Download - por Angela Luzia Miranda
CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DO PARANÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TECNOLOGIA
DA NATUREZA DA TECNOLOGIA:
UMA ANÁLISE FILOSÓFICA SOBRE AS DIMENSÕES ONTOLÓGICA, EPISTEMOLÓGICA E AXIOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA
ANGELA LUZIA MIRANDA
Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Tecnologia, área de concentração: Tecnologia & Trabalho, pelo Programa de Pós-Graduação em Tecnologia do Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná. Orientador: Prof.º Dr. Domênico Costella. Co-orientador: Prof.º Dr. João Augusto Bastos.
CURITIBA 2002
ANGELA LUZIA MIRANDA
DA NATUREZA DA TECNOLOGIA:
UMA ANÁLISE FILOSÓFICA SOBRE AS DIMENSÕES ONTOLÓGICA, EPISTEMOLÓGICA E AXIOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA
Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Tecnologia, área de concentração: Tecnologia & Trabalho, pelo Programa de Pós-Graduação em Tecnologia do Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná. Orientador: Prof.º Dr. Domênico Costella. Co-orientador: Prof.º Dr. João Augusto Bastos.
CURITIBA 2002
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À Divina Providência (de quem falava Van Gogh) Aos meus pais, Cármina e Deolindo. E às mulheres silenciosamente guerreiras, especialmente, Mª Helena, Ivone, Lurdes, Fátima e Vera, minhas irmãs.
iv
AGRADECIMENTOS
Ao orientador,
Profº Drº Domênico Costella,
que, na condição de professor-colaborador do PPGTE,
generosamente aceitou comigo este desafio.
Agradeço-o ainda por ter me oportunizado uma outra chance de desfrutar de seus
conhecimentos filosóficos e competência acadêmica.
Ao co-orientador e idealizador do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia,
Profº Drº João Augusto Bastos
que, mesmo desfrutando de seus merecidos descansos e tendo se afastado das atividades
acadêmicas, ainda assim orientou-me com sua imensa sabedoria e bondade.
À coordenação do PPGTE, na pessoa da
Profª Drª Sonia Ana Leszczynski,
por todo apoio e amparo recebido.
Ao Profº Drº Domingos Leite Lima Filho,
que, mesmo não sabendo, em muito contribuiu para garantir
a continuidade e a credibilidade desta pesquisa.
À Lindamir Salete Casagrande,
pela assessoria administrativa competente e dedicada ao programa.
Ao Nivaldo,
meu irmão, pela comunhão de idéias e ideais.
v
vi
SUMÁRIO RESUMO...........................................................................................................................viii ABSTRACT......................................................................................................................... ix RESUMEN ........................................................................................................................... x INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 11 CAPÍTULO I: A DIMENSÃO ONTOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA ... 19
1 PREÂMBULO ............................................................................................................................ 19 2 TECNOLOGIA E VALORAÇÃO SOCIAL: POSICIONAMENTOS ................................. 23
3 CIÊNCIA, TÉCNICA E TECNOLOGIA: APROXIMAÇÕES E DIFERENCIAÇÕES.... 25
4 A GÊNESE DA TECNOLOGIA MODERNA......................................................................... 32
4.1 HEIDEGGER E A QUESTÃO DA ESSÊNCIA DA TÉCNICA ......................................... 32
4.2 MARX E A TECNOLOGIA COMO (RE) PRODUÇÃO DO CAPITAL............................ 39
4.3 TÉCNICA E CIÊNCIA COMO IDEOLOGIA: A CRÍTICA DA TEORIA CRÍTICA........ 44 5 POR UMA OUTRA ONTOLOGIA DE TECNOLOGIA....................................................... 48
6 SÍNTESE DA DIMENSÃO ONTOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA ................. 51
CAPÍTULO II: A DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA TECNOLOGIA
MODERNA ........................................................................................................................ 57
1 PREÂMBULO ............................................................................................................................ 57
2 EMPIRISMO E TECNOLOGIA MODERNA........................................................................ 61
3 CONHECIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLOGIA MODERNA..................................... 69
3.1 O PARADIGMA CIENTÍFICO DO CONHECIMENTO.................................................... 69
3.1.1 Aspectos Filosóficos da Revolução Científica Moderna.................................................... 69
3.1.2 Galileu, Descartes e Newton e a Visão Mecanicista .......................................................... 71
3.2 O MÉTODO CIENTÍFICO.................................................................................................. 77
4 A CRISE DO PARADIGMA CIENTÍFICO............................................................................ 79
4.1 INTRODUÇÃO AO PROBLEMA....................................................................................... 79
4.2 ASPECTOS HISTÓRICOS, SOCIOLÓGICOS E TEÓRICOS DA CRISE DO
PARADIGMA CIENTÍFICO................................................................................................ 81
4.3 ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS DA CRISE DO PARADIGMA
CIENTÍFICO ......................................................................................................................... 87
4.3.1 A Relação Parte e Todo (A noção do Especialista)............................................................ 87
4.3.2 A Noção do Físico e do Metafísico.................................................................................... 88
vii
4.3.3 A Noção de Objetividade do Conhecimento Científico ..................................................... 90
4.3.4 Causalidade e Generalização.............................................................................................. 92
4.3.5 Ordem, Desordem e Contradição ...................................................................................... 94
5 POR UMA OUTRA EPISTEMOLOGIA DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA................. 94
6 SÍNTESE DA DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA ...... 104
CAPÍTULO III: A DIMENSÃO AXIOLÓGICA DA TECNOLOGIA
MODERNA .......................................................................................................................109 1 PREÂMBULO .......................................................................................................................... 109 2 ÉTICA E TECNOLOGIA: ASPECTOS INTRODUTÓRIOS AO DISCURSO
AXIOLÓGICO DA TECNOLOGIA MODERNA................................................................ 111
2.1 CARACTERIZAÇÃO OU MODELOS DE ÉTICA .......................................................... 112
2.2 A EXCLUSÃO DA ÉTICA DO MUNDO CIENTÍFICO MODERNO ............................. 114
2.3 A DIMENSÃO SÓCIO-CULTURAL DA TECNOLOGIA OU PARA UMA
AXIOLOGIA DA TECNOLOGIA MODERNA ................................................................ 117
3 UTILITARISMO ÉTICO E TECNOLOGIA MODERNA.................................................. 120
3.1 A CORRENTE ÉTICA DO UTILITARISMO................................................................... 120
3.2 A RELAÇÃO ENTRE TECNOLOGIA E UTILITARISMO ÉTICO ................................ 125
3.3 O LEGADO DO UTILITARISMO PARA A ÉTICA MODERNA ................................... 128
4 POR UM OUTRO REFERENCIAL AXIOLÓGICO DE TECNOLOGIA........................ 130
5 SÍNTESE DA DIMENSÃO AXIOLÓGICA DATECNOLOGIA MODERNA.................. 138
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................................144 REFERÊNCIAS................................................................................................................153 BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR ..........................................................................160
viii
RESUMO Na modernidade (a partir do séc. XVI) a tecnologia sofre e propicia transformações sociais profundas, não podendo, pois, ser confundida com o mero estudo da técnica ou um simples conjunto de técnicas. Uma compreensão mais profunda deste fenômeno social exige uma reflexão mais que semântica ou histórica; exige, antes de tudo, uma reflexão filosófica sobre o caráter ontológico, epistemológico e axiológico da tecnologia moderna. Ou seja, trata-se de elaborar uma Filosofia da Tecnologia que implica, primeiramente, em identificar qual a gênese ou o “ser" da tecnologia (dimensão ontológica), para, em seguida, indagar a que conhecimento se refere a tecnologia (dimensão epistemológica) e, por fim, investigar o referencial ético que permeia a tecnologia (dimensão axiológica). O presente trabalho investiga exatamente estas três dimensões da tecnologia na modernidade, considerando que, em termos filosóficos, o empirismo, o conhecimento científico e o utilitarismo ético plasmaram a gênese da tecnologia moderna, em sentido ontológico, epistemológico e axiológico. Para tanto, esta pesquisa enfoca a posição de Heidegger, Marx e os teóricos da Escola de Frankfurt, sobretudo Habermas, em vista da análise da dimensão ontológica da tecnologia moderna; em se tratando da dimensão epistemológica, o referencial teórico prioriza o empirismo baconiano e os precursores da revolução científica moderna, especialmente, Galileu, Descartes e Newton e, sobre a dimensão axiológica da tecnologia moderna, o ponto de partida é o enfoque do utilitarismo ético, a partir de Bentham e Mill. Analisando criticamente as implicações e as interfaces desta constatação ante o mundo da tecnosfera no qual estamos inseridos, e, utilizando-se da posição crítica de teóricos, como: Boaventura Santos, Enrique Dussel, Hans Jonas, entre outros, este estudo aponta também para a possibilidade e a necessidade de conjecturar um outro entorno ou uma outra identidade para a tecnologia na atualidade, a partir das três dimensões referenciadas.
Palavras-chave: Tecnologia Moderna, Filosofia da Tecnologia, Filosofia da Ciência, Empirismo, Utilitarismo Ético.
ix
ABSTRACT
In Modern Age (after the 16th Century) as technology suffers and causes deep social changes, it can not be taked as a simple study of techniques or a simple collection of techniques. A deeper comprehension of that social phenomenon needs more than a semantic or historical reflection; it must be, mainly, a philosophical reflection about the ontological, epistemological and axiological character of modern technology. In other words, it is related to the elaboration of a Philosophy of Technology that implies, primarily, in identifying the genesis or the “being" of technology (ontological dimension). After that, asking which knowledge is related to technology (epistemological dimension). At last, investigating the ethical model which supports technology (axiological dimension). The present research investigates exactly these three dimensions of technology in Modern Age, considering that, in philosophical terms, Empiricism, scientific knowledge, and Ethical Utilitarianism have molded the genesis of modern technology, in ontological, epistemological, and axiological terms. For that purpose, this research focuses the position of Heidegger, Marx and the theoreticians of the School of Frankfurt, specially Habermas, regarding the analysis of the ontological dimension of modern technology. Regarding the epistemological dimension the theoretical model prioritizes the Baconian Empiricism and the precursors of Modern Scientific Revolution, specially, Galileu, Descartes and Newton. Regarding the axiological dimension of modern technology, the starting point is the Ethical Utilitarianism, after Bentham and Mill. A critical analysis of the implications and interfaces of this evidence in the world of technosphere in which we live, considering the critical position of authors, such as: Boaventura Santos, Enrique Dussel, Hans Jonas, among others, supports the present research which also points out to the possibility and the necessity of thinking another enviroment or another identity to technology nowadays, regarding the three mentioned dimensions. Key-words: Modern Technology, Philosophy of Technology, Philosophy of Science, Empiricism, Ethical Utilitarianism.
x
RESUMEN
En la modernidad (a partir del siglo XVI) la tecnología sufre y propicia tansformaciones sociales profundas, no pudiendo, pues, ser confundida con un simple estudio de la técnica o un simple cojunto de técnicas. Una compreensión mas profunda de este fenómeno sociale exige una reflexión mas que semántica o histórica, exige, antes de todo, una reflexión flosófica sobre el carácter ontológico, epistemológico y axiológico de la tecnología moderna. Ou sea, se trata de elaborar uma Filosofía de la Tecnología que, implica, primeramente, em identificar cual la génesis o el “ser” de la tecnología (dimensión ontológica), para, en seguida, indagar a que conocimiento se refere la tecnología (dimensión epistemológica) y, por fin, investigar el referencial ético que permea la tecnología (dimensión axiológica). El presente trabajo investiga exactamente estas tres dimensiones de la tecnología na modernidad, considerando que, en términos filosóficos, el empirismo, el conocimiento científico y el utilitarismo ético plasmaran la génesis de la tecnología moderna en sentido ontolológico, epistemológico y axiológico. Por lo tanto, esta pesquisa enfoca la posición de Heidegger, Marx y los teóricos de la Escuela de Frsnkfurt, sobre todo, Habermas, en vista del análisis de la dimensión ontológica de la tecnología moderna; tratándose de la dimensión epistemológica, el refencial teórico prioriza el empirismo baconiano y los teóricos da revolución científica moderna, como Galileo, Descartes y Newton, y, sobre la dimensión axiológica de la tecnología moderna, el punto de partida es el enfoque del utilitarismo ético, a partir de Bentham y Mill. Analisando criticamente las implicaciones y las interfaces de esta constatación ante el mundo de la tecnosfera en el cual estamos inseridos y se utilizando de la posición crítica de teóricos, como Boaventura Santos, Enrique Dussel, Hans Jonas, entre otros, este estudio apunta también para la possibilidad y la necessidad de conjecturar un otro entorno o una otra identidad para la tecnología en la actualidad, teniendo en vista las tres dimensiones referenciadas. Palabras-llave: Tecnología Moderna, Filosofía de la Tecnología, Filosofía de la Ciencia, Empirismo, Utilitarismo Ètico.
INTRODUÇÃO
Uma história critica da tecnologia demonstraria seguramente que nenhum invento do século XVIII foi obra de um único indivíduo. [...] A tecnologia revela o modo de proceder do homem para com a natureza, o processo imediato de produção de sua vida e assim elucida as condições de sua vida social e as concepções mentais que delas decorrem 1 Uma história crítica da poiética ou uma destruição da dita história é o mesmo. Se trata de demolir as interpretações vulgares, habituais, as tidas como evidentes.2
Na atualidade vivemos no mundo da tecnosfera. Isso significa dizer que a
tecnologia representa o modus vivendi da sociedade atual. Tal constatação não é difícil
perceber, basta olhar as coisas que estão a nossa volta. Tudo que materialmente nos
circunda diz respeito à tecnologia. Ela se tornou inerente à nossa condição de vida, à nossa
condição existencial de estar no mundo. Por isso, a concepção de que a tecnologia
compreende o “estudo da técnica” ou representa o “conjunto das técnicas” é insuficiente
para entender a complexidade deste fenômeno social na atualidade.
Na modernidade (a partir do séc. XVI), devido a fatores históricos, sociais,
culturais, econômicos, políticos (os quais serão aprofundados no decorrer da pesquisa), a
tecnologia sofre e propicia transformações sociais profundas. E, muito além de
simplesmente alterar padrões de comportamento, a tecnologia, a partir da modernidade,
contribui para alterar a relação do ser humano com o mundo que o cerca, implicando no
estabelecimento de uma outra cosmovisão, diferentemente daquela dos gregos ou dos
medievais. Daqui decorre o recorte temporal/histórico que se pretende empregar nesta
análise, qual seja, enfocar a tecnologia a partir do período moderno.
Entendemos que fatores históricos ocorridos a partir do séc. XVI, como: o advento
do empirismo inglês a partir de Bacon (em defesa de um conhecimento operativo e não
contemplativo); aliado às primeiras explicações matemáticas de Galileu acerca do
funcionamento do universo (base do conhecimento científico); o surgimento da visão
cartesiana (marco referencial da constituição do pensamento moderno); o nascimento do
utilitarismo ético desde Bentham (que enfatizava a validade da ação moral baseada nos
1 MARX, Karl. , O capital. Vol. 1, Tomo 1. São Paulo: DIFEL, 1982, p. 425, nota 89. 2 DUSSEL, Enrique D. Filosofía de la producción. Bogotá: Editorial Nueva América, 1994, p. 14.
(Tradução livre).
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seus resultados e na sua utilidade), todos foram fundamentais para a constituição da
tecnologia a partir do período moderno. A apresentação deste quadro panorâmico, bem
como as relações intrínsecas entre estes fatores que propiciaram a configuração da gênese
da tecnologia na modernidade, é o que se pretende demonstrar nesta pesquisa.
Por isso, consideramos que indagar sobre a natureza da tecnologia moderna implica
em avançar numa análise que é antes de tudo, filosófica. Eis a justificativa central desta
pesquisa. Heidegger mesmo dizia que a resposta sobre a essência da técnica não pode ser
técnica. E o recurso metodológico que apela para o sentido etimológico, ainda que levando
em conta a diferenciação conceitual e a arqueologia de termos, como “ciência”, “técnica” e
“tecnologia”, conforme apresentam muitos autores que tratam do assunto, não responde o
que é a tecnologia em sua totalidade. Julgamos que tal análise metodológica é
demasiadamente limitada para a compreensão da natureza da tecnologia diante da
complexidade a qual está revestida e de seu significado na sociedade atual. É por isso, que
o tema aqui será tratado como um problema filosófico. Ademais, consideramos um
“problema filosófico” aquilo que diz respeito a existência humana, vivenciada pela práxis,
isto é, pela condição do ser humano de estar no mundo. É neste contexto que, acreditamos
nós, estar inserida a tecnologia e é neste sentido que será investigada como objeto de
análise.
Encontramos na literatura moderna e atual o esforço de alguns pensadores em tratar
do assunto, ainda que de maneira tangencial. Marx, por exemplo, embora tenha tratado a
tecnologia dentro da ótica do modo de produção social, especialmente o modo de produção
capitalista, já no primeiro volume da sua mais famosa obra O capital, afirmava a
necessidade de se elaborar uma história crítica da tecnologia. História esta, afirmava ele,
que até o século XVIII, ainda não tinha sido objeto de investigação científica. Também
Heidegger se ocupou do tema a partir de uma análise fenomenológica sobre “a questão da
essência da técnica”, título de um dos seus principais escritos sobre o assunto, que será
tratada na primeira parte desta pesquisa. A Teoria Critica frankfurtiniana, procurou
elaborar uma análise sociológica da sociedade industrializada e conseqüentemente, a
tecnologia também se tornou objeto de sua crítica. Destacamos, sobretudo, a visão de visão
de Habermas para quem a ciência e a técnica é analisada como ideologia da sociedade
capitalista. Acrescenta-se aí também a leitura de Marcuse. Mais recentemente pensadores
como Dussel, através do que ele denomina “filosofia de la producción”, bem como
Boaventura Santos, através da análise sobre a crise epistemológica do paradigma
científico, têm se ocupado do assunto, ainda que de modo tangencial.
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No Brasil, destacamos dois pensadores do núcleo de pesquisa científica da USP,
que se ocuparam com o assunto. Ambos desenvolveram seus estudos muito mais
preocupados em descrever a história da técnica e da tecnologia (guardadas as devidas
proporções e diferenciações teóricas entre eles), do que necessariamente em produzir uma
filosofia da tecnologia. Trata-se de Ruy Gama e Milton Vargas, ambos engenheiros de
formação. O primeiro toma o tema da tecnologia a partir da perspectiva histórica, cujo eixo
central de análise é a relação entre tecnologia e trabalho, mas privilegia, ao enfocar
especificamente a natureza da tecnologia, o sentido etimológico e a análise arqueológica,
que, nesta pesquisa será observada como sendo insuficiente para atingir uma análise mais
profunda sobre o significado da tecnologia na modernidade, conforme já fora advertido o
leitor inicialmente. O segundo, prioriza uma análise factual e essencialista da tecnologia
que aqui será tomada como objeto de crítica, podendo ser observada em diversas passagens
de nossa pesquisa descritiva. Sobre Milton Vargas, vale lembrar que uma de suas obras
leva o título exatamente que sugere esta pesquisa. Estamos falando do livro Para uma
filosofia da tecnologia. Mas, consideramos que tal obra não reflete o nosso
posicionamento, posto que pretendemos dar um outro enfoque à questão. Ademais, ainda
sobre a referida obra, supomos que sua elaboração se deu muito mais por uma situação
circunstancial, de compilação de textos esparsos, escritos por Milton Vargas sobre o
assunto, do que necessariamente como sendo fruto de uma pesquisa sistemática e dirigida,
com vistas a alcançar especificamente este fim.
Ainda sobre o último autor acima referido, vale dizer que ele nos sugere sim a
leitura metodológica desta pesquisa. Ou seja, Milton Vargas considera que para fazer uma
filosofia da tecnologia, é necessário levar em conta três aspectos: o ontológico, o
epistemológico e o axiológico. O primeiro, diz respeito à gênese da tecnologia; trata-se de
aprofundar a sua essência; cabe indagar qual o “ser” da tecnologia. O aspecto
epistemológico implica em analisar qual o conhecimento que é subjacente à tecnologia. E o
aspecto axiológico diz respeito à valoração da tecnologia; diz respeito ao sentido ético da
tecnologia; significa atribuir-lhe valor, configurando qual o modelo ético que permeia a
sua ontologia.
Diante deste panorama que configura o estado da arte em que se encontra a
pesquisa acadêmica sobre a reflexão filosófica da tecnologia, entendemos que a temática
objeto desta dissertação faz jus à sua relevância acadêmica. E por estar inserida dentro de
um Programa de Pós-Graduação cujo tema é a Tecnologia, é possível afirmar que a
contribuição filosófica desta análise pode auxiliar numa elaboração posterior, não somente
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de outros filósofos, mas também impulsionar o estudo transdisciplinar de pesquisadores de
outras áreas a fim de aprofundar a complexidade da natureza da tecnologia.
Entendemos ainda que analisar, as implicações ontológicas, epistemológicas e
axiológicas da tecnologia moderna, significa identificar como se constituiu a natureza e
como se construiu a identidade da tecnologia a partir da modernidade. Mas, ao mesmo
tempo, implica também em conjecturar uma outra possibilidade de tecnologia; um outro
entorno, ou uma outra concepção de tecnologia. Ainda que numa esfera de “conjecturas”,
para usar a expressão de Popper, almejamos concluir esta pesquisa oferecendo e
propiciando este espaço de reflexão crítica. Nisso consiste o esforço que se pretende
empregar nesta dissertação. Por isso, elaborar uma filosofia da tecnologia é uma resposta
que a academia pode e deve dar à sociedade, por considerar um “problema filosófico”,
conforme fora salientado anteriormente.
Em nosso caso, o problema filosófico pode ser colocado nos seguintes termos: na
modernidade a tecnologia sofre e propicia transformações sociais profundas, não podendo,
pois, ser confundida com o mero estudo da técnica ou um simples conjunto de técnicas.
Uma compreensão mais profunda deste fenômeno social exige uma reflexão filosófica
sobre seu caráter ontológico, epistemológico e axiológico. Ou seja, trata-se de elaborar
uma Filosofia da Tecnologia que implica, primeiramente, em identificar qual a gênese ou o
“ser" da tecnologia (dimensão ontológica), para, em seguida, indagar a que conhecimento
se refere a tecnologia (dimensão epistemológica) e, por fim, investigar o referencial ético
que permeia à tecnologia moderna (dimensão axiológica). Em termos filosóficos é possível
considerar que o empirismo, o conhecimento científico e o utilitarismo ético plasmaram a
gênese da tecnologia moderna, em sentido ontológico, epistemológico e axiológico? Quais
as implicações desta constatação na elaboração da identidade da tecnologia moderna? É
possível conjecturar um outro entorno para a natureza da tecnologia em sentido ontológico,
epistemológico e ético? Quais são os fundamentos e as perspectivas desta possibilidade?
Disso decorre que nossa principal tese consiste em mostrar que o empirismo, o
conhecimento científico e o utilitarismo ético plasmaram a gênese da tecnologia moderna
em sentido ontológico, epistemológico e axiológico.
Portanto, nosso objetivo geral e principal é analisar a dimensão ontológica,
epistemológica e axiológica da tecnologia moderna, demonstrando que o empirismo, o
conhecimento científico e o utilitarismo ético constituem suas bases de sustentação
filosófica. A partir desta configuração sobre a natureza da tecnologia moderna e,
conjecturando a crise deste modelo paradigmático, contribuir para uma análise crítica,
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apontando para a possibilidade de um outro entorno, ou uma outra “natureza” para a
tecnologia.
Deste objetivo geral, pretendemos alcançar os seguintes objetivos específicos:
(1) Demonstrar que na modernidade, devido a fatores históricos, econômicos,
sociais, políticos, a tecnologia sofre e propicia transformações sociais profundas, passando
a significar mais que o “mero estudo da técnica” ou o “conjunto de técnicas”. E, que,
portanto, a análise meramente conceitual constitui um limite metodológico na identificação
da tecnologia moderna. A partir de então, identificar as principais características
norteadoras da dimensão ontológica da tecnologia a partir da modernidade, sobretudo
dentro da visão heideggeriana, marxista e frankfurtiniana, e, daqui, apontar para a
necessidade de constituir uma outra ontologia para a tecnologia na atualidade.
(2) Analisar a gênese da tecnologia moderna, demonstrando que o empirismo é a
corrente que filosoficamente sustenta a nova ontologia e epistemologia da tecnologia
surgida com a Modernidade. Demonstrar que além do empirismo, o conhecimento
produzido pela tecnologia moderna está embasado epistemologicamente no paradigma
científico, a partir da aliança entre ciência e técnica.
(2.a) Evidenciar os aspectos teóricos, sociais e epistemológicos da crise do
paradigma científico e suas implicações no âmbito da dimensão epistemológica da
tecnologia, para, então, conjecturar um outro entorno epistemológico para a tecnologia.
(3) Sustentar que, em sentido axiológico, a tecnologia moderna é permeada pelo
modelo de ética utilitarista, e que esta possui relação intrínseca com a sua configuração
ontológica e epistemológica, e, evidenciando a crise ética deste modelo paradigmático,
acenar para a possibilidade de construir uma nova dimensão axiológica para a tecnologia.
(4) Analisar as interfaces entre o empirismo, a crise do paradigma científico e o
utilitarismo ético e suas implicações no âmbito da tecnologia moderna e, tendo em vista
esta análise crítica, fundamentar a necessidade existencial, histórica, social e política de
conjecturar, ainda que enquanto possibilidade, uma outra identidade para a tecnologia na
atualidade novo entorno ontológico, epistemológico e axiológico para a tecnologia
Para tanto, utilizamo-nos das seguintes estratégias metodológicas:
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de natureza descritiva, cuja análise é de
conteúdo filosófico. Sua fundamentação filosófica é essencialmente bibliográfica, cuja
abordagem leva em conta duas categorias de análise metodológica, a saber, a complexidade
e a historicidade do objeto a ser investigado que é a tecnologia moderna.
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Sobre o aspecto qualitativo desta pesquisa, vale dizer que, tendo como objetivo a
análise filosófica da natureza da tecnologia moderna, nossa análise prioriza a descrição e a
avaliação do conteúdo já abordado por autores que tratam do tema, sobretudo no campo da
filosofia, sem, contudo, deixar de levar em conta a relação dinâmica entre o observador (a
autora desta pesquisa) e o observado. Portanto, nossa proposta não é somente a de
apresentar, a partir da pesquisa bibliográfica um rol de dados isolados, conectados
meramente por uma teoria explicativa, dissociável do sujeito-observador. O que queremos
é, enquanto sujeito-observador atribuir um significado próprio a partir da descrição do
objeto a ser investigado, considerando que aquele não é neutro em relação a este e vice-
versa.3
A primazia da análise filosófica tem em vista dois fatores. Primeiro, porque esta é a
formação da autora desta pesquisa, o que credencia e permite ficar mais à vontade para
debater o tema. E o segundo motivo e mais relevante é que a filosofia tem uma importância
capital e uma contribuição fundamental quando o assunto propõe a reflexão sobre a
natureza da tecnologia moderna. O que queremos dizer com isso é que o tema não deve ser
somente objeto de discussão de tecnólogos ou especialistas em ciências experimentais, já
que convencionalmente ele vem sempre atrelado ou restrito a estas áreas.
Entendemos que investigar a identidade, a gênese da tecnologia, sobretudo na
modernidade exige, acima de tudo, um conhecimento que leve em conta a Radicalidade do
problema, no sentido de ir à raiz da questão (do latim radice: ir à raiz), o que possibilita
evitar a priori posicionamentos superficiais e ingênuos sobre o que é a tecnologia; a
Criticidade, no sentido de colocar em crise ou em crivo a questão da tecnologia, o que
possibilita desconfiar das posições de caráter deterministas tão comum nesta discussão, e
um conhecimento que leve em conta a Totalidade do problema, o que possibilita ter uma
visão ampla e abrangente do contexto em que está inserida a tecnologia moderna. Eis
porquê o discurso é filosófico.
No entorno desta visão de totalidade do assunto está situada a categoria
metodológica da complexidade. Isto significa dizer que ao nosso posicionamento produzir
filosofia da tecnologia é antes de tudo, situá-la dentro de um contexto político, social,
econômico, cultural, etc. que compõe um todo complexo. Ou seja, a categoria da
complexidade nos obriga a pensar a tecnologia a partir da tecitura, da rede de relações que
3 Sobre a pesquisa qualitativa, cf. as seguintes obras: CHIZZOTTI, Antonio Pesquisa em ciências
humanas e sociais. São Paulo: Ed. Cortez, 1991, pp. 77-105; TRIVIÑOS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em Educação. São Paulo: Atlas, 1995, pp. 117-133; DEMO, Pedro. Introdução à metodologia da ciência. São Paulo: Atlas, 1983
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a envolve e não somente pensar a tecnologia dentro de uma visão departamental,
fragmentada, situando o tema num âmbito especificamente tecnicista. Compreender
filosoficamente a identidade da tecnologia moderna é situá-la na esfera das nossas
existências. E isto significa ir além do ambiente técnico ou especializado por excelência.
Significa atribuir-lhe um grau de importância que extrapola a mera decisão técnica, pois,
no âmago desta discussão existe a complexa questão filosófica da nossa condição
existencial de estar-no-mundo.
A outra categoria metodológica diz respeito à historicidade. Graças a ela efetuamos
o recorte histórico da discussão que propomos aqui. Ou seja, o que intentamos discutir é a
identidade ou a natureza da tecnologia na modernidade por considerar que a tecnologia
como fenômeno histórico não se constitui como único no decorrer de toda a história. Na
modernidade a tecnologia sofre e propicia transformações sociais profundas. Tais
transformações modificam, inclusive sua identidade. E a compreensão deste fenômeno
torna-se impossível pela análise meramente conceitual ou etimológica da tecnologia. Ela
exige uma análise histórica, contextual. Explicando por outros termos: é por utilizar a
historicidade como categoria de análise que pontuamos como premissa desta pesquisa que
a tecnologia em sentido ontológico, epistemológico e axiológico, não possui o mesmo
significado no decorrer de toda a história da civilização e que, na modernidade, ela adquire
características que lhe são peculiares, modificando, inclusive sua gênese e identidade.
Em síntese, sobre ambas as categorias, instrumentos de análise desta pesquisa,
diríamos que a historicidade permite-nos focalizar o tema na sua relação temporal,
enquanto que a categoria da complexidade permite-nos identificar o tema na sua relação
espacial.
Ainda sobre a metodologia por nós utilizada na elaboração deste trabalho vale dizer
que as dimensões: ontológica, epistemológica e axiológica da tecnologia moderna
(enunciadas já no teor do próprio tema desta dissertação), constituem, para efeitos desta
pesquisa, tanto um aspecto de conteúdo, como também indicam o caminho a ser percorrido
ao analisar filosoficamente a natureza da tecnologia moderna. Portanto, trata-se também de
um aspecto metodológico desta pesquisa. Aliás, em sentido metodológico (e somente
neste, posto que em termos de conteúdo nossa proposta em muito se afasta da visão de
Vargas) tomamos de empréstimo a proposta metodológica sugerida por Milton Vargas,
para quem analisar filosoficamente a tecnologia significa situá-la na sua dimensão
ontológica, epistemológica e axiológica. Seguindo, pois, de perto a recomendação do autor,
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os capítulos que compõem este trabalho sistematicamente seguem a seguinte pretensão
metodológica.
No Primeiro Capítulo a abordagem da tecnologia moderna refere-se à sua
dimensão ontológica. Buscando introduzir o assunto a partir da questão da essência e da
natureza da tecnologia moderna, a referência a autores como, Heidegger, Marx e os
teóricos da Escola de Frankfurt, sobretudo, Habermas, assim como também as
contribuições e críticas de Enrique Dussel são elementares para este propósito.
No Segundo Capítulo, o foco de análise é a dimensão epistemológica da
tecnologia moderna, no sentido de identificar qual conhecimento constitui a gênese da
tecnologia moderna. Aqui, em vista da questão-problema apontada no projeto inicial desta
pesquisa, conjecturamos que a visão empirista trazida por Bacon, no séc. XVI, e as bases
filosóficas e metodológicas do conhecimento científico, sugeridas por Galileu, Bruno,
Newton e atreladas à visão antropocêntrica de Descartes, são fundamentais para a
constituição epistemológica da tecnologia na modernidade. Acrescentamos a esta
compreensão a crise epistemológica do paradigma científico a qual postulamos existir hoje
como resultado deste modelo paradigmático de conhecimento forjado desde os
renascentistas. Para tanto, autores como, Rousseuau, Bachelard, Boventura de Souza
Santos, Edgar Morin, Fritjof Capra, entre outros, são imprescindíveis na elucidação desta
problemática.
O Terceiro Capítulo trata da dimensão axiológica da tecnologia moderna,
apontando que o utilitarismo ético constitui a base ética da tecnologia moderna. Autores
como Jeremy Bentham, S. Mill, considerados fundadores do utilitarismo ético moderno,
bem como as críticas ao utilitarismo de Dussel e Tughendat, auxiliam nesta exposição.
Desta constatação, vista sob uma perspectiva crítica, surge a necessidade de construir um
outro entorno axiológico para a tecnologia, sobretudo a partir da leitura de pensadores da
ética atual como K-O.Appel, H.Jonas, Habermas, Dussel, entre outros.
Nesta mesma direção estão situados os aspectos conclusivos desta pesquisa.
Reforçando a tese de que o empirismo, o conhecimento científico e o utilitarismo ético
constituem os pilares de sustentação em sentido ontológico, epistemológico e axiológico da
tecnologia moderna e apontando a necessidade de pensar um novo entorno para a
tecnologia na atualidade, a opção é pela continuidade da pesquisa, sobretudo, no sentido de
alargar o horizonte temático da Filosofia da Tecnologia na contemporaneidade.
19
CAPÍTULO I
A DIMENSÃO ONTOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA
Assim, pois, a essência da técnica também não é de modo algum algo técnico.4
1 PREÂMBULO
Qual é a gênese da tecnologia? Qual sua origem? Qual a sua identidade?
Tecnologia é o mesmo que técnica? No que ela se diferencia da ciência? Estas indagações
que, a princípio parecem simplistas e até impertinentes como propósito de uma pesquisa de
pós-graduação, são elementares para quem deseja se aventurar em conhecer historicamente
a tecnologia. Longe de ser uma preocupação de caráter meramente semântico, conceitual,
estas indagações nos remetem a um problema profundo e filosófico, que é a questão da
natureza da tecnologia.
Este primeiro capítulo pretende, então, fornecer uma reflexão, ainda que
introdutória sobre a identidade da tecnologia moderna.5 Trata-se de elucidar certos
aspectos ontológicos da tecnologia, sem os quais, torna-se inviável a discussão posterior
sobre a dimensão epistemológica e axiológica da tecnologia moderna. Ou seja, antes de
indagarmos sobre o conhecimento a que se refere a tecnologia, ou à sua dimensão ética,
necessário é identificar qual a sua essência. É somente a partir deste questionamento que
podemos compreender a natureza da tecnologia em suas diferentes interfaces ou em sua
complexidade como fenômeno social. A dimensão ontológica fornecerá, pois as bases para
a compreensão das outras dimensões da tecnologia moderna que aqui também serão objeto
de análise e investigação.
Conforme já fora dito inicialmente (na apresentação) a dimensão ontológica da
tecnologia diz respeito ao seu “ser” em sentido metafísico (do grego: τά µετά τά
ϕυσικ ά = o que está além da física)6. A ontologia é a ciência do ser enquanto ser.
4 HEIDEGGER, Martin, A questão da técnica. In: Cadernos de Tradução, n. 2, DF/USP, 1997, p.
42. 5 Parte do que aqui será apresentado fora exposto em comunicação apresentada pela autora desta
pesquisa. Cf. MIRANDA, Angela L. Da natureza da tecnologia: uma análise sobre a gênese da tecnologia moderna, In: Simpósio Internacional: Ciência e Tecnologia como Cultura e Desenvolvimento – Um Enfoque Histórico, 2001, São Paulo. Caderno de Resumos...CIHC/USP, Nov/2001, p. 10.
6 O termo metafísica foi introduzido por um aluno de Aristóteles, Andrônico de Rodes, no Séc. I a.C (Cf. LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 665)
20
Portanto, a análise ontológica da tecnologia implica em indagar qual o ser da tecnologia;
refere-se à sua gênese, à sua identidade, à sua essência.
No pensamento grego, prevalece a concepção ontológica de que a identidade já está
determinada na natureza de cada ser.7 Um ser será existencialmente aquilo que
previamente estiver contido na sua substância. Aristóteles se refere ao termo, do seguinte
modo: “A substância de cada coisa é a causa primeira do ser desta coisa. Algumas coisas
não são substanciais, porém aquelas que são tais são naturais e estão postas pela natureza, e
de tal maneira é claro que a substância é a natureza mesma e que não é elemento senão
princípio”.8 Então, conhecer a substância dos seres é poder distinguí-los dos demais seres;
é poder atribuir-lhe uma identidade própria. É, pois, pela substância que podemos afirmar
que “um ser não pode não ser”.9 Dessa visão, decorrem os princípios da lógica aristotélica,
como, o princípio da não-contradição, o princípio da identidade e o princípio do terceiro
excluído.
Bem mais tarde, Sartre, um dos precursores do existencialismo (corrente filosófica
predominante no séc. XX) vai inverter tal propositura. Diferentemente de Aristóteles, para
Sartre é a existência que precede a essência10. Ou seja, nós somos o que nossas
circunstâncias indicam. Dizia Ortega e Gasset que “eu sou eu e minhas circunstâncias”.
Portanto, Sartre, influenciado pela visão marxista e diante da visão de dialeticidade do real,
inverte a lógica aristotélica, considerando que a historicidade dos fenômenos é fator
indispensável para a constituição de seu ser.11 A essência, pois, não é algo imutável,
inalterável, mas, também ela, inclusive, se constitui pela existência do ser. Trata-se de uma
concepção aberta e não fechada de ontologia.
A esta altura deve o leitor estar se perguntado qual a relação desta discussão com a
questão da tecnologia. Responde-se dizendo: tudo. A inclusão desta reflexão introdutória
Em verdade, Aristóteles falava de uma prima philosophia para designar a ciência das causas primeiras. Já o termo ontologia foi introduzido por Christian Wolff, discípulo de Leibnitz, e consagrado por Heidegger para designar a nova ontologia moderna. Cf. também ABBAGNANO, Nicola, Diccionario de Filosofia, México: Fondo de la Cultura Econômica, 1996, pp. 793-799.
7 ABBAGNANO, op. cit., p. 794. 8 ARISTÒTELES, Metafísica, VII, 17, 1041b 27. Apud ABBAGNANO, op. cit., p. 795. (tradução
livre) 9 Em sentido inverso tal propositura pode ser exemplificada, considerando que um cachorro nunca
será, pois, um cavalo. Cf. os livros VII, VIII e IX da Metafísica de Aristóteles, citado por ABBAGNANO, op. cit., p. 795.
10 SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. In: OS PENSADORES. São Paulo: Nova Cultural, 1987, pp. 5 e 6.
11 Vale lembrar que o conceito de “historicidade” filosoficamente é introduzido por Hegel na época contemporânea, somente a partir do séc. XIX. Neste sentido, cf. as obras de HEGEL: Lições sobre a filosofia da história e Fenomenologia do espírito, citado por CORBESIER, Roland. Introdução à filosofia. Tomo I, 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasiliense, 1990, pp. 92 e 93.
21
torna-se mister diante da postura que aqui será adotada ao descrever o aspecto ontológico
da tecnologia. Dito de outro modo: ao tratar da essência da tecnologia, não se pretende dar
um enfoque determinista, imutável ou a-histórico sobre a tecnologia. Entende-se que a
tecnologia é um fenômeno social, circunscrita a partir de circunstâncias históricas de cada
época e, por isso mesmo, passível de identidade variável ao longo da história. Portanto,
compreender sua essência significa, inclusive, analisá-la tendo em vista uma perspectiva
conjuntural.
Nisso, justifica-se o recorte temporal que realizamos, pois, entendemos que na
modernidade, devido a fatores econômicos, políticos, sociais, culturais, etc, a tecnologia é
marcada por uma outra identidade que a difere da concepção grega ou medieval, por
exemplo. Esta é, pois, uma das conclusões deste primeiro capítulo. E é esta opção
metodológica de análise que nos credencia a descrever ontologicamente a tecnologia sem
correr o risco de cair em posições de caráter deterministas ou essencialistas, considerando a
tecnologia como um fenômeno único, inerente e intransponível ao ser humano no decorrer
de toda a história. Postura esta, aliás, que será rechaçada logo de início quando abordarmos
o aspecto etimológico e conceitual da tecnologia.
Compreender a identidade da tecnologia significa, então, circunscrever sua
necessidade e função social. Afinal, se a sociedade pode ser denominada de
“industrializada”, ou “pós-industrializada”, ou ainda “informatizada”, assim o é devido,
inclusive, ao fenômeno social da tecnologia. Consideramos ser de fundamental importância
na sociedade em que vivemos pensar sobre este prisma a tecnologia, pois, o mundo que
nos cerca é o da tecnosfera. Cibernética, automação, engenharia genética, computação
eletrônica, eis alguns dos ícones representativos da sociedade tecnológica que nos envolve
quotidianamente. Por isso, refletir sobre a natureza da tecnologia, implica em tomar
posição frente a ela, enquanto valoração deste fenômeno social.
Claro está que nossa pretensão não tem em vista o esgotamento do assunto, até
porque o tema não se nos apresenta de modo tão simples. A reflexão que propomos fazer
mais que uma conotação semântica, pretende ser filosófica; mais que arqueológica,
pretende ser contextual; mais que fenomenológica, pretende ser histórica. Aliás, mais que
histórica, pretende ser ontológica, posto que a tecnologia é, antes de tudo uma categoria
existencial, ou seja, é um fenômeno que diz respeito à condição existencial do homem de
estar-no-mundo. Nisto reside a complexidade do assunto. Mas, acreditamos, que este é
também o desafio, pois, aí está o cerne da questão.
22
Por causa da abordagem metodológica que privilegia a análise filosófica, a natureza
da tecnologia será estudada, tendo em vista a seguinte estruturação didática.
Com o propósito de introduzir o assunto e, a título provocativo, introdutório e não
de aprofundamento, destacamos alguns posicionamentos valorativos a respeito da função
social da tecnologia na atual sociedade em que vivemos. Tais posicionamentos foram
explicitados a fim de reforçar a tese de que a valoração ou a função social que atribuímos à
tecnologia está intrinsecamente relacionada com a concepção que temos dela. Ou seja, a
emissão de juízo que atribuo à tecnologia e seu papel na sociedade dependem do conceito
que tenho dela. Daí a importância capital em discutir a natureza deste fenômeno social.
De posse desta problematização que nos impulsiona a aprofundar o assunto,
adentramos propriamente no tema do primeiro capítulo, iniciando com alguns
esclarecimentos de caráter semântico sobre o uso de conceitos, como: ciência, técnica e
tecnologia. Aqui, enfocamos as aproximações e diferenciações conceituais destas
categorias, inclusive, demonstrando os equívocos conceituais mais comuns. Do mesmo
modo que também procuramos resgatar o sentido etimológico originário dado pelo berço
da filosofia grega. Essa análise introdutória, meramente semântica da tecnologia e de
categorias correlatas, será importante para esclarecer ao leitor dos limites desta opção
metodológica ao enfocar o assunto, a qual necessita, pois, do auxílio de uma outra
ferramenta que é a análise filosófica e contextual.
Por isso mesmo, num segundo momento, passamos a aprofundar especificamente a
gênese da tecnologia moderna, sob a perspectiva ontológica. Partimos da concepção
fenomenológica de Heidegger sobre a essência da técnica, que constitui, cremos nós, um
dos pensadores indispensáveis para a compreensão ontológica da tecnologia em nossa
época atual. Destacando suas principais idéias sobre a questão da técnica, observou-se o
empenho do filósofo em desmistificar os conceitos de caráter antropológico e instrumental
dado à técnica pelos contemporâneos. Mas aqui também pontuamos a insuficiência da
análise fenomenológica da tecnologia realizada por Heidegger
O próximo passo, então, foi buscar nos autores modernos uma análise da tecnologia
que privilegiasse o sentido histórico, concreto e dialético da tecnologia moderna.
Encontramo-la em Marx que concebe a tecnologia moderna a partir da produção do
capital.12 Então, para Marx, a tecnologia é o uso da ciência como força produtiva em vista
12Neste sentido justifica-se a inversão histórica por nós utilizada, quando da exposição da gênese da
tecnologia moderna (Cf. tópicos .4.1 e 4.2 deste capítulo). Como se observa, historicamente Marx é anterior a Heidegger. No entanto, a opção metodológica de iniciar o estudo da questão por Heidegger, tem em vista sua análise fenomenológica sobre o assunto, que constitui, em nosso entendimento, ponto de partida, mas não de
23
o maior lucro, ou seja, na modernidade a tecnologia surge da aliança entre o saber e o fazer
(ciência e técnica), com vista a maior produção. Ressaltamos a aliança entre ciência e
técnica, como condição sine qua non para o surgimento da tecnologia da forma como a
compreendemos hoje. Desta compreensão, adveio a necessidade de aprofundar a estreita
relação entre tecnologia e ciência na modernidade.
Tal exigência obrigou-nos a dar um outro passo: utilizando-se do contexto histórico
do séc. XVII, enfatizamos o caráter ideológico da aliança entre ciência e técnica, a partir da
visão dos teóricos da Escola de Frankfurt, sobretudo Habermas. Aqui fizemos menção à
Teoria Crítica da Escola de Frankfurt sobre a ciência e a técnica enquanto ideologia, que
tem na tecnologia a realização da fusão entre o conhecimento teórico (ciência) e
conhecimento prático (técnica).
De posse da construção deste referencial teórico sobre a gênese e a identidade da
tecnologia moderna, com base na análise heideggeriana, marxiana e frankfurtiniana, e,
seguindo a sistemática desta pesquisa, passamos a apontar os principais elementos para a
constituição de um “outro entorno” ontológico da tecnologia.
Por fim, a título conclusivo, enfatizamos os principais aspectos apontados neste
capítulo que indicam, segundo nosso critério, o norte para uma compreensão ontológica da
tecnologia na modernidade, em sentido crítico. Neste momento, iniciamos o embate teórico
com algumas concepções sobre o tema assinaladas no decorrer do trabalho, ao mesmo
tempo em que também reforçamos outras posições e vertentes de análise, transcritas no
decorrer do trabalho. Vale lembrar que nesta empreitada foram nossos interlocutores
principais: Heidegger, Marx, os teóricos da Escola de Frankfurt (sobretudo Habermas) Ruy
Gama e Milton Vargas. Além desses, constantemente buscamos auxílio através do
posicionamento crítico do filósofo latinoamericano Enrique Dussel.
Assim, assegurando nossa visão própria, justificamos a necessidade de aprofundar
ainda mais a natureza da tecnologia moderna a partir de seu aspecto epistemológico, objeto
de análise do capítulo próximo.
2. TECNOLOGIA E VALORAÇÃO SOCIAL: ALGUNS POSICIONAMENTOS
Como fora dito anteriormente, a discussão sobre o que é a tecnologia, fatalmente
nos conduz a um posicionamento valorativo frente a ela. E, porque vivemos no mundo da
chegada. A visão de dialeticidade e historicidade do real empregada por Marx, pode nos auxiliar, cremos nós, a dar um passo adiante na compreensão da identidade da tecnologia moderna.
24
tecnosfera, seja para negar, para confirmar ou para exaltar a tecnologia, muitos são os
autores que apresentam suas avaliações e posições a cerca da valoração social da
tecnologia. Assim, com o intuito de problematizar o assunto e julgando ser esta a melhor
opção didático-metodológica, optamos por iniciar a análise ontológica sobre a tecnologia,
apresentando alguns posicionamentos existentes atualmente na doutrina a respeito da
função social da tecnologia. Destacamos aqui, três desses diferentes posicionamentos,
classificando-os como sendo representativos respectivamente da corrente otimista, da
corrente pessimista e da corrente moderada.
O primeiro deles, refere-se a um dos pensadores mais importantes da atualidade a
refletir sobre a sociedade informática, que tem uma visão otimista sobre a tecnologia.
Trata-se de Adam Schaff, para quem
A sociedade informática proporcionará os pressupostos para uma vida humana mais feliz; eliminará aquilo que tem sido a principal fonte da má qualidade de vida das massas na ordenação do quotidiano: a miséria ou, pelo menos, a privação. Abrirá possibilidades para a plena auto-realização da personalidade humana, seja liberando o homem do árduo trabalho manual e do monótono e repetitivo trabalho intelectual, seja lhe oferecendo tempo livre necessário e um imenso progresso do conhecimento disponível, suficientes para garantir o desenvolvimento. Desse modo, o homem receberá tudo o que constitui o fundamento de uma vida mais feliz. Todo o restante dependerá dele, de sua atividade individual e social. 13 Na previsão de Schaff encontramos algumas idéias característica daqueles que
defendem incondicionalmente a tecnologia, inclusive nos moldes em que ela se encontra
hoje. Argumentos como: “garantia de bem-estar para o homem”; “desoneração do trabalho
pesado”; “necessidade básica para o progresso e o desenvolvimento”; “curso natural do
desenvolvimento e do progresso científico” são comuns nesta corrente.
