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Principia XXXVIII Rio de Janeiro 2019
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019
Publicaccedilatildeo semestral do Departamento de Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de Letras da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
Editora-Chefe
Elisa Figueira de Souza Correcirca
Editora Assistente
Maacutercia Regina de Faria da Silva
Conselho Editorial
Amoacutes Coecirclho da Silva
Dulcileide Virginio do Nascimento Braga
Eduardo da Silva de Freitas
Elisa Costa Brandatildeo de Carvalho
Elisa Massae Sasaki
Fernanda Lemos de Lima
Francisco de Assis Florecircncio
Isabel Arco Verde Santos
Janete da Silva Oliveira
Luciene de Lima Oliveira
Luiz Fernando Dias Pita
Maacutercio Luiz Moitinha Ribeiro
Marco Antocircnio Abrantes de Barros
Pedro Ivo Zaccur Leal
Satomi Takano Kitahara
Endereccedilo para correspondecircncia
Departamento de Letras Claacutessicas e Orientais - Instituto de Letras
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
R Satildeo Francisco Xavier 524
Campus Maracanatilde Pavilhatildeo Joatildeo Lira Filho 11ordm andar sala 11026 Bloco B
Rio de Janeiro - RJ
CEP 20550-900
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SUMAacuteRIO
Apresentaccedilatildeo 6
Homem e mulher os criou
Isabel Arco Verde Santos 7
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
Carlos Eduardo Schmitt 13
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
Bruno Torres dos Santos 23
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher
alencariano
Heitor Victor 37
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
Marco Valeacuterio Classe Colonnelli 45
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
Dulcileide V do Nascimento Braga 55
A agogeacute espartana
Luciene de Lima Oliveira 63
DOI httpsdoiorg1012957principia201946484
APRESENTACcedilAtildeO
Em seu primeiro volume de 2019 a Revista Principia traz agrave luz artigos
contemplando natildeo apenas o olhar para os princiacutepios de nossa cultura greco-romana-
judaico-cristatilde mas um diaacutelogo entre passado e presente
No primeiro artigo por exemplo temos uma retomada e uma anaacutelise reflexiva
sobre os termos hebraicos na narrativa da criaccedilatildeo da mulher segundo a Biacuteblia Com esta
reflexatildeo a Profa Me Isabel Arco Verde Santos (UERJ) nos leva a rever as questotildees de
gecircnero na atualidade para quiccedilaacute diminuiacute-las
No segundo artigo selecionado passando ao domiacutenio latino o Prof Me Carlos
Eduardo Schmitt (doutorando da USP) se debruccedila sobre a vida e mui extensa obra do
orador Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio no contexto do reinado de Valentiniano I
Em seguida acompanhamos o pesquisador bolsista da CAPES e doutorando da
UFRJ Bruno Torres dos Santos em sua anaacutelise comparada sobre o real trabalho do
bioacutegrafo de imperadores romanos Suetocircnio e o uso que dele fez Machado de Assis em
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Teria Machado partido do pressuposto de que tal
comparaccedilatildeo nunca seria feita
Seguindo para o domiacutenio grego outra anaacutelise comparada nos aguarda o Prof
Heitor Victor mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada da UERJ
analisa as marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar
utilizando-se para isso de diaacutelogo com texto de Walter Benjamin
Mergulhando ainda mais na cultura helecircnica o Prof Dr Marco Valeacuterio Colonnelli
(UFPB) nos demonstra o potencial de concisatildeo dos siacutemiles homeacutericos conforme
aparecem na Iliacuteada atraveacutes do valor simboacutelico de determinados animais conforme
anotados por Aristoacuteteles em sua Investigaccedilatildeo dos animais
Na sequecircncia dois artigos que nos fazem refletir mais sobre a vida na Antiga
Greacutecia No primeiro a Profa Dra Dulci Nascimento Braga apresenta sua pesquisa que
visa demonstrar a praacutetica registrada na literatura de diversos tipos de profissionais da
magia os quais em muito a influenciaram
No segundo a Profa Dra Luciene Oliveira reflete sobre a formaccedilatildeo educacional
belicosa dos espartanos segundo a qual a coragem parece ser o maior valor de caraacuteter
que esses homens poderiam ter
