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POR QUE NÃO POSSO ENSINAR A ORIGEM DO MUNDO E DO HOMEM A
PARTIR DO MITO YORUBÁ? Em busca de Ecologia para a origem do mundo e
do homem na cosmogonia yorubá, no ensino de história do 6º ano.
ROSILÉIA SANTANA DA SILVA1*
LUIZ MÁRCIO SANTOS FARIAS2**
TERESA CRISTINA S. S. SOUTO3***
INTRODUÇÃO
A promulgação da Lei 10639/034 vem valorizar a contribuição histórica do negro
na construção e formação da sociedade brasileira, ao referendar esses feitos,
positivamente, na comunidade acadêmica e na comunidade escolar. A mesma surge com
o objetivo de promover a igualdade, valorização e reconhecimento etnicorracial nos
currículos, na tentativa de romper as estruturas hegemonicamente eurocêntricas que, por
muito, legitimou a história da educação brasileira e os seus modelos curriculares. Após
cinco anos, a lei 10.639/03 passa por alteração pela Lei 11.645/085 que determina a
inserção de saberes oriundos das populações indígenas num contexto de representações
positivas.
Resgatar, (re)conhecer e valorizar as “contribuições dos povos negro nas áreas
social, econômica e política pertinentes à história do Brasil”, para além de toda sua
conjuntura epistemológica, é fazer-se existir e funcionar enquanto conteúdos referentes
no processo de ensino e da aprendizagem. Entretanto, a historiadora Malavota (2013, p.4)
nos traz exemplos citados por especialistas que configuram em implicabilidades para a
efetividade dos dispositivos da Lei em salas de aula, segundo os apontamentos
é necessário aumentar as pesquisas sobre a história, incentivar
novas publicações e traduções, introduzir disciplinas específicas
nas licenciaturas, ofertar cursos de pós-graduação e, sem
sombra de dúvida, modificar os livros didáticos6e aumentar o
*Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências da UFBA/UEFS.
Bolsista da Capes. Email: [email protected]
**Doutor em Didática (Montepeiller/France), Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e
Ciências da UFBA. Coordenador do PPG de Ensino, Filosofia e História das Ciências da UFBA/UEFS.
Email: [email protected]
***Licenciatura em História (UCSal). SECBA. Email: [email protected] 4 Prevê a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileira e dos Povos Africanos nos
currículos dos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, públicos e particulares do país.
5 Acrescenta a obrigatoriedade do ensino de História da África, Cultura Afro-Brasileira e História e Cultura
Indígenas em todas as escolas brasileiras
6 Grifo nosso.
2
número de formação de pessoal qualificado para tentar reduzir
significativamente as lacunas efetivas existentes. (MALAVOTA,
2013. p.4)
Nesse contexto, ao apresentar dados construídos numa perspectiva didática, Silva
et ali (2015) identificam latente predominância de modelos epistemológicos7 que
resultam na fragilidade e lacunas de saberes ensinados nas salas de aula. Segundo as
autoras, “ o silenciamento sobre as contribuições históricas e culturais das populações
afro-brasileira e africanas, ainda é fortemente presente em diversas instituições de
ensino”. (2015, p.2). Fator que se instaura diante das tentativas de organizar propostas
que contemplem saberes não comuns nos currículos oficiais da educação básica.
A sugestão de implementar conteúdos não comuns no ensino de História nos levar
a questionar, como ensinar o que não se conhece? Pois, propor a integração dos mitos
yorubá à organização histórica escolar é romper os grilhões epistemológicos que restringe
o que se ensina e o que limita-se ensinar enquanto saber referente.
Nas linhas que se seguem apontamos alguns elementos que nos direcionam a
questionar o porquê não poder ensinar a origem do mundo e do homem a partir do mito
yorubá. Ao tempo que percorremos num estudo propositivo para efetividade desse saber
enquanto contribuição mito-filosófica, porque não científica, nos espaços educacionais
da educação básica.
