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PERSPECTIVAS DA EDUCAO PROFISSIONAL TCNICADE NVEL MDIO
Proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais
PERSPECTIVAS DA EDUCAO PROFISSIONAL TCNICA DE NVEL MDIO
Eliezer PachecoOrganizador
PERSPECTIVAS DA EDUCAO PROFISSIONAL TCNICA
DE NVEL MDIO
Proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais
Este texto resultado do debate sobre a atualizao das diretrizes da educao profi ssional tcnica de nvel mdio. As discusses ocorreram ao longo de 2010: tiveram incio com duas audincias pblicas (maro e abril) e foram aprofun-dadas no Seminrio da Educao Profi ssional e Tecnolgica (maio). A Carta do Seminrio estabeleceu a criao de um grupo de trabalho, que se reuniu nos meses de junho a agos-to, recebendo contribuies de diversos rgos, instituies de ensino e pesquisadores.
Aqui esto reunidas algumas das refl exes suscitadas nesses encontros. A primeira seo do livro relata as principais crti-cas s propostas debatidas nas audincias pblicas. Em seguida so abordados os avanos conceituais das polticas de educa-o profi ssional, as aes necessrias ao desenvolvimento das polticas pblicas nessa rea e, por fi m, as possibilidades de or-ganizao e desenvolvimento curricular.
Essas discusses so de fundamental importncia para jovens e adultos trabalhadores que buscam no ensino mdio e na educao profi ssional uma formao que viabilize sua insero no mercado de trabalho e que os leve a compreender os pro-cessos econmicos e sociais em curso no mundo atual.
ELIEZ
ER PACHEC
O (O
RGANIZADOR)
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PersPectivas da educao Profissional tcnica
de nvel mdio
Proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais
eliezer Pachecoorganizador
secretaria de educao Profissional e tecnolgica do ministrio da educao setec/mec
Braslia, 2012
so Paulo, 2012
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Coordenao editorial: Snia Cunha S. DanelliEdio de texto: Carlos Eduardo S. MatosCoordenao de design e projetos visuais: Sandra Botelho de Carvalho HommaProjeto grfico e capa: Everson de Paula Imagem da capa: saicle/ShutterstockCoordenao de produo grfica: Andr Monteiro, Maria de Lourdes RodriguesCoordenao de arte: Maria Lucia CoutoEdio de arte: Marcia Nascimento e Carolina de OliveiraEditorao eletrnica: Rodolpho de SouzaCoordenao de reviso: Elaine Cristina del NeroReviso: Maristela S. CarrascoCoordenao de bureau: Amrico JesusPr-impresso: Alexandre Petreca, Everton L. de Oliveira Silva, Helio P. de Souza Filho, Marcio H. KamotoCoordenao de produo industrial: Wilson Aparecido TroqueImpresso e acabamento:
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2012Impresso no Brasil
ISBN 978-85-16-06020-6
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Sumrio
Apresentao ......................................................................................... 5Parte I Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Profissional Tcnica de nvel mdio em debate ........................ 8
As competncias profissionais ......................................................... 8Formao integrada ........................................................................ 10O foco da educao profissional ................................................... 12
Parte II A historicidade da questo ....................................... 17A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional de 1996 ........ 17O Decreto 2.208/97 ........................................................................ 21O Decreto 5.154/04 ........................................................................ 26A Lei 11.741/08 ............................................................................... 29O respeito diversidade ................................................................ 32A educao de jovens e adultos (EJA) .......................................... 34A educao escolar indgena ......................................................... 38A educao do campo e o ensino agrcola .................................. 43As Conferncias e o Frum Mundial ............................................. 50O papel da EPT no desenvolvimento: para alm do campo educacional ..................................................................................... 56
Parte III Conceitos e concepes .......................................... 58Formao humana integral ............................................................ 58Cidadania ........................................................................................ 61Trabalho, cincia, tecnologia e cultura: categorias indissociveis da formao humana .............................................. 64O trabalho como princpio educativo ........................................... 67A produo do conhecimento: a pesquisa como princpio pedaggico ..................................................................................... 70
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Parte IV Por uma poltica pblica educacional ..................... 73Possibilidades para o ensino mdio .............................................. 73O necessrio exerccio do regime de colaborao ...................... 76Quadro docente permanente e sua formao .............................. 81Formao inicial ............................................................................... 81Formao continuada ....................................................................... 84Financiamento pblico .................................................................. 87
Parte V Organizao e desenvolvimento curricular ............... 92Fundamentos para um projeto poltico-pedaggico integrado ... 92A relao parte-totalidade na proposta curricular ........................ 97O estgio curricular ...................................................................... 102A relao com os Programas de Aprendizagem Profissional .... 104A organizao por eixo tecnolgico ........................................... 106Articulao com o desenvolvimento socioeconmico e a educao ambiental ............................................................... 112O atendimento de pessoas com deficincia, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ........................ 115A mediao pelas tecnologias de informao e comunicao: a organizao dos cursos a distncia .......................................... 118O reconhecimento de saberes e a certificao profissional ...... 121
Anexo: Proposta de Resoluo .......................................................... 125Referncias bibliogrficas .............................................................. 136Colaboraram na elaborao deste documento ............................ 143
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51 A primeira foi realizada em 11 de maro de 2010, no Rio de Janeiro/RJ. A segunda foi realizada no ms seguinte, em 15 de abril, em So Paulo/SP, como parte da stima edio do Frum Estadual de Educao Profissional.
Apresentao
O presente texto resulta da necessidade de ampliar o de-
bate sobre a atualizao das diretrizes da educao profissional
tcnica de nvel mdio, o qual teve como procedimentos iniciais
a realizao de duas audincias pblicas1 promovidas pelo Con-
selho Nacional de Educao (CNE).
Os documentos com as proposies de textos de parecer e
resoluo, visando a atualizao das Diretrizes Curriculares Nacio-
nais (DCN) para a educao profissional tcnica de nvel mdio,
elaborados por comisso instituda pela Cmara de Educao B-
sica (CEB) e composta pelos conselheiros Adeum Sauer (presiden-
te), Francisco Aparecido Cordo (relator), Jos Fernandes Lima e
Mozart Neves Ramos, desde a primeira audincia, tm sido objeto
de vrias anlises. Nesse processo, receberam inmeras conside-
raes crticas de sociedades cientficas, profissionais e sindicais,
de instituies e redes pblicas de ensino, de pesquisadores e
gestores pblicos da educao profissional e tecnolgica.
Considerando a complexidade, importncia e premncia da
matria, o Conselho Nacional das Instituies da Rede Federal
de Educao Profissional, Cientfica e Tecnolgica (Conif), por
intermdio de seu Frum de Dirigentes de Ensino (FDE), junta-
mente com a Secretaria de Educao Profissional e Tecnolgica
do Ministrio da Educao (Setec/MEC) promoveram, em Bra-
slia, nos dias 5 e 6 de maio de 2010, o Seminrio da Educao
Profissional e Tecnolgica. Participaram desse encontro, alm
dos dirigentes de ensino das instituies federais, pesquisadores
da rea, conselheiros e assessores do CNE.
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6A Carta do Seminrio estabeleceu, entre os encaminhamen-
tos, a ampliao do debate com a participao das demais redes
pblicas de ensino e a criao de um grupo de trabalho com a
colaborao de pesquisadores da rea.
Ciente da necessidade de ampliao do debate e da formu-
lao de uma slida contribuio em termos de explicitao e
aprofundamento das concepes que devem nortear as ofertas
de educao profissional e tecnolgica e o desenvolvimento de
polticas pblicas nesse campo, a Setec/MEC reuniu um Grupo
de Trabalho (GT) sobre o tema.
Para o GT foram convidados quatro secretarias do MEC2; o
Ministrio do Trabalho e Emprego (MTE); o Ministrio da Sade
(MS), representado pela Escola Politcnica de Sade Joaquim
Venncio (EPSJV-Fiocruz); os gestores estaduais de educao
profissional, vinculados ao Conselho Nacional dos Secretrios de
Educao (Consed); o Frum dos Conselhos Estaduais de Edu-
cao; o Conselho Nacional das Instituies da Rede Federal de
Educao Profissional, Cientfica e Tecnolgica (Conif); a Central
nica dos Trabalhadores (CUT), representada pela Escola dos
Trabalhadores; o Sindicato Nacional dos Servidores Federais da
Educao Bsica, Profissional e Tecnolgica (Sinasefe); e a As-
sociao Nacional de Ps-graduao e Pesquisa em Educao
(Anped); contou-se ainda com a colaborao de renomados pes-
quisadores da educao profissional e tecnolgica.
O GT reuniu-se durante os meses de junho a agosto3, em
quatro encontros presenciais em Braslia, recebendo ainda diver-
2 Secretaria de Educao Bsica (SEB), Secretaria de Educao Especial (Seesp), Secretaria de Educao a Distncia (Seed) e Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad).3 Os encontros ocorreram em 2010, nos dias 17 e 18 de junho; 8 e 9 de julho; 19 e 20 de julho e 26 de agosto. A ltima reunio do GT contou tambm com a participao da Secretaria Executiva e da Secretaria de Polticas Pblicas de Emprego do MTE e de representantes do Mapa e do MCT. O resultado dos debates foi apresentado ao Conselho Tcnico Consultivo da Educao Bsica (CTC EB) da Capes, no dia 31 de agosto.
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7sas contribuies enviadas espontaneamente por outros rgos,
instituies de ensino e pesquisadores.
Este texto o resultado inicial desse fecundo debate. Reco-
nhecendo o mrito da iniciativa da sociedade civil e do Estado,
assim como a autoridade do CNE na matria que objeto de
estudo e deciso, pretende contribuir para o aprofundamento
das discusses na iminncia da apreciao e aprovao das DCN
para a educao profissional tcnica de nvel mdio.
O entendimento de que se trata de um tema de particular
interesse para jovens e adultos trabalhadores que buscam no en-
sino mdio e na educao profissional uma formao capaz de
inseri-los no mundo do trabalho e de lev-los a compreender as
questes relativas a emprego/desemprego, formao e trabalho
e os processos econmicos e sociais em curso no mundo atual.