Desejamos a todos uma boa leitura
Elisa Figueira de Souza Correcirca
Editora-chefe da Principia XXXVIII
DOI httpsdoiorg1012957principia201946485
HOMEM E MULHER OS CRIOU
Isabel Arco Verde Santos (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO O presente artigo retoma os textos da criaccedilatildeo e reflete reflete especificamente
na criaccedilatildeo da mulher Os termos hebraicos que acompanham a narrativa da criaccedilatildeo e se
relacionem com a figura feminina tecircm muito a nos contar Afinal qual o papel da mulher
e seu objetivo ao ser criada frente ao homem Haveria uma clara dimensatildeo de
superioridade ou inferioridade refletidas nestes relatos Em nossa sociedade de cultura
cristatilde o texto biacuteblico tem valor imensuraacutevel na relaccedilatildeo de gecircnero que vivemos em nossa
sociedade Voltar o olhar ao texto biacuteblico e buscar nele caminhos a partir da criacutetica textual
eacute uma forma de buscar respostas para diminuir as injusticcedilas que separam homens e
mulheres
PALAVRAS-CHAVE relatos de criaccedilatildeo relaccedilatildeo homem mulher Eva e Lilith
MALE AND FEMALE CREATED HE THEM
ABSTRACT This article analyzes the Hebrew texts of creation and reflects specifically
on the creation of women The Hebrew terms that accompany the creation narrative and
relate to the female figure have much to tell us What is the function of women and their
purpose when being created Would there be a clear dimension of superiority or
inferiority between men and women reflected in these texts In our Christian culture
society the biblical text has immeasurable value in the gender relationship we live in our
society Turning to the biblical text through textual criticism is a way of seeking answers
to reduce the injustices that separate men and women
KEYWORDS creation texts men and women relationship Eva and Lilith
Nosso objetivo neste primeiro momento eacute tratar do texto da criaccedilatildeo do homem e
da mulher Este texto eacute baacutesico para qualquer discussatildeo Os textos que iremos usar
encontram-se todos no livro de Bereshit ou Gecircnesis Eacute o primeiro livro da Torah ou
Pentateuco e traz nos seus primeiros capiacutetulos o relato da criaccedilatildeo
Eacute possiacutevel identificar dois relatos diferentes para esta histoacuteria Histoacuterias de
enfoques diferentes e origens tambeacutem diferentes O primeiro encontra-se em Gecircnesis
126-31 O segundo no capiacutetulo 215 a 24 deste mesmo livro Ambos tratam da criaccedilatildeo
do ser humano homem e mulher
No primeiro texto a designaccedilatildeo hebraica usada para homem eacute zakhar1 e neqebah2
para a mulher Estes termos indicam o que eacute masculino e o que eacute feminino E-mail verdesantosuolcombr 1 Zainkafresh 2 Nunqophbeit
Homem e mulher os criou
8 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
respectivamente O termo para masculino eacute da mesma raiz do verbo lembrar trazer a
memoacuteria O termo para feminino tem uma ideia mais ampla em sua raiz verbal mas para
o texto destaca-se a ideia de efeminar tornar feminino
Alguns autores interpretam a partir deste texto biacuteblico a criaccedilatildeo de um ser
androacutegino Adatildeo o primeiro homem seria ao mesmo tempo homem e mulher isto
porque no relato no verso 26 primeiramente acontece o termo Adam sem artigo e sem
a partiacutecula acusativa o que indicaria a criaccedilatildeo da humanidade uma coletividade o
chamado Adatildeo primordial3 Assim este verso no portuguecircs ficaria E disse Deus faccedilamos
(a) humanidade com nossa imagem e semelhanccedila
No verso 27 quando Deus abenccediloa a criaccedilatildeo desta humanidade o termo Adam
vem agora acompanhado de artigo HaAdam e da partiacutecula acusativa Aqui como haacute o
artigo antes do nome Adam entendemos que natildeo soacute o ser denominado Adatildeo estaacute sendo
abenccediloado pois em hebraico o artigo nunca ocorre antes de nome proacuteprio mas uma
indicaccedilatildeo definida daquilo que se estaacute abenccediloando Natildeo um ser humano qualquer mas o
ser humano criado
O texto pode ser traduzido entatildeo assim E abenccediloou Deus o ser humano com sua
imagem Com imagem de Deus o criou (ser humano - refere-se ao termo masculino
