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Planejamento, gestão e avaliação em saúde:identificando problemas

Health planning, management and evaluation:identifying problems

1 Departamento deMedicina Preventiva,Centro de Saúde EscolaSamuel B. Pessoa,Faculdade de Medicina da USP,Av. Dr. Arnaldo 455,2° andar, 01246-903,São Paulo, SP, [email protected] Departamento deOrientação Profissional e Centro de Saúde EscolaSamuel B. Pessoa, Escola de Enfermagem da USP

Lilia Blima Schraiber 1

Marina Peduzzi 2

Arnaldo Sala 1

Maria Ines B. Nemes 1

Elen Rose L. Castanhera 1

Rubens Kon 1

Abstract This paper presents some relevant is-sues for the health services from the planningand management perspective while dealingwith those work processes which produce healthcare and assistance. It contributes thereforewith the study of the interfaces between man-agement, planning and the labour process inhealth. Management is considered as a labourprocess itself, organising and executing healthcare submitted to a previous productive ratio-nality. On the other hand, some majors prob-lems of the health care and assistance are con-sidered as potential issues to be included inmanagement: the integration of health prac-tices, dealing with the interdisciplinary natureof techniques and the multiprofissional healthteam, and the health care quality, from a tech-nical scientific efficacy and communicative per-spective. Labour is thus conceived as both pro-ductive action and interaction. That meansconsidering the connections between the differ-ent professional works producing health careand assistance as well as considering those sub-jective interactions producing shared decisionsand communicationKey words Management and Work in Health;Work and Interaction in Health; Planning inHealth; Labour Process

Resumo Este texto apresenta um conjunto deproblemáticas para o planejamento e a gestãodos serviços de saúde, a partir dos processos detrabalho produtores diretos da assistência e doscuidados em saúde. Busca, pois, contribuir comquestões relevantes ao estudo das interfaces en-tre a gestão e o trabalho em saúde. Aborda opróprio planejamento e a gestão como produçãode um trabalho: o de organização e realizaçãode outros trabalhos, com vistas à racionalidadeprodutiva dos serviços em seus diversos fins. Deoutro lado, pontua questões desses outros traba-lhos enquanto problemas que podem vir a sertomados pelo trabalho gestor: a integralidadedas ações com interdisciplinaridade das técnicase interação entre multi-profissionais no traba-lho em equipe, ou a garantia de qualidade reso-lutiva da assistência, tanto como eficácia técni-co-científica quanto como adesão e intercomu-nicação na relação direta entre os diversos pro-fissionais e destes com os usuários dos serviços.Para tanto concebe-se trabalho como processoprodutivo e como interação, levando-se em con-ta as articulações entre as ações em saúde, peloque representam de ações estratégicas para aprodução de cuidados e assistência, bem comoas relações intersubjetivas, pelo que representamde ações comunicativas e partilhas de decisões.Palavras-chave Gestão e Trabalho em Saúde;Trabalho e Interação em Saúde; Planejamentoem Saúde; Processo de Trabalho

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Introdução

Este texto busca trazer à discussão questõesrelacionadas ao planejamento e gestão, comouma das áreas da saúde coletiva brasileira. Asquestões apontadas são alguns dos problemasenfrentados no cotidiano dos serviços. Signi-ficam para os gestores desafios práticos e pos-síveis dilemas técnicos, éticos ou políticos, emseus enfrentamentos. Em razão disto, enten-demos que serão também problemáticas parao conhecimento, constituindo objetos de in-vestigação, a fim de se explicar suas origens econstituições, como forma de apoiar as resolu-ções concretas e particulares que o cotidianodos serviços demanda.

Esta área “planejamento e gestão” pode servista como um conjunto bastante amplo deproduções técnico-científicas que, de modomais tradicional, pertenceu a uma das divisõesda saúde coletiva já denominada “Planejamen-to e Administração em Saúde”. Ao longo dosúltimos 30 anos que consolidaram no Brasil asaúde coletiva como campo de produção desaber e prática1 o planejamento e administra-ção em saúde serviu de eixo aglutinador paraobjetos de investigação e propostas de inter-venção social tão diversas quanto, por exem-plo, a gerência de unidades ambulatoriais ouhospitalares, os recursos humanos, os progra-mas assistenciais, a avaliação das atividades eações dos serviços, financiamento das ações,orçamentos dos setores de produção e dos ser-viços, entre outros. Tais recortes também re-sultaram em tão variadas aproximações da rea-lidade dos serviços e das ações em saúde, quepara compreender essa área de estudos e in-tervenção e seu desenvolvimento, a rigor, se-ria necessário uma pesquisa histórico-episte-mológica específica2. Um estudo dessa natu-reza permitiria redispor, da perspectiva clas-sificatória, a produção que hoje encontramos,distinguindo a que pende mais ao polo teóri-co-conceitual daquela que se apresenta coma qualidade de projeto de intervenção, ou aque delimita objetos referidos ao planejamen-to daquela que pende mais à administração,identificando com precisão os conceitos e osreferenciais teóricos utilizados em cada qual.Isto, sem falarmos da óbvia busca contempo-rânea de superar esses limites clássicos sob astemáticas da gestão e da avaliação, apontan-do-se, inclusive, para a superação da dicoto-mia, também clássica, entre a pesquisa e a in-tervenção3.

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Não contando, porém, com tal produção,neste texto, para identificarmos alguns proble-mas e problemáticas que consideramos impor-tantes, vamos recorrer a uma compreensão desua história cunhada pela nossa própria expe-riência de participantes: na qualidade de su-jeitos também construtores das mudanças edesenvolvimento do planejamento e adminis-tração em saúde. Com isso certamente incorre-remos no viés do espaço-tempo em que se deunossa própria prática, de pesquisadores na áreae de profissionais do planejamento e gestão.Por isso o que oferecemos à discussão deve sernecessariamente enriquecido com os demaispontos-de-vista, particulares a outros tantospersonagens partícipes da saúde coletiva e queconstituem nossa comunidade de interlocuçãocientífica e profissional.

Adiante-se que nosso viés deriva do fatode que vivemos a situação de gerentes, via deregra, de nível local, isto é, de unidade especí-fica de prestação de serviços com produção as-sistencial direta, também conhecida como a“ponta do sistema de saúde”: uma unidade bá-sica do tipo Centro de Saúde. Com isto privi-legiamos tanto este nível da entrada em umsistema, quanto as interfaces entre o planeja-mento/gestão e o processo de trabalho em saú-de, em que as questões fundamentais são ques-tões assistenciais bem próprias, como as dapromoção da saúde e prevenção primária, re-lativamente a outros níveis de prevenção, e tra-tamentos de recuperação clínica básica, rela-tivamente a outros níveis de intervenção mé-dica. São elas:• integralidade das ações, para a interven-ção médico-sanitária articulada e conforman-do modelo de assistência de natureza técnicainterdisciplinar específica;• interação entre multiprofissionais no tra-balho em equipe;• qualidade resolutiva da assistência muitomais da perspectiva da produção direta dasações do que do modelo de assistência gené-rico, gerando outras questões como: eficáciatécnico-científica na resolução de casos, ade-são e intercomunicação na relação direta desujeitos (profissionais-usuários, profissionais-profissionais e profissionais-gerentes) e delimi-tação do alcance e limites dos cuidados;• revalorização desse nível de atuação pro-fissional, em geral, desqualificado como exer-cício da profissão em saúde, particularmenteno caso de médicos, em primeiro lugar, e en-fermeiros, em segundo lugar.

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Esta última questão merece uma observa-ção, pois, se as demais serão também proble-mas e problemáticas dos outros níveis de umsistema de saúde, mesmo que cabendo a cadaqual repensá-las, neste nível da unidade bási-ca e sua atenção (primária), há a necessidadede definir e requalificar a assistência e o tra-balho: o que é e quanto vale essa atenção pri-mária e a correlata tecnologia básica de inter-venção, em que a ação assistencial e ações deoutro tipo como a educativa ou da assistênciasocial, confundem-se com muita freqüência,tanto no bom sentido da interação de profis-sionais e articulação das ações, quanto no sen-tido de desqualificar, por exemplo, a educa-ção, facilmente reduzida a uma intervençãobiomédica, ou desqualificar a esta por ser“muito educativa” ou muito “assistência so-cial” e menos biomédica, permitindo a confu-são ideologicamente interessada aos modeloshegemônicos, da atenção primária como me-dicina da pobreza e da tecnologia apropriadacomo intervenção sem saber ou sem ciência4.

Este é, portanto, um recorte bem particu-lar sobre as questões e que é próximo a algunsmodelos assistenciais (Paim, 1993) ou progra-mas particulares (Mendes, 1996), como porexemplo Saúde da Família, pela preocupaçãocom esta assistência locada imediatamente noâmbito da vida privada (família) ou do coti-diano social (vida comunitária). Não recobretodas as situações nem do trabalho direto, nemda gestão em saúde. Não obstante, acredita-mos que suas problemáticas possam contri-buir para as demais situações de modo analó-gico, isto é, pela similitude de questões que te-rão que tratar os gestores locais de adminis-tração pública, mesmo quando em nível maisamplo tal como os distritos sanitários, porexemplo. Isto porque gestores de vários níveissempre se envolvem com a implementação deuma dada política assistencial, implantandouma certa organização da produção dos ser-viços em acordo com as diretrizes do SUS e,ao mesmo tempo, buscando, em especial, a in-tegralidade das ações e as interações que pro-duzem cuidados diretos à população.

Esta última pretensão – a integralidade dasações e as interações entre indivíduos e atoresresultantes – constituiu, afinal, nossa eleiçãotambém de pesquisa, investigando as possibi-lidades e os limites da integração entre a as-sistência clínica e aquela dos programas deprevenção e promoção da saúde na assistên-cia da unidade básica, o que se denominou

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“ação programática em saúde” (Schraiber,1990; Schraiber et al.,1996). Examinada daperspectiva de produção direta dos cuidados– sua organização e seu dia-a-dia no cotidianodo trabalho em saúde, mais do que pelo ângu-lo dos modelos de consumo ou de políticas deEstado – tal modo de trabalhar e assistir pro-piciou o estudo da integração entre práticasrealizadoras de trabalho em saúde: possibili-dades e limites da interação entre os profissio-nais da prática clínica, e seu agir assentado naaproximação individual dos problemas de saú-de, e aquele da prática sanitária, de aproxima-ção populacional ou seus segmentos, sendoesta interação propiciadora de questões tantoda interdisciplinaridade dos saberes especia-lizados, quanto da interatividade na relaçãoentre os usuários e o próprio serviço. Expe-riência essa que, como pesquisadores, avalia-mos, e da qual procuramos extrair o conheci-mento técnico-científico que pudesse contri-buir para o planejamento e gestão de serviçosde saúde.

Mas não é nosso intuito novamente traba-lhar a proposta da ação programática, seja co-mo organização, seja como prestação de ser-viços. Pretendemos, sim, levantar algumasquestões que essa experiência nos colocou. Es-tamos certos de que serão compartilhadas comgestores que também viveram ou vivem, na re-ferida implementação das políticas de saúde, oempreendimento de buscar no planejamentoe avaliação, e por meio dos modelos assisten-ciais que propõem, a máxima qualidade assis-tencial de seus serviços (o que certamente in-clui, além da competência técnico-científica,a viabilidade econômico-financeira da produ-ção), bem como a realização das diretrizes po-líticas de nossa reforma sanitária.