Nossa finalidade é estabelecer o (re)conhecimento para coibir o racismo
epistemológico e, em consequência, racismo cultural e religioso tão presente dentro dos
‘muros escolares’
OS MITOS DA ORIGEM DO MUNDO E DO HOMEM: ANÁLISE
7 Tomamos de empréstimos a referência de BOSCH e GASCÒN (2010), onde os mesmos vêem a
necessidade de elaborar seus próprios modelos epistemológicos de saberes, no caso matemática, por
identificarem limitações e restições didáticas ao desenvolver um determinado saber matemático escolar nos
seus processos de ensino e aprendizagem. No nosso trabalho referimos como Modelo Epistemológico de
Referência (MED) as historiografias, Currículos, LDBs, PCN’s, Projetos Políticos Pedagógicos, Livros
Didáticos, Planos de Ensino, entre outras ferramentas direcionadas às instituições de/da Educação. (
tradução nossa).
3
Introduzir conteúdos escolares sob o viés das relações etnicorraciais ainda é
restrita à ações pontuais no ensino, na contemporaneidade. Na busca de propostas que
contemplem a diversidade étnica e cultural, questionamos a existência de saberes comuns
no currículo oficial ao alicerçar o fazer didático docente. Assim sendo, interrogamos: O
que é mito? Qual é a relevância epistemológica, para o ensino de História, ao abordarmos
sobre a Origem do Mundo e do Homem na perspectiva cosmogônica yorubá?
Estes questionamentos surgem ao buscamos espaços, ensino e funcionalidade de
saberes oriundos de populações africanas, afro-brasileira e indígenas em dispositivos
didáticos8. Essa busca nos faz, antes de uma análise dos dispositivos que alicerçam o
referido saber histórico, estudar que objeto é esse e quais suas raízes epistemológicas e
históricas até o ensino de história.
Apresentar a trajetória do conceito origem do mundo e do homem, na perspectiva
mitológica, nos direciona a compreender as diversas visões socioculturais. Assim, a
tentativa de interpretar e explicar a origem do mundo e do homem é uma das mais
longínquas investidas humanas, em meio aos espaços em que vivem, de acordo às
especificidades das suas civilizações enquanto sujeitos sociohistóricos.
Martins (2012) nos revela que entre 4.000 e 2.000 anos antes da era cristã foi
identificado os primeiros registros escritos sobre os mitos da criação do universo e
humano elaborado pelos babilônicos, através do Enuma Elis. Por ser uma realidade
cultural, o mito é definido como uma elaboração de extrema complexidade que pode ser
abordado e interpretado através de perspectivas múltiplas e complementares. Abbagnano9
define mito como a justificação retrospectiva dos elementos fundamentais que constituem
a cultura de um grupo. Assim sendo, ao atender as diversidades cosmogônicas, os mitos
cumprem função sui generis intimamente ligada à natureza da tradição e continuidade da
cultura.
Apesar do conceito ter perspectiva de acordo às vastas interpretações, a origem do
termo que relaciona o objeto será determinada por uma única vertente e a sua
8 Ao ressignificarmos para o ensino de História, consideramos que “A aula de história, o livro didático, a
biblioteca, as provas, as perguntas que faz o professor em aula, são exemplos de dispositivos escolares. À
medida que cada um desses dispositivos incide sobre a estruturação e o desenvolvimento do processo de
estudo da história, funcionando como um dispositivo de ajuda para o estudo da história, diremos que se
trata, além disso, de um dispositivo didático (no sentido de didático-histórico) ”. (CHEVALLARD, BOSCH
& GASCÓN, 2001, p.278).
9 ABBAGNANO, 2007, p.645.
4
institucionalização e publicação será lançado a partir dessa unilateralidade predominante.
A colonização do conhecimento determinará quais perspectivas devem ser evidenciadas
e divulgadas pois, os paradigmas eurocêntricos tornaram-se hegemônicos (Grosfoguel,
2009) diante das diversas ciências e interpretações tradicionais.
O termo mito é um conceito grego, assim com a natureza do seu termo. Das
definições referente à origem do mundo e do homem, comumente, nos deparamos com
os conceitos de mito, mas também, de cosmogonia e cosmologia. Ambas provindas da
civilização grega. A cosmogonia é considerada um mito ou doutrina referente à origem
do mundo ou do universo (Steiner, 1996; Martins, 2012). As versões cosmogônicas ‘são
narrativas de características atemporais e cíclicas sobre diferentes modos de surgimento
do mundo, sem matéria preexistente.’(Campos, 2015).