O texto desdobra-se em cinco partes. A primeira situa as
principais crticas apresentadas s propostas de parecer e reso-
luo debatidas nas duas audincias pblicas, contextualizando
a linha de argumentao das formulaes presentes nas sees
posteriores. A segunda busca recuperar a historicidade da ques-
to, enfatizando os avanos conceituais alcanados nas polticas
de educao profissional e tecnolgica em sua integrao com
outros nveis e modalidades educacionais. A terceira explicita os
principais conceitos e concepes que devem embasar as ofertas
de educao profissional. A quarta aborda algumas das aes
necessrias ao desenvolvimento das polticas pblicas de educa-
o profissional. A ltima parte discorre sobre possibilidades de
organizao e desenvolvimento curricular.
Desejamos uma boa leitura e um profcuo debate.
Eliezer Pacheco
Secretrio de Educao Profissional e Tecnolgica do MEC
(2006-2011)
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8Parte I
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Profissional Tcnica
de nvel mdio em debate4
As contribuies ao debate elaboradas por instituies p-
blicas de ensino, representaes de trabalhadores e associaes
de pesquisa cientfica colocam no centro de suas crticas a dis-
posio, em nvel nacional, de diretrizes que obriguem as ins-
tituies e redes de ensino a adotar o modelo de organizao
curricular orientado para o desenvolvimento de competncias
profissionais.
As competncias profissionais
O conceito de competncias, a partir do Decreto 2.208/97
at a proposta das DCN em questo, adquiriu o sentido reduzi-
do de competncias para o mercado de trabalho e enfatizou a
fragmentao do conhecimento. Aquilo que era entendido como
o desenvolvimento de conhecimento e de habilidades para o
exerccio de atividades fsicas e intelectuais, em todos os cam-
pos da vida humana, tornou-se uma noo eivada da ideologia
mercantil.
4 Esta introduo teve por base, principalmente, as contribuies recebidas das instituies de ensino participantes do seminrio promovido pelo Conif, em maio de 2010, e o texto elaborado por Gaudncio Frigotto, Maria Ciavatta e Marise Ramos (coordenadora do GT Trabalho e Educao/Anped). Rio de Janeiro: Projetos Integrados UFF-Uerj-EPSJV-Fiocruz, julho de 2010.
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9Nas crticas aos documentos em discusso, h o entendi-
mento de que a escola sempre desenvolveu competncias. Po-
rm, quando se coloca a questo do currculo baseado em com-
petncias de natureza comportamental, a nica formao poss-
vel a do treinamento, o que supe a seleo de conhecimentos
orientada predominantemente para o desempenho funcional.
Perde-se, assim, a referncia das propriedades caractersticas da
escola, que so a cultura e o saber cientfico sistematizado bsico
(tcnico e tecnolgico).
Ao opor-se lgica das competncias, assume-se que:
a referncia para a seleo dos contedos do ensino no pode tomar por base a adequao de comportamentos de forma
restrita produo, mas ter em vista a formao ampliada nos
diversos campos do conhecimento (cincia, tecnologia, traba-
lho e cultura);
a preparao para o trabalho no preparao para o empre-go, mas a formao omnilateral (em todos os aspectos) para
compreenso do mundo do trabalho e insero crtica e atuan-
te na sociedade, inclusive nas atividades produtivas, em um
mundo em rpida transformao cientfica e tecnolgica.
Uma viso adaptativa est na lgica de ensinar a fazer ben-
feito o que se prescreve ao trabalhador, isto , ser eficiente e
eficaz, sem questionar o que executa nem os fins e a apropria-
o do que se produz. De outra parte, a empresa incorpora os
saberes dos trabalhadores e os devolve como trabalho prescrito
a outros trabalhadores5.
5 Um exemplo real de como os trabalhadores desenvolvem saberes teis produo foi relatado por um sindicalista. Em determinada fbrica, o controle de qualidade no conseguia reduzir o nmero de caixas de fsforos que, na linha de montagem, no tinham fsforos ou no os tinham na quantidade prevista. Um trabalhador deu a soluo ao controle de qualidade virando um ventilador para a fila de caixinhas. As vazias eram identificadas pela fora do vento e retiradas da finalizao do produto.
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As diretrizes curriculares para a educao profissional tcnica
de nvel mdio devem retomar a educao profissional no ades-
tradora, no fragmentada. Devem dar aos jovens e adultos traba-
lhadores, na interao com a sociedade, os elementos necessrios
para discutir, alm de entender, a cincia que move os processos
produtivos e as relaes sociais geradas com o sistema produtivo.
Formao integrada
So as disciplinas vinculadas s cincias que estruturam as
diferentes profisses. Ao se pensar na questo curricular para a
formao de um qumico, por exemplo, estaro includos os funda-
mentos da Qumica (a Qumica Analtica, a Fsico-qumica, a Qumi-
ca Orgnica etc.) e seus desdobramentos especficos, os aplicativos
tecnolgicos, os processos tecnolgicos e suas tcnicas.
Nessa concepo no h uma separao hierrquica entre a
tcnica e a tecnologia, e sim uma unidade. Como observa PARIS
(2002), no conhecimento humano, nem sempre cincia, tcnica
e tecnologia so separadas, elas se complementam e se alimen-
tam mutuamente na produo de bens necessrios existncia
humana, embora possamos diferenci-las para fins de anlise.
As inovaes tcnicas supem, segundo o autor,
um aperfeioamento numa linha estabelecida de energia e mate-
riais como ilustraria o desenvolvimento da navegao a vela. [As
inovaes tecnolgicas] implicam saltos qualitativos, por introdu-
o de recursos energticos e materiais novos assim, na arte
de navegar, o aparecimento dos navios a vapor e depois o dos
movidos por combustveis fsseis e por energia nuclear. [...] Tais
impulsos podem vir do mesmo fazer tcnico, do saber forjado nas
oficinas, com o aperfeioamento da prtica, ou da utilizao do
progresso cognoscitivo obtido pela pesquisa cientfica, derivando
da cincia pura para a aplicada. (p. 219)
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Mas todos esses processos e as linguagens que permitem a
comunicao, conclui o autor, somente se explicam dentro de
uma sociedade e de um contexto cultural mais amplo e sua pr-
tica reflete intensamente relaes de poder (p. 344).
Considerando o modo de produo e suas exigncias no
mundo do trabalho, possvel pensar no modelo fordista que
foi favorecido por um salto cientfico-tecnolgico a eletricida-
de mas que tambm se nutriu da hidrulica, da mecnica e de
tantos outros campos da cincia e da tcnica. H nisso um salto
qualitativo e novos elementos da cincia que modificam a forma
de atuar no sistema produtivo. Seu desenvolvimento ocorreu em
determinada estrutura social envolvendo materiais, ideologias,
formas de comunicao, formao de trabalhadores, relaes de
trabalho etc.
Organizar um currculo escolar com essa perspectiva de
contexto supe a superao das tcnicas isoladas e minimizadas
de uma viso ideolgica e funcional produo na escala do
conhecimento. Implica no se limitar filosofia dos anos 1930,
aplicando ao sistema de formao profissional a mxima de en-
sinar o que serve (FRIGOTTO, 1987).
A formao integrada, assumida como princpio educacio-
nal, implica superar o pragmatismo que reduz a educao a sua
funcionalidade e incluir outras prticas formativas, a exemplo da
introduo de elementos de metodologia cientfica, de tica, de
economia e dos direitos do trabalho no ensino da filosofia, do
desenvolvimento do trabalho em equipe, de projetos, da genera-
lizao da iniciao cientfica na prtica formativa. O que exige a
implementao de polticas pblicas de concesso de bolsas de
iniciao cientfica tambm para o nvel mdio.
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Essa perspectiva afina-se com o movimento em curso das so-
ciedades cientficas (Abrapec, Anped, Anpae, SBEM, SBHE, SBEn-
Bio, SBF, SBPC6) em defesa da educao e do ensino das cincias,
que comporta o uso de equipamentos e laboratrios, com o tempo
lento da aprendizagem refletida, do dilogo professor-aluno, dos
projetos, das atividades em equipe. Mas incorporando os processos
sociais que esto na sua gnese e sustentao, sem proceder a sua
reduo frequente aos aspectos tcnico-cientficos dos problemas.
Em termos da nova organizao do trabalho, por exemplo,
o estudo da informtica e da microeletrnica deve ser vinculado
a sua introduo nos processos produtivos, a exemplo dos mo-
delos ps-fordistas, e suas consequncias no mundo do trabalho,
incluindo a flexibilizao (desregulamentao, terceirizao, pre-
carizao) das relaes de trabalho.
O foco da educao profissional
Considerando o exposto, possvel perceber a razo de as
crticas s propostas de parecer e resoluo discutidas nas au-
dincias pblicas serem contundentes quanto manuteno da
centralidade da educao profissional na dimenso econmica.
Tal perspectiva supe uma aceitao do mercado como instru-
mento regulador da sociabilidade, em vez de afirmar a centrali-
dade no ser humano e em suas relaes com a natureza, visan-
do atender s necessidades dos sujeitos e da sociedade. Nessa
compreenso, a atual proposta constitui a reiterao das DCN
elaboradas para o Decreto 2.208/97, no alcanando os avanos
6 Abrapec Associao Brasileira de Pesquisa em Educao em Cincias; Anped Associao Nacional de Ps-graduao e Pesquisa em Educao; Anpae Associao Nacional de Poltica e Administrao da Educao; SBEM Sociedade Brasileira de Educao Matemtica; SBHE Sociedade Brasileira de Histria da Educao; SBEnBio Sociedade Brasileira de Ensino de Biologia; SBF Sociedade Brasileira de Fsica; SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia.
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conceituais promovidos na Lei de Diretrizes e Bases da Educao
Nacional (LDB), Lei 9.394/96, pela Lei 11.741/087.