As questões que trazemos serão abordadas,como já dito, pelas interfaces entre gestão eprocessos de trabalho em saúde. Estes últimoscompreendem o trabalho diretamente produ-tor dos cuidados e das ações assistenciais. Tra-ta-se, portanto, em nosso caso, das questõesdesse trabalho direto e de seu trabalhador: omédico, o enfermeiro, o psicólogo, o assisten-te social, o auxiliar de enfermagem, etc. Vamosdestacar questões que a partir desse processode trabalho assistencial se colocariam para otrabalho do gestor. São especificidades e pro-blemas para o momento da prestação diretados serviços, e alguns podem não se configu-rar, ainda, como problemas também para oplanejamento e a gestão. Vale dizer que o ges-

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tor acatará ou não tais questões como sua pro-blemática própria. Acreditamos que o gestorassim o fará sempre que aquelas questões seapresentarem como algo a disciplinar ou atransformar, do ponto de vista da organizaçãoe funcionamento geral do conjunto dos tra-balhos produtores diretos das ações assisten-ciais.

Tal como parte da bibliografia aponta, essaúltima perspectiva implica propor projetos deintervenção na organização do coletivo de tra-balho. Não o faremos exatamente desse modoe, então, não estaremos, por ora, propondo for-mas de gestão. Mas estaremos levantando umconjunto de questões que, da nossa experiên-cia, deveriam ser tomadas como problemas pa-ra o planejamento e a gestão em saúde.

Antes, porém, registremos que, em termosgenéricos, a assistência fornecida à população,enquanto um conjunto coordenado de açõese os produtos esperados em seu todo, tem sidoobjeto da organização dos serviços, situaçãoem que os gerentes de unidades (já não somen-te básicas ou de atenção primária) estão dian-te da necessidade de articular os trabalhos pro-dutores de cuidados e os princípios técnicos(do conhecimento científico), organizativos(do Sistema de Saúde) e ético-políticos (da Po-lítica Social em Saúde) da “boa prática” emsaúde. Entenda-se esta “boa prática” como sen-do aquela que, cientificamente, é a esperada.E que será operada segundo um modo de pres-tar os serviços que cumpra tanto com as ex-pectativas de consumo das sociedades estru-turadas na forma mercado, quanto com as ex-pectativas políticas e éticas da máxima distri-buição deste benefício que constitui a assis-tência à saúde e das conquistas do direito àsaúde com base na reforma sanitária brasilei-ra. Por isso, dentre as questões de interesse pa-ra a gestão em saúde, principalmente para en-frentar os problemas dessa “ponta do sistema”que representa a assistência direta e a produ-ção dos cuidados, estarão as contempladas pe-las interfaces que elegemos: da ação técnica ouda tecnologia dos cuidados com o planejamen-to e a gestão dos serviços.

Não obstante, algumas questões que esta-remos colocando são fruto de recentes estu-dos sobre o trabalho produtor direto dos cui-dados, ampliando o leque das interfaces a se-rem consideradas pela gerência, o que julga-mos nossa particular contribuição, neste mo-mento. Isto posto, cabe-nos iniciar especifi-cando como vemos, hoje, o próprio trabalho

dessa gerência e algumas de suas questões tec-nológicas.

Planejamento e gestão: desafios atuais

Em uma preliminar colocação, bem genérica,diremos que as considerações que seguem sãofruto do movimento histórico do próprio cam-po da saúde coletiva, tal como realizado naárea particular do planejamento e administra-ção em saúde, em função da especificidadedessa área.

Consideremos a mudança do tradicionalpapel do administrador público, ao somar àfunção anterior, aquela de gerente de serviçosde saúde. Vale dizer, a de organizar e contro-lar unidades produtoras de cuidados de assis-tência médica em redes do setor público, talqual nos mostra o estudo de Castanheira(1996). Isto foi produto das políticas de saú-de brasileiras na construção do próprio SUSe do modo peculiar como a saúde foi sendotomada como questão social e questão de Es-tado. O Estado brasileiro interferiu no merca-do e nos postos de trabalho na saúde, prati-cando políticas de proteção social tais queabriu espaços profissionais em seus dispositi-vos e aparelhos prestadores de serviços, con-figurando-se não apenas como Estado regula-dor mas Estado provedor. Assim, à clássica exi-gência da figura de “representante do interes-se público”, tal como emergiu nos anos 30-40o agente do Estado e suas políticas, caracteri-zando o administrador público, somou-se afigura do profissional que, técnico em organi-zar a produção – o gerente, deve otimizar aprodutividade, manejar os problemas e os con-flitos cotidianos, para a produção de serviçosassistenciais oferecidos ao consumo individuale de mercado, envolvendo todas as questõesda eficácia/eficiência empresarial, ainda queempreendimento (“empresa”) estatal.

Do administrador em saúde pública ao ge-rente da rede de unidades e serviços do setorpúblico de produção de assistência médica emarticulação com o setor privado, este persona-gem contemporâneo – o gestor público, de-fronta-se com uma prática de grande comple-xidade, resultante dos novos desafios deste no-vo lugar. E isto será, de um lado, garantir a uni-versalidade e a eqüidade na prestação de servi-ços; possibilitar a participação popular e pro-fissional nos processos decisórios correlatos àorganização da produção e também na execu-

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ção dos cuidados em saúde; lidar com a inte-gralidade das ações, criando espaços e formasde interação no trabalho cotidiano e geren-ciando conflitos, tal como convém ao repre-sentante dessa esfera pública que se plasmounas leis e normas da reforma. Mas será, de ou-tro lado, encontrar a melhor via de obter altaresolutividade e boa qualidade técnico-cien-tífica das ações que serão produzidas. Estas úl-timas exigências são produto e produtoras,também, da competência de incorporar todo oconhecimento científico já produzido e ope-rado, hoje, nas diversas tecnologias de inter-venção em medicina e em saúde pública, po-rém, com crítico discernimento – de técnicoe de gerente – tal como necessário (e comoconvém) para fazer frente à sua específica qua-lificação profissional. Esta, além de compreen-der as decisões quanto à intervenção apropria-da nos processos saúde-doença nas duas esfe-ras que agora se entrecruzam (individual e po-pulacional), deve contemplar a administraçãoda oferta e consumo dos serviços, no forma-to demanda individualizada por cuidados eoutros serviços e que, ainda mais, se dispõecomo consumo de bens em mercado5.

Não há dúvida de que esta transformaçãodo planejamento e administração em saúdemuda e renova as problemáticas e as técnicasde organização/gestão/avaliação às quais essepersonagem precisa, doravante, recorrer.

Em segundo lugar, considerando-se a es-pecificidade dessa área do planejamento e ad-ministração em saúde, registre-se que no cam-po da saúde coletiva ela representa o locus daprodução técnico-científico de caráter maisaplicado, vale dizer, a porção da saúde coleti-va que traduzirá suas ciências e suas tecnolo-gias-base, como por exemplo a epidemiologia,ou a biomedicina ou a sociologia ou a antro-pologia ou a matemática e estatística, em co-nhecimentos que são imediatamente propos-tas de intervenção nos serviços: tecnologias deorganização e funcionamento de espaços pro-dutores da intervenção em medicina ou emsaúde pública, prestando serviços e cuidadosmédicos e sanitários. Isto representa, quandotais intervenções também alcançam os proces-sos produtores diretos dos cuidados e a inte-gração neste nível clínico de atuação, comopor exemplo a “ação programática em saúde”,interferências desde a estruturação dos servi-ços nas tecnologias e técnicas clínicas e sani-tárias, mudando os modos mais tradicionaisdo agir profissional.

Isto tudo também quer dizer que, dificil-mente, essa produção técnico-científica do pla-nejamento e gestão se caracterizará por teoriamais abstrata, bem como, dificilmente, podedeixar de tratar dos conflitos políticos e éti-cos, perpassando os conflitos técnicos: entrea gerência e os profissionais do cuidado dire-to; ou desses últimos entre si; ou, mesmo, en-tre o serviço e seus usuários.

Dentro dessa especificidade e em razãodessa história, é que veremos a área interes-sar-se por problemas que vão se deslocandodo plano macro social, tal como se caracteri-zou em sua constituição inicial, quando a pla-nificação surgiu como instrumento de atua-ção/renovação do Estado, para a microfísicadas ações assistenciais (Kon, 1997). Se o pla-no macro social pode ser representado peloEstado e suas questões de planejamento/ad-ministração – em que há que se ocupar com acorreta enunciação da boa norma geral de pro-teger/produzir saúde, no âmbito do qual oconsumo da assistência é um dos itens, o mi-cro social é o deste consumo, plano da presta-ção direta de serviços assistenciais. Este é re-presentado pelas instituições e estabelecimen-tos produtores de serviços, em que há que seocupar com a boa realização prática das nor-mas, com o que se requer do planejamentouma habilidade de tecnologia do político: odomínio da arte de flexibilizar as normas pa-ra o cotidiano particular deste ou daquele es-tabelecimento ou conjunto deles, e não maiscom o geral social, ainda que sigam sendo taisatuações, com bastante freqüência, questõesda esfera organizativa da oferta dos serviçospara consumo.

Neste movimento de redelimitações das si-tuações que passam a ser alvos de propostas eestudos da área, redefinindo, pois, objetos pre-ferenciais das pesquisas e das intervenções, po-demos observar um outro, de natureza meto-dológica: a área cada vez mais se desvia daaproximação estrutural da organização e daadministração, rumando em direção às dinâ-micas interativas dos indivíduos, com o quevem produzir abordagens mais processuais dasorganizações, dando visibilidade à gerênciacomo o lugar do desempenho em redes inte-rativas – interação do gestor com outras rela-ções interativas, em uma ação sobre a ação deoutros (de profissionais e de usuários), ressal-tando os problemas dos sujeitos e seus valo-res, das culturas e seus comportamentos prá-ticos, como parte das flexibilizações das nor-

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mas. O que produziu a interatividade e a co-municação como também problemáticas doplanejamento e das técnicas de gestão, soman-do-se às questões da organização.

Todo esse movimento dos problemas a se-rem enfrentados geraram, como parte do de-senvolvimento da área original do planeja-mento e administração em saúde, um corre-lato movimento de individualização, e tam-bém de incorporação, de noções e conceitosno ideário do planejamento e da administra-ção em saúde. Idéias que tem sido operadascomo fundamentos para o conhecimento e pa-ra a ação social. Por exemplo, às noções-base‘planejamento’, ‘administração’, vão se soman-do as de gerência, gestão, organização tecnoló-gica, modelo assistencial e avaliação em saú-de. Isto sem falar daquelas que são tributáriasde sínteses com outras áreas da saúde coleti-va, tal qual a epidemiologia ou as outras ciên-cias humanas que não a economia, base parao planejamento e a administração. Nesta últi-ma categoria comparecem, entre tantas, as no-ções de vigilância, processo de trabalho emsaúde, agir comunicativo, atores e agentes emsaúde, autonomia, empoderamento e eman-cipação de profissionais ou usuários, repre-sentações profissionais ou populares, etc.

No entanto, percebemos que essas noçõescunhadas, desmembradas de suas raízes ori-ginais, vêm sendo progressivamente utiliza-das como substitutas das anteriores, novasidéias-base para intervenções ou estudos emque vão sendo operadas com a qualidade deconceitos independentes. Com isso, um gran-de leque de questões passa a se apresentar pa-ra a área do planejamento e administração emsaúde como parte de sua substância mesma,sem que, necessariamente, possamos percebertal pertencimento, em termos do sentido his-tórico e mesmo epistemológico das modifica-ções que ocasionam.

Contudo, como dissemos, recuperar essasraízes com certa exatidão e traçar a historici-dade desses novos conceitos, é uma tarefa a sefazer. O que doravante apresentaremos sãoapenas algumas das questões que, dialogandocom os processos de trabalho no interior daprodução de serviços, estão colocadas para ogestor em saúde e que, na qualidade de possí-veis objetos de pesquisas e recortes de inter-venção, se revelam incitantes poderosos a ins-tigarem nossa atenção.