Uma outra corrente se opõe frontalmente aos “otimistas”, porque considera que na
gênese da tecnologia está a destruição da vida e do planeta. Para os pessimistas, não há
que se falar sequer em possibilidade de reversão do quadro de destruição, a permanecer a
natureza da tecnologia tal como a concebemos hoje. Citemos a observação de Enguita:
A tecnologia continua sendo o resultado ‘natural’ da ciência em uma sociedade orientada pela busca do lucro empresarial. Sua aplicação é também, em certo sentido, inevitável, devido aos mercados competitivos. Seus efeitos, contudo, não são já positivos, mas negativos: ela destrói lugares de trabalho, condena os trabalhadores a empregos desqualificados, monótonos e rotineiros, induz ao consumismo, desumaniza as relações sociais e, enfim, nos conduz ao holocausto universal. Os trabalhadores, o movimento operário, a esquerda tradicional e o marxismo não souberam responder à civilização
13SCHAFF, Adam. A sociedade informática. São Paulo: Brasiliense, 1993 , p. 154 e 155.
25
produtivista que acompanha o mito do progresso [...]. O trabalho não será nunca reino de liberdade de forma que se torna necessário falar de uma cultura do ócio e do tempo livre.14
Relacionando com a noção de trabalho, esta corrente considera que a tecnologia é
um mal implacável, posto que trará consigo a eliminação do trabalho humano. Condição
esta, alegam, sobretudo, os marxistas, inerente ao processo de humanização do homem.
Ademais, dizem “os pessimistas”, a tecnologia orientada pelo lucro, existe em função da
maior produção, daí a robotização e, por fim, a destruição do homem.
Uma terceira via, prega a necessidade de repensar a direção dada à tecnologia hoje,
postulando que é necessário minimizar os riscos sem abdicar dos benefícios que a
tecnologia propicia a humanidade. Neste sentido, Kneller assinala:
O caminho mais sensato é almejar um progresso limitado e manter seus inevitáveis custos em nível mínimo. Alguma inovação tecnológica é essencial e desejável. Ela tem sido necessária à modernização de todas as sociedades, e habilitará a nossa a sobreviver e melhorar. O desenvolvimento de novas tecnologias deve ser encorajado e o treinamento de tecnólogos imaginativos promovido. [...] A tecnologia pode criar ou destruir, tornar o homem mais humano ou menos. Mas as civilizações, como os indivíduos, devem correr riscos se quiserem progredir. Se exercermos prudência para minimizar os danos da tecnologia e incentivar o máximo seus benefícios, certamente valerá a pena aceitar o risco.15 Como se observa, a posição dos “moderados” consiste em enfatizar um sistema
tecnológico capaz de se adequar a uma sociedade democrática mais humana. Ao apresentar
a obra de Ruy Gama, Engenho e tecnologia, Motoyama diz: “Por conseguinte, para a
materialização de uma sociedade democrática é insubstituível a evolução tecnológica
adequada às características humanas e regionais”.16
Como se vê, tais posicionamentos confrontam-se entre si. Disso decorre a primeira
observação importante e necessária para o escopo da análise que pretendemos empregar: o
significado, o valor e o papel que atribuímos à tecnologia na sociedade estão
intrinsecamente relacionados com a concepção que temos dela. Daí a importância capital
em discutir a natureza deste fenômeno social. Com o objetivo de aprofundar um pouco
mais o dito acima, começamos pela distinção entre ciência, técnica e tecnologia.
3 CIÊNCIA, TÉCNICA E TECNOLOGIA: APROXIMAÇÕES E DIFERENCIAÇÕES
14ENGUITA, Mariano F. Tecnologia e sociedade; a ideologia da racionalidade técnica, a
organização do trabalho e a educação. In: SILVA, Thomaz T. da. Trabalho, educação e prática social; por uma teoria da formação humana. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. p. 231.
15KNELLER, , G. F. A ciência como atividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. pp. 269 e 270.
16 GAMA, R. Engenho..., op. cit., p.11.
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Tendo em vista que o foco principal da análise aqui proposta é apontar algumas
reflexões sobre a gênese da tecnologia, inicialmente entendemos que é necessário fazer
algumas distinções entre ciência, técnica e tecnologia, visto que freqüentemente
encontramos referências que utilizam os termos como sinônimo, o que consideramos um
equívoco. É comum, por exemplo, confundir técnica com tecnologia; ciência com
tecnologia ou ciência e técnica.
Inicialmente explicitemos a distinção entre técnica e tecnologia. Para tanto, citemos
o sentido conceitual dos dois termos extraído do Dicionário das Ciências Sociais, citado
por Ruy Gama. Primeiramente o conceito de técnica, depois o de tecnologia:
Técnica: conjunto de regras práticas para fazer coisas determinadas, envolvendo habilidade do executor e transmitidas, verbalmente, pelo exemplo, no uso das mãos, dos instrumentos e ferramentas e das máquinas. Alarga-se freqüentemente o conceito para nele incluir o conjunto de processos de uma ciência, arte ou ofício, para obtenção de um resultado determinado com o melhor rendimento possível. Tecnologia: estudo ou conhecimento científico das operações técnicas ou da técnica. Compreende o estudo sistemático dos instrumentos, ferramentas e das máquinas empregadas nos diversos ramos da técnica, dos gestos e dos tempos de trabalho e dos custos, dos materiais e da energia empregada. A tecnologia implica na aplicação de métodos das ciências físicas e naturais [...].17
Como se verifica na primeira parte do conceito citado acima, a técnica compreende
essencialmente a noção do ‘fazer’, habilidade esta inata ao ser humano, utilizada na
resolução dos problemas fundamentais do homem. Portanto, ela é tão antiga, quanto à
própria linguagem e nasce da relação homem e natureza, em vista da sobrevivência
daquele.18 Já a tecnologia, conforme enseja a afirmativa acima, possui uma amplitude
maior, visto que abrange “o conhecimento científico das operações técnicas”.
E a ciência? No que ela se diferencia da técnica e da tecnologia? Em sentido
etimológico e genealógico, a ciência compreende o saber teórico, explicativo da realidade e
que envolve a natureza e a cultura como um todo. Portanto, a ciência enquanto forma de
conhecimento é mais abrangente que a tecnologia, pois, aquela é o pensamento organizado
racional (o “logos” grego) sobre o mundo, o real; enquanto que a tecnologia é o “logos” da
técnica em específico. Sobre a distinção entre ciência e técnica, é mister salientar que na
Grécia Antiga (séc. VI) havia uma clara diferença entre o saber teórico, contemplativo
17 BIROU, Alain. Dicionário das ciências sociais. Lisboa: Ed. D. Quixote, 1966, citado por
GAMA, Ruy. A tecnologia e o trabalho na história. São Paulo:Edusp, 1987, p. 30 e 31. 18 Esta noção de técnica, será severamente criticada por Heidegger, em seu ensaio sobre A questão
da técnica, o qual apresentamos mais adiante. Segundo Heidegger, trata-se de uma noção instrumental e antropológica de técnica que corresponde ao que é correto, mas não ao que é verdadeiro, sob o ponto de vista filosófico da essência da técnica (Cf. tópico 4.1 deste capítulo).
27
promovido pela ciência, do qual tinham acesso somente os filósofos, e o saber prático e
técnico, promovido pelos artesãos e acessível aos escravos.
Mas, esta distinção comumente encontrada na literatura que trata do assunto merece
ainda maior aprofundamento. Recuperemos, então, o sentido originário de técnica, dado
pelos gregos.
O historiador da filosofia Giovanne Reale esclarece que a palavra grega techné
(τέχνη) “implica, ao mesmo tempo, conhecimento do universal e aplicação prática, com a
predominância do primeiro sobre a segunda”.19 Portanto, o sentido de técnica empregado
pelos gregos diz respeito a um conhecimento universal aplicado à prática, donde o possuía
o artesão que, ao produzir um utensílio tinha a dimensão da totalidade do objeto produzido.
Esta distinção nos parece fundamental diante do propósito de nossa análise, pois, em
sentido moderno, a técnica passou a ser um conhecimento eminentemente prático e
específico: diz-se do conhecimento técnico aquele que é especializado. A predominância é
sempre da aplicação prática em detrimento ao conhecimento universal, ao contrário do que
propunha a civilização grega. Ademais, é por isso que se torna incorreto atribuir a palavra
techné o mesmo sentido de “arte” tal como conhecemos hoje. Neste sentido Reale alerta:
A palavra techné tem em grego uma extensão muito mais vasta que a nossa palavra ‘arte’. Com essa se pensa uma atividade profissional qualquer fundada sobre um saber especializado , isto é, não só a pintura, a escultura, a arquitetura e a música, mas também, e mais ainda, a arte sanitária, a arte da guerra e até mesmo a arte do piloto. E dado que a palavra exprime que tal consuetude e ou atividade prática não se apóia só sobre uma rotina, mas sobre regras gerais e sobre conhecimentos seguros, ela chega facilmente ao significado de ‘teoria’, significado que tem correntemente na filosofia de Platão e de Aristóteles, especialmente onde se trata de contrapô-la à pura empiria ou ‘prática’. Por outro lado, techné se distingue de epistéme, a ‘ciência pura’, enquanto a techné é pensada sempre a serviço de uma práxis.20 A “práxis” grega (πραξις), em sentido amplo, indica sempre “o agir e o fazer dos
homens, como atitudes distintas da contemplação”.21 Diferentemente da poiésis (ποιήσις)
que indica “produção”: uma ação que produz fora do sujeito, a práxis é a ação que parte do
sujeito e volta para o sujeito. Portanto, é uma ação moral.
Enrique Dussel, ao elaborar uma Filosofia de la producción, já na parte introdutória
de sua obra chama a atenção para o sentido da questão, quando diz:
Desde já devemos aclarar que prático vem do grego (πραξις: práxis) e indica a relação homem-homem; em especial a relação política, ou as relações sociais de produção.
19 REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. Vol. 1. São Paulo: Loyola, 1995, p. 250. 20 Id. Ibid. 21 REALE, op. cit., p. 211.
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Enquanto que poiésis e poiético vem de outra palavra grega (ποιήσις: fazer, produzir, fabricar) e indica a relação homem-natureza, em especial a relação tecnológica, ou todo o âmbito das forças produtivas, a divisão do trabalho, o processo de trabalho, etc.22
Mas há ainda outro esclarecimento sobre a técnica que aqui é mister expor. Trata-se
da relação entre phronesis e techné, a qual também se ocupou Aristóteles.
O VI livro da Ética a Nicômaco é consagrado à prudência (phronesis) que é a virtude da decisão certa e justa. Para determinar o que esta virtude tem de específico, o filósofo a comparava às virtudes intelectuais, à ciência, à arte (techne) , à sapiência, à inteligência intuitiva. A aproximação entre phronesis e techne se impõe de modo especial porque ambas pertencem à razão prática. Têm em comum que cada uma versa sobre “o que é que pode ser de outro modo”, qual é seu contingente, por oposição ao necessário, que é objeto da ciência propriamente dita. De resto, diferem-se a poiésis, a criação e a práxis, a ação ética. A techne se refere à primeira, phronesis à segunda.23 Nota-se, então, que para Aristóteles a técnica possui uma estreita vinculação com a
prudência. A técnica é a virtude mais puramente intelectual da prudência. Aristóteles fala
na techné como um “habitus poiético segundo a razão certa”; é a razão que dirige a
produção. Por isso, Cottier, prosseguindo na interpretação de Aristóteles, sobre a técnica,
esclarece:
Poiesis pode, em realidade, ser traduzida como produção, fazer, fabricação, criação. Os Latinos dirão ars factiva. A razão certa se refere àquela verdade prática que é a verdade técnica; esta tem competência sobre a forma e a medida que o produtor dá ao objeto produzido. De resto cada arte tem por objeto fazer vir qualquer coisa à existência (gênesis), e a explicação da arte consiste em descobrir (technazein e theorein) os meios (ou, o como) fazer vir à existência uma ou outra das coisas que possam ser ou não ser e, em cujo princípio reside no produtor e não na coisa produzida. Porque a arte não tem por objeto nem as coisas que são ou vêem à existência necessariamente, nem as coisas que são ou vêem a existência por natureza, do momento que aquelas coisas têm seus princípios nelas mesmas.24 Voltaremos a esta questão da técnica como a virtude de dirigir a razão certa, como
prudência, no capítulo sobre a dimensão epistemológica e axiológica da tecnologia. Por
enquanto, vale lembrar que para Aristóteles, a techné, enquanto poiésis, assim como a
phronesis compreendem ambas a parte da razão prática.
Prossigamos com o aclaramento dos termos, tratando agora da tecnologia.
Aristóteles, em seu tratado sobre Política, imaginava a seguinte situação:
Com efeito, se cada instrumento pudesse cumprir a sua função a uma ordem dada ou apenas prevista, conforme diz das estátuas de Dédalo ou das tripeças de Éfeso, as quais, a ouvir o poeta, “entram de próprio impulso na assembléia divina”, assim também se as
22 DUSSEL, Filosofía..., op. cit., p. 13. (Tradução livre). 23 COTTIER, Georges. Criteri di giudizio etico sulla tecnologia. In: BAUSOLA, Adriano et al.
Etica e transformazioni tecnologiche. Milano: Vita e Pensiero, 1987, p. 72.(tradução livre) 24 ARISTOTELES, Ética a Nicômaco. 1140a , 10-16. Ib. ibid. (tradução livre)
29
lançadeiras tecessem as toalhas por si mesmas e se as palhetas tocassem a cetra, os mestres artesãos não haveriam de precisar de subordinados, nem os patrões de escravos.25 Da situação utopicamente imaginada pelo filósofo que não acreditava poder existir
uma sociedade sem escravos, o que se viu foi a sua realização. A utopia tornou-se
realidade, quando passou a ser real a possibilidade da substituição do trabalho escravo pelo
desenvolvimento técnico, ou seja, através do instrumento que funciona direto por um
comando e que substitui o trabalho servil do homem. Então, agora, o instrumento passou a
significar mais que uma mera ferramenta, porque alberga em si a habilidade da arte, ou
seja, contém em si o conhecimento procedimental que antes pertencia ao homem. Nascia aí
o sentido de tecnologia.
Sobre o uso em sentido histórico do termo “tecnologia”, Ruy Gama alerta que
remonta às origens da civilização ocidental. E diz:
A palavra tecnologia não é nova; apesar das afirmações de que ela foi inventada no séc. XVIII, há fortes argumentos contrários. O Dicionário etimológico da língua portuguesa, de Antenor Nascentes dá como origem a palavra grega Technologia e o Dictionaire grec-français de A. Bailly dá para τεχνολσγια , ας o significado de “tratado ou dissertação de uma arte”. O importante é que Bailly assinala sua presença na obra de Cícero (106 – 43 a.C.), particularmente em Cartas a Alticus,26 Mas, o fato é que a tecnologia em sentido moderno está intrinsecamente
relacionada com a aliança entre ciência e técnica. Milton Vargas, por exemplo, esclarece
que a tecnologia é um fenômeno da modernidade27:
No início do século XVII, dois fatos cooperaram para o aparecimento da tecnologia como uma aproximação da técnica com a ciência moderna. O primeiro foi o aparecimento, na Europa, de uma crença de que tudo que pudesse ser feito pelo homem poderia sê-lo por intermédio de conhecimentos científicos. O segundo foi que a ciência experimental exigia, para seus experimentos, instrumentos de medida precisos que teriam que ser fabricados ou por cientistas com dotes artesanais ou por artesãos, informados pelas teorias científicas. Essa, sem dúvida, foi a origem da tecnologia como utilização das teorias científicas na solução de problemas técnicos [...] Os primeiros sucessos apareceram ao se explicar o funcionamento das máquinas a vapor por meio de teorias científicas para a construção de máquinas elétricas e confirmou-se com a eletrônica; não se sabe exatamente onde termina a ciência e começa a técnica.28
25 ARISTÓTELES, La Política. 1253b, 33 – 1244a , 1. Apud, COTTIER, op. cit., p. 76.(Tradução
livre) 26 GAMA, R. Engenho e tecnologia. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1983, p. 40. 27 Especificamente sobre este aspecto, ou seja, que a tecnologia é um fenômeno estritamente
moderno, vale lembrar que o posicionamento do autor será retomado como objeto de crítica nos aspectos conclusivos deste capítulo (pp. 30 e ss).
28 VARGAS, M. Dupla transferência; o caso da mecânica dos solos. Revista USP. São Paulo, n. 7, p. 3-12, 1990. Apud RIBEIRO DE SOUZA, Sonia Maria. Um outro olhar. São Paulo: FTD, 1995, p. 229. Semelhante posição adota o autor ao discorrer sobre “Tecnologia, técnica e ciência”, in GAMA, Ruy (Org.) Ciência e técnica (ontologia de textos históricos). São Paulo: T. A. Queiroz, Editor, 1984, p. 14 e VARGAS, Milton. Metodologia da pesquisa tecnológica. Rio de janeiro: Globo, 1985, p. 13 e ss.
30
A constatação do referido autor sobre o surgimento da tecnologia evidencia
claramente que a tecnologia, em sentido moderno, não pode ser entendida simplesmente
como o estudo da técnica. É mais que isso: a tecnologia implica “na utilização das teorias
científicas na solução de problemas técnicos”.
Para ele, a tecnologia está intrinsecamente relacionada com a aliança entre ciência e
técnica. Portanto, é da aliança entre o saber técnico e o saber científico, a partir da era
moderna, parceria esta inevitável pela visão empirista da ciência e pelo surgimento da
sociedade capitalista, solidificada no processo da Revolução Industrial, que surgirá o
conceito de tecnologia tal como compreendemos hoje.
Sobre o uso do termo a partir da era moderna, em que está explícito a preocupação
de aliar Teoria e Prática, citam-se alguns exemplos extraídos da pesquisa realizada também
por Ruy Gama.
O termo em si foi cunhado pelo alemão Johann Beckmann (1739-1811) que era
professor de Ciências econômicas de Göttingen. Ele se dedicava a explanação científica
das artes dos técnicos e artesãos.29 Nos Estados Unidos, o termo “technology” foi usado
em 1829 por Jacob Bigelon, que, nas suas conferências referia-se ao termo como
“aplicação da ciência às artes úteis” 30. Em 1861, com a fundação do MIT (Massachussets
Institute de Technology) o projeto previa claramente a necessidade de um conhecimento
voltado às finalidades práticas, ao invés de um saber “puro”, meramente teórico.31 A École
Polytechnique, criada na França em 1794, visava, entre outros objetivos, a reunião entre a
teoria e a prática. Os dizeres de um dos pioneiros da criação deste instituto, Gaspar Monge,
expresso logo no prefácio da sua obra Geometria Descritiva, citado por Gama, ilustra a
proposta da escola:
Para tirar a Nação Francesa da condição de dependência da indústria estrangeira em que está mergulhada até o momento, é preciso, em primeiro lugar, estabelecer a instrução baseada no conhecimento dos objetos, para o que é necessário ter precisão – o que até o presente está abandonada – e educar as mãos de nossos técnicos especialistas no manejo dos instrumentos. (grifo nosso)32 Também em Portugal, o uso do termo usado por José Bonifácio, talvez pela
primeira vez naquele país, enfatizava a necessidade de “eliminar a oposição entre teoria e
29 GAMA, Engenho..., op. cit., p. 9. 30 GAMA, Engenho..., op. cit., p. 50. 31 GAMA, R. História.da técnica e da tecnologia. São Paulo, 1985, p. 10 e 11. 32 GAMA, Engenho..., op. cit., p. 42
31
prática”. Um senhor de engenho no séc. XIX aqui no Brasil escrevia “com veemência
sobre o uso da ciência para finalidades práticas”.33
Como se vê , todas as situações acima descritas, ainda que geograficamente e
historicamente narradas de maneira isolada e factual, apontam para a mesma necessidade,
qual seja: unir o conhecimento teórico (especialmente dos cientistas) ao conhecimento
prático (sobretudo dos técnicos). Tal necessidade não acontece por acaso ou
aleatoriamente; ela é fruto de um projeto político, econômico, social, enfim de uma nova
cosmovisão, o qual está sendo engendrado neste período: trata-se do surgimento da
sociedade capitalista. Em sentido filosófico , a justificativa de aliar o conhecimento teórico
e o prático, pode ser explicada através do empirismo. Corrente filosófica esta que se
constitui um dos pilares da dimensão epistemológica na modernidade, conforme veremos
no próximo capítulo.
Contudo, também o conceito em sentido etimológico, meramente semântico não é
suficiente para atingir o propósito deste trabalho, posto que entendemos que não existe
significado fora de seu contexto, pois, todo conceito necessariamente nasce de uma
determinada conjuntura e se transforma a partir de outros novos contextos. É por isso,
inclusive, que optamos pelo uso do termo conceito e não definição. O sentido de definição
fecha o significado sob o ponto de vista da dinamicidade da história, o que não é nossa
posição. Portanto, necessário é indagar sobre qual contexto estamos nos referindo à
técnica, à tecnologia e à própria ciência.
Uma demonstração clara de que o conceito sofre variações de acordo com a
dinamicidade da história reside na própria passagem do dicionário da Oxford (The Oxford
English Dictionary), editado em 1895 e 1900, para quem “[...] o sentido que se aproxima
do grego τεχνολσγια registrado em 1683, é dado como obsoleto, em desuso no inglês
moderno”34. Como se percebe, o sentido de tecnologia a partir do séc. XIX não é o mesmo
que o registrado até o séc. XVII.
Assim, entendemos que dar igual significado à tecnologia antes e depois da era
moderna parece-nos um equívoco, posto que, com as transformações advindas, sobretudo,
da ciência na modernidade a tecnologia passou a significar mais que o mero estudo sobre a
técnica. Neste sentido alude Medeiros e Medeiros35 que a tecnologia possui significado
33 GAMA, História...., op. cit., p. 11 34 GAMA, R. Engenho e tecnologia. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1983, p.40 35 MEDEIROS e MEDEIROS. O que é tecnologia. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 7 e ss.
32
próprio por ser uma versão mais elaborada da técnica; ela não pode ser confundida com os
produtos que ajuda fabricar.
Ademais, além do aspecto histórico que se deve levar em conta, insistimos que o
perigo dos métodos de estudo que privilegiam a análise semântica meramente conceitual,
advém do fato de desconsiderar o aspecto filosófico que permeia a complexa questão da
tecnologia. E, corroborando com a tese de Laruelle, acrescentamos:
Uma análise filosófica da “tecnologia” e da ‘técnica” não se reduz ao inventário lexical e semântico destas palavras e de suas definições. Mas ela não pode evitá-lo e deve passar, deles se servindo como de um material, por esses jogos polissêmicos, deslizamentos, derrapagens, sobredeterminações de sentido e sedimentações de usos. Eis aí toda uma história e mesmo toda uma filosofia.36 Portanto, um procedimento mais rigoroso sobre o que é tecnologia enfocaria as
definições que comumente encontramos na literatura como sendo simples materiais a
serem utilizados como ponto de partida e não de chegada. Nisso reside o trato filosófico da
questão, pois, uma análise mais profunda sobre a natureza da tecnologia exige uma
reflexão a priori sobre o fenômeno, que não se confunde com a realidade objetiva, dada
pelas máquinas, nem com as representações psicológicas, históricas ou sociológicas dadas
por estas, ao contrário, precede a elas. Também não se confunde com as definições dado
como normais, mas que não são reais. Ou seja, uma análise mais rigorosa sobre o assunto
deve levar em conta o “teor eidético”, ou o “teor de sentido destes fenômenos” 37, que é
adquirido antes de toda experiência técnica. Por isso, é a priori e, dela, deve-se ocupar a
filosofia.
A fim de esclarecer melhor o que queremos dizer, situemos então, histórica e
filosoficamente a gênese e a identidade da tecnologia moderna, a partir da análise de três
grandes pensadores que se ocuparam do tema neste período. Estamos nos referindo
especificamente a Heidegger, a Marx e a Escola de Frankfurt (sobretudo, Habermas).
4 A GÊNESE DA TECNOLOGIA MODERNA
4.1 Heidegger e a Questão da Essência da Técnica
36 LARUELLE. François. Para o conceito de não tecnologia. In: SEILER, Achin et al. Tecnociência
e cultura: ensaio sobre o tempo presente. São Paulo: Estação Liberdade, s/d, p. 209. 37 LARUELLE, op. cit., p. 212.
33
Certamente o pensamento de Heidegger constitui o marco referencial para aqueles
que desejam se aventurar em discutir o significado da tecnologia, sobretudo, a partir da
modernidade. Através de uma brilhante conferência, proferida em 1953, em Munique,
intitulada A questão da técnica38, Heidegger lança as bases filosóficas sobre a essência da
técnica em sentido moderno que, para efeito de nossa avaliação e tendo em vista o objetivo
deste trabalho, tornam-se imprescindíveis traduzi-los aqui.39
Heidegger introduz o tema, esclarecendo que “a técnica não é a mesma coisa que a
essência da técnica”.40 Com isso, ele considera que a resposta sobre a questão da técnica
não é uma resposta técnica, mas ela é antes de tudo, filosófica. Assim ele argumenta:
quando procuramos a essência de uma árvore não encontramos na árvore. A essência
transcende o ser em si concreto. Logo, a essência da técnica não é de modo algum algo
técnico. Então, nunca chegaremos a identificar o que é a técnica, falando do que é técnico,
ou referindo-se aos aparatos técnicos.
Uma outra consideração importante é que para Heidegger, somente chegaremos a
ter uma relação livre com a técnica se questionarmos a técnica. Exercício este a que
Heidegger se propõe a realizar e que também é o nosso. Longe daqueles comportamentos
que se entregam à técnica, sobretudo por considerá-la neutra e que, por isso,
apaixonadamente a defendem, ou por aqueles que de modo fictício negam sua existência,
esquecendo a própria factibilidade deste fenômeno, o exercício livre de pensar sobre a
técnica implica em tomá-la como objeto, portanto, existente, materialmente falando, e, a
partir daí estabelecer o pensar livre sobre a técnica.
Também outra consideração que compõe a base do pensamento de Heidegger, e
que é, sem dúvida, a mais importante para a nossa pesquisa, diz respeito ao significado
38 HEIDEGGER op. cit. O original consta da obra em alemão, intitulada Die frage nach der technik.. 39Ao descrever a biografia de Heidegger, Safranski lembra que a conferência sobre A questão da
técnica não é um avanço isolado neste terreno. Heidegger toma a palavra num debate que já estava acontecendo na Europa, sobretudo, com o desconforto do mundo pós-guerra diante da técnica e da necessidade de discutir a relação entre política e tecnologia. Neste cenário, figuravam tanto os apologéticos, quanto os críticos da tecnologia. Por exemplo, do lado dos críticos, encontramos as manifestações em homenagem a Kafka, um homem horrorizado com o “poder do mundo coisificado”; a análise profética de Huxley em Admirável mundo novo; a obra de Weber, O terceiro ou o quarto homem, em que ele descreve o horror de uma civilização técnica e a visão de Friedrich Jünger, para quem a técnica não é só um meio, mas um modo de vida. Do lado dos anticríticos da crítica, figuravam posições, como: o “mal” não reside na técnica, mas no ser humano; “é preciso evitar a demonização da técnica, e em troca analisar melhor a técnica da demonização”, descrevia um artigo publicado no Monat, e que também era a posição de Max Bense. Além desses, vale lembrar ainda que o físico Heisenberg, bem como o filósofo José Ortega y Gasset (com a publicação de sua obra Meditações sobre a técnica) também participavam deste contexto. Ambos, inclusive, faziam-se presentes na referida conferência de Heidegger, a qual fora, “talvez o maior sucesso público de Heidegger na Alemanha do pós-guerra”. Cf. SAFRANSKI, Rüdiger, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. São Paulo: Geração Editorial, 2000, pp. 455-472.
40HEIDEGGER, op. cit., p. 41.
34
instrumental e antropológico atribuído à técnica com o advento da era moderna. Heidegger
coloca em crise tal concepção e o faz a partir da seguinte análise.
Parafraseando os filósofos clássicos da Antigüidade, Heidegger esclarece que “a
essência de algo vale pelo que algo é”41. Assim, se eu digo que a técnica “é um meio para
fins”, ou que “é um fazer do homem”, estou conferindo à técnica uma determinação
instrumental e antropológica. Esta é a definição moderna de técnica, que segundo
Heidegger, é uma concepção instrumental de técnica, baseada na idéia de “fazer” e de
“meio”. É esta visão moderna de técnica que será exaustivamente questionada por
Heidegger: mesmo sendo tal concepção correta, argumenta o filósofo, ela pode não ser
verdadeira. O correto nem sempre é sinônimo de verdadeiro, pois, aquele pode ocultar a
essência de algo, ou seja, daquilo que é verdadeiro. E acrescenta: somente o que é
verdadeiro nos leva a uma relação livre com o que nos toca a partir de sua essência. Disso
conclui-se que a correta denominação instrumental de técnica não nos revela ainda sua
essência.
Então, para se chegar à descoberta do que é verdadeiro, o caminho a ser percorrido
é o da causalidade dos fenômenos, sugere Heidegger. Para Aristóteles, todo ser se constitui
a partir de quatro diferentes causas, a saber: a causa materialis, que indica do que algo é
feito, refere-se à sua materialidade; a causa formalis, que se refere à forma/figura dada à
matéria; a causa efficiens que indica os efeitos produzidos pelo ser e a causa finalis que
revela a intenção ou finalidade das coisas42. Entretanto, constata Heidegger, que “há muito
tempo temos o costume de representar as causas como o que opera efeito. Efetuar significa
então: visar resultados, efeitos. A causa efficiens, uma das quatro causas, determina de
modo exemplar toda causalidade. Isso vai tão longe que em geral nem mais se considera a
causa finalis, a finalidade como causalidade.43 Assim, quando afirmamos que a técnica é
“um meio para fins”, estamos considerando apenas a determinação instrumental da técnica
e simplesmente reconhecendo nela um tipo de causalidade, qual seja: a causalidade
eficiente.
Para Heidegger, os quatro modos de causalidade são “comprometidos” entre si e
não se realizam separadamente. E somente os quatro modos de comprometimento fazem
41HEIDEGGER, op. cit., p. 43. 42 A título de ilustração, Heidegger utiliza o exemplo da taça: feita de prata (causa material); em
forma oval (causa formal); pelo escultor (causa eficiente); para servir vinho (causa final). Cf. HEIDEGGER, op. cit., p. 45.
43 HEIDEGGER, p. 47. Este aspecto da causalidade será retomado no próximo capítulo, quando analisarmos o conhecimento científico e a causa final.
35
com que algo apareça.44 A causalidade é o modo de deixar apresentar a coisa. Utilizando-
se do conceito de Platão (Banquete 205 b) sobre poiésis (como todo fazer-chegar à
presença, que passa do não-presente à presença, por meio da produção), Heidegger
esclarece que é através da produção que algo se torna des-velado, aparecido. A isso
chamamos de verdade: é a descoberta de algo; é o “des-abrigar”, no sentido heideggeriano.
Aplicando este conceito de verdade à questão da técnica, diremos, então, que a técnica não
é só um meio, portanto não é meramente um instrumento; “é um modo de desabrigar”,
porque atua no seio do produzir. “O produzir leva do ocultamento para o descobrimento”,
afirma Heidegger.45Portanto, “todo tipo de pro-duzir seria, neste caso, um modo de des-
velamento, um modo da techné que manifesta a verdade”.46
Mas, o desabrigar da técnica moderna possui um sentido diferente daquele
empregado pelos gregos. A técnica moderna “repousa na ciência exata da natureza”47. Por
isso, ela é incomparável com outras técnicas anteriores. Ela é mais que a simples técnica
manual, e o “desabrigar” da técnica moderna assenta num “desafiar”, observa Heidegger.
O desafio consiste em exigir da natureza aquilo que lhe é suscetível de oferecimento ao
homem. Não se trata simplesmente de guardar e cuidar.
Heidegger utiliza o exemplo do camponês: se, antes, seu esforço consistia em
preparar a terra para plantar e colher, no modo de exigir e desafiar da técnica moderna, a
ação do camponês, agora é outra, porque sua exigência para com a natureza também é
outra. Não se trata somente de pôr a semente no solo, e sim desafiar a natureza no sentido
de extrair dela o máximo de proveito e o mínimo de despesas. O campo não é somente o
lugar de guardar a semente; “o campo é agora uma indústria de alimentação motorizada”.48
Portanto, mais que extrair, a intenção e o desafio da técnica moderna é explorar, armazenar
(stock).
Disso decorre que o significado das coisas existentes a priori se altera com a
intervenção humana pela técnica. Um rio que abriga uma hidroelétrica, deixa de ser ele
mesmo e passa a constituir outro significado. Como rio ele é agora a essência da central
elétrica: o rio que tem a pressão da água. Em verdade, não é o rio que abriga a
hidroelétrica, mas é o rio que está construído na central hidroelétrica; a sua existência vale
pela energia que produz e não por ser ele mesmo o rio.
44 HEIDEGGER, op. cit., p. 54. 45 HEIDEGGER, op. cit., p. 53. 46 DUSSEL, Filosofía...,op. cit., p. 66. (Tradução livre) 47 HEIDEGGER, op. cit., p. 57. 48 Id. Ibid.
36
A técnica é um desabrigar que desafia exatamente por isso: seu descobrimento é
um “pôr desafiante”. Situação em que Heidegger designa “subsistência”: “ela significa
nada menos do que o modo pelo qual tudo o que é tocado pelo desabrigar desafiante se
essencializa”.49 Através do conceito de subsistência Heidegger argumenta que mesmo uma
máquina não é um instrumento autônomo (contrariando a posição de Hegel, para quem a
máquina possui autonomia)50, pois, ela só existe em função de algo; disso depende sua
essência. Nisto consiste a subsistência.
Obviamente que o “pôr que desafia” será efetuado pelo ser humano. Este, na visão
heideggeriana, não é uma mera “subsistência”, posto que ele cultiva a técnica. Mas
também para Heidegger o “desabrigar”, isto é, o desvelamento da verdade pela técnica não
é um mero “fazer humano”.
Há “uma invocação desafiadora que reúne o homem a requerer o que se descobre
enquanto subsistência”,51 o qual Heidegger denomina Ge-stell, que pode ser entendida
como estruturação, invenção, criação. Não se trata de uma simples armação. Pois esta
indica montagem, estrutura, camadas ou suportes. Porém, “a armação” aqui é entendida
como “aquele pôr que o homem põe, isto é, desafia para desocultar a realidade no modo de
requerer enquanto subsistência”.52 Portanto, trata-se de uma estruturação inventiva, í.é. no
bojo da questão do desvelamento da verdade pela técnica reside a criação inventiva, que é
o modo de desabrigar característico da essência da técnica moderna. Nela, não há nada de
técnico, nada de maquinal. Daí Heidegger esclarece que a estruturação inventiva não é
“nem um fazer humano, nem um mero meio no seio de tal fazer”.53
Contudo, mesmo sendo “a armação” a essência da técnica moderna, ela não
surge com o advento desta. De fato, a manifestação da técnica moderna só vai ocorrer dois
séculos após a constituição da sua essência. Pois, para Heidegger a armação, enquanto
descobrimento que desabriga o real, corresponde à postura requerente do homem em tornar
a natureza matematizada. Isso ocorreu no séc. XVII, com o advento da moderna ciência da
natureza, sobretudo através da física experimental. Por meio da representação que põe a
49 HEIDEGGER, op. cit., p. 61. 50 Cf. p. 61 da referida obra. 51 HEIDEGGER, op. cit,. p. 65.. cit., p. 69. 52 HEIDEGGER, op. cit., p. 67. Sobre a tradução do termo Ge-stell, ainda que utilizamos
literalmente a tradução da obra consultada, a qual traduz por “armação”, entendemos que o termo germânico não encerra este sentido. A idéia de “estruturação”, “invenção”, “criação”, parece-nos ser mais coerente. Dussel esclarece ainda que o filósofo atribui-lhe um sentido diferente dos antigos, dando-lhe um significado próximo à “racionalização”, que tem o sentido de “pedir contas”, “exigir sua razão de ser”. Cf. Dussel, Filosofía..., op. cit., p 69.
53 Id. Ibid.
37
natureza como um complexo de forças passíveis de cálculo, a física moderna propiciou o
aparecimento não da técnica, mas da sua essência. O filósofo, esclarece ainda que
a física moderna não é, por isso, experimental porque coloca em ação aparelhos para questionar a natureza, pelo contrário: porque a física põe a natureza como pura teoria, para que ela se exponha como um contexto de forças previamente passível de ser calculado, por isso o experimento é requerido, a saber, para questionar se a natureza assim posta se anuncia e como ela se anuncia.54 Desta análise histórica, Heidegger conclui que a essência (e não é só a essência da
técnica), sempre permanece oculta por mais tempo; ela é anterior ao aparecimento do
fenômeno. Assim, se as máquinas constituem a materialização da técnica moderna, a partir
do séc. XVIII, a constituição de sua essência, já está sendo “armada” com a moderna
ciência da natureza há, pelo menos, dois séculos antes. Parafraseando os gregos e
utilizando-se de um recurso metafórico, Heidegger, observa que o fenômeno do florescer
torna-se manifesto a nós naquilo que lhe é essencial, somente mais tarde. E acrescenta:
“Aos homens, a madrugada inicial, se mostra apenas no final”.55 Então, a concepção de
que a técnica moderna é uma ciência da natureza aplicada é enganadora, posto que, se a
essência da técnica consiste na armação (que, para tal, utiliza-se da ciência exata da
natureza), ela nada tem de técnico, maquinal, conforme demonstrou Heidegger em
princípio.
Recapitulando a tese central sobre a questão da técnica apresentada por Heidegger
até aqui, diríamos que a essência da técnica moderna se anuncia naquilo que se denomina
“armação”, que consiste na postura requerente do homem. Nela ocorre o “descobrimento”,
que “desabriga” o real enquanto “subsistência”. Mas, em que consiste a posição do homem
neste processo? Em outras palavras: qual é o seu lugar na questão da técnica?
Passemos,agora, a enfocá-lo.
Segundo Heidegger, o homem está situado no âmbito essencial da armação. Mas é
bom esclarecer que sendo a armação o modo pelo qual a realidade se desabriga como
subsistência, ela não acontece somente pelo e no homem. “A essência da técnica conduz o
homem para o caminho daquele desabrigar por onde o real, em todos os lugares mais ou
menos capitável, torna-se subsistência”56, isto é, por onde o real pode ser essencializado
pela técnica.
54 HEIDEGGER, op. cit., p. 69. 55 Id. Ibid. 56HEIDEGGER, op. cit., p. 75.
38
Repare que Heidegger utiliza o termo “condução”, que indica o sentido de “levar”.
Deste modo, o homem é levado (conduzido) ao desabrigar, nisto consiste o descobrimento.
Então, a condução deve estar conjugada com o sentido de “destino”. Nestes termos, ele
esclarece “o destino de desabrigar sempre domina os homens”.57 Mas, o sentido de levar
destinadamente apontado por Heidegger, como sendo inerente, ao modo de ser da técnica,
não pode ser confundido com aquele discurso comumente usado de que a técnica é o
destino de nossa época e seu transcurso não pode ser desviado porque inalterável. Ainda
que o destino do desabrigar domine os homens, ele conduz à liberdade, porque a essência
desta reside no des-velamento da verdade. A liberdade domina o que é livre. Então o
aprisionamento do homem pela técnica não é de modo algum uma coação apática. Dito de
outro modo: a essência da técnica moderna repousa na armação; esta pertence ao destino
do desabrigar; o desabrigar implica na liberdade do desvelar a verdade. Portanto, conclui
Heidegger, “se nos abrirmos propriamente à essência da técnica, encontrar-nos-emos
inesperadamente estabelecidos numa exigência libertadora”58, diante da técnica e não de
escravidão por ela.
Daí que para Heidegger o perigo não está na técnica, considerada por muitos como
demoníaca. O que há de perigoso, assegura ele, “é a essência da técnica, enquanto um
destino do desabrigar”. E conclui:
A ameaça dos homens não vem primeiramente das máquinas e aparelhos da técnica cujo efeito pode causar a morte. A autêntica ameaça já atacou o homem na sua essência. O domínio da armação ameaça com a possibilidade de que a entrada num desabrigar mais originário possa estar impedida para o homem, como também o homem poderá estar impedido de perceber o apelo de uma verdade mais originária.59 Mas, paradoxalmente, onde existe o perigo, cresce também a possibilidade de
salvação, assinala Heidegger, parafraseando o poeta Hölderlin, no hino Patmos. Em que
medida? Na medida em que “avistamos a essencialização da técnica e não apenas fitamos a
técnica”, 60 responde o filósofo. Porque a essência da técnica não é nada de técnico, a
salvação do perigo da técnica, vem pelo seu enfrentamento, pelo questionamento do que é
aparentemente técnico por um lado, e por outro lado, daquilo que é totalmente diferente
dela.61
57 Id. Ibid. 58 Id. Ibid. 59 HEIDEGGER, op. cit., p. 81. 60 HEIDEGGER, op. cit., p. 89. 61 HEIDEGGER, op. cit., p. 93
39
Embora a análise heideggeriana seja fundamental para a compreensão da técnica
moderna, sobretudo, quando Heidegger esclarece que o sentido moderno de técnica difere
dos gregos porque ela implica num descobrimento da natureza que revela a verdade,
através da produção (poiésis) que agora é desafiadora, posto que a natureza é colocada
numa situação de ter que entregar sua energia a fim de que possa ser extraída e acumulada ,
Dussel observa que a visão do filósofo existencialista ainda é parcial, visto que não chega a
realizar uma crítica ao sistema capitalista, de cujo horizonte vê-se o caráter exploratório da
natureza, do sentido da produção. Em outros termos, a análise fenomenológica de
Heidegger não dá conta da compreensão econômica da técnica que, na modernidade
concebe a natureza a partir dos elementos utilizáveis que serão “transformados para um
uso máximo com o mínimo de gastos”.62 Para Dussel, esta atitude pode ser denominada de
“explorabilidade”, ou seja, é o modo pelo qual o homem (o homem moderno) ultiliza da
natureza como meras mediações exploráveis: ela vale porque pode dar algo de si ante o ato
de exprimir, extrair, sacar, roubar, para o projeto de acumular riqueza. E esta análise
dialética e histórica da tecnologia, acrescenta Dussel, encontramo-la em Marx. Seguindo,
pois, de perto a orientação dusseliana, passemos agora a aprofundar a análise marxista no
tocante à compreensão da gênese da tecnologia moderna a partir do modo de produção, em
específico, o modo de produção capitalista.
4.2 Marx e a Tecnologia como (Re) Produção do Capital
Karl Marx contempla o sentido de tecnologia tanto na sua famosa obra O capital,
sobretudo no Tomo I, como também nos manuscritos de 1851 (Caderno tecnológico-
histórico) e nos manuscritos de 1861 a 1863, intitulados Los Grundrisse ou Capital e
Tecnologia. Nestes escritos, Marx aponta dois modos de análise da tecnologia. Marx fala
do sentido da tecnologia em abstrato, enquanto análise ontológica, teórica do que é
tecnologia, e também enquanto categoria concreta e histórica que, segundo ele, é o
momento do capital. Neste segundo momento, é possível perceber um pensador mais
inspirado e desenvolto. Este sentido metodológico de análise do que é a tecnologia é assim
traduzido por ele: A produção [leia-se tecnologia] é uma abstração, porém uma abstração que tem um sentido, então põe realmente de relevo o comum, o fixo.... O geral ou o comum, extraído por comparação, é algo completamente articulado e se desdobra em diversas determinações... As determinações que valem para a produção [leia-se tecnologia] em geral
62 DUSSEL, op. cit., p. 68.
40
são as que devem ser separadas, a fim de que não se esqueça a diferença essencial.... Um exemplo, nenhuma produção é possível sem um instrumento de produção, ainda que este instrumento seja a mão. Nenhuma é possível sem trabalho passado, acumulado, ainda que este trabalho seja somente a destreza que o exercício repetido tem desenvolvido e concentrado na mão do selvagem.63 Tendo em vista o primeiro momento da análise acima descrita e levando em conta a
concepção antropológica de ser humano como homo-faber, para Marx, a tecnologia se
constitui como mediação da vida humana, que se realiza na produção (poiésis). Buscando
uma história crítica da tecnologia, ele diz: “A tecnologia nos descobre a atitude do homem
ante a natureza, o processo direto de produção de sua vida e, portanto, das condições de
sua vida social e de suas idéias e representações espirituais que delas se derivam.”64
Desta concepção de tecnologia, Marx procura elaborar uma teoria da produção a
partir da categoria de trabalho. Segundo o filósofo, o trabalho é o elemento fundante da
produção. Daí o sentido de ser humano como homo-faber. Este, como sujeito produtor,
realiza na produção a objetivação de sua pessoa. Dito de outro modo: o trabalho, como
atividade abstrata representa, para Marx, a maneira pela qual o homem se humaniza.65
Mas, em sentido concreto, no contexto da sociedade do séc. XIX, já sob os efeitos
da Revolução Industrial e observando A situação da classe operária na Inglaterra66 Engels
constata que o trabalho deixou de ser fonte de humanização para ser alienação, com a
introdução das máquinas. Numa passagem brilhante e comparada com o modo de produção
anterior ao da sociedade capitalista, ele observa:
Antes de introduzir as máquinas, a matéria prima se fiava e se tecia na mesma casa do trabalhador... com estes inventos, aperfeiçoados desde então, ano após ano, se havia assegurado o triunfo do trabalho mecânico sobre o trabalho manual. A divisão do trabalho; o emprego da força hidráulica e, sobretudo, da força a vapor e o mecanismo da maquinaria são os três grandes pilares por meio dos quais a indústria exaspera ao mundo. O tecedor mecânico compete com o tecedor manual e o tecedor manual, sem trabalho, ou mal pago passa a competência ao que tem trabalho ou ganha mais, e procura desprezá-lo. Cada aperfeiçoamento da maquinaria deixa sem pão a muitos operários.67 Portanto, o trabalho na sociedade capitalista torna-se alienado, primeiro, porque
passa a ser desvinculado da natureza; segundo, porque é realizado através de um
conhecimento especializado (daí a divisão do trabalho intelectual do trabalho de execução)
63 MARX, KARL, Los Grundrisse ou manuscritos de 1861-63, citado por DUSSEL, Filosofia...,op
cit.,p. 134. (Tradução livre) 64 MARX, Karl, O capital, I, p. 331, nota 89, Apud, Dussel, Filosofia...op. cit., p. 14. (Tradução
livre) 65 Conferir a reflexão de ENGELS sobre O papel do trabalho na transformação do macaco em
homem, In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Textos. Vol. 1. São Paulo: Edições Sociais, 1977. 66 Titulo da obra do jovem Engels, em 1844. 67 Citado por DUSSEL, op. cit., p. 119.
41
sobre o que se produz em si, donde ocorre a perda substancial do conhecimento do
trabalhador que antes detinha a techné (recuperando o sentido grego do conhecimento
universal, individualizado e autônomo daquilo que se produz, lembremos o artesão
medieval, por exemplo) e, terceiro, porque está vinculado à produção como excedente e
não como modo de subsistência, assim como o era nas sociedades primitivas. Assim, o
trabalhador, por lhe faltarem as condições materiais para a produção (de trabalho), vende a
sua força de trabalho ao capitalista. Nisto consiste a alienação do trabalho.
Além disso, se nas sociedades primitivas, a produção equivalia ao consumo, agora,
a produção equivale ao acúmulo. A produção como acúmulo gera o capital. Este só existe
porque existe o trabalho excedente do trabalhador, que agora produz não para sua
subsistência, mas como excedente. O excedente de produção é adquirido através da
maximização da produção e da minimização do tempo. Este processo é garantido pela
tecnologia, através da maquinaria. Por isso, Marx argumenta que “com o desenvolvimento
da maquinaria as condições de trabalho também surgem como dominando o trabalho do
ponto de vista tecnológico, e ao mesmo tempo o substituem, tornam-no supérfluo em sua
forma autônoma.”, e conclui: “...De fato, separam-se da habilidade e do saber do operário
individual, e, ainda que observadas em sua origem sejam, por sua vez, produto do trabalho,
surgem em toda ocasião em que ingressam no processo de trabalho, como incorporadas ao
capital. O capitalista que utiliza uma máquina, não precisa compreendê-la”.68
Sobre o surgimento das máquinas, Marx observa:
A natureza não constrói máquinas, locomotivas, ferrovias, telégrafos elétricos, selfatinas, etc. São produtos da industriosidade humana; materiais naturais transformados em órgãos da vontade humana sobre a natureza, ou da participação humana na natureza. São órgãos do cérebro humano, criados pela mão humana; o poder do conhecimento objetivado. O desenvolvimento do capital fixo indica o grau geral em que o conhecimento se tornou força direta da produção, e que grau, conseqüentemente, as próprias condições do processo da vida social tem estado sob o controle do intelecto geral e foram transformados de acordo com ele. A que grau os poderes da produção social têm sido produzidos, não apenas na forma de conhecimento, mas também como órgãos imediatos da prática social, do processo real da vida.69 Esses produtos da “industriosidade humana” que geram o “conhecimento
objetivado”, ou o “trabalho morto”, porque agora é realizado pela máquina e não mais pelo
trabalhador, só foram possíveis graças à aplicação intencional da ciência na produção. A
68 MARX., O capital, Livro I, Capítulo VI, (inédito). São Paulo: Ed. Ciências Humanas, 1978, pp.
86 e 87. Apud, BRYAN, Newton A. P. Educação,trabalho e tecnologia em Marx. In: Revista Educação & Tecnologia, n. 1. Curitiba: CEFET, 1997, p. 53.