Como consequncia, a concepo presente na proposta de
parecer assume a educao profissional tcnica de nvel mdio
como algo distinto da educao bsica. Embora persista certa
ambiguidade, provocada em especial pela expresso articu-
lao com o ensino regular (art. 40), a legislao brasileira
estabelece princpios, finalidades e orientaes curriculares e
metodolgicas idnticos para o ensino mdio e para a edu-
cao profissional tcnica de nvel mdio (art. 35, incisos II e
IV; art. 36, inciso I e 1o, inciso I; art. 36-A caput e pargrafo
nico), localizando esta ltima como momento da educao
bsica, cuja oferta poder estar estruturada em qualquer das
trs formas previstas: integrada, concomitante ou subsequente
ao ensino mdio (arts. 36-B e 36-C).
A legislao assume como caracterstica da educao profis-
sional tcnica de nvel mdio o contexto da preparao para
o exerccio de profisses tcnicas (art. 36-A), isto , a habili-
tao profissional no ensino mdio, seja ela ao mesmo tempo ou
em continuidade formao geral do educando.
Outra crtica obrigatoriedade de adoo de um modelo
de educao profissional centrado no desenvolvimento de com-
petncias profissionais o fato de essa obrigao contrariar os
princpios constitucionais, reafirmados na LDB, da liberdade de
aprender, ensinar a pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o
saber e do pluralismo de ideias e concepes pedaggicas (CF
art. 206, incisos II e III; e LDB art. 3o, incisos II e III).
7 A Lei 11.741/08 promoveu alteraes no Ttulo V da LDB, principalmente em relao seo IV do Captulo II, que trata do Ensino Mdio, mudando a redao de dispositivos do artigo 36 e criando a seo IV-A, com a insero de quatro novos artigos. Acrescentou, ainda, um novo pargrafo no artigo 37, na seo V, que trata da Educao de Jovens e Adultos. Finalmente, alterou a redao de dispositivos do Captulo III do Ttulo V, dedicado Educao Profissional, o qual passou a denominar-se Da Educao Profissional e Tecnolgica.
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Tambm vai contra o previsto na organizao da educao
nacional, a obrigatoriedade de os sistemas de ensino assegura-
rem progressivos graus de autonomia pedaggica a suas uni-
dades escolares (LDB art. 15), bem como a autonomia didtico-
-pedaggica das autarquias federais de educao profissional,
cientfica e tecnolgica (Lei 11.892/08. art. 1o, pargrafo nico).
As crticas apontam ainda como as orientaes presentes
nos documentos citados demonstram a aceitao do lugar su-
bordinado da sociedade brasileira na diviso internacional do
trabalho, que cabe aos pases dependentes do ncleo orgni-
co do capital, representado pelos pases ricos. Tais afirmativas
baseiam-se na forma como os documentos assumem as diretri-
zes dos organismos internacionais em termos de promoo da
pedagogia das competncias para atendimento das necessidades
do mercado de trabalho, da naturalizao da flexibilizao das
relaes de trabalho (desregulamentao), da modernizao em
contraste com o crescimento da pobreza apenas mitigada.
No plano mais geral, h uma disputa terica baseada na
concepo produtivista, a produo destrutiva, desviando-se
do problema principal da socializao dos bens, ou seja, da dis-
tribuio da riqueza de bens materiais e sociais (sade, educa-
o, cultura, habitao, segurana, previdncia) que assegure a
todos uma vida digna e menos sofrida, uma perspectiva de futu-
ro para os jovens e para as famlias dos trabalhadores.
Ao reafirmar pressupostos presentes em documentos nor-
mativos balizados pela lgica da separao entre educao bsi-
ca e educao profissional e da submisso das finalidades educa-
cionais s necessidades do modo de produo fundado na rela-
o capital-trabalho, o texto apresentado nas audincias pblicas
invisibiliza o processo de lutas travado nas duas ltimas dcadas
em torno da temtica.
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Dessas lutas resultaram diversos documentos e discusses,
tais como:
o Documento de Propostas de Polticas Pblicas para a Educa-o Profissional e Tecnolgica, Secretaria de Educao Mdia
e Tecnolgica (Semtec/MEC), dez. 2003;
as discusses ocorridas no seminrio Ensino Mdio: Cincia, Cultura e Trabalho, de maio de 2003, que resultaram na pu-
blicao homnima;
as Teses e Resolues da 6a Plenria Nacional da CUT, sobre qualificao profissional, 1995;
o Plano Nacional de Qualificao do Ministrio do Trabalho e Emprego, 2003;
a Resoluo 333 do Conselho Deliberativo do Fundo de Am-paro ao Trabalhador (Codefat), 2003;
as discusses ocorridas no processo de formulao dos Cat-logos Nacionais dos Cursos Superiores de Tecnologia e dos
Cursos Tcnicos (2006-2007), que deram origem organiza-
o da educao profissional por eixos tecnolgicos;
as discusses decorrentes da implantao do Programa Nacio-nal de Integrao da Educao Profissional com a Educao
Bsica na Modalidade de Educao de Jovens e Adultos (Proe-
ja), presentes tanto nos Documentos Base como em diversas
outras publicaes resultantes dos cursos de Especializao-
-Proeja, dos Dilogos Proeja e dos ncleos de pesquisa Proeja
Capes/Setec;
o Documento Base da Educao Profissional Tcnica de Nvel Mdio Integrada ao Ensino Mdio, 2007;
os resultados de pesquisas e estudos sobre educao profissio-nal para pessoas com necessidades educacionais especficas;
as discusses sobre a formao de docentes para a educao profissional, em especial as discusses sobre propostas de
Licenciaturas em Educao Profissional e Tecnolgica;
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as discusses sobre o Ensino Agrcola, sintetizadas na publica-o (Re)Significao do Ensino Agrcola, 2009;
as discusses acumuladas na formulao da Rede Nacional e dos Programas de Certificao Profissional e Formao Inicial
e Continuada (Certific);
as discusses sobre as diretrizes para a Educao de Jovens e Adultos, Educao do Campo, Educao Escolar Indgena,
Educao em Prises e Ensino Mdio Inovador;
os resultados da Conferncia Nacional de Educao Profissional e Tecnolgica (Confetec), em 2006; da Conferncia Nacional da
Educao Bsica (Coneb), em 2009; do Frum Mundial de Edu-
cao Profissional e Tecnolgica, em 2009; da VI Conferncia
Internacional de Educao de Adultos (Confintea), em 2009, e
da Conferncia Nacional de Educao (Conae), em 2010;
os debates para a reformulao da LDB (Lei 11.741/08), ela-borao da Lei de Estgio (Lei 11.788/07) e da Lei de Criao
dos Institutos Federais (Lei 11.892/08).
Em consequncia, importantes temticas como o financia-
mento e a qualidade dos cursos tcnicos, a formao e o perfil
dos docentes para educao profissional, a educao profissio-
nal para populaes do campo e indgenas, a relao da educa-
o profissional com a educao ambiental e com a educao
especial, entre outras, esto ausentes das propostas de parecer e
resoluo em questo.
Buscando localizar nessa trajetria a evoluo dos concei-
tos e das concepes que pressupomos devam balizar as ofertas
educacionais e o desenvolvimento de polticas para a educao
profissional e tecnolgica (designada a partir daqui pela sigla
EPT), em especial a de nvel mdio, passamos a analisar o his-
trico da educao profissional, tendo como ponto de partida a
Constituinte de 1988 e a gnese da LDB de 1996.
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Parte II
A historicidade da questo
A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional de 19968
De forma similar ao trmite que resultou na primeira LDB, a de 1961, no processo mais recente de onde emergiram a Car-ta Magna de 1988 e a atual LDB, a de 1996, o pas saa de um perodo ditatorial e tentava reconstruir o Estado de Direito, de modo que os conflitos no eram pequenos em torno de projetos societrios distintos.
Na esfera educacional, a principal polmica continuou a opor, de um lado, os partidrios de uma educao pblica, gra-tuita, laica e de qualidade para todos, independentemente da ori-gem socioeconmica, tnica, racial etc.; do outro, os defensores da submisso dos direitos sociais, em geral, e, particularmente, da educao lgica da prestao de servios, sob a argumentao da necessidade de diminuir o Estado que gasta muito e no faz nada benfeito.
Nesse embate, prevaleceu a lgica de mercado, portanto, a iniciativa privada pode atuar livremente na educao em todos os nveis, conforme garantido pela Constituio Federal de 1988
e ratificado pela LDB de 19969.
8 Esta seo foi adaptada do Documento Base da Educao Profissional Tcnica de Nvel Mdio Integrada ao Ensino Mdio (BRASIL, 2007d), elaborado por comisso composta pelos professores Dante Moura, Marise Ramos e Sandra Garcia.9 Anlises mais profundas sobre a questo educacional brasileira na Constituinte de 1988 e na LDB de 1996 podem ser encontradas em FAVERO, Osmar. A educao nas constituintes brasileiras (1823--1988). So Paulo: Autores Associados, 1996.
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Especificamente no que tange relao entre a ltima etapa
da educao bsica (atual ensino mdio, poca 2o grau) e a
educao profissional, no processo de elaborao da nova LDB,
ressurgiu o conflito da dualidade (FRIGOTTO; CIAVATTA; RA-
MOS, 2005). De um lado, a defesa da formao profissional lato
sensu integrada ao 2o grau nos seus mltiplos aspectos huma-
nsticos e cientfico-tecnolgicos constante no primeiro projeto
da LDB, apresentado pelo deputado federal Otavio Elsio, que
tratava o 2o grau da seguinte forma:
A educao escolar de 2o grau ser ministrada apenas na lngua
nacional e tem por objetivo propiciar aos adolescentes a forma-
o politcnica necessria compreenso terica e prtica dos
fundamentos cientficos das mltiplas tcnicas utilizadas no pro-
cesso produtivo (BRASIL. 1991, art. 38, citado por FRIGOTTO;
CIAVATTA; RAMOS, 2005. p. 25).