HaAdam) macho e fecircmea os criou A ideia androacutegina seria difiacutecil de contestar caso o
pronome que sucede o verbo criar no estivesse no plural Criou a eles e natildeo a ele
A ordem divina entende que o domiacutenio sobre a criaccedilatildeo eacute dado indiferentemente a Adatildeo
ao ser humano (bom enfatizar sem o artigo definido) subentende-se assim uma natildeo
discriminaccedilatildeo na ordem Ela eacute dada ao ser humano e natildeo exatamente a Adatildeo - o primeiro
homem - visto que a partiacutecula acusativa (Alephtaw) natildeo ocorre
Vale ainda salientar que a dimensatildeo da becircnccedilatildeo de Deus sobre Adatildeo
primeiramente e ressalvada a becircnccedilatildeo sobre macho e fecircmea sobre homemmulher se
concretiza em ser a imagem de Deus No verso 26 do capiacutetulo primeiro haacute o movimento
de criaccedilatildeo da humanidade ndash do ADAM sem artigo Este eacute criado agrave imagem e semelhanccedila
de Deus No verso 27 Deus abenccediloa Adatildeo ndash o homem especiacutefico o homem criado ndash com
sua imagem No verso 28 a becircnccedilatildeo se esclarece estendida sobre homem e mulher A ausecircncia ou presenccedila da partiacutecula de objeto direto (lsquoet ndash alephtaw) eacute de suma
importacircncia no estudo do texto isto porque ela ocorre indicando o objeto direto quando
este eacute especificado com o artigo ou quando ele por si mesmo como ocorre com qualquer
nome proacuteprio eacute especificado por natureza4
Esta questatildeo do artigo junto agrave palavra Adam merece um outro estudo e eacute preciso
atenccedilatildeo ao analisar o termo nestes primeiros capiacutetulos No capiacutetulo 3 por exemplo Adam
ainda aparece como nome plural (vide verso 17) designando um ser geral natildeo obstante
no verso 22 reaparece HaAdam indicando uma especificaccedilatildeo do termo entendendo o ser
homem Adatildeo
O texto da criaccedilatildeo do homem e mais objetivamente da mulher ocorre no capiacutetulo
seguinte em 215-24 O capiacutetulo dois retorna agrave histoacuteria da criaccedilatildeo de forma resumida
dando mais atenccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem e da mulher Na traduccedilatildeo de Almeida (A
BIacuteBLIA 1958) o verso 15 se lecirc assim Tomou pois o SENHOR Deus ao homem e o
colocou no jardim do Eacuteden para o cultivar e guardar O termo traduzido aqui por homem
3 Em primeiro lugar trecircs eram os gecircneros da humanidade natildeo dois como agora o masculino e o feminino
mas tambeacutem havia a mais um terceiro comum a estes dois do qual resta agora um nome desaparecida a
coisa androacutegino era entatildeo um gecircnero distinto tanto na forma como nome comum aos dois ao masculino
e ao feminino enquanto agora nada mais eacute que um nome posto em desonra (PLATAtildeO 1991 p 57-58) 4 Esta partiacutecula eacute muito importante na anaacutelise sintaacutetica da frase hebraica No caso do verbo transitivo direito
ela ajuda a identificar o predicado
Isabel Arco Verde Santos
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eacute HaAdam ou seja o nome aparece com o artigo o que se entende o nome do primeiro
homem ndash Adatildeo
Natildeo haacute exatamente uma sequecircncia neste segundo relato A narrativa da criaccedilatildeo tatildeo
cuidadosa e minuciosa exposta no relato anterior neste capiacutetulo jaacute natildeo mais importa No
verso 18 o comentaacuterio divino aponta para a preocupaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave solidatildeo de Adam
e a necessidade de fazer algueacutem segundo traduccedilatildeo de Almeida uma auxiliadora que lhe
seja idocircnea A aplicaccedilatildeo do artigo aqui no termo Adam parece indicar algo mais
especiacutefico tendo em vista o autor deixar claro que ele Adam estaacute soacute A vocalizaccedilatildeo
hebraica confunde porque o termo que se usa no verso 20 do capiacutetulo 2 ao dizer que natildeo
havia para Adam ndash e desta vez a vocalizaccedilatildeo sugere a inexistecircncia do artigo - quem fosse
eacutezer e neacuteged
Ocorre que neste verso 20 aparece o termo LeAdam Se a forma com artigo
acontecesse a contraccedilatildeo do artigo com a preposiccedilatildeo suporia a forma LaAdam E parece
ser a forma mais correta de se ler o texto dando continuidade a ideia que estaacute sendo