Ciência, trabalho e processo de trabalho em saúde

De modo sintético enumeremos algumas es-pecificidades da ação que chamamos trabalho,para colocarmos como questão a dimensão te-leológica dessa ação, vale dizer, o trabalho co-mo ação instrumental. Instrumental, pelo ân-gulo da consecução de produtos esperados,com base em regras técnicas delimitadas. Doponto de vista normativo e das relações so-ciais, a instrumentalidade pode adquirir umcaráter estratégico ou comunicativo, confor-me seja a ação mais autonomizada e indepen-dente das interações ou seja produto pactuadonas relações intersubjetivas. Essas últimas con-siderações fundam-se na distinção haberma-siama da ação estratégica e ação comunicativa(Habermas, 1989; 1994). Essa abordagem temsido estudada no campo do planejamento edela também iremos nos valer, aqui, para re-tomar a dupla especificidade do trabalho comoação social: o trabalho como ação produtiva,dentro da racionalidade dirigida a fins dados,isto é, a teleologia que lhe é própria, e comoação comunicativa, o trabalho como intera-ção social. Essas especificidades consubstan-ciais à ação do trabalho, são, conforme Haber-mas, analiticamente distinguíveis mas mutua-mente irredutíveis, abrindo a possibilidade deinvestigarmos dentro do agir estratégico dotrabalho o modo concreto de realização da in-teração social, questão a que voltaremos adian-te. Por ora, examinemos características do tra-balho como ação estratégica.

A primeira está no fato de que sua ação nãoé qualquer, mas intencionalmente realizada.Intenção que se pauta pela finalidade dessaação, sempre socialmente reconhecida e reite-rada em sua legitimidade. O que ocorre por-que, em segundo lugar, é uma ação que pro-duz algo para a sociedade, satisfazendo as ne-cessidades de seus indivíduos, tal como umbem ou um serviço. Por isso, em terceiro lu-gar, tem que alcançar os resultados esperadose apresenta sempre um produto a seu final. Éação cujos resultados são igualmente reconhe-cidos/autorizados na sociedade. Em quarto,vamos lembrar que, para tanto, essa ação deveajustar meios a seus fins, o que lhe confere umadeterminada racionalidade de operação. Cria,em quinto lugar, um conhecimento tanto acer-ca dos referidos meios, diante do objeto de suaintervenção e de sua finalidade, quanto um co-nhecimento acerca da operação a ser feita, is-

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to é, qual o modo de produzir adequado parao produto pretendido, modo esse que passa aestar contido em uma técnica, isto é, um sa-ber-fazer. Esta técnica poderá, mediante o en-sino, ser transmitida de um a outro agente dotrabalho, sem que se perca essa qualidade deoperação corretamente exercida, componen-te importante da técnica.

Vamos tentar melhorar essa noção de téc-nica6. Extraída da idéia grega de arte – “dispo-sição pela qual fazemos coisas com a ajuda deum regra verdadeira” (Ross, 1987: 222), a téc-nica é manipulação, intervenção manual queproduz coisas, resulta em produtos, obras ex-teriores ao fazer, com o concurso de conheci-mentos. É, assim, exercício de saber, ação ar-tificial mediante o que há intervenção especi-ficamente realizada para a obtenção do pro-duto.

Por isso trabalhos são atos técnicos; os pro-cessos de trabalho valem-se de técnicas embo-ra a técnica não recubra todas as questões en-volvidas no trabalho, assim como o trabalhonão recobre todas as atividades que são técni-cas. No ensino das técnicas adestra-se o agen-te do trabalho. Mas a transposição não é tãoimediata. Basta lembrar que no caso das téc-nicas de base científica, quando o saber-fazertem por fundamento a ciência, ensina-se, mui-tas vezes, mais sistematicamente os conheci-mentos científicos que nos informam acercado objeto sobre o qual vamos intervir, do quesobre a ação da intervenção, principalmenteno contexto da produção dos serviços ou docotidiano do trabalho, o que corresponderianão à técnica em abstrato, como teoria, senãoo saber diretamente aplicado, saber operantedo trabalho.

Mas destaquemos o fato de que o mencio-nado conjunto de especificações dos atos téc-nicos confere ao trabalho a possibilidade deser ação repetida, e por muitas mãos diferen-tes, com alguma garantia de mesmo resulta-do. Isto é, um coletivo de agentes (os profis-sionais da técnica), que são pessoas diferentese com talentos igualmente diversos, ou comsentimentos, desejos e opiniões também di-versos, e mesmo distintas formas de apreen-der o saber exigido pela ação, esse conjunto deprofissionais age com regularidade do mesmomodo e produz, até nem sempre com meiosexatamente iguais em razão dos contextos dotrabalho, produtos bastante próximos, que sa-tisfazem pessoas também diferentes, e satisfa-zem de forma bem parecida.

Essa repetitividade, a capacidade de se rei-terar e agir como intervenção que pode ser,de fato, antevista e conformar o projeto daação, dá-se pelo caráter mais rotineiro de seu“modo de fazer”, ao que poderíamos chamarde “tecnicalidade” do trabalho. Isto quer di-zer que, de certa forma, há uma possibilida-de do saber de operação reter, enquanto sa-ber, previamente à ação em curso, o virtual daação. Destaca-se assim a presença desse saber,anterior, mas não externo, ao fazer. Esta pre-sença será tão mais forte quanto mais as téc-nicas forem complexas, tal como as que en-volvem conhecimento científico. Por isso oaparecimento das técnicas complexas com amoderna tecnologia instrumental permitiuque o saber de operação crescesse em volumede conhecimentos necessários e diversifica-ção de conteúdos, de modo a poder ser, hojeem dia, até tomado e mesmo criado isoladodo momento da produção dos trabalhos eapropriado pela forma ciência de produzir co-nhecimento. Em outros termos, um conheci-mento do tipo teoria. Diremos uma teoria so-bre práticas ou modos de praticar, a que al-guns autores chamam de teoria científica dastécnicas ou tecnologia – a ciência das técni-cas (Gama, 1986; Lenk,1990); para outros,simplesmente ciência, sem diferenciar as ciên-cias tecnológicas das ciências básicas, em ra-zão da grande aproximação histórica entreciência e técnica (Granger, 1994).

Esse é o resultado de um de longo trans-curso histórico. A partir dos séculos XV e XVI,processa-se uma grande alteração das cone-xões entre ciência e técnica, envolvendo essen-cialmente a questão do valor da prática e suasoperações, bem como o valor das necessida-des materiais humanas. Alteram-se, pois, asrelações entre a filosofia e a ciência, o traba-lho manual e o intelectual, a teoria e a técni-ca. Em síntese, abandona-se a concepção deciência como verdade desinteressada da pers-pectiva das necessidades materiais – busca quenasce apenas após o atendimento das coisas ne-cessárias à vida. (Rossi, 1989:17) – em prol deuma busca que nasce para esse atendimento,cujo modo mais imediato ou não de fazê-lotambém representa distintas situações histó-ricas, como a modalidade contemporânea deconhecimentos do tipo ciência (mais tecnoló-gico) ou a vigente ao longo de todo séculoXVIII e parte do XIX. Neste mesmo movimen-to, ocorre uma grande alteração no sentido so-cial do trabalho e da técnica, que culmina, no

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século XIX, na enorme importância do traba-lho para a conformação da vida social.

É interessante notar que a rearticulaçãociência-técnica corresponde ao movimentoque redispõe socialmente os artistas, os expe-rimentadores e engenheiros, os médicos, emespecial os cirurgiões-barbeiros, os artesões eos trabalhadores manuais, camponeses e pos-teriormente fabris, estabelecendo novas confi-gurações e hierarquias entre as artes mecâni-cas e as liberais. Este movimento cinde, sepa-ra e reagrupa distintas ações, compostas ante-riormente de outro modo, mas tidas em seuconjunto como intervenção manual, por opo-sição a atividades ligadas aos saberes eruditos.Por exemplo, os artistas e arquitetos passamda condição de artesões a de burgueses e inte-lectuais; são cisões de antigas corporações enovas constituições de arranjos de interessese representação coletiva (Rossi, 1989). Ao mes-mo tempo saberes técnicos são inscritos emconhecimento erudito até que a ciência mo-derna se aproprie plenamente dos saberes deofício das técnicas e isole, por sua vez, já nomovimento dos séculos XVIII e XIX, de umlado o trabalhador manual da grande indús-tria – o sem saber – e de outro, o artista, cujosaber criativo e livre é sem importância, por-que não seria “útil”.

Assim, diferentemente de outros momen-tos históricos, em razão da existência da ciên-cia moderna e de suas relações com o conhecerhumano, nos aproximamos desta ciência já co-mo conhecimento de natureza técnica em to-das as suas atuais conotações. De tal modo es-te caráter técnico está associado à teoria daciência, que a esta tendemos a valorizar tantomais quanto mais representa uma utilidadenecessária, resposta útil às necessidades da vi-da, ou, como Ayres (1995), razão tecnológicaregendo a produção de conhecimento.

Neste processo a própria técnica revestiu-se de ciência, tendencialmente expulsando sa-beres de outro tipo como conhecimento paraintervenções (Habermas, 1990). Esta associa-ção atual da técnica com a ciência, evita valo-rizarmos saberes práticos e artes técnicas di-versos da teoria e da técnica científica moder-na. Duas operações conceituais podem ser re-gistradas nesse sentido: de um lado, a valoriza-ção do âmbito prático para o conhecimentoteórico, erudito, sem que contudo este deixede ser teoria. De outro lado, o esvaziamentoda técnica, como forma de sua “valorização”moderna, na direção de um procedimento prá-

tico, mera aplicação da ciência ou seu braçomecânico para a ação, desqualificando seu âm-bito próprio de produção de conhecimentoenquanto ação. Essas concepções nos ocultama dialética saber-ação e, principalmente, a exis-tência de múltiplos saberes, em diversas for-mas de agir técnico, na passagem da ciênciapara o trabalho.

Entre a ciência e o trabalho, apontamos oconcurso de dois saberes: o saber operante,também denominado tecnológico, que orien-ta a aplicação da ciência, da perspectiva da ra-cionalidade da ação no trabalho; e o saber prá-tico, em que, na atividade do trabalho, o pró-prio saber tecnológico se testa e se enriquece.Observemos que a correção prática pode exer-cer-se sobre a tecnologia (saber tecnológico),mas também sobre o dado científico.

Estamos chamando atenção para a re-cria-ção de todo saber no ato do trabalho (Schrai-ber, 1993; 1995;1997)7. O saber não esgotaránunca sua recriação quando em ato; não se es-gotam as mudanças que qualquer agente in-troduz em sua ação, ainda mais se considera-do o caráter reflexivo de certos trabalhos talqual o trabalho em saúde (Offe, 1989), pormais que esteja sendo mecânico o trabalho.

Por outro lado, também sabemos que hásituações técnicas em que a exatidão do sabercientífico e tecnológico não é tão completa as-sim, e sequer pode sê-lo. É o caso próprio daação em saúde e em particular, mas não só, docuidado médico. Nestes casos, o saber práti-co, da experiência, muitas vezes bastante sis-tematizada e outras estudada cientificamente(como nos ensaios clínicos, na medicina ba-seada em evidências) mostra os “ajustes” clí-nicos dos casos ou de cada caso à norma geralesperada. São ajustes que buscam minimizaro efeito das incertezas dos fenômenos vitais,que não podem ser totalmente previstos8 . Deoutro lado, também sabemos dos contextos daprodução do trabalho, em que a própria preci-são do saber tecnológico e da ciência encon-trarão limitantes de operação.