A cosmologia, dividida em duas partes: científica e experimental, é considerada
como uma ciência do mundo e do universo composto e modificável. Steiner (1996) a
interpreta como o estudo científico da origem, da estrutura e da evolução do universo10
como um todo. Campos (2015) especifica cosmologia como uma vertente científica que
estuda e interpreta o espaço, tempo, energia e matéria. Evidencia a inseparabilidade entre
o sujeito que observa (o cientista) e o objeto observado (o universo), ambos importantes
para a interpretação descritiva do universo e de tudo que a compõe.
O mito, a filosofia, a religião e a ciência têm suas importantes contribuições na
interpretação da origem humana e universal. Entretanto, ao longo da trajetória do conceito
a relevância ocidental estabelece separação e a hierarquiza através da concepção
cosmogônica e cosmológica. Fica-nos a evidência de que a natureza das definições aponta
as suas especifidades, que serão preponderantes no modo de considerar, selecionar,
instituir e ensinar o saber referente diante das inúmeras concepções.
Com a predominância do pensamento filosófico ocidental, os gregos tornam-se os
definidores e propagadores influentes dos conhecimentos. Nas distinções das perspectivas
conceituais nos é apresentado o poder valorativo em ambos, marcados pela hegemonia
10 MARTINS, 1994, p.
5
epistêmica europeia através de épicos e de contribuições mito-filosófica11 sobre a origem
do mundo e do homem.
A consideração do conceito epistêmico, por exemplo, tem origem e
fundamentação teórica preeminente no contexto em discussão. A etimologia da sua
palavra deriva do grego Parmênides, entre os séculos VI ao V antes da era cristã, onde o
filósofo preestabeleceu as distinções entre a epistème e o doxa, ou seja, entre o
“conhecimento” e “opinião”. A partir de então, haverá a distinção entre aquilo que é
realidade da aparência, da verdade diante do considerado erro.
Diante de tais distinções que o filósofo Aristóteles, nos finais do século V e início
do IV, centra suas indagações na natureza do conhecimento científico (Laudan, 1983)
perante as explicações que envolvem o homem e seus envolvimentos no mundo. No qual
as preocupações epistêmicas, ou seja, justificada, verdadeira, observável e objetiva, terão
mais evidência diante das explicações não observáveis. Ou seja, mitológica.
No contexto da educação, diante dos significados e distinções incorporados, as
definições e naturezas cosmogônicas e cosmológicas serão e são bem definidas e
reproduzidas na educação básica, seja através de representação de manuais e livros
didáticos, seja através da prática docente. Ainda que a perspectiva cosmológica seja
fortemente alicerçada nos livros didáticos e, consequentemente, nos planejamentos para
o ensino e a aprendizagem, a perspectiva cosmogônica não é refutada no contexto
didático.
Contudo, o direcionamento unilateral tornar uma única concepção, o que faz dela
hegemônica diante à diversidade. A perspectiva do mito, no contexto do ensino, legitima-
se no fazer docente, isso por que segundo citação de Sepúlveda (2003),
a influência das concepções criacionistas12, ou seja,
cosmogônicas sobre o Ensino de[as] Ciências não pode ser
considerada desprezíveis no Brasil, tendo-se em vista o número
crescente de comunidades evangélicas que defendem o
criacionismo e investem na manutenção de instituições de ensino
e editoras de livros didáticos. (Sepúlveda, 2003 apud Razera &
Nardi, 2001, p. 18).
11Conforme a divisão cronológica feita por Martins (1994), entre os anos 800 e 700 da era não cristã, os
gregos legitimaram a concepção sobre a terra achatada e o mito dos deuses de Homero e a Teogonia de
Hesíodo explicarão a origem dos deuses e do universo.
12 A autora refere-se à judaico cristã
6
A afirmativa da autora contextualiza a formação religiosa e científica de
licenciandos(as), especificamente em ciências biológicas, mas essa não é uma
particularidade recente na formação de profissionais da educação brasileira. Na
conjuntura do ensino de História (PCN, 19), a história sagrada, judaico cristão, dividia
espaço com outras ciências no currículo por ter a incumbência de formar moralmente seus
alunos. Diga-se de passagem, tal construção de conhecimento científico e cultural
legitimou a prevalência para estudos do espaço do Oriente Médio, berço do monoteísmo,
e da Antiguidade clássica.