Nessa proposta, o papel do 2o grau estaria orientado recu-
perao da relao entre conhecimento e prtica do trabalho, o
que denotaria explicitar como a cincia se converte em potncia
material no processo produtivo. Dessa forma,
seu horizonte deveria ser o de propiciar aos alunos o domnio
dos fundamentos das tcnicas diversificadas utilizadas na pro-
duo e no o mero adestramento em tcnicas produtivas. No
se deveria, ento, propor que o ensino mdio formasse tcnicos
especializados, mas, sim, politcnicos (FRIGOTTO; CIAVATTA;
RAMOS, 2005, p. 35).
Nesse contexto, a dimenso politcnica relaciona-se com
domnio dos fundamentos cientficos das diferentes tcnicas que
caracterizam o processo de trabalho moderno (SAVIANI, 2003,
p. 140). De acordo com essa viso, a educao escolar, particular-
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mente o 2o grau, deveria propiciar aos estudantes a possibilidade
de (re)construo dos princpios cientficos gerais sobre os quais
se fundamenta a multiplicidade de processos e tcnicas que do
base aos sistemas de produo em cada momento histrico.
Do outro lado estavam os partidrios de uma educao su-
bordinada lgica mercantil. No por acaso, a perspectiva de
formao integral foi se perdendo gradativamente em funo da
mesma correlao de foras j mencionada, ao se tratar do em-
bate entre educao pblica e educao privada. Desse modo, o
texto finalmente aprovado pelo Congresso Nacional em 1996
o substitutivo Darcy Ribeiro consolida, mais uma vez, a dua-
lidade entre a ltima etapa da educao bsica, que passa a
denominar-se ensino mdio, e a educao profissional.
O texto minimalista e ambguo, em particular no que se
refere a essa relao ensino mdio e educao profissional.
Assim, o ensino mdio ficou no Captulo II, destinado educa-
o bsica, e a educao profissional foi disposta no Captulo III,
constitudo por trs pequenos artigos.
Como na LDB a educao brasileira se encontra estruturada
em dois nveis educao bsica e educao superior , por
no localizar a educao profissional em nenhum deles, o texto
explicita e assume uma concepo dual em que a educao pro-
fissional posta fora da estrutura da educao regular brasileira,
considerada algo que vem em paralelo ou como um apndice10.
Apesar disso, no 2o do artigo 36, Seo IV do Captulo II
que se refere ao ensino mdio , estabelece-se que o ensino
mdio, atendida a formao geral do educando, poder prepa-
r-lo para o exerccio de profisses tcnicas (grifo nosso).
10 A Lei 11.741/08, ao alterar a LDB, localiza a educao profissional tcnica de nvel mdio no Captulo II Da Educao Bsica, explicitando que essa oferta educacional integrante desse nvel de ensino.
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Por outro lado, no artigo 40, Captulo III, est estabelecido
que a educao profissional ser desenvolvida em articulao
com o ensino regular ou por diferentes estratgias de educa-
o continuada, em instituies especializadas ou no ambiente
de trabalho (grifo nosso).
Esses dois pequenos trechos da lei so emblemticos no
sentido de explicitar o seu carter minimalista e ambguo. Esses
dispositivos legais evidenciam que quaisquer possibilidades de ar-
ticulao entre o ensino mdio e a educao profissional podem
ser realizadas, assim como a completa desarticulao entre eles.
Cabe ressaltar que essa redao no inocente e desinte-
ressada. Ao contrrio, objetiva consolidar a separao entre o en-
sino mdio e a educao profissional, o que j era objeto de um
projeto de lei de iniciativa do Poder Executivo, o PL 1.603, que
tramitava no Congresso Nacional em 1996, antes da aprovao e
promulgao da prpria LDB.
O contedo do PL 1.603/96, que, entre outros aspectos,
separava obrigatoriamente o ensino mdio da educao profis-
sional, encontrou ampla resistncia das mais diversas correntes
polticas dentro do Congresso Nacional e gerou uma mobilizao
contrria da comunidade acadmica, principalmente dos grupos
de investigao do campo trabalho e educao e das instituies
pblicas federais e estaduais.
Em funo dessa resistncia e da iminncia da aprovao da
prpria LDB no Congresso Nacional, diminuiu a presso gover-
namental com relao ao trmite do PL 1.603/96, uma vez que
a redao dos artigos 36 ensino mdio e 39 a 42 educao
profissional possibilitava a regulamentao na linha desejada
pelo Governo Federal. Mediante decreto do presidente da Rep-
blica, esta se materializou em abril de 1997, poucos meses aps
a promulgao da LDB, ocorrida em dezembro de 1996.
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Dessa forma, o contedo do PL 1.603/96 foi praticamente
todo contemplado no Decreto 2.208/97. Com isso, foi alcanado
o intuito de separar o ensino mdio da educao profissional
sem que se tornasse necessrio enfrentar o desgaste de tramitar
um projeto de lei com relao ao qual havia ampla resistncia.
O Decreto 2.208/9711
O Decreto 2.208/97, o Programa de Expanso da Educao Pro-
fissional (Proep) e as aes deles decorrentes ficaram conhecidos
como a Reforma da Educao Profissional. Nesse contexto, o ensino
mdio retomou em termos legais um sentido puramente propedu-
tico, enquanto os cursos tcnicos, agora obrigatoriamente separados
do ensino mdio, passaram a ser oferecidos de duas formas:
a concomitante ao ensino mdio, em que o estudante pode fazer ao mesmo tempo o ensino mdio e um curso tcnico,
mas com matrculas e currculos distintos, podendo os dois
cursos ser realizados na mesma instituio (concomitncia in-
terna) ou em diferentes instituies (concomitncia externa);
a sequencial ou subsequente, destinada a quem j concluiu o ensino mdio.
Juntamente com o Decreto 2.208/97, que estabeleceu as ba-
ses da reforma da educao profissional, o Governo Federal ne-
gociou emprstimo junto ao Banco Interamericano de Desenvol-
vimento (BID) com o objetivo de financiar a mencionada reforma.
Ela era um dos itens do projeto de privatizao do Estado brasilei-
ro em atendimento poltica neoliberal, determinada pelos pases
hegemnicos de capitalismo avanado, organismos multilaterais
11 Esta seo foi adaptada do Documento Base da Educao Profissional Tcnica de Nvel Mdio Integrada ao Ensino Mdio (BRASIL, 2007d).
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de financiamento e grandes corporaes transnacionais. Esse fi-
nanciamento foi materializado por meio do Proep.
Apesar da crtica que merece essa lgica privatizante que
transferiu grande parte do patrimnio pblico nacional iniciati-
va privada a baixos custos, necessrio reconhecer que a refor-
ma da educao profissional foi extremamente coerente com a
lgica neoliberal que a patrocinou.
De fato, ao ser analisada dessa perspectiva, revelou-se mui-
to eficiente quanto transferncia, mas ineficiente quanto im-
plantao da poltica, pois as denominadas escolas comunitrias
no conseguiram se efetivar como previsto. A maioria delas foi
retomada pelo MEC, sendo transformadas em unidades da Rede
Federal de Educao Profissional, Cientfica e Tecnolgica.
Cabe destacar que os critrios de elegibilidade dos projetos
institucionais eram extremamente coerentes com a reforma da
educao profissional. Assim, o projeto que apresentasse alguma
proposta relacionada ao ensino mdio era sumariamente descar-
tado, medida compatvel com a separao do ensino mdio da
educao profissional e, mais ainda, com o afastamento definiti-
vo das instituies federais da educao bsica.
Nessa mesma direo, a Portaria 646/97 determinou que a
partir de 1998 a oferta de vagas de cada instituio federal no
ensino mdio corresponderia a, no mximo, 50% das vagas ofe-
recidas nos cursos tcnicos de nvel mdio no ano de 1997, os
quais conjugavam ensino mdio e educao profissional. Desse
modo, na prtica, essa simples Portaria determinou a reduo da
oferta de ensino mdio no pas algo flagrantemente inconstitu-
cional, mas que teve plena vigncia at 1o de outubro de 2003,
quando foi publicada no Dirio Oficial da Unio a sua revogao
por meio da Portaria 2.736/03.
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Deve-se ainda ressaltar que a manuteno de 50% da oferta
do ensino mdio na Rede Federal no era a inteno inicial dos
promotores da reforma. Ao contrrio, a ideia era extinguir defini-
tivamente a vinculao das instituies federais com a educao
bsica. Na verdade, a manuteno desses 50% foi fruto de um in-
tenso processo de mobilizao ocorrido na Rede, principalmente
entre 17 de abril e 14 de maio de 1997, datas de publicao do
Decreto 2.208 e da Portaria 646, respectivamente.
Para tratar do segundo aspecto, a eficincia da reforma
conforme a lgica neoliberal, sero mencionados fatos que se
fortalecem mutuamente, regulados por dois textos legais: a
LDB de 1996, que ratificou e potencializou o mbito educacio-
nal como espao prprio para o desenvolvimento da econo-
mia de mercado; e o Decreto 2.208/97, que definiu trs nveis
para a educao profissional bsico, tcnico e tecnolgico ,
sendo que as ofertas do ltimo integram a educao superior,
com carga horria mnima significativamente menor que as de-
mais carreiras da educao superior. Para no restar nenhuma
dvida de que as ofertas do nvel tecnolgico pertencem
educao superior, o CNE as define claramente como cursos de
graduao (Parecer CNE/CES 436/01, Parecer CNE/CP 29/02 e
Resoluo CNE/CP 3/02).
Os movimentos sociais tambm resistiram separao entre
educao bsica e profissional por meio de crticas ao Decreto
2.208/97 e ao dualismo, conforme se pode observar em suas par-
ticipaes nas Conferncias Nacionais de Educao organizadas
pelo Movimento de Defesa da Educao Pblica e nos eventos
promovidos pelas Comisses de Educao da Cmara de Depu-
tados e do Senado.
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A concepo de educao por eles defendida est expres-
sa nas diversas experincias educativas desenvolvidas nos anos
1990 pelas centrais sindicais e pelos sindicatos de trabalhadores.
Essas experincias envolviam formao integral, sob a forma de
educao profissional entrelaada ao ensino fundamental e ao
ensino mdio (CUT, 1998; LIMA, 1999, 2005), e fundamentaram,
a partir de 2003, diversos programas de EJA integrada EPT.
