Os defeitos de odontogénese podem manifestar-se de diversas formas, desde a agenesia
dentária a defeitos de esmalte, tendo etiologia genética ou ambiental. A necrópole da
Alcáçova do Castelo de Mértola, com cronologia entre os séculos XIII e XVI, é escavada
desde 1978. Na escavação de 1992 foi identificada uma inumação dupla, em fossa, com os
indivíduos 92A/SEP 444 (indivíduo 1) e 92A/SEP 444 Mat Associado (indivíduo 2) (Fig. 1).
O indivíduo 2, com estimativa de idade à morte entre os 12-15 anos e cuja representatividade
dentária se apresenta na figura 3, apresenta hipoplasias lineares do esmalte, pits, defeitos
tipo sulco e tipo depressão e diversas lesões dentárias macroscópicas em diversos dentes. O
1º pré-molar inferior direito apresenta-se implantado com ligeira torção mesial.
Os dentes do indivíduo 2 (Fig. 2) foram observados macroscopicamente, com lente binocular e com recurso a imagem radiográfica do 3º molar superior direito, em equipamento Trophy CCX, com
intensidade de 70 kV e 8 mA e tempo de exposição de 0,10 t/s, software Kodak Dental Imaging Software 6.5. Os valores métricos foram obtidos com recurso a sonda periodontal graduada.
Introdução
Metodologia
Resultados e discussão
A depressão da região central mede 4 mm de profundidade e não atinge a polpa dentária (Fig. 4.1 e 4.2). Radiograficamente (Fig. 4.3) a espessura do esmalte é normal e
este claramente distinto da dentina. A raiz deste dente, possivelmente ainda não completa, foi destruída post mortem e na superfície bucal da coroa (Fig. 4.4) é
observável um defeito de desenvolvimento de esmalte em forma de depressão circular.
No diagnóstico diferencial pode considerar-se:
a) amelogenesis imperfecta (AI), uma malformação genómica do esmalte, ocasionalmente em conjunção com outros tecidos dentários, orais e extraorais1. A estrutura e
aparência dentárias de todos ou quase todos os dentes são afetadas de forma semelhante3,4. Embora vários dentes apresentem alterações, algumas poderão ter
origem ambiental ou tafonómica. A AI afeta todos os dentes em formação3, o que não parece ser o caso aqui relatado; o diagnóstico diferencial mais comum é a
fluorose1;
b) b) odontodisplasia regional, que afeta todo um quadrante da dentição1, os dentes apresentam a aparência radiográfica de ‘dente fantasma’, devida à fina espessura
do esmalte e da dentina5,6, que não se distingue5;
c) c) dens invaginatus pode resultar da falha de crescimento de esmalte em resultado da curvatura, proliferação anormal, distorção, protrusão ou fusão do órgão do
esmalte, não devendo ser excluídos fatores genéticos, infeção e trauma7,8. A região molar é uma localização incomum para DI, embora seja uma localização típica
para tumores odontogénicos9. Pode estar associado a microdontia, macrodontia, taurodontismo, geminação e fusão, AI ou síndromes médicos ou dentários8.
Muito embora diversos casos de odontodisplasia regional sejam diagnosticados erroneamente como dentes malformados ou odontomas10,11, o odontoma composto
dilatado (OCD) parece ser a condição mais plausível para este dente, sendo a forma mais exuberante de dens invaginatus (DI), assumindo o dente forma circular ou oval,
interior radiolucente e estrutura única que pode ter uma massa de tecido central mole12. A diferença entre DI e OCD é o momento em que o distúrbio causador ocorreu,
sendo DI mais tardio na odontogénese, o que permite a formação de um dente com aparência normal13, com uma dobra do esmalte para o interior (dentina) e formação
de uma bolsa de espaço morto14.