desenvolvida
HaAdam ndash Adatildeo - daacute nome aos elementos da criaccedilatildeo mas eacute Adam ndash o nome geral
a humanidade - que natildeo encontrou algueacutem para estar ao seu lado De uma forma ou de
outra o que se quer eacute justificar o relato da criaccedilatildeo da mulher Os termos usados por
Almeida auxiliadora e idocircnea traduzem o hebraico eacutezer e neacuteged respectivamente
Ora eacutezer eacute a palavra usada no conhecido Salmo 121 (Elevo os olhos para o monte
de onde me viraacute o socorro) Ressalte-se que o socorro natildeo eacute encontrado natildeo em seres
inferiores O salmista eleva os olhos busca acima de si o socorro Isto deixa claro que
natildeo haacute qualquer tipo de inferioridade na criaccedilatildeo da mulher
O outro termo neacuteged eacute uma preposiccedilatildeo que pode ser traduzida por defronte de
em frente contra diante de em oposiccedilatildeo defronte comparado com Como verbo na
forma simples paal significa ser contra ou estar defronte Na forma causativa no hiphil
o verbo significa contar revelar dizer algo ainda natildeo conhecido Estes termos vatildeo reaparecer no verso 20 quando apoacutes o homem ter dado nome a
todos os seres se conclui mais uma vez que natildeo havia nada que lhe fosse eacutezer e neacuteged O
hebraico nos aponta ideias mais fortes que a traduccedilatildeo de Almeida No portuguecircs
auxiliador tem a ideia de ajudante assistente conforme explica o Aureacutelio Idocircneo tem o
sentido de conveniente e adequado ainda segundo este mesmo dicionaacuterio
O que se procura na criaccedilatildeo para HaAdam (Adatildeo) eacute o seu oposto o seu contraacuterio
porque o objetivo eacute crescer e encher a terra Por outro lado procura-se algo que lhe venha
socorrer em sua solidatildeo O interessante poreacutem eacute que embora se entenda neacuteged como
uma possibilidade contraacuteria porque haacute a necessidade de encher a terra tanto este termo
como o termo socorro (eacutezer) natildeo vecircm em forma feminina mas masculina apesar de tanto
este quanto aquele ter uma forma hebraica similar feminina (ezrah e negdah)
Se prosseguirmos a leitura naquilo que seria o relato da criaccedilatildeo da mulher
identificamos que apoacutes cair em sono profundo Deus retirou uma costela de Adatildeo para
construir a mulher
Trecircs termos agora se encontram neste texto da criaccedilatildeo tzeacutelem a imagem de Deus
com que a humanidade foi abenccediloada eacute o termo que associa a humanidade a Deus que
ficou no capiacutetulo primeiro tzeacutelarsquo a costela retirada de Adatildeo que eacute a mateacuteria da qual eacute
feita a mulher Por uacuteltimo temos o termo lsquoeacutetzem que aparece na fala deslumbrada de
Adatildeo ao acordar de seu sono e ver a criaccedilatildeo de Deus na forma da mulher oriunda de sua
costela
O novo ser criado eacute denominado lsquoyshah Sua denominaccedilatildeo eacute da mesma raiz da
palavra lsquoysh que quer dizer homem Esta semelhanccedila dos dois nomes demonstra o
reconhecimento de si mesmo no outro ser criado HaAdam reconhece a mulher como algo
Homem e mulher os criou
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semelhante a ele - daiacute o uso dos termos tsela e tselem (costela e osso) O termo lsquoeacutetzem -
semelhanccedila ndash une em sua raiz os dois termos que identificam a mulher como parte da
humanidade HaAdam natildeo a identifica como lsquoysh pois percebe que existem diferenccedilas
entre eles ndash afinal ela eacute seu contraacuterio Este texto biacuteblico como outros textos do Gecircnesis tenta explicar criaccedilatildeo de
homem e mulher como partes da humanidade Sua preocupaccedilatildeo em desenvolver uma
narrativa que explique a criaccedilatildeo da mulher se daacute para que natildeo se incorra no erro de ignorar
que a mulher tambeacutem eacute abenccediloada com a semelhanccedila de Deus corroborada na criaccedilatildeo
que se faz da mesma mateacuteria
Natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo em inferiorizar a mulher Embora HaAdam a tenha
chamado de lsquoyshah seu nome apareceraacute somente no capiacutetulo seguinte apoacutes a expulsatildeo
do Eacuteden quando entatildeo ele a chamaraacute de Chawav ou Eva Se haacute superioridade porque ele