A combinao desses fatos associados cultura nacional
que supervaloriza socialmente o diploma de estudos em nvel
superior, embora no se possa estabelecer uma correspondncia
linear entre o status social supostamente conferido por esses di-
plomas e a repercusso econmica destes para seus detentores,
fez que houvesse uma proliferao sem precedentes na expan-
so da oferta de cursos superiores de tecnologia na iniciativa
privada, sem controles muito eficientes sobre a sua qualidade.
Na verdade, segundo a lgica apontada no incio, o que de fato
importava era o fortalecimento do mercado educacional, e isso
efetivamente aconteceu.
Claro que no se podem colocar no mesmo plano as ofertas
de cursos superiores de tecnologia comercializados por institui-
es que tm a educao como mercadoria e as proporcionadas
por boa parte das instituies federais e outras instituies de
educao superior pblicas. Estas, em sua maioria, so conce-
bidas a partir de uma lgica bem distinta da de mercado, entre
outros aspectos, porque so pblicas, gratuitas e, em geral, de
boa qualidade.
Isoladamente, o decreto poderia no ter alcance sobre os
sistemas estaduais de ensino, uma vez que, apesar de competir
Unio a coordenao da poltica nacional no exerccio da funo
normativa (LDB art. 8o, 1o), dada aos sistemas de ensino a li-
berdade de organizao nos termos da prpria LDB (art. 8o, 2o)
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e, constitucionalmente, cabe aos estados legislar em carter com-
plementar sobre matria educacional.
Com eficcia imediata sobre as instituies oficiais do sis-
tema federal (nos termos do inciso II, do artigo 9o, da LDB), o
decreto teve, porm, impacto decisivo sobre os demais sistemas.
A prestao de assistncia tcnica e financeira, prevista no inciso
III, do artigo 9o, teve por orientao as clusulas do acordo de
emprstimo realizado com o BID para o financiamento do Proep.
Sem uma fonte regular de recursos para a manuteno do ensino
mdio, visto o Fundo de Manuteno e Desenvolvimento do En-
sino Fundamental e de Valorizao do Magistrio (Fundef) no
alcanar essa etapa da educao bsica, os sistemas estaduais de
ensino foram compelidos a aderir s diretrizes da reforma.
Para os estados, a separao entre a educao profissional
e o ensino mdio estabeleceu uma oferta paralela ao sistema de
ensino regular. A falta de investimento federal levou os estados
a manter a oferta de ensino mdio com recursos prprios ou
por meio da adeso a programas financiados por emprstimos
internacionais. No caso da educao profissional, o financiamen-
to disponvel, vinculado ao Proep, no previa recursos para sua
manuteno, com a contratao e estruturao de carreiras para
os docentes e demais servidores da educao necessrios ao
funcionamento das escolas.
Como se v, todo esse contexto do final dos anos 1990
produziu efeitos graves sobre a educao brasileira em todos os
nveis. No que se refere educao bsica, a sntese a explici-
tao legal da dualidade entre ensino mdio e educao profis-
sional, com todas as consequncias que isso representa.
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O Decreto 5.154/0412
Ao se iniciar um novo mandato do Governo Federal, em
2003, e mesmo antes, no perodo de transio, houve o recrudes-
cimento da discusso acerca do Decreto 2.208/97, principalmen-
te no que se refere separao obrigatria entre o ensino mdio
e a educao profissional.
Esse processo resultou em uma significativa mobilizao
dos setores educacionais vinculados ao campo da educao pro-
fissional, principalmente no mbito dos sindicatos e dos pesqui-
sadores da rea trabalho e educao. Desse modo, durante o
ano de 2003 at julho de 2004, manifestou-se grande eferves-
cncia nos debates referentes relao entre ensino mdio e
educao profissional.
Assim, retomou-se a discusso sobre a educao politcni-
ca, compreendendo-a como uma educao unitria e universal
destinada superao da dualidade entre cultura geral e cultura
tcnica e orientada para o domnio dos conhecimentos cien-
tficos das diferentes tcnicas que caracterizam o processo de
trabalho produtivo moderno (SAVIANI, 2003, p.140), sem, no
entanto, voltar-se para uma formao profissional stricto sensu,
ou seja, sem formar profissionais em cursos tcnicos especficos.
Nessa perspectiva, a escolha por uma formao profissional
especfica em nvel universitrio ou no s viria aps a conclu-
so da educao bsica de carter politcnico, ou seja, a partir
dos 18 anos ou mais de idade.
Entretanto, essa retomada deu margem a reflexes impor-
tantes quanto possibilidade material de implementao, hoje
em dia, da politecnia na educao bsica brasileira na perspec-
12 Esta seo foi adaptada do Documento Base da Educao Profissional Tcnica de Nvel Mdio Integrada ao Ensino Mdio (BRASIL, 2007d).
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tiva aqui mencionada. Tais reflexes e anlises permitiram con-
cluir que as caractersticas atuais da sociedade brasileira dificul-
tam a implementao da educao politcnica ou tecnolgica
em seu sentido pleno, uma vez que, entre outros aspectos, a
extrema desigualdade socioeconmica obriga grande parte dos
filhos da classe trabalhadora a buscar a insero no mundo do
trabalho visando complementar o rendimento familiar, ou at
mesmo a autossubsistncia, muito antes dos 18 anos de idade.
Assim, a tentativa de implementar a politecnia de forma
universal e unitria no encontraria uma base material concreta
de sustentao na sociedade brasileira atual, uma vez que esses
jovens no podem se dar ao luxo de esperar at os 20 anos ou
mais para comear a trabalhar.
Tais reflexes conduziram ao entendimento de que uma so-
luo transitria e vivel um tipo de ensino mdio que garanta a
integralidade da educao bsica, ou seja, que contemple o apro-
fundamento dos conhecimentos cientficos produzidos e acumu-
lados historicamente pela sociedade, como tambm objetivos adi-
cionais de formao profissional numa perspectiva da integrao
dessas dimenses. Essa perspectiva, ao adotar a cincia, a tecnolo-
gia, a cultura e o trabalho como eixos estruturantes, contempla as
bases em que se pode desenvolver uma educao tecnolgica ou
politcnica e, ao mesmo tempo, uma formao profissional stricto
sensu exigida pela dura realidade socioeconmica do pas.
Essa soluo transitria (de mdia ou longa durao), por-
que fundamental que se avance numa direo em que deixe de
ser um luxo o fato de os jovens das classes populares optarem
por uma profisso aps os 18 anos de idade. Ao mesmo tempo,
vivel porque o ensino mdio integrado ao ensino tcnico, sob
uma base unitria de formao geral, uma condio necessria
para se fazer a travessia para uma nova realidade (FRIGOTTO;
CIAVATTA; RAMOS, 2005, p. 43).
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Foi a partir dessa convergncia mnima entre os prin-
cipais envolvidos nessa discusso que se edificaram as ba-
ses que deram origem ao Decreto 5.154/04 e, posteriormen-
te, permitiram a incorporao de seu contedo LDB pela
Lei 11.741/08. Alm de manter as ofertas dos cursos tcnicos
concomitantes e subsequentes trazidas pelo Decreto 2.208/97,
teve o grande mrito de revog-lo e de trazer de volta a pos-
sibilidade de integrar o ensino mdio educao profissional
tcnica de nvel mdio, agora, numa perspectiva que no se
confunde totalmente com a educao tecnolgica ou politc-
nica, mas que aponta em sua direo porque contm os prin-
cpios de sua construo.
Diversos esforos em termos da reformulao e da elabo-
rao de polticas pblicas no mbito do trabalho (qualificao
profissional, aprendizagem, certificao profissional, formao
para a economia solidria), da juventude (construo da pol-
tica nacional da juventude com aes que envolvem trabalho e
educao) e de educao do campo se desenvolveram, a partir
de 2003, orientados pelos princpios e premissas contidos nesse
texto, realizando uma inflexo das propostas dos governos ante-
riores, assentadas na formao para o mercado de trabalho.
Nesse sentido, espera-se que os diversos ministrios, em
particular o Ministrio do Trabalho e Emprego e o Ministrio da
Cincia e Tecnologia, continuem o processo de convergncia ini-
ciado em 2003, ao mesmo tempo que o esforo de regulamenta-
o dos cursos superiores de tecnologia e dos cursos tcnicos de
nvel mdio possa ser estendido formao inicial e continua-
da, vista como parte do itinerrio formativo do trabalhador para
fins de prosseguimento de estudos e/ou certificao, sem que
isso signifique o aligeiramento da formao ou sua subordinao
restrita dimenso econmica.
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A Lei 11.741/08
Ao alterar a LDB, a Lei 11.741/08 localiza a educao profis-
sional tcnica de nvel mdio como Seo IV-A do Captulo II
Da Educao Bsica. Essa disposio no texto legal procura res-
saltar a concepo de que esses cursos so da educao bsica
e encontram-se, portanto, no mbito das polticas educacionais.
Alm disso, est colocada como seo vinculada quela que trata
do ensino mdio, Seo IV, e no como uma sexta seo, aps a
que trata da educao de jovens e adultos, Seo V.
Mais do que tcnica legislativa, a incluso da Seo IV-A de-
monstra a compreenso de que a educao profissional tcnica
de nvel mdio uma das possibilidades de desenvolvimento do
ensino mdio, e no uma modalidade educacional. A concepo
de modalidade educacional assumida para a EPT em geral, que
passa a compor o Captulo III.
O artigo 39 dispe que a EPT ser desenvolvida para o
cumprimento dos objetivos da educao nacional, quais sejam:
o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exer-
ccio da cidadania e sua qualificao para o trabalho (art. 2o).
Para isso, ela ocorre tanto na educao bsica como na educao
superior, podendo estar unida a outras modalidades educacio-
nais a educao de jovens e adultos (EJA), a educao especial
e a educao a distncia (EaD).