69 MARX, Los grundrisse, I, p. 706. Apud BRYAN, op. cit.,, p. 52.
42
transformação da ciência em força produtiva, isto é, aplicada à tecnologia, é descrita
historicamente por Marx, nos seguintes termos:
Só no século XVII, muitos cientistas se dedicaram ao estudo minuncioso e assíduo do artesanato, das manufaturas e das fábricas. Alguns fizeram desse campo o objeto de suas pesquisas. Só em épocas relativamente moderna descobriu-se a vinculação que une a mecânica, a física e a química com o artesanato (melhor seria dizer com a indústria). Entre os artesãos as regras e as experiências transmitiam-se dos mestres aos aprendizes e oficiais [...].70 Ou seja, utilizando-se do conhecimento científico para sistematizar o conhecimento
técnico e empregando a ciência como força produtiva (máquinas), a tecnologia moderna
rompe com as práticas artesanais primitivas, posto que separa o saber do trabalhador. O
acúmulo do saber do trabalhador é incorporado à máquina pelo capital. A máquina é,
agora, o instrumento de trabalho como tal. Daí o conceito de Marx de “máquina-
ferramenta”: aquela que executa o trabalho humano, posto que a ferramenta utilizada pelo
homem em seu trabalho é transferida para um mecanismo, a máquina, que toma o lugar da
simples ferramenta.71
Em síntese, na era moderna a tecnologia garante a mais valia e o lucro, base do
funcionamento do capital, pois, o uso do conhecimento científico como força produtiva
produz a máquina que garante a maior lucratividade, já que ela representa a maximização
da produção em detrimento à minimização do tempo. Disso decorre, uma primeira
conclusão importante para entender o sentido de tecnologia dado por Marx: “a tecnologia é
uma mediação necessária dentro do sistema capitalista diretamente ligada a uma maior
rentabilidade”.72
Outra conclusão também fundamental, inclusive para o propósito de nosso trabalho,
sobretudo no tocante ao II capítulo, é que através da tecnologia, retira-se do trabalhador o
conhecimento historicamente acumulado (a tehcné) que passa agora a integrar a máquina.
Na sociedade atual, dita informática, o ship, por exemplo, acumula o conhecimento do
trabalhador adquirido ao longo de sua história de trabalho e da história do trabalho pelo
homo-faber, e que foi expropriado pelo capital. Assim, nos Manuscritos de 1844, Marx
conclui: O operário tem sido reduzido à condição de máquina; a máquina pode opor-se a
ele como competidor”.73 Então, o trabalhador que detinha o conhecimento de seu ofício, ao
70 MARX, Capital y tecnologia. Manuscritos de 1861-1863. p. 93, citado por BRYAN, op. cit.,p.
63. 71 MARX, O capital.., op. cit.,p. 426. 72 DUSSEL, op. cit., p. 231. (Tradução livre). 73 Citado por DUSSEL, op. cit., p.121.
43
invés de criador, passa a ser um mero operador ou monitor da máquina e sequer conhece
sua engenhosidade.
A contribuição da análise crítica de Marx sobre a tecnologia moderna em sua
concretude reside em grande parte nesta importante constatação:
Mas, na máquina, a ciência realizada apresenta-se ante os operários como capital. Na realidade, toda essa utilização − fundada no trabalho social – da ciência, das forças naturais e dos produtos em grandes quantidades, não surge ante o trabalho senão como meios de exploração do trabalho, como meios de apropriar-se do trabalho excedente, e, portanto, como forças pertencentes ao capital. O capital, naturalmente, só utiliza esses meios para explorar o trabalho; mas para explorá-lo tem que aplicá-los à produção (leia-se tecnologia). E desse modo, o desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho e as condições desse desenvolvimento apresentam-se como obra do capital[...].74 Concluindo a contribuição de Marx para nossa reflexão, vale lembrar que para este
filósofo que se transferiu para a Inglaterra, berço da Sociedade Industrial e germe do
Capitalismo, a fim de compreendê-la in loco, a tecnologia deve ser compreendida a partir
de três níveis: como instrumento de trabalho, como processo de produção e como capital.
No primeiro caso, trata-se da intervenção da tecnologia no processo de trabalho,
como instrumentos objetivos de produção, é o que realiza a máquina-ferramenta, por
exemplo.75. Já como processo de produção, a tecnologia realiza a produtividade crescente,
a partir da mais-valia relativa. E, a tecnologia como capital representa o momento de
transubstanciação da tecnologia em capital. Trata-se da tecnologia como “capital
constante” (isto é, aquela parte do capital que se transforma em meios de produção,
materiais auxiliares e meios de trabalho; como “capital produtivo” (ou seja, o dinheiro
transformado em mercadorias. E, para produzir novas mercadorias, este capital compra o
“trabalho vivo” e as máquinas: é o investimento em tecnologia) e como “capital fixo” que
significa a fixação do capital produtivo como meios de produção, enquanto perdurar a
produção. É a retirada do capital de circulação para incorporá-lo ao processo de produção.
Sem dúvida, é na condição de processo de produção que a tecnologia moderna mais
evidencia sua identidade, pois:
Na maquinaria, a ciência se apresenta ao operário como algo alheio e externo e o trabalho vivo aparece subsumido sob o objetivado que opera de maneira autônoma...O processo constante de produção, contudo, não aparece como subsumido sob a habilidade direta do operário, senão como aplicação tecnológica da ciência. Dar à produção um caráter
74 MARX, O Captal, capítulo inédito, pp 86 e 87, citado por BRYAN, op. cit., p. 53. 75 Vale dizer, que o sentido de instrumento objetivo dado por Marx, não se refere somente à
ferramenta.; a máquina-ferramenta, é mais que ferramenta, à medida que executa a função da força motriz humana. O esclarecimento tem em vista a preocupação semântica da qual se ocupa Ruy Gama. Segundo ele, “instrumento” é diferente de “ferramenta” que é diferente de “máquina”. (Cf. GAMA, Ruy. Meios de trabalho. Téchne. São Paulo, n. 10, maio/junho, 1994, pp. 2; 31-35).
44
científico é, portanto, a tendência do capital, e se reduz o trabalho a mero momento deste processo.76 Este processo é revelador do problema ético do conhecimento tecnológico, pois, no
cerne da questão epistemológica da tecnologia está o predomínio do conhecimento
científico que contribui para a alienação do trabalho, à medida que sua utilização é
requerida como necessária à transformação do trabalho vivo em trabalho objetivado (ou
“trabalho morto”). Retomaremos esta questão nos aspectos conclusivos deste capítulo e
nos capítulos seguintes, quando aprofundaremos a dimensão epistemológica e axiológica
da tecnologia moderna.
Por enquanto, resta ainda esclarecer que sob o ponto de vista histórico a tecnologia
moderna possui uma estreita relação com a ciência, conforme demonstrou Marx, em
diversas passagens ao revelar o processo de produção capitalista. Desse modo, não é
possível deixar de lado, ao tratar do aspecto ontológico da tecnologia moderna, a estreita
vinculação da tecnologia com a chamada “Ciência Moderna”, a qual passou a ser objeto de
crítica dos teóricos da Escola de Frankfurt no séc XX. Por isso, ocupemo-nos um pouco
mais do tema.
4.3 Técnica e Ciência como Ideologia: A Crítica da Teoria Crítica
A história do surgimento da tecnologia moderna confunde-se com a história da
ciência em termos de modernidade. Régis de Morais, ao descrever o contexto tecnológico
do séc. XVII, constata que “de Galileu em diante a ciência e a técnica nunca puderam, de
fato, desenvolver-se apartadamente”.77 Também Engels, ao descrever o processo da
revolução Industrial no séc. XIX considera que “o mundo industrial tirou partido da ciência
e da técnica”78.
Estes dados, além daqueles apresentados por Marx que transcrevemos acima, nos
parecem elementares para entender a gênese da tecnologia moderna, pois, sem a inclusão
da questão do surgimento da ciência moderna no cenário da discussão que aqui propomos
fazer, dificilmente teremos uma compreensão mais profunda sobre o significado da
tecnologia hoje, a partir da modernidade. Semelhante à tecnologia, também a ciência, com
o advento da modernidade, passou a ter um outro significado, diferente daquele dado pelos
76 MARX, Los Grundrisse, II, p.221, citado por DUSSEL, op. cit., p.141. (tradução livre) 77 REGIS DE MORAIS, J. F. Ciência e tecnologia: introdução metodológica e crítica. São Paulo:
Cortez & Morais, 1977, p. 105. 78 Citado por JAPIASSU, H. As paixões da ciência. São Paulo: Letras & Letras, 1999, p. 157.
45
gregos, por exemplo. Vejamos o que diz o relato de estudos de história da ciência
realizado por Japiassu:
A ciência moderna nasceu com o advento da sociedade mercantilista. Não surgiu como uma atividade pura e desinteressada, como uma aventura espiritual ou intelectual. Mas dentro de um contexto histórico, separável de um movimento visando à racionalização da existência. E é todo desenvolvimento da sociedade comercial “industrial”, técnica e científica que se inscreve no programa prático da racionalidade burguesa: não se faz comércio empiricamente, pois ele é um negócio de cálculo, deve ser feito racionalmente. Assim, a burguesia nascente, que logo se instala no poder, tem necessidade de um sistema de produção permitindo-lhe uma exploração sempre maior e mais eficaz da Natureza. E tal sistema não tarda a fazer apelo a um novo tipo de trabalhador: o cientista. Doravante cabe-lhe a responsabilidade de detectar as leis gerais da Natureza. Quanto ao trabalho propriamente produtivo [...], é da alçada de engenheiros, que utilizam as descobertas dos cientistas em termos de aplicações particulares.79 É com esta tese que corroboramos. A ciência na era moderna não se constitui como
um saber livre e desinteressado, teórico e especulativo. Na modernidade, ela se tornou um
saber pragmático, necessário para dar garantia à aplicabilidade da técnica.
Ideologicamente, muitas vezes, converteu-se em tecnologia, porque se aliou à técnica.
Dussel, analisando geopoliticamente o contexto social da história da tecnologia, considera
que a ciência ocupa um papel de mediação privilegiada para o alcance da produtividade do
desenvolvimento tecnológico, sobretudo nos países centrais, chamados “desenvolvidos”.
Sua argumentação ajuda-nos a entender o papel político da ciência e sua relação com a
tecnologia:
A ciência, então, encontra-se crescentemente acoplada instrumentalmente à tecnologia; a tecnologia não é uma mera aplicação da ciência, senão que o conjunto tecnológico responde às necessidades de gerenciamento e controle, o que introduz-se obrigatoriamente no debate sobre a tecnologia, os problemas globais da organização econômica, da segurança e o militarismo. É um fato conhecido que uma altíssima porcentagem dos cientistas e tecnólogos trabalham em tarefas diretamente ligadas ao avanço da produção bélica.80 O físico alemão Heisenberg, em 1976 já observava:
Em todo este processo evolutivo que se estende ao longo dos últimos duzentos anos, a técnica tem sido ao mesmo tempo condição prévia e conseqüência da ciência. É sua condição prévia, porque amiúde uma expansão e aprofundamento da ciência só são possíveis graças a um aperfeiçoamento dos instrumentos de observação, recorde-se a invenção do telescópio e do microscópio e da descoberta de raio X. É, por outro lado, conseqüência porque, em geral, a exploração da técnica das forças da natureza só se torna possível graças a um profundo conhecimento do respectivo campo da experiência.81
79 Id. Ibid. 80 DUSSEL, op. cit.,, p. 231. (tradução livre) 81 Citado por SOUZA, S. M. R de. Um outro olhar. São Paulo: FTD, 1995, p. 230.
46
A interdependência entre ciência e técnica é visto por muitos como proveitosa, daí
o prestígio profissional do técnico que é aquele capaz de adaptar a ciência à prática. É no
interior da valorização do conhecimento pragmático que se insere a tecnologia. Segundo
Kneller,
A tecnologia é essencialmente uma atividade prática, a qual consiste mais em alterar do que em compreender o mundo. Onde a ciência procura formular as leis a que a natureza obedece, a tecnologia utiliza essas formulações para criar implementos e aparelhos que façam a natureza obedecer ao homem. Tal como a ciência, entretanto, a tecnologia é uma entidade imensamente complexa que consiste em fenômenos de muitas espécies – agentes, instituições, produtos, conhecimentos, técnicas, etc.82 Mas os teóricos da Escola de Frankfurt vêem nesta aliança um perigo para a razão
emancipadora, pois, com a tecnologia a razão passou a ser um mero instrumento de
dominação, atrelando a ciência à técnica. É o que Habermas denomina o agir-racional-
com-respeito-a-fins, ou seja, uma razão instrumental que tem em vista o progresso
científico e técnico. A razão tornou-se pragmática e através da ciência e da técnica
matematizou o real e mecanizou a natureza, dissociando-a do homem. Parafraseando
Marcuse, o filósofo acrescenta:
Os princípios da ciência moderna foram estruturados a priori de modo a poderem servir de instrumentos conceituais para um universo de controle produtivo que se perfaz automaticamente; o operacionalismo técnico passou a corresponder ao operacionalismo prático. O método científico que levou à dominação cada vez mais eficaz da natureza passou a fornecer tanto os conceitos puros, como os instrumentos da dominação cada vez mais eficaz do homem pelo Homem, através da dominação da natureza [...]. Hoje a dominação se perpetua e se estende não apenas através da tecnologia, mas enquanto tecnologia, e esta garante a formidável legitimação do poder político em expansão que absorve todas as esferas da cultura.[...]83
Tomando de empréstimo o conceito de “racionalização” usado por Max Weber,
Habermas considera que esta é progressiva na sociedade à medida da institucionalização
do progresso científico e técnico nos setores sociais, que faz coincidir o direito privado
burguês de dominação burocrática, com o papel do Estado de racionalização técnico-
científica. Nisso reside a “racionalidade tecnológica”, que faz diferir as sociedades
modernas das sociedades tradicionais. Naquelas, observa Habermas, a intenção
tecnocrática “serve como ideologia para uma nova política orientada para tarefas técnicas”
e a “dominação manifesta do Estado autoritário (típica das sociedades tradicionais) cede às
coações manipulativas da administração técnico-operativa”. Além disso, prossegue
82 KNELLER, G. F. A ciência como atividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 245 e 246. 83 HABERMAS, J. Técnica e ciência enquanto ideologia. In: OS PENSADORES. São Paulo: Abril
Cultural, 1983, p. 305. O significado de razão instrumental será retomado no próximo capítulo quando abordarmos o conhecimento da tecnologia.
47
constatando Habermas, “as grandes organizações como tais se submetem cada vez mais à
estrutura do agir racional-com-respeito-a-fins”.84
Habermas, analisando ainda a visão positivista de ciência e de técnica, considera
que esta produziu o tecnicismo: “ideologia que consiste na tentativa de fazer funcionar na
prática, e a qualquer custo, o saber cientifico e a técnica que dele possa resultar. Nesse
sentido pode-se falar de um imbricamento entre ciência e técnica, pois esta, embora
dependa da primeira, retroage sobre ela, determinando seus rumos”.85
Ainda sobre a cientifização da técnica, termo usado pelo próprio filósofo,
Habermas, acrescenta:
No capitalismo, a pressão institucional para aumentar a produtividade do trabalho pela introdução de novas técnicas sempre existiu. Todavia, as inovações dependiam de invenções esporádicas que, por sua vez, podiam ter sido induzidas economicamente, tendo, entretanto, ainda o caráter de um crescimento natural. Isso mudou [a partir do século XIX], na medida em que o progresso técnico entrou em circuito retroativo com o progresso da ciência moderna. Com a pesquisa industrial em grande escala, ciência, técnica e valorização foram inseridas no mesmo sistema. Ao mesmo tempo, a industrialização liga-se a uma pesquisa encomendada pelo Estado que favorece, em primeira linha, o progresso científico e técnico do setor militar. De lá as informações voltam para os setores de bens civis. Assim, técnica e ciência tornam-se a principal força produtiva, com o que caem por terra as condições de aplicação da teoria do valor do trabalho de Marx.86 Repare que Habermas considera a cientifização da técnica como uma nova força
produtiva, posto que o “progresso técnico-científico tornou-se uma fonte independente de
mais-valia”. Segundo o filósofo frankfutiano, isso só ocorreu graças à produção em grande
escala, que exigiu pesquisa industrial que aliasse ciência e técnica, donde ambas foram
inseridas no mesmo sistema. Habermas observa que até o séc. XIX não havia
interdependência entre ciência e técnica. É com Galileu (séc. XVII) que as ciências passam
a gerir um saber tecnicamente aproveitável, mas que só terá reais chances de aplicação
concreta a partir do séc. XIX, com a pesquisa em grande escala, oriunda da Revolução
Industrial.
Deste modo, a tecnologia confere à ciência precisão e controle nos resultados de
suas descobertas e a prerrogativa não somente de um saber destinado a facilitar a relação
do homem com o mundo, mas destinado a dominar, controlar e transformar o mundo. “O
caso da biologia genética revela como a tecnologia da física, da química, da cibernética
84 HABERMAS, Jünger. Técnica e ciência enquanto ideologia. In: OS PENSADORES. São Paulo:
Abril Cultural, 1983, p. 323. 85 In: OS PENSADORES, Benjamim, Habermas, Horkheimer e Adorno – Vida e Obra. São Paulo:
Abril Cultural, 1983, p. XVII. 86 HABERMAS, Técnica..., op. cit., pp. 330 e 331.
48
determinaram uma atividade interdisciplinar que resultou em descobertas e mudanças na
biologia”.87
Em síntese, a Teoria Crítica dos frankfurtianos considera que a ciência moderna
instrumentalizou a razão e escravizou o homem através do controle lógico-tecnológico,
criando a tecnocracia, onde toda a vida humana é conduzida e determinada pelos padrões
técnicos impostos pela ciência. Tudo se submete às regras da produção tecnológica. E
Marcuse acrescenta: “A dinâmica do progresso técnico está sempre impregnada de
conteúdo político. O logos da técnica tornou-se o logos da servidão. A força da tecnologia
que poderia ser libertadora _ pela instrumentalização das coisas _ tornou-se um entrave à
libertação _ pela instrumentalização dos homens [...]”88
Hoje quem dirige e controla a pesquisa científica é o poder tecnológico, situado
fora, inclusive, dos grandes centros de pesquisa, como as universidades. Estas perderam,
em grande parte, o senso de ciência como pesquisa livre e com autonomia e se tornaram
referência de pesquisas encomendadas por centros de tecnologia, feitas, inclusive, sem que
os cientistas jamais saibam de sua finalidade. Vale dizer aqui que, quando Habermas
realiza a leitura acima descrita sobre a dimensão ideológica da técnica e da ciência, era a
década de 70, período em que o contexto geo-político é marcado pela chamada “guerra-
fria”, cuja hegemonia política é americana, espaço situado das pesquisas de Habermas e o
lugar privilegiado de onde o filósofo observa a realidade, sobretudo, com a subordinação
das pesquisas científicas no processo de militarização dos EUA. É o que Habermas
denomina de “complexo ciência-técnica-indústria-exército-administração”.
5 POR UMA OUTRA ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA
Do tecido aqui construído sobre a dimensão ontológica da tecnologia, retomemos
alguns aspectos em vista do propósito em âmbito geral desta pesquisa, qual seja, analisar a
natureza da tecnologia moderna, considerando a possibilidade de propor outra perspectiva
ontológica.
Numa sociedade em que o conhecimento especializado e tecnicista tornou-se
hegemônico, o qual representa o predomínio do fazer sobre o saber, da aplicação sobre a
reflexão, fundamental é retomar e resgatar o sentido originário de técnica atribuído aos
gregos. Vimos que a techné na Grécia Antiga consistia no conhecimento universal aplicado
87 Exemplo citado por CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1998, p. 279. 88 MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 257.
49
à prática, com vistas à predominância daquele sobre este.89 Dela era possuidor o artífice ou
artesão que ao fabricar os produtos manufaturados (prática) detinha o conhecimento da
constituição de todo o processo de produção (conhecimento universal).90
Ao contrário, ser possuidor da técnica hoje (ser técnico) significa tão somente ter a
habilidade de operar, monitorar a máquina, sem que seja necessário conhecer
integralmente seu processo de funcionamento. A máquina, sim! Esta detém o
conhecimento acumulado do trabalhador. Portanto, a techné, que fora adquirida no
decorrer de toda história do trabalho humano, tornou-se trabalho objetivo da máquina,
reservando-se ao homem somente a função de operar (a máquina) e não mais a função de
criar. Por isso, segundo a visão marxista, o modo de produção capitalista representa a
perda qualitativa do trabalho humano.91
Assim sendo, pensar um novo entorno para a tecnologia, significa conferir um
outro logos para a técnica; significa recuperar o sentido esquecido e pervertido da techné
em tempos modernos. Isto implica em ao invés de incentivar a polivalência (discurso tão
empreendido pela nova linguagem das relações capitalistas de trabalho) − que trata de
delegar ao trabalhador o controle de todo o processo da produção, mas sem que ele saiba
seus mecanismos de criação, porque sua função é meramente operar −, incentivar a
politecnia (visão de trabalho defendida pelo modo de produção socialista), pois, trata-se de
devolver ao trabalhador o controle e a criação da produção, no sentido da sua integralidade
e totalidade.92. Nisto consiste um novo entorno do aspecto ético da tecnologia, conforme o
dizer de Dussel:
89 Cf. p. 25 neste capítulo. 90 O trabalho do artesão foi possível ser visto até o século XIX, quando do início da Revolução
Industrial. Bravermann descreve o artesão, nesta época, como aquele que “estava ligado ao conhecimento técnico e científico de seu tempo na prática diária de seu ofício”. E acrescenta: “Estes artesãos eram uma parte importante do público científico de sua época e, como norma, mostravam um interesse pela ciência e pela cultura que ia além do diretamente relacionado com o seu trabalho”. Neste mesmo sentido, encontramos a leitura de Landes sobre os primeiros artesãos a ocupar a função de maquinistas. Ele constata: “Ainda mais impressionante era a preparação teórica desses homens [...]. Mesmo os maquinistas (Millwright) ordinários, como faz notar Fairbain, eram, em geral, ‘um bom aritmético, sabia algo de geometria, nivelamento e medição, e, em alguns casos, possuía conhecimento muito preciso de matemática prática. Podia calcular a velocidade, resistência e potência das máquinas, podia desenhar em plano e em seção...’ Grande parte desses ‘feitos e potencialidades intelectuais elevados’ refletiam as abundantes oportunidades para a educação técnica em ‘povoados’ como Manchester, que iam desde as academias dissidentes e sociedades ilustradas até os conferencistas locais e visitantes, as escolas privadas ‘matemáticas e comerciais’ com aulas vespertinas e uma ampla circulação de manuais práticos e publicações periódicas e enciclopédicas”. Citado por ENGUITA, Mariano F. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989, pp. 119 e 120.
91 MARX, Los Grundrisse..., op.cit., pp. 497 e 498. Neste sentido conferir a análise sobre o desenvolvimento capitalista e apropriação de saber, in: BRYAN, op. cit., p. 42.
92 Sobre a politecnia, voltaremos ao assunto no próximo capítulo, quando trataremos da dimensão do conhecimento da tecnologia.
50
À medida que a tecnologia se autonomiza e se transforma em fim, que subsome como um momento seu o trabalho vivo, é imoral, destruidora do homem, um novo fetiche: o tecnologismo, o cientificismo, o positivismo lógico. Temos que tratar, indicativamente, também a questão, que abre a totalidade do sistema à transcendência de trabalho vivo, à exterioridade de sujeito de trabalho que nunca poderá ser subsumido de todo por nenhum sistema, menos ainda pelo capital.93 Um outro aspecto fundamental a título de conclusão deste capítulo sobre a
dimensão ontológica da tecnologia diz respeito à crítica de Heidegger sobre o conceito
instrumental e antropológico da técnica, quando afirmamos que a técnica é um “meio
para” ou um “fim”. Como vimos, no item 4.1 deste capítulo, Heidegger rechaça tal posição
por considerar que a esta conceituação diz respeito à técnica, mas ainda não é a essência da
técnica. Argumenta ele que a técnica, enquanto produção, é o modo de des-velamento da
verdade. Nisso consiste sua essência, pois, através do ato de produzir, o homem descobre o
mundo. Desse modo, a técnica não pode ser confundida como instrumentum. Ora, esta
nova dimensão da técnica abre também uma nova visão para a tecnologia, porque significa
destituir também da tecnologia seu caráter meramente instrumental e utilitarista. Se a
técnica é o modo de desvelamento da verdade ou de descoberta do mundo pelo homem,
também a tecnologia, enquanto logos da técnica, representa o momento hermenêutico desta
descoberta, que não encerra na dimensão do produzir em si.
Analisando outros escritos posteriores de Heidegger − além daquele que
especificamente foi o objeto de nossa investigação aqui −, sobretudo, os escritos depois
dos primeiros movimentos ambientalistas que ganham força na Europa a partir da segunda
metade do século XX (cita-se a realização do Clube de Roma, por exemplo), Dussel
acrescenta:
A técnica contemporânea não seria um mero produzir. É verdade que ela tem um modo novo de relacionar-se com respeito à totalidade das coisas. É verdade que as coisas são vistas como “existenciais” (Bestande), como reservas de um stock, porém não são como o que se pode criar segundo minha vontade: elas, as coisas, me im-põe suas condições. Por isso elas não são meras re-presentações com as quais jogo a vontade.; elas estão-já-postas [...]; ser não apresentado pela re-presentação; ser que chama ao des-velamento pela técnica para alcançar o “acontecer de co-apropriação” (Er-eigns) do homem e do ser; ser que se manifesta ao descobrimento do lógos [...]. 94 Aliando à reflexão anteriormente feita sobre o sentido de techné, com a visão
heideggeriana que questiona o sentido meramente instrumental da técnica, talvez possamos
entender porque Heidegger considera que na técnica reside a salvação, quando ele diz: “a
93 DUSSEL, op. cit., p. 141. (Tradução livre) 94 DUSSEL, op. cit., p. 70. (Tradução livre)
51
essência da técnica abriga em si o crescimento do que salva”95. Pois, se como disse o
filósofo, a técnica é o modo de des-velar a verdade que se manifesta através da produção
(na relação homem e natureza), por isso, “a técnica está na potência da verdade da
natureza” e o técnico “está a serviço desse movimento de revelação da natureza”96,
Então, a técnica é, pois uma modalidade de verdade que nos convida a revelar os aspectos
escondidos da natureza que vivemos. Buzzi, referindo-se à Heidegger diz: “Pensemos um
pouco na essência da técnica que faz aparecer o oculto da natureza. Não só faz aparecer!
Convida-nos também a morar na lareira do novo aparecer, na companhia do novo mundo
de tantos objetos de uso, com que entendemos melhor nossa convivência.”97 É o que
Dussel denomina de “momento de co-apropriação do homem e do ser....”.
6 SÍNTESE DA DIMENSÃO ONTOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA
Vimos que, afora a discussão sobre o uso do termo, o fato é que nunca chegaremos
à essência da técnica ou da tecnologia, falando do que é técnico ou do aparato tecnológico,
conforme também nos alertou Heidegger. Este é, para nós o primeiro aspecto importante
como conclusão desta primeira parte.
Disso decorre a necessidade de elaborar uma reflexão filosófica sobre o que é a
tecnologia, e, ao fazê-la, conclui-se que não podemos atribuir o mesmo significado à
tecnologia antes e depois da era moderna. Semelhante à história da ciência na
modernidade, a tecnologia sofre e propicia transformações profundas de caráter político,
econômico, social, filosófico, na história do séc. XVII em diante. Por isso mesmo, a
tecnologia moderna não pode ser considerada o mero estudo da técnica. Ela representa
mais que isso, pois, quando a ciência, a partir do renascimento, aliou-se à técnica,
(aproximação esta fundada nos princípios da filosofia empirista conforme veremos no
capítulo a seguir), com o fim de promover a junção entre o saber e o fazer (teoria e
prática), nascia aí a tecnologia tal como a conhecemos hoje.
A tecnologia é fruto da aliança entre ciência e técnica, a qual produziu a razão
instrumental, como no dizer da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. Esta aliança
propiciou o agir-racional-com-respeito-a-fins, conforme assinala Habermas, a serviço do
poder político e econômico da sociedade baseada no modo de produção capitalista (séc.
95 HEIDEGGER, op. cit., p. 82 96 BUZZI, Arcângelo R. Introdução ao pensar. Petrópolis: Vozes, 1987, pp. 84 e 85. 97 BUZZI, op. cit., p. 85.
52
XVIII), que tem como mola propulsora o lucro, advindo da produção e da expropriação da
natureza. Então, se antes a razão tinha caráter contemplativo, com o advento da
modernidade, ela passou a ser instrumental. É neste contexto que deve ser pensada a
tecnologia moderna; ela não pode ser analisada fora do modo de produção, conforme
observou Marx98. Já alertamos para este fato, mas vale ainda lembrar os dizeres de Bastos,
que aqui serve como síntese do que afirmamos anteriormente:
A tecnologia é um modo de produção, utilizando a totalidade dos instrumentos, dispositivos, invenções e artifícios. Por isso, é também, uma maneira de organizar e perpetuar as relações sociais no âmbito das forças produtivas. Assim, é tempo, é espaço, custo e venda; pois não é apenas fabricada no recinto dos laboratórios e usinas, mas reinventada pela maneira como for aplicada e metodologicamente organizada.(grifo nosso)99
Seguindo esta mesma análise, encontramos a leitura de David Noble que, apoiado
na visão de Marcuse (este influenciado pelo pensamento marxista), assim se refere: “a
tecnologia moderna, como modo de produção específico do capitalismo industrial
avançado, foi, ao mesmo tempo, um produto e um meio de desenvolvimento capitalista.”100
Embora a critica contundente de Rui Gama acerca destes posicionamentos,
considerando ser “discursos antitecnológicos” e que reduzem a tecnologia ao modo de
produção101, este esclarecimento nos parece fundamental, visto que conforme tomamos o
conceito, será também nossa postura frente à tecnologia, em termos de valoração, emissão
de juízo. Isto é, o valor que atribuímos à tecnologia necessariamente está vinculado à
noção histórica que temos dela.
Deste modo, se concebemos que a tecnologia é meramente o estudo da técnica,
existente desde os primórdios, com o surgimento do ser humano102, com certeza, tê-la-
emos como um instituto indispensável para a sociedade, porque instransponível pelo
98 Cf item .4.2 deste capítulo. 99 BASTOS, João Augusto S. L. A. de. (Org.) Tecnologia e interação. Curitiba: CEFET-PR, 1998,
p. 13. 100 NOBLE, D. América by design. New York, Oxford University Press, 1980, p.33. Apud: GAMA,
R. A tecnologia e o trabalho na história. São Paulo: Edusp, 1987, p. 19 101 Ibid. A crítica do referido autor é assim explicitada: Colocada a questão em termos marcusianos,
a crítica da sociedade burguesa cede lugar à crítica da tecnologia e da ciência; o responsável historicamente não é o capitalismo, mas a máquina, a tecnologia, a ciência. É fácil constatar a freqüência com que essa formulação aparece, explícita ou implicitamente nos discurso antitecnológicos de diversos matizes. Diferentemente da posição de Ruy Gama, consideramos que a posição de Noble não encerra a responsabilidade somente na tecnologia, pois ele afirma que a tecnologia não é só meio, mas também produto da sociedade capitalista. Portanto, ele admite uma relação recíproca entre capitalismo e tecnologia, enquanto forma de subsistência histórica. Em outros termos, corroboramos com Noble, colocando a seguinte questão: tendo em vista que a mola propulsora do sistema capitalista é o lucro, é possível pensar a sociedade capitalista sem o desenvolvimento tecnológico nos moldes do que aí está, advindo do atrelamento entre ciência e técnica a partir da época moderna?
102 A compreensão que “a tecnologia é tão antiga quanto o próprio homem” (FORBES) é analisada por GAMA, R. A tecnologia e o trabalho na história. São Paulo: Edusp, 1987, p. 14 e ss.
53
homem. Porém, se considerarmos que a tecnologia em sentido moderno está inserida e se
produziu num contexto social, político e econômico determinado, qual seja, o surgimento
da sociedade capitalista, então, nossa visão sobre a tecnologia e seu papel na sociedade,
certamente será outro. Primeiro, porque assim, desmitifica-se aquele discurso em que a
tecnologia é tida como um “mal necessário”, porque existe intrinsecamente com a
existência humana. Ora, pelo argumento meramente da anterioridade histórica, neste caso,
dilui-se esta concepção. Visto que se a tecnologia da forma como a concebemos hoje
surgiu em certo período histórico, logo, dado a sua historicidade ela não se constitui como
inerente à condição humana desde sempre. Se assim o é, é historicamente e não essencial
ou substancialmente.
Parece-nos que este ponto de partida configura-se elementar para o nosso propósito,
pois, consideramos que na gênese da discussão sobre a natureza da tecnologia a utilização
de conceitos meramente semânticos não nos garante a propriedade de argumentação
acerca do assunto. Por isso, entendemos que tal postura metodológica é insuficiente para
elucidar o que realmente significa tecnologia, pois necessário é identificar a que tecnologia
estamos nos referindo.
Aqui fazemos uma ressalva: muito embora utilizamo-nos como fonte de pesquisa
das obras de Ruy Gama, porque consideramos que o seu trabalho arqueológico e de
levantamentos de dados historiográficos é fundamental para a história da técnica e da
tecnologia, sobretudo no Brasil, julgamo-las carecedoras de uma maior fundamentação
filosófica, no sentido de elucidar os aspectos ontológicos, epistemológicos e axiológicos
que configuraram esta ou aquela visão sobre tecnologia. Entendemos que este
esclarecimento de caráter mais filosófico, do que propriamente semântico ou arqueológico
é mister para compreender o significado de tecnologia e o mundo da tecnosfera que nos
envolve no presente.
Mas, se por um lado consideramos a leitura arqueológica de Ruy Gama carecedora
de fundamentação sob o ponto de vista metodológico, dado a complexidade que envolve o
fenômeno social da tecnologia, por outro lado, avaliamos também que a posição de Milton
Vargas sobre a filosofia da tecnologia suscita questionamentos. Expliquemos melhor,
situando a posição de Vargas.
Segundo ele, só se pode falar em tecnologia, com o advento da modernidade. Numa
passagem em que o autor analisa as técnicas indígenas na época das descobertas, ele diz:
“Não me referirei aqui as tecnologias. Prefiro usar o termo técnicas, deixando o termo
tecnologias para significar as aplicações e utilizações das ciências na solução de problemas
54
técnicos, o que é totalmente estranha às culturas ameríndias.”103 Vargas, portanto, não
reconhece distinção entre tecnologia antes e depois da era moderna, pois, segundo ele,
sendo a tecnologia a aplicação e utilização das ciências na solução de problemas técnicos,
este acontecimento só foi possível depois da era moderna, daí considerar que a cultura
ameríndia não possuía tecnologia e sim técnica. É neste sentido que Vargas descreve a
evolução da tecnologia no Brasil, pois, para ele a tecnologia adentrou no Brasil somente no
séc. XIX, através das Escolas de Engenharia. O engenheiro é, então, “o homem que projeta
o ato técnico e dirige o operário na fabricação dos instrumentos, utensílios, ou na
construção da obra.”104
Com base nestas colocações de Milton Vargas é que pontuamos nossa crítica ao
autor. Entendemos que enfocar a tecnologia somente sob a perspectiva da modernidade
(como aliança entre ciência e técnica) é também um reducionismo, por desconsiderar o
“logos” da técnica (a tecnologia) que existia antes do séc. XVII. Não reconhecer a
existência da tecnologia antes da modernidade é incorrer num erro de análise histórica,
julgamos. Por exemplo, será que não é possível reconhecer o logos da técnica das
sociedades ameríndias, constituídas bem antes do processo de revolução industrial?
Reiteramos, então, o que conjecturamos já desde o início desta exposição:
identificar a natureza da tecnologia, não significa desconsiderar a existência da tecnologia
antes da modernidade, mas sim perceber conceituações e significações diferenciadas a
partir de cada contexto histórico. No caso específico da tecnologia moderna, é preciso ter
em vista o entorno histórico no qual ela está inserida. Nisto percebe-se sua transformação
de identidade, de natureza ao longo da história. Daí que nossa pretensão filosófica consiste
em revelar que plasmou o empirismo105, o conhecimento científico e o utilitarismo ético a
gênese da tecnologia moderna, em sentido ontológico, epistemológico e axiológico.Por
isso mesmo, a tecnologia na modernidade passou a significar mais que o mero estudo da
técnica.
103 VARGAS, M. O significado da técnica entre os índios brasileiros na época das descobertas. In:
Para uma filosofia da tecnologia. São Paulo: Alfa Omega, 1994, p. 192 e 193. 104 VARGAS, op. cit., p. 202 e 206. A “obra” a qual se refere o autor, diz respeito às primeiras
estradas de ferro, surgidas no Brasil, no final do séc. XIX. Daí porque o autor denomina “tecnologia implícita na engenharia”.
105 Vale esclarecer aqui que, embora Ruy Gama tenha dedicado um capítulo exclusivo de sua obra Engenho e tecnologia (1983, p.31-52) a este tema, não nos parece que esta tenha sido a opção metodológica adotada pelo referido autor ao abordar o assunto. Em diversas passagens, sobretudo introdutórias em que Ruy Gama esclarece a metodologia utilizada para análise deste assunto, ele aponta a análise arqueológica como sendo predominante. Cf. p. 21 do livro Tecnologia e engenho (1983); a Apresentação da obra História da técnica e da tecnologia (1985); parte introdutória da obra A tecnologia e o trabalho na história (1987).
55
É neste sentido que pontuamos os limites metodológicos da análise semântica que
privilegia o aspecto arqueológico ao tratar da história da tecnologia. Mas, a análise
meramente fenomenológica também não é suficiente para elucidar a complexidade que
envolve a identidade da tecnologia em sentido moderno.
Aporfundemos um pouco mais esta questão do método de análise para a tecnologia,
situemos a reflexão de Dussel, que em sua obra Filosofia de la producción, dedica parte
dela para elucidar o “método para uma teoria geral da tecnologia”. Parafraseando Marx,
que descreve a possibilidade de estudar a tecnologia “em abstrato, independentemente de
suas formas históricas, como um processo entre o homem e a natureza”106, Dussel, alerta:
Isto significa que a relação tecnológica homem-natureza tem um sentido próprio fora de toda consideração concreta em formações sociais históricas ou em diversas relações de produção. Antes que relações sociais de produção, existe já produção, tecnologia. Se pode, então, cair em dois extremos. Ou negar o condicionamento concreto, ou as determinações econômicas, políticas ou ideológicas, que se exercem sobre a tecnologia, em sua autonomia (seria pensar que a tecnologia tem autonomia absoluta: tecnologismos, tão freqüentes em universidades tecnológicas, de engenharia, desenho, etc); ou negar a existência de uma instância tecnológica autônoma ou a existência de um âmbito de técnico enquanto tal independente (seria negar a existência da tecnologia em sua autonomia: economicismo, tão freqüentes entre marxistas). Neste último sentido abstrato, não há que duvidar que o mesmo Marx diz claramente que “a economia política não é tecnologia ((technologie)”107. Por isso, se pode “desenvolver em outro lugar (mais adiante, diz Marx) a relação das determinações gerais da produção [leia-se tecnologia], em um estágio social dado’108. Tratar-se-ia aqui de descrever a essência, todavia em abstrato, da tecnologia. 109
Seguindo, pois, de perto a visão dusseliana, ancorada na perspectiva do método
marxista para o estudo da tecnologia, enfatizamos, então que a opção pela análise
filosófica, que não se trata simplesmente de produzir história da tecnologia cremos nós,
pode nos conduzir a uma avaliação crítica sobre o que é a tecnologia, sua constituição
histórica e sua função social, no sentido não só de compreender o sentido de tecnologia, as
também de repensar e redimensionar o papel da tecnologia na sociedade. Apontamos
algumas razões desta premissa.
Tal entendimento, desmistifica a concepção (de caráter essencialista) de que a
tecnologia é um fenômeno inerente à condição humana, tão antiga quanto à técnica. A
segunda motivação, é que nos faz perceber a necessidade de dirigir a razão (o pensar) para
a emancipação do homem e não para sua escravidão, como ocorre na razão instrumental,
106 MARX, O capital, I, op. cit., p.14. 107 Neste sentido Dussel, está se referindo à obra de MARX, Los grundrisse,I, p. 7, referenciado por
ele nas p. 183 da obra citada. 108 Aqui Dussel está se referindo à mesma obra de Marx, anteriormente citada, p. 8. Id. Ibid. 109 DUSSEL, op. cit., pp. 142 e 143. (Tradução livre)
56
conforme a avaliação dos frankfurtianos. O terceiro motivo é conseqüência do anterior,
pois, conduzir a razão para a emancipação, significa postular a autonomia da ciência, que
nos tempos modernos tornou-se escrava da tecnologia. A produção do pensamento livre e
autônomo (sem querer aqui pretender neutralidade científica), é condição sine qua non
para redefinir qual a função social da ciência, da técnica e da tecnologia.
O panorama da sociedade tecnológica na atualidade nos credencia a postular tais
razões e necessidades. Passados mais de três séculos, já temos condições históricas
suficientes para avaliar as significações da tecnologia moderna que plasmou a sociedade
como industrial, pós-industrial e, agora, diz-se da sociedade informática. Os símbolos
semióticos criados cinematograficamente como representação social estão aí através de
Blade Runner, Matrix, Inteligência Artificial, dentre outros. E, segundo a avaliação de
alguns pensadores da atualidade como: Robert Kurz, Arrighi, Ramonet, Boaventura
Santos110, vivemos hoje o “colapso da modernização”.111 A começar pela própria confiança
absoluta na ciência que emanciparia o homem de toda escravidão, obscurantismos e medo.
De fato, isso não ocorreu. O que constatamos hoje é a escravidão do próprio homem pelas
suas invenções e descobertas tecnológicas, só possíveis graças à aliança entre ciência e
técnica. Outro fato ajuda-nos a ilustrar o que avaliam estes autores. Nunca na história da
humanidade tantas pessoas morreram de fome, na miséria ou pela violência. A constatação
está nos dados apontados por Boaventura112. O próprio Hobsbawn, ao tecer a história do
século XX, considera que vivemos a era dos extremos,113 devido aos paradoxos que se nos
apresentam. A começar pela próprio avanço tecnológico de um lado e o extermínio de
culturas e povos (seja pela miséria, seja pela guerra) de outro lado.
Disso tudo concluímos que a tecnologia não é neutra. Ela é atividade transitiva e
não imanente. E sua identidade depende desta avaliação. E porque é um fenômeno
histórico, outro pode ser o entorno ou a “natureza” que podemos dar a ela.
110 A referência destes autores está no final deste trabalho. 111 A expressão constitui o próprio título da obra de Robert Kurz (Cf. referência no final deste
trabalho) 112 SANTOS, B. S de. Crítica da razão indolente contra o desperdício da experiência. São Paulo:
Cortez, 2000, p. 22 e ss. 113 HOBSBAWN, E. A era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
57
CAPÍTULO II
A DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA
Le mere scienze di fatti creano meri uomini di fatto114
1 PREÂMBULO
Considerando que o objetivo desta pesquisa consiste na compreensão da natureza
da tecnologia moderna, passemos agora a aprofundar seu aspecto epistemológico, pois,
assim como em sentido ontológico, com o advento da modernidade, a tecnologia adquire
características peculiares e específicas também em sentido epistemológico. Conforme já
dissemos na apresentação, referir-se à dimensão epistemológica da tecnologia significa
indagar qual conhecimento é subjacente a ela. A tese central aqui apresentada é a de que a
tecnologia moderna é moldada pela visão empirista de realidade e pelo conhecimento
científico moderno. Ambos constituem seus pilares de sustentação epistemológica.
Já apontávamos para a existência histórica destes fatores quando analisamos a
dimensão ontológica da tecnologia moderna, até porque tanto o empirismo quanto o
conhecimento científico são também determinantes na constituição de uma nova ontologia
da tecnologia na modernidade. Mas, nesta segunda parte, vamos aprofundá-los ainda mais.
Por isso, certamente o leitor encontrará aqui o desdobramento de alguns pontos já
enunciados no capítulo anterior, só que agora sob o enfoque da epistemologia da
tecnologia.
Por exemplo: afirmávamos que para entender a gênese da tecnologia moderna é
necessário ter em vista a estreita aproximação entre ciência e técnica. Pois bem, a
justificativa desta aliança deveu-se a fatores históricos, conforme já descrevemos
anteriormente, e, em sentido filosófico, tal aliança tornou-se possível graças ao surgimento
do empirismo baconiano, e com o advento da chamada Ciência Moderna no séc. XVI,
inaugurando uma nova compreensão do mundo e da realidade. Ora, a visão empirista de
realidade e o paradigma científico moderno fundamentaram também uma outra
compreensão de tecnologia, do ponto de vista epistemológico.
114 HUSSERL, Edmund. La crisi delle scienze europee e la fenomenologia transcendentale.
Milano: Il Saggiatore, 1961, p. 35. As meras ciências de fatos produzem meros homens de fato.(Tradução livre)
58
Porém, antes mesmo de adentrarmos neste ponto que é a questão central a ser
abordada neste capítulo, necessário é, para facilitar a compreensão do leitor, inicialmente
esclarecermos o sentido de epistemologia. A palavra tem suas raízes do grego (episteme),
que significa teoria. Usada para diferenciar da dóxa que indica opinião, ou um
conhecimento baseado simplesmente na opinião, a episteme diz-se do conhecimento
fundamentado teoricamente, enquanto a dóxa refere-se ao conhecimento opinativo,
característico do senso comum.115 Em sentido amplo, o termo indica a teoria filosófica do
conhecimento em geral, sendo muitas vezes utilizado como sinônimo de gnoseologia.
Atualmente, o termo é mais difundido no sentido da filosofia da ciência. Para Richard
Rorty, por exemplo, epistemologia indica o programa filosófico prevalente na filosofia
ocidental de Descartes em diante e que concentra sobre o problema da fundamentação do
conhecimento.116
Entendida, para muitos, como a fundação filosófica da ciência, a partir do corte
epistemológico instaurado com a revolução científica moderna,117 o fato é que, em sentido
moderno, a epistemologia sofre variações de significado, de acordo com as correntes
filosóficas. Os positivistas, por exemplo, reivindicam-na como estatuto próprio da ciência,
por entender que a epistemologia é a ciência que estuda o conhecimento científico. Por isso
mesmo, consideram-na a “ciência da ciência”. É neste sentido que Habermas avalia que “o
Positivismo assinala o fim da teoria do conhecimento”118, pois, ao adotar a auto-
compreensão cientificista da ciência, os positivistas caíram naquilo que Habermas
denomina de “cientismo”: “significa a fé da ciência nela mesma, a saber, a convicção de
que não mais podemos entender a ciência como uma forma possível de conhecimento, mas
que esta deva identificar-se com aquela”.119 Deste modo, outros autores entendem que a
epistemologia não pode estar enclausurada à ciência e, partindo de uma outra análise sobre
o tema, entendem-na como sendo o estudo do conhecimento a partir de sua origem,
estrutura, métodos e validade.120
115 A propósito, vale dizer que Aristóteles classificava o conhecimento fundamentado filosoficamente (epistéme) em três categorias: a THEORÉSIS que compreendia a Prima Philosophia, a Fsica e a Matemática; a PRÁXIS, que compreendia a Política, a Ética e a Economia e a POIÉSIS, que compreendia a Arte e a Técnica (Cf. REALE, História da filosofia antiga...op. cit.)
116 VATTIMO, Gianni, et al. Enciclopedia Garzanti di Filosofia. Ítália: Garzanti, 1999, p.319. 117 Sobre a natureza e a necessidade das revoluções científicas que ocasionam mudanças de
paradigmas, cf. a obra de KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1989.
118 HABERMAS, Jünger. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987, p.89. 119 HABERMAS, Conhecimento..., op. cit., p.27. 120 In RUNES, citado por SANTOS, Introdução..., op. cit., p. 19. Sobre as diversas correntes que
analisam o assunto, conferir a obra de SANTOS, Um discurso..., op. cit, pp. 18-30.
59
Como em sentido moderno, o conhecimento científico tem sido hegemônico,
conforme vamos demonstrar no decorrer deste capitulo, adotamos o termo como sendo
equivalente à filosofia da ciência. Ou seja, entendemos que a reflexão epistemológica na
atualidade, necessariamente recai sobre a análise filosófica da ciência. Contudo, vale dizer
que longe de adotarmos a visão positivista de epistemologia, o que defendemos é que ao
propormos uma análise filosófica sobre a dimensão epistemológica da tecnologia,
estaremos nos reportando a um conhecimento, que, na modernidade, é permeado pelo
conhecimento científico, em vista da sua hegemonia. Ademais, nossa análise
epistemológica não se encerra na ciência, e sim é o ponto de partida para aprofundar sua
crítica e sua crise, conforme veremos no decorrer da exposição. Portanto, é neste sentido
que deve o leitor tomar o conceito de epistemologia que aqui será utilizado.
Em outros termos: o objetivo específico deste capítulo é demonstrar as implicações
desta forma de conhecimento (ou seja, do Empirismo e do conhecimento científico) na
constituição da natureza da tecnologia moderna. Mais que apontar qual o conhecimento
subjacente à tecnologia, propomos elaborar uma reflexão hermenêutica sobre o
conhecimento em que assenta a tecnologia moderna. Parafraseando Gadamer em sua obra
“Verdade e Método”, Habermas considera que a tarefa da hermenêutica com relação à
ciência consiste numa “força subversiva que se infiltra em toda abordagem sistemática”.121
Guardadas as devidas proporções em relação ao aprofundamento do assunto dado pelo
filósofo, consideramos que também esta será nossa tarefa. Ao traçar um panorama sobre a
condição epistemológica da ciência na atualidade e suas implicações no campo da
tecnologia, pretendemos refletir, a partir de alguns aspectos que configuram o que
denominamos de crise do paradigma científico, a abordagem sistemática dada pela ciência
na relação homem e mundo.
Portanto, o enunciado supra em destaque, certamente será o tom da análise
epistemológica que aqui queremos empregar. Pretendemos evidenciar a crise
paradigmática desta visão epistemológica baseada na objetividade científica, na qual
também se insere a tecnologia, e suas implicações não somente epistemológicas, mas
também sociais e até mesmo existenciais, pois, a condição epistemológica da ciência
reflete-se na condição do ser humano de estar no mundo.