Recriar, assim, é sempre fato do âmbitoprático e o saber prático fornece esse tipo deconhecimento que, se pode até mesmo corri-gir o conhecimento teórico, vai mostrar ou-tros caminhos da ação, que o saber tecnológi-co sistematiza, garantindo a “tecnicalidade”do ato de trabalho.

Ao planejamento do trabalho e sua gestãocaberá, pois, lidar também com este compo-nente do trabalho, ao mesmo tempo que deve

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zelar pela qualidade do produto objetivo dotrabalho, lidando com a racionalidade técni-co-científica de sua operação. Articular essescomponentes do trabalho em saúde no mo-mento que é processo particular e concreto emserviços dados é um dos problemas da gestão:conhecer melhor essas relações será, sem dúvi-da, uma questão.

Trabalho, sociabilidade e interação

Se técnica e trabalho (no sentido humano-ge-nérico) são a forma propriamente humana deproduzir respostas a necessidades através deprocedimentos intencionais de alteração danatureza, também devemos lembrar que sãomodos de construção da vida social, formasde sociabilidade, surgindo o trabalho comoexpressão da própria socialidade do homem.Deste modo, as finalidades dos trabalhos sãocorrespondentes à construção ético-políticado modo social de viver.

O saber tecnológico ao projetar o modo deexecutar o trabalho, viabilizando a ação estra-tégica, realiza a intencionalidade de naturezatécnico-científica, consolidando a ação técni-ca e, por meio desta técnica, realiza, simulta-neamente, a natureza ético-política da vida so-cial9.

Mas estabelecendo-se na esfera da referi-da tecnicalidade do trabalho, esse saber ope-rante pode deixar pouco visível essa complexi-dade da dimensão intencional para a ação. Aintenção parece respeitar apenas a realizaçãodo científico, obscurecendo sua qualidade deser também a realização de projeto social: ra-zões e propósitos histórico-sociais contidosno interior do saber-fazer técnico, ou o “co-mo agir” no exercício da profissão. Será combase nisto, pois, que toda ação de trabalho,mesmo que examinada pela perspectiva de atoprodutor de produtos dados, pode e deve serreconhecida (e estudada) como intenção téc-nica, ética e política em ato.

Da perspectiva do agente do trabalho, talintenção exterioriza nesse agir (e no ato dotrabalho) a inscrição de cada profissional nanormatividade social, articulando o indivíduoàs normas da sociedade (Ayres, 1995)10.

Se não tornarmos clara mais esta relaçãoem nosso entendimento de toda a questão dotrabalho, retiramos do agir seu complexo deintenções e o exercício de sujeito deste agenteda técnica, para esvaziar o ato produtivo e o

agir profissional – que são duas perspectivasdistintas de se abordar o trabalho – em um tec-nológico de senso muito restrito, um “como”se faz destituído de “para que” ou “por quê” as-sim o fazemos. Note-se que estes últimos pa-râmetros revelam as origens do ato, as raízeshistóricas do trabalho e do agir técnico do pro-fissional, ao apontar as necessidades e as fina-lidades sociais a que o ato se relaciona. Enquan-to que o “como” revela a expressão com que setorna visível a ação, o que, se tomado como arepresentação completa da ação, pode nos mas-carar a importância das origens e das razõesda ação, elementos-chave para nosso entendi-mento da intencionalidade do trabalho no pla-no ético e político de seu projeto. Além disso,na abordagem dos profissionais em situaçãode trabalho, mais do que abordar o trabalhoem si como ação estratégica, as origens e as ra-zões da ação são igualmente elementos centraispara conhecermos os sujeitos em ação. Sujei-tos expressando-se no e através do trabalho eo trabalho como interação social.

Este esvaziamento de sentido ocorre quan-do locamos nossa problemática de conheci-mento apenas relativa às questões da opera-ção do trabalho. Por exemplo, ao tomarmos atecnologia por si mesma ou por seu represen-tante maior – o equipamento, a máquina – iso-lados da finalidade social do processo de tra-balho. É comum concebermos que conhece-mos as razões ou finalidades da ação (o por-quê e para que) quando conhecemos a opera-ção (o como). Assim à pergunta: por que cor-tamos, montamos, pintamos, etc... o aço?, reme-tida por exemplo à fabricação de motos, res-ponderíamos para ter motos; ou à pergunta pa-ra que cortamos, montamos, pintamos o aço,etc..?, igualmente será respondida: para termotos. A indagação a que me refiro no texto é,porém, não relativa ao como ou à operação, se-não a seu produto: por que e para que motos?cuja resposta remete à origem social e históri-ca da ação, quando então produzir motos secria como necessidade da vida cotidiana11.

Todas essas questões são relevantes para li-dar com a técnica e os processos de trabalho. Esão tão mais relevantes diante dos sentidoscontemporâneos da técnica e do trabalho, emespecial a partir de suas crescentes complexi-dades nas sociedades modernas, tal como severificou sobretudo ao longo do século XIX eda subseqüente tendência de passarmos a verquase todos os atos da sociedade como traba-lho, ou ao menos sob suas referências12.

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Planejamento e gestão; técnica e trabalho

Uma incursão pelas diversas proposições deplanejamento em saúde que ocorreram naAmérica Latina nos mostra que quase todaselas, possuem uma rica e às vezes bem com-pleta exploração de técnicas. São proposiçõescom alto teor prescritivo e com orientaçõesbastante apuradas do agir (em planejamento).E talvez por essa característica é que autorescomo Testa (1992) propõe para suas reflexõesde caráter mais teórico e enunciadora de prin-cípios gerais para a ação, não a noção de pla-nejamento estratégico mas a do pensar estra-tégico13.

É interessante observar que estamos tra-tando da ação de planejar que produz uma pe-ça propositiva que é o plano. Este contém umprojeto futuro de ação, sendo esta ação igual-mente uma proposta para articular outrasações, isto é, uma futura organização e formasde gerenciamento do trabalho produtor dosserviços. E, de outro lado, através das propos-tas de gestão – que podem ou não pertencerao plano – produz tecnologias de operar a or-ganização do trabalho proposta. Tais tecnolo-gias serão a gestão: um saber capaz de condu-zir a planejada forma (organização) de realizaro trabalho em saúde.

Se o plano é uma orientação para a ação,uma proposição de otimização dos trabalhosde outros, que não o do planejador, essa moda-lidade de atuar é como se fosse um trabalharsobre trabalhos, fundado na necessidade deracionalização do trabalho produtor diretodos cuidados, pois a finalidade do planejamen-to é instruir e a da gestão é processar tal ins-trução sobre processos de intervenção em saú-de. Planejamento e gestão realizam ação es-tratégica quanto ao trabalho em saúde.

Essa compreensão não é absolutamente no-va. Basta relembrarmos as noções clássicas deuso corrente na administração de “atividades-meio” e “atividades-fim”. Ora chamamos aten-ção para o seu tratamento como técnica e tra-balho. Assim, se um trabalho de produção dedeterminados bens ou serviços corresponde àforma socialmente dada de responder a neces-sidades diretas sobre esses bens ou serviços, oplanejamento representa a perspectiva de ra-cionalizar (e otimizar) essa produção. Será,pois, indiretamente satisfação das mesmas ne-cessidades e diretamente satisfação das exigên-cias de melhor produtividade do trabalho pro-dutivo para o qual é necessidade direta.

Planejar assume, desse modo, imediata-mente as características de ação técnica, maisprecisamente, estratégia racionalizadora e sa-ber prescritivo, da perspectiva de tal ou qualpolítica a realizar: ação estratégica para interes-ses do Estado, da empresa.

Por isso o planejamento, como disciplinae prática, busca criar e aprimorar, experimen-tar e realizar tecnologias de poder.

Ao ser o braço da política que opera prá-ticas racionalizadoras para fazer com que serealizem projetos sociais dados, através da pro-dução social, em que se inclui a da assistênciaà saúde, o planejamento expressa-se como umsaber operante, tecnológico, cuja ação estra-tégica está em realizar aquele projeto. Inspi-rados na idéia foucaultiana do poder como aação de determinados sujeitos sobre as açõesde outros (Dreyfus Rabinow, 1995), afirmare-mos que o planejamento e gestão, “tecnicali-zando a política”, desenvolvem saberes ope-rantes de sua ação que representam tecnolo-gias de poder, ferramentas de exercício de po-deres, porque facultam modos de agir sobreas ações de outros. Relembremos que, no ca-so do gestor público, tal poder reside em sualegitimação social como agente do Estado, ge-rente (agente da empresa) e, ainda, profissio-nal da saúde (agente da ciência).

O planejamento é, pois, ele próprio tam-bém uma técnica, mas uma técnica que sabesobre o modo de dispor, arranjar e processaroutras técnicas. Quando na prestação diretados serviços para a população em geral, o pla-nejamento apresenta-se como um trabalho degestão, trabalho que se ocupa dos outros tra-balhos em saúde: organizando e processandoessa organização de modo a que a assistênciaproduzida para a população realize princípiosou pressupostos que instruem o agir, primei-ro, políticos, e segundo, técnico-científicos14.Por isso a esfera própria do planejamento egestão está, pois, em articular o político como técnico-científico na produção dos cuida-dos assistenciais em saúde.

Não será demais lembrar que esses requisi-tos da gestão representam aquela situação degerente/gestor antes comentada: esse agentedeve articular em sua prática profissional, nastécnicas que conhece para propor estruturase para operá-las, a racionalidade do ato médi-co e sanitário e os conflitos que aí se inscre-vem relativos às demandas; as razões de Esta-do e os conflitos que aí se inscrevem quantoàs necessidades sociais e à justiça social; as con-

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quistas de direitos em saúde, como as da re-forma sanitária com seus princípios (universa-lidade, eqüidade, por exemplo) e diretrizespráticas (descentralização, participação, porexemplo) e os conflitos que aí se inscrevemcom os sistemas já existentes de saúde e suasmodalidades de organização institucional.

Em razão disto, explicitar melhor toda es-sa passagem do político ao assistencial, e deque maneira isto implica articulações entre asdiretrizes políticas, os preceitos éticos e a nor-matividade dos processos de trabalho, passa aser uma questão. Também porque temos de-fendido a idéia de que essas passagens não es-tão suficientemente estudadas e claras para osprojetos de intervenção, talvez por conta decerta familiaridade com o técnico-científicoque detemos por nossa própria formação deprofissionais da saúde. Tendemos a tomar es-te plano como um conhecimento já dado, sematentarmos para o fato de que, como vida prá-tica, ele não está dado, mas precisa ser estuda-do como saber aplicado e recriado na ação dotrabalho, em seu cotidiano particular. Assim,compartilhando com o princípio etnográficode que nem tudo que é familiar, é conhecido,e que para conhecê-lo, é mister tornar o fami-liar algo estranho, exótico (Matta, 1978), umaproblemática importante será a desta relaçãoentre o planejamento e o trabalho em saúde(Schraiber, 1990;1995).

Claro está, de outro lado, que trabalhos co-mo os de planejamento, administração, gerên-cia ou gestão surgem como necessidade doprocesso de produção, em razão da complexi-ficação desta produção, como é o caso da es-pecialização do trabalho e da produção em es-cala. Neste contexto, a fragmentação do pro-cesso produtivo exige um trabalho de contro-le e supervisão que coordene a recomposiçãode conjunto. Esta será a racionalidade destetrabalho como ação estratégica, realizando suatecnologia de poder. Nestas circunstâncias pla-nejamento é sinônimo de gerência ou admi-nistração.