O 1o do artigo 39 traz a possibilidade de a EPT organizar-
-se a partir da metodologia dos eixos tecnolgicos, permitindo a
construo de diferentes itinerrios formativos. A possibili-
dade, e no a exclusividade, permite que os sistemas de ensino
adotem outras formas de organizao. Porm, a atual regula-
o da EPT, pelos Catlogos Nacionais dos Cursos Tcnicos13 e
13 Institudos pela Portaria Ministerial 870/08, aprovados pela Resoluo CNE/CEB 3/08, com base no Parecer CNE/CEB 11/08.
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dos Cursos Superiores de Tecnologia e pelo Sistema Nacional de
Informaes da Educao Profissional e Tecnolgica (Sistec)14,
adota essa lgica de classificao, o que restringe a liberdade
dos sistemas.
Os eixos15 consideram para a organizao dos cursos as
matrizes de tecnologias simblicas, fsicas e organizacionais as-
sociadas ao desenvolvimento de determinado produto, bem,
processo ou servio. O que implica o resgate do histrico e
da lgica do desenvolvimento dos conhecimentos cientfico-
-tecnolgicos imbricados nesses conjuntos de tecnologias. Esse
mapeamento possibilita a identificao de diferentes formaes
profissionais que se encontram associadas dentro de um eixo
tecnolgico ou mesmo entre eixos, isto , permite a estruturao
de itinerrios formativos.
O itinerrio formativo aqui compreendido como a defini-
o do roteiro de estudos em um plano de formao continuada,
ou seja, a descrio de percursos formativos que o estudante po-
der cursar no interior de processos regulares de ensino, possi-
bilitando sua qualificao para fins de exerccio profissional e/ou
prosseguimento de estudos. Os itinerrios devem ser organiza-
dos de forma intencional e sistemtica, estruturando ofertas edu-
cacionais que possibilitem ao estudante uma trajetria de forma-
o coesa e contnua.
O 2o do artigo 39 estabelece os tipos de cursos possveis
na EPT:
formao inicial e continuada ou qualificao profissional; educao profissional tcnica de nvel mdio;
14 Todas as unidades de ensino credenciadas que ofertam cursos tcnicos de nvel mdio, independentemente da categoria administrativa (pblica e privada, incluindo aquelas referidas no artigo 240 da Constituio Federal de 1988), do sistema de ensino (federal, estadual e municipal) e nvel de autonomia, devem se cadastrar no Sistec.15 Parecer CNE/CES 277/06.
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educao profissional tecnolgica de graduao e ps-gra-duao.
A leitura dos artigos 36-A ao 42 explicita a no vinculao
dos cursos de formao inicial e continuada a qualquer dos
dois nveis de ensino, o pertencimento dos cursos de educao
profissional tcnica de nvel mdio ltima etapa da educa-
o bsica e os cursos da graduao e ps-graduao tecnol-
gica educao superior.
Porm, o disposto no artigo 40 traz alguns questionamentos
a partir da afirmao de que ser desenvolvida em articulao
com o ensino regular ou por diferentes estratgias de educao
continuada. A expresso em articulao com remete ao enten-
dimento de que a oferta de EPT no faz parte do ensino regular.
Parece-nos que o texto ficaria mais coerente com o disposto no
caput do artigo anterior se o legislador tivesse optado pela retirada
da palavra articulao, que traz a ideia tanto da possibilidade
de seu desenvolvimento no ensino regular quanto fora dele.
A interpretao desse artigo dificultada ainda pela deter-
minao do local de desenvolvimento dos cursos em institui-
es especializadas ou no ambiente de trabalho. Poderiam ser
consideradas especializadas as escolas de ensino mdio, de
EJA e as instituies de ensino superior em geral? Pelas ofertas
existentes e pela forma como os sistemas e redes que atuam na
EPT se estruturam, de suspeitar que esse dispositivo foi pensa-
do em funo dos cursos de formao inicial e continuada e no
deveria ter abarcado os demais. Embora a formao em ambiente
de trabalho seja recurso utilizado no estgio, na aprendizagem
profissional e em outras atividades prticas supervisionadas dos
cursos tcnicos e da educao superior, no este o local exclu-
sivo de seu desenvolvimento.
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Os artigos 41 e 42 no trazem novidade ao texto legal, mas
cabe ressaltar que o disposto no artigo 41 vale para todos os
cursos da EPT elencados no 2o do artigo 39. Isso implica a
possibilidade de avaliao, reconhecimento e certificao de co-
nhecimento adquirido no trabalho para a concluso de estudos,
inclusive em nvel superior.
O respeito diversidade
As atuais polticas educacionais pautam-se na considerao
e valorizao da diversidade e na compreenso do papel da
educao tanto na construo da autonomia dos indivduos e
do povo brasileiro quanto na sua incluso em condies sociais
e econmicas mais elevadas. Busca-se a viabilizao de projetos
adequados diversidade dos sujeitos da educao, com respeito
a suas culturas, modos de vida e suas especificidades em ter-
mos de aprendizagem, com base nas concepes de educao
inclusiva e equidade. Esse olhar em conjunto com a orientao
da EPT para um projeto de formao humana integral, assumida
no Decreto 5.154/04, permite a aproximao desse campo edu-
cacional com outros que se ocupam de questes especficas dos
sujeitos e dos lugares de construo de sua existncia.
Aproximaes com as polticas de direitos humanos para
crianas e adolescentes16, dos direitos das pessoas com ne-
cessidades educacionais especiais17, de gnero18 e diversidade
16 Com base no Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), busca-se o combate violncia contra esses grupos, garantindo-lhes proteo integral quando em situao de risco, como a violncia sexual, a explorao do trabalho infantil, a violncia domstica e a escravido.17 O artigo 206 da Constituio Federal determina que os sistemas pblicos de ensino devem estar abertos e adequados para receber pessoas com necessidades educacionais especiais, afastadas as discriminaes e os preconceitos de qualquer espcie.18 No caso das aproximaes com as polticas de gnero dirigidas s mulheres, ressalta-se a trajetria de excluso das mulheres ao acesso a formaes profissionais tcnicas, em especial quelas consideradas pesadas, como a mecnica e a minerao. Embora mais mulheres venham acessando cursos e profisses tcnicas, verificam-se dificuldades de contratao e diferenas de salrios, dadas pelo preconceito condio feminina. Em outro caminho, almeja-se a conquista da igualdade entre sexos, a promoo da equidade, o combate violncia contra a mulher e o acesso educao.
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sexual19 e das relaes tnico-raciais20 so alguns exemplos de
territrios educacionais a serem apropriados em uma educao
orientada para o reconhecimento do outro e para a diminuio
das distncias entre as categorias sociais, no combate discrimi-
nao e segregao.
Na trajetria recente, principalmente por meio das lutas tra-
vadas pelos movimentos sociais, questes referentes EJA,
educao do campo e educao escolar indgena tm avana-
do de forma significativa nas esferas epistemolgica e poltica,
em caminhos nos quais h tensionamentos e disputas decorren-
tes de diferentes projetos societrios.
Ao pautar a necessidade de aproximar a educao profissio-
nal das especificidades de formao dos sujeitos das diferentes
modalidades da educao bsica, esse texto tem o mrito de
propor o dilogo que tem sido postergado entre as modalida-
19 No caso das polticas de respeito diversidade no campo do combate homofobia, entende--se que suas aes trabalham com as noes de corpo, gnero e sexualidade que, por serem socialmente construdas, uma vez incorporadas, repercutem na formao identitria de cada indivduo. O reconhecimento, o respeito, o acolhimento, o dilogo e o convvio com a diversidade de orientaes sexuais fazem parte da construo do conhecimento e das relaes sociais de responsabilidade da escola como espao formativo de identidades. A convivncia democrtica pressupe a construo de espaos de tolerncia, nos quais a alteridade deve surgir em uma perspectiva emancipadora. A valorizao da equidade de gnero e a promoo de uma cultura de respeito e de reconhecimento da diversidade sexual so questes que ainda trazem tenses e conflitos no campo educacional. Devido viso do espao escolar como normatizador, disciplinador e de ajustamento heteronormativo de corpos, mentes, identidades e sexualidades, essas tenses permanecem presentes. Questes ligadas ao corpo, preveno de doenas sexualmente transmissveis, aids, gravidez na infncia e na adolescncia, orientao sexual e identidade de gnero so temas que fazem parte dessa poltica.20 H duas vertentes distintas nessa poltica: populao negra e comunidades indgenas. No primeiro caso, a nfase est centrada nas aes afirmativas mediante o estabelecimento de cotas para estudantes negros. Essas polticas discutem as orientaes para o combate ao racismo, instituem a obrigatoriedade do ensino da Histria da frica e dos africanos no currculo escolar e buscam orientar aes para a Educao das Relaes tnico-Raciais. As DCN para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana orientam a complementao e a valorizao das aes afirmativas, com vistas a incluir a populao negra em setores nos quais ainda no comparece de forma adequada.No caso das polticas para comunidades indgenas, o Ministrio da Educao desenvolve aes especficas voltadas para a Educao Escolar Indgena. O reconhecimento e a valorizao da cultura quilombola fazem parte das polticas tnico-raciais destinadas incluso de comunidades formadas por ex-escravos. As aes de incluso educacional destinadas a essas comunidades revestem-se de um tratamento diferenciado por se tratar de uma poltica de preservao cultural semelhante s polticas destinadas s comunidades indgenas.
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des educacionais e a EPT, bem como entre as diferentes mo-
dalidades. Sinaliza, desse modo, para os desafios polticos, mas
tambm para as possibilidades da formao integral dos sujeitos
e de produo de conhecimento entre os diferentes campos.
Destaca ainda o movimento necessrio de interlocuo intermi-
nisterial e entre as diferentes secretarias do MEC, no sentido de
formulao conjunta de aes de induo de polticas de inclu-
so, no mbito da EPT.