121 HABERMAS, J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasiliense,
1989, p.37.
60
Com base nesta perspectiva sobre a dimensão epistemológica da tecnologia
moderna, este capítulo será estruturado do seguinte modo. Em sentido introdutório, vamos
enfocar o empirismo moderno e sua estreita vinculação com a constituição da gênese da
tecnologia na modernidade, partindo, sobretudo, da visão baconiana. Do mesmo modo que
também apontaremos a importância da visão empirista no surgimento da ciência moderna.
De posse desta constatação, passaremos a analisar o conhecimento científico como
também sendo componente da dimensão epistemológica da tecnologia moderna. Neste
ponto, o destaque será o surgimento em sentido histórico do conhecimento científico,
sobretudo, a partir de Galileu Galilei, Descartes, Newton, entre outros. Feitas tais
considerações, o passo seguinte será o de identificar as principais características do método
científico.
Antes, porém, considerando que toda forma de conhecimento sobre o mundo e a
realidade pressupõe um método, levando-se em conta que a ciência constitui uma dentre
outras formas de saber do homem e tendo em vista que o foco de nossa análise é a
investigação sobre que conhecimento permeia a tecnologia moderna, vamos analisar qual é
o sentido do método e suas implicações sobre a visão de mundo que carrega consigo.
Entendemos que a análise (ainda que fenomenológica) do que é o método, ou pelo menos o
sentido que aqui queremos dar, é mister para assegurar o que propomos dizer a seguir, qual
seja: analisar alguns aspectos característicos do método científico para, então, postular a
crise do paradigma científico. Ademais, cremos que a adoção deste ou daquele método,
não é meramente uma escolha desta ou daquela ferramenta com vistas a um objetivo. O
método pressupõe uma visão de mundo e, portanto, carrega em si um modelo
paradigmático de cada sociedade em cada tempo.
Por isso mesmo, num segundo momento, nossa pretensão será tecer considerações
acerca do método científico, partindo de suas características elementares para, em seguida,
apontar certas provocações sobre sua constituição enquanto paradigma vigente e
dominante do modo como concebemos o mundo e a realidade. Aqui, vamos esboçar
algumas críticas sobre o paradigma científico, postulando sua crise, primeiramente em seus
aspectos históricos, sociológicos e teóricos, e, posteriormente, em seus aspectos
epistemológicos.
Tal crítica é o ponto de partida de uma análise que pretende meramente ser uma
reflexão introdutória, visto a complexidade do assunto e do estágio ainda embrionário em
que se encontra. Mais que explicar, queremos indagar; mais que descrever, propomos
61
conjecturar sobre a crise do paradigma científico. Afinal, afirma Boaventura, vivemos
numa sociedade intervalar, uma sociedade de transição paradigmática.122 Assim sendo,
deve o leitor tomar este texto como uma reflexão preliminar, característica daqueles
tempos em que se vivem períodos de transição, que é, cremos nós, o momento histórico,
em sentido epistemológico, no qual estamos inseridos e conforme assinala Morin:
Creio estarmos numa época em que temos um velho paradigma, um velho paradigma que nos obriga a disjuntar, a simplificar, a reduzir, a formalizar sem poder comunicar aquilo que está disjunto e sem poder conceber os conjuntos ou a complexidade do real. Estamos num período “entre dois mundos”; um que está prestes a morrer, mas que não morreu ainda, e outro, que quer nascer, mas que não nasceu ainda.[...].123 Em vista deste quadro é que pretendemos acenar para a necessidade de repensar
uma outra identidade para a tecnologia moderna. Aqui, vamos elencar, inclusive, algumas
práticas que carregam em si um outro olhar epistemológico sobre a tecnologia.
Entendemos que a análise epistemológica da tecnologia pode contribuir para apontar novas
perspectivas sobre o conhecimento, baseada num outro olhar sobre a realidade, cujas
práticas tecnológicas deve levar em conta a complexidade, a intersubjetividade e a
intencionalidade na dinâmica dos fenômenos; deve priorizar o local em detrimento do
global. Enfim, uma outra dimensão epistemológica da tecnologia que leve em conta o
conhecimento historicamente acumulado de uma dada comunidade. Conhecimento este
que não é só científico, mas que nasce colado às experiências do cotidiano de uma dada
cultura e que se perfaz por múltiplas formas de conhecimento e de produção material.
Seguindo a mesma perspectiva de análise, nas considerações finais deste capítulo,
apontaremos a necessidade de repensar a própria visão de mundo e de realidade
característica do paradigma científico e da visão empirista de realidade, partindo da
condição epistemológica do tempo presente e da condição existencial do ser humano. Ou
seja, a crise epistemológica se reflete também na nossa condição existencial de estar no
mundo. Portanto, não é somente uma crise de conhecimento sobre as coisas, mas,
sobretudo, de autoconhecimento do homem consigo mesmo. Neste contexto é que deve ser
pensada a dimensão epistemológica da tecnologia.
2. EMPIRISMO E TECNOLOGIA MODERNA
122 SANTOS, A crítica..., op. cit., p. 41. 123 MORIN, Edgar. A inteligência da complexidade. São Paulo, 1999, p. 40 e 41.
62
Vimos que a aliança entre ciência e técnica, a partir da modernidade é fator
indispensável para a compreensão da ontologia da tecnologia. Afora as referências que
fizemos no capítulo anterior, vale a pena, a fim de retomarmos a compreensão deste
consórcio, citar ainda mais uma afirmação sobre o que é tecnologia em que está presente
este novo contexto da tecnologia:
Escolho um significado de ‘tecnologia’ que a distingue da ‘técnica’, permitindo contrastar o homem tecnológico moderno com o homem técnico de sempre e caracterizar de modo específico a situação contemporânea. Será tecnologia aquela técnica que não se limita a escogitar maquinarias úteis com método empírico, mas procede pari passu com a ciência, ora (sem dúvida mais freqüente) solicitando-na, ora aplicando-na as descobertas teóricas. E com ciência entendo aquele fato moderno, nascido da época galileana, a ciência que eliminando a qualidade e a essência reduz o cognoscível ao mensurável e à estrutura do mensurável, atravessando as fases (ideais mais que históricas) do materialismo (ser = matéria), do fisicalismo (ser = matéria + energia), do reducionismo (ser = matéria + energia + informação). A tecnologia se distingue como espécie entre o gênero técnica, enquanto técnica solidária da ciência moderna e em particular da sua fase madura, aquela reducionista. 124 Pois bem, esta aliança que delineia o caráter ontológico da tecnologia moderna,
além dos fatores históricos que lhe deram sustentação, conforme já enunciamos no capítulo
anterior, só se tornou possível em sentido filosófico, graças ao Empirismo. Pensamento
que ganha forças, sobretudo, no séc. XVI, com Bacon. Expliquemos melhor tal premissa
situando histórica e epistemologicamente o Empirismo Moderno.
Podemos considerar que três são as questões fundamentais da Teoria do
Conhecimento: “o que se conhece”, “como se conhece” e “quem conhece”. Sobre “como
se conhece”, duas são as correntes predominantes em termos de história da filosofia
moderna, a saber: o racionalismo e o empirismo. O Empirismo é uma corrente filosófica
que tem na experiência o fundamento da verdade. Opõe-se ao Racionalismo que vê na
razão a base do conhecimento. A razão como critério de verdade pode ser falível, enquanto
que na experiência reside a possibilidade e a condição da verdade ser colocada à prova,
alegam os empiristas.
O Diccionário de Filosofía de Nicola Abbagnano acrescenta: “a atitude empirista
consiste em supervalorizar a importância dos fatos, dos dados, das condições que
possibilitam a comprovação de uma verdade qualquer, já que a verdade não é tal se não é
comprovada como tal e o único meio de comprovação se refere a coisas reis [...].125
124 O conceito é citado por VALLAURI, Luigi Lombardi. L’impatto della tecnologia sulla vita e
sulla autopercezione dell’uomo. In: BAUSOLA, Adriano et al. Etica e transformazioni tecnologiche. Milano: Vita e Pensiero, 1987, p. 40 (Tradução livre).
125 ABBAGNANO, op.cit., p.399 (Tradução livre).
63
Na modernidade Bacon (1561 – 1626) tornou-se um dos principais representantes
desta corrente filosófica. Considerado por muitos como o “profeta da revolução
tecnológica moderna”,126 o filósofo inglês, no séc. XVII (período em que a Inglaterra
ocupava a vanguarda européia nos setores de mineração e indústria), defendia uma ciência
operativa e não contemplativa. Para ele, os filósofos escolásticos e platônicos são
comparados às aranhas que tecem teias maravilhosas, mas permanecem alheias à realidade.
Por isso, Bacon defendia que o saber sobre a natureza deveria ser um saber ativo e fecundo
de resultados práticos. Analisando outros feitos do filósofo empirista, Paulo Rossi avalia
que Bacon foi na modernidade o arauto da indagação sobre a função social da ciência; foi
um crítico severo da utilização da magia na pesquisa científica tão comum em seu tempo;
um defensor da técnica e da valorização do progresso científico e o mentor de uma nova
técnica de abordagem da natureza.127
Em sua obra Novum Organum, ele propõe o método das ciências naturais baseado
na experiência como fundamento da verdade.128 E a verdade representa o domínio da
natureza. Eis como se anuncia o tratado de Bacon, exposto logo no III aforismo: “Ciência e
poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frustra-se o efeito”.129
Portanto, para Bacon, a verdade é poder (“veritas est possum”).
Na referida obra, todo o empenho de Bacon consiste em destruir os pressupostos
ou postulados da ciência existentes até então, e, em seguida, dedica-se a construir as novas
bases de sua “instauração”. Na parte “destrutiva da instauração”, como ele mesmo assim
costumava denominar130, Bacon se ocupa em refutar o racionalismo filosófico dos antigos
a partir de três pontos.
A primeira refutação consiste em considerar a “razão humana natural” como modo
de conhecimento. Para Bacon a confiança somente na razão como meio para se chegar ao
conhecimento é insuficiente, e pode nos levar a conclusões equivocadas sobre as coisas,
pois, os sentidos do homem são enganadores e não nos garante o que, de fato, é a natureza.
Daí a necessidade de realizar experimentos a fim de comprovar as descobertas científicas.
Providência esta que Francis Bacon não vê em Aristóteles. A lógica aristotélica, dizia
freqüentemente Bacon, “estabelecia antes as conclusões, não consultava devidamente a
126 Cf. REALE, op. cit., Vol. II, pp. 322 e 323. 127 Citado por REALE, op. cit., Vol. II, p.328. 128 BACON, Francis. Novum organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da
natureza. In: OS PENSADORES. São Paulo: Abril Cultural, 1984. Vale lembrar que o título desta obra deveu-se às severas críticas de Bacon à obra aristotélica Organum.
129 BACON, op. cit., p. 13. 130 BACON, op. cit., p. 75.
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experiência para o experimento de suas relações e axiomas”.131Por isso ela é equivocada,
fundada em noções vulgares e inúteis para o incremento das ciências.
O segundo aspecto a ser amplamente criticado por Bacon, diz respeito às
demonstrações lógicas da ciência fundada pelos antigos. Para ele as demonstrações
advindas da lógica de Aristóteles são falsas. Nestes termos, ele diz:
As demonstrações, na verdade, são como que filosofias e ciências em potência, porque, conforme sejam estabelecidas, mal ou corretamente instituídas, assim também serão as filosofias e as especulações. Errados e incompetentes são os que seguem o processo que vai dos sentidos e das coisas diretamente aos axiomas e às conclusões. Esse processo consiste em quatro partes e quatro igualmente são os seus defeitos. Em primeiro lugar, as próprias impressões dos sentidos são viciosas; os sentidos não só desencaminham como levam a erro. É pois necessário que se retifiquem os descaminhos e se corrijam os erros. Em segundo lugar, as noções são mal abstraídas das impressões dos sentidos, ficando indeterminadas e confusas, quando deveriam ser bem delimitadas e bem definidas. Em terceiro lugar, é imprópria a indução que estabelece os princípios das ciências por simples enumeração, sem o cuidado de proceder àquelas exclusões, resoluções ou separações que são exigidas pela natureza. Por último, esse método de invenção e de prova, que consiste em primeiro se determinarem os princípios gerais e, a partir destes, aplicar e provar os princípios intermediários, é a matriz de todos os erros e de todas as calamidades que recaem sobre as ciências [...].132 Sem dúvida, a melhor forma de demonstração, reitera Bacon, é a experiência. E,
ainda assim, aquela deve ficar adstrita ao experimento.133Mas não basta a experiência. Esta
deve ser precedida de leis seguras e de forma gradual e constante. Nota-se que tais noções
defendidas por Bacon constituir-se-ão, mais tarde, as bases do método experimental da
ciência moderna, como veremos ainda neste capítulo, quando tratarmos do conhecimento
científico como um dos elementos também constitutivos da dimensão epistemológica da
tecnologia moderna.
Ainda quanto à questão do método, vale dizer que se Bacon rechaça a dedução −
considerando-a incompetente enquanto processo demonstração, utilizado pela filosofia
tradicional −, em seu lugar ele propõe a indução. Diz que é melhor dividir em partes a
natureza do que abstraí-la.134 E acrescenta: “muito se poderá esperar das ciências [...] se
souber caminhar dos fatos particulares aos axiomas menores, desde aos médios, os quais se
elevam acima dos outros e, finalmente aos mais gerais”.135
131 BACON, op. cit., p. 33. 132 BACON, op. cit., p. 38. 133 Aqui Bacon, está se referindo, sobretudo, as experiências dos alquimistas, que, segundo ele, são
eivadas de supertições e, portanto, são viciosas. Para ele, os alquimistas são “azarões da experiência”, não sabendo ao certo, se devemos rir ou chorar diante de suas descobertas. Cf, BACON, op. cit., pp. 53-54 e 34.
134 BACON, op. cit., p. 26. 135 BACON, op. cit., p. 68.
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Também Bacon não admite qualquer finalismo nos seres da natureza. A exemplo
de Aristóteles que concebia a existência dos seres a partir das quatro causas (já
referenciadas aqui na página – Ver I Cap.), Bacon considera que “a causa final longe está
de fazer avançar as ciências, pois, na verdade as corrompe, mas pode ser de interesse para
as ações humanas”.136 Vale dizer que para ele a causa formal é a que resulta na efetiva
verdade na investigação e na descoberta da operação, pois, é através das formas que se
abarca a unidade da natureza como um todo, em todas as suas matérias. Portanto, esta é a
forma causal que interessa à ciência ativa. E conclui: “o que é mais útil na prática é mais
verdadeiro no saber”.137
A terceira refutação diz respeito às próprias teorias filosóficas, que, segundo Bacon,
por serem embasadas numa lógica equivocada, em poucos experimentos e em superstições,
têm provocado em nossas mentes a geração de idolatrias, os quais, ele classifica como
sendo de quatro tipos: os ídolos da tribo (denominado por Bacon para designar os ídolos
produzidos pela idéia de que os sentidos do homem são as medida das coisas); os ídolos da
caverna (que se referem a forma como produzimos o conhecimento); os ídolos do foro
(trata-se do uso das palavras que, se impostas de modo inadequado e inepto, bloqueiam o
intelecto) e os ídolos do teatro (que diz respeito aos ídolos produzidos pelas doutrinas
filosóficas e suas formas de demonstração). Tais doutrinas filosóficas se referem,
especialmente, aos gregos e aos medievais.
Sobre a filosofia e a ciência dos gregos, Bacon diz: “os gregos, com efeito,
possuem o que é próprio das crianças: estão sempre prontos a tagarelar, mas são incapazes
de gerar, pois, a sua sabedoria é forte em palavras, mas estéril em obras”.138 E sobre os
medievais, ele avalia que esta foi uma época infeliz para a ciência, posto que, tanto árabes,
quanto escolásticos mais “atravancaram as ciências que concorreram para aumentar-lhes
peso.”139
Mas, se por um lado, Bacon é um severo crítico do modo como se fazia ciência até
seu tempo, por outro lado, ele mesmo tornou-se um defensor incansável de um novo
organum que pudesse criar uma “filosofia natural pura” e reconduzir a ciência a trilhar
caminhos mais seguros e úteis do ponto de vista da necessidade da vida humana. Por isso,
136 BACON, op. cit., p. 94. Com relação aos outros modos de causalidade (a saber: a causa formal, a
material e a eficiente), a concordância de Bacon com Aristóteles é meramente no plano terminológico. Mas a extinção baconiana da causa final, representa, sem dúvida, a grande perda do aristotelismo enquanto interpretação do mundo natural.
137 BACON, op. cit., pp. 96 e 97. 138 BACON, op. cit., p. 41. 139 BACON, op. cit., p. 42.
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anunciava orgulhosamente o impacto das descobertas científicas de seu tempo sobre o
homem.
É preciso considerar ainda a força, a virtude e os efeitos das coisas descobertas, que não se apresentam tão claramente em outras coisas quanto nestas três invenções, que eram desconhecidas para os antigos e cuja origem, embora recente, é obscura e inglória: a arte da impressão, a pólvora e a bússola. Com efeito, essas três coisas mudaram a situação do mundo todo, a primeira nas letras, a segunda na arte militar, a terceira na navegação: provocaram mudanças tão infinitas que nenhum império, nem seita, nem estrela parece se exercido maior influência com mais eficácia sobre a humanidade que estas três invenções.140
Ele preconizava a urgência de se produzir uma História Natural e Experimental,
cuja idéia central é que “não se deve inventar ou imaginar o que a natureza produz, mas
descobri-lo”.141 Depositava confiança suprema na ciência; era ela a razão da esperança
num futuro melhor, 142que aconteceria, segundo ele, quando ocorresse “a aliança estreita e
sólida (ainda não levada a cabo) entre essas duas faculdades, a experimental e a
racional”.143 Sobre tal exigência, Bacon faz a seguinte avaliação histórica:
Os que se dedicaram às ciências foram ou empíricos ou dogmáticos. Os empíricos, à maneira das formigas, acumulam e usam as provisões; os racionalistas, à maneira das aranhas, de si mesmo extraem o que lhes servem para a teia. A abelha representa a posição intermediária: recolhe a matéria-prima das flores do jardim e do campo e com seus próprios recursos a transforma e digere. Não é diferente do labor da verdadeira filosofia, que se não serve unicamente das forças da mente, nem tampouco se limita ao material fornecido pela história natural ou pelas artes mecânicas, conservando intacto na memória. Mas ele deve ser modificado e elaborado pelo intelecto. 144 Neste sentido, Ruy Gama afirma: “Bacon rejeitou a separação e a oposição vigentes
nas filosofias tradicionais [...] entre teoria e prática; entre lógica e operações reais, entre
verdade e utilidade”.145 Sobre a dicotomia entre teoria e prática Ruy Gama esclarece que
Bacon:
Interpretou essa oposição como oriunda de condições históricas e sociais bem determinadas que valorizavam a contemplação _ a verdade em sua pureza _ e que desprezavam tudo que fosse ligado a atividades materiais. [...] E a partir daí sustenta a identidade entre verdade e utilidade, teoria e atividade operativa, conhecer e fazer e afirma
140 BACON, citado por REALE, op. cit., Vol II, p. 323. Vale lembrar que para Reale, Bacon foi o
“profeta da revolução tecnológica moderna” (Cf. REALE, op. cit., Vol. II, p. 322) 141 BACON, op. cit., p. 102. 142 Vale lembrar que o resultado do imaginário baconiano de uma sociedade regida pela ciência está
descrito em Nova Atlântida, título de uma outra obra de Bacon que reflete o sentido utópico da ciência para o filósofo.
143 BACON, op. cit., p. 63. 144 Id. Ibid. 145 GAMA, R. Engenho..., op. cit., p. 33
67
que qualquer separação e contraposição entre esses termos cria obstáculos intransponíveis à construção de teorias verdadeiras e à consecução de resultados efetivos e eficientes.146 Em síntese, Bacon exalta a experiência como verdadeira forma de demonstração e a
indução como caminho seguro do conhecimento; exclui o finalismo do processo natural e
rechaça a verdade como contemplação, teoria especulativa, enaltecendo a verdade como
dado da experiência, das atividades práticas e materiais. A exaltação da prática, para os
empiristas, tem em vista uma utilidade, o resultado efetivo, pragmático. Bacon, por
exemplo, repudiando a ociosidade da Aristocracia da época, ressalta o trabalho como a arte
do fazer. Em palavras textuais ele conclui suas indicações acerca da interpretação da
natureza: “Comerás do pão com o suor de tua fonte147 por meio de diversos trabalhos
(certamente não pelas disputas ou pelas ociosas cerimônias mágicas), chega, enfim, ao
homem, de alguma parte, o pão que é destinado aos usos da vida humana.” 148
Posição esta que também será adotada pela burguesia − nova classe social em
ascensão − para quem o saber não pode estar desligado da produção.149 Conclui, então,
Gama que “a literatura técnica e as sociedades científicas experimentais têm no empirismo
seu suporte filosófico e tentam romper as barreiras entre o Pensar e o Fazer”. 150
Ora, este é o contexto filosófico do surgimento da tecnologia moderna. Esta (a
tecnologia) é exatamente o resultado da aliança entre teoria e prática. A primeira
representada pela ciência, a segunda pela técnica. Daí afirmar, em princípio que a
tecnologia, em sentido moderno, implica num conhecimento racional (portanto, científico)
com vistas a uma utilidade prática, instrumental (portanto, técnica).
Conforme já salientamos anteriormente (I capítulo), a valorização do conhecimento
prático, garantido pela tecnologia, e sustentado ideologicamente pela visão filosófica do
Empirismo não aconteceu de modo aleatório, nem foi por acaso. Ela obedece a um projeto
político, social, econômico que ultrapassa as fronteiras dos Estados e que estava sendo
gestado neste período, que é o surgimento da sociedade capitalista. Por isso, considera-se
que, em sentido moderno, não há que separar a tecnologia do modo de produção
capitalista, pois sem a aliança entre ciência e técnica (= tecnologia) não seria possível o
146 Id. Ibid., p. 33 e 34. A interpretação de Gama é baseada na obra ROSSI, Paolo. Los filósofos e lás
máquinas. Barcelona: Editorial Labor, 1966. 147 A citação refere-se à leitura bíblica do Gênesis, 3, 19. 148 BACON, op. cit., p. 231. 149 GAMA, Engenho..., op. cit., p. 37. 150 GAMA, Engenho..., op. cit., p. 34 e 35. Vale lembrar ainda que para Ruy Gama a preocupação de
aliar teoria e prática já estava presente no conceito de trabalho aplicado pelas corporações medievais dos séculos XI e XII. Cf. GAMA, Ruy. O trabalho nas cidades medievais. In: A tecnologia e o trabalho na história. São Paulo: Edusp, 1987, p. 83-109.
68
mercantilismo (fator histórico decisivo para o surgimento do capitalismo), nem o
desencadeamento da Revolução Industrial (filha primogênita do capitalismo).
A seguir, tem-se a ilustração dos dois fatores históricos acima mencionados a título
argumentativo do que se conjectura. A primeira passagem é extraída do livro História
social de la ciência, vol. 1, p. 305-306, citado por Gama:
As grandes navegações foram fruto da primeira aplicação consciente da ciência astronômica e geográfica a serviço da glória e do lucro. Foi natural que as cidades alemãs e italianas [...] com seu vasto comércio tomassem a dianteira nos aspectos teóricos do problema. O aspecto prático foi desenvolvido principalmente pelos navegadores portugueses e espanhóis, que combinaram os últimos esforços das cruzadas com a noção prática acerca das ‘plantations’ de açúcar, dos escravos e do ouro. Teoria e prática confluíram na corte do príncipe Henrique, o navegador (1415-1460), em Sagres, onde técnicos mouros, judeus, alemães e italianos discutiam novas viagens com os capitães que já haviam navegado o Atlântico. (grifo nosso)151 Relatando o processo das grandes navegações mercantilistas, o historiador da
ciência John Bernal deixa claro dois aspectos importantes para o propósito de nossa
reflexão. O primeiro, diz respeito à combinação entre teoria e prática como elementar para
garantir o projeto de navegação. Sabe-se que até a Idade Média, a ciência é uma atividade
de caráter especulativa, dissociada da atividade prática, técnica. Portanto, esta aliança é
fato inédito na história mundial. O segundo aspecto refere-se ao fator econômico, pois
graças à “aplicação consciente da ciência” foi possível o lucro e a glória, eis os primórdios
da sociedade capitalista.152
O relato seguinte nos dá a idéia de como a tecnologia moderna está imbricada no
processo de industrialização. Referindo-se à tecnologia e à indústria, Marx escreve no vol.
1 do livro I, p.567 de O Capital, citado por Gama:
Criou a moderna ciência da tecnologia o princípio de considerar em si mesmo cada processo de produção e de decompô-lo, sem levar em conta qualquer intervenção da mão humana, em seus elementos constitutivos. As formas multifárias, aparentemente desconexas e petrificadas do processo social de produção se decompõem em aplicações da ciência conscientemente planejadas e sistematicamente especializadas segundo o efeito útil requerido. (grifo nosso)153 Repare que Marx caracteriza o processo de industrialização a partir da aplicação
planejada e consciente da ciência com vistas a um fim útil, ao que ele denomina de
151 GAMA, R. Engenho..., op cit., p. 49. 152 Acrescenta-se ainda que neste relato histórico encontramos claramente a fecundação dos ideais
de Bacon, afinal, como observou B. Farrington, nenhum outro filósofo nos últimos trezentos anos se preocupou tanto com a “influência das descobertas científicas sobre a vida humana”. Citado por REALE, op. cit., Vol II, p. 323.
153 GAMA, R. op. cit., p. 50.
69
“moderna ciência da tecnologia”. A máquina que incorpora o trabalho objetivado do
trabalhador, separando este de seu saber, é fruto do empenho da ciência moderna que
garante um conhecimento científico como força produtiva. É na maximização da produção
e minimização do tempo como garantia do lucro (operacionalizado pela máquina) que
reside a aplicação prática e útil da ciência. Por isso, que (como vimos no capítulo anterior)
para Marx, a tecnologia tornou-se uma mediação necessária ao sistema capitalista: ela
molda o novo momento histórico do processo de produção, instaurado com a modernidade,
quando a ciência instrumentalmente acoplou-se à técnica.
3 CONHECIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLOGIA MODERNA
Vimos até aqui como o Empirismo sustentou histórica e filosoficamente a aliança
entre teoria e prática, a qual desembocou na assim chamada “moderna ciência da
tecnologia”, conforme a pertinente observação de Marx, quando esta passou a utilizar a
aplicação dos conhecimentos científicos na solução dos problemas práticos. Mas, ainda nos
resta salientar que, a aliança entre técnica e ciência somente tornou-se possível graças ao
surgimento de uma nova concepção de conhecimento que passou a vigorar a partir da era
moderna. Em outros termos, o que queremos ressaltar é que ao lado do empirismo, também
o conhecimento científico passou a ser um dos pilares epistemológicos que garantiu o
conhecimento presente na tecnologia. Aprofundemos, então, o que enunciamos.
3.1 O Paradigma Científico de Conhecimento:
3.1.1 Aspectos Filosóficos da Revolução Científica Moderna
Conforme já fora salientado anteriormente, em sentido filosófico e epistemológico,
diríamos que a Modernidade é marcada pelo paradigma da cientificidade.154 Isto significa
dizer que na época moderna a ciência e junto com ela o método científico passaram a ser a
forma de conhecimento predominante e hegemônico na sociedade. E equivale a dizer ainda
154 Dado a amplitude que adquiriu o conceito nos últimos tempos, alertamos o leitor que por
paradigma considera-se aqui a seguinte noção: trata-se de um modelo de visão de mundo característico de certa época; é a cosmovisão predominante em certo período histórico, que possui implicações não só científicas, mas também culturais, políticas, econômicas, sociais, etc. Cf. MARGARET, Mastern. A natureza de um paradigma. In: LAKATOS e MUSGRAVE (Org.) A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix, 1970, p. 72 – 109.
70
que na modernidade, assim como o sentido de técnica e tecnologia, a ciência também
adquire características que lhes serão peculiares em termos históricos.
(1) Assim, por exemplo, no lugar de uma ciência contemplativa, racional,
especulativa e dedutiva como eram a dos antigos, gradativamente toma seu lugar uma outra
concepção de ciência: experimental, prática, operativa, ativa e indutiva, assim como
preconizava Bacon.
(2) Outra característica marcante da revolução científica moderna é a valorização
de um novo conceito de “cientista”. O “novo douto” não é mais o filósofo medieval, ou o
humanista catedrático, o mago, ou astrólogo, ou até mesmo o artesão e o artista do
Renascimento, e sim aquele que é capaz de validar seu saber pelo controle da pesquisa
experimental.
(3) Deste novo conceito surge outra característica marcante da ciência moderna: a
instrumentação científica. Se o novo cientista é agora o homem rigoroso que produz saber
através da pesquisa experimental, esta exige instrumentos de medida cada vez mais
precisos. Ora, a introdução de instrumentos como auxílio das descobertas científicas,
tornam-se eles mesmos, parte do saber científico. Ou seja, os instrumentos de medida não
estão fora do invento, mas compõe a própria teoria científica. Em suma: “os instrumentos
entram na ciência com função cognoscitiva” e não meramente instrumental. Deste modo, a
ciência moderna “sanciona a legalidade dos instrumentos científicos”.155
(4) Mas, a mudança mais significativa que ocorreu no processo da revolução
científica foi a transformação filosófica da imagem do mundo, da ciência e do próprio
homem. Com as descobertas científicas de Copérnico (1473 – 1543), criou-se um novo
paradigma em torno da Teoria Heliocêntrica: a terra deixa de ser o centro do Universo e,
conseqüentemente, o homem moderno é levado a desconfiar do posto privilegiado da
Criação auferido pelas Escrituras, segundo a interpretação dos medievais. Tal desconfiança
só fez aumentar quando das descobertas dos “Selvagens” com as grandes navegações
além-mares, que colocou em questionamento as teses antropológicas e antropocêntricas do
velho continente europeu. Os limites do mundo rompido com a teoria do Universo Infinito
de Giordano Bruno (1548- 1600), então veio consumar tal desconfiança. A transformação
da imagem do mundo e do homem atingiu gradativamente a ciência, pois, se para o
pensamento clássico a ciência é um saber sobre a essência das coisas elaborado por teorias
e conceitos definitivos, para o homem moderno, a ciência passa a ser um saber que busca a
155 REALE, op. cit., Vol. II, pp. 196 e 198.
71
qualidade das coisas, do mundo material e objetivo. “Não é mais o que, mas o como; não é
mais a substância, mas sim a função, que a ciência galileana e pós-galileana passariam a
indagar”.156
Em suma:
Com efeito, o advento da ciência moderna veio desintegrar por completo tudo o que se acreditava saber sobre o mundo físico. Este saber se reduzia à cosmologia ensinada nas escolas, impregnada de aristotelismo, reunindo e exprimindo uma espécie de familiaridade concreta (intelectual, estética, moral e religiosa) do homem e do universo. A física científica veio substituir essa cosmologia por um jogo de representações “claras e distintas”, elementares e quantitativas, doravante manejadas matematicamente. A qualidade antiga é posta sob suspeita, sendo acusada de “qualidade oculta”. Os antigos “princípios” são recusados. A matemática passa a ser compreendida de forma inteiramente diversa. A idéia de ‘forma substancial”é proscrita. A figuração do conjunto do universo é derrubada. E é dilacerado o pacto das antigas familiaridades do homem com a natureza.. tudo é substituído por um empirismo intelectual mais adulto e, praticamente, mais eficaz e agressivo. A antiga “filosofia natural”, sobrevivendo aos manuais oficiais de cosmologia, é atingida por um golpe mortal. A nova “filosofia natural” passa a ser doravante a ciência física. Não pode mais haver uma filosofia coerente da natureza. O que sobra da pretensa cosmologia filosófica na escolástica de Worlf, será destruído por Kant.157 Mas além de Bacon, Copérnico e Bruno outros pensadores contemporâneos a eles
forneceram as bases da constituição filosófica de uma nova epistemologia, sendo, portanto,
os séculos XVI e XVII o período marcante desta transição paradigmática. Dentre eles
destacamos, Galileu Galileu (1564-1642), Descartes (1596-1650) e Newton (1642-1727).
A seguir, apresentamos os aspectos mais relevantes de suas teorias em vista do propósito
deste trabalho.158
3.1.2 Galileu, Descartes e Newton e a Visão Mecanicista
Se por um lado Bacon (1620) na Inglaterra inaugurou o Empirismo em sentido
moderno, na Itália, Galileu Galileu já havia realizado seus experimentos científicos na área
da astronomia. Em verdade, foi Galileu quem inaugurou o “método experimental” e
científico por excelência. Suas descobertas ocupavam-se em explicar “como” as coisas
156 REALE, op. cit., Vol. II p. 188. 157 JAPIASSU, op. cit., pp. 54 e 55. 158 A esta altura, é mister esclarecer ao leitor que, em vista do nosso propósito, o que será exposto a
seguir não é um estudo minuncioso dos legados destes grandes pensadores modernos, senão uma exposição suscinta e objetiva capaz de fornecer os instrumentais teóricos que nos auxiliem a compreender como suas idéias fundamentaram uma outra epistemologia, inclusive da tecnologia, no período moderno. Com esta exposição também não pretendemos fornecer uma leitura inusitada destes filósofos, o que propomos é tão somente situar os aspectos elementares de suas teorias como ponto de partida, que nos conduzirá a legitimar uma das teses centrais desta pesquisa que é a de que no período moderno a tecnologia sofre e propicia transformações sociais profundas, não podendo ser confundida com o mero estudo da técnica e que ela é um fenômeno social contingencial e não necessário historicamente.
72
funcionam no Universo e consistia em partir de uma hipótese, baseada na experiência, e na
formulação de uma lei, baseada na comprovação empírica, explicada através de um modelo
matemático. Portanto, Galileu promoveu a união da Física como processo indutivo e da
Matemática como processo dedutivo na elaboração de suas descobertas científicas. Desse
modo, ele instaurou o que há de mais elementar no processo de construção do
conhecimento científico moderno, ou seja, “a experiência científica é feita de teorias que
instituem e de fatos que controlam teorias”.159 Nisso consiste a revolução epistemológica
iniciada por Galileu, que é avaliada por Gusdorf nos seguintes termos:
Galileu é o autor da revolução copernicana ou, pelo menos, seu herói, confessor e mártir, não devendo a revolução ser entendida como um episódio na história da astronomia, mas como uma reavaliação de todos os valores [...] A destruição galileana do Cosmos é a peripécia capital da história do saber no Ocidente, porque todas as revoluções epistemológicas, ao lado da revolução galileana, não passam de revolução de palácio, enquanto o aparecimento da inteligibilidade mecanicista não transforma este ou aquele modo de pensar, esta ou aquela maneira de ver: impõe um novo pensamento do pensamento. Já nada é igual, porque “tudo mudou”.160 Por isso, Galileu é considerado o “fundador da ciência moderna” 161; pela
instituição de seu método científico, ele forneceu as provas empíricas da teoria
copernicana.162 Ademais, Galileu, ainda que membro da Igreja, tornou-se um defensor
incansável da autonomia da ciência em relação à fé. Dizia ele que ambas são
incomensuráveis e, por isso mesmo, compatíveis; a Fé explica “como se vai ao céu”, a
Ciência explica “como é o céu”.163 Mas, sendo Galileu um defensor da ciência autônoma e
independente, sua posição revelou-se também eivada de um certo dualismo acerca do
assunto, posto que “a ciência é cega para o mundo dos valores e do sentido da vida,
enquanto a fé é incompetente sobre questões factuais”.164
Acreditava também que a ciência poderia nos dar uma descrição verdadeira e
objetiva da realidade, afinal a ciência deveria se ocupar dos aspectos quantificáveis e
159 REALE, op. cit., Vol II, p. 267. 160 JAPIASSU, op. cit., p. 53 161 REALE, op. cit., Vol. II, p. 252. 162 Neste sentido, Japiassu esclarece porque a postura de Galileu oferecia tanto “perigo” às
autoridades eclesiásticas: Diferentemente de Copérnico, que jamais foi censurado, posto que seu livro De Revolutionibus (1543), escrito em latim, só acessível a um pequeno grupo letrado, não constituía um perigo para os costumes, Galileu escreveu seus livros-chave, II Saggiatore e o Diálogo, em italiano, língua conhecida pelo grande público. [...] Enquanto Copérnico foi lido por uns poucos “doutos”, Galileu foi lido por muita gente. O pior é que ele veio trazer provas físicas às teses metafísicas de Copérnico. De repente, seu ensinamento entra em contradição com a ordem estabelecida. Sua demonstração científica torna o heliocentrismo especulativo copernicano muito mais subversivo e explosivo. Donde a reação imediata do cardeal Belarmino (1542-1621) contra a nova astronomia e em favor da ortodoxia tridentina. Cf. JAPIASSU, op. cit., pp. 60 e 61
163 REALE, op. cit., Vol II, pp. 266 e 278. 164 REALE, op. cit., Vol II, p. 266.
73
mensuráveis que são iguais para todos e não dos aspectos subjetivos (como dor, odor,
sabor) que variam de homem para homem. Deste modo, Galileu elimina a investigação
qualitativa do bojo da ciência em benefício da investigação quantitativa. E, assim como
Bacon, exclui a causalidade final em favor da causalidade mecânica (formal) e eficiente da
natureza. Nisso reside uma das principais diferenças entre o “mundo” de Galileu e o
“mundo” de Aristóteles.165
Se Galileu tornou-se o fundador da Ciência Moderna, Descartes na França, anos
depois, tornou-se “o fundador da Filosofia Moderna”, inaugurando a visão antropocêntrica
de realidade, base de todo pensamento ocidental na modernidade.166 Em sua obra,
intitulada Discurso do método, Descartes dizia que o método deveria conduzir “a própria
razão e procurar a verdade das Ciências”. Isto significa dizer que a partir de Descartes, o
homem conheceu uma nova postura epistemológica frente ao ato de conhecer, baseada na
“dúvida metódica”. Diferentemente da visão medieval em que o conhecimento é revelação
divina, portanto um dado de fé (o modelo é teocêntrico), a visão cartesiana postulou a idéia
de que nosso conhecimento sobre o real tanto mais será verdadeiro, quanto mais
duvidarmos e indagarmos sobre sua veracidade, portanto, ele é um dado de razão (o
modelo é antropocêntrico). Assim, Descartes instaura, no plano do conhecimento a
subjetividade humana: quem conhece é o homem, através da razão (cogito ergo sum:
penso, logo sou), e não Deus, que transmite o conhecimento ao homem, através da
revelação.
Segundo Descartes, o cogito, enquanto coisa pensante, é a única realidade do qual
não podemos duvidar: “Tudo aquilo que pensa existe; eu penso, logo existo”.167 Eis a única
certeza que temos. Então, a natureza de nossa existência é que somos pensantes (res
cogitans). E o que é apreendido pelo “ser pensante”, no mundo material, nada mais do que
sua extensão. Ou seja, o que é essencial ao mundo material é a propriedade da extensão: só
ela é concebível de modo claro e distinto da outras. É o que ele denomina a res extensa,
nos seguintes termos:
Com efeito, toda outra coisa que se pode atribuir ao corpo pressupõe a extensão, sendo apenas algum modo da própria coisa extensa como também todas as coisas que
165 REALE, op. cit., Vol II, pp. 280 e 281. 166 O posto é atribuído por Russel para quem Descartes foi o primeiro pensador de alta capacidade
filosófica cujo modo de ver foi profundamente influenciado pela física e pela astronomia. É bem verdade que ele conserva muito de escolástico, observa Russel, entretanto, não aceita os fundamentos postos por seus antecessores, esforçando-se por construir ex novo um edifício filosófico completo. Isso não acontecia desde Aristóteles, sendo um sintoma da nova confiança dos homens em si mesmos, gerada pelo progresso científico[...]. citado por REALE, op. cit., Vol II, p. 350.
167 REALE, op. cit., Vol. II, p. 367.
74
encontramos na mente são somente modos diversos de pensar. Assim, por exemplo, não se pode entender a figura senão na própria coisa extensa, nem movimento senão no espaço extenso, como a imaginação, o sentido ou a vontade não se pode estender senão na coisa pensante. Mas, ao contrário, pode-se entender a extensão sem a figura ou o movimento, como fica manifesto para quem atente para isso.168 É deste modo que vamos encontrar também no pensamento cartesiano a visão
dualista de realidade e de homem. Para Descartes, Homem e Natureza são realidades
excludentes. O mundo espiritual é a res cogitans, enquanto que o mundo material é a res
extensa, e não há intermediação entre ambas. Com isso, Descarte reduz o mundo material à
forma, à extensão, sendo a consciência atributo específico do homem. Dá-se, então, a
separação entre Homem e Natureza, contrapondo-se assim às teorias animistas da época
que afirmavam a existência do espírito da vida, o qual possuíam, inclusive, os fenômenos
naturais.
A concepção destas duas realidades distintas e excludentes é o tom, ou a dinâmica
empregada pela civilização ocidental no trato com a natureza depois de Descartes, constata
hoje o pensamento ecológico. Se o mundo natural é desprovido da consciência, sua
existência é funcional, mecânica. Os objetos e os corpos nada mais são do que máquinas,
“autômatos”, que funcionam com base em princípios mecânicos; neles não há nada de
força vital, como pregava Aristóteles.
O historiador da filosofia, Giovanni Reale, analisando os feitos de Descartes e
comparando-os com outros pensadores de seu tempo, conclui:
Por fim, a construção do modelo mecânico de interpretação, com elementos teóricos simples, facilita a construção de instrumentos técnicos para realizar a passagem do conhecimento teórico para a transformação prática do mundo. E esse é o ponto de partida para a efetiva conversão do espírito humano da theoria à práxis, da scientia contemplativa à scientia activa. O projeto programático de Bacon, enunciado, mas não realizado, de conhecer o mundo para dominá-lo, encaminha-se então para a sua realização, primeiro com Galileu e depois com Descartes.169 Newton fará a sistematização definitiva desta visão de mundo. Vejamos por que.
No final do século XVII o físico Isaac Newton consolidou a visão mecanicista de
funcionamento do Universo, anunciada desde Galileu e Descartes, ao promulgar a teoria
gravitacional descrita em Philosophiae naturalis principia mathemática (1687). A teoria
newtoniana da atração dos corpos representa o triunfo epistemológico da inteligibilidade
mecanicista, pois, para Newton o Universo é formado por partículas de matéria e energia
que funciona como forças entre elas, causando o movimento ordenado. Portanto o
168 REALE, op cit., Vol II, p.376. 169 REALE, op. cit., Vol II, p. 381.
75
Universo é visto como um grande mecanismo em movimento e que contem leis primeiras.
Estava criada a mecânica de Newton, que só será refutada três séculos depois.
Ele fez a síntese da visão cosmológica galileana, consolidando em definitivo a
verdade objetiva em oposição ao subjetivismo cartesiano. Argumentava que toda dedução
não advinda dos fenômenos deveria ser considerada hipótese e não deveria ter lugar na
filosofia experimental. Na filosofia experimental, as proposições particulares são inferidas
dos fenômenos para somente depois se tornarem leis gerais pelo processo da indução.
Estava criada a nova metodologia das ciências naturais que passou a vigorar desde então.
Em suma: a concepção mecanicista de mundo, que ganha forças com os pensadores
do séc. XVII, sobretudo, com Galileu, Descartes e, posteriormente Newton, é elementar
para entender o significado do conhecimento científico e , conseqüentemente a visão
epistemológica da tecnologia moderna. Pois, a visão do mundo como uma grande
engrenagem semelhante a uma máquina, constituído da matéria em movimento, doravante
será o modelo cosmológico de referência. A natureza, então, passa a ser vista como uma
máquina complexa que pode ser explicada através de constituintes de matéria e energia. A
ciência agora não se ocupa mais em explicar os princípios das almas e a essência das
coisas, mas sim em descobrir as engrenagens deste mecanismo que é a grande máquina do
universo.170 É na metáfora do relógio (ícone representativo da grande invenção dos
medievais) que a ciência encontra sua base explicativa para a nova cosmologia.
No século XVI, Boyle compara o mundo ao relógio da catedral de Strasburgo. A filosofia mecanicista vinha culminar a prática mecanicista. Newton percebeu essa gênese e sua significação. No início de seus Principia, escreve: “A geometria se funda sobre a prática mecânica e é somente esta parte da mecânica universal que propõe e demonstra exatamente a arte de medir”. Assim o relógio representa “a melhor parábola do sistema-mundo”. O modelo epistemológico da máquina se impõe como um esquema para a percepção do mundo e do homem, do real e do irreal, do presente e do futuro. Ele inspira a relação mecanicista com o mundo, fornecendo-lhe e pressupondo articulações racionais. O arquétipo da máquina desempenha o princípio regulador para a ciência e para a sabedoria, para a teoria e a prática. O lugar de honra conferido à máquina é anterior ao desenvolvimento da era industrial. O relógio é a primeira e mais decisiva das máquinas. Porque o cronômetro é o instrumento de toda racionalização da existência humana [...].171 O mundo, visto como máquina, é desprovido de sensibilidade e de consciência; é
despojado de vontade imanente; é um mundo sem mistério e sem vida, passível de ser
conhecido por vias mecânicas do raciocínio humano e não mais por intermédio das forças
170 O mecanicismo tem na ciência experimental sua base explicativa e despreza toda forma de magia
natural. É por isso que a química substituirá a alquimia, por exemplo. A crença na magia e em toda forma de bruxaria ou feitiçaria sucumbirá diante da hegemonia da filosofia mecanicista no séc. XVIII.
171 JAPIASSU, op. cit., pp. 120 e 121, n. 14.
76
mágicas e imagéticas da magia natural. E se estas forças ocultas não existem, se os
demônios ou deuses não habitam o universo, a contemplação do mundo não faz mais
sentido. O que tem sentido agora é a exploração do universo: a condição antropocêntrica
do homem de estar no mundo (legado cartesiano) garante-lhe a atitude de dominação do
universo por meios mecânicos.
É em vista desta nova concepção de ciência que se dissolve a tradicional dicotomia,
herdada desde os gregos, entre os considerados “teóricos”, cuja atividade era glorificada
por pertencerem às “artes liberais”, e os “práticos”, cuja atividade era menosprezada por
pertencerem às “artes mecânicas”. Doravante, o “mecânico”, o “engenheiro” eleva-se ao
grau de reconhecimento pela sociedade, porque é o homem astuto, que possui o domínio da
engenhosidade das coisas, capaz de manipular e dominar a natureza. O trabalho manual
passa a ser parte integrante do processo de construção da teoria. E porque o mundo é visto
como máquina é no processo prático e mecânico de seu desmantelamento que podemos
conhecê-lo.
Mas, a máquina que produz também é produzida, e porque pode ser construída é
conhecida. Eis o contexto da Revolução Industrial. Este período representa, pois, o
coroamento do pensamento mecanicista em sentido epistemológico. Em sentido
sociológico, a era industrial indica o resultado histórico da fetichização da máquina,
advindo da aplicação do conhecimento científico para fins práticos, em vista da maior
produção. Então, a idéia da máquina, precede à realidade da máquina.
Neste sentido, vale recordar o entendimento ontológico de técnica para Heidegger,
transcrito no I capítulo. Segundo ele, a essência de algo é anterior historicamente ao seu
processo de aparecimento. Aplicando-o ao caso em questão, diríamos que a essência da
técnica, manifestada a partir da Revolução Industrial (séc. XVIII), começa a se constituir
desde o princípio do séc. XVI, com o advento da modernidade. Assim, enquanto a técnica
antes do processo de industrialização era uma técnica de adaptação às coisas, na era
industrial ela passou a ser de exploração e construção das coisas (lembremos o exemplo do
camponês citado por Heidegger - Cf. p. do I capítulo), em vista da nova cosmovisão e da
ciência experimental.
Em síntese: da visão empirista baconicana, aliada ao pensamento antropocêntrico
e dualista cartesiano e à revolução científica, sobretudo galileana, tem-se a criação do
paradigma científico na modernidade, que, por conseguinte instituiu o método
experimental como a nova postura frente ao ato de conhecer, consolidado por Newton.
Desse modo e como resposta à crise epistemológica medieval, o método experimental
77
resgatou a possibilidade de o homem “verdadeiramente” conhecer as coisas172, através da
comprovação, da experiência, portanto da realidade empírica. Inaugura-se assim a nova
postura epistemológica do homem moderno frente ao ato de conhecer a realidade, baseada
no método científico. A seguir, um comentário sucinto sobre suas principais características.
3.2 O Método Científico:
Inicialmente, vale dizer que método é mais que um mero instrumental; ele implica e
carrega consigo uma visão de mundo e de realidade. Portanto, o método, enquanto uma
categoria, representa a concepção de mundo de uma dada sociedade na qual ele (o método)
se institui ou se internaliza. Sob esta perspectiva as palavras de Camus nos é esclarecedora.
Diz ele que “métodos contêm sempre uma metafísica; inconscientemente eles revelam
conclusões que, freqüentemente, afirmam ainda não conhecer”.173
Portanto, o método experimental nos revela o modelo de sociedade e qual a visão
de mundo, subjacente à ciência moderna. E qual é este modelo? Na modernidade, trata-se
do paradigma científico. Já explicitamos seu sentido histórico e filosófico, passemos agora
a compreendê-lo sistematicamente a partir de suas características peculiares.
A primeira característica é a noção de especificidade. Ou seja, dada a
complexidade o real, um conhecimento seguro advém da decomposição do todo em partes.
Quanto mais dividirmos o todo, mais poderemos conhecer o real pelas partes que o
compõem. A especialização, portanto, é o caminho mais seguro e prático para se chegar ao
conhecimento dos fenômenos.