Mas, tal qual já dito, há outra situação emque aquele trabalho ganha conotações maisamplas: é o caso do administrador da coisa pú-blica, no interior dos dispositivos e equipa-mentos de governo. Aqui, o gestor de serviçosé também um implementador da política deEstado, ressaltando-se a natureza política (deprática imediatamente política) da sua ação,mesmo como supervisor ou controlador técni-co da recomposição do trabalho coletivo (ge-

rente). Um agente deste tipo não é só o execu-tor da política da empresa em que é o geren-te, mas situa-se como parte da formulação deEstado, um formulador também de políticas(Merhy, 1992).

Em realidade a noção de planejamento as-socia-se historicamente a essa “administração”de macroestruturas, a planificação social, aopasso que no plano da prestação direta dos ser-viços, associa-se à noção de gerência, que alémde planejar inclui outras ações, entre elas asda avaliação como instrumento tanto do con-trole e supervisão técnicos, quanto instrumen-to para agir nas interações.

Ocorre que na saúde, mas não só, este for-mulador é freqüentemente escolhido por seusaber de trabalhor técnico-científico. Vale di-zer, dentre os profissionais da saúde e maisusualmente dentre os médicos. Formulará po-líticas, então, ou criará tecnologias de realizaras políticas, com base em uma específica com-binação: as questões de Estado articuladas comas que conhece como profissional da saúde.Este agente porta duas competências que cor-respondem a autoridades em conflito. Cara-pinheiro (1993), mostra a tensão entre a au-toridade médica e a gerencial, a primeira cominteresses tradicionais da profissão e a segun-da representando a organização moderna dotrabalho profissional. Entre a situação racio-nal-legal desta última e o poder médico legi-timado socialmente, estabelece-se muito fre-qüentemente uma relação de oposição.

Sintetizadas ambas as exigências em um sópersonagem (Ribeiro, 1996), a superação doconflito corre dois riscos opostos. Primeiro, orisco da tecnificação da dimensão política des-te trabalho na tecnoburocracia de Estado,quando o formulador se desqualifica comoagente político e desqualifica a própria polí-tica. As críticas correntes sobre a técnica deprogramação local (Rivera, 1989; Merhy, 1995;Kon, 1997) apontam exatamente nessa dire-ção: o esvaziamento da dimensão política, co-mo planejamento de política pública. Este es-vaziamento pode se dar na direção da norma-tividade da medicina ou de seus saberes (epi-demiologia, clínica), mas também na direçãoou combinados, por vezes, ao desenvolvimen-to de tecnologias do político também reduzi-da à sua própria tecnicalidade: a racionalida-de produtiva com base na econometria da efi-ciência e eficácia “puras”15. Neste caso, a tecni-calidade do planejamento e da gestão assumeo sentido de um fim em si mesmo, e suas tec-

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nologias não são mais meios de realizar o po-lítico no técnico-científico. Mesmo formas nãotão normativas ou clássicas de planejar não es-tarão fora deste risco, que é o da valorizaçãoprimeira de sua própria tecnicalidade, ao in-vés dos princípios ético-políticos a que veioservir de saber operante16.

Em segundo lugar, há o risco oposto.Atuando estritamente conforme com os inte-resses do Estado e de suas organizações, inva-lida-se como portador de autoridade no seiodos profissionais, por não mais representarseus interesses e necessidades, invalidando-se,boa parte das vezes, também como autoridadejunto à população em geral, pela forma comoa autoridade médica incide nesta. Podemosver no atual modo pelo qual o próprio Siste-ma Único de Saúde (SUS) emerge como ques-tão de Estado, parte desse processo.

Esta consideração necessita de maior exa-me, pois envolve uma representação de natu-reza mais complexa da autoridade profissio-nal, visto estar em jogo também uma cisão in-terna às próprias corporações profissionais.Trata-se da especificidade de cada saber pro-fissional, de um lado, tomando de modos dis-tintos e sob valores diversos as necessidades dapopulação e formulando também de modo va-riado o que são as necessidades dos profissio-nais na produção de seus trabalhos. Além dis-to, os próprios profissionais detêm distintasvisões entre si, também disputando hegemo-nias na política pública e nas políticas profissio-nais, quanto às suas competências, autorida-des e poderes particulares, no conhecido con-flito entre as diversas “corporações” da saúde.

Esses riscos podem ser minimizados, quan-do o formulador detém a percepção de sua du-pla, por vezes tripla inserção: a de técnico (dasaúde no Estado) e a de político (de Estado nasaúde), a que pode-se somar a de técnico depolítica (do gerente na empresa do Estado). Eesta possibilidade além de representar um gran-de desafio ao próprio gestor em saúde, trazuma questão relevante de duas ordens para aárea do planejamento e da gestão dos serviços:a complexidade tecnológica de seu próprio tra-balho na saúde e os conflitos nas relações in-terativas que também perpassam esse traba-lho, ele próprio ação estratégica e interação.

Essas duas ordens de questões serão apre-sentadas a seguir através de dimensões na pro-dução dos serviços em saúde que são privile-giadas para apontar suas problemáticas, poisrepresentam os planos em que essas questões

são experimentadas como grandes impassesno cotidiano dos serviços: o trabalho em equi-pe e a relação entre gerentes e profissionais di-retos do cuidado quanto à produção e uso dasinformações em saúde para a tomada de deci-sões.

Trabalho em equipe; articulações técnicas e projetos assistenciais comuns

A proposta e a prática do trabalho em equipeestão, ambos, o almejado e o realizado, rela-cionados a uma série de mudanças que vêmocorrendo na oferta de serviços de saúde, taiscomo: a especialização do trabalho; a especia-lização das disciplinas científicas; a crescenteincorporação de tecnologia; a institucionali-zação elitizadora e segmentadora da oferta deatenção à saúde; o caráter interdisciplinar dosobjetos de trabalho em saúde; o valor ético ea diretriz política da atenção integral às neces-sidades de saúde do conjunto da população.Conjugam-se nesta aspiração ao trabalho emequipe, portanto, tanto a divisão dos traba-lhos e dos saberes, quanto a necessidade de re-composição de suas ações.

Visto que as necessidades de saúde expres-sam múltiplas dimensões – social, psicológi-ca, biológica e cultural, e que o conhecimen-to e as intervenções acerca desse objeto com-plexo – o processo saúde-doença – constituemum intenso processo de especialização, a ne-nhum agente isolado cabe, na atualidade, apossibilidade de realizar a totalidade das açõesde saúde demandadas, seja por cada um dosusuários em particular, seja pelo coletivo deusuários de um serviço. Coloca-se, pois, a ne-cessidade de recomposição dos trabalhos es-pecializados, com vistas à assistência integralde saúde, seja de especialidades de uma mesmaárea profissional, seja de áreas distintas – mul-tiprofissionais.

No entanto, a idéia de recomposição, nadireção da integralidade da atenção, não tem semostrado possível por meio da mera locaçãode recursos humanos de diferentes áreas pro-fissionais nos mesmos locais de trabalho. Apresença de variados profissionais realizandoações isoladas e justapostas, ou seja, apenasexecutadas lado-a-lado, sem articulação e semcomunicação, não permite realizar a eficiên-cia e a eficácia dos serviços na perspectiva pro-posta da atenção integral. Esta requer uma mo-dalidade de trabalho em equipe que traduza

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outra forma de conectar as diferentes ações eos distintos profissionais, no coletivo de agen-tes presentes à prestação de serviços.

Distinguimos dois tipos de trabalho emequipe: equipe agrupamento e equipe integra-ção, distinção em que o segundo tipo se carac-teriza pela articulação das ações e pela intera-ção dos agentes (Peduzzi, 1998). A articulaçãoseria resultante da intervenção ativa de cadaagente dos distintos trabalhos envolvidos emdada produção de cuidados, no sentido de li-dar com as conexões existentes, do ponto devista objetivo formal, entre as ações ou traba-lhos especializados. A interação como a açãocomunicativa consistiria, por parte de todosos envolvidos, na busca do entendimento e doreconhecimento recíproco de autoridades, sa-beres e autonomias técnicas17.

Quanto à articulação das ações, trata-se deconectar diferentes processos de trabalho, vis-to que cada trabalho especializado constituium processo peculiar com objetos, instrumen-tos e atividades próprias. A atividade ou açãoprofissional consiste no que pode ser obser-vado concretamente do trabalho de cada agen-te, no entanto, expressa a lógica interna do res-pectivo processo de trabalho, ou seja, como jámencionado, uma certa relação entre o objetosobre o qual incide a atividade e no qual o sa-ber técnico instrumentaliza a ação para certoresultado ou produto. Portanto, a articulaçãodas ações ou dos trabalhos requer, da parte decada agente, um dado conhecimento acerca dotrabalho do outro e o reconhecimento de suanecessidade para a atenção integral à saúde.Ou seja, a própria articulação das ações re-quer, ao menos, uma certa modalidade de re-lação entre os agentes, em que, ao menos al-gumas informações sejam trocadas, mesmoque não se estabeleça um agir comunicativocomo interação.

Já pensar essa interação ou comunicaçãodos agentes da equipe, é pensá-la não somen-te como meio que permite estabelecer as corre-lações e os nexos entre as distintas ações, mastambém como a construção de consensosquanto aos objetivos e resultados a serem al-cançados pelo conjunto dos profissionais e amaneira mais adequada de atingi-los. Ou seja,a interação dos agentes permite a construçãode um “projeto assistencial comum” à equipede trabalho – onde e como chegar no que serefere às necessidades de saúde dos usuários.

No entanto, ainda como nos mostra Pe-duzzi (1998), nem todas as formas de relacio-

namento conduzem à interação comunicati-va, em que cada estratégia de ação profissio-nal e a racionalidade de seus trabalhos é co-nhecida, dialogada e negociada como práticacomum. O trabalho em equipe é o trabalhoque se compartilha, negociando-se as distin-tas necessidades de decisões técnicas, uma vezque seus saberes operantes particulares levamà bases distintas de julgamentos e de tomadasde decisões quanto à assistência ou cuidadosa se prestar.

Nesse sentido, tal concepção de trabalhoem equipe assenta-se em algumas questõesprévias e que são também questões no plane-jamento e gestão dos serviços de saúde.

Primeiro, vamos considerar que os diver-sos trabalhos especializados expressam rela-ções de complementaridade e interdependên-cia entre si, não constituindo trabalhos inde-pendentes, visto serem resultantes de um pro-cesso de divisão do trabalho que se dá a par-tir de uma prática originária e fundadora datécnica científica moderna na área da saúde –a prática dos médicos. No entanto, esse carátercomplementar não se traduz automaticamen-te em articulação das ações, visto que estas im-plicam numa intervenção do agente que colo-ca em evidência as conexões entre os distin-tos trabalhos. Vale dizer: as conexões entre asações são objetivas, mas para refletirem-se eminteração, devem ser expressas pelos agentesdos trabalhos para que, ativamente, sejam tor-nadas públicas e alvo de uma atenção dessemesmo plano, a esfera gestora dos trabalhos.Portanto, faz-se necessário estimular, reconhe-cer e valorizar a disponibilidade dos agentespara operarem articulações entre os trabalhosexecutados pelas diferentes áreas.

Mas, em segundo lugar, a referida comple-mentaridade e interdependência entre os tra-balhos especializados que compõem a equipede saúde está freqüentemente em tensão coma autonomia técnica que os profissionais bus-cam ampliar. Por um lado, os agentes buscamuma autonomia tal como reza a tradição naárea da prática dos médicos e prática do tipoliberal, quando o profissional que já trabalhaisolado e como prestador independente de ser-viços, procede aos julgamentos e tomadas dedecisão técnicos por si mesmo e baseados emsua autoridade individual. Isto implica na atualprática especializada, julgamentos e decisões,sem nenhuma troca com os demais agentes.Claro que esta é uma retórica radical, pois se-ria exagerado falarmos em “nenhuma troca”.