A educao de jovens e adultos (EJA)
A dcada de 1990 foi marcada por tenses entre o governo
e os movimentos sociais. As polticas educacionais e de traba-
lho e emprego impulsionaram a proliferao de cursos voltados
ao atendimento de demandas de qualificao e requalificao
profissional de jovens e adultos trabalhadores, de baixa esco-
laridade, por meio de uma rede especfica de cursos de curta
durao, completamente dissociados da educao bsica e de
um plano de formao continuada. Isso resultou em notveis
perdas para os trabalhadores e num acentuado processo de
excluso social.
Por outro lado, expressou tambm movimentos de resistn-
cia de setores mais crticos, que, ao contrrio do que a poltica
propunha, impulsionaram o debate e reivindicaes da educa-
o bsica como elemento essencial da qualificao profissional
dos trabalhadores. O desenvolvimento de experincias concretas
de qualificao com elevao de escolaridade conduziu aproxi-
mao com a EJA, apontando para a necessidade de implemen-
tar uma poltica pblica de formao profissional integrada ao
sistema pblico de emprego e educao bsica.
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possvel verificar que a proposta de educao integral no
seio do movimento sindical, por exemplo, conformou um campo
de resistncia ao paradigma oficial e, ao mesmo tempo, constituiu-
-se numa referncia poltico-pedaggica importante. Historica-
mente, o universo jovem e adulto, em suas mltiplas dimenses,
faz parte do campo de ao poltica dos movimentos sociais por
estarem inseridos na realidade concreta do cotidiano desse pbli-
co, com maior sensibilidade para lidar com as suas especificida-
des. Enfatizar a importncia das prticas pedaggicas gestadas no
mbito dos movimentos sociais em uma poltica pblica de edu-
cao profissional, na perspectiva da educao integral, justifica-se
pela dimenso da dialogicidade como caracterstica basilar da pr-
tica pedaggica, o que denota um grande desafio para as escolas
regulares, sejam elas pblicas ou privadas.
Conforme anteriormente abordado, a revogao do Decreto
2.208/97 recoloca a possibilidade da oferta de cursos da edu-
cao profissional de forma integrada com a educao bsica.
Abrindo caminhos para o atendimento de jovens e adultos, com
trajetrias educacionais interrompidas, em ofertas educacionais
que incorporem suas especificidades no que concerne aos co-
nhecimentos, tempos e metodologias de ensino-aprendizagem
adequados s diferentes condies de vida, saberes e graus de
letramento dessa populao.
Nesse contexto, a aproximao entre a EJA e a educao
profissional, em nvel mdio, materializa-se pela Portaria Minis-
terial 2.080, de 13 de julho de 2005, que destina aos Centros
Federais de Educao Tecnolgica, s Escolas Tcnicas Federais,
s Escolas Agrotcnicas Federais, s Escolas Tcnicas vinculadas
s Universidades Federais a incumbncia de oferta de cursos de
educao profissional de forma integrada aos cursos de ensino
mdio na modalidade de EJA (BRASIL, 2007b).
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Segue-se a essa Portaria a promulgao do Decreto 5.478,
de 24 de junho de 2005, que cria um programa federal que dis-
pe sobre a oferta integrada de cursos da educao profissional
com a EJA, o Proeja.
Aps ampla discusso, o programa revisto, resultando na
revogao do anterior pela promulgao do Decreto 5.840, de
13 de julho de 2006, tendo como principais modificaes: ado-
o dos cursos em sistemas estaduais, municipais e entidades
nacionais de servio social [...] possibilitando tambm a articu-
lao dos cursos de formao inicial e continuada de trabalha-
dores com ensino fundamental na modalidade de EJA (BRASIL,
2007b). Alm dessas alteraes, determina a carga horria mni-
ma para os cursos previstos. No artigo 2o, obriga as instituies
federais de educao tecnolgica a implantar cursos e programas
regulares e, no 4o do artigo 1o, determina que a oferta dos cur-
sos deve partir da construo prvia de um projeto pedaggico
integrado nico.
Pode-se afirmar que tais determinaes asseguram avanos
e desafios no processo de institucionalizao da EJA ligada
formao para o trabalho, no mbito da Rede Federal de educa-
o profissional, porque se trata de instituies com tradio na
qualificao dos trabalhadores, mas com quase nenhuma expe-
rincia na modalidade EJA.
A trajetria do Proeja explicita o grau de complexidade de
implementao de uma proposta de formao integrada para
jovens e adultos, sobretudo, por se tratar de processos formati-
vos diretamente relacionados a sujeitos que esto margem da
sociedade, em uma conjuntura histrica assentada no modelo de
desenvolvimento econmico dependente.
Outro desafio que se coloca para as instituies de ensino
a organizao de um currculo que integre os conhecimentos ge-
rais com os especficos para uma formao tcnica, um currculo
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contextualizado e significativo a partir das realidades de trabalho
e vida desses jovens e adultos.
A proposta pedaggica do Proeja alia os direitos fundamen-
tais de jovens e adultos educao e ao trabalho e deve, por-
tanto, ser assumida pelo Estado como poltica pblica, garan-
tindo a continuidade das suas aes e do seu financiamento.
tambm fundamentada no conceito de educao continuada, na
valorizao dos conhecimentos, saberes e culturas das camadas
populares e na formao de qualidade, pressuposta nos marcos
da educao integral. Nesse aspecto, tenta-se superar a viso
compensatria e aligeirada que marcou durante muitos anos o
campo da EJA, em especial pelas experincias que se consolida-
ram nessa modalidade com o Ensino Supletivo.
A persistncia de aes descontnuas e tnues destinadas
aos jovens e adultos ou, mais recentemente, alvo das polticas fo-
calizadas, inviabiliza a efetivao do direito educao classe
trabalhadora. Assim, o Proeja pode ser analisado, nesse contexto,
como uma poltica de incluso social criada sob a lgica de que
os servios educativos devem servir aos pobres.
Entretanto, preciso considerar ainda que a universalizao
da escola bsica e a garantia dos direitos constitucionais no do
conta da totalidade dos problemas produzidos por uma educa-
o oriunda de um modelo societrio pautado na condio de
dependncia, periferia e subordinao. necessrio que se apro-
funde mais, pois as prticas pedaggicas permanecem reprodu-
zindo modelos culturais de estratos sociais diversos daqueles dos
educandos, acarretando o fracasso escolar e a chamada evaso
(BRASIL, 2007b, p. 18) e mantendo uma organizao escolar que
tambm no considera as caractersticas desses sujeitos. Os regi-
mentos, a organizao dos tempos e dos espaos e as condies
de permanncia ainda se espelham nas lgicas dos chamados
alunos regulares.
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Cabe considerar que a efetivao da EJA integrada com a
educao profissional como poltica pblica importa em fazer que
as escolas se tornem lugares mais favorveis para o trabalho e a
aprendizagem dos professores. Esse processo implica desburocra-
tizar as escolas e dar mais autonomia aos professores na gesto
da instituio e na formulao dos projetos pedaggicos. Faz-se
mister a organizao de um projeto pedaggico que inclua a di-
versidade dos sujeitos, a partir de um eixo formativo centrado no
trabalho como princpio educativo, para um mundo em constante
transformao sob o poder emancipatrio do ser humano.
A educao escolar indgena21
A educao profissional indgena envolve diversos fatores:
os princpios e direitos da educao escolar indgena, traduzi-dos no respeito sociodiversidade;
a interculturalidade; o direito de uso de suas lnguas maternas e de processos
prprios de aprendizagem, com a articulao entre os saberes
indgenas e os conhecimentos tcnico-cientficos; e
os princpios da formao integral da EPT, visando a atuao cidad no mundo do trabalho, a sustentabilidade socioam-
biental e o respeito diversidade dos sujeitos.
da confluncia desses fatores que surge a possibilidade de
uma educao profissional indgena que possa contribuir para a re-
flexo e construo de alternativas de gerenciamento autnomo de
seus territrios, de sustentao econmica, de segurana alimentar,
de sade, de atendimento s necessidades cotidianas, entre outros.
21 Esta seo foi retirada do documento referencial para oferta de EPT integrada com a educao escolar indgena, publicado em setembro de 2007, como parte da coleo de Documentos Base do Proeja. Para sua elaborao, coordenada pela Secad e pela Setec, foi constitudo um amplo grupo de trabalho com representantes de organizaes indgenas e de organismos governamentais e no governamentais vinculados temtica, alm de antroplogos, linguistas e outros pesquisadores.
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Tal oferta s possvel a partir do conhecimento das formas
de organizao das sociedades indgenas e da compreenso de
sua diferena com relao ao padro ocidental de organizao
social, poltica e econmica.
As categorias profissional e educao profissional, por
exemplo, enquanto ligadas ideia de emprego, de meio de sub-
sistncia, ou meio de vida do indivduo, so inexistentes nos uni-
versos indgenas tradicionais e mesmo em seus projetos para o
atendimento das suas necessidades dentro das terras indgenas,
com base em demandas coletivas.
A atual demanda indgena por formao no mbito pro-
fissional possui outra amplitude. Busca-se uma formao que
possa, na relao entre conhecimentos e prticas indgenas e
conhecimentos tcnico-cientficos, conferir autonomia em reas
cruciais para sua sobrevivncia.
Outro ponto essencial a superao da lgica evolucionista
ocidental e dos interesses da sociedade de mercado sobre eles.
A viso evolucionista sobre os povos nativos, ainda resistente
na mentalidade nacional, supe que as sociedades seguem uma
linha de desenvolvimento de um estado primitivo at um esta-
do de civilizao, o primeiro imaginado como mais prximo da
natureza.
Cunhada no sculo XIX, essa concepo est na base da po-
ltica integracionista do Estado brasileiro, que definiu, na dcada
de 1970, no Estatuto do ndio (Lei 6.001/73), as fases em que
supostamente se encontravam os povos originrios e o ponto de
sua integrao, marcado pela mudana na evoluo da condio
de ndio para a de civilizado. Essa viso tambm est presente
na noo muito comum de que o ndio s verdadeiro quando
se encontra em situao isolada, com uma cultura essencial, em
estado puro, como se sua cultura fosse imune histria.