Uma outra característica deste método refere-se à necessidade das bases empíricas
do conhecimento. Para a ciência moderna a via do conhecimento é a experimentação. O
conhecimento verdadeiro é aquele que pode ser comprovado. Conhecer é demonstrar,
comprovar. Logo, não existe conhecimento científico que não possa ser provado. Portanto,
somente o que é palpável, experienciável, empírico pode ser conhecido. Deste modo, a
ciência moderna rechaçou de seu campo de conhecimento a metafísica, considerando-a
irreal e ilusória, porque improvável. Tal preocupação aparece desde os escritos de Bacon
(séc. XVI) para quem a ciência deveria ser operativa e não contemplativa.
172 Tal pretensão refere-se ao posicionamento dos renascentistas, o que não necessariamente é a
posição da autora. 173 Citado por ALVES, Rubem. Filosofia da ciência. São Paulo: Ars poética, 1996, p. 85.
78
Disso decorre uma outra característica marcante da visão moderna de
conhecimento que é a objetividade. Para a ciência moderna um conhecimento tanto mais
será verdadeiro quanto mais for objetivo. Isto é,
uma das regras do método científico é o preceito de que as hipóteses científicas devem ser aprovadas ou refutadas mediante a prova da experiência. Entretanto, sua aplicação depende do tipo de objeto, do tipo da formulação da hipótese e dos meios de experimentação disponíveis. É por este motivo que as ciências requerem uma grande variedade de técnicas de verificação empírica. A verificabilidade consiste na essência do conhecimento científico, pois, se assim não fosse, não se poderia afirmar que os cientistas buscam obter conhecimento objetivo. 174 A objetividade consiste na separação dos elementos subjetivos e objetivos ao
analisar os fenômenos. Um conhecimento objetivo (“verdadeiro”) é aquele que não sofre
interferências subjetivas do sujeito (cientista) no processo de investigação do objeto (o
fenômeno: aquilo que aparece). Somente assim é possível criar “um conjunto sistemático de
conceitos que expliquem e interpretem as causas e os efeitos, as relações de dependência,
identidade e diferença entre todos os objetos que constituem o campo investigado”175. A
isso a ciência denomina de teorias científicas.Trata-se da possibilidade de estabelecer
padrões universais para a identificação dos fenômenos; é a configuração das leis
gerais para o funcionamento da matéria. A generalização ocorre quando o cientista busca
identificar as estruturas únicas e regulares dos fenômenos. Esta postura do observador (o
cientista) só é possível graças a uma outra característica peculiar do método científico que é
a noção de causalidade. Esta noção permite “demonstrar e provar os resultados obtidos
durante a investigação, graças ao rigor das relações definidas entre os fatos estudados; a
demonstração deve ser feita não só para verificar a validade dos resultados obtidos, mas
também para prever racionalmente novos fatos como efeitos dos já estudados [...].176
Se, como afirmamos há pouco o método trás, ainda que de modo implícito, um
modelo de realidade ou certa visão de mundo (weltanschauung), no caso em questão,
podemos inferir que o método científico compreende que o real é fragmentado, empírico,
objetivo, universal, generalizante e causal enquanto manifestação dos fenômenos. É desta
forma que nos últimos três séculos temos produzido o conhecimento, tendo o método
científico como o modelo hegemônico de compreensão da realidade177. E o mundo da
174 LAKATOS, Eva Mª & MARCONE, Marina de Andrade. Metodologia Científica. São Paulo:
Atlas, 1989. p.33. 175 CHAUÍ, M. Filosofia. São Paulo: Ática, 2000, p. 112 176 CHAUÍ, op. cit., p. 112. 177 Dizemos que a ciência é o “modelo hegemônico” , posto que também é possível constatar como
presentes na sociedade outros modos de compreensão da realidade que não o científico. Assim, por exemplo, tem-se o senso comum, a própria visão mítica, etc.
79
tecnosfera ao qual estamos inseridos é fruto desta compreensão do mundo. A tecnologia
moderna fora concebida neste panorama epistemológico que tem suas raízes no final do
séc. XVI, atinge seus pontos altos em fins do séc. XIX, que é o período da grande
emergência e consolidação da sociedade industrial, culminando com o desenvolvimento
fantástico da ciência e da técnica.178
4 A CRISE DO PARADIGMA CIENTÍFICO
4.1 Introdução ao Problema
Mas, será que o real é exatamente assim, conforme descreve a ciência? E será que a
ciência efetivamente tem contribuído para o conhecimento do homem sobre o mundo?
Estas perguntas também haviam sido feitas por Rousseau há mais de duzentos anos
atrás, em seu célebre Discurso sobre as ciências e as artes, na Academia de Dijon. Era o
ano de 1750, portanto, ainda o tempo de efervescência da ciência (com Copérnico, Galileu,
Newton), e Jean-Jacques Rousseau já introduzia a polêmica no mundo da academia.
Optando pelo método simples que, segundo ele, “é o que convém à verdade”,179
suscintamente seu questionamento é apresentado nos seguintes termos: De fato, há alguma
razão consistente que nos faça substituir o conhecimento vulgar, partilhado por todos, que
temos da natureza e da vida, pelo conhecimento científico produzido por poucos e
inacessível para muitos? Contribuirá efetivamente a ciência para minimizar a relação entre
o que são as coisas e o que elas aparentam ser, entre o saber e o fazer, entre a teoria e a
prática? Será que nossas ciências não são inúteis em vista do objeto que se propõe e será
que não são ainda mais perigosas em relação aos efeitos que produzem?180Além dos
aspectos epistemológicos, Rousseau ainda apontava questionamentos de caráter axiológicos
da ciência (que serão oportunamente retomados no capítulo III): Há alguma relação entre
virtude e ciência? A ciência contribuirá para purificar ou para corromper os nossos
costumes?181
178 SANTOS., Uma introdução..., op. cit., p. 17. 179 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes. In: OS PENSADORES. São
Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 419. 180 ROUSSEAU, op. cit., p.343. 181 ROUSSEAU, op. cit. 333 e ss. Essa passagem de Rousseau também é transcrita por SANTOS,
Um discurso..., op. cit., p. 47; SANTOS, A crítica..., op. cit., pp. 59 e 60.
80
As perguntas “simplórias” de Rousseau, expostas num cenário cuja confiança
epistemológica era total na ciência, do mesmo modo podem ser perfeitamente repetidas
hoje. Só que agora, num contexto em que se vive a desconfiança epistemológica do
paradigma dominante. E num contexto em que se as perguntas são simples, as respostas
fatalmente não serão, porque “estamos no fim de um ciclo de hegemonia de uma certa
ordem científica”, responde Boaventura Santos.182
Então, as indagações de Rousseau desembocam naquilo que hoje denominamos a
crise do paradigma científico. Para Boaventura Santos é uma “crise de degenerância” e não
meramente uma “crise de crescimento”, porque significa colocar em “crivo” o modelo
paradigmático de compreensão de mundo instalado pela ciência. Significa “o pôr em causa
a própria forma de inteligibilidade do real” e não somente os instrumentos metodológicos e
conceituais oferecidos pelo paradigma científico. 183
No começo do séc. XX, Edmund Husserl, enfocara exatamente este sentido, ao
tratar da “crise das ciências européias”: “Existe verdadeiramente uma crise das ciências,
malgrado os seus contínuos sucessos?”184, indagava ele.. É com base nesta questão que
Husserl instaura o assunto e dela vai se ocupar o filósofo já na parte introdutória de sua
obra, fruto de suas conferências proferidas entre anos de 1935-37. Em outro trecho de seus
escritos sobre a crise da ciência como expressão da crise radical de vida da humanidade
européia, Husserl volta a indagar: “Mas como é possível falar em geral e seriamente de
uma crise das ciências, assim também das ciências positivas, da matemática pura, das
ciências naturais exatas, que não cessaremos mais de admirá-las como exemplos de uma
cientificidade rigorosa e destinada a contínuos sucessos?” 185
Tal como o enunciado de Boaventura citado acima de que tal crise não se trata
somente do “crescimento” da ciência, Husserl antecipa a situação, respondendo que a crise
da ciência não está na sua exatidão ou na sua cientificidade. O problema desta crise,
responde Husserl, reside no enigma da subjetividade. Ou seja, o mundo da ciência é
caracterizado pela objetividade, desobrigando-se da subjetividade, e a preocupação do
filósofo não reside somente no mundo-em-si (representado pela ciência), mas com a
ontologia do mundo-da-vida (representado pela subjetividade humana).186 Neste sentido,
182 SANTOS, Um discurso..., op. cit., p. 47. 183 SANTOS., Uma introdução..., op. cit., p. 18. 184 HUSSERL, op. cit., p. 33 (Tradução livre). 185 Id. Ibid. 186 Vale dizer que, para Husserl a relação entre o objetivismo e o subjetismo é o problema central da
crise das ciências européias. Segundo ele, a resolução desta crise virá pelo desdobramento desta dicotomia pela fenomenologia transcendental. O desenvolvimento da metafísica moderna, explica Husserl, é uma fase
81
ele assegura que o positivismo reduziu a ciência ao mundo dos fatos. O que temos hoje é a
idéia de “ciência de fato”. Daí ele é enfático em constatar: “As meras ciências de fatos
criam meros homens de fato”.187 Portanto, a crise da ciência é também uma crise da
humanidade.
E num período entre guerras, o qual vivia Husserl, ele observa:
Na miséria de nossa vida _ ouve-se dizer_ esta ciência não tem nada a nos dizer. Essa exclui dos seus princípios próprios aqueles problemas que são os mais graves para o homem, os quais, nestes tempos atormentados, ouve-se o domínio do destino; os problemas do senso ou do não-senso da existência humana no seu complexo. Estes problemas, na sua generalidade e necessidade, não exigem porventura, para todos os homens, também considerações gerais e uma solução racionalmente fundada?188 Em defintivo, prossegue Husserl, estes problemas dizem respeito ao homem em seu
comportamento diante do mundo circunstanciado pelo humano e extra-humano; ao homem
que deve livremente escolher e ao homem que é livre para moldar a si mesmo e ao mundo
que o circunda. Evidente que a mera ciência de fato, conclui o autor, nada tem a dizer sobre
este propósito.
Elucidando ainda mais o que fora dito em sentido introdutório, passemos agora a
identificar os aspectos históricos, sociológicos, teóricos e epistemológicos desta “crise de
degenerância” porque passa a ciência moderna.189
4.2 Aspectos Históricos, Sociológicos e Teóricos da Crise do Paradigma Científico:
A visão cartesiana do conhecimento e a atitude epistemológica baseada no método
experimental, deram sustentação ao projeto Iluminista da modernidade (sobretudo, a partir
do séc. XVIII) fundado na crença absoluta da razão humana e, portanto, no racionalismo
científico. Para se ter uma noção do espírito deste período, expomos aqui a narrativa
magistral de Rousseau, descrita na primeira parte de seu “Discurso”, que, de modo hábil,
antes mesmo de estabelecer as críticas à ciência (conforme vimos há pouco) presta uma
homenagem às “luzes”:
do desdobramento desta fenomenologia. Daí o título de sua obra: “A crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental”.
187 HUSSERL, op. cit., p. 35. (Tradução livre) 188 Id. ibid. 189 Parte do que aqui será exposto, fora apresentado em forma de comunicação em Congresso
Científico. Cf. MIRANDA, Angela L. et al Epistemologia e a Crise do Paradigma Científico. In: III Encontro de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul, 2002, São Paulo. Caderno de Resumos...AFHIC, 2002.
82
É um espetáculo grandioso e belo ver o homem sair, por seu próprio esforço, a bem dizer do nada; dissipar por meio das luzes de sua razão, as trevas das quais o envolveu a natureza; elevar-se acima de si mesmo; lançar-se pelo espírito, às regiões celestes; percorrer com passos de gigante, como o sol, a vasta extensão do universo; e, o que é ainda maior e mais difícil, penetrar em si mesmo para estudar o homem e conhecer a natureza, seus deveres e seu fim. Todas essas maravilhas se renovam, há poucas gerações.190 O Iluminismo representa a valorização da Razão, em detrimento à visão
teocêntrica, resquícios ainda da era medieval. Significa iluminação pela razão do homem
moderno emancipado e livre de toda forma de consciência mítica que, outrora, era-lhe
subjulgada pelo medo e pelos obscurantismos da existência na relação homem e natureza.
Através do desencantamento do mundo, o homem iluminado se liberta do medo de uma
natureza desconhecida, à qual atribuiu poderes ocultos para explicar seu desamparo em
face dela. O homem iluminista é o vencedor das trevas da ignorância e do preconceito; é
aquele que atinge, segundo Kant, a maioridade e, como dono de si mesmo, confia na sua
capacidade racional, recusa qualquer arbítrio, exalta a ciência e deposita suas esperanças na
técnica, instrumento capaz de dominar a natureza. Segundo Kant,
Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere Aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufklärung]. 191 Porém, o projeto iluminista da modernidade, sustentado no uso da razão
instrumental como garantia da emancipação do homem, porque poria fim a toda forma de
ignorância e obscurantismos humanos; sustentado ainda nos ideários do desenvolvimento e
progresso tecnológico como fim da miséria e da fome; sustentado também na crença do
Estado de Direito, como garantia do poder democrático e do pleno exercício político da
liberdade humana; enfim, sustentado na tríplice aliança dos anseios iluministas, quais
sejam: a Liberdade, a Fraternidade e a Igualdade, entrou em crise a partir do século XIX e
XX, quando se constatou o seu fracasso192.
O século XX é talvez, a maior evidência histórica e representativa das promessas
fracassadas do projeto iluminista da modernidade. Pois quanto à crença na superação da
190 ROUSSEAU, op. cit., p. 333. 191 KANT, Immanuel. Textos seletos. Resposta à pergunta: Que é Esclarecimento? (Aufklarung).
Petrópolis: Vozes, 1974, p.100. 192 Corrobora nesta tese: BOAVENTURA SANTOS. Além de outros teóricos como: R. KURZ, G.
ARRIGHI. Cf. referências no final deste trabalho.
83
fome e da miséria pelo desenvolvimento tecnológico, nunca na história da humanidade se
constatou tantos miseráveis abaixo da linha de pobreza. E Boaventura Santos acrescenta:
No que respeita à promessa da igualdade os países capitalistas avançados com 21% da população mundial controlam 78% da população mundial de bens e serviços e consomem 75% de toda energia produzida. Os trabalhadores do terceiro mundo do setor têxtil ou da eletrônica ganham 20 vezes menos que os trabalhadores da Europa e da América do Norte na realização das mesmas tarefas e com a mesma produtividade [...]. Mais pessoas morreram de fome no nosso século que em qualquer dos séculos precedentes [...].193 Quanto ao exercício do poder democrático pela garantia do Estado de Direito, da
liberdade e da paz, o mesmo autor afirma que “enquanto no século XVIII morreram 4,4
milhões de pessoas em 68 guerras, no nosso século morreram 99 milhões de pessoas em
237 guerras”.194 É, como bem disse Hobsbawm, “a era dos extremos”. Outro exemplo da
fracassada promessa de Liberdade e do Estado de Direito reside nos efeitos nefastos da
economia na era da Globalização que desmantela qualquer soberania e autonomia estatal
em nome da transnacionalização e do livre mercado.
Quanto aos ideais de “progresso”, este é permeado pela destruição ambiental, numa
relação paradoxal descrita com perfeição e sensatez por Capra:
Podemos controlar os pousos suaves de espaçonaves em planetas distantes, mas não somos capazes de controlar a fumaça poluente expelida por nossos automóveis e nossas fábricas. Propomos a instalação de comunidades utópicas em gigantescas colônias espaciais, mas não podemos administrar nossas cidades. O mundo dos negócios faz-nos acreditar que o fato de gigantescas indústrias produzirem alimentos especiais para cachorros e cosméticos é um sinal de nosso elevado padrão de vida, enquanto os economistas tentam dizer-nos que não dispomos de recursos para enfrentar os custos de uma adequada assistência à saúde, os gastos com educação e os transportes públicos. A ciência médica e a farmacologia estão pondo em perigo nossa saúde, e o Departamento de Defesa tornou-se a maior ameaça à segurança nacional. 195
A promessa de domínio da natureza, então, é proporcional à destruição ambiental,
gerando uma verdadeira esquizofrenia quanto ao sentido de progresso; a visão de
desenvolvimento tornou-se uma idéia subdesenvolvida. Os dados oferecidos por
Boaventura ilustram o que queremos dizer:
Nos últimos 50 anos o mundo perdeu cerca de um terço de sua cobertura florestal. Apesar de a floresta tropical fornecer 42% da biomassa vegetal e do oxigênio, 600.000 hectares de floresta mexicana são destruídos anualmente. As empresas multinacionais detêm hoje direitos de abate de árvores em 12 milhões de hectares da floresta amazônica. A desertificação e a falta de água são os problemas que mais vão afetar os países do Terceiro Mundo na próxima década. Um quinto da humanidade já não tem acesso a água potável.196
193 SANTOS, A crítica..., op. cit. , pp. 23 e 24. 194 SANTOS, A crítica..., op. cit., p. 24. 195 CAPRA, F. O Ponto de Mutação . São Paulo: Cultrix, 1986, p. 19. 196 SANTOS, A crítica..., op. cit., p. 24. Cf. ainda p. 56 da referida obra.
84
Portanto, o projeto iluminista da modernidade, que tem como um dos pilares de
sustentação a própria aliança entre a ciência e a técnica a partir da Revolução Industrial,
tem em vista uma forma de conhecimento que historicamente pode ser assim identificada:
“de meados do século XIX até hoje a ciência adquiriu total hegemonia no pensamento
ocidental e passou a ser socialmente reconhecida pelas virtualidades instrumentais da sua
racionalidade, ou seja, pelo desenvolvimento tecnológico que tornou possível”.197
É neste sentido que recai a crítica dos teóricos da Escola de Frankfurt (sobretudo,
Horkheimer, Adorno e Habermas), conforme já nos referimos no capítulo anterior, quando
tratamos da “Técnica e Ciência enquanto Ideologia: a Crítica da Teoria Crítica” (I
Capítulo, 1.4.3), mas que aqui, vale a pena retomar tendo em vista esse panorama de sua
contextualização.
Horkheimer, por exemplo, centra seu foco de análise no uso da razão. Segundo ele,
a teoria tradicional, desde Descartes, tornou a razão científica subjetiva, formal e
instrumental. É subjetiva na medida em que se torna abstrata, donde o método é fator
preponderante em detrimento aos fatos que circunstanciam sua aplicação; é formal
exatamente por isso, pois, o maior peso é dado ao aspecto metodológico e não ao conteúdo
cognoscitivo da práxis histórica; é instrumental, porque o critério de verdade da razão é
estabelecido pelo seu valor operativo, que se dá, sobretudo, pela dominação do homem
pela natureza.
Habermas, dando continuidade à análise de Horkheimer, além de postular a
existência da razão instrumental, isto é, um agir racional cuja ação corresponde a uma
finalidade prática, funcional, observa que desde o final do século XIX, a tendência do
capitalismo tardio consiste na cientifização da técnica a partir do imbricamento entre
ciência e técnica como condição de força produtiva, pois, o “progresso técnico-científico
tornou-se uma fonte independente de mais-valia”.198 Disso decorre o tecnicismo que é o
agir instrumental por excelência, donde o sentido de práxis é expropriado de seu sentido
originário e apropriado para designar os efeitos de um agir-racional-com-respeito-a-fins.
Afora os frankfurtinianos, encontramos ainda a posição de Heidegger (também já
contemplada no Capítulo I) para quem, “a ciência e a tecnologia correspondem a uma
compreensão dogmática do ser que pretende reduzir toda existência à sua
instrumentalidade, por essa via conduzindo ao ‘esquecimento do ser’ e à inviabialização de
197 SANTOS, Uma introdução, op.cit., p. 28. 198 HABERMAS, Técnica..., op. cit., p. 331. Para melhor detalhamento da visão habermasiana,
conferir o capítulo I desta pesquisa, item 4.3.
85
um projeto humano de existência autêntica”.199 Disso conclui-se que a racionalidade
científica na modernidade, desde Bacon200, pretende conhecer o mundo não para o
contemplar, mas para o dominar, por isso ela é instrumental.
Além destes aspectos históricos e sociológicos, há que salientar ainda os aspectos
teóricos, mais precisamente do ponto de vista da Teoria do Conhecimento, que enfatizam a
crise epistemológica do paradigma científico.
Para Boaventura Santos, Bachelard representa o marco inicial da crise do
paradigma científico. Segundo ele, “a epistemologia bachelardiana representa o máximo de
consciência possível do paradigma científico da modernidade” 201 da mesma forma que ela
representa também o que Boaventura designa a primeira ruptura epistemológica da ciência
moderna, pois, é com Bachelard que a ciência definitivamente procura se separar do senso
comum.
Preocupado com a formação do novo espírito científico, título de uma de suas obras
escritas no início do século XX, o filósofo afirma: “a ciência se opõe absolutamente à
opinião”.202 Ela (a ciência) constrói-se contra o senso comum, pois, este é um
conhecimento fixista e conservador, que pensa o que existe tal como aparece. Disso, não se
satisfaz a ciência, que busca as causas dos fenômenos para além das ideologias. Em ciência
nada é dado, tudo é construído. Por isso que o primeiro passo para fazer emergir o
conhecimento científico é romper com as barreiras do senso comum. Este é, para
Bachelard, o primeiro obstáculo epistemológico do cientista, pois, o abandono do senso
comum é um sacrifício difícil para os cientistas, já que estes conhecem sempre contra um
conhecimento anterior, ou, ao menos, fundam um conhecimento a partir de um outro já
constituído. Bachelard defende, então a vigilância epistemológica. Nas palavras de
Boaventura Santos, este cenário pode ser assim traduzido:
Daí que não seja fácil aos cientistas manterem sempre uma relação realista com sua prática científica (a “filosofia diurna”) e cedem, por vezes, à tentação de aceitar o conforto de idéias vulgares, por vezes recobertas de jargão filosófico, preconceitos idealistas, noções pseudocientíficas, enfim um conjunto de erros tenazes que lhes é muitas vezes proposto pelas várias filosofias da ciência em uso (“filosofia noturna” dos cientistas). Sempre que tal sucede, o cientista entra numa relação imaginária com a sua própria prática científica, e é dessa relação que decorrem os obstáculos epistemológicos.203
199 SANTOS, Uma introdução..., op.cit., p.20. 200 Cf. Capítulo II, tópico 2 deste trabalho. 201 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p.35. 202 BACHELARD, Gaston. La formation de le sprit scientifique. Paris: J Vrin,1972, p. 14. Apud,
SANTOS, Uma introdução..., op.cit., p. 31. 203 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p. 33.
86
Em síntese, é com Bachelard que a ciência define sua trajetória emancipatória, que
vai do senso comum ao conhecimento científico, e sua identidade, fundada num paradigma
que se constitui contra o senso comum e recusa as orientações práticas que dele decorrem [...]um paradigma que pressupõe uma única forma de conhecimento válido, o conhecimento científico, cuja validade reside na objetividade de que decorre a separação entre teoria e prática, entre ciência e ética; um paradigma que tende a reduzir o universo dos observáveis ao universo dos quantificáveis e o rigor do conhecimento ao rigor matemático do conhecimento, do que resulta a desqualificação (cognitiva e social) das qualidades que dão sentido à prática, ou, pelo menos, do que nelas não é redutível, por via de operacionalização, a quantidades; [...]um paradigma que avança pela via da especialização e da profissionalização do conhecimento, com o que gera uma nova simbiose entre saber e poder, onde não cabem os leigos, que assim se vêem expropriados de suas competências cognitivas e desarmados dos poderes que elas conferem; um paradigma que se orienta pelos princípios da racionalidade formal ou instrumental, irresponsabilizando-se da eventual irracionalidade substantiva ou final das orientações ou das aplicações técnicas do conhecimento que se produz; finalmente, um paradigma que produz um discurso que se pretende rigoroso, antiliterário, sem imagens nem metáforas, analogias outras figuras de retórica,, mas que com isso, corre o risco de se tornar, mesmo quando falha na pretensão, um discurso desencantado, triste e sem imaginação, incomensurável com os discursos normais que circulam na sociedade.204 Depois de Bachelard, vieram outros autores, como: Popper, que, através do
princípio da refutabilidade, assegurava que uma teoria científica deve ser aceita muito
mais pela possibilidade de ser refutada do que pela possibilidade de ser comprovada,
sendo, pois, o conhecimento científico: conjecturas e refutações; Khun que propunha a
análise da história da ciência a partir de paradigmas, considerando a estrutura das
revoluções científicas.205 Mais recentemente, outros críticos, como: Morin, através da
noção de complexidade; Prigogine, através do princípio da incerteza; Boaventura, através
da visão de um paradigma emergente, corroboram com a tese de que vivemos um período
de transição paradigmática, no sentido de que a visão científica de mundo, de realidade
deve ser posta em crise; ou seja, há uma crise epistemológica do ato de conhecer.
No campo da física, por exemplo, pensadores como Einstein e Capra contribuíram
para explicitar as contradições da ciência moderna. Partindo da relatividade dos
204 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p. 34 e 35. 205 BACHELARD, G. O novo espírito científico. Rio de Janeiro: Tempo Brasiliense, 1968;
POPPER K. Conjecturas e refutações. Brasília: UNB, 1972; KHUN. T. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1989. Além destes, outros autores poderiam ser citados aqui, como: Canguilhem, Foucault, Althusser, Feyarabend, A. Koyré, P. Rossi, entre outros, que, guardadas as devidas proporções e diferenças, também se tornaram críticos da ciência. Mas, como nosso objetivo não é elaborar uma história da ciência, para quem deseja ter uma noção geral destes autores, recomendamos a leitura de HORGAR, John. O fim das ciências. São Paulo: Cia das Letras, 1998. Também um debate interessante entre os críticos do conhecimento como Kuhn, Popper, Feyerabend pode ser encontrado na obra já citada aqui, organizada por LAKATOS & MUSGRAVE. Alguns questionamentos sobre a teoria e a história das ciências de autores como Canguilhem, Bachelard e Foucault podem ser encontrados na publicação da REVISTA TEMPO BRASILEIRO. Epistemologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, n. 28, Jan- Mar, 1972, 95 p. 2ª Edição.
87
fenômenos, Einstein demonstrou que o tempo e o espaço não obedecem a uma ordem
mecânica, como na visão newtoniana. À guisa desta concepção tem-se a teoria da mutação
de Capra206, que postula vivermos uma crise de percepção do mundo, posto que a
realidade é dinâmica e que não há determinismo em absoluto, contrariando, assim, a visão
determinista e mecanicista do Universo. Também no campo da microfísica Heisenberg e
Bohr alertaram para o risco do conhecimento seguro e certo advindo do método científico,
o qual analisaremos mais adiante (iten 4.2.3).
Traçamos até aqui o quadro que configura o panorama histórico-social da crise
paradigmática do conhecimento científico. Há que ressaltar ainda os aspectos
epistemológicos desta crise. Para efeito didático, dividimo-los em alguns tópicos,
conforme veremos a seguir.
4.3 Aspectos Epistemológicos da Crise do Paradigma Científico
1) A relação parte e todo (a noção do especialista): Na visão cartesiana conhecer
é ter certeza. Por isso mesmo, a Ciência Moderna compreende que qualquer sistema
complexo tanto mais é entendível e conhecido, quanto maior for sua
compartimentalização. Assim prega a Ciência que dado a complexidade do real, um
conhecimento certo e seguro advém necessariamente da divisão das partes que compõe o
real. A dinâmica do todo só pode ser conhecida a partir da propriedade das partes, como no
Discurso do Método de Descartes: “Dividir cada uma das dificuldades que eu examinaria
igualmente em partes que pudessem e que fossem conveniente resolvê-las”.207
Pautando-se nesta visão epistemológica, o conhecimento científico reduziu o real à
mera soma das partes, considerando ser o todo a simples justaposição das partes. Um
conhecimento é tanto mais rigoroso, quanto maior sua objetividade, logo, a parte tornou-se
mais importante que o todo. Daí a criação do conhecimento especializado. Sobre isso
Boaventura alerta:
É hoje reconhecido que a excessiva parcelização e disciplinarização do saber científico faz do cientista um ignorante especializado e que isso acarreta efeitos negativos. Esses efeitos são, sobretudo, visíveis no domínio das ciências aplicadas. As tecnologias preocupam-se hoje com o seu impacto destrutivo nos ecossistemas: a medicina verifica que a hiperespecialização do saber médico transformou o doente numa quadrícula sem sentido quando, de fato, nunca estamos doente senão no geral [...]; o direito que reduziu a
206 CAPRA, F. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1986. 207 DESCARTES, R. Discurso do método. In: OS PENSADORES, São Paulo, Abril Cultural,
1983, p. 17
88
complexidade da vida jurídica à secura da dogmática, redescobre o mundo filosófico e sociológico em busca da prudência perdida[...].208
O novo enfoque epistemológico considera que não há partes em absoluto, porque a
realidade não é uma mera soma de situações ou de sucessões, mas um conjunto complexo
de relações que a compõe. Portanto, se antes se partia de uma visão disjuntiva (separar para
entender), uma nova epistemologia exige uma visão conjuntiva (ampliar para entender),
pois o complexo de relações é que compõe o todo. Num exemplo ilustrativo diz-se que não
é possível conhecer a rede somente pelos fios que a tecem. Estes, por si só, não dizem o
que é a rede e nem mesmo o amontoado deles. Para conhecer a rede é preciso ter em vista
as inter-relações dos fios que a compõe209. É necessário distinguir, mas não disjuntar: a
maneira de entender a parte é entender a sua relação com o todo. Não se nega a parte; ela
existe, mas só pode ser compreendida na relação com o todo210.
2) A noção do físico e do metafísico: Considerando que conhecer é ter certeza e
que certeza é dado de prova, comprovação, a epistemologia moderna rechaçou, do campo
do conhecimento, a metafísica por considerar que somente se tem comprovação daquilo
que é palpável, quantificável, empírico e físico. Assim, o conhecimento moderno tornou-se
unidimensional porque reduziu o real somente ao que é material: o fenômeno, o que
aparece.
Mesmo as ciências ditas naturais (que tem como objeto a matéria física) tornaram-
se o modelo de ciência porque empírica, provável, palpável; logo, exata. Disso advém a
posição de Comte que, aos moldes das Ciências Naturais, pretendia estudar as ciências
sociais através da chamada Física Social, propondo a redução de fatos sociais a condições
mensuráveis. Assim, “as causas do aumento da taxa de suicídio na Europa do virar do
século não são procuradas nos motivos invocados pelos suicidas e deixados em cartas
como é costume, mas antes a partir da verificação de regularidades em função de
condições de sexo, estado civil, a existência ou não de filhos, a religião do suicida”.211
Um outro olhar sobre o real postula a necessidade de um conhecimento
multidimensional, capaz de levar em conta as diferentes facetas do real. Aquilo que está
além do físico (o meta-físico) também deve ser considerado no ato de conhecer. A título
208 SANTOS, Boaventura de S. Um discurso...., op. cit., p. 64. 209 É deste modo que MORIN se opõe tanto ao holismo (que privilegia o todo em detrimento à
parte), como também à especialidade (que privilegia a parte em detrimento ao todo). 210 Sobre a generalização ou especialização, cf. obra: DEMO, Pedro. Conhecimento moderno –
sobre ética e intervenção do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1997; MORIN, E. A inteligência..., op. cit. 211 SANTOS, um discurso...,.op. cit. p. 52, ao analisar a visão sociológica de DURKHEIM sobre o
suicídio.
89
ilustrativo, veja-se a observação de um diretor de centro laboratorial: estuda-se em
laboratório de Biologia o que é a célula, mas esquece-se de investigar o que é a vida212. E a
vida é antes de tudo um conceito substancial, metafísico. Portanto, é um equívoco persistir
na dicotomia entre o físico e o metafísico, separando-os no ato de conhecer.
Além disso, as novas descobertas científicas (em grande parte, elaboradas pelas
próprias Ciências Naturais), dão conta de alertar que também na natureza os fenômenos
nem sempre obedecem a uma causalidade linear e ordenada como na visão determinista e
positivista. Por isso mesmo, conceitos como: “movimento”, “imprevisão”, “caos”, “auto-
organização”, que antes eram característicos das ciências sociais, estão sendo apropriados
também pelas ciências tidas como naturais213. Num exemplo, Boaventura afirma: “[...] Para
não irmos mais longe, quer a teoria das estruturas dissipativas de Prigogine, quer a teoria
Cinergética de Haken explicam o comportamento das partículas através de conceitos de
revolução social, violência, escravatura, dominação, democracia nuclear, todos eles
originários das ciências sociais [...]”.214
Portanto, a nova epistemologia postula ser as ciências naturais também sociais, na
medida em que aquelas se utilizam de princípios equivalentes destas para explicar o real.
Assim, indaga-se: faz sentido ainda a separação e a própria distinção conceitual entre
ciências naturais e ciências sociais?
Boaventura ousa responder esta questão prevendo que esta “distinção entre natureza
e sociedade tende a ser superada”, e como o paradigma da ciência moderna está fundado
nesta distinção, pensar a sua superação significa romper com este paradigma. E conclui:
Da filosofia grega ao pensamento medieval a natureza e o homem pertencem-se mutuamente enquanto especificação do mesmo ato de criação. A ciência moderna rompe com essa cumplicidade, desantropomorfiza a natureza, e sobre o objeto inserte e passivo assim constituído constrói um edifício intelectual sem precedentes na história da humanidade. Este edifício, como qualquer outro, teve um fim prático, e este foi o de criar um conhecimento que pudesse instrumentalizar e controlar a natureza [...].215 Desta forma o homem moderno provocou uma ruptura ontológica entre o homem e
a natureza que dela decorreram outras rupturas, a saber: a ruptura entre singular e
universal, entre físico e metafísico, entre valor e fato, entre o privado e o público, entre
ciências naturais e sociais e a ruptura entre sujeito e objeto que analisaremos a seguir.
212 MORIN, Edgar. Inteligência..., op. cit., p. 28. 213 Conferir, como exemplo, a Teoria da Relatividade de Einstein, a Teoria da Mutação de Capra, a
Teoria Cinergética de Haken, a Teoria das Estruturas Dissipativas de Prigogine, dentre outros, in: SANTOS, Um discurso...,op. cit.
214 SANTOS, Um discurso..., op. cit.,. p. 62. 215 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p. 66.
90
3) A noção de objetividade do conhecimento científico: Tendo em vista a
pretensão de um conhecimento puro e neutro, desprovido de qualquer ideologia e contexto,
o pensamento científico considera que um conhecimento tanto maior será verdadeiro,
quanto maior for o isolamento do objeto de seu meio e do sujeito em relação ao objeto.
Acredita-se assim, que para conhecer é necessário apreender o fenômeno em si, isolando-o
de seu ambiente e de seu contexto. Essa atitude desconsidera a historicidade da matéria,
postulando que o tempo é reversível, único e igual no processo de conhecimento.
Nisso reside a crítica de alguns pensadores de hoje. Prigogine, por exemplo,
assegura que só se pode conhecer um sistema complexo referindo-se à sua história e a seu
percurso216 . A título ilustrativo, Morin dá o seguinte exemplo: estima-se que o sol tenha
aproximadamente 5 bilhões de anos e que, provavelmente, está em sua fase adulta.
Portanto, é esta a concepção de sol que temos hoje, em nosso tempo. Considerando que
daqui a mais 5 bilhões de anos o sol já estará envelhecido, certamente, se vivêssemos neste
tempo, teríamos outro conceito do sol que não este que temos agora217. Aqui, o tempo é
irreversível e necessária é a sua consideração no processo de conhecimento do objeto.
Assim, deve-se levar em conta também a historicidade da matéria, í. é., daquilo que
se conhece ou que está sendo conhecido. Não é possível dizer, então que o sol de hoje terá
o mesmo conceito no futuro (daqui a bilhões de anos). Logo, a legitimidade do
conhecimento tanto mais o será, quanto mais se levar em conta a historicidade e o contexto
do objeto a ser conhecido.
Nisto reside a irreversibilidade do tempo do objeto ou do fenômeno em observação.
Pelo fato de que o tempo ser irreversível e não igual não só sob a perspectiva do
observador, mas também do observado, há que se ter em vista a historicidade do fenômeno
apreendido e o contexto de sua apreensão. As ciências exatas sempre desconsideraram o
tempo da matéria, daí a reversibilidade do tempo. Hoje, considerando que tal categoria não
está presente somente no sujeito que observa, mas também no objeto, tem-se que o tempo é
irreversível também na matéria.
Outra crítica frente à pretensão de objetividade do conhecimento científico consiste
em enfatizar os próprios limites do homem quanto ao modo de conhecer, expresso no
princípio da incerteza de Heisenberg, conforme salienta Boaventura: “Heisenberg e Bohr
demonstram que não é possível observar ou medir um objeto sem interferir nele, sem
alterar, e a tal ponto que o objeto que sai de um processo de medição não é o mesmo que lá
216 MORIN, E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 332 217 MORIN, E. A inteligência..., op. cit., p. 57.
91
entrou” 218. Uma coisa medida (e a medida é uma das formas de como a ciência conhece,
portanto, é a evidência da limitação do conhecimento humano) é alterada pelo próprio
instrumento da medida. Portanto, o que conhecemos do real nada mais é do que senão a
nossa própria intervenção nele.
Neste mesmo sentido, perpassa a crítica quanto à relação sujeito (aquele que
conhece) e objeto (aquele que é conhecido). Do princípio da objetividade do conhecimento
científico, advém a necessidade de separar o sujeito do objeto a ser conhecido. Assim, a
Ciência Moderna postula que o conhecimento verdadeiro é aquele em que não há
interferência do observador no processo de observação do objeto219. Trata-se da pretensão
da neutralidade científica, reforçada pela seguinte premissa: quanto mais vários
observadores chegam à mesma conclusão sobre um objeto, maior a veracidade do
conhecimento sobre este objeto.
Hoje, um novo modo de conhecer postula que é impossível negar a dimensão
subjetiva do conhecimento. Não há como negar a presença do observador no ato de
conhecer e o conhecimento nada mais é do que a interação entre observador e observado.
Cabe aqui, a inclusão do princípio da interferência estrutural do sujeito no objeto
observado, como no dizer de Boaventura.220
Popper, através do princípio da refutabilidade221, já havia alertado para tal
possibilidade, conforme diz Morin: “não se pode induzir de maneira certa uma lei a partir
de verificações empíricas. As teorias são sistemas lógicos, elaboradas pelo espírito humano
e este os aplica sobre o real”.222
Assim sendo, nem mesmo a verificação empírica é garantia de lei ou de
objetividade do conhecimento. Dado que é produzida pelo espírito humano e este a aplica
sobre o real, o conhecimento nada mais é do que a representação do mundo físico. Aliás, o
conhecimento é mais que representação; é construto humano do mundo, pois, o mundo é
gerado no processo de conhecimento, como no dizer de Maturana e Varela223. Conhecer,
pois, é construir o mundo. Prudente seria, então, ao invés de afirmar que verdade é certeza,
como no dizer de Descartes, considerá-la como mera pretensão de validade, como afirma
Habermas.
218 SANTOS, op. cit., p. 55. 219 Tal postulado já foi explicitado anteriormente no item .3.2 sobre a objetividade do método
científico. 220 SANTOS, U m discurso...,op. cit., p. 55. 221 Tal conceito popperiano, será retomado no próximo item (4 .2.3) para esclarecimento. 222 MORIN, A inteligência..., op. cit.,. p. 38 223 CAPRA e STENDL-RAST. Pertencendo ao universo. São Paulo: Cultrix, 1998, p. 116.
92
Ainda sobre a objetividade, vale lembrar que este ideal é perseguido pelo
conhecimento científico desde o surgimento das ciências modernas. Quando da criação da
Royal Societty of Sciences, em Londres (1662) seus membros já haviam pactuado não
discutir nenhum assunto que fosse estranho ao estatuto aprovado pelo Rei, vale dizer:
questões relacionadas à política e à religião. Para Hannah Arendt tal fato já é o prenúncio
do ideal científico da “objetividade”. E a necessidade de organização dos cientistas, avalia
Arendt, denuncia que desde o princípio a ciência possui muito mais conotação política que
científica. Em palavras textuais ela diz:
É extraordinário que os homens de ciência desde o início, tenham julgado necessário organizar-se em sociedades [...] Uma organização, quer ela agrupe políticos ou cientistas inimigos da política, é sempre uma instituição política; quando homens se organizam, é para agir e se conferir poder. Nenhuma equipe científica faz ciência pura: ou ela quer agir sobre a sociedade, nela assegurando a seus membros certa situação, ou então, como era ou como ainda é o caso da pesquisa organizada em ciências naturais, ela pretende agir de modo concertado a fim de conquistar a natureza. Como declarou Whitehead, “não é por acaso que a era da ciência torna-se a era da organização. Por que o pensamento organizado é o fundamento da ação organizada”; não, acrescentamos, porque o pensamento seja o fundamento da ação, mas porque a ciência moderna, enquanto “organização do pensamento”, nele introduziu um elemento de ação.224 4) Causalidade e generalização: O conhecimento científico é, por excelência, um
conhecimento causal. Isto significa dizer que o método científico trabalha com a noção
causa e efeito, considerando que para todo efeito há uma causa, assim como todo efeito
segue necessariamente uma causa. Tal concepção causal encontra-se expressa na visão
mecanicista e determinista da realidade. A visão mecanicista, por exemplo, pode ser assim
expressa:
Segundo a mecânica newtoniana, o mundo da matéria é uma máquina, cujas operações se podem determinar exatamente por meio de leis físicas e matemáticas, um mundo estático e eterno a flutuar num espaço vazio, um mundo que o racionalismo cartesiano torna cognoscível por via de sua decomposição nos elementos que o constituem.225
A causalidade adotada pelo pensamento científico concebe, pois, o mundo como
uma máquina. Semelhante a um relógio (metáfora cartesiana), onde cada peça obedece a
uma funcionalidade linear, ordenada e pré-existente, a realidade assim o é: funcional,
linear, onde cada fenômeno obedece a uma hierarquia pré-estabelecida226. Essa visão
hierárquica é expressa nas ciências naturais, por exemplo, através da noção de estrutura
que são blocos de construção básicos da matéria que compõe o mundo físico. A Teoria da
224 ARENTD, Hanna. La condition de l´homme moderne. Calmann-Lévy, 1983, pp. 305-306, n. 2.
Citado por JAPIASSU, op. cit., pp. 318-319, n. 13. 225 Interpretação elaborada por. SANTOS, Um diálogo..., op. cit., p. 51 226 A título ilustrativo, conferir o filme baseado na obra de FRITJOF CAPRA, O ponto de mutação.
93
Evolução das Espécies (Darwin) pode ser um exemplo dessa visão estrutural, donde
elementos (espécies) primários desencadeiam hierarquicamente novos elementos
secundários e assim sucessivamente.
Atrelada à noção de causalidade, tem-se a noção de generalidade, pois, não há
ciência senão no geral. Em outros termos: a generalização só existe a partir da descoberta
da causalidade funcional dos fenômenos. Deriva daí a concepção de Lei, que em sentido
científico só é válida se aplicada a todas as situações gerais. Daí porque dizer que a Lei
possui caráter genérico.
Ora, segundo Boaventura, a noção causal adotada pelo método científico refere-se
tão somente à causa formal227, que privilegia o “como” as coisas funcionam,
desconsiderando a causa final dos fenômenos que privilegia a intencionalidade das coisas,
ou seja, sua finalidade, ou o “para quê” as coisas existem.
A causalidade científica é: uma noção simples, porque descarta outras formas de
causalidade; uma noção linear, porque considera o real funcional, hierarquicamente
estabelecido por estruturas e tem caráter de generalização e de homogeneidade (é o sentido
de lei), aniquilando o particular, o singular.
Considerando ser o real um jogo complexo e dialógico dos elementos que o
constitui, essa noção de causalidade é, pois, insuficiente. Dito de outro modo: no real
também está presente a auto-organização, o caos, o aleatório e sua causalidade é complexa,
pois há interações entre os fenômenos. Afinal, mais que afirmar que o efeito segue
necessariamente a causa, é mister salientar que o efeito também retroage sobre a causa; há
interação de um sobre o outro228. As noções de termodinâmica da física atual apontam
nessa direção: o frio exterior provoca o calor interior. Daí podemos inferir que há inter-
retroações, interferências, atrasos, desvios, também na natureza.
Uma nova noção de causalidade implica em rever o próprio conceito de lei em
sentido científico. Esta tem caráter probalístico, provisório. Melhor seria falar em
processo, tendo em vista, inclusive, o princípio da refutabilidade de Popper: uma teoria
deve ser considerada científica muito mais pela sua condição de falsificabilidade do que
pela sua condição de verificabilidade.
Se conveniente seria substituir a noção de lei por processo, conveniente também
seria substituir a noção de estrutura por rede, pois não há que se falar em hierarquia, mas
227 Já explicitamos, em outra oportunidade (Cf. p. 32 deste trabalho), os quatro modos de
causalidade aferidos por Aristóteles. Ver também SANTOS, Um discurso..., op. cit., p. 51. 228 Sobre essa noção de causalidade complexa, MORIN denomina endoexocausalidade.
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em inter-relações entre os seres. Exemplificando, Morin diz: “se não houvesse partículas
materiais, não haveria gravitação; a gravitação não existe em si”.229 Logo, a metáfora da
rede melhor condiz com este cenário. Em síntese, Boaventura afirma: “o declínio da
hegemonia da legalidade, é concomitante ao declínio da hegemonia da causalidade”.230
5) Ordem, desordem e contradição: O paradigma científico adota a postura da
ordem mestra, ou seja, o universo obedece a leis determinadas (determinismo mecanicista).
Desse modo, a desordem , a dispersão sempre foram consideradas sinal de erro no método
científico.
Descartes afirmava que clareza e distinção são um sinal de verdade. O erro deve ser
descartado no ato de conhecer, posto que é sinal de ignorância. Desta concepção nasceu a
confiança absoluta na lógica, na ciência certa, coerente, eficiente, infalível, com conceitos
claros, fechados e precisos. A desordem, o aleatório, o dispersivo, enfim o que está fora da
ordem é nada mais do que a insuficiência do nosso conhecimento, existindo somente no
plano da consciência humana. Trata-se, pois, de um discurso monológico.
Hoje, as novas descobertas científicas postulam que tais categorias também existem
no plano da matéria, do mundo objetivo. Boaventura, por exemplo, assim se refere à teoria
das estruturas dissipativas de Prigogine:
A importância dessa teoria está na nova concepção de matéria e da natureza que propõe uma concepção dificilmente compaginada com que herdamos da física clássica. Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a inter-penetração, a espontaneidade e a auto-organização [...]; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente[...].231
Assim, indaga-se: a contradição é erro? Ou revela as superfícies profundas e
desconhecidas do real? Morin observa, por exemplo, que ordem e desordem cooperam para
se organizar, possuindo uma relação mútua, de complementariedade. E acrescenta: a
degradação e a desordem dizem respeito à vida, pois, na própria origem do universo (teoria
do Big Bang) tem-se primeiro a desintegração, e dela tem-se a organização232. Há dentro da
lógica a própria contradição, conforme já observara Heráclito: “Viver de morte, morrer de
vida”. O discurso é dialógico.
5 POR UMA OUTRA EPISTEMOLOGIA DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA
229 MORIN, A inteligência da..., ob. cit., p. 49. 230 SANTOS, Um discurso..., op. cit., p. 57. 231 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p. 56. 232 MORIN, Introdução ao pensamento complexo. São Paulo: Instituto Piaget, 1997, p. 89.
95
Dizia Wittgenstein: “Sentimos que mesmo depois de serem respondidas todas as
questões científicas possíveis, os problemas da vida permanecem completamente
intactos”.233 A constatação do filósofo evidencia que, muito embora, a ciência tenha sido a
forma de conhecimento predominante nos últimos três séculos, o fato é que ela não
responde por si só a todas as questões existenciais do ser humano. Rousseau já havia
desconfiado disso no séc. XVIII quando afirmava: parece que nossas ciências são mais
inúteis em vista do que se propõe e mais perigosas em relação aos efeitos que produzem.
Neste particular, a observação de Husserl é providencial: meras ciências de fatos produzem
meros homens de fato. Ao lado da observação do filósofo contemporâneo, Boaventura
também acrescenta que o prodigioso desenvolvimento científico nos fez acumular
conhecimento sobre o mundo, mas nos fez incapazes de transformar este conhecimento em
sabedoria do mundo, do homem consigo mesmo e com a natureza. E conclui:
Tal fato [...] deveu-se à hegemonia incondicional do saber científico e à conseqüente marginalização de outros saberes vigentes na sociedade, tais como o saber religioso, artístico, literário, mítico, poético e político, que em épocas anteriores tinham em conjunto sido responsáveis pela sabedoria prática (a phronesis) ainda que restrita a camadas privilegiadas da sociedade.234 E, sendo a tecnologia produto da aliança entre ciência e técnica (conforme
evidenciamos aqui desde o primeiro capítulo) é neste contexto que deve ser pensada a
dimensão epistemológica da tecnologia: a tecnologia é a materialização da visão
epistemológica da ciência moderna, ou, a tecnologia moderna é o produto supremo do
agir-raional-com-respeito-a-fins, característico do conhecimento científico, conforme bem
traduz Habermas, ao falar da ciência e da técnica como ideologia. Tendo seus postulados
epistemológicos fincados no empirismo e no conhecimento científico, a tecnologia
moderna tornou-se hegemônica, totalitária, à medida que, do mesmo modo da ciência,
desprezou outras formas de produção material que não a tecnociência. Neste sentido, é
possível explicar epistemologicamente o porquê do massacre de culturas e povos que não
fazem parte do circuito globalizante que o conhecimento técnico e instrumental implantou,
e que hoje designamos por tecnosfera. É esta visão epistemológica do paradigma científico
que hoje se encontra em crise, pelas razões teóricas, históricas, sociológicas e
epistemológicas, conforme anunciamos aqui.