No sentido recente, debates retomam questionamentos sobre o distanciamento de
saberes históricos às realidades que não demandam equidade sociocultural, política,
econômica e histórica. A exemplo da carta crítica da Anpuh-Rio13 (2015) à proposta do
Ministério da Educação para definição das Bases Nacionais Curricular Comum de
História.
Visto isso, ao estudarmos a origem do mundo e do homem é observado
marcadamente, respeitando a hierarquia estabelecida entre cosmologia e cosmogonia,
quase nunca são mencionados os mitos de origem africana, americana e oceânica. E
quando são mencionados, a transposição didática14 não consegue dar conta no saber
ensinado e saber aprendido diante do modelo epistemológico que historicamente é
refletido.
Teremos, portanto, um ensino e um aprendizado onde a ciência e a religiosa, em
meio aos conflitos épicos, predominarão diante das explicações sobre a origem do mundo
e do homem. A racionalidade ocidental não deixou de reverberar o mito dos GÊNESIS
(Steiner, 1997) nas comunidades acadêmicas. A sua influência perpassou tempos
13 Declara que faz “ a menção a uma noção de história indígena, referida apenas ao passado, que desconhece
a diversidade desses povos e suas transformações ao longo do tempo; a não obediência às Leis 10.639/03
e 11.645/08, em função da limitação da temática da história africana e da cultura afro-brasileira ao 1º ano
do Ensino Médio; e a ausência de embasamento na temporalidade, considerada como essencial ao currículo
de História”. Além de outros fatores. Disponível: http://site.anpuh.org/index.php/bncc-historia/item/3323-
relato-da-ii-jornada-de-historia-da-anpuh-rio-discussao-da-bncc
14 Segundo Chevallard (1986), a Transposição Didática do Saber possui dois tipos classificação, diante do
processo adaptativo de um objeto do saber. O strictu sensu é a passagem de um conteúdo de saber preciso
a uma versão didática deste objeto de saber, nesse faz parte o professor; o aluno; e o saber a ser ensinado.
O lato sensu é o processo de adaptação de um objeto de saber, desde a produção na academia até à sua
eleição como objeto a ensinar e torná-lo objeto de ensino.
7
históricos na civilização humana, com participação preponderante no cotidiano de muitas
populações que vivenciaram sob dominação euro ocidental.
No ponto de vista ‘puramente’ científico, na perspectiva da ciência moderna, a
teoria da Grande Explosão, conhecida também como o Big Bang proposta em 1947 por
George Gamow, ganha espaço nos setores acadêmicos e escolares em paralelo à teoria
criacionista judaico cristã. Das intervenções de filósofos naturais às elaborações de
cientistas, astrônomos da modernidade, físicos e naturalistas firmam território entre as
visões científicas, no que diz respeito às teorias sobre a formação do universo e humana.
A legitimidade científica, portanto, é institucionalizada a partir do século XVII
nos espaços de construção de saberes formais. Segundo Gleiser (1997, p.192), o enorme
sucesso do método racional desenvolvido por Newton para lidar com os fenômenos
físicos rapidamente o transformou no símbolo de uma nova era na história da
humanidade, baseada no poder do pensamento, e não no poder da fé. No século XIX, o
movimento a favor de uma ciência mais positiva predominou, desvinculando questões
teológicas e metafísicas, havendo um crescente desejo de exclusão dos debates
cosmogônicos na prática da ciência (SEPÚLVEDA, p. 33, 2003).
Entretanto, em debates recentes intelectuais defendem que a ciência não é o único
modo de se estudar e tentar captar a realidade. Para Martins (2012, p.2), o [mito], o
pensamento filosófico e o religioso também possuem grande importância, levando com
isso à antigas indagações: será possível que esse universo tenha surgido sem uma
intervenção divina? Até que ponto a ciência e a religião se contradizem ou se completam?
Diante desse encadeamento de ideias sobre origem, trajetória e definição de
relevâncias a seres conhecidas, divulgadas e institucionalizadas sobre os mitos da origem
do mundo e do homem, partimos para as possíveis representações e os discursos
refletidos, ou não, nos livros didáticos analisados.