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A ideia do sentido nico de evoluo das sociedades huma-
nas, cujo ponto final seria a sociedade branca moderna, claramen-
te etnocntrica. Ela elide qualquer possibilidade de reconhecimento
do valor e do ponto de vista das outras culturas no mundo e foi
usada de forma oportunista para suprimir os direitos indgenas.
A escola para os povos indgenas surgiu por iniciativa dos
missionrios jesutas, na segunda metade do sculo XVI, centra-
da na catequese e destinada a desarticular as formas organizati-
vas e os fundamentos culturais daqueles povos. A desconsidera-
o dos processos de aprendizagem e das concepes pedag-
gicas indgenas prosseguiu nas escolas para ndios, a cargo de
misses religiosas e do rgo oficial de assistncia aos ndios,
durante o perodo republicano e, infelizmente, ainda persiste
no relacionamento entre povos indgenas e sociedade nacional.
A desqualificao do discurso indgena, que perdurou por mais
de cinco sculos, s comeou a ser reformulada recentemente,
tendo como marco a Constituio Federal de 1988.
Trs importantes aspectos esto na base das inovaes: a
garantia e proteo dos territrios indgenas, afirmando direitos
originrios de suas populaes; o reconhecimento, respeito e
manuteno da diversidade sociocultural, atribuindo-se ao Es-
tado o dever de proteo das manifestaes culturais de socie-
dades minoritrias; e a autonomia dos grupos e organizaes
indgenas para ingressarem em juzo na defesa de seus direitos e
interesses (CF artigos 231 e 232). O reconhecimento das diferen-
as indgenas no contexto da sociedade nacional supe o direito
dos povos nativos de projetar-se e se reger por si mesmos.
Os princpios, conceituaes e normatizaes das diretrizes
curriculares nacionais da educao escolar indgena, expressos
no Parecer CNE/CEB 14/99 e na Resoluo CNE/CEB 3/99, de-
vem ser igualmente respeitados em sua integrao com a educa-
o profissional.
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Ressaltam-se:
A participao das comunidades na definio do modelo de organizao e gesto da escola indgena, bem como a consi-
derao de suas estruturas sociais, suas prticas socioculturais
e religiosas, suas formas de produo de conhecimento, pro-
cessos prprios e mtodos de ensino-aprendizagem, suas ati-
vidades econmicas; a necessidade de edificao de escolas
que atendam aos interesses das comunidades indgenas e o
uso de materiais didtico-pedaggicos produzidos de acordo
com o contexto sociocultural de cada povo indgena.
Os projetos poltico-pedaggicos tero por base as DCN re-ferentes a cada etapa da educao bsica, as caractersticas
prprias das escolas indgenas, em respeito especificidade
tnico-cultural de cada povo ou comunidade, s realidades
sociolingusticas, aos contedos curriculares especificamente
indgenas, aos modos prprios de constituio do saber e da
cultura indgena e participao da respectiva comunidade.
A formao especfica dos professores indgenas, em servio e, quando for o caso, concomitante a sua escolarizao.
A participao de representantes dos professores e lideranas indgenas, de organizaes indgenas e de apoio aos ndios,
universidades e rgos governamentais nas aes de planeja-
mento a cargo dos gestores dos sistemas de ensino.
Uma educao para o trabalho s se faz acorde s necessi-
dades da educao escolar indgena na perspectiva da formao
integral, na considerao diversidade e incluso social, abar-
cando questes atinentes produo e s caractersticas do am-
biente e da comunidade. De nada serve a lgica dos interesses
da sociedade de mercado. O capital econmico define e decide
a vida dos pases inseridos num mercado mundial, obrigando a
formao e capacitao de profissionais com habilidades e
competncias para lidar com tecnologias avanadas e sofistica-
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das, que atendam queles que tm capacidade de consumo (PA-
REDES, 1997). Desse campo, os pobres e as populaes tnicas
esto completamente excludos.
S o cuidado em se aprofundar nos universos socioculturais
indgenas, no inteligveis na superfcie para os no ndios, pode
levar traduo mais fiel e mais dialgica de suas demandas e
potencialidades, de forma a evitar o perigo da banalizao da
diferena em frmulas fceis de promoo e pseudovalorizao
das culturas indgenas, quando no a sua total desconsiderao.
A educao profissional integrada educao bsica ind-
gena deve ser encarada principalmente como uma oportunidade
para a reflexo e a ao para a autonomia dos povos originrios
em setores essenciais sua subsistncia e para a sua continuida-
de enquanto povo. No se trata meramente, pois, de dar acesso
s populaes nativas modalidade de educao profissional.
necessrio que o projeto de educao e formao profissional
tambm se reinvente nesse processo, que esteja aberto para re-
ver os seus mtodos e princpios e realmente abrace a sua cons-
truo dialgica e interessada no outro.
Em coerncia com tais concepes, o Decreto 6.861, de
27 de maio de 2009, estabelece que a educao escolar ind-
gena seja organizada e gerida observando-se a territorialidade
dos povos indgenas, constituindo territrios etnoeducacionais
que independem da diviso poltico-administrativa do pas. Sua
implantao pautada pelas demandas dos povos indgenas tra-
duzidas em um plano de ao. Esse plano deve ser elaborado,
acompanhado e periodicamente revisto por uma comisso for-
mada com representantes dos povos indgenas, entidades ind-
genas e indigenistas, rgos governamentais vinculados tem-
tica, gestores de educao estaduais e municipais, instituies de
educao superior e de EPT, entre outros.Entre essas demandas encontra-se o ensino mdio integra-
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do formao profissional dos alunos indgenas, cujas propos-tas pedaggicas devero articular as atividades escolares com os projetos de sustentabilidade formulados pelas comunidades indgenas e considerar as especificidades regionais e locais (De-
creto 6.861/09, art. 11).
A educao do campo22 e o ensino agrcola
A educao ofertada populao rural no Brasil tem sido objeto de estudos e de reivindicaes de organizaes sociais h muito tempo. O artigo 28 da Lei 9.394/96 estabelece o direito da gente do campo a um sistema de ensino adequado a sua di-versidade sociocultural. , pois, a partir dos parmetros poltico- -pedaggicos da educao do campo que se busca refletir sobre a educao profissional.
A formulao de propostas de educao profissional de nvel tcnico para as populaes do campo implica necessariamente a anlise de suas realidades. Esse contexto compreende diferentes lgicas de produo agrcola polarizadas entre uma agricultura vol-tada para a produo de alimentos identificada como agricultura camponesa e uma voltada para o negcio, sobretudo para a pro-duo de commodities o agronegcio ou agricultura industrial. Na primeira lgica h uma conexo direta entre produo e consumo, ou seja, a produo de alimentos e as necessidades alimentares das populaes; na segunda, uma progressiva desconexo entre produo e consumo, ou seja, a lgica se inverte: produz-se para o mercado que ento precisa induzir o consumo. Esse mercado
tambm o de mquinas, fertilizantes, agrotxicos, sementes.
22 Este item foi retirado do artigo de Roseli Salete Caldart, Educao Profissional na Perspectiva da Educao do Campo, produzido para exposio no Frum Mundial de Educao Profissional e Tecnolgica, debate temtico 12, ocorrido em Braslia/DF de 23 a 27 de novembro de 2009. As consideraes sobre o ensino agrcola foram baseadas no documento (Re)Significao do Ensino Agrcola da Rede Federal de Educao Profissional e Tecnolgica, produzido durante os anos de 2008/2009 pelo GT do Ensino Agrcola, por meio da realizao de seminrios regionais e do seminrio nacional com representantes de unidades federais de ensino agrcola, alm de convidados envolvidos com a temtica em questo.
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H uma forte dominao econmica e uma hegemonia cul-
tural do agronegcio sobre a agricultura camponesa, relacionada
ainda por muitos ao atraso ou considerada em vias de extino
ou de subordinao. Porm, a insustentabilidade do modelo in-
dustrial evidenciada nas crises de produo e distribuio de
alimentos e de preservao ambiental abre perspectivas para um
projeto alternativo de desenvolvimento do campo.
Tal projeto no tem ainda uma formulao precisa, acabada,
exatamente porque est sendo construdo nos embates. Alguns
aspectos mais consensuais que tm sido destacados envolvem:
a soberania alimentar como princpio organizador da agri-cultura;
a democratizao da propriedade e do uso da terra; uma nova matriz produtiva e tecnolgica, com base na agroe-
cologia; e
uma nova lgica organizativa da produo, tendo por funda-mento a cooperao.
A educao profissional do campo implica preparar edu-
candos para a anlise dessa realidade e das contradies reais
envolvidas. O que traz a necessidade de uma rediscusso das
finalidades educativas ou dos objetos da educao profissio-
nal. Duas vertentes predominam: o preparo de trabalhadores
assalariados das empresas agroexportadoras e a formao de
extensionistas vinculados a rgos pblicos ou mesmo a em-
presas para o trabalho de assistncia tcnica aos agricultores.
De modo geral, os cursos da educao profissional no so
destinados ou pedagogicamente organizados para formar agri-
cultores.
importante notar que as instituies federais de ensino
agrcola surgiram para atender s demandas de implementao
da chamada revoluo verde e, apesar de todo o debate de-
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senvolvido, ainda no existe no pas uma poltica de educao
profissional para a agricultura camponesa. Educao profissio-
nal do campo no a mesma coisa que escola agrcola. Ela
inclui a preparao para diferentes profisses que so necess-
rias ao desenvolvimento do territrio, cuja base de crescimento
econmico est na agricultura agroindstria, gesto, educa-
o, sade, comunicao, entre outras , mas sem desconside-
rar que a produo agrcola a base da reproduo da vida e,
por isso, deve ter centralidade na formao para o trabalho do
campo.
Toma-se como objeto de estudo e de prticas a constru-
o de uma nova matriz cientfico-tecnolgica para o trabalho
no campo produzida desde a lgica da agricultura campone-
sa sustentvel, situando essa matriz no contexto mais amplo de
transformaes das relaes sociais e do sistema hegemnico
de produo. A centralidade est no trabalho, na apropriao
dos meios de produo pelos prprios trabalhadores e na terra
como meio de produzir vida e identidade.
Nesse sentido, faz-se necessria