233 Citado por SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p.121. 234 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p. 148.
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Os crescentes problemas ecológicos são o eco mais profundo desta crise
paradigmática. Já nos referimos a isso noutra oportunidade235, mas vale a pena aqui
retomar o que queremos dizer. Por exemplo: a objetividade da ciência, atrelada à
instrumentalidade da técnica, fez-nos tratar a natureza como um ser passivo e passível de
dominação. Se, para os antigos (e também hoje para as culturas ameríndias) a natureza é
vista como contemplação, para os modernos, ela tornou-se objeto de manipulação.
Portanto, a dominação da natureza pelo homem através dos avanços tecnológicos é um
exemplo característico do paradigma dominante em sentido epistemológico.
Hoje, as novas descobertas científicas caminham em direção oposta àquela que
considera a natureza mero objeto, postulando que na esfera dos fenômenos naturais,
também há dinamicidade, contradições, auto-organização, retroações236. O mundo é um
sistema vivo, possui sua própria inteligência, então o conhecimento sobre, não se dá mais
pela dominação e pelo controle, e sim pelo diálogo. Sobre isso, Habermas propõe:
[...] Em vez de tratar a natureza como objeto passivo de uma possível manipulação técnica, podemos dirigir-nos a ela como um parceiro numa possível interação. Em vez da natureza explorada, podemos ir em busca da natureza fraterna. Ao nível de uma intersubjetividade ainda incompleta, podemos atribuir a subjetividade dos animais, às plantas e até mesmo às pedras e comunicar-nos com a natureza, em vez de limitarmos a trabalhá-la, quebrando a comunicação [...].237 Logo, há que se considerar que efetivamente não há “objeto” no processo do
conhecimento, mas sim um “outro sujeito”238. Daí fica evidenciado porque Boaventura
insiste em dizer que o ato de conhecer, mais que ser uma atitude de dominação e de
intervenção, como o é na Ciência Moderna, constitui-se como ato de contemplação239.
Outro exemplo que configura as implicações epistemológicas do paradigma
científico na ecologia, diz respeito à visão departamentalizada e fragmentada do
conhecimento científico, que, por conseguinte, exige soluções tecnológicas também
departamentalizadas e fragmentadas.
Citemos ilustrativamente o problema da água. Bem sabemos que aqui no Brasil o
abastecimento de água às populações urbanas, sobretudo, das grandes metrópoles, constitui
235 Cf. MIRANDA, Ângela L. e BASTOS, João Augusto S. L. A. As interfaces entre epistemologia,
ética e ecologia. In: Coletânea Educação e Meio Ambiente. Curitiba: CEFET-PR (no prelo). 236 A Teoria das Estruturas Dissipativas de Prigogine, a Teoria Sinergítca de Haken podem ser
consideradas exemplos desta nova compreensão da natureza. Citado por SANTOS, Um discurso..., op. cit., p. 62 e por CAPRA, F. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1996.
237 HABERMAS, J. Técnica..., op. cit., p. 308. 238 Ibid. 239 SANTOS, Um discurso..., op. cit., p. 68. O autor adverte que não se trata da visão medieval de
uma contemplação hostil, mas o sentido de contemplação aqui é sugerido em virtude da relação dialogal do ato de conhecer.
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um problema ambiental, devido ao processo de urbanização inadequado em regiões
pertencentes às áreas de mananciais (o caso da Região Metropolitana de Curitiba nos
parece emblemático)240. Este processo de urbanização inadequado, remete-nos ao projeto
político e econômico da industrialização do Brasil, a partir da década de 50, tendo como
conseqüência o fenômeno do êxodo rural, que produziu o crescimento desordenado das
grandes cidades, principalmente em áreas metropolitanas de mananciais, comprometendo o
abastecimento e a qualidade da água a ser consumida pela população. Ora, conclui-se,
então (ainda que com este breve olhar sobre a questão), que o problema do abastecimento
da água não pode ser observado de modo isolado. Não é um problema meramente
ambiental; ele está inserido numa dimensão mais ampla que envolve a esfera do político,
do social, do econômico. Portanto, o problema ambiental é também social, porque é
político, é econômico e assim o é transdisciplinariamente.241
Já no início do século XX, Bachelard observava: “na realidade, não há fenômeno
simples; o fenômeno é um tecido de relações. Não há natureza simples, nem substância
simples; a substância é uma contextura de atributos. Não há idéia simples, porque uma
idéia simples [...] deve ser inserida para ser compreendida, num sistema complexo de
pensamentos e experiências.”242 Portanto, ao invés de uma epistemologia que tende à
simplificação, fala-se numa epistemologia da complexidade243: a maneira de entender a
parte é entender a sua relação com o todo. Não se nega a parte; ela existe. Mas, só pode ser
compreendida na relação com o todo. Desse modo, é preciso entender a dinâmica do todo
para entender a propriedade das partes.
Ora, esta nova visão epistemológica, tornou-se possível, sobretudo, graças ao
surgimento do pensamento ecológico e, por conseguinte, à introdução da nova ciência
chamada ecologia, no final do século XIX. Levando-se em conta que a ecologia “é o
estudo das relações que interligam todos os membros do Lar Terra”244, pode-se inferir que
o pensamento ecológico é, ao mesmo tempo, fruto e termômetro da própria crise
engendrada pela visão particularizada e especializada da ciência moderna. Fruto, porque os
problemas ambientais vivenciados hoje pelo homem são decorrentes (dentre outros fatores)
240 Um estudo mais detalhado sobre a situação, encontra-se nos capítulos 1 e 2 da tese de LIMA,
Cristina A. A ocupação de áreas de mananciais e os limites dos recursos hídricos na RMC: do planejamento à gestão ambiental urbana – metropolitana. 2000. 392 f. Tese (Doutorado). Desenvolvimento e Meio Ambiente (DEMA), Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2000.
241 O conceito de transdisciplinariedade pode ser aprofundado na obra de BASATAB, Nicolescu. Manifesto da transdisciplinariedade. São Paulo: Trion, 1999.
242 BACHELARD, op. cit., p. 130. 243 O conceito é sugerido por Edgar Morin, conforme bibliografia indicada no final deste trabalho. 244 CAPRA, F. A teia..., op. cit., p.43.
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das medidas imediatistas, particularizadas e fragmentadas quando da intervenção do
homem sobre a natureza. Termômetro no sentido de que o crescimento dos problemas
ambientais enuncia a necessidade de repensar a relação homem e natureza. O que antes era
uma ação local, hoje passou a ter implicações globais. A análise filosófica de Michel
Serres nos ajuda a entender a mudança paradigmática: “O que está em risco é a terra em
sua totalidade, os homens em seu conjunto. A história global entra na natureza, a natureza
global entra na história; e isto é inédito na filosofia”.245
Portanto, a ecologia enquanto ciência implica numa atitude epistemológica que leve
em conta a complexidade dos seres que compõe a natureza. Assim, termos, como:
ecossistema, biosfera, próprios da ecologia, sugerem a perspectiva de compreensão da
dinâmica do todo, numa visão sistêmica, e, por outro lado, rechaça a visão analítica,
particularizada e fragmentada do real. Isto significa dizer que, se antes as nossas ações
junto à natureza eram medidas imediatistas, locais, particularizadas e fragmentadas, hoje a
própria compreensão da ciência ecologia clama por medidas que leve em conta o mediato,
o global, a transdisciplinariedade, as inter-relações ou a teia das relações que envolvem
todo o ambiente.
Em suma, retomando Wittgenstein, se os “problemas da vida permanecem
completamente intactos”, é porque a forma ou o método que elegemos para conhecê-los,
tem sido insuficiente. E como o método carrega em si uma visão de mundo, conforme já
alertamos no decorrer deste capítulo, necessário é re-dimensionar a visão de mundo
adotada pela ciência desde a modernidade, e, conseqüentemente também, o modelo de
tecnologia decorrente desta cosmovisão. Ou seja, necessário é redimensionar a própria
história da produção material do ser humano, que, no fundo, significa a história da
condição “ex-sistir” (condição de estar-aí) do ser humano no mundo.
Disso decorre que é possível pensar um outro entorno epistemológico para a ciência
e conseqüentemente para a tecnologia. A constatação de Boaventura Santos ao anunciar
que estamos diante de uma segunda ruptura epistemológica, qual seja, o reencontro da
ciência com o senso comum pode ser este novo entorno epistemológico. A seguir,
detalhemos um pouco mais esta proposta.
A primeira ruptura epistemológica ocorreu, segundo Boaventura e conforme o que
fora dito anteriormente, quando Bachelard anunciou o novo espírito científico,
reivindicando um estatuto próprio para a ciência, separando-a do senso comum e
245 SERRES, Michel. O contrato natural. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
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constituindo-se, inclusive, contra este. Ora, os aspectos teóricos, sociais e epistemológicos
da crise paradigmática os quais analisamos acima, constituem para Boaventura as
condições necessárias para a realização da segunda ruptura epistemológica, perfazendo
agora um caminho inverso: ao invés da ciência separar-se do senso comum deve-se ir ao
encontro dele, não para voltar ao status do senso comum e sim transformá-lo com base na
ciência. Seria a inauguração de uma outra forma de conhecimento: um conhecimento
prudente para uma vida descente, como no dizer de Boaventura., pois, se na primeira
ruptura a pergunta latente a ser respondida era “como se faz a ciência”, na segunda, a
pergunta crucial é “para que serve a ciência”.
Para entender a tese do autor, necessário é adentrar na sua concepção de senso
comum. O exercício primeiro é o de des-dizer aquilo que a ciência apregoa como sendo o
senso comum. Ou seja, trata-se num primeiro momento de compreender o que não é o
senso comum. Assim, Boaventura enumera alguns equívocos os quais consideramos
importantes traduzí-los aqui.
O primeiro diz respeito ao seu nascedouro. O senso comum nasce daquilo que se
torna comumente razoável, universal e prudente para um determinado grupo social; “é o
menor denominador comum daquilo que um grupo ou um povo coletivamente acredita”.246
Por isso mesmo lhe é atribuído um aspecto conservador (1) no sentido de reproduzir, por
exemplo, como um grupo social vive a sua subordinação numa sociedade de classes. Ora,
se isto é verdade, também poderá sê-lo como forma de resistência, pois, o senso comum,
tem uma vocação solidarista e transclassista.247 Do mesmo modo que é um equívoco
atribuir-lhe uma concepção fixista (2), por ser ilusório, preconceituoso. Diz Boaventura
tais atribuições dependem do contexto em que está inserida a comunidade do nascedouro
do senso comum: “uma sociedade democrática com desigualdades sociais pouco
acentuadas e com um sistema educativo generalizado e orientado por uma pedagogia de
emancipação e solidariedade, por certo, ‘produzirá’ um senso comum diferente de uma
sociedade autoritária, mais desigual e mais ignorante”.248
Um outro aspecto refere-se à classificação ingênua de considerar que o senso
comum representa as trevas, enquanto a ciência representa a luz (3). Se os preconceitos, os
246 SANTOS, Uma introdução, op. cit., p. 37 247 O autor cita como exemplo ilustrativo, a sua própria investigação realizada com os moradores da
favela do Rio de Janeiro e como se institui o senso comum jurídico destes habitantes. A experiência encontra-se publicada com o título O discurso e o poder; ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1987.
248 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p. 38.
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pré-juízos representam as trevas, são sinais de irracionalidade e de imaginação, vale
lembrar que tais também estão presentes na ciência. Equívoco seria eximir a ciência desta
situação. Em segundo lugar, vale dizer que o irracional o imaginário é parte constitutiva
daquilo que hoje a própria ciência reconhece como necessária ao processo de
conhecimento. Basta lembrar a valorização do erro no descobrimento da verdade ressaltado
por Foucault; a positividade dos pré-juízos e preconceitos para a constituição do estar no
mundo, ressaltada por Gadamer.249
Afora a posição científica etnocêntrica sobre o que representa o senso comum, é
possível atribuir-lhe uma outra caracterização alternativa. Aqui transcrevemos as palavras
de Boaventura:
O senso comum faz coincidir causa e intenção; subjaz-lhe uma visão de mundo assente na ação e no princípio de criatividade e das responsabilidades individuais. O senso comum é prático e pragmático; reproduz-se colado às trajetórias e às experiências de vida de um dado grupo social e nessa correspondência se afirma de confiança e da segurança. O senso comum é transparente e evidente; desconfia das opacidades dos objetos tecnológicos e do esoterismo do conhecimento em nome do princípio da igualdade do acesso ao discurso, à competência cognitiva e à competência lingüística. O senso comum é superficial porque desdenha das estruturas que estão para além da consciência, mas, por isso mesmo, é exímio em captar a profundidade horizontal das relações conscientes entre pessoas e pessoas e coisas. O senso comum é indisciplinar e imetódico; não resulta de uma prática especificamente orientada para produzir; reproduz-se espontaneamente no cotidiano da vida. Por último, o senso comum é retórico e metafórico; não ensina, persuade.250 A configuração do senso comum apresentada por Boaventura torna-se elementar
para pensar um novo entorno epistemológico que inclui também a tecnologia. Quando o
autor afirma que no senso comum a prática é orientada para o cotidiano da vida e não para
a produção (e o sentido que o autor está atribuindo à produção aqui, é o sentido moderno,
de exploração e lucro), inferimos neste processo o papel da técnica.
A existência da técnica como um processo disciplinar de produção redunda na sua
aliança com o modo de produção capitalista. Todavia, a crítica a este processo não
significa a negação da técnica, mas a sua re-orientação a partir de uma outra proposta
espelhada no próprio conhecimento produzido pelo senso comum, ou seja, um
conhecimento “colado às trajetórias e experiências de vida de um grupo social”, conforme
bem disse Boaventura, um conhecimento que surge da prática cotidiana da vida. Isso
possibilita a preservação da liberdade humana diante das escolhas e das opções
tecnológicas, e não como ocorre hoje em dia em que a produção tecnológica é um processo
249 Verificar outros exemplos em SANTOS, Uma introdução...,op. cit., p. 38. 250 SANTOS, Um discurso, op.cit.,p. 56 e ss
101
pronto, importado, alheio à realidade da comunidade e sua adequação é condição sine qua
non para a sobrevivência econômica de grupos sociais ou nações no mundo globalizado. A
adaptação torna-se superior à criatividade e disso resulta a crescente relação de
dependência e conseqüentemente a perda de identidade destes grupos sociais.
Marx, já previa este movimento “natural” da tecnologia em vista das forças
produtivas. Em palavras textuais, ele dizia:
Um crescimento geral e contínuo das forças produtivas [por exemplo, a entrada de uma transnacional em um país subdesenvolvido, hoje] desvalorizaria relativamente todos os valores existentes objetivados pelo trabalho de um estado inferior das forças produtivas, e, por conseguinte, destruiria (vernichten: aniquilaria) capital existente, assim como a capacidade de trabalho existente.251 Para Marx, a tecnologia mais desenvolvida, concebida dentro dos moldes de
produção capitalista, seguindo sua mesma lógica, tal como este, destrói tecnologias ditas
“menos desenvolvidas”. E Dussel acrescenta:
destrói o trabalho subjetivado e objetivado, riqueza. Esta aniquilação continua a produzir pobreza relativa, subdesenvolvimento, tecnologia dependente. É neste nível concreto, real, mundial, em que a tecnologia alcança seu mais alto grau de objetividade efetiva. A questão de autodeterminação tecnológica toca o núcleo mesmo do capitalismo periférico e explica seu “eterno” atraso, a importação tecnológica e a falta de invenções produtivas.252 A destruição da relação formal da tecnologia com o capital, significaria, pois, para
Dussel, a efetiva emancipação tecnológica do ser humano perante o capital. Neste caso, a
tecnologia deixaria de ser um momento do processo de valorização do capital (que
representa sempre mais-valia e ganância) e passaria a ser essencialmente produção material
do homem. Mais ainda: a tecnologia assim vista, seria a efetiva possibilidade da construção
do “humano” na história, através do processo de produção material. Portanto, a tecnologia
deixaria de ter um caráter simplesmente econômico e adquiriria um sentido, antes de tudo,
antropológico.
Pensar, pois, uma dimensão epistemológica da tecnologia, cujo conhecimento
esteja orientado para beneficiar o cotidiano da vida e não a produção em sentido
expropriatório (como falava Heidegger e Marx) é garantir o equilíbrio entre adaptação e
criatividade; entre custo e benefício; entre o que pode fazer e o que deve ser feito.
Delegação esta que pertence originariamente ao espaço da comunidade. Nisto reside a
251 MARX, Los Grundrisse I, pp. 406-407. Apud DUSSEL, Filosofia...op. cit., p.140 (Tradução
livre). 252 DUSSEL, Filosofia..., op. cit., p. 140 (Tradução livre).
102
possibilidade de criar condições tecnológicas de invenção e não de dependência e
dominação tecnológicas.
Isto implica, ainda, na necessidade de fazer coincidir no processo de conhecimento
causa e intenção. Ou seja, se a ciência moderna ocupou-se em investigar “como” as coisas
acontecem, um novo conhecimento deve avançar no sentido de se preocupar “para quê” as
coisas acontecem; qual sua finalidade.253 A propósito, vale dizer que este caminho é o
processo inverso do que propôs Bacon, ao instaurar o Empirismo. Criticando a
compreensão de causalidade dos fenômenos, estipuladas por Aristóteles, Bacon propôs o
descolamento da causa final do processo de conhecimento causal da ciência empírica.254
Disso tudo conclui-se que algumas experiências têm evidenciado a possibilidade de
trilhar um outro caminho epistemológico para a tecnologia. Por exemplo, a implantação de
“tecnologias apropriadas” (TA’s) que leva em conta a necessidade e as circunstâncias
locais, ou a concepção de tecnologia baseada no Small is beautiful, 255 que se opõe à
tecnologia de grande-escala. Referindo-se aos aspectos críticos daquele modelo de
tecnologia em relação a este, Krüger acrescenta:
Cita-se, por exemplo, o fato de esse tipo de tecnologia [a de grande-escala] proporcionar uma economia do tipo robber-economy, que usa recursos naturais em abundãncia e com rapidez, provenientes muitas vezes de regiões mais pobres, para transformá-los em bens de consumo de curta vida útil e repassá-los a um alto custo às mesmas regiões de onde saem esses recursos. Dentre outras críticas, poderíamos ainda citar as seguintes: - A tecnologia de grande-escala atua contra a natureza e não a seu favor. - A tecnologia de grande-escala favorece uma exclusão econômica. - A tecnologia de grande-escala demanda altos custos energéticos e econômicos em sua
aplicação. - A tecnologia em grande-escala prova o homem do trabalho criativo e produtivo, no
qual ele usaria cérebro e mãos. O trabalho produtivo na sociedade industrial desumaniza, é fragmentado e monótono, tendo pouco significado para o trabalhador e diminuto prestígio social.256
Vale lembrar ainda que no campo da pesquisa científica e acadêmica também estão
acontecendo movimentos neste mesmo sentido. Lembramos aqui que um dos grupos de
estudo que constituem a linha de pesquisa “Tecnologia e Trabalho” do Programa de Pós-
Graduação em Tecnologia (PPGTE) do Centro Federal de Educação Tecnológica do
253 Também esta problemática diz respeito ao caráter ético da tecnologia, que será tratada no
próximo capítulo: “A dimensão axiológica da tecnologia moderna”. 254 Cf. p. 63, sobretudo, a nota 136 deste capítulo. 255 Citamos aqui a obra referencial do assunto: SCHUMACHER, E. F. Small is beautiful. Reino
Unido: Vintage, 1993. 256 KRÜGER, Eduardo L. Engenharia, construção civil e sociedade. Revista de Ensino de
Engenharia, v. 20, n. 1, p. 32, 2001. Eduardo Krüger é professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE), CEFET-PR.
103
Paraná (do qual faz parte esta dissertação de mestrado), tem como temática “A
Apropriação do Conhecimento Tecnológico”, cujo objetivo consiste em investigar o
processo de apropriação do conhecimento tecnológico na sociedade, através do ensino
formal e através da prática profissional de trabalhadores, que se dá no campo da
informalidade. Tendo como eixo central a interdisciplinariedade, o projeto visa resgatar o
processo de aquisição do conhecimento através do trabalhar, do criar e do aprender, que
muitas vezes, realiza-se no âmbito da informalidade, assim chamado “conhecimento
tácito”, existente nos diversos setores da sociedade.257
A dupla ruptura epistemológica, pois, compreende um trabalho de transformação
tanto da ciência quanto do senso comum, que configura um saber prático que dá sentido à
existência e cria as condições para decidir com prudência. Boaventura chega a dizer que tal
conhecimento se aproxima da phronesis aristotélica258: um saber prático esclarecido, mas
que diferentemente da visão aristotélica (que restringia a phronesis aos esclarecidos), está
democraticamente distribuído. Aqui entra o papel da tecnologia, pois, segundo Boaventura,
a democratização deste novo saber só é possível pelo “desenvolvimento tecnológico da
comunicação que a ciência moderna produziu”.259 A tecnologia seria a responsável pelo
desenvolvimento da competência cognitiva e comunicativa em vista de um saber prático
que traga sentido à existência.
O saber prático é aqui entendido como a superação da dicotomia
contemplação/ação. Se de um lado, na Grécia Antiga tem-se a verdade da ciência pela
ciência, (a ciência em si), de outro lado, na modernidade, tem-se a verdade social da
ciência (a tecnologia) a ponto de pretender separar a ciência pura da ciência aplicada. Ora,
essa dualidade ou visão maniqueísta de conhecimento deixa de ter sentido diante da práxis,
onde a técnica torna-se uma dimensão da prática e não como hoje acontece onde a prática
se converteu numa dimensão da técnica.260 Trata-se de uma concepção pragmática de
conhecimento: “Só existe ciência enquanto crítica da realidade a partir da realidade que
existe e com vista à sua transformação em uma outra realidade”,261 argumenta Boaventura.
257 Uma análise mais aprofundada da proposta deste grupo de pesquisa, encontra-se disponível no
site: www.ppgte.cefetpr.br. Cf. ainda BASTOS, João Augusto S. L. A. (Coord.) Desafios da apropriação do conhecimento tecnológico. Coleção Educação & Tecnologia, Curitiba: CEFET-PR, 2000, p. 7-22.
258 Lembremos que a análise aristotélica da relação phronesis e techné já fora tratada no I Cap., tópico 3 deste trabalho.
259 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p. 42. 260 SANTOS, Uma introdução..., op.cit., p. 44. 261 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p. 48.
104
Neste sentido, citemos também, a proposta da Politecnia, ou mais precisamente, a
proposta de educação tecnológica fundada na educação politécnica. Diferentemente da
polivalência, a politecnia tem em vista o pluralismo do saber que é prático e também
teórico. É prático porque nasce da experiência da produção (da poiésis); é teórico, porque
significa obter e ter a posse de como se dá o processo prático. Ou seja, o trabalhador que
efetivamente produz, detém o conhecimento do que produz. Portanto, é um saber
politécnico, porque diz respeito à aquisição da totalidade daquele produto pelo trabalhador,
e não somente de parte dele (como é o caso do modelo rígido fordista e taylorista, cuja
produção é em série), ou de suas partes (como é o caso do modelo flexível toyotista, ou
Modelo Japonês de Produção Industrial – MJPI), que ainda assim não permite a visão do
todo, porque o conhecimento proporcionado ao trabalhador é o da composição ou soma das
partes e não o da complexidade que envolve todo o processo da produção ou do produto.262
6 SÍNTESE DA DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA
Neste capítulo, vimos como o Empirismo e juntamente com ele o conhecimento
científico, baseado no método experimental, surgidos a partir do século XVI, plasmaram
em sentido epistemológico a tecnologia, conferindo-lhe, pois, aquilo que desde o princípio
desta pesquisa estamos designando por “gênese” ou “identidade”, própria da tecnologia
moderna.
Assim ao enunciar o surgimento da corrente filosófica do Empirismo (Bacon), e o
nascimento das assim chamadas Ciências Modernas (Descartes, Galileu, Newton) baseadas
no método experimental e, portanto num outro modo de conhecer, qual seja o método
científico procuramos evidenciar como e porque este contexto filosófico contribuiu para a
configuração da gênese da tecnologia moderna. Enfatizamos, por exemplo, que os
principais postulados anunciados por Bacon, assentados, inclusive, na oposição à uma
ciência especulativa e em defesa de uma ciência operativa, prática, e que tem como
finalidade o domínio da natureza, é o prenúncio não somente de uma nova constituição
epistemológica da ciência, fundada na experiência, na realidade empírica, palpável,
provável, observável, como também é o prenúncio de uma nova epistemologia da técnica e
da tecnologia a partir da era moderna. Desses fatores, decorre a necessidade histórica de
262 Para maior aprofundamento da politecnia, conferir a obra de KRUPSKAYA, N. La educación
laboral y la enseñanza. Editorial Progreso, 1986; MACHADO, Lucília R. de Souza. Politecnia, escola unitária e trabalho. São Paulo: Cortez, 1989.
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atrelar a ciência e a técnica.263 Fato este elementar para a constituição da ontologia da
tecnologia na modernidade, conforme já demonstramos no primeiro capítulo.
Enunciamos ainda que o método não representa somente uma ferramenta que nos
auxilia na compreensão da realidade. Por isso mesmo que a opção por este ou aquele
método não é somente uma escolha de caráter instrumental; ela é antes de tudo, uma
escolha de caráter epistemológico, porque reflete a maneira como concebemos o mundo e a
realidade. Vimos também que o referencial desta concepção na modernidade é o método
científico, daí porque considerarmos que o paradigma científico é o modelo vigente em
sentido epistemológico atualmente.
Disso decorre o predomínio de um conhecimento objetivo, fragmentado,
departamentalizado, formalista (no sentido de que não leva em conta a intencionalidade
dos fenômenos), legalista e totalitário (posto que não dialoga e sim aniquila outras formas
de saber). Tais características também, dizem respeito à dimensão epistemológica da
tecnologia, que, na modernidade, cientificizou a técnica e transformou a ciência num modo
de razão instrumental dirigida e controlada pela tecnocracia, movimento globalizante que
aniquila diferenças, destrói etnias e impõe uma única via de produção material para o ser
humano, qual seja; o da dominação e controle da natureza.
Contudo, bem sabemos também que cada época produziu formas diferenciadas de
compreensão de mundo que passaram a ser hegemônicas em cada período da história e que
foram se alterando em face de transformações econômicas, políticas, sociais, etc. Tais
transformações se efetivaram em meio às crises epistemológicas.
Atualmente, defendemos que estamos diante de um desses momentos de transição
paradigmática. Desse modo, a questão que se coloca é em que medida o método científico
e junto com ele a visão paradigmática empregada pela ciência na modernidade,
corresponde efetivamente à dinamicidade do real ou à logicidade dos fenômenos?
Destacamos aqui algumas noções paradoxais deste problema epistemológico, quais sejam:
a noção de especificidade x complexidade; objetividade x subjetividade; causalidade
formal e causalidade final; ordem e contradição; verdade como certeza x verdade como
263 Claro está que estes fatores não foram os únicos na constituição do novo contexto da época
moderna. Estes (os que apresentamos) são de ordem filosófica. Contudo, bem sabemos que o conhecimento científico-natural também passa a ser interesse da burguesia nascente. Ou seja, a necessidade da produção material e, portanto, da transformação da natureza pelo conhecimento científico, é uma necessidade social e econômica, que ganha forças com a ascensão da nova classe social que é a burguesia, interessada muito mais em transformar a natureza, do que em adquirir conhecimentos especulativos e teoréticos sobre ela, como faziam os homens de ciência gregos e medievais. Sobre o assunto conferir também VAZQUEZ, Adolfo S. Filosofia da práxis. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1986, pp. 216 e ss.
106
pretensão de validade. Tudo isso nos leva a conjecturar sobre a possível crise do paradigma
científico.
Além disso, à esteira do que fizera Rousseau há aproximadamente duzentos e
cinqüenta anos atrás, conforme já observamos há pouco, outras indagações nos parecem
pertinentes: será que somente o método científico corresponde ao que é a verdade?
Somente a ciência pode nos levar ao conhecimento? As palavras sábias do Professor João
Augusto nos ajudam a entender melhor a questão:
É questionável que o método científico seja considerado como único para se gerar conhecimento. A verdade é muito mais ampla e complexa e não deve ser reduzida a um único caminho a ser percorrido. Muitas são as implicações para a construção do conhecimento na modernidade tomando como base o método científico. A mais perigosa concentra-se no reducionismo de modelos e paradigmas. Outra seria adotar um tipo exclusivo de racionalidade que conduziria a dimensões puramente abstratas e instrumentais. Portanto, é preciso construir e reconstruir o conhecimento a partir do todo, não concebido só racionalmente e em partes, mas vivido e circunstanciado pelas "razões" outras na existência que está sempre acontecendo.264 Relembremos ainda a constatação de Wittgenstein para quem a ciência, embora
diante de tantos avanços tecnológicos, não respondeu ainda as questões mais elementares
da vida. A partir desta constatação, conjecturamos a possibilidade de se constituir um outro
entorno epistemológico para a ciência e a tecnologia A proposta de Boaventura, que
assenta num “conhecimento pragmático”, parece responder a este desafio. Os “problemas
da vida” são a fonte de onde surge o senso comum; este “nasce colado às experiências do
cotidiano” (já tratamos deste tema quando aludimos para a possibilidade de um novo
entorno epistemológico para a tecnologia – Cf. tópico 5). Portanto, promover o encontro da
ciência com o senso comum, o que Boaventura designa como sendo “a segunda ruptura”
da ciência, aponta a saída diante da constatação de Wittgenstein. Significa promover
um “conhecimento prudente para uma vida decente”, ou um “senso comum
esclarecido”, com mais sentido, porque conferido pelo conhecimento causal referendado
pela ciência. É a possibilidade de realização da phronesis, empregada pelos gregos, que
indica “sabedoria de vida”, só que agora com a possibilidade de ser mais democrático,
graças ao aumento da distribuição de competências cognitivas proporcionadas pela
tecnologia, como, por exemplo, através do aumento de comunicação.
Neste sentido, o discurso epistemológico será também sociológico, posto que deve
levar em conta as concepções pragmáticas e retóricas da ciência que substituem as teorias
264 BASTOS, João Augusto S. L. A. Epistemologia e a crise do paradigma científico. Curitiba,
2001. Entrevista concedida a autora deste trabalho, em Abril de 2001.
107
positivistas da ciência; deve ter o consenso como medida da objetividade, estabelecidas a
partir de valores de justiça e emancipação social. Nisto reside a inserção de um novo
entorno epistemológico da tecnologia. Por exemplo: ter a verdade como consenso é
propiciar a criação e implantação de novas tecnologias, submetidas e mantidas pelo
consenso do auditório da comunidade a qual está inserida e não como comumente hoje
acontece, onde a implantação de novas tecnologias obedece a uma lógica global, totalitária
e hierárquica, cujos interesses locais são irrelevantes e insignificantes.
Por fim, é mister esclarecer que a atual crise epistemológica da ciência, incluindo aí
também a tecnologia, deve ser a alavanca para atingir um conhecimento capaz de
“aumentar a nossa compreensão do mundo e do estar no mundo”.265 Até porque o ser
humano é sempre o sujeito e o objeto desta reflexão hermenêutica.
Ademais, entendemos que a aventura do conhecimento constitui a sua própria
natureza. Conhecer é, por si só, um processo de des-construção e re-construção constante
a partir do já estabelecido. E a transição do tempo presente em sentido epistemológico é
também a condição existencial do homem em tempos futuros. Ou seja, a análise da crise
epistemológica do paradigma científico é talvez condição necessária à sobrevivência
humana no futuro. Por isso mesmo que ela não é somente uma atitude epistemológica, mas
também uma postura política. Ilustrando o dito acima, Boaventura afirma:
Duvidamos suficientemente do passado para imaginar o futuro, mas vivemos demasiadamente o presente para podermos realizar nele o futuro. Estamos divididos e fragmentados. Sabemos o caminho, mas não sabemos exatamente onde estamos na jornada. A condição epistemológica da ciência repercute-se na condição existencial dos cientistas. Afinal, se todo conhecimento é autoconhecimento, também todo desconhecimento é autodesconhecimento.266 Dela extraem-se três aspectos conclusivos elementares. O primeiro diz respeito ao
próprio limite da condição existencial humana: se somos capazes de duvidar o suficiente
do passado para projetar o futuro, este é incerto elo próprio limite temporal da nossa
existência. Condição esta que se reflete na crise epistemológica. O segundo aspecto refere-
se ao tempo presente como lugar privilegiado da crise epistemológica, daí estarmos
divididos e fragmentados. E o terceiro aspecto conclusivo que vale aqui ser ressaltado é o
fato de que não se trata somente de uma crise de caráter epistemológico; ela é também
existencial, porque diz respeito á própria condição da nossa existência. Afinal, se a
265 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p. 150. 266 SANTOS, Um discurso..., op. cit., p. 71
108
epistemologia é a forma organizada da existência do homem no mundo, a crise do
conhecimento é, pois, também uma crise de autoconhecimento, da própria condição do
homem de estar no mundo.
109
CAPÍTULO III
A DIMENSÃO AXIOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA
Pouco sei a respeito dos deuses; mas parece-me ser o rio Um forte deus pardo-sombrio, indômito e intratável,
Paciente até certo ponto; reconhecido a princípio como fronteira Útil, indigno de confiança como via comercial;
Depois, apenas um problema para os construtores de pontes. Uma vez resolvido o problema o deus pardo é quase esquecido
Pelos moradores da cidade.267
1 PREÂMBULO
A descrição do poeta traduz com propriedade nossa intenção ante o propósito de
analisar a dimensão axiológica da tecnologia moderna: o olhar utilitarista do ser humano
sobre o mundo e a realidade, o qual tem na tecnologia a sua mais autêntica representação, é
a narrativa tanto do autor do texto, assim como é a perspectiva que se pretende empregar a
esta análise.
Se, em princípio, a natureza era concebida como possuída de deuses e temida pelos
homens, donde travava-se a luta da desconfiança e do medo pela sobrevivência diante das
obscurecidas manifestações naturais, para o homem moderno a natureza tornou-se pura e
simplesmente meio de subsistência, sinônimo de utilidade. Sem mais nenhum mistério, o
deus pardo e sombrio - o rio - tornou-se meramente um fenômeno natural, utilitário como
via comercial (depois da construção da ponte) e esquecido pelos moradores da cidade, diz
o poeta. Afinal, bradam os modernos, “saber é poder” (Bacon), e o domínio da natureza
nada mais é do que a adequação entre o conhecimento teórico da ciência e o conhecimento
prático da técnica, eis o princípio da tecnologia em sentido moderno. A descrição do poeta
denuncia ainda o panorama do comportamento humano diante do mundo (das coisas), que
aqui será tomado como sugestão para a inclusão da ética no âmbito da discussão sobre
tecnologia.
Para tanto, vimos até aqui que em sentido moderno, a tecnologia é plasmada
ontologicamente por um modelo de razão instrumental, cujo agir-racional-com-respeito-
a-fins fez conjugar e coincidir ciência e técnica, em vista da sociedade industrializada e
267 ELIOT, T. S., Quatro Quartetos. Citado por VARGAS, Milton. Para uma filosofia da tecnologia. São Paulo: Alfa Omega, 1984, p. 20.
110
pós-industrializada. Tal razão é justificada epistemologicamente pela visão empirista,
preconizada desde Bacon, donde o saber devesse ser operativo e não contemplativo e a
ciência um saber prático e pragmático e não especulativo, cuja garantia foi outorgada pela
revolução científica moderna que instaurou o método experimental e científico por
excelência.
A partir daqui vamos nos ocupar da descrição axiológica deste panorama da
tecnologia moderna. E, considerando o propósito inicial de nossa pesquisa de que para
fazer uma filosofia da tecnologia, é necessário levar em conta também o aspecto
axiológico, além dos outros dois aspectos (ontológico e epistemológico) a que já nos
aludimos nos capítulos anteriores, este capítulo propõe não somente analisar qual o modelo
axiológico da tecnologia moderna, mas também avaliar valorativamente tal modelo
axiológico de tecnologia. Portanto, propomos indicar, mas também avaliar, no sentido de
atribuir valores, de emitir juízos, os fundamentos éticos do comportamento humano diante
deste fenômeno, com o advento da modernidade.268
A reflexão sobre o caráter axiológico da tecnologia tem como ponto de partida a
concepção de que a tecnologia é, antes de tudo um fenômeno social, com dimensão sócio-
cultural e, como tal, é passível de atribuição valorativa. Ou seja, por ser a tecnologia um
fenômeno social, que sofre e propicia comportamentos sociais e culturais, confere-se a ela
uma dimensão também ética. Portanto, a relação entre Ética e Tecnologia é a primeira
abordagem significativa na qual está estruturado este capítulo. Ainda neste primeiro tópico,
pretendemos fazer algumas considerações gerais e introdutórias sobre os fundamentos da
ética, no sentido de fornecer as bases preliminares da discussão posterior em torno do
modelo de ética que fundamenta axiologicamente a tecnologia moderna.
É, pois, em torno desta discussão que será desenvolvido o tópico seguinte, cujo
objeto central de investigação é a indagação sobre qual fundamento ético reverencia a
tecnologia na modernidade. Ou seja, considerando que a tecnologia se move num ambiente
ético, a questão que se nos impõe é: a que referencial de ética obedece a lógica da
tecnologia moderna?
Partindo, pois, das fundamentações filosóficas anunciadas nos capítulos anteriores,
sobretudo da interdependência entre ciência e técnica; do domínio da razão instrumental;
da relação entre Empirismo e Tecnologia, é que sustentamos, porquê é o utilitarismo o
268 VARGAS, op. cit., p. 181 e ss. É mister esclarecer que a citação do referido autor não implica
necessariamente em acordo com suas teses. Aliás, como se observará, a posição adotada pelo autor diante destes aspectos será objeto de indagação e crítica ao longo desta exposição.
111
modelo de ética que propicia política e ideologicamente a tecnologia moderna. Traçando
um panorama do utilitarismo ético, tem-se o contexto de seu surgimento e as principais
características desta corrente ética e sua relação com a tecnologia na modernidade, bem
como suas principais críticas. Ao situar historicamente o utilitarismo ético, utilizamos
como referencial teórico os próprios fundadores: J.Bentham e S. Mill. A leitura destes
autores é auxiliada por outros teóricos que analisam o assunto, como Tugendhat, Dussel,
entre outros. Ao elucidar a relação entre Tecnologia e Utilitarismo, a visão utilitarista (ao
nosso entendimento) de Milton Vargas é utilizada como objeto de ilustração e crítica, ao
mesmo tempo também em que autores como, Tugendhat e Dussel são imprescindíveis para
tal propósito.
Em vista da possibilidade de apontar um outro referencial axiológico para a
tecnologia, indicamos a proposta de Hans Jonas, baseada numa ética cujo princípio é a
responsabilidade, como objeto de discussão central do penúltimo tópico deste capítulo.
Como a leitura da dimensão axiológica da tecnologia moderna está direcionada
muito mais em constatar a situação dada do que intencionar propor alternativas ou outros
referenciais de ética, limitamo-nos, nas considerações finais, em reforçar as idéias centrais
que supostamente conferiram embasamento teórico à argüição feita, acenando, enfim, para
a necessidade de retomar o assunto em estudos posteriores. Inclusive com o propósito de
alargar o horizonte da discussão e do debate sobre um novo entorno axiológico para a
tecnologia com outros filósofos da ética contemporânea, como Habermas e Dussel.
2 ÉTICA E TECNOLOGIA: ASPECTOS INTRODUTÓRIOS AO DISCURSO
AXIOLÓGICO DA TECNOLOGIA MODERNA
Antes mesmo de adentrar na questão central de que trata este capítulo, qual seja:
por que e como o utilitarismo tornou-se o modelo de ética preponderante no âmbito da
tecnologia moderna, faz-se necessário introduzirmos o assunto a partir de algumas
considerações que circundam a relação entre ética e tecnologia.
A primeira delas diz respeito à própria fundamentação e caracterização da ética em
seu sentido mais amplo, enquanto ciência do valor. Trata-se de esclarecer os principais
elementos de classificação da ética a partir dos princípios fundamentais norteadores das
diversas correntes da ética. Em outros termos, a questão pode ser assim colocada: quando
fazemos menção à dimensão axiológica da tecnologia, de que modelo de ética estamos a
nos referir? Quais são seus elementos fundantes?
112
O segundo ponto que merece algumas considerações introdutórias diz respeito à
fundamentação do discurso axiológico em torno da tecnologia; trata-se da relação
propriamente dita entre tecnologia e ética que pode ser assim questionada: é admissível ou
não uma estreita vinculação da tecnologia com a ética? Como acontece (ou não) tal
aproximação com o advento da modernidade?
Por fim, é mister clarear nosso posicionamento sobre a situação da ética no âmbito
da tecnologia moderna. Em forma interrogativa, o problema pode ser colocado nos
seguintes termos: qual o papel da ética na esfera da tecnologia moderna? Que referencial
axiológico fundamenta eticamente a tecnologia moderna? Como justificar seu lugar no
mundo da tecnosfera?
2.1 Caracterização ou Modelos de Ética
Tugendhat, analisa que “diferentes conceitos de moral são caracterizados por
diferentes conceitos de bem, os quais permitem, então, juízos de que algo é bom ou
mal”.269 Isto significa dizer que a questão da ética recai sempre na sua fundamentação e
tais diferenças desembocam nas diversas concepções de ética, posto que, diferentemente da
ontologia medieval, por exemplo, não existe mais na modernidade um conceito de “bem” e
“mal”; ou seja, não há que se falar num modelo único de ética e sim nas éticas possíveis,
fundamentadas a partir de procedimentos formais.
Portanto, antes mesmo de analisarmos a relação entre ética e tecnologia faz-se
necessário tecer algumas considerações filosóficas sobre as diferentes concepções ou
modelos de ética, pois, quando tratamos da dimensão axiológica da tecnologia a questão
primeira que se coloca é: que fundamento referencia nosso discurso ético em torno da
tecnologia?
Ainda que parte dos filósofos atuais da ética, principalmente os anglo-saxões, como
John Rawls considerem que “a pergunta pela fundamentação de nossos juízos morais não
possui nenhum sentido” entendemos, em conformidade com Tugendhat, que o conflito
moral fundamental o qual vivenciamos hoje, além de seus aspectos práticos, assenta em
seu aspecto teórico e filosófico, qual seja, o enfrentamento dos fundamentos entre as
diferentes concepções de moral. Fundamentar uma concepção de moral significa
269 TUGENDHAT, Lições de ética. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 30.
113
fundamentá-la, sobretudo, diante de outras concepções de moral, afirma Tugendhat,270 e
este parece ser um dos desafios crucias do tempo presente em sentido ético.
É por isso que temos as éticas formais em oposição às materiais, donde aquelas,
priorizando a forma, defendem que os juízos morais são normativos, designados por
normas e regras (é a posição adotada por Kant ou por Habermas, por exemplo); enquanto
as éticas materiais priorizam o conteúdo, a verdade material dada pela situação histórica (é
a posição dos utilitaristas e de Dussel, por exemplo).
Também podemos falar na distinção entre o racionalismo ético e no emotivismo
ético. No primeiro caso, tem-se o fundamento da ética baseado na razão: uma ação ética se
constitui a partir de juízos morais que são racionais (é o caso, por exemplo, da ética
kantiana, habermasiana, hegeliana, etc); já no emotismo ético o fundamento da ação moral
reside na emoção: o fundamento da ação moral está respaldado na vontade e no desejo e
não na razão (É o que defendia Nietzsche, Schopenhauer, entre outros).
Outra distinção fundamental diz respeito ao universalismo e ao relativismo ético.
No primeiro caso tem-se a defesa do princípio ético universal: uma regra moral só será
moralmente válida se assim for para todos. Nesta visão o princípio de validade da ética
reside na sua universalidade: o que for moralmente válido para todos, pode ser considerado
eticamente bom (o exemplo clássico vem de Kant: “age de tal modo que a máxima de tua
vontade possa sempre ao mesmo tempo valer como princípio de legislação universal”)271.
Já no relativismo ético tem-se que a validade da ação moral reside na adequação às
situações específicas
Mas, em se tratando da classificação dos diversos modelos de éticas em vista da
diferenciação de seus fundamentos, em especial, interessa-nos a oposição entre as éticas
consideradas deontológicas e as teleológicas. No primeiro caso tem-se que o agir moral é
concebido a partir das regras morais existentes a priori, como “dever ser” (do grego:
deón). O conceito de bem é previamente estabelecido (é um ente). Kant, por exemplo, dizia
que o princípio da boa vontade não reside em seu objetivo, mas no princípio formal da
vontade em geral. O “bem”, então, é um conceito metafísico de dever: uma lei para ser
moral precisa implicar nela mesma necessidade absoluta. Daí que para Kant, a lei moral é
um conceito de razão pura. A máxima de que “promessas devem ser cumpridas” é um
exemplo característico deste modelo de ética. A crítica mais comum a este modelo de ética
270 TUGENDHAT, op. cit., p. 26 e ss. 271 Citado por TUGENDHAT, op. cit., p. 148.
114
vem dos opositores do formalismo que vêem-na como um perigo para a fetichização da
regra: quem faz o bem não o faz pelo outro, mas pela regra.
Já nas éticas teleológicas o agir moral depende da sua finalidade (a posteriori).
Uma ação é boa quando promove um determinado fim (do grego télos: fim). Portanto, o
bem é uma regra prática, não existindo a priori. A validade da ação moral deve ser medida
pela sua aplicabilidade prática, pela sua eficácia, e não por ela mesma. O fundamento da
ação moral reside, então, no seu resultado. Daí que tal modelo de ética também é
denominado de conseqüêncialismo. O bem é um conceito empírico de utilidade; ele existe
não enquanto ente de razão, mas na utilidade da ação moral, posto que a teoria ética deve
levar em conta o bem viver ou o estado de bem-estar social, a qualidade de vida, a
felicidade. O exemplo característico deste modelo de ética é o Utilitarismo Ético,
preconizado desde Bentham e S. Mill, donde a maior felicidade do maior número é a
medida do bem e do mal.272 A crítica a este modelo de ética vem, sobretudo, dos
formalistas, por não considerá-la como doutrina moral, porque o bem não existe enquanto
ente.
Sobre as éticas teleológicas, voltaremos ao assunto quando aprofundarmos os
principais aspectos do utilitarismo ético e sua relação com a tecnologia.273 Passemos agora
a aprofundar ainda um outro ponto introdutório que consideramos elementar à análise
axiológica da tecnologia moderna, qual seja, a dicotomia entre ética e ciência ou mais
precisamente a separação da ética do campo da ciência e, por conseguinte, da esfera da
tecnologia na era moderna.
2.2 A Exclusão da Ética do Mundo Científico Moderno
Se a ética até a idade média estava inserida na esfera da “ciência prática” e do
conhecimento através do princípio de causalidade dos fenômenos do qual falava
Aristóteles e, neste caso, estamos nos referindo ao modo da causalidade final que incluía a
intenção e a finalidade das coisas na própria constituição do ser do ente, (ou seja, para que
algo exista ou que seja conhecido necessário é que também se conheça sua finalidade), a
partir da modernidade o que assistimos foi a separação da ética do âmbito da ciência
através da expulsão da causa final na constituição dos fenômenos. Decretada pelos
272 BENTHAM, Fragment, p. 3, citado por DUSSEL, Enrique D. Ética da libertação na idade da
globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 110. 273 Cf. item 3.1 deste capítulo.
115
modernos, a partir do século XVI à ciência não importa mais saber o para quê das coisas,
mas o como elas acontecem. (E o para que é uma questão ética porque diz respeito à
finalidade das coisas.) Deste modo, a ética passou a ser confinada à esfera da filosofia,
apartando-se da discussão científica.
Lembremos que em defesa desta separação lançara-se Bacon, ao defender que a
causa final ao invés de fazer avançar as ciências às corrompe, podendo ser de interesse,
todavia, às ações humanas”.274 Analisando os efeitos da visão de Francis Bacon em
seus Estudos de Moral Moderna, Apel reitera: “somente a renúncia à valoração teleológica
dos próprios fenômenos da natureza possibilita uma ciência, cujos resultados são
experimentalmente comprováveis e, desta forma, em princípio tecnicamente
valorizáveis”.275 Por isso é que para Bacon, a causa formal é a que efetivamente interessa à
ciência ativa.
Esta nova interpretação do mundo natural, que constitui, sem dúvida, a grande
perda do aristotelismo na era moderna, também será reforçada pela visão galileana de
ciência e de universo. Dela já nos referimos quando tratamos da revolução epistemológica
da ciência moderna276, mas vale recordar que ao defender uma ciência autônoma e
independente, capaz de dar uma descrição objetiva da realidade através dos aspectos
quantificáveis e mensuráveis da realidade que são iguais para todos, Galileu exclui do
âmbito da descoberta científica a causalidade final, propagando em definitivo a visão
mecanicista, donde a causa eficiente e formal tem especial destaque na explicação dos
fenômenos naturais.277 Para ele, a ciência deveria se afastar da investigação qualitativa,
posto que possibilita a interpretação subjetiva da realidade devido à sua variação. Quando
manifesta sua posição sobre a relação entre ciência e fé, vê-se novamente em evidência a
visão dualista e excludente de Galileu sobre ciência e valor: “a ciência é cega para o
mundo dos valores e do sentido da vida, enquanto a fé é incompetente sobre questões
factuais” (grifo nosso).278
A mesma interpretação da causalidade final e, portanto, do dualismo entre ética e
ciência, encontramos também na leitura de Descartes ante a res cogitans e a res extensa. Se
para Descartes do mundo material só podemos aprender sua forma ou extensão, sendo a
consciência atributo exclusivamente humano, enquanto aquele é desprovido deste atributo,
274 BACON, op. cit., p. 94. Cf, ainda Capítulo 1, tópico 2 deste trabalho. 275 APPEL, Karl-Otto. Estudos de moral moderna. Petrópolis: Vozes, 1994, p.96. 276 Cf. Cap. II , tópico 3.1.2. 277 REALE, op. cit., Vol II, pp. 266 e 278. 278 REALE, op. cit., Vol II, p. 266. Cf também p. 70 deste trabalho.