A depressão (Fig. 5.1) pode ser o resultado de um desgaste provocado por uma atividade não mastigatória, como o uso continuado ou frequente de um objeto, ou uma
eventual hipoplasia de Turner, resultado de uma infeção ou trauma ocorridos no dente decíduo, durante a odontogénese do definitivo15. As alterações presentes nos
dentes variam com a época em que ocorre e a severidade do fator causal15. Outros fatores de natureza metabólica ou sistémica podem estar envolvidos. Grande
severidade do dano inicial no início do desenvolvimento do dente pode causar uma lesão com forma muito semelhante a um odontoma complexo15. Na figura 5.2,
pormenor dos pits da superfície oclusal, de possível etiologia ambiental.
As manchas observadas (Fig. 6.1 e 6.2) podem dever-se a fluorose, trauma, manchas bacterianas, dentinogenesis imperfecta, AI, doenças
sistémicas ou metabólicas, fatores ambientais15, opacidades16, alterações tafonómicas ou, de acordo com Alves (comunicação pessoal, 2014),
à própria desidratação do esmalte ocorrida post mortem.
Os pits lineares observados (Fig. 6.3) poderão ser um defeito de formação de esmalte ou o mandibular molar pit-tubercle, um caráter discreto com elevada representatividade em populações de origem europeia17, com formação independente das restantes condições.
As hipoplasias lineares do esmalte18 e os pits16 presentes em diversos dentes, nomeadamente no primeiro pré-molar superior direito, que
também apresenta fusão de raízes, assim como o foramen caecum molare do terceiro molar inferior esquerdo (Fig. 6.3), podem ser
representativas de stresse nutricional19,20, fator que pode igualmente explicar as restantes condições.
Considerando de forma holística as lesões e atendendo a que algumas alterações odontogénicas observadas apontam para causas ambientais, este indivíduo poderá ter estado sujeito a stresse
ambiental, o qual poderá ter sido causado por fatores diversos como deficiência alimentar, patologias infeciosas ou trauma, entre outros.
Considerações finais
Possível caso de lesões odontogénicas detetadas num
indivíduo da necrópole da Alcáçova do Castelo de Mértola
(séculos XIII-XVI) Elisabete Mesquita1, Luís Miguel Marado1,2, Clara Rodrigues3, Susana Gómez-Martínez3, Cláudia Umbelino1,2
1 Departamento de Ciências da Vida, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade de Coimbra, Calçada Martim de Freitas, 3000-456, Coimbra, Portugal;
2 CIAS – Research Centre for Anthropology and Health. 3 CAM– Campo Arqueológico de Mértola.
E-mails: [email protected]; [email protected]; [email protected]
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS DA VIDA
FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
18
17
16
15
14
13
12 11 21
22
23
24
25
26
27
28
48
47
46
45
44
43
42 41 32
33
34
35
36
37
38
31
FDI
Fig. 1: Sepultura 92A/444,
inumação dupla Fig. 3: Dentição observada
no indivíduo 2.
5 cm
1 cm
Fig. 2: Dentição observada no
indivíduo 2, in situ e ex situ.
2 cm
1 cm
Fig. 4: 3º molar superior direito
Fig. 5: 2º pré-molar superior direito
Fig. 6: 1-Pré-molares superiores (direito/esquerdo); 2-pré-molares e
1º e 2º molares superiores esquerdos; 3- 3º molar inferior esquerdo
Pormenor das superfícies bucais
Pormenor da
superfície oclusal
1 Crawford, P.; Aldred, M.; Bloch-Zupan, A. 2007. Amelogenesis imperfecta. Orphanet Journal of Rare Diseases, 2: 17-27.
2 Aldred, M.; Crawford, P.; Savarirayan, R. 2003. Amelogenesis imperfecta – a classification and catalogue for the 21st century. Oral Diseases, 9: 19-23.
3 Alves, N (OMD 2530). 2014. Comunicação pessoal. Hospital da Misericórdia da Mealhada.
4 Crawford, P.; Alfred, M. 1989. Regional odontodysplasia: a bibliography. Journal of Oral Pathology, 18(5): 251-263.
5 Magalhães, A.; Pessan, J.; Cunha, R.; Delbem, A. 2007. Regional odontodysplasia: case report. Journal of Applied Oral Science, 15(6): 465-469.
