurana detentivas para imputveis podem e devem ser alcanados atravs dos estabelecimentos penais. Por mais que se pretenda justificar essa orientao em termos de um Direito Penal da Culpa, evidente que a pena em tais casos se afasta da culpabilidade, passando a exercer tambm funes de segurana12.

    9 Particularmente significativa nesse sentido a recente reforma alem.

    10 o caso do Brasil onde jamais se distinguiu entre os condenados a recluso e deteno. Na Inglaterra, que

    unificou as penas privativas da liberdade com o Criminal Justice Act de 1948, nunca se fez a separao entre os condenados s penas de diversas espcies que previa o velho Prevention of Crime Act, de 1908. Cf. Sieverts, Das englische Gesetz ber Kriminalrechtspflege von 1948, 1952, pg. X. 11

    Inspirado no projeto Soler. 12

    Jescheck, Strafen und Massregeln des Musterstrafgesetzbuchs fr Lateinamerika im Vergleich mit dem deutschen Recht, Ernst Heinitz Festschrift, 1972, 727.

  • Para os semi-imputveis foi adotado o critrio vicariante, pena ou medida de segurana detentiva (estabelecimento psiquitrico), devendo esta ltima ser aplicada quando houver necessidade de especial tratamento curativo (art. 94).

    7. Parece-nos certo que o Direito Penal deste fim de sculo encaminha-se vigorosamente para um viso realstica do crime e da pena, sem abandonar os princpios que o fundamentam e justificam num Estado democrtico.

    O Direito Penal um sistema de tutela de valores da vida social, que se realiza atravs da ameaa penal e da efetiva imposio de pena ao transgressor. A pena em sua essncia medida retributiva.

    O carter retributivo da pena, no entanto, esgota-se no fato de ser, por natureza, a perda de bens jurdicos imposta ao autor, por sua ao antijurdica e culpvel e na carga de desvalor tico-jurdico e de reprovabilidade social que acarreta.

    Fundamento da pena a realizao culpvel do fato punvel. Mas a pena est em funo da gravidade do malefcio e da culpabilidade do agente somente em linha de princpio, dentro dos parmetros fixados pela lei, com critrios de valor, como justa pena13.

    Na aplicao da pena tm de ser necessariamente considerados critrios de utilidade social em termos de recuperao do delinqente (modestamente aferida pela no reincidncia), no se excluindo que a culpa possa funcionar como limite mximo da pena14, abstradas as reconhecidas dificuldades de sua quantificao.

    Por isso mesmo ampliam-se, em nosso tempo, os poderes discricionrios do juiz na aplicao da pena15, para a realizao de uma justia material, adequando a sano penal s exigncias concretas do magistrio punitivo em face do homem delinqente em julgamento.

    13 A lei que comina penas desproporcionadas e injustas, com critrios intimidativos, repugnando conscincia

    dos julgadores, s se cumpre em situaes excepcionais. A aplicao da atual lei de segurana nacional brasileira proporciona numerosos exemplos que honram a justia de nosso pas. 14

    Alternativ-Entwurf, 1 (1). 15

    Hellmuth v. Weber, Die richterliche Strafzumessung, 1955, 38.

  • A extrema inconvenincia da priso deve ser reconhecida e proclamada. O encarceramento deve ser sempre a ltima soluo. Convm repetir que a eficcia da represso no depende nem da gravidade da pena, nem da priso do condenado, mas, sim, da certeza da punio. Tudo deve ser feito para afastar do crcere o ru primrio e de bons antecedentes. Nesse sentido, as leis penais modernas devem prever ao lado da pena de priso penas restritivas da liberdade e a pena de multa de forma alternativa ou substitutiva, ampliando os casos de suspenso condicional da condenao ou da pena e do livramento condicional.


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