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Contudo, ainda que muitas interconsultasocorram, sabemos também que dois procedi-mentos são freqüentes: ou realizar sem discu-tir o parecer do outro especialista, ou descon-siderá-lo, por completo ou submetido a seupróprio julgamento e decisão. Além do que épreciso também problematizar esses procedi-mentos da perspectiva das relações de poderno interior de uma equipe de trabalho, quan-do esta é multiprofissional, com profissões cu-jas autoridades são desiguais. Em realidade,trata-se da desigualdade dos poderes implica-dos nos particulares saberes das áreas profis-sionais, em que autoridades técnicas diferen-tes passam a significar poderes e valores dife-rentes, com conseqüente desigualdade na le-gitimidade de julgar e decidir no trabalho,criar e recriar a técnica.

Por outro lado, é curioso que em certas in-terconsultas informais, quando os especialis-tas detêm vínculos de confiança, mais que vín-culos formais do sistema prestador em que seinserem, há mais chances de interação e comu-nicação para o “projeto comum”, muito embo-ra, como nem sempre se trata de uma mesmaequipe de trabalho, esta interação não se dá co-mo um trabalho de equipe. Não há neste casoum projeto de trabalho a se realizar, mas co-mo uma cooperação profissional, sem conexãocom a produção concreta do trabalho.

Considerando-se, ademais, que os profis-sionais precisam reconhecer a complementa-ridade e proceder ativamente à articulação dasações, o que se têm como questão é a forma derealizar as necessárias autonomias técnicasatravés dessa complementaridade e interde-pendência. Espera-se, aqui, um duplo movi-mento por parte da equipe de saúde, pois tan-to a autonomia técnica dos profissionais quan-to a articulação das ações, são necessárias pa-ra a eficiência e eficácia dos serviços. Movi-mento que requer o exercício da autonomiatécnica de forma interdependente, autonomiasreconhecidas e negociadas pelos distintosagentes, por meio de sua interação.

A descentralização da tomada de decisão e,mais uma vez, a flexibilidade da divisão de tra-balho estão no âmago das questões colocadaspela equipe de saúde, pois, como o trabalhoem equipe requer a interação dos agentes nosentido do entendimento mútuo, não cabe aintolerância às iniciativas individuais ou cole-tivas, nem o cumprimento inquestionável dasrelações hierárquicas e das regras técnicas dotrabalho.

Informação, registro,comunicação e trabalho

A temática da informação – sua geração, re-gistro e transmissão ou socialização – é umaquestão articulada ao trabalho em equipe. Aintegração dos profissionais, trabalhadores deuma mesma equipe, pressupõe, sem dúvida,compartilhar informações, referidas não ape-nas aos usuários dos serviços, mas à popula-ção potencialmente usuária em geral, o que éuma referência mínima no sentido da cons-trução de projetos assistenciais comuns. Doponto de vista dos processos de trabalho e ar-ticulação de seu conjunto, tais informaçõesdevem ser ainda referidas aos desenvolvimen-tos efetivamente experimentados de produçãodos cuidados, nos trabalhos especializados.

De outro lado, a troca de informações, seé peça chave da comunicação nas relações in-terativas, não recobre, de certo, todas as ques-tões que antes referimos acerca dessa intera-ção. Não obstante, um projeto de trabalho debase comunicativa, não se inicia sem preverpráticas e instrumentos para tal e quais infor-mações serão alvo desses procedimentos.

Além da equipe de trabalho composta pe-los produtores diretos do cuidado, essa ques-tão da informação articula outra “equipe” detrabalho: a que reune os produtores diretos docuidado e os gerentes dos serviços. Através de-la, podemos tomar a perspectiva articuladorados trabalhos em um projeto comum, comoobjeto do trabalho gerencial.

Para cada uma desses agrupamentos deagentes em saúde (profissionais-profissionais;produtores diretos-gerentes), gerar informa-ções, registrá-las e compartilhá-las adquiresignificados diversos, em razão do próprio sen-tido instrumental da informação dentro desuas respectivas técnicas na produção do tra-balho. Isto porque, como já examinado, se ainformação é um dos meios para a consecu-ção dos objetivos de cada trabalho – o produ-tor de cuidados e o gerencial – esses trabalhospossuem diferentes objetivos a serem alcança-dos. E em seu interior distintas problemáticasrelativas à informação passam a se colocar.

Em estudo recente, Sala (1998) mostra queda perspectiva do produtor direto – aquiexemplificado com o caso do trabalho do mé-dico18 – a informação e seu registro impor-tam de dois pontos de vista: como base parao raciocínio clínico e a tomada de decisão mé-dica; e como memória auxiliar do próprio mé-

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dico, para o seguimento dos casos. A infor-mação comparece, obviamente, como ummeio para a resolução do problema médico-sanitário e que diante desse trabalho compa-rece na forma da demanda individual do pa-ciente, consoante com a finalidade desse tra-balho. O que significa a necessidade técnicade resolver o problema concreto e particulardaquele caso, naquele momento.

Além disso, resolver o caso, é, de fato, com-preendido pelo médico como sua atribuiçãoindividual, como já dito, reproduzindo a tra-dição do trabalho profissional dos médicos.Compartilhar essa responsabilidade, aceitan-do julgamentos e negociando decisões comoutros profissionais – médicos especialistas deoutras áreas e demais profissionais da saúdee, ainda, os cuidadores diretos como o pessoalde enfermagem, por exemplo – não é tomadocomo problema técnico e não se apresenta,portanto, como uma questão a que deve res-ponder. Somente naquelas situações em queessa independência de ação gera conflitos ra-dicais e impasses no prosseguimento da exe-cução do projeto assistencial que ele formu-lou para o caso, alguma comunicação em re-conhecimento da complementaridade no tra-balho surge como questão tecnológica e pas-sa a ser elemento de sua técnica.

Dessa perspectiva estão ausentes quer a ne-cessidade de informações que insiram o casoem grupos populacionais, a não ser para de-notar o estilo de vida individual e as caracterís-ticas pessoais dentro disso, quer a necessida-de de avaliar diretamente a situação grupal-populacional referida ao problema médico-sanitário em pauta. Também estarão ausentes,no sentido do trabalho em equipe, as necessi-dades quer de registro de informações queapresentadas à consulta médica são relevan-tes a outros trabalhos, quer o aproveitamentona consulta do registro de outros trabalhado-res especializados, e quer, ainda, de linguagemcompatível com trocas comunicacionais.

Todas essas questões abandonadas comotal pelos produtores diretos, como se sabe, po-dem ser problemas do gestor, quando inseri-do em contextos de políticas de saúde que va-lorizem essa atuação, como no caso do gestordo SUS. Também estamos dizendo com issoque tal ou qual informação faz sentido tecno-lógico para esta ou aquela técnica, mas não sãonecessidades tecnológicas iguais e constantespara todos os profissionais e trabalhadores emsaúde.

Para o produtor direto dos cuidados, o en-contro de linguagem adequada para o regis-tro-caso e registro-memória pessoal, e o en-contro de uma hierarquia de dados a serem re-gistrados, é sua problemática específica. Se is-to possui alguma disciplina de ordem cientí-fica que se encontra em tratados de clínica(Dalmaso, 1998), no sentido comunicacionale interativo entre profissionais especializados,esta será uma recriação do saber tecnológicono exercício prático de suas orientações. E atépara amparar tal recriação, em alguns servi-ços o registro padronizado serve de ponto departida. No entanto, se a linguagem médica jánão é mais comum entre os médicos, pois asáreas especializadas já cunharam linguagensespecíficas e de domínio restrito a seus especia-listas, como mostra Atkinson (1995), o regis-tro padronizado só encontra eco na tecnolo-gia do produtor direto quando porta idênticalinguagem específica. Caso contrário, mesmoo padronizado sofre recriações, como mostraSala (1998).

Temos, assim, da perspectiva comunica-cional, uma ampliação dessa possibilidade en-tre profissionais de mesma área e uma maiordificuldade entre o trabalho multiprofissio-nal, o que equivale a dizer que para o produtordireto, quando há preocupação interativa, dei-xando a informação e seu registro de terem ca-ráter de memória estritamente individual esendo instrumento de trocas de informações,isto só ocorrerá para as informações pertinen-tes senão ao caso individual, aos casos da es-pecialidade, sem que tal procedimento deixede ter o significado tecnológico de registro-caso.

Já diante da preocupação organizativa deintegração entre profissionais no trabalho emequipe multiprofissional, e da preocupaçãoavaliativa, como é a necessidade tecnológicado trabalho gerencial, a informação melhor éaquela que mais recobre a diversidade dos ca-sos e do conjunto das operações dos trabalhos,para além das clássicas informações acerca daprodutividade do trabalho e sua resolutivida-de em termos médicos e sanitários, para o con-junto dos casos. Primeiro, estará presente, aqui,sempre a preocupação de conjunto; segundo,a preocupação articuladora dos trabalhos, po-dendo a esta somar-se a percepção e conse-qüente preocupação na esfera comunicacionale interativa, no sentido de desenvolver formasde trabalho efetivamente compartilhado. A ne-cessidade tecnológica deste particular traba-

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lho, portanto, contrasta em vários pontos coma do trabalho produtor direto dos cuidados.

A isso acrescente-se o já mencionado fatode que gerentes de serviços pertencentes aoSUS, por exemplo, encontram-se diante de ne-cessidades tecnológicas advindas de sua repre-sentação como gestor das questões da saúdepública. A gerência compromete-se, nesses ser-viços, não somente com aquelas ações tradi-cionalmente relacionadas ao campo da saúdepública (tais como vacinação e vigilância epi-demiológica), mas destaca-se a marcada preo-cupação com a assistência individual. Nestesentido, a atividade gerencial está presente co-mo ordenadora e controladora das ações mé-dicas: a padronização dos registros, a formula-ção e implementação de diversas modalidadesde atenção individual e em grupos de usuáriosdos serviços, as padronizações de condutas pa-ra diagnóstico e terapêutica, a supervisão téc-nica dos atendimentos, entre outros, são mo-mentos presentes no cotidiano desses geren-tes. Mas os médicos, como dissemos, tendem adesqualificar aquela perspectiva gerencial e sa-nitária no momento em que tomam a tarefade intervir e resolver o problema do indivíduoque se apresenta à consulta médica.

Diante dessas divergências, dois tipos delacunas terminam ocorrendo na geração dasinformações, mas principalmente em seus re-gistros: uma que desqualifica a informaçãopertinente à atividade gerencial, outra, que re-duz a anotação do caso a breves referênciasbiomédicas que implicitamente justificariam atomada de decisão médica.

Para o produtor direto, informações do ti-po gerencial são tidas como apenas uma tare-fa mecânica adicional, com a qual raras vezessentem-se dispostos ou motivadas a colabo-rar. A nosso ver, uma melhora nesta direção édependente do encontro de um sentido tec-nológico a esse agente para tal atividade, exi-gência que se coloca para os formuladores daspolíticas públicas ou políticas institucionais edo planejamento dos serviços, além dos ges-tores. Essa questão é problemática a ser, cer-tamente, melhor conhecida.