1.1. O que eu ensino (ei)? O que eu aprendi (o)? O Saber Ensinado versus O Saber
Aprendido no 6º Ano.
A natureza dessas definições e o tratar diferenciado sobre os mitos da origem do
mundo e do homem são marcadamente materializadas no processo de ensino e
aprendizagem de História, onde o prisma da estrutura do universo é muito mais relevante
8
do que como o veio a existir. Assim sendo, parte da pesquisa em andamento foi realizado
com professoras de História da 6º Ano em Salvador (Ba). As mesmas passaram por
entrevista semiestruturada com a finalidade de analisarmos o de que maneira elas
compreendem e têm como relevância o saber referente.
As professoras-partícipes, P2 e P315, priorizam nas suas práticas uma abordagem
cosmológica embasado em princípios científico. A abordagem mitológica é apresentada
com pouca legitimidade nas propostas a serem ensinadas. Uma das professoras16 declara,
ao responder sobre suas percepções de origem do mundo e do homem, que é evolucionista
e não criacionista, pondo em evidência um hiato na abordagem do saber histórico. Explica
que
“[...] falar da Origem do Mundo é subjetivo, vai depender da cultura,
da crença. Lidar com a Origem do Homem é mais objetivo, holístico e
eclético. Na ciência é possível haver consenso. A objetividade é porque o
homem é uma entidade que materializa tudo que é possível enquanto agente
objetivo. [...] quando trazemos a ciência, derrubamos o dogma religioso em
detrimento de outras. [...] devemos abrir espaços para origem, embora as
outras sejam criacionistas também. É relevante abordar o conteúdo por que
resgata valores ético do homem no mundo. ”
Assim como a professora-partícipe P3 esclarece que
“[...] é um assunto muito complexo devido as várias vertentes que tem para
trabalhar. O que chamo de vertente são essas explicações para a origem do
ponto de vista científico e religioso. Se faz necessário um cuidado para
abordar na sala de aula, por minhas escolhas abordaria na vertente religiosa
(criacionista). [...] Trabalho que a origem da humanidade veio do continente
africano (perspectiva científica), deixando em aberto a origem do mundo
para que eles tirem sua opinião (sic) ”.
15 Consideramos pertinente preservar a identidade das participantes.
16 Professora P2, abril de 2016.
9
As professoras participantes deixam evidente as dificuldades que enfrentam em
propor conteúdos que não façam parte do contexto oficial, que é hegemônico, restritivo e
unilateral. Declara P1:
Não temos competência para tratar desse conteúdo em sala, quem
deve tratar são as autoridades, pai de santo, mãe de santo. Não é o professor
que deve discutir. Lá na escola falar [ na vertente da cosmogonia afro-
brasileira, por exemplo] eu seria apedrejada. Os pais vão no outro dia. Lá já
foram padres, pastores, mas fora isso [ outras representações não
hegemônicas] nunca foi, nem pensam em convidar.
Os saberes escolares, em discussão, são representados e referendados enquanto saberes
históricos, amparados por diretrizes curriculares, assim como, pelos livros didáticos em
sua maioria, tanto na concepção científica como na não científica. Entretanto, ao alicerçar
esses “não saberes17” numa vertente etnicorracial, no caso africano, há um restrição
fortemente marcada na prática docente, devido ao seu conteúdo não poder ser, diferentes
das outras concepções, abordado somente por autoridades religiosas.
As poucas legitimidades mesclam-se com possibilidades, haja vista que as
reflexões das docentes apresentam aquilo que está posto enquanto saber
institucionalizado. O conhecimento procede de uma transposição do saber e são estes
saberes que controlam, organizam e delimitam as aulas influenciando na forma de como
as professoras devem planejar as suas abordagens18. Assim sendo, aplicamos um
questionário que nos revele se a origem do mundo e do homem vem sendo ensinado, como
e o que é ensinado, e, consequentemente, o que é aprendido sobre este objeto.
O que os estudantes aprenderam?
No primeiro momento aplicamos um questionário19 mais amplo, para estudantes
não só do fundamental II ( ou seja, 6º ano, instituição de nosso interesse), mas também,
17 Diferentemente da abordagem na perspectiva judaico –cristã ou quaisquer que sejam outra herança
cultural, a abordagem na perspectiva africana [ yorubá] não é considerado como um saber escolar.