6 Gundüz, K.; Zengin, Z.; Celenk, P.; Ozden, B.; Kurt, M.; Gunhan, O. 2008. Regional odontodysplasia of the deciduous and permanent teeth associated with eruption disorders: a case report. Medicina Oral, Patología Oral y
Cirurgía Bucal, 13(9): E563-E566.
7 Kirzioğlu, Z.; Ceyhan, D. 2009. The prevalence of anterior teeth with dens invaginatus in the western Mediterranean region of Turkey. International Endodontic Journal, 42(8): 727-734.
8 Munir, B.; Tirmazi, S.; Majeed, H.; Kahn, A.; Iqbalbangash, N. 2011. Dens invaginatus: aetiology, classification, prevalence, diagnosis and treatment considerations. Pakistan Oral & Dental Journal, 31(1): 191-198.
9 Čuković-Bagić, I.; Macan, D.; Dumančić, J.; Manojlocić, S.; Hat, J. 2010. Dilated odontome in the mandibular third molar region. Oral Surgery, Oral Medicine, Oral Pathology, Oral Radiology, and Endodontics, 109(2): e109-
e113.
10 Tervonen. S.; Stratmann, U.; Mokrys, K.; Reichart, P. 2004. Regional odontodysplasia: a review of the literature and report of four cases. Clinical Oral Investigations, 8(2): 45-51
11 O’Neil, D.; Koch, M.; Lowe, J. 1990. Regional odontodysplasia: report of case. ASDC Journal of Dentistry for Children, 57(6): 459-461.
12 Oehlers, F. 1957. Dens invaginatus (Dilated composite odontome). II. Associated Posterior Crown Forms and Pathogenesis. Oral Surgery, Oral Medicine, Oral Pathology, 10: 1302-1316.
13 Rushton, M. 1937. A collection of dilated composite odontomes. British Dental Journal, 63: 65-86.
14 Alani, A.; Bishop, K. 2008. Dens invaginatus. Part 1 : Classification, prevalence and aetiology, International Endodontic Journal, 41(12) : 1123-1136.
Referências bibliográficas
15 Neville, B.; Damm, D.; Allen, C.; Bouquot, J. 2004. Patologia Oral & Maxilofacial. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, S.A. ISBN 9788527708555.
16 King, N.; Wei, S. 1992. A Review of the Prevalence of Developmental Defects in Permanent Teeth. In Goodman, A.; Capasso, L. (eds.). Recent Contributions to the Study of Enamel Developmental Defects. Journal of
Paleopathology, Monographic Publication 2: 341-357.
17 Weets, J. 2009. A Promising Mandibular Molar Trait in Ancient Populations of Ireland. Dental Anthropology, 22: 65-72.
18 Goodman, G.; Martin, D.; Klein, C.; Peele, S.; Cruse, N.; McEwen, L.; Saeed, A.; Robinson, B. 1992. Cluster Bands, Wilson Bands and Pit Patches: Histological and Enamel Surface Indicators of Stress in the Black Mesa
Anasazi Population. In Goodman, A.; Capasso, L. (eds.). Recent Contributions to the Study of Enamel Developmental Defects. Journal of Paleopathology, Monographic Publication 2: 341-357.
19 Capasso, L.; Di Tota, G. 1992. Foramen Cæcum Molare as a developmental defect of the enamel. In Goodman, A.; Capasso, L. (eds.). Recent Contributions to the Study of Enamel Developmental Defects. Journal of
Paleopathology, Monographic Publication 2: 91-106.
20 Steckel. R. 2005. Young adult mortality following severe physiological stress in childhood: Skeletal evidence. Economics and Human Biology, 3: 314-328.
Agradecimentos
Bolsa de Doutoramento FCT SFRH/BD/70183/2010
Dr. Nuno Alves (OMD 2530) e Mª Helena Salvador, Hospital da Misericórdia da Mealhada.
Drª Manuela Abelho, Escola Superior Agrária de Coimbra
PEst-OE/SADG/UI0283/2013