Para o gerente, despreocupado com a téc-nica desse produtor direto – ou como já dis-semos, imaginando-se suficientemente ins-truído acerca dessa técnica, por familiaridadede capacitação profissional – não se coloca co-mo exigência pensar elementos do registro fa-cilitadores da “memória do caso” ou facilita-dores da tomada de decisão médica. Isto é, não

se coloca pensar uma linguagem e formas deregistro que aproxime a sua necessidade de co-nhecer a população usuária e a necessidadeclínica de conhecer o caso, a não ser os códi-gos bem estabelecidos pelos tratados clínicos,mas que apenas recobrem a dimensão biomé-dica da informação. É nesse sentido que, emsituação de trabalho mais especializado até ob-servamos convergência de objetos de interes-se entre a ação gerencial e a do trabalhador di-reto, em especial o médico, no sentido da abor-dagem da doença no indivíduo. Também é dese notar, diante do fato de que o trabalho ge-rencial dirige-se à organização dos outros tra-balhos, que em razão daquelas convergência,diminuem os conflitos entre esses trabalhado-res: a atividade gerencial ganha o sentido domanejo de recursos, e, simultaneamente, deuma “liderança profissional”. E isto é diferen-te do que ocorre nos serviços voltados à saúdepública, em que os contrates das técnicas e ne-cessidades tecnológicas dos trabalhos são maispolares (Sala, 1998).

Avaliação e trabalho;supervisão técnica e interação

As atividades de avaliação mais freqüentemen-te exercidas pelo gerente são as voltadas para averificação das metas mais gerais do plano eadministração de recursos. Se estas são dimen-sões evidentemente importantes do trabalhoda gerência, são também, por outro lado, li-mitadas na sua capacidade de dialogar com otrabalho direto. Levantamos aqui, a possibili-dade, aberta por diversas correntes do campoda avaliação em saúde e por diversas experiên-cias práticas de gestão do SUS, de entender aatividade avaliatória como potencialmente ca-paz de lidar e promover algumas das dimen-sões do trabalho que destacamos acima.

A corrente de avaliação mais conhecida,quando se trata de serviços assistenciais desaúde, é a da avaliação e garantia de qualidade,representada, principalmente, nos trabalhosclássicos de Donabedian. Não nos deteremosaqui em analisar a origem do inegável confli-to entre a necessidade de autonomia do atomédico, de um lado, e a necessidade de contro-le social (ou accountability), que move os pro-cessos de avaliação da qualidade. (Schraiber &Nemes, 1996). Gostaríamos de destacar aquium outro aspecto: a potencialidade inscritanesta relação.

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Os mecanismos mais tradicionais de ga-rantia e avaliação da qualidade técnica do cui-dado são, de fato, com muita freqüência, to-mados pelos profissionais como, no mínimo,constrangedores, quando não como persecu-tórios e punitivos. Muito embora os teóricosda qualidade afirmem que mais importanteque achar o culpado é achar e analisar o erro,até hoje os controles de qualidade mais tradi-cionais tendem, no mínimo, a ser restritivos,estanques e não vinculados a outros níveis daorganização (Malik, 1996). Tanto esta noçãopunitiva têm base real, que há um crença disse-minada de que é mais fácil trabalhar com qua-lidade no setor privado do que no setor públi-co, justamente pela relativa impunidade dostrabalhadores no setor público (Malik, 1992).

Não cabe aqui analisar esta questão, masassinalar que o abandono do caráter punitivodestes mecanismos, a assunção de que falhassão inevitáveis e de que ninguém erra por pra-zer são a base da lealdade da organização pa-ra com seus funcionários (Malik, 1996). E, evi-dentemente, são o ponto de partida para umaforma de avaliação que se pretenda dialógicaentre a gerência e o trabalhador direto.

Claro que a declaração desta intencionali-dade não é o bastante. O trabalhador da saúdeé hoje, no serviço público, submetido a umarelação péssima como o trabalho que se assen-ta nos constrangimentos às condições míni-mas de trabalho, na ausência de perspectivaprofissional, na perda substantiva de qualida-de do trabalho e no trabalho embrutecido pe-la política da “falta” ou da “escolha de Sofia”(Machado, 1993).

A implementação de mecanismos de ava-liação e controle da qualidade técnica do cui-dado a partir de definições de qualidade de fa-to negociadas entre os profissionais e a gerên-cia pode ser um mecanismo de resgate da pro-fissionalização, do orgulho e da valorizaçãodo trabalho. Embora o trabalho dos profissio-nais em saúde, especialmente o do médico,permaneçam necessariamente dependentes deajuizamentos pessoais e de decisões arrisca-das, a transformação tecnológica da medicina(Schraiber, 1997) ampliou significativamenteas possibilidades de controle “externo” da prá-tica. A polaridade entre a autonomia técnicae a maciça utilização de técnicas matérias dediagnóstico e terapêutica, abre um grande es-paço de “negociação” possível entre a singula-ridade do ato médico individual e seu contro-le técnico externo.

É como promotor e incentivador destesmecanismos que o papel do gerente enquan-to “liderança (também) profissional” podetambém consolidar-se; é aqui que o registropode ser informação re-valorizada enquantoalimentadora do processo avaliativo.

Novamente neste ponto é necessário res-saltar que o simples estabelecimento conjun-to de critérios, normas ou padrões de quali-dade não será suficiente. Não nos referimosapenas às necessidades de retro-alimentaçãoou de discussão constante dos padrões, já su-ficientemente ressaltadas pelos teóricos daqualidade. Chamamos a atenção para a especi-ficidade tecnológica da atenção primária e asdificuldades metodológicas que elas implicampara os processos de garantia e avaliação daqualidade. Para além dos problemas comunsàs práticas ambulatoriais como, por exemplo,a difícil caracterização dos episódios de doen-ça, grande volume de queixas mal definidas ea presença importante de condições crônicas(Palmer, 1988), agregam-se outras, destacan-do-se, principalmente, a complexidade da ar-ticulação de finalidades diversas como a aten-ção à demanda espontânea e à condições epi-demiologicamente importantes, ou a da qua-lidade do cuidado individual e a coberturaadequada da população adscrita (Nemes, 1996;Starfield, 1992).

Esta última questão nos parece a que maistensiona, ao nível tecnológico, o processo ava-liativo: enfrentar a cruel oposição entre prin-cípios éticos-normativos como o da universa-lização versus qualidade. Traduzida no discur-so dos trabalhadores pela triste expressão: “-aqui fazemos o mínimo”, esta oposição resul-ta na cisão entre os planos ético, político e téc-nico do trabalho, reduzindo o plano ético àcaracterísticas pessoais e paralisando, com fre-qüência, qualquer tentativa de negociação en-tre a gerência, empurrada à condição de res-ponsável exclusiva pelo plano político, e o tra-balhador direto, à condição de responsável ex-clusivo pelo plano técnico (Nemes, 1996;Schraiber & Nemes, 1996). Somente com baseno enfrentamento claro e negociado deste de-safio será possível o diálogo acerca das defini-ções de qualidade aceitáveis. Aqui, novamen-te, o papel do gerente é fundamental e só pos-sível de exercer, se a gerência estiver, de fato,inteirada e “aliada” ao trabalho direto (Casta-nheira, 1996).

As questões de avaliação que tratamos atéaqui, embora possam ser estendidas para al-

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gumas das atividades mais coletivas das uni-dades de saúde, envolvem especialmente as ati-vidades individuais e, em particular o cuida-do médico. De fato, o foco de avaliação e astécnicas avaliativas derivadas da corrente daqualidade são compatíveis com esta modali-dade assistencial. Mas os serviços de saúdecomplexos, como os de atenção primária, en-volvem processos de trabalho diversos. A ava-liação precisa dar conta deste conjunto. E aquiaparece uma outra problemática. “Dar conta”do conjunto não será somente a soma da ve-rificação de características desejáveis de cadaprocesso de trabalho. Evidentemente, esta ve-rificação pode constituir-se em etapa ou focotemporário da avaliação, mas não a esgota.

As “grandes” categorias avaliativas, opera-cionalidade e efetividade estratégica19, propos-tas para o trabalho em atenção primária (Salaet al., 1998) podem orientar metodologias ca-pazes de integrar, na avaliação, os trabalhosparcelares e o trabalho coletivo. Articulada-mente à qualificação estratégica das ações, háque se avaliar também sua qualificação comu-nicacional (Ayres, 1995; Sala et al., 1996).

A especificidade tecnológica desta moda-lidade assistencial complexa implica ainda umaoutra questão avaliativa, conforme Nemes(1996). Questão essa, que deriva do fato de queno plano da proposição do trabalho ocorremsucessivas reduções entre a escolha do objeto,seu recorte para o trabalho e o estabelecimen-to de padrões de operação e julgamento dotrabalho. Na operação concreta do trabalhotodos esses momentos são simultâneos, ocor-rendo necessariamente uma reconstrução to-talizadora daqueles níveis. A escolha, o recor-te do objeto e os padrões de operação estãoconsubstanciados na ação do trabalho. Na ava-liação, o trabalho pode ser apreendido apenaspelos padrões construídos a partir daquela re-dução sucessiva. Com isso, as práticas de ava-liação apenas detectam contrastes entre os pa-drões explicitamente esperados e os operados,sem analisar a rede de reconstruções que notrabalho como um todo estão sofrendo as es-colhas, as normas e os padrões. Isto porque adinâmica do trabalho, ao implicar uma tota-lização, necessariamente põe à prova aquelasreduções.

Isto implica que se partirmos de processosde trabalho onde este plano de reduções já seencontra claro e validado poderemos ignorarou ao menos abstrair parcialmente a escolhaprévia e a normatividade emanada desta pró-

pria escolha, avaliando imediatamente os pa-drões da operação técnica. Trata-se aqui deuma clareza de regras que, contudo, não evi-dencia a racionalidade de sua construção; es-ta já está dada e validada como “bem” tecnoló-gico. De fato, há processos de trabalho ondeessa racionalidade pode ficar abstraída, semprejuízo para a validade da avaliação e para aaplicabilidade tecnológica de seus resultados.Trata-se neste caso de avaliar processos isola-dos de trabalho cujos produtos encontram-sebem estabelecidos. É bastante razoável admi-tir, por exemplo, a abstração presente na ava-liação do cuidado médico tendo por base umpadrão fixo de tratamento para uma dadadoença. Quando porém, os padrões referem-sea processos complexos, de múltiplas dimen-sões articuladas, abstrair completamente aque-la instituição implica necessariamente uma li-mitação na capacidade da avaliação em revelara re-criação que o plano propositivo sofre naoperação do trabalho.

Evidentemente não estamos defendendoque a avaliação seja capaz de rotineiramentepromover uma argüição profunda do traba-lho tal como se faz nas investigações avaliati-vas baseadas em “grandes” aportes teórico-me-todológicos. Chamamos a atenção apenas pa-ra a necessidade do trabalho integral de supe-rar as avaliações instrumentais referidas nasnormas fixas da clínica e da epidemiologia,muito embora estas também possam jogar pa-pel importante em específicos arranjos do tra-balho. É preciso lembrar, contudo, que os pro-cessos de trabalho muito legitimados, tal co-mo ocorre no trabalho médico individual con-tam com padrões já tão fixados e igualmentelegítimos que assumem no trabalho a repre-sentação de imperativos tecnológicos, assen-tados sobre uma espécie de padrão máximo tãodifícil de atingir quanto sempre presente naformulação do plano discursivo do trabalho.Defrontar-se com padrões diversos, fundadosem outras normatizações, implicará conflitosde competência e de legitimação, incertezaséticas e técnicas e dilemas individuais profis-sionais para os agentes20 que serão reveladosna avaliação.Torná-los claros e submetê-los àdiscussão pública, pode ser o papel mais inte-rativo da avaliação. Cremos que as metodolo-gias avaliatórias baseadas na linha do empo-deramento (empowerment evaluation, confor-me Fetterman, 1994; Rowe, 1997) poderiam,pela sua compatibilidade de sua proposta comas questões que levantamos, ser bastante úteis

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para a gerência, na condução do processo deavaliação.