18 CHEVALLARD:1986. 19 Os primeiros questionários foram aplicados em novembro e dezembro de 2015 entre os municípios de Salvador e de Feira de Santana.
10
para estudantes do Fundamental I, Ensino Médio e Superior. A intenção inicial foi inferir
os conhecimentos prévios sobre o que as entrevistadas e os entrevistados conheciam sobre
a origem do mundo e do homem, independente dos espaços formais de ensino. Assim, os
dados puderam produzir informações que nos revelassem as predominâncias
epistemológicas do conceito.
Os dados nos apresentam quais saberes vêm sendo ensinados e quais saberes são
aprendidos, do ponto de vista cosmogônicos, além das instituições escolares20.
Partilhamos, por conseguinte, as seguintes questões:
1. Para contar de onde nós surgimos, apoiamo-nos em histórias, mitos, fantasias,
lendas entre outros. Qual mito, história ou lenda você usaria explicar sobre a
Origem do Mundo?
2. Quando você aprendeu, ou ouviu falar, sobre a origem do mundo e a criação do
homem (ou seja, de você), o que você lembra (aprendeu)?
O questionário foi aplicado a 198 estudantes, sendo: 66 estudantes do Fundamental I
(5º ano), 49 estudantes do Fundamental II (8º e 9º ano), 50 estudantes do Ensino
Médio (1º, 2º, 3º e 4º regular e técnico); e, 33 estudantes do nível superior (Ciências,
Biológica, História e Matemática).
Os dados desse primeiro momento expuseram que, dos(as) 66 estudantes21 do
Fundamental I (5º ano) de idade entre 10 e 17 anos, de maioria do sexo feminino (53,03
%), para a pergunta 1: mais de 60 porcentos utilizaria a bíblia e o criacionismo judaico
cristão para explicar a origem do mundo e a criação humana, sendo que 4, 54% utilizaria
a explicação do macaco e 3,03 explicaria a partir da evolução, entretanto, 10,60% desses
não saberiam como explicar; para a pergunta 2: 45,45% do que aprendeu, lembra que o
mundo e os homens foram criados a partir de Deus, 12,12 não lembram e/ou desviaram
da pergunta; 4,54% lembram termos vindo dos macacos e 3,03% do pó. No caso dos (as)
20 Ampliamos o diagnóstico para além das salas de aula com a intenção de validar, assim como também, poder descrever as inquietações iniciais que impulsionam esta pesquisa.
21 No nosso instrumento, decidimos observar qual leitura os (as) estudantes apresentam sobre a sua
identificação etnicorracial, diante do processo de construção identitária brasileira, assim, tivemos 50% que
autodeclaram negros (as), 22,73% morenos (as); 6,06% brancas; 15,16% pardos (as) e 3,03% não
declararam e/ou não relatou.
11
49 estudantes22 do Fundamental II (8º e 9º ano) de idade entre 12 e 18 anos, de maioria
do sexo feminino (55,10%), para a pergunta 1: 65,3% utilizaria a versão de que Deus23
quem criou mundo e o homem; 10,2 % utilizaria a explicação de Deus junto à teoria do
Big Bang; 2,04% explicaria que o homem veio do macaco e/ou utilizaria mito das coisas
avançadas para explicação. Para a pergunta 2: 77,55% do que aprendeu, lembra que o
mundo e os homens foram criados a partir de Deus; 8,16 % aprenderam que foi pela teoria
do Big Bang; 6,12 % não lembra.