116
nada se pode esperar do mundo natural enquanto manifestações de forças vitais ou
intencionais. Em palavras textuais, ele diz: “ [...]Assim, por exemplo, não se pode entender
a figura senão na própria coisa extensa, nem movimento senão no espaço extenso, como a
imaginação, o sentido ou a vontade não se pode estender senão na coisa pensante. Mas, ao
contrário, pode-se entender a extensão sem a figura ou o movimento, como fica manifesto
para quem atente para isso.”279 Ao restringir o sentido e a vontade ao âmbito
exclusivamente do ser pensante (cogito) Descartes substitui a visão animista e reafirma o
modelo mecanicista, confirmando, então, a exclusão da causalidade final do mundo
material, do mesmo modo que também separando a natureza humana da matéria.
O mundo dado como expressão de fatos isentos de valoração não mais implica,
pois, no conceito de bem e do dever ser, contrariando assim a “ontologia teleológica de
Aristóteles”.280 Essa visão predomina e acompanha toda a história do pensamento
científico moderno. Eis um dos pontos cruciais da diferença entre o mundo dos antigos e o
mundo dos modernos. Hume, por exemplo, mais tarde, vai dizer que “de fatos não se pode
deduzir normas”, ou seja, em sentenças descritivas não se pode extrair sentenças
prescritivas e, tratando a ciência de fatos, dela não se pode exigir dimensão teleológica,
assim como é impossível tratar de uma fundamentação científica da normatividade ética.281
Em suma, o conhecimento científico produziu, ainda que aparentemente, “uma
visão de dualidade entre fatos e valores, com a implicação de que o conhecimento empírico
é logicamente discrepante do prosseguimento dos objetos morais ou da observação de
regras éticas”. 282
Ora, Boaventura Santos constata que foi excluindo a causalidade final de sua esfera
que a ciência apartou-se do senso comum, pois, este, ao invés daquela, faz coincidir causa
(leia-se aqui o aspecto formal, material e eficiente da causalidade de que falava Aristóteles)
e intenção, o que lhe garante um conhecimento mais prudente, em vista da observância
teleológica dos fenômenos. Por isso mesmo, avalia Boaventura, a ciência hoje deve
percorrer um caminho inverso ao daquele preconizado por Bachelard: ao invés de apartar-
279 REALE, op cit., Vol II, p.376. (grifo nosso). Cf. também pp. 71 e 72 deste trabalho. 280 APEL, op. cit.,p.96. 281 Cf. APEL, op. cit., p. 94. Sobre “o problema de uma fundamentação racional da ética na era da
ciência”, colocado nos termos da impossibilidade da fundamentação racional de uma ética normativa e defendida pelo argumento de que dada a objetividade da ciência, esta por si só já pressupõe a validade intersubjetiva e que, portanto uma fundamentação intersubjetivamente válida de uma ética normativa é absolutamente impossível, consultar especificamente o capítulo II da obra supra citada de Apel, p. 71-162.
282 SANTOS, Uma introdução..., op . cit., p. 52.
117
se do senso comum, deve a ciência seguir em direção a ele. Um conhecimento esclarecido
só será possível, quando for prudente, em vista de uma vida decente.
Também no segundo capítulo observamos que para Heidegger (e não somente para
ele, mas para os antigos) a verdade, enquanto revelação do ser, ocorre a partir dos quatro
modos de causalidade, sendo a técnica o modo de des-velamento desta verdade, através do
desabrigar da natureza; a técnica é modo do fazer-se revelar a verdade oculta da natureza.
Deste modo, o conceito antropológico e instrumental de técnica (que prioriza a causa
efficiens, como no dizer de Heidegger, por considerar a técnica como um meio ou um fazer
humano) pode ser correto, mas não verdadeiro. E não é verdadeiro exatamente por não
considerar os quatro modos de causalidade, incluindo aí a causalidade final, avalia
Heidegger.
Ainda voltaremos a este ponto quando descrevermos os aspectos conclusivos da
dimensão axiológica da tecnologia moderna. Por ora, resta compreender por que a relação
entre ética e ciência, na modernidade, tornou-se dicotômica e que o desprezo da causa
finalis do âmbito do conhecimento científico, custou o apartamento da ética tanto no
exercício da produção científica, quanto no da produção tecnológica. Explicitemos um
pouco mais este último aspecto que trata da separação entre ética e tecnologia.
2.3 A Dimensão Sócio-Cultural da Tecnologia ou para uma Axiologia da Tecnologia
Em se tratando da relação entre ética e tecnologia, que são os dois eixos temáticos
deste capítulo, tem-se que a tecnologia não se refere somente a um conjunto de aparatos
técnicos e instrumentais os quais utilizamos para garantir nossa subsistência e bem-estar
social; nem que a tecnologia é um fenômeno de manifestação “natural” que se impõe,
sendo incondicional e intransponível ao ser humano, porque é auto-sustentável e segue um
curso único. Ou ainda que a tecnologia é neutra, e como tal em nada pode ser
responsabilizada dependendo, pois, seus resultados exclusivamente da maneira como o ser
humano se relaciona com ela.
Desde início deste trabalho, temos insistido que a tecnologia é, antes de tudo, um
fenômeno social, historicamente constituída em vista de fatores econômicos, sociais,
políticos, etc, que se alteram e se modificam de acordo com cada época, cada período da
história ou cada cultura. Portanto, evitar posicionamentos de caráter deterministas,
conforme o enunciado acima, é o primeiro passo para a compreensão do tema em questão.
118
Ao elaborar um ensaio de Sociologia da Tecnologia, Vilma Figueiredo, parafraseando
Souza e Singer alerta:
Definir tecnologia como mera “coisa” é enfatizar um lado a-histórico ou um aspecto exclusivamente material da tecnologia. Somente através de uma investigação dos aspectos sociais da tecnologia _ como ela é produzida e usada _ é que nós poderemos desmistificar as mudanças “progressivas” e “inevitáveis” que são imputadas à tecnologia. O conhecimento do social _ isto é, daquilo que é sujeito à mudança e que é historicamente contingente a diferentes forças sociais_ é aquele capaz de informar práticas sociais e políticas. Após estudar o impacto da economia sobre a tecnologia, Melman (1975:71) comprova esta perspectiva quando afirma:... “se queremos alterar nossas tecnologias, o lugar para olhar não está na estrutura molecular, mas a estrutura social...”.283 Portanto, o processo de produção e consumo de tecnologias é antes de tudo um
processo social; ele é condicionado pela estrutura social, que se dá num campo de conflitos
sociais e de relações de poder de interesses e disputas, donde, pois, tem-se a possibilidade
de criar situações de permanência ou de transformações desta estrutura. Daí que tecnologia
não é, conforme já mencionado anteriormente, um fenômeno inevitável e intransponível à
condição humana; ela é um “produto social”.284 E, como tal, é passível de valoração social,
de emissão de juízo. Vista sob este ângulo, é possível sim afirmar a relação intrínseca
existente entre ética e tecnologia.
Este esclarecimento se torna imprescindível porque freqüentemente encontramos na
literatura sobre o assunto posições que, julgamos, ingênuas e equivocadas. Eis uma delas:
Procurar encontrar juízos de valor ou regras morais na ciência, na tecnologia ou na técnica é um contra-senso; pois tais juízos e regras não podem, de forma alguma, ser científicos ou técnicos. Por outro lado, esperar das ciências ou técnicas que se auto-limitem, diante de juízos ou regras estranhas a elas é utopia. Deixar de utilizar as tecnologias, relacionadas com energia nuclear, computação eletrônica ou genética, por serem julgadas “perigosas” para a humanidade, é renunciar a viver no mundo contemporâneo. Por outro lado, todos os problemas relacionados com poluição e degradação do ambiente só podem ser resolvidos pela própria tecnologia e não pela ética.285 (grifo nosso) Ora, como se observa, a posição adotada por Vargas incorre em equívocos cruciais
tanto do ponto de vista teórico, como também do ponto de vista das implicações sociais e
políticas do mundo da tecnosfera, no qual estamos inseridos. O primeiro equívoco é o de
tentar isentar da esfera da tecnologia (e assim ele o faz também com a ciência e a técnica
283 SOUZA e SINGER, Tecnologia e pesquisa agropecuárias: considerações preliminares sobre a
geração de tecnologia. Cadernos de Difusão de Tecnologia 1 (1), 1984. Apud, FIGUEIREDO, Vilma. Produção social da tecnologia. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária Ltda, 1989, p. 6 e 7. 284 FIGUEIREDO, op. cit., p. 11.
285 VARGAS, op. cit., p. 185.
119
na referida obra) a emissão de juízos de valor, separando a tecnologia da ética e atribuindo
um valor absoluto àquela a ponto de afirmar que os dilemas éticos que enfrentamos hoje, _
a poluição, por exemplo _, só podem ser solucionados “pela própria tecnologia e não pela
ética”. Se, como foi demonstrado anteriormente, a tecnologia “tanto modifica o meio
natural, como transforma profundamente o homem e a sociedade”286 (isto é, ela não pode
ser vista como “coisa”), não se pode, pois, excluí-la do campo da ética. E defender que as
tecnologias devem se “restringir às suas finalidades”, deixando “os julgamentos éticos aos
homens”,287 é postular uma visão ontológica da tecnologia determinista, a-histórica,
considerando que a tecnologia é um fenômeno único no decorrer de toda a história. É este
aspecto que já confrontamos no capítulo primeiro, quando tratamos da natureza da
tecnologia moderna em seu sentido ontológico e que será agora ainda mais aprofundado
quando tratarmos dos efeitos de tais posicionamentos sob uma perspectiva axiológica da
tecnologia, especificamente na modernidade.
Um outro equívoco refere-se à concepção de juízos ou regras “estranhas” à técnica,
à ciência e à tecnologia. Quando Milton Vargas afirma que esperar que as ciências ou as
técnicas se auto-limitem diante de regras ou juízos morais “estranhas” a elas é uma utopia,
ele está partindo da concepção de que a regra moral que rege a dinâmica destes fenômenos
é uma só. Novamente cai-se numa posição determinista. Será que a tecnologia só pode ser
encarada sob uma única perspectiva ética? A que fundamento de ética e, por conseguinte, a
que visão de tecnologia está se referindo o autor, quando exclui qualquer outra
possibilidade de reflexão ética da tecnologia (por ser “estranha” a ela) que não o seu
caráter utilitário? Em outros termos e de modo afirmativo, dizer que a tecnologia ao invés
de se preocupar com julgamentos éticos deve se ocupar com a sua finalidade é confirmar
que o ethos da ação tecnológica está unicamente na sua utilização, no “servir para”, como
nos próprios dizeres de Milton Vargas. (Daqui avistamos o cenário de onde nasce nossa
desconfiança do por que o utilitarismo é o modelo de ética predominante no âmbito da
tecnologia moderna.)
Mas, se por um lado, este é o modelo predominante, por outro lado, não significa
que seja necessariamente o único. Se o utilitarismo é o modelo de ética vigente na
tecnologia moderna, seu predomínio deve-se a fatores históricos, sociológicos e, sobretudo,
ideológicos, conforme veremos a seguir, e não por uma condição “natural” ou essencial da
286 FRIEMANN, G. Sept études sur l`homme et la technique. Paris: Ed. Gonthier, 1966. Apud,
FIGUEIREDO, op. cit., p. 9. 287 VARGAS, op. cit., p. 185
120
tecnologia. Disso, concluímos que o referencial axiológico da tecnologia necessariamente
está vinculado ao seu referencial ontológico e epistemológico. Ou seja, ao modelo de ética
predominante no âmbito da tecnologia, depende o conceito de tecnologia a que está se
referindo. O conceito, ou seja, a natureza da tecnologia em sentido moderno já
explicitamos nos capítulos anteriores, passemos agora, pois, a elucidar o seu caráter
axiológico.
3 UTILITARISMO ÉTICO E TECNOLOGIA MODERNA
Muito embora tenhamos insistido até aqui288 na ausência da ética do campo
científico a partir da modernidade, vale dizer que tal “ausência” é somente aparente. Ela é
própria de um discurso cientificista consciente da necessidade de fundar um conhecimento
objetivista, neutral e departamental que implica necessariamente (pelo menos idealmente)
na exclusão da ética, sem o qual assim não poderia sê-lo.
Semelhante posição, encontramos também no campo da tecnologia; o discurso do
progresso técnico como um processo autônomo, gerador e portador por si mesmo dos
valores da humanidade é um exemplo característico desta visão. Entretanto, na prática, é
possível perceber com clareza o enraigamento de um certo modelo de ética que garantiu
legitimidade ideológica a esta nova concepção de ciência e de tecnologia. Estamos falando
do utilitarismo ético, pois que se a tecnologia é um saber essencialmente prático que se
cumpre na obra realizada, “a questão dos juízos éticos é, por primeiro, uma questão sobre a
moralidade dos fins, que são intrínsecos à técnica mesma”.289 Daí a exigência de um
referencial ético que cumprisse tais requisitos. Tal exigência seria referendada pelo
princípio utilitarista de ética. Analisemos melhor a situação, enfocando a corrente ética do
utilitarismo e, posteriormente, sua estreita vinculação com a tecnologia.
3.1 A Corrente Ética do Utilitarismo
Inicialmente é mister esclarecer que o princípio ético baseado na felicidade, já
houvera sido estimado desde os epicuristas, na Grécia Antiga. Mais tarde também Hobbes
em O leviatâ, bem como Locke em seu Ensaio sobre o entendimento humano, fizeram
referência ao prazer como instituinte do que é bom e a dor como a medida do que é mal.
288 Veja-se, por exemplo, o tópico 2.2 deste capítulo. 289 VALLAURI, op. cit., p. 80 (Tradução livre). O argumento do autor, ao nosso ver, parece ser o
que encerra sua posição sobre o assunto, não o nosso, conforme veremos a seguir.
121
Mas, é com Bentham e Stuart Mill, no período moderno, que esta doutrina ganha forças a
partir da instituição do utilitarismo.290
O utilitarismo surge no séc. XVIII na Inglaterra como crítica da filosofia empirista
(de Bacon, Locke e Berkley) ao racionalismo (de Descartes, Espinoza e Leibniz), tendo
como um de seus principais representantes a figura de Jeremy Bentham (1748-1832).291
Opositor também do formalismo ético de Kant (1724 – 1804), o ponto de partida da tese
deste filósofo defensor do utilitarismo reside nos seus estudos sobre a ciência do direito,
especialmente a teoria do direito natural. Em sua famosa obra Princípios da Moral e da
Legislação, Bentham expõe sua doutrina filosófica de caráter utilitarista, contrapondo-se às
ideais institucionais conservadoras da sociedade inglesa de seu tempo.
O cidadão, segundo Bentham, deveria obedecer ao Estado na medida em que a obediência contribui mais para a felicidade geral do que a desobediência. A felicidade geral, ou o interesse da comunidade em geral, deve ser entendida como o resultado de um cálculo hedonístico, isto é, a soma dos prazeres e dores dos indivíduos. Assim Bentham substitui a teoria do direito natural pela teoria da utilidade, afirmando que o principal significado dessa transformação está na passagem de um mundo de ficções para um mundo de fatos. Somente a experiência afirma, Bentham, pode provar se um instiuição é útil ou não.292 (grifo nosso) Do exposto acima, extrai-se três características fundamentais na elucidação da ética
utilitarista. A primeira é a de que, o utilitarismo pertence às chamadas éticas teleológicas,
donde o agir moral é válido pela sua finalidade, eficácia e resultado. Portanto a regra ética
é sempre a posteriori, diferentemente das éticas deontológicas, que estabelecem o agir
moral a partir das regras morais existentes a priori, como “dever ser”. O utilitarismo,
então, defende que o bem é uma prática, inexistente anteriormente à ação, posto que o bem
não pode ser um conceito abstrato de razão (como afirmava Kant _ um dos representantes
das éticas deontológicas_ para quem o princípio da boa vontade não reside em seu
objetivo, mas no princípio formal da vontade em geral293). Uma ação é boa, argumentam
os utilitaristas, quando promove um determinado fim.
290 A título explicativo, vale dizer que o termo “utilitarismo” não é devido a Bentham e sim a S.
Mill, seu discípulo. 291 Sabemos que o utilitarismo desde o seu surgimento sofreu inúmeras variações. Assim, fala-se no
utilitarismo de regras, no utilitarismo de atos, no utilitarismo seletivo, no utilitarismo negativo, não maximizador, no utilitarismo atenuado, etc. Como nosso objetivo não é estudar o utilitarismo em si, mas esclarecer sua estreita aproximação com a gênese da tecnologia moderna, o leitor encontrará aqui tão somente a descrição das características elementares do utilitarismo clássico, suficientes para atender ao nosso propósito. Para um estudo mais aprofundado sobre as diversas correntes do utilitarismo, recomendamos a leitura, sobretudo, do terceiro capítulo da obra de FARRELL, Martín D. Métodos de la ética. Buenos Aires: Abeledo Perrot, s/d, pp. 181-283.
292 OS PENSADORES, Bentham: vida e obra. São Paulo: Abril S.A. Cultural, 1984, p. IX. 293 Daí Kant defender que o agir moral é sempre um Imperativo Categórico, ou seja, o bem é um
conceito metafísico, transcendental à realidade empírica, porque representa sempre um “dever ser”
122
O segundo aspecto importante a ser destacado para o escopo desta análise,
referenda o que já foi dito anteriormente. Trata-se do caráter empirista desta visão de ética.
O utilitarismo ético pertence às chamadas éticas de conteúdo material que, diferentemente
das éticas formalistas (como a kantiana, por exemplo, que aloja a ética numa dimensão
racional, pertencente à verdade formal294) parte de um princípio de verdade material cuja
fundamentação do agir moral reside na experiência, na realidade empírica. Daí a alegação
de Bentham de que somente a experiência pode conferir se uma ação é boa ou não.
Uma outra característica para compreender o que é o utilitarismo enquanto modelo
de ética reside no princípio da utilidade. Para os utilitaristas o fundamento de toda ação
moral está na promoção da felicidade e do bem-estar dos seres humanos, mediada pelo
princípio da utilidade que pode ser assim traduzido: “uma regra ou ação será moralmente
boa, na medida em que o saldo decorrente de sua realização for maior que o resultante de
qualquer ação (ou regra) alternativa disponível ao agente”.295 Sobre o que é a utilidade em
sentido ético, Bentham trata de explicar já no primeiro capítulo de sua famosa obra:
O termo utilidade designa aquela propriedade existente em qualquer coisa, propriedade em virtude do qual o objeto tende a produzir ou proporcionar benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade (tudo isto, no caso presente, se reduz à mesma coisa), ou (o que equivale à mesma coisa) a impedir que aconteça o dano, a dor, o mal, ou a infelicidade para a parte cujo interesse está em pauta: se esta parte for a comunidade em geral, tratar-se-á da comunidade , ao passo que, em se tratando de um indivíduo em particular, estará em jogo a felicidade do indivíduo.296 O fundamento da assertiva do filósofo reside no fato de considerar que, na base do
gênero humano está “o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer” 297, sendo
nossas ações governadas por estes senhorios da natureza humana. Outrora, também Locke
havia afirmado que “o bem e o mal [...] não são outra coisa senão o prazer ou a dor, ou
aquilo que nos provoca prazer ou dor”.298 Maximizar o prazer e minimizar a dor, eis,
(imperativo categórico) e não um “pode ser” (imperativo hipotético). Disso decorre o princípio do universalismo ético kantiano: “Age de tal modo que a máxima de tua ação possa sempre ao mesmo tempo valer como princípio de legislação universal”. KANT, Imamnuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. In: OS PENSADORES. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 129.
294 Kant, por exemplo, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, assim esclarece: “praticamente bom, contudo, é o que determina a vontade por intermédio da razão, portanto, não por causas subjetivas, mas objetivamente, í. é., por razões que são válidas para todo o ser racional como tal”. Citado por TUGENDHAT, Lições de ética. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 143.
295 CARVALHO, M. C. M. de. Por uma ética ilustrada e progressista: uma defesa do utilitarismo. In: OLIVEIRA, Manfredo A. de (Org.). Correntes fundamentais da ética contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2000, p.100.
296 BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. In: OS PENSADORES, São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 4.
297 Id. Ibid, p. 3. 298 Apud DUSSEL, op. cit., p. 109.
123
portanto, o fundamento último de toda ação moral para o utilitarismo. Bentham, por
exemplo, esclarece que “a maior felicidade do maior número é a medida do bem e do
mal”.299
Ainda sobre o conceito de utilidade vale lembrar que para Bentham “por utilidade
se entende aquela propriedade em qualquer objeto, mediante a qual tende a produzir
benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade, (tudo isto no caso presente é a mesma
coisa) a prevenir que ocorra um dano, dor, mal ou infelicidade à parte cujo interesse é
considerado”,300 Stuart Mill entende a utilidade e a felicidade como um fim a ser buscado.
Na utilidade, esclarece Mill, reside o fundamento de toda ética, pois, “é somente a utilidade
de uma regra moral a que constitui sua obrigação”.301
Assim, para as éticas utilitaristas o bem-estar das pessoas, a qualidade de vida, a
felicidade dos indivíduos e da comunidade não pode ser indiferente à ética. Neste sentido,
Garcia avalia que o conceito de utilidade tem em vista “a avaliação moral das ações, gestos
de caráter, instituições, códigos éticos ou jurídicos, etc., que se realizam em termos de seu
impacto com o bem-estar em geral”.302 Ou seja, no cerne da ação moral deve estar
embutido o cálculo da felicidade: avaliação do quantun da utilidade da ação resultante da
maximização do prazer e minimização da dor. A regra moral é sempre uma ação de
resultado, auferida pelo grau de sua utilidade.303 Bom, pois, para os utilitaristas é o que é
útil, funcional, pragmático, no sentido de trazer felicidade ao maior número de pessoas.
Mas o que é a felicidade? Segundo um outro precursor do utilitarismo e seguidor de
Bentham, o filósofo Stuart Mill, a felicidade é “o único fim da ação humana e seu impulso
é a prova mediante a qual se julga toda conduta humana; disto se deduz necessariamente
que ela deve ser o critério de moralidade”,304 calculada utilitariamente. Aliás, em se
tratando deste aspecto, é necessário lembrar que o utilitarismo é a busca de uma análise
ética da economia, ciência que ganha corpo, sobretudo no século XVIII. Portanto, a
corrente do utilitarismo surge como reflexão (ela é produto da) ética dos economistas
sociais da época. O próprio Adam Smith que, no ano de 1764 visita a França e descobre a
299 BENTHAM, Fragment, prefácio, p. 3, Apud DUSSEL, op. cit., p. 110. 300 FARELL, op. cit., p. 182 e 211, citando BENTHAM, J. Introduction to the principles of morals
and legislation. Oxford: Basil Blackwell, 1967, p. 125. (Tradução livre) 301 PALEY, citado por FARRELL, op. cit., p. 195. (Tradução livre) 302 GARCIA, Jesus Ignácio. La teoria da justiça em John Rawls. Madrid: Centro de Estudos
Constitucionais, 1985, p. 54. (Tradução livre) 303 Daí tratar-se de uma ética de caráter conseqüêncialista: o que é correto resulta do que é bom para
as pessoas; a qualidade moral das ações depende das conseqüências produzidas. Já nas éticas deontológicas, as ações morais em si mesmas são moralmente boas ou más, independentemente das conseqüências que acarretam. Cf. CARVALHO, op. cit., p. 105.
304 MILL, S. Utilitarismo, 1957, p. 49. Apud DUSSEL, op. cit., p. 111.
124
nascente ciência econômica francesa, é um destes moralistas que se dedica a pensar os
fundamentos morais da economia, publicados em 1759, em sua obra intitulada A teoria dos
sentimentos morais.
Desse modo e levando-se em conta que o contexto no qual surge o utilitarismo
ético, que coincide (não por acaso!) com o nascimento da sociedade capitalista, sendo a
Inglaterra simultaneamente o espaço geo-político do nascedouro de ambos os fatores,305
para os utilitaristas a felicidade traduz-se na posse de bens como: (1) a propriedade
privada, que torna a sociedade estável e em paz, em vista do bem-estar social. Em sua obra
A psicologia do homem econômico, por exemplo, Bentham esclarece que seu conceito de
ser humano é “a de um ser que anseia pela felicidade, tanto no êxito como no fracasso, e
em todos os seus atos continuará fazendo isto enquanto for homem”306 e a felicidade,
prossegue Bentham, é usufruir a riqueza econômica; (2) representa ainda o amor a si
mesmo (self love), portanto, trata-se de uma moral individualista, onde o espaço da ética
reduz-se à esfera privada e não pública (esta pertencente, sobretudo, ao mundo grego),
posto que a riqueza de uma comunidade nada mais é do que a soma da riqueza dos
indivíduos que a compõe307; (3) e a benevolência altruísta defendida por Adam Smith.308
Mas, o cálculo da felicidade proposto por Bentham no séc. XVIII, ainda que
extremamente sedutor, trouxe alguns problemas no que diz respeito às comparações
interpessoais de utilidade. Assim, quando se trata de avaliar o cálculo produzido por
diferentes ações, levando-se em conta a que produz mais resultados quando são vários os
indivíduos envolvidos, a viabilidade do utilitarismo não parece ser tão simples. Este é um
dos pontos polêmicos para a corrente do utilitarismo ético.309
É neste sentido que situa a contribuição de Karl Popper, que propôs o utilitarismo
negativo a partir da análise profunda que fez sobre os inimigos da política liberal no século
XX, sobretudo às doutrinas políticas totalitárias, sejam de direita ou de esquerda. Para
Popper, ao invés de maximizar a felicidade, devêssemos, ao menos, minimizar a dor. Em
palavras textuais, ele argumenta:
Sugiro, por essa razão, substituir a fórmula utilitária “aspiremos a maior quantidade de felicidade para o maior número de pessoas”, ou mais sinteticamente “felicidade ao
305 Como bem disse Jesus Garcia o utilitarismo tem sido a teoria ética e a prática predominante no
mundo anglo-saxão desde os séculos passados. Cf. GARCIA, op. cit., p. 53. (Tradução livre) 306 BENTHAM, 1978, p. 3, apud DUSSEL, op. cit., nota 135, p. 157. 307 Id. Ibid. 308 DUSSEL, op. cit., p. 109 309 Como o objetivo aqui não é aprofundar doutrinariamente a corrente ética do utilitarismo e sim
demonstrar a sua vinculação axiológica com a tecnologia moderna, um maior detalhamento desta polêmica pode ser encontrado no trabalho de CARVALHO, op. cit., p.106 e ss.
125
máximo”, pela fórmula: “a menor quantidade possível de dor”, ou, em resumo, “dor ao mínimo”. Esta fórmula tão simples pode-se converter, creio, num dos princípios fundamentais (por certo que não o único) da política pública. (O princípio da “felicidade ao máximo”, parece tender, pelo contrário, a produzir ditaduras benevolentes.) É mister compreender, além disso, que do ponto de vista moral, não podemos tratar simetricamente a dor e a felicidade; isto é, que a promoção da felicidade é, em todo caso, muito menos urgente que a ajuda àqueles que padecem e a tentativa de prevenir sua dor.310 A razão da substituição da fórmula utilitária proposta por Popper deve-se ao fato de
que para Popper não há simetria entre felicidade e sofrimento, entre dor e prazer. Assim ele
explica:
(Outra crítica da fórmula utilitária “levar ao máximo o prazer” é que ela admite, em princípio, uma escala contínua prazer-dor, que nos permite tratar os graus de dor como graus negativos de prazer. Mas, do ponto de vista moral, a dor não pode ser pesada pelo prazer e, especialmente, não a dor de uma pessoa pelo prazer de outra pessoa. Em vez de maior felicidade para o maior número, dever-se-ia mais modestamente reclamar o menor quinhão de sofrimento evitável para todos; e, mais, que o sofrimento inevitável - tal como a fome em épocas de inevitável carência de alimentos - seja distribuído tão igualmente quanto possível.) [...] Será mais claro, no campo da ética, formularmos nossas exigência em forma negativa, isto é, reclamando a eliminação de sofrimentos, em vez da promoção de felicidade.311
3.2 A Relação entre Tecnologia e Utilitarismo Ético
Afora as várias tendências das éticas utilitárias o fato é que o utilitarismo, em
sentido ético, é o arcabouço ideológico da tecnologia moderna. Eis o que conjecturamos
neste capítulo ao demonstrar como o utilitarismo ético, surgido no seio do mundo anglo-
saxão (Inglaterra) e, juntamente com ele, o advento da sociedade baseada no modo de
produção capitalista possui uma estreita vinculação com a tecnologia em sentido moderno.
Dussel, por exemplo, analisando criticamente as dificuldades do utilitarismo,
conclui que o conceito de felicidade utilitarista é um cálculo econômico por excelência.
Assim ele observa que
a felicidade, que é o fim visado pelo cálculo da razão instrumental, é alcançada pelo consumo ou a satisfação das preferências do comprador do mercado, graças à distribuição capitalista _ sempre pressuposta nos utilitaristas _ dos bens. Existe, então um cálculo abstrato e perverso: o capital é condição a priori absoluta do cumprimento do fim ético (a felicidade). Não se analisa suficientemente o horizonte a partir do qual o critério de felicidade cobra sentido. Para o utilitarismo, a felicidade (ou o prazer) não tem relação com o critério universal objetivo e material de produção e reprodução e desenvolvimento da vida de cada sujeito humano. As mediações objetivas possuídas para o uso (uma casa) ou o consumo (um pedaço de pão) são condições de possibilidade do cumprimento das preferências subjetivas (a felicidade). Mas a existência dessas mediações, enquanto são
310 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos. Vol. 2. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1987, Cap. 5, nota 6, p. 256. 311 POPPER, A sociedade…op. cit., Cap. 9, nota 2, p. 311.
126
“mercadorias”, têm uma lógica que o utilitarismo ignora. Isto fica claro no fato de que a ética utilitarista sempre conta com uma economia distribucionista, onde o “valor” do produto (mercadoria) é exclusivamente constituído pelo “desejo” ou pelas “preferências” do comprador (potencial consumidor, se é solvente), esquecendo-se sempre que o “produto” já foi produzido por um “produtor” (o operário) cuja “felicidade” [...] significa cumprimento de “necessidades” (relativamente ao “valor de uso” do produto), não só preferências que nunca puderam ser descobertas pelo utilitarismo. Isto é, o utilitarismo se move num círculo abstrato da razão instrumental, onde o fim é a felicidade e onde os meios para alcançá-la são calculados formalmente, mas sempre dentro do mercado capitalista como horizonte. 312 É mister esclarecer que a crítica de Dussel fundamenta-se na visão marxista, donde
o critério de análise é o da materialidade objetiva do sistema produtivo capitalista. Neste
sentido, ele argumenta:
O utilitarismo é uma ética subjetivo-material não suficientemente material (pensa a “felicidade” só como consumo, a partir do mercado) e esquece a lógica da produção dos “bens objetivos”; e ainda subjetivamente não considera que, em primeiro lugar o “infeliz” é o trabalhador produtor (a partir da própria fábrica) que não recupera sua vida objetivada em seu produto, o que envolve um problema de corporalidade ética [...].313 Em defesa de um princípio material de ética, o filósofo da Ética da Libertação,
acrescenta:
Se a ética ‘material’ é material por ser de ‘conteúdos’, o momento mais material de sua materialidade é a objetividade estrutural, institucional, dos bens materiais como “satisfatores”, como “re-produtores” da “sobre-vivência”. Tudo isto é parte de uma ética “material” que as éticas anglo-saxãs posteriormente ao utilitarismo esqueceram (tais como a intuicionista, a emotivista, a analítica, a comunitarista, a neocontratualista, etc.): a ética econômica.314 Para Dussel, os utilitaristas chegam até a pensar na materialidade da ação moral,
sobretudo, quando pregam a “distribuição” dos bens como condição para a felicidade
(Mill), mas são cegos quanto à lógica-ética da produção destes bens.
Também Tugendhat, ao analisar a plausibilidade do princípio de justiça de
Bentham, segundo o qual na soma de felicidade a ser calculada o bem-estar de ninguém
pode valer mais que o bem-estar de outro conclui que:
O utilitarismo é a ideologia do capitalismo, pois ele permite o crescimento da economia como tal, sem dar moralmente conta daquilo que diz respeito a questões de partilha. Se nos perguntarmos como uma idéia em si tão pouco plausível se pôde manter por tanto tempo como aparentemente convincente, então a oculta razão ideológica fornece uma informação significativa. O dito benthamiano eveybody to count for one, nobody for more than one tem sua direção progressiva exclusivamente voltada contra o sistema feudalista, segundo o qual
312 DUSSEL, op. cit., p.112 e 113. 313 DUSSEL, op. cit., p. 157, nota 134. 314 DUSSEL, op.cit., p. 157, nota 137. Cf. também nota 135.
127
os indivíduos têm um valor diverso. Por isso também foi ideal, nesta perspectiva, como ideologia da burguesia. 315 Ora, demonstrou-se no capítulo anterior que a tecnologia em sentido moderno, não
pode ser dissociada, enquanto compreensão ontológica e epistemológica, da visão
empirista de realidade surgida a partir do século XVIII e junto com ela o advento do modo
de produção capitalista. Neste sentido, também se pode assegurar a estreita aliança entre a
tecnologia e o utilitarismo ético, pois, se o conhecimento agora é produto da aliança entre
teoria e prática, entre o atrelamento do saber e do fazer, sua manifestação empírica e
histórica se revela neste fenômeno chamado tecnologia moderna, que tem como critério de
definição do que é “bom” tudo o que é utilitário, funcional, prático, pragmático. Daí que o
modelo ético que dá sustentação ideológica à tecnologia moderna é o utilitarismo.
A título ilustrativo de como a tecnologia moderna traz em seu bojo uma visão
utilitarista de realidade, veja-se o relato de Milton Vargas, um dos pensadores da
tecnologia aqui no Brasil, que, ao tratar da distinção entre ciência e técnica, considera que,
enquanto aquela se ocupa da teoria, esta é sempre um saber prático, que tem em vista a
“instrumentalização da natureza”, precedido sempre pela emissão de juízos de valor. Em
palavras textuais, ele argumenta:
Mas, por que há essa instrumentalização da natureza? Porque há capacidade, nos homens, de avaliar as coisas, de julgá-las boas ou más, úteis ou inúteis, verdadeiras ou falsas, belas ou feias. Quando algo se apresenta, aparece imediatamente o julgamento: útil ou inútil, melhor ou pior, feio ou bonito. Desta valoração decorre a atuação do homem. Se uma flor pudesse ser vista, sem ser julgada bela, jamais haveriam jardins. De forma que a presença dos instrumentos, no campo real, prende-se à existência de outros objetos reais: os valores. E entre os valores, um aqui interessa sobremaneira, é o “servir para”. Se algo na natureza foi julgado “servir para” algo, então a instrumentalização está feita. Se um galho da árvore for julgado “servir para” carregar na mão, de apoio ou defesa contra animais e inimigos, o galho de árvore se transformará imediatamente “bastão”, seja cajado ou tacape, e a instrumentalização estará feita. É o caso do rio que, desde o momento em que foi reconhecido “servir para” fronteira, deixou de ser um deus pardo e passou a ser um instrumento. (grifo nosso)316 Prevalece nitidamente neste enfoque o caráter utilitarista do que é valor. Na
descrição citada, o valor tem sempre uma conotação do que é útil, que tem utilidade. Desse
modo, tudo que na natureza “servir para”, expressa o autor, torna-se instrumentalizado pela
ação do homem. Ora, a postura utilitarista do homem sobre a natureza é a pura expressão
da tecnologia nos moldes da sociedade moderna. Por isso, constata Vargas, o olhar do
315 TUGENDHAT, op. cit., p. 353. 316 VARGAS, Para uma...op. cit., p. 22
128
técnico é como o de uma águia, que somente vê a presa, sem mais nada perceber o que está
a sua volta. Disso resulta o “caráter predatório” da tecnologia atual.317
Mais um exemplo característico da visão utilitarista pode ser encontrado em outra
passagem da mesma obra de Vargas. Ao tratar da essência da tecnologia, ele argumenta: “a
tecnologia mostra-se como uma simbiose entre o saber teórico da ciência _ cuja finalidade
é a procura da verdade _ com a técnica _ cuja finalidade é a utilidade. Resulta dessa
simbiose que a finalidade da tecnologia seria a procura de uma verdade útil.” 318(grifo
nosso). A tese ontológica da “verdade útil” da tecnologia é ainda mais reforçada pelo autor,
quando esclarece que o conceito de verdade que, na ciência “é sempre adequação entre
algo mental e material”, com a tecnologia, foi-lhe acrescentado “a condição de utilidade
comprovada”.319
Como se vê, ao atribuir à tecnologia a busca de uma “verdade útil”, Vargas
antecipa no nível ontológico, qual a sua visão axiológica sobre a tecnologia. Trata-se, pois,
de um critério ético baseado na utilidade.
3.3 O Legado do Utilitarismo para a Ética Moderna.
Por fim, uma ressalva. Amiúde as críticas apontadas sobre o utilitarismo, é preciso
considerar, como bem lembra Dussel, que o utilitarismo historicamente resgatou um
aspecto da ética que havia sido negado pela época medieval e subsumido pelo formalismo
ético kantiano, qual seja: o critério material e hedonista como fundamento do valor moral.
Pois, assim como os estóicos, tanto o modelo de ética medieval, quanto a visão kantiana
rechaçam do campo da ética o prazer como fonte da ação moral. Os estóicos, por exemplo
_ corrente filosófica que surgiu na Grécia Antiga (séc. IV d.C.), inclusive, como oposição
aos epicuristas _, afirmavam que a ética é a busca do bem e da felicidade tendo como
fundamento a dor e não o prazer. Já a posição moderna kantiana considera que nem sequer
a vontade escapa do âmbito da razão, sendo ela pertencente à “razão prática”, para usar a
317 VARGAS, Para uma…op. cit., p. 20. 318 VARGAS, Para uma…op. cit., p. 180 319 VARGAS, Para uma... op. cit., p. 183. A propósito: o conceito de “verdade” utilizado por
Milton Vargas ao propor uma Filosofia da Tecnologia é eminentemente de caráter empirista. Segundo ele, a verdade é “a adequação entre a mente e a coisa” (ibidem). Em texto anterior, introdutório da sua obra, ele esclarece: “o objeto tanto do saber teórico ou experimental quanto de qualquer vivência humana _ ‘aquilo que o homem encontra em sua prática’ _ pertence à realidade” (Cf. p. 21 da referida obra).
129
expressão do próprio Kant.320 Como se vê, ambos ignoram o aspecto hedonista, baseado no
prazer, como fonte da ética.
Ainda sobre a visão formalista da ética kantiana, baseada no dever ser, Hegel
criticamente observava que tal modelo de ética “arranca as ações e normas problemáticas
dos contextos de eticidade substancial representados pelo mundo da vida, para, em atitude
hipotética, submetê-las a exame sem levar em conta os motivos operantes e as instituições
vigentes.”321
Segundo Dussel, o princípio da materialidade como critério de validade de uma
ação moral é condição sine qua non para a constituição de uma teoria ética crítica, porque,
a partir do resgate do “aspecto material das pulsões de felicidade”,322 é possível colocar em
crise um sistema-mundo que está se globalizando (e a tecnologia assume um papel
fundamental neste processo) e, ao mesmo tempo está excluindo a maioria da população,
negando-lhe a possibilidade de felicidade. Exclusão que é corpórea, material, empírica323.
Isto é, é um problema de vida ou morte. “Vida ... que não é um conceito, uma idéia, nem
um horizonte abstrato, mas o modo de realidade de cada ser... concreto, condição absoluta
da ética...”324.
Portanto, se, por um lado, o utilitarismo ético historicamente recupera o papel do
princípio da materialidade da ética como condição de validade de toda ação moral, por
outro lado, seus pressupostos serviram contextualmente como garantia de manutenção do
sistema capitalista e fundamento moral da razão instrumental, característica própria da
moderna tecnologia, conforme se demonstrou anteriormente. Então, uma proposta
alternativa baseada num novo fundamento ético a partir de um outro referencial ontológico
e epistemológico da tecnologia, devesse resgatar o sentido da materialidade da validade da
ação moral herdada do utilitarismo, mas não seu caráter instrumental, pois, deste último
ocupa-se criticamente boa parte desta dissertação.
320 Em sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, em palavras textuais, Kant diz: Cada coisa
da natureza atua de acordo com leis. Somente um ser racional tem a faculdade de agir de acordo com a representação de leis, í.é., de acordo com os princípios, quer dizer tem uma vontade. Como para a derivação de ações a partir de leis é exigido uma razão, assim a vontade nada mais é do que a própria razão prática (Grifo nosso). Citado por Tugendhat, op. cit., p. 141.
321 Citado por DUSSEL, op. cit., p. 201 322 DUSSEL, op. cit., p. 12 323 [...] lembremos desde já que os 20% mais ricos da terra consomem 82% dos bens produzidos
pela humanidade e os 80% mais pobres só consomem os 18% restantes, e os 20% que vivem em pobreza absoluta só consomem 1,4% desses bens[...]. (DUSSEL, op. cit.,, p.18, nota 8, citando o Human Development Report, 1992, p. 35).
324 DUSSEL, op. cit., p. 11.
130
4 POR UM OUTRO REFERENCIAL AXIOLÓGICO DE TECNOLOGIA
Afora a observação plausível de Dussel sobre o resgate do princípio da
materialidade como condição de fundamentação da ética, encontramos também a posição
de Hans Jonas e sua fundamentação da ética, baseando-se no princípio da
responsabilidade, que, ao nosso entendimento, muito tem a nos dizer sobre a dimensão
axiológica da tecnologia. Em seu ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, Hans
Jonas busca fundamentar uma ética baseada na responsabilidade, tendo em vista o contexto
atual o qual estamos inseridos que é o mundo da tecnosfera.
Como bem anuncia o próprio título da obra deste filósofo da ética, este constitui
também uma de nossas preocupações centrais ao discorrer sobre a dimensão axiológica da
tecnologia. Por isso, tomamos de empréstimo alguns enunciados da ética da
responsabilidade que surge de um contexto cuja preocupação central é o mundo da
tecnociência. Já nos debruçamos na sua compreensão ontológica e epistemológica nos
capítulos anteriores, acenando para um outro entorno da tecnologia. Agora, nosso esforço
consiste em compreender os argumentos de Jonas, enquanto análise axiológica de tal
contexto, bem como da sua outra proposta de ética, como possibilidade para a constituição
de um outro referencial axiológico para a tecnologia.
Certamente o leitor não encontrará aqui uma análise profunda e abrangente sobre a
Ética da Responsabilidade, enquanto teoria da ética, senão os aspectos que nos interessam
ante as principais questões sugeridas anteriormente sobre a dimensão axiológica da
tecnologia. A escolha deste autor deve-se ao fato de que também seu intento é discutir a
ética sob o contexto do mundo da tecnosfera.
Segundo ele, a superação antropológica do homo sapiens pelo homo faber faz com
que a técnica moderna seja o próprio destino do homem. E, se antes a técnica era um meio
adequado às exigências do homem, hoje ela mesma supera tais exigências e a criação
artificial exige do homem novas capacidades inventivas para sua criação. O homem
tornou-se objeto da técnica. Portanto, é diante deste quadro que está situada a exigência
atual da técnica: “a tecnologia cobra significação ética pelo lugar central que ocupa agora
na vida dos fins subjetivos do homem”.325
325 JONAS, Hans. El princípio de responsabilidad. Ensaio de una ética para la civilización
tecnológica. Barcelona: Herder, 1995, p. 36.
131
A avaliação de Jonas sobre a sociedade atual nos oferece com clareza alguns
indicativos pelos quais perpassam o princípio da responsabilidade. Em palavras textuais,
ele diz:
Na era da civilização técnica, que tem chegado a ser “onipotente” de modo negativo, o primeiro dever do comportamento humano coletivo é o futuro dos homens. Nele está manifestamente contido o futuro da natureza como condição sine qua non; porém ademais, independentemente disso, o futuro da natureza é de si uma responsabilidade metafísica, uma vez que o homem não se tem convertido em um perigo para si mesmo, senão também para toda a biosfera. Inclusive se pudéssemos dissociar ambas as coisas _isto é, inclusive se fosse possível para nossos descendentes uma vida que pudesse chamar-se humana em um mundo devastado (e em sua maior parte substituído artificialmente)_, a rica vida da Terra, produzida com grande trabalho criativo da natureza e agora encomendada a nós, exigiria nossa proteção. [...] Reduzir o dever unicamente ao homem, desvinculando-o do resto da natureza, representa a diminuição, mais ainda, a desumanização do próprio homem, a atrofia de sua essência (ainda em um caso afortunado de sua consciência biológica), e contradiz assim sua suposta meta, precisamente creditada pela dignidade da essência humana.326 (1) O primeiro indicativo que aparece com clareza na ética proposta por Jonas diz-
se de uma ética da utopia, cuja ação seja orientada para o futuro da humanidade e do
planeta diante da possibilidade real e concreta apresentada hoje pela tecnologia da
destruição da natureza e da vida. Segundo Jonas o dinamismo técnico antecipa o futuro,
numa exigência ético-metodológica que nos faz criar uma ciência com “predição
hipotética” ou uma “futurologia comparada”, para usar seus próprios termos. Ou seja, uma
ciência cuja busca da verdade reside nas condições futuras do homem e do mundo. O saber
fático do mundo exige também um saber ideal sobre o mundo, o qual deve operar com a
projeção hipotética. Pensamos que nisto reside a proposta de Boaventura quando adverte
para a necessidade de um conhecimento prudente para uma vida decente.Aliás, vale
lembrar que para Boaventura, o princípio da ética da responsabilidade de Hans Jonas é o
referencial ético a ser seguido nos dias atuais.
Portanto, e Bacon conclamava ao homem moderno pela descoberta do mundo
(conforme observamos no capítulo II deste trabalho), Jonas conclama ao homem
contemporâneo pela preservação do mundo.
E Jonas vai além, considerando que o elemento fundante de tal exigência está na
“heurística do temor”: “somente a prevista desfiguração do homem nos ajuda a forjar a
idéia de homem que tem que ser preservada de tal desfiguração”.327 E acrescenta:
[...] Enquanto o perigo é desconhecido não se sabe o que é que tem que proteger e por quê; o saber acerca disso procede, contra toda lógica e todo método, “daquilo que tem que
326 JONAS, op. cit., pp. 227 e 228. (Tradução livre) 327 JONAS, op. cit., p. 65. (Tradução livre)
132
evitar”. Isto é o que se nos apresenta em primeiro lugar e o que, por meio da expressão do sentimento que antecede o saber, nos ensina a ver o valor daquilo cujo contrário nos afeta tanto. Somente sabemos o que está em jogo quando sabemos que está em jogo.328 Disso decorrem os deveres preliminares de uma ética orientada para o futuro, quais
sejam: procurar a representação dos efeitos remotos, pois, somente o que é temido pode ser
evitado pela sua representação e procurar o temor com apelação a um sentimento
apropriado ao representado. Então um novo saber seria aquele saber para o possível que:
(a) prioriza os fundamentos filosóficos das suas projeções, da previsibilidade e do
prognóstico, não no sentido de apresentar provas, mas ilustrações; (b) seja possível aplicá-
lo politicamente, posto que não se trata de um saber teórico somente, mas também
operativo, com aplicação prático-política; (c) seja prognóstico, no sentido de dar maior
crédito às profecias catastróficas que as profecias otimistas.
(2) Nisto reside o outro indicativo da ética da responsabilidade. Nascendo do
perigo, tem-se que uma ética para a civilização tecnológica deve ser orientada para a
preservação, à custódia e à prevenção e não para o progresso e o desenvolvimento,
conforme pregam as éticas modernas, respaldadas pelo ideal baconiano que consiste em
“colocar o saber a serviço do domínio da natureza e fazer do domínio da natureza algo útil
para o melhoramento da sorte do homem”.329 O passo a ser dado, então, consiste em rever
o conceito de progresso.330 E mais: o ideal utópico assente no progresso técnico deve ser
despedido do horizonte mesmo da utopia. Mas, então, onde reside a utopia da ética da
responsabilidade? Reside “na ética não utópica da responsabilidade”331, responde Jonas.
Pois, ao princípio da esperança assegurada pela tecnologia em seu modo ocidental
(inclusive pelo utopismo marxista) opõe-se o princípio do temor, senão o princípio da
responsabilidade.
328 Id. Ibid. Aristóteles desde os anos 384-322 a.C., também já havia observado tal situação: É claro
que não sente medo aquele que acredita que nada lhe pode acontecer [...] Sentem medo aqueles que acreditam ser provável que alguma coisa lhes aconteça [...] As pessoas não acreditam nisso quando estão, ou pensam estar, no meio de grande prosperidade, e são por isso insolentes, desdenhosas e temerárias [...]. [Mas se] chegarem a sentir a angústia da incerteza, deve haver alguma tênue esperança de salvação. ARISTÓTELES, Retórica, 1382b29, Apud SAGAN, Carl. Bilhões e bilhões. Reflexões sobre a vida e a morte na virada do milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.130.