Trabalho e política pública:lembrando uma última questão

Seria importante considerar de que modo asquestões gerenciais aqui tratadas e as caracte-rísticas dos gestores nesta modalidade de or-ganização relacionam-se com as tendênciasatuais das políticas públicas na proteção so-cial, entendendo a saúde como parte dessa po-lítica. Isto porque, em razão da atual globali-zação dos mercados, há a tendência a se adotarpolíticas que passem tanto a “desproteger” otrabalho e o trabalhador, quanto, no caso dasaúde, a regular diretamente o produtor dire-to dos cuidados, interferindo imediatamenteem seus processos de trabalho. E nesta situa-ção caberia indagar como ficam os gestoresque representam esse Estado, exercendo seupapel de administrador público. Vale dizer, co-mo agente também das ações estratégicas doEstado quanto aos modos da prestação da as-sistência, com certos padrões de produtivida-de do trabalho, certas formas de valorizar o

médico e a equipe, certos resultados a alcan-çar junto à população, certas relações e con-dições de trabalho na articulação do setor pú-blico com o privado.

Os pontos de partida para uma tal reflexãoremetem às questões recentes das novas arti-culações Estado-sociedade (Gerschman &Vianna, 1997; Costa & Ribeiro, 1996), incluin-do a problemática da responsabilidade socialpara com a prestação direta de serviços. Istoagrega às problematizações de poder no cam-po das políticas públicas, aquelas concernen-tes à dimensão ética na articulação dos inte-resses público e privado (Girardi, 1996), aíconfigurando-se a problemática do Estado-provedor ou do Estado-regulador, como dua-lidade a ser estudada, tal qual mencionado aoinício deste texto. Isto implica novas relaçõesdo setor governamental não só com a socie-dade em geral, mas também com as organiza-ções coletivas de interesse profissional, emparticular, as corporações e seus arranjos (Ri-beiro, 1996).

É óbvio que, pelos limites do presente tex-to tanto quanto de nossas próprias indaga-ções, deixamos aqui apenas o convite para es-ta discussão.

Agradecimento

Os autores deste texto correspondem aos que tendo ocu-pado ou ocupando a gerência do CSE Samuel Pessoa, fi-zerem deste recorte seus objetos de pesquisa, para o quecontaram com a grande colaboração dos demais, docen-tes e sanitaristas pesquisadores do Centro, cujas linhasde investigação em muito contribuíram para a reflexãoora publicada. Agradecemos ao Prof. José Ricardo C.M.Ayres e à equipe: Alexandre Nemes Filho, Ana Flávia P.L. d’Oliveira, Ana Silvia W. Dalmaso, Angela M. de Lima,Diane D. Cohen, Ivan França Jr e Ricardo R. Teixeira.

Notas

1 A denominação Saúde Coletiva surge ao final dos anos70, embora o planejamento e a administração em saúdefossem já parte de campos que se fundiram na saúde co-letiva. O reconhecimento do planejamento e da admi-nistração como temática conjugada é deste período, poisse o planejamento é valorizado como instrumento deação para o desenvolvimento da saúde nos anos 60, aadministração pública e sanitária lhe é anterior, comotemática da saúde pública.

2 Uma primeira investigação nesta direção encontra-seem Teixeira e Sá (1996).

3 Buscando aproximar essas questões tanto da perspec-tiva da ação social, quanto da produção teórico-meto-dológica, o estudo da implantação de programas e suaavaliação tal como em Hartz (1997), fornece uma ricadiscussão, em um recorte amplo e conceitualmente de-talhado a esse respeito.

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maso (1998), que sistematiza tais distinções, ao estudaras mudanças na produção do saber clínico.

9 Caberia aqui apenas relembrar que este é o fundamen-to da nossa compreensão do projeto ético-político daação programática e de suas proposições para a opera-ção do trabalho: saberes de cunho prático-operativo, sa-beres tecnológicos (Mendes-Gonçalves, 1994). Comoprojeto, a ação programática apreende de certa perspec-tiva ética e política as necessidades sociais; como sabertecnológico, propõe modos de fazer em modos de orga-nizar o trabalho tecnicamente adequados às aproxima-ções pretendidas das necessidades e sua satisfação.

10 O que também pode ser explicitado como uma ex-ternalização ou ato que torna objetiva a síntese que es-te agir representa: a articulação que este sujeito de pro-jeto técnico (agente-sujeito técnico) realiza entre a ob-jetividade da realidade social (e do trabalho) introjeta-da em sua própria subjetividade, enquanto sujeito só-cio-histórico.

11 Veja-se discussão acerca do tecnológico como bemem si e desses deslocamentos em Ayres (1995).

12 Não entraremos aqui no debate sobre o atual deslo-camento do trabalho como o centro da construção socialou o deslocamento da categoria trabalho para a melhorinteligibilidade da socialidade (Offe, 1989). Reteremosapenas a idéia de que o valor como categoria teórica nãoé o mesmo que o valor do trabalho como prática centralde construção da socialidade, ao mesmo tempo que enten-demos a necessidade de examinar melhor ambos os des-locamentos e seus sentidos concretos para a produção doconhecimento e para a intervenção social. Também é pre-ciso contemplar as próprias mudanças do mundo do tra-balho mais atual em que tais deslocamentos são obser-vados. Quanto ao trabalho em saúde, ver Peduzzi (1997).

13 Ver também Giovanella (1990 e 1992) e Uribe (1995).

14 A priorização do político, neste caso, deve-se à situa-ção objetiva deste lugar de gestor/gerente, claro. De ou-tro lado, é bom lembrar, não estamos tratando da pró-pria dimensão política que está contida nas ações téc-nico-científicas. O projeto de ação na intervenção téc-nica em medicina e saúde pública realiza sempre umanormatividade científica e outra de natureza ético-po-lítica, combinando conhecimentos técnico-científicos,interesses profissionais, valores éticos e tradições cul-turais dadas. A esfera política ora em pauta é aquela docontexto da ação médica ou sanitária, contexto organi-zador e dinamizador dessas ações, em unidades dadasde produção (ambulatórios, hospitais, etc.).

15 Aqui fica claro o excesso da tecnificação pois o cál-culo de eficiência e de eficácia de um ato é rigorosamen-te técnico, em que se combina a técnica de cálculo deprodutividade de um trabalho com a técnica do cuida-do ou trabalho a ser produzido, sendo a combinação re-sultante tomada como um saber de operação em si mes-mo e sem sentido social (pela cisão entre o financeiro eas demais necessidades sociais implicadas).

16 É interessante notar que há diversas outras tentati-vas de tecnificação de práticas sociais. Por exemplo, se-

4 Cabe lembrar a discussão que se encontra em Schraibere Mendes-Gonçalves (1996), acerca do subdesenvolvi-mento do conceito de atenção primária e a pouca aten-ção que ganhou na saúde coletiva o desenvolvimento detecnologias nesse nível, denotando que nossa comuni-dade científica e profissional concebeu a simplicidadedas patologias e técnicas pouco aparelhadas como sen-do o mesmo que a simplicidade de cuidado e assistênciaao paciente, terminando por não distinguir a tecnolo-gia/equipamentos e as técnicas biomédicas da produçãode um trabalho de assistência. Com isto deixou de con-siderar a complexidade da atuação neste nível assistencial,em que patologias simples e demandas básicas envolvemtrabalho complexo, pois os cuidados são, em sua esferaprópria, também difíceis. Sobre o trabalho em saúde co-mo sendo sempre “ato difícil” por envolver em todos osníveis de atuação “julgamentos complexos e decisões ar-riscadas”, mesmo que mude a natureza do risco e dascomplexidades assistenciais, veja-se Schraiber (1997).

5 Note-se que dizemos cuidados e serviços a serem pro-duzidos na assistência à saúde, distinguindo esses ter-mos; queremos conotar que se todo cuidado prestado éuma produção de serviço, nem todo serviço produzidoé um cuidado, atenção e intervenção na forma indivi-dualizada de demanda e trabalho. Por outro lado, queproduzir/consumir serviços, em especial cuidados, se-ja visto como um bem a mais, no e do mercado, é cer-tamente uma forma conflitante de ver a questão da saú-de como parte do dever de proteção social do Estado, enão menos conflitante por referência à perspectiva de-mocratizadora da gestão à participação/controle popu-lar, o que apenas colocamos aqui como problemática aser melhor desenvolvida. Ela também incorre em con-flitos importantes na valorização do próprio trabalho ede seu profissional, problema que tem se tornado maisvisível para os médicos e em razão do crescimento dasorganizações empresariais do sistema supletivo de as-sistência, em especial no caso dos que atuavam em for-mas de produção tradicionalmente valorizadas, porexemplo o consultório particular, antes desse maciçomovimento de credenciamentos (Schraiber, 1997).

6 Especialmente relacionados a nosso campo valeria apena consultar, como produções nesta perspectiva maisconceitual e tendo por base referenciais diversos: Ayres(1995); Mendes-Gonçalves (1992;1994); Ribeiro (1995);Novaes (1996) e Dalmaso (1998).

7 O componente do processo de trabalho em que se rea-liza essa recriação, temos denominado, da perspectivade decisão/ação do profissional como sujeito da técnica,de autonomia técnica. Ao tomarmos, como linha de pes-quisa, o estudo acerca do cotidiano de trabalho, temospesquisado a noção de autonomia profissional exata-mente neste recorte, mostrando sua restrição no planomercantil, quando vende seus serviços em mercado, euma redisposição que atualiza o poder de controle daação no âmbito do julgamento e tomada de decisão as-sistencial, no atual trabalho altamente tecnológico. Ve-ja-se também Ribeiro (1995) e Peduzzi (1998).

8 Distinguimos, aqui, o conhecimento científico quefunda a técnica do saber prático da experiência profis-sional, do saber tecnológico que orienta a atividade dotrabalho (Schraiber, 1997). Ver a respeito também, Dal-

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rá possível vermos na prática política as buscas de se en-contrar formas estáveis de consecução de resultados sim-bólicos, mediante o recurso a saberes de operação de-terminados, tal como trabalhar imagens de candidatos acargos públicos por meio de técnicas de comunicaçãode massa. Pode-se perceber nessas tentativas, uma espé-cie de tecnocentrismo, ou tecnologização do agir, pormuitos colocado como o imperialismo dos meios (Gó-mez, 1990), por centrar a ação nos requerimentos datecnologia material e dissolver os fins éticos em recursostecnológicos de uma política tecnificada.

17 Retoma-se, aqui, a noção de autonomia técnica co-mo a capacidade, competência e autoridade de recria-ção no saber prático dos conhecimentos científicos pró-prios de cada profissão, bem como dos saberes operan-tes indicativos quando no contexto de sua prática, con-forme mencionado à nota 8.

18 O estudo analisa como o significado da informaçãoe seu registro, para médicos e gerentes, relaciona-se aosrespectivos processos de trabalho em saúde, examinan-do, empiricamente, situações diversas da assistência

ambulatorial: unidades básicas e ambulatórios especia-lizados. Uma aproximação, também da perspectiva doprocesso de trabalho, do sentido da informação e re-gistro para outros profissionais não médicos, em tra-balho de equipe, pode ser encontrada em Peduzzi(1998).

19 A operacionalidade é a medida da possibilidade dotrabalho realizar-se conforme a dinâmica processual es-tabelecida. Analisa, portanto, a operação do modelo deorganização do trabalho. A efetividade estratégica é amedida do alcance dos resultados estratégicos apreen-síveis nos usuários do serviço e/ou na população, atribuí-veis às ações realizadas e inicialmente previstos por ca-da um dos programas ou conjunto de atividades. Seusindicadores variam conforme o objeto do trabalho (Sa-la et al., 1998).

20 Não estamos aqui aludindo ao caráter de incertezapróprio do processo de trabalho médico em geral masà sobredeterminação desta incerteza técnica pela espe-cial articulação do trabalho na integralidade, que geradilemas de ordem diversa daquele do diagnóstico.

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