Ao entrevistarmos os (as) 50 estudantes24 do Ensino Médio (1º, 2º, 3º e 4º regular
e técnico) de idade entre 15 e 28 anos, de maioria do sexo feminino (60%), para a pergunta
1, tivemos: 40% utilizaria a bíblia e a versão de que Deus quem criou mundo e o homem;
24% utilizaria a teoria do Big Bang; 28% explicaria que o homem veio do macaco e/ou
evolução; 2% utilizaria o mito grego e o mito da caverna; 8% não respondeu. Para a
pergunta 2: 64% do que aprendeu, lembra que o mundo e os homens foram criados a
partir de Deus, Adão e Eva através da bíblia; 2 % aprenderam com a Teoria da Evolução;
6% que foi pela teoria do Big Bang; 4% não lembram e não respondeu e 2% desviou da
pergunta. No caso dos (as) 33 estudantes25 do Ensino Superior (7 de História e o restante
de Ciências Biológicas e Matemática) de idade entre 17 e 33 anos, de maioria do sexo
feminino (57,57%), para a pergunta 1: 39,39% utilizaria a versão de que Deus26 quem
criou mundo e o homem; 42,42 % utilizaria a explicaria a partir da teoria do Big Bang;
6,06% explicaria, segundo os(as) mesmas(as), a partir do evolucionismo e cientificismo;
3,03 % explicaria, conjuntamente, sobre a teoria do Big Bang, de Macunaíma e do mito
Igbadu: Cabaça da existência. Para a pergunta 2: 54,54% do que aprendeu, lembra que o
mundo e os homens foram criados a partir de Deus; 6,06 % aprenderam que foi pela a
partir do criacionismo, evolucionismo e o cientificismo; 9,09 % a partir da teoria do Big
Bang; 6,06 % não lembra.
22 Tivemos 44% que autodeclaram negros (as), 22,44% morenos (as); 4,08% brancos (as); 18,36% pardos
(as) e 2,04% não declararam.
23 O Deus referente é o judaico cristão.
24Tivemos 53,06% que autodeclaram negros (as), 4% morenos (as); 6% brancos (as); 32% pardos (as); 2%
mestiços (as), afrodescendente e amarelo (a); e, 6% indecisos (as).
25Tivemos 36,36% que autodeclaram negros (as); 12,12% brancos (as); 36,36% pardos (as); 6,06%
indecisos (as) e 9,09% não declararam.
26 O Deus referente é o judaico cristão.
12
Os dados revelam que uma grande maioria dos (as) estudantes aprenderam a partir
da explicação criacionista na perspectiva judaico cristã e, ao tentarem explicar sobre tal
gênese, utilizariam, na sua maioria, o mito judaico cristão nas suas narrativas. Essa
revelação é inferida em um primeiro momento. Buscamos, inicialmente, um olhar amplo
para apreensão das tendências e, num segundo momento, restringimos às salas de aula às
quais desenvolvemos a proposta.
Considerações Parciais
Pudemos identificar nas análises que se seguiram lacunas referentes à integração
da cosmogonia yorubá enquanto saber histórico concernente à origem do mundo e criação
do homem, tanto efetivamente nos documentos educacionais oficias (nacional, regional e
local), quanto equanimemente nos livros didáticos a fim de ser alicerçado na prática
docente. Prevemos que tais referências não é manifestada na prática e, consequentemente,
não aparecem nos respectivos planos de aulas, porque em frequência não estão presentes
nos livros didáticos, por não estarem presentes nos documentos oficiais, por não ter
havido, de fato a transposição a partir do saber de referência acadêmica.
Além disso, o aspecto religioso e ideológico do professorado, ou mesmo das
instituições de ensino, acabam refletindo fortemente na ausência de saberes nesse
contexto de represente a cosmogonia yorubá. Julgamos essencial construir um Modelo
Epistemológico de Referência ‒ MER27 que aporte nas práticas docentes o ensino sobre
a origem do mundo e do homem integrando a cosmogonia yorubá enquanto objeto
histórico efetivo.
REFERÊNCIAS
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organizaciones didácticas: de los ―talleres de prácticas matemáticas a los ―recorridos
de estudio e investigación. In: Apports de la théorie anthropologique du didactique
Diffuser les mathématiques (et les autres savoirs) comme outils de connaissance et
d‘action. IUFM: Montpellier, 2010.pp.55-91
BRASIL. Lei 10.639 de 09 de janeiro de 2003. Inclui a obrigatoriedade da temática «
História e cultura afro-brasileira » no currículo oficial da rede de ensino. Diário Oficial
da União, Brasília, 2003.
27 Saberes referentes que alicercem de maneira significativa aqui consideradas.Ver: Boch e Gascón (2010).
13
CAMPOS, Hélio Silva. Cosmovisões: antigas e contemporâneas. EDUFBA: Salvador,
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