329 JONAS, op. cit., p. 233. 330 Conceito este que é criticado por Jonas inclusive aos moldes dos ideais marxistas. Para ele o
marxismo, surgido num contexto cujo horizonte é o processo de produção funda-se na promessa de que a crise do capitalismo só poderá ser superada mediante o ideal progressista de que “somente a técnica moderna possibilita um aumento do produto social tal que sua justa (igual) distribuição não signifique uma generalização da pobreza, que tão somente serviria de remédio para a sensação de injustiça”. Cf. JONAS, op. cit., p. 238. Ainda sobre a visão utópica do progresso e do cultuamento à técnica pelo marxismo, conferir a análise de Jonas exposta em sua obra, especialmente às pp. 233-257.
331 Cf. p. 356 da citada obra do autor.
133
O temor, assegura Jonas, forma parte tanto da responsabilidade quanto da
esperança. A esperança “é condição de toda ação, pois pressupõe a possibilidade de fazer
algo e aposta por fazê-lo neste caso”.332 E o temor em questão não é aquele que
desaconselha a ação, mas sim que lhe dá ânimo, por assegurar a responsabilidade de tal
ação. Isto é, o temor “forma parte essencial de toda responsabilidade”, porque “teme pelo
objeto da responsabilidade”.333
Responsabilidade é o cuidado, reconhecido como dever, por outro ser, cuidado que, dada a ameaça de sua vulnerabilidade, se converte em “preocupação”. Porém, o temor está já como um potencial na pergunta originária com a que se pode representar inicialmente toda responsabilidade ativa; que lhe sucederá a isso se eu não me ocupo dele? Quanto mais obscura seja a reposta, quanto mais clara será a responsabilidade; e quanto mais distanciado no futuro se encontre o que há de temer-se, quanto mais longe está das próprias alegrias e penas e mais incerto seja, com tanta maior diligências hão de ser mobilizadas há clarividência da fantasia e da sensibilidade do sentimento: se fará preciso uma inquisitiva heurística do temor que não somente se descubra e se ponha de manifesto a este seu novo objeto, senão que inclusive se familiarize com o particular interesse que reclama [...]. A teoria da ética precisa da representação do mal tanto quanto da do bem e mais ainda quando o mal se tem visto pouco claro em nosso olhar e somente pode voltar a fazer-se patente mediante um novo mal antecipado.334 Para a ética da responsabilidade, pois, o temor é o primeiro dever da ação ética; é o
“dever preliminar de uma ética da responsabilidade histórica”,335 conclui Jonas.
(3) Um outro indicativo enunciado nas palavras textuais de Hans Jonas acima
reside no fundamento de sua proposta ética, qual seja, a deontologia, ou o ser no sentido
existencial, de seu ex-sistir. Eis outro aspecto que constitue o afastamento entre uma e
outra ética. No modelo utilitarista, o fundamento é a utilidade ou a instrumentalização do
ser das coisas, posto que a orientação ética reside no fazer, portanto, ela é instrumental e
utilitarista por excelência. Na visão de Jonas o imperativo ético reside no ser, portanto ela
é metafísica e ontológica por excelência. A responsabilidade ontológica para com a idéia
de homem reside no simples fato da existência do homem. Tal idéia gera um imperativo
categórico e não hipotético quanto à afirmação de que haja homens e humanidade. Dela
advém a responsabilidade para com a humanidade futura, cujo dever está orientado para
sua existência e essência. Pela sua existência porque significa a garantia de procriação e
pela sua essência, porque existe certamente um dever dos autores para com as gerações
futuras. Trata-se “dos direitos de futuros sujeitos de direito”.336
332 JONAS, op. cit., p. 356. (Tradução livre). 333 JONAS, op. cit., p. 357. (Tradução livre). 334 JONAS, op. cit., pp. 357 e 358. (Tradução livre). 335 JONAS, op. cit., p. 358. (Tradução livre). 336 JONAS, op. cit., p. 85. (Tradução livre)
134
O velamento do dever de “conformar uma autêntica humanidade”,337 para dizer as
palavras de Jonas, implica que sua perda para gerações futuras, i. é., “o futuro danificado”
recairia na ausência de acusação, senão na acusação sobre nós mesmos que, obviamente
está vinculada aos feitos utópicos de nossa tecnologia. “Velar por isso, assegura Jonas, é
nosso dever fundamental de imediato ao futuro da humanidade”.338
É deste modo que Jonas anuncia o dever ético para com o futuro. Ao contrário do
que pensa as teorias tradicionais de direitos e deveres, donde há uma reciprocidade mútua,
ou seja, a exigência de deveres é proporcional à condição de direitos, ele entende que não
há reciprocidade na ética orientada para o futuro das gerações. E ante as teorias
tradicionais de que a exigência do ser começa com o ser, Jonas responde: [...] a ética que
buscamos tem que ver precisamente com o que todavia não é, e seu princípio de
responsabilidade terá de ser independente tanto de qualquer idéia de um direito como a
idéia de reciprocidade, de tal modo que em seu marco não pode nunca formular-se a jocosa
pergunta inventada a respeito: “Tem feito o futuro alguma vez algo por mim?”, “acaso
respeita meus direitos?”.339
Tomando este fundamento ontológico da ética podemos inferir uma outra
perspectiva para a constituição da natureza da tecnologia em nosso tempo, não mais
baseada na idéia do mero fazer humano, mas orientada para a constituição do ser humano.
Então, a técnica como vocação humana por excelência (conforme os dizeres de Heidegger,
já confrontados no capítulo primeiro e reforçados agora por H. Jonas, o qual fora discípulo
daquele), produz um outro referencial de homem, de natureza e de mundo. Jonas é enfático
neste sentido: “uma ética orientada para o futuro não está na ética enquanto doutrina do
fazer [...] senão na metafísica enquanto doutrina do ser, de que uma parte é a idéia de
homem.”340
Para o nosso propósito, entendemos que o argumento de Jonas alcança lá onde
reside a limitação das éticas utilitaristas, teleológicas por excelência. Embora o utilitarismo
se constitua no princípio da materialidade, ele reforça o princípio meramente instrumental
desta materialidade, cujo conteúdo reside nos fins. Dela não se pode exigir nada além da
instrumentalização das coisas que toca, seja o homem, a natureza ou a própria razão.
(4) Aliás, este é outro ponto de distanciamento na comparação entre ambos os
modelos de ética. No utilitarismo fim e valor se confundem, uma vez que o valor de uma
337 JONAS, op. cit., p. 86. (Tradução livre) 338 Id. Ibid. (Tradução livre). 339 JONAS, op cit., p. 82. (Tradução livre). 340 JONAS, op. cit., p. 89. (Tradução livre).
135
ação reside no êxito de sua finalidade. Para Jonas, tal propositura é inconcebível, pois, “o
fim responde à pergunta para quê”,341 avalia Jonas, e a confirmação de que algo serve para
não encerra nenhum juízo de valor de minha parte sobre aquilo. Ou seja, o conhecimento
dos fins das coisas não encerra nenhuma aprovação necessariamente sobre elas.
Os fins dizem respeito àquilo sobre o qual uma coisa existe e para cuja produção e
conservação se realiza um processo, empreende-se uma ação. Já os valores representam
um juízo sobre a adequação ou não dos fins às coisas. É postulando tal diferenciação
fundamental que Jonas indaga sobre o status do valor no campo da ética, considerando ser
necessário e elementar legitimar o aspecto ontológico e epistemológico do valor e não
meramente seu conceito. Por isso, o autor faz uma exaustiva comparação dedicando por
completo um capítulo de sua obra sobre o assunto.342
E conclui que independentemente ser o fim interno ou externo à coisa343, o fato é
que em ambos os casos a resposta à pergunta “de quem são os fins que podemos perceber
nas coisas?”, a resposta é uma só: do homem, assegura Jonas. Todavia, o fim se aloja na
natureza através da vida que é seu principal fim: “com a produção da vida a natureza
proclama ao menos um determinado fim, a vida mesma; isto certamente não significa outra
coisa que a liberação do fim em geral para chegar a fins definidos, também perseguidos e
desfrutados subjetivamente”.344 Assim, pela causalidade da vida o fim atinge a consciência
humana e animal e se estende a todos os seres. Esta demonstração, segundo Jonas, é
suficiente para assegurar que o fim está de fato presente na natureza.
(5) Tal demonstração incorre em outro problema, colocado por Jonas nos seguintes
termos: pode o ser fundamentar um dever? 345 A pergunta de Jonas encerra na tentativa de
estender à ontologia uma parte da axiologia. Assim, se o ser pode fundamentar um dever,
então a ontologia implica nela mesma a dimensão axiológica. Esta certamente é também
uma das questões que permeiam nosso debate até aqui sobre a natureza da tecnologia
moderna. E diferentemente da resposta dada até agora pelo paradigma científico que exclui
conhecimento de causalidade final (como vimos ainda há pouco), Jonas reponde nos
seguintes termos: “à medida que a natureza sustenta fins ou tem metas, como agora
queremos supor, põem também valores; pois no fim atrelado de fato, seja qual seja o modo
341 JONAS, op. cit., p. 101. (Tradução livre). 342 Estamos nos referindo ao capítulo III da obra citada. 343 Sobre tal diferenciação, veja-se o exemplo do martelo e do tribunal citado por Jonas, às pp. 103 e
ss. 344 JONAS, op. cit., p. 134. (Tradução livre). 345 JONAS, op. cit., p 137. (Tradução livre).
136
como está dado, sua consecução se converte em um bem, e sua frustração em um mal.
Com esta distinção começa a possibilidade de atribuir valor.”346
Prosseguindo na resposta nosso interlocutor busca esclarecer que também o bem é
distinto do valor. O bem, por exemplo, é algo distinto de nossos valores, enquanto que o
valor se associa aos nossos desejos. E estes estão ligados ao ‘para que”, “para quem”. Ou
seja, refere-se à esfera da taxação. Portanto, conclui Jonas, “o conceito de valor não pode
servir de fundamento a uma doutrina do dever”.347 O homem bom faz o bem pelo bem
mesmo e não para si mesmo, pois que o bem é a coisa no mundo, melhor ainda, é a causa
do mundo.348
(6) Aqui nasce outro indicativo da ética da responsabilidade, qual seja, o próprio
sentido de responsabilidade. Já aludimos a este princípio anteriormente, detalhemo-lo um
pouco mais a seguir. Diferentemente da moral kantiana, Jonas atribui o sentimento da
responsabilidade como fundamento racional e também psicológico de sua proposta de
ética. Para ele, historicamente as éticas têm-se ocupado em justificar racionalmente a sua
validez. Mas, segundo Jonas, “a moralidade não pode ter-se a si mesmo como meta”, 349e a
fundamentação emotiva da ética também é questão da qual deveriam se ocupar os
filósofos.
Para Kant a razão é a fonte da vontade, daí o respeito à lei como imperativo
categórico. Para Jonas o que primeiro importa são as coisas não minha vontade, pois, ao
“comprometer a vontade, as coisas se convertem em fins para mim”.350 Portanto, o respeito
não pela lei, mas pelo ser-em-si. Então, a responsabilidade passa pelo sentimento dela
(subjetivo) e por sua necessidade (objetiva). O exemplo da prole citado por Jonas é
ilustrativo neste sentido: o cuidado com a prole diz-se de uma responsabilidade objetiva e
de um princípio subjetivo de responsabilidade. Nestes termos, o autor observa:
[...] o cuidado com a prole [é] tão espontâneo que não precisa de nenhuma invocação à lei moral, é o protótipo elementar humano da coincidência entre a responsabilidade objetiva e o princípio subjetivo de responsabilidade; mediante este protótipo a natureza nos tem educado de antemão para todas as classes de responsabilidade, que não estão muito asseguradas pelo instinto, e tem preparado nosso sentimento para isso.351
346 JONAS, op. cit., p. 145. (Tradução livre). 347 JONAS, op. cit., p. 359, nota 10. (Tradução livre). 348 JONAS, op. cit., p. 153. (Tradução livre). 349 JONAS, op. cit., p. 153. (Tradução livre). 350 JONAS, op. cit., p. 159. (Tradução livre). 351 JONAS, op cit., p. 160. (Tradução livre).
137
O outro aspecto da responsabilidade diz respeito à sua imputação causal. O simples
poder causal, í.é, quando ocorre obviamente a conexão causal com o ato, é condição de
responsabilidade. Tal condição difere (e em muito) das teorias tradicionais da
imputabilidade, sobretudo, a jurídica. Nesta, a condição de imputabilidade deve estar
assegurada pelas condições de materialidade do fato e pela sua realização como ex-post-
facto. Porém, Jonas observa que a responsabilidade não está no meu comportamento ou
nas simples conseqüências de minhas ações, senão na coisa e pela coisa que exige minha
ação. Em palavras textuais ele exemplifica:
[...] a responsabilidade, por exemplo, pelo bem-estar dos outros não examina somente os propósitos dados do ato no que respeita a sua admissibilidade moral, senão que obriga a realizar atos que não têm outro propósito que não esse fim. [...] Aquele “pelo” que sou responsável está fora de mim, porém se acha no campo de ação de meu poder, remetido a ele ou ameaçado por ele. Isso contrapõe ao poder seu direito à existência, partindo do que é e do que pode ser, e, mediante a vontade moral, leva ao poder cumprir seu dever. A coisa é coisa minha porque o poder é meu e tem uma relação causal precisamente com essa coisa.352 Portanto, não se trata de uma responsabilidade formal, extrínseca ao sujeito, e
sujeita ao poder do sujeito. Ela existe de per-si e, por isso mesmo, podemos dizer que ela
está orientada ao futuro e se põe numa relação a qual sua imposição não depende de uma
relação recíproca de meus atos. A imputação da responsabilidade é uma relação não
recíproca, diferente daquilo que freqüentemente ouvimos falar em “responsabilidade
mútua”. Aquela é incondicional, irrevogável. Na essência do sentido de responsabilidade,
auferido por Jonas, o poder não é sobre, mas para os seres.
E a diferença da imputabilidade do homem em relação aos demais seres reside no
simples fato de naquele há a capacidade da responsabilidade. Assim Jonas esclarece: “a
capacidade de responsabilidade é a condição suficiente de sua faticidade”. 353 Nisso reside
a relação intrínseca entre poder e dever. Se, para Kant o poder advém do dever (“podes,
posto que deves”), para Jonas é o oposto: o dever advém do poder (“deves, posto que
podes”). Ou seja, quanto maior o poder, maior o dever, ou quanto maior o poder, maior a
responsabilidade. O poder é, pois, a raiz da responsabilidade do homem no mundo.
Aqui Jonas propõe uma mudança radical no sentido de poder. Para ele o poder
significa liberar efeitos no mundo que se confrontam ao dever assinalado por nossa
responsabilidade.354 Isso defere em muito da proposta baconciana. O famoso princípio de
352 JONAS, op. cit., p. 163. (Tradução livre). 353 JONAS, op. cit., p. 173. (Tradução livre). 354 JONAS, op. cit., p. 213. (Tradução livre)
138
que saber é poder representou para o nosso tempo não somente a perda da proteção dos
homens de si mesmos, como também a perda da proteção da natureza dos homens. O poder
se tem feito autônomo, coercitivo frente à natureza e ameaçador aos homens. Este
paradoxo (como bem lembra Jonas, “não suspeitado por Bacon”) que fez coincidir saber e
poder, radicado no domínio sobre a natureza, tem levado ao “submetimento a si mesmo”
deste poder.
5 SÍNTESE DA DIMENSÃO AXIOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA
Iniciemos as considerações finais deste capítulo retomando algumas questões em
torno da moral moderna, as quais já revelamos no decorrer deste capítulo, mas que
merecem ainda uma abordagem conclusiva, em vista da possibilidade de pensar um outro
entorno axiológico para a tecnologia.
A primeira situação-problema diz-se da urgência em atribuir à tecnologia uma
dimensão também ética. Entendemos que este é o ponto de partida para uma axiologia da
tecnologia. Quando tratamos da relação entre ética e ciência e da dimensão sócio-cultural
da tecnologia (ver item 3.2.2 e 3.2.3 neste capítulo) abrimos esta discussão, enfocado como
na modernidade o conhecimento científico como também o tecnológico se afastaram da
ética, que passou a ser confinada ao âmbito da filosofia. Agora cumpre-nos reforçar nosso
posicionamento sobre o assunto.
Iniciemo-lo considerando que afora toda a problemática sobre a objetividade e a
neutralidade da ciência e da técnica, o fato é que atualmente os resultados produzidos pela
tecnociência representam um desafio moral para a humanidade. Disso não se pode furtar;
basta conferir os exemplos que nos circundam. Não vamos aqui citá-los, mas situá-los sob
a perspectiva ética, posto que eles representam um “risco procedural”, para utilizar a
expressão de Apel. Risco procedural porque dizem respeito à “ameaça que paira sobre a
vida humana”,355 que possui dimensão planetária e atinge a civilização técnico-científica.
A análise do estudioso da moral moderna, Karl-Otto Apel, é esclarecedora:
Se até pouco tempo atrás a guerra podia ser interpretada como instrumento de seleção biológica e, entre outros aspectos, de expansão espacial da vida humana, através do confinamento dos eventualmente mais fracos em regiões desabitadas, esta concepção hoje definitivamente está superada pela invenção da bomba atômica: desde então o risco destruidor das ações bélicas não se restringe mais à micro ou mesoesfera de possíveis conseqüências, mas ameaça a existência da humanidade no seu todo.356
355 APEL, op. cit., p. 73. 356 APEL, op. cit., p. 73.
139
A progressiva poluição ambiental, proporcional ao crescimento da pobreza em
escala mundial, é um outro risco proveniente dos efeitos colaterais da técnica industrial. Já
nos referimos à problemática ecológica, para efeitos de ilustração da crise epistemológica
do conhecimento científico no capítulo anterior, agora transpomo-la aqui para exemplificar
o problema ético decorrente do crescimento econômico-tecnológico. Afinal, cremos nós, a
crise epistemológica atual é, por excelência uma crise com implicações éticas. E “o
problema cultural da tecnologia é de per si um problema ético”.357 E mais: é um problema
ético que atinge uma escala planetária; as normas morais de alcance microesférico não
atingem mais aquilo que ganhou proporções de macroesfera, porque o que está em jogo
são os interesses vitais de toda a humanidade. Neste sentido, Apel, analisa:
Essas poucas indicações devem ser suficientes para deixar claro que os resultados da ciência representam um desafio moral para a humanidade. A civilização técnico-científica confrontou todos os povos, raças e culturas, sem consideração de suas tradições morais grupalmente específicas e culturalmente relativas, com uma problemática comum a todos. Pela primeira vez, na história da espécie humana, os homens foram praticamente colocados ante a tarefa de assumir a responsabilidade solidária pelos efeitos de suas ações em medida planetária. Deveríamos ser de opinião de que, a essa compulsão por uma responsabilidade solidária, deveria corresponder a validez intersubjetivadas normas, ou pelo menos do princípio de uma ética da responsabilidade.358 Portanto, do mesmo modo que Apel, entendemos que uma ética que vincule toda a
sociedade humana se tornou indispensável. Mas, o paradoxo reside exatamente aí, avalia
Apel. Pois, ao mesmo tempo em que a universalidade da ética se tornou necessária, tornou-
se também impossível em face da pretensa impossibilidade de uma fundamentação
racional de validade intersubjetiva, argumentada pelo discurso da “neutralidade valorativa”
da ciência moderna. Diante deste discurso argumentativo, toda elaboração teórica “não
isenta de valoração parecem, a partir deste parâmetro, ser meras ideologias”.359
É neste ponto que aparece novamente o problema das implicações do afastamento
da causalidade final do âmbito da ciência e da tecnologia. É aqui que percebemos com
clareza como a visão moderna se afasta da visão aristotélica. A crítica ao mecanicismo
poderia ser empregada a partir da ausência da causalidade final. Já nos referimos a isso
anteriormente, retomemos agora sob a perspectiva de nosso posicionamento.
Para Aristóteles tanto na techné quanto na natura reside a condição de finalidade.
Se as coisas artificiais são produzidas em vista de qualquer fim, as coisas da natureza o são
igualmente, argumenta o filósofo. Tanto nas coisas artificiais, como nas coisas naturais as
357 VALLAURI, op. cit., p. 68. (Tradução livre) 358 APEL, op. cit., p. 74. 359 APEL, op. cit., p. 165.
140
conseqüências e os antecedentes são neles mesmos referidos.360 A célebre frase de que a
“arte imita a natureza”361 é justificada por Aristóteles nestes termos. A similitude é que em
ambas reside a dimensão teleológica. Outra similitude argumenta o filósofo, é que tanto
numa quanto na outra há a presença do logos: “há uma racionalidade imanente da natura
assim como há uma racionalidade própria da techne. Uma e outra são consideradas em
função do princípio que é o fim”.362
Aqui, vemos novamente com clareza o divisor de águas entre Aristóteles e
Descartes. Há uma nítida diferença entre o conceito de cientista, de técnica e de natureza
entre ambos. Enquanto para Descartes o cientista imita o supremo Arquiteto, construindo o
mundo sob leis mecânicas que nada tem de finalidade, para Aristóteles a imitação se funda
sobre a natureza que possui racionalidade imanente, portanto, possui sapiência derivada do
logos.
Desta diferença entre os antigos e os modernos, chegamos a um outro ponto que
pretendemos retomar em vista dos aspectos conclusivos que compõem este capítulo: trata-
se da aproximação entre prudência e técnica (denominada pelos gregos de phronesis e
techne). Já abrimos esta discussão no I capítulo quando tratamos dos aspectos semânticos
que envolvem o problema ontológico da tecnologia moderna, agora, tendo em vista que o
foco de análise é o problema axiológico da tecnologia moderna, cremos que estão reunidas
as condições metodológicas e teóricas necessárias para justificar nosso posicionamento.
Segundo Aristóteles, ainda que a ação ética seja imanente ao sujeito enquanto que
a ação técnica seja exterior a ele, ainda assim esta deve ter seu uso humano regulado para
o bem do homem, portanto regulado pela virtude moral. Citando a visão aristotélica,
retirada da famosa obra Ética a Nicômaco, Vallauri explica: “é na natureza das coisas que
a técnica está em dependência da ética porque não é direta ao bem do homem enquanto tal,
porém se pode contribuir àquele bem. Tal contribuição pressupõe a mediação da ética. A
virtude moral é requerida para o bom uso da techne, enquanto não se pode estabelecer o
bom uso da prudência”.363 Por isso, “a técnica é a virtude mais puramente intelectual da
prudência”, 364 conclui o autor.
360 ARISTÓTELES, Ética a Nicomachea, 198b, 16-20, citado por VALLAURI, op. cit., pp. 74 e
75. (Tradução livre) 361 ARISTÒTELES, Ética..., op cit., 194a, 21, citado por VALLAURI, op. cit., p. 73. (Tradução
livre) 362 VALLAURI, op cit., p. 75, citando ARISTÓTELES, Etica... op. cit., 200 a, 34; b, 1-4. (Tradução
livre) 363VALLAURI, op. cit., p. 73. (Tradução livre) 364 Id. Ibid.
141
Em síntese, ainda que a técnica seja por natureza uma atividade transitiva e seu fim
reside na obra a ser realizada, que é exterior ao sujeito (portanto, ela comporta sempre uma
dimensão de exterioridade e exteriorização), Aristóteles argumenta que “o fim da produção
(poiésis) é diverso de si mesmo, mas não daquilo da ação (práxis), porque a ação feliz, a
ação boa (eupraxia) mesma, que é fim”.365
É neste sentido que Aristóteles vê uma estreita aproximação entre técnica e
prudência e é nestes termos que corroboramos com a tese do pensador português,
Boventura Santos: somente um conhecimento prudente pode nos levar a uma vida decente.
Portanto, não há que afastar do âmbito da tecnologia o seu aspecto moral, considerando,
sobretudo, a virtude da prudência.
Parece-nos que este aspecto constitui um dos elementos fundantes da ética da
responsabilidade proposta por Hans Jonas para a civilização técnico-científica. Na base da
ação técnica, argumenta Jonas, deve estar implicado a avaliação prognostica de nossas
ações (eis a intrínseca relação com a prudência) que só assim o será se for prudente. Trata-
se, pois, de uma ética não do presente, mas que garante a viabilidade de gerações futuras,
não somente de seres humanos, mas, sobretudo, de preservação da vida nas suas mais
diferentes manifestações.
Eis um dos pontos cruciais de diferenciação entre a proposta ética baseada no
princípio da utilidade (utilitarismo) e a proposta ética baseada no princípio da
responsabilidade (de Hans Jonas). Amiúde ao aspecto da relevância do princípio da
materialidade garantida pelo utilitarismo ético (ressaltado por Dussel e por nós
referendado), a antropologia que subjaz ao utilitarismo diz-se de uma visão economicista
do homem como maximizador da felicidade e de uma visão hedonista que põe a vida na
satisfação de desejos. Portanto, é uma visão antropocêntrica e narcísica por excelência. E,
ainda que se fale da satisfação interpessoal de desejos, trata-se de um referencial ético
antropocêntrico, donde o homem é a medida de todas as coisas. O princípio da ética da
responsabilidade desloca a perspectiva ética para o horizonte mesmo do ser, portanto, ela é
ontológica. Ao invés da visão antropocêntrica, tem-se a visão ontológica como horizonte.
Para efeito de considerações finais, vale, pois, retomar as idéias centrais as quais
serviram de sustentação teórica à hipótese de que é o utilitarismo o modelo de ética vigente
hoje no âmbito da tecnologia.
365 ARISTÓTELES, Ética..., op. cit., 1140b, 6-7, citado por VALLAURI, op. cit., p. 73. (Tadução
livre)
142
A primeira idéia chave e ponto de partida de toda reflexão que se seguiu
posteriormente, é a de que a tecnologia não pode ser encarada como “coisa”, ou como um
conjunto de técnicas, involuntariamente estabelecida diante da condição do ser humano de
estar no mundo e, por isso mesmo, ela é considerada neutra e a-histórica. A tecnologia é
sim, um fenômeno social e histórico que sofre e propicia transformações sociais profundas,
sobretudo a partir da modernidade (séc. XVI), quando se assistiu a aliança entre a técnica
(saber prático) e a ciência (saber teórico). É, pois, diante desta leitura que se delega à
tecnologia uma dimensão social e cultural e, por conseguinte, ela é passível de atribuição
valorativa. Ou seja, por ser a tecnologia um fenômeno social, podemos apreendê-la sob o
ponto de vista ético, a partir da emissão de juízos de valor.
Daqui decorre outra idéia chave para a compreensão do tema apresentado. Tendo
em vista o contexto anteriormente descrito, o utilitarismo ofereceu as bases de sustentação
ética da tecnologia na modernidade. Nascido no cerne do mundo anglo-saxão, _ sistema-
mundo dominante a partir do século XVIII _ , o utilitarismo ético conferiu sustentação
ideológica ao novo modo de produção capitalista que, coincidentemente surgiu também na
Inglaterra, obtendo através da tecnologia a mola propulsora para o lucro.
Tendo estas idéias como ponto de partida, conclui-se, então, que sendo a tecnologia
ontologicamente um fenômeno social, histórico, mutável, sua identidade não é absoluta,
fechada, única e incondicionalmente constituída em toda a história. Logo, o caráter
utilitário da tecnologia, ao contrário do que pregam muitos autores (cita-se como exemplo
Milton Vargas, sob este aspecto abordado criticamente neste trabalho366), pode não ser
parte constitutiva da ética da tecnologia. Conforme já fora dito anteriormente, se assim o é,
é historicamente e não essencial ou ontologicamente. E por ser histórico, um novo entorno
ético pode ser atribuído à tecnologia. Qual, então, o novo modelo de ética?
Enunciamos aqui a proposta ética de Hans Jonas, mas estamos cientes também que
um estudo mais aprofundado sobre o assunto mereceria, dentre outros afazeres, um estudo
comparativo, confrontando, por exemplo, tal modelo ético com outras propostas surgidas
de outros filósofos contemporâneos, como: Habermas e a ética do discurso, Dussel e a
ética da libertação, para não citar outros teóricos. Acenamos para tal possibilidade, então,
num estudo posterior sobre o assunto.
Para tanto, lançamos algumas indagações. Por exemplo: Basta, para a configuração
de um novo referencial ético, a proposta da ética da responsabilidade conferida por Hans
366 Cf. especialmente item 3.2 do III Cap., pp. 125 e ss.
143
Jonas? É possível pensar uma nova identidade para a tecnologia baseando-se na ética do
discurso de Habermas? Como pensar a sociedade tecnológica diante da ética da vida (ou
da libertação) proposta por Enrique Dussel? Acredita-se que estes questionamentos podem
futuramente iluminar reflexões sobre um outro entorno axiológico para a tecnologia.
144
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pois o questionar é a devoção do pensamento.367
Ante o principal objetivo desta dissertação, qual seja: analisar a natureza da
tecnologia moderna, a partir das dimensões: ontológica, epistemológica e axiológica,
postulando que o empirismo, o conhecimento científico e o utilitarismo ético, constituem
suas bases de sustentação filosófica, apresentamos, então, para efeitos de nossas
considerações finais, as idéias centrais defendidas no decorrer desta pesquisa. A divisão
que se segue obedece à mesma sistemática didática por nós utilizada para o
desenvolvimento do tema, ou seja, iniciemos retomando as idéias centrais da dimensão
ontológica, depois a epistemológica e, por fim, a dimensão axiológica da tecnologia
moderna.
(1) A primeira idéia chave sobre o ser (ontologia) da tecnologia confirma a tese de
que a tecnologia não é neutra; sua essência e existência estão condicionadas a fatores
históricos e circunstanciais a qual está inserida. Com isso, afastamo-nos daqueles
posicionamentos de caráter deterministas que tanto enobrecem os discursos cientificistas e
tecnicistas, conforme já nos alertara Dussel (cf. I capítulo) e nos aproximamos do sentido
de historicidade da tecnologia.
Disso decorre que, ao contrário da posição “instrumental e antropológica” (para
usar a expressão de Heidegger), a tecnologia não é um fenômeno necessário e
instransponível. Sua condição é contingencial. Daí que o modo como concebemos a
tecnologia hoje está adstrito a uma situação histórica recente, cujo recorte temporal
obedece ao paradigma da modernidade, com todas as suas implicações históricas,
conforme já observamos aqui. Ou seja, o nosso olhar sobre a tecnologia está
circunstanciado pelo paradigma da modernidade, que é de onde nos encontramos
Com esta idéia também nos afastamos daqueles que, ainda que tenham como
objetivo estudar o que é a tecnologia, priorizam uma análise meramente semântica ao tratar
do tema. Defendemos aqui que a análise meramente semântica, conceitual não é suficiente
para entender qual é o ser ou o que significa a tecnologia, sobretudo na modernidade. Por
outro lado, com esta concepção, aproximamo-nos da posição de Heidegger para quem “a
367 HEIDEGGER, op. cit., p. 93.
145
essência da técnica também não é de modo algum algo técnico”. Ou seja, o problema da
tecnologia não é um problema técnico. É, antes de tudo, uma questão existencial. Ou
melhor: os problemas decorrentes da técnica, não serão resolvidos por ela mesma, senão
pelo nosso próprio enfrentamento. Tal enfrentamento depende desta avaliação. Então, por
ser um problema da existência humana, a tecnologia diz respeito ao modo como o ser
humano vive e se relaciona com os demais seres e com o mundo. Mais especificamente diz
respeito à poiésis, enquanto produção do ex-sistir (que aqui tem o sentido de subsistência).
E, ao mesmo tempo que a tecnologia diz respeito ao modo como nos relacionamos com o
mundo, ela também denuncia a nossa condição de estar-no-mundo. Por isso, ela é um
fenômeno eminentemente existencial.
Afinal, a ocidentalização do mundo moderno começa com a técnica, porque a
técnica (moderna) representa o modo escolhido pela civilização (ocidental) do “como” se
dá o desvelamento ou o desocultamento do ser pelo homem. Ou seja, a técnica significa o
modo por nós eleito para descobrir as coisas ou revelar a verdade delas, avalia
Heidegger.368
(2) Sendo um fenômeno existencial e contingencial; por ser “atividade transitiva,
não imanente”369, na modernidade a tecnologia passa a assumir uma outra identidade ou
uma outra natureza. Marcada, sobretudo, pela visão empirista de realidade (preconizada
desde Bacon) que alicerçou filosoficamente a aliança entre a ciência e a técnica, a
tecnologia passou a ser o produto mais bem acabado deste consórcio.
Tal fato, inédito na história mundial, constitui certamente a principal característica,
em sentido ontológico, da tecnologia moderna, posto que representou para efeitos de sua
finalidade histórica a implementação do modo de produção capitalista, com o surgimento
da Revolução Industrial e da maquinaria que, fruto do saber e do fazer, garantiu maior
produtividade em menor tempo, ou seja, o lucro (Marx). E, para efeitos filosóficos, a
instauração da razão instrumental, baseada no agir-instrumental-com-respeito-a-fins (para
usar a expressão habermasiana), que, conforme a leitura dos frankfurtianos, transformou a
ciência e a técnica como ideologia da sociedade industrializada e pós-industrializada
(Horkheimer, Marcuse e Habermas).
(3) Em sentido epistemológico, a tecnologia moderna, fruto da aliança entre ciência
e técnica, é marcada pelo paradigma científico de conhecimento. Assim, no lugar de uma
368 Cf. Ainda a obra sobre Heidegger de BRÜSEKE, Frans J. A técnica e os riscos da modernidade.
Florianópolis: UFSC, 2001. 369 VALLAURI, op. cit., p. 56.
146
ciência contemplativa, o saber operativo; no lugar da prudência, a descoberta, a exploração
e o domínio da natureza. Francis Bacon, defensor da ciência experimental, portanto, “pai
da tecnologia moderna”; Galileu Galileu, defensor do método científico moderno, portanto
“pai da ciência moderna”; Descartes, defensor da visão antropocêntrica e dualista,
portanto, “pai da filosofia moderna”, tornaram-se os arautos desta revolução
epistemológica na modernidade. A eles soma-se ainda o físico Isaac Newton que
consolidou a visão mecanicista de mundo e realidade anunciada pelos seus antecessores.
O mundo visto como máquina (donde expulsou-se-lhe a causalidade final dos
fenômenos, a marca mais profunda desta nova cosmovisão que se afasta em definitivo do
mundo dos antigos) é o terreno fértil por onde florescerá o novo sentido de conhecimento
baseado na experimentação, na operação e na exploração do mundo natural, afinal, dizia
Bacon, “o que é mais útil na prática e mais verdadeiro no saber”370. Esta nova forma de
conhecimento tem na tecnologia as condições ideais de sua realização, isto é, de sua
materialidade, posto que, se o ser da tecnologia moderna (conforme observamos ao tratar
da dimensão ontológica) se constitui pela aliança entre a teoria e a prática, nascia aí, pela
história da produção material, ou, estava constituída aí a possibilidade de realização do
projeto epistemológico do mundo moderno. Daqui avistamos a estreita aproximação entre
o ser (ontologia) e o conhecer (epistemologia) da tecnologia moderna. Recordemos, pois, a
sua axiologia.
(4) Em sentido axiológico, vale dizer que, sendo a tecnologia plasmada por um
modo de agir funcional, empirista e utilitário, sua justificativa ética encontra-se no
utilitarismo. O utilitarismo ético concebe a ação moral pelo fundamento da sua utilidade,
eficácia e funcionalidade; uma ação boa é aquela que traz maior felicidade ao maior
número de pessoas, alegam os utilitaristas. Portanto, é pelo modo de ser e conhecer da
tecnologia moderna que a sociedade vai conferir a condição de bem-estar-social, conceito
predominante entre os utilitaristas do que seja a felicidade.
(5) Em suma, vimos que a tecnologia é, antes de tudo, um fenômeno social, com
implicações sociais, culturais e no seu entorno também está presente a dimensão da ética.
Assim, juntamente com o modo de produção capitalista e o advento da sociedade
industrial, a tecnologia ofereceu as bases de uma nova visão de mundo, sustentada no
princípio da “verdade útil”, procurando aliar o conhecimento teórico da Ciência (saber)
com o saber prático da Técnica (fazer). Esta compreensão ontológica e epistemológica tem
370 BACON, op. cit., p. 97. citado também à p.63 deste trabalho.
147
no Empirismo seu fundamento filosófico. Este panorama sobre a natureza da tecnologia
moderna também é legitimado por uma nova compreensão de ética, fundada no
utilitarismo. Portanto, o princípio da utilidade sustentado pela visão utilitarista da ética
conferiu legitimidade moral à tecnologia a partir da modernidade. Disso decorre a tese
central aqui apresentada, que é a de que plasmou, em sentido ontológico e epistemológico,
o empirismo e, o conhecimento científico em sentido axiológico, o utilitarismo, a gênese
da tecnologia moderna.
(6) Da constatação do que é a tecnologia moderna; sua gênese e identidade em
sentido ontológico, epistemológico e axiológico, chegamos ao ponto de acenar para a
possibilidade de pensar um outro referencial de tecnologia ante o posicionamento crítico
que adotamos por opção metodológica de estudo do assunto. Recordemos, pois tais acenos.
Em sentido ontológico, entendemos que uma história crítica da tecnologia (como
bem propusera Marx) não pode conformar-se com os posicionamentos deterministas e
tecnicistas, porque:
Primeiro, a tecnologia não se constitui de um amontoado de aparatos técnicos; ela é
um problema existencial e não meramente técnico. Diz respeito à existência humana, à
condição do homem como ser-aí de estar-no-mundo.
Segundo, à tecnologia não nos cabe negá-la ou afirmá-la, mas enfrentá-la como
destino do homem. Destino não no sentido do que está posto, dado como pronto e acabado,
mas no sentido de que negligenciar a relação com a tecnologia significa abdicar da nossa
condição humana de des-velar o ser das coisas, isto é, abdicar da nossa condição de
descobrir a verdade do ser pela mediação da técnica. Aqui compreendemos o mérito de
Heidegger no sentido de conjecturar um outro entorno para a tecnologia.
Terceiro, a tecnologia não pode ser pensada fora do contexto, como um fenômeno
intransponível e a-histórico, porque diz respeito ao mero fazer humano ou o meio pelo qual
o homem se relaciona com o mundo. Esta, como vimos, é a crítica de Heidegger ao
conceito antropológico e instrumental comumente designado para a técnica. E é também o
triunfo de Heidegger, pois, se, para Marx a essência do Capital não é econômica, também
para Heidegger a essência da Tecnologia não é técnica.371 A tecnologia pensada pelo
contexto, faz-nos compreender também o mérito de Marx, ao enfatizar a técnica a partir
do modo de produção, situado num contexto histórico, que, em seu tempo, diz-se do
371 ELDIED, Michael. The essence of capital and the essence of technology. In: Capital and
Technology 7: Marx and Heidegger. p. 2.. Disponível na Internet. <file://A:\HEIDEGGEReMARX_arquivos\captec07.html > acesso em 17/04/2002.
148
surgimento da sociedade capitalista, e o mérito dos pensadores da Escola de Frankfurt,
sobretudo Habermas, que foram capazes de situar a discussão sobre a tecnologia para além
da compreensão instrumental, atingindo o âmbito sociológico da problemática.
Em sentido epistemológico, conjecturamos, ante a crise epistemológica do
paradigma científico, a viabilidade de “um conhecimento prudente para uma vida decente”
(conforme os dizeres de Boaventura). Esta outra atitude epistemológica exigirá mais que
intervenção, observância; mais que dominação, contemplação do mundo; mais que
esperança, temeridade; mais que utopias e crenças no progresso, responsabilidade para
com o futuro (Hans Jonas). que seja capaz de trilhar o caminho inverso da ciência
moderna: da ciência para o senso comum.
Nisso se fundamenta o outro referencial axiológico para a tecnologia. Ao invés da
utilidade, o fundamento é a responsabilidade (como propõe Jonas), cuja ação da técnica
mais que a promoção do bem-estar deve ter em conta a garantia de continuidade de futuras
gerações. Trata-se de uma posição ética, cujo fundamento é o ser e não o fazer. Dela
decorre outro modo de poiésis, outro sentido de tecnologia. A atitude axiológica da
tecnologia deve estar direcionada, então, não mais para o presentismo, mas sim para a
perspectiva de futuro de todas as gerações. Dela se afasta a visão antropocêntrica, a qual
tem predominado nestes últimos séculos, cujos efeitos bem sabemos, com o extermínio de
culturas e a real possibilidade de extinção de seres da terra. Nela há lugar para o sentido
metafísico e não meramente instrumental do ser e, neste horizonte, deve estar inserido o
novo modo de ser da tecnologia.
Em síntese: pensar um novo entorno para a tecnologia implica em posicionar-se
frente a ela não numa atitude de confirmação ou negação dela. E sim numa atitude de
questionamento, no sentido de entender que sua essência não encerra nela mesma, senão
está fora dela. Desta posição ontológica avistamos um outro entorno epistemológico para a
tecnologia moderna, posto que diante da crítica da crise do paradigma científico, é possível
redirecionar o conhecimento e que seja prudente para uma vida decente. Nisto reside uma
outra dimensão axiológica para a tecnologia moderna, pois, um conhecimento sábio que
permite e seja capaz de ver a realidade não pela mera via utilitária do sentido de ética, mas
pela via do princípio da responsabilidade.
Resta ainda, para efeitos dessas considerações finais, alertar o leitor que esta
pesquisa é tão somente um ensaio filosófico sobre a identidade da tecnologia. Efetuamos
aqui o recorte temporal, considerando-a a partir da era moderna, que constitui, em nosso
entendimento, o paradigma dominante ainda em nossos dias. Contudo, ainda que o leitor
149
deva relevar os limites de tempo e da qualidade da pesquisa feita pela autora, entendemos
que outros aspectos poderão ser aprimorados e/ou aprofundados. A seguir, destacamo-los.
A análise desta pesquisa científica em nível de Mestrado, limitou-se à identificar a
gênese ou a natureza da tecnologia a partir da modernidade, tendo em vista a dimensão
ontológica, epistemológica e axiológica. Contudo, uma pesquisa posterior, certamente
devesse continuar a investigação nos desdobramentos da natureza da tecnologia em sentido
também contemporâneo, sobretudo, a partir de teóricos que analisam o problema da
tecnologia em nosso tempo, a partir de seus efeitos atuais, como, a virtualização do real, a
cibernética, a sociedade informática, a sociedade em rede, etc.
Olhando especificamente as três dimensões analisadas, outras sugestões de
pesquisa posterior também poderiam ser incluídas. Vejamos alguma delas.
Ao mencionar o aspecto ontológico da tecnologia moderna, iniciamos nossos
estudos identificando a gênese da tecnologia moderna, utilizando como foco de análise a
leitura de Heidegger, Marx e da Escola de Frankfurt (sobretudo, Habermas). Mas,
pensamos que outros pensadores poderiam enriquecer esta análise. Refirimo-nos aqui,
principalmente, à Ortega y Gasset, que possui um estudo de meditações sobre a técnica.
Também julgamos necessário, tendo em vista um maior aprofundamento do assunto,
apontar as interfaces entre a visão heideggeriana e marxiana sobre a tecnologia moderna.
Quanto ao Empirismo, ativemo-nos em descrever a visão baconiana, procurando
demonstrar como a tecnologia moderna se funda na visão empirista da realidade,
preconizada deste Bacon. Entendemos que a pesquisa poderia avançar no sentido de
contemplar outros autores empiristas, sobretudo, a partir do período contemporâneo, bem
como situá-los dentro de seus desdobramentos históricos.
No aspecto epistemológico, destacamos o paradigma científico da modernidade, a
partir de Galileu, Descartes, Newton, como sendo determinante para a configuração da
tecnologia moderna. Além destes autores, utilizamos como referência a leitura em sentido
filosófico de Boaventura Souza Santos, pensador português que, usando como ponto de
partida a visão de Bachelard sobre a Filosofia da Ciência sustenta a crise epistemológica do
paradigma científico na sociedade atual, além de F. Capra, E. Morin, entre outros. Penso
que o assunto merecia maior aprofundamento, sobretudo no tocante ao contexto histórico
do surgimento da modernidade (aspecto que não priorizamos nesta primeira fase da
pesquisa). Além disso, consideramos que a leitura e a análise de outros autores que tratam
da Epistemologia, a partir da história da ciência, como: Canguilhem, Koyré, Foucault,
Yates, Paolo Rossi, entre outros, certamente enriqueceria ainda mais a pesquisa.
150
Sobre a dimensão axiológica da tecnologia moderna, priorizamos como foco de
análise, seus precursores, J. Bentham e Stuart Mill, procurando demonstrar como e porquê
o utilitarismo é o modelo de ética que permeia a natureza da tecnologia moderna.Também
utilizamos a leitura e a crítica do utilitarismo de Ernst Tugendhat e Enrique Dussel para
fundamentar tal propositura, além de pensadores da ética moderna e contemporânea, como
K-O Apel e H. Jonas. No entanto, entendemos que em estudo posterior, mereceria
aprofundamento o desdobramento da corrente utilitarista, sobretudo, quanto aos seus
postulados. Refiro-me, por exemplo, à posição de K. Popper que preconizava o
Utilitarismo Negativo, á posição de Farrell, em defesa do Utilitarismo Atenuado, entre
outros.
Desta fase de constatação e identificação sobre a natureza da tecnologia moderna,
avaliamos que há ainda uma outra etapa a ser construída, posto que dela aqui, meramente
fizemos acenos. Trata-se de conjecturar um outro entorno para a tecnologia na sociedade
atual. Ou seja, um outro momento desta pesquisa requer a necessidade de propor novas
alternativas para a tecnologia, em sentido ontológico, epistemológico e axiológico. Assim,
por exemplo, indaga-se:
- Em sentido ontológico como pensar uma outra identidade da tecnologia, afora a
visão empirista da realidade?
- Em termos epistemológicos, como superar a crise epistemológica do paradigma
científico? Ou como produzir um conhecimento de tecnologia que supere o paradigma
científico?
- Em sentido axiológico, afora a visão utilitarista, que modelo de ética deve
fundamentar um outra identidade de tecnologia? A Ética do Discurso proposta por
Habermas dá conta desta perspectiva? Quais suas implicações? A proposta de Hans Jonas,
baseada numa ética cujo princípio é o da responsabilidade, é a saída para uma nova
dimensão axiológica da tecnologia? Ou, a Ética da Libertação proposta por Dussel é o
caminho desta superação?
Isto para dizer do aprofundamento e da continuidade desta pesquisa em sentido
vertical, posto que, em sentido horizontal, levando em conta o alargamento desta discussão
entre outras áreas, entendemos que este estudo também pode propiciar outras novas
reflexões. Já, na parte introdutória, afirmávamos que esta pesquisa visava, entre outros
objetivos, impulsionar o estudo transdisciplinar de pesquisadores de outras áreas, a fim de
aprofundar a complexidade da identidade da tecnologia moderna. Para efeitos das nossas
151
considerações finais, elencamos aqui algumas possíveis sugestões de inclusão de novas
pesquisas tendo em vista este escopo. Por exemplo:
- Um dos desafios que em nosso entendimento compete aos profissionais da
educação tecnológica a partir do panorama aqui apresentado sobre a identidade da
tecnologia moderna, consiste em pensar o ensino tecnológico à luz desta problemática. Por
exemplo: qual o papel da escola e do educador no âmbito da educação tecnológica? Ou que
espaço deve ocupar na escola a educação tecnológica?
- Em relação aos profissionais das chamadas “ciências naturais e exatas”, a
problemática pode ser colocada nos seguintes termos: como pensar o ensino da ciência, ou
a dita reforma do ensino de ciências diante de um novo referencial epistemológico e
axiológico que leve em conta o paradigma da complexidade e a ética da responsabilidade?
- No âmbito da história, da antropologia e da sociologia a problema pode ser assim
formulado: que outros desafios históricos, sociais, culturais se nos apresentam a tecnologia
na atualidade, em vista do quadro aqui apresentado em sentido filosófico sobre a gênese e a
identidade da tecnologia moderna?
- Em relação à ecologia e os profissionais desta área, quais as implicações deste
estudo na constituição do discurso ambientalista e da educação ambiental?
- Que contribuições pode trazer este estudo aos pesquisadores que discutem a
temática “Ciência, Tecnologia e Sociedade” (CTS)?
Como se observa muito há que se percorrer neste caminho. Ainda mais em se
tratando do contexto de pesquisas científicas sobre o assunto realizadas no Brasil. O
esforço de pesquisadores em realizar estudos que envolvam a temática CTS já pode ser
percebido em alguns centros de pesquisas, inclusive no Brasil (e aqui destacamos o
trabalho do Prof. Walter Bazzo na coordenação do NEPET- Núcleo de Estudos e Pesquisas
em Educação Tecnológica - na Universidade de Santa Catarina)372, mas é preciso alargar
os horizontes desta discussão para outros centros de pesquisas.
Entendemos ser este um dos desafios para nós pesquisadores brasileiros, quando
nos propomos a investigar tal temática de pesquisa. Mas entendemos também, que aí reside
372 Preocupado com as questões epsitemológicas e filosóficas que envolvem o ensino de engenharia,
o Prof. Bazzo, dedica um capítulo exclusivo de uma de suas obras tratando do tema CTS. Cf. BAZZO, Walter A. Ciência, tecnologia e sociedade e o contexto da educação tecnológica. Florianópolis: Editora da UFSC, 1998, pp. 113-178. Um trabalho mais recente sobre o assunto encontra-se em artigo publicado também pelo referido pesquisador, In: BAZZO, Walter. A pertinência de abordagens CTS na educação tecnológica. Revista Iberoamericana de Educación, OEI, nº 28, Jan – Abr/2002. Disponível na Internet: http://www.campus-pei.org/revista/rie28a03.htm. Acesso em 04/10/2002.
152
a justificativa de implementar e enfrentar a reflexão, sobretudo, filosófica da questão,
afinal, como bem dizia Heidegger, questionar é a devoção do pensamento.
153
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