lhe daacute um nome esta superioridade eacute uma das consequecircncias do que se denominou pecado
e gerou a expulsatildeo do paraiacuteso
Os relatos cabaliacutesticos datildeo conta de criaccedilatildeo de uma outra mulher Esta ideia natildeo
soacute eacute desenvolvida pelos dois relatos de criaccedilatildeo mas tambeacutem pela fala de HaAdam
quando desperta de seu sono Ele diz segundo a traduccedilatildeo que fazemos aqui do hebraico
e disse o homem esta desta vez eacute osso dos meus ossos 5 Se desta vez HaAdam se
identifica com algo na criaccedilatildeo talvez teria acontecido algo antes com o qual ele natildeo teria
se adaptado ou natildeo se sentiria reconhecido
Lilith eacute a mulher que domina e seduz HaAdam que lhe aproxima de seus
institntos Chavah a segunda mulher eacute a que gera e constroacutei a histoacuteria Na religiatildeo a
primeira eacute tida como a mulher que deve ser desprezada apesar de figurar no imaginaacuterio
masculino pois retorna nos sonhos de Adatildeo Ela tambeacutem retorna aos textos biacuteblicos
principalmente nos sapiencieais mais especificamente no livro de proveacuterbios nos
capiacutetulos 1 a 9 quando se faz oposiccedilatildeo entre a sabedoria e a ignoracircncia entre a mulher
do povo e a estrangeira
Chavah vive com esta sombra - a mulher principal para a sociedade mas natildeo nos
desejos de seu marido A presenccedila de Lilith na cultura judaica natildeo eacute uacutenica Ela pode ser
encontrada no eacutepico de Gilgamesh que data de 2000 aEC na pseudoepiacutegrafe
denominada Testamento de Salomatildeo que data de 200 EC no Talmud e no Alfabeto de
Ben Sira6 do ano 800 de nossa era aproximadamente Alguns indicam haver menccedilatildeo
tambeacutem no livro biacuteblico de Isaiacuteas 3414 (a palavra Lilith vem da raiz laylah que significa
noite)
Lilith teria sido criada tatildeo bonita e interessante que logo arranjou
problemas com o primeiro o homem Ainda segundo a narrativa
miacutetica Eva foi criada para substituir Lilith Eva seria o oposto de
Lilith por sua vez reuacutene traccedilos marcantes de obediecircncia boa
imagem companheira submissa ao sacerdote ao Pai e agrave Lei e por
fim tambeacutem fonte de pecado e desobediecircncia (GOMES
ALMEIDA 2019)
Eacute importante tambeacutem observar que o capiacutetulo 2 de Gecircnesis este que se propotildee a
recontar a criaccedilatildeo focando a criaccedilatildeo do homem e da mulher eacute um texto javista-eloiacutesta
Observa-se que o capiacutetulo primeiro do gecircnesis eacute notoriamente um texto eloiacutesta Jaacute o
5 Cf capiacutetulo 2 versiacuteculo 23 do livro de Gecircnesis 6 Onde se tem o registro mais antigo sobre Lilith datado entre os seacuteculos VIII e X aC segundo Koltuv
(1986)
Isabel Arco Verde Santos
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capiacutetulo 2 refere-se a deus com o tetragrama sagrado (Yhwh) seguido da forma Elohim
O texto mistura entatildeo as duas fontes
A conclusatildeo de HaAdam natildeo necessariamente afirma a lenda mas abrem uma
possibilidade neste sentido O que se pode concluir eacute que natildeo havia nada na criaccedilatildeo com
a qual ele HaAdam se identificasse
A preocupaccedilatildeo da leitura biacuteblica e as possiacuteveis interpretaccedilotildees relacionando ao
papel da mulher na sociedade ainda precisam ser mais bem resolvidas Mesmo que se
faccedila a presenccedila de Lilith no texto como a histoacuteria omitida e natildeo contada porque precisava
ser reescrita na forma de Chawah ainda assim carece a ideia de submissatildeo e inferioridade
que culturalmente ainda se insiste afirmar
O texto Eloiacutesta que domina o capiacutetulo primeiro do Gecircnesis natildeo tem qualquer
preocupaccedilatildeo em distinguir homem e mulher O capiacutetulo segundo na comunhatildeo Javista-
Eloiacutesta tem a preocupaccedilatildeo em frisar que satildeo diferentes e ateacute mesmo contraacuterios mas que
natildeo perdem a noccedilatildeo da mesma mateacuteria e partilham da mesma becircnccedilatildeo da semelhanccedila
divina Natildeo haacute uma prioridade A confusatildeo que suscita a ideia androacutegina surge da essecircncia
comum dois elementos criados partes de uma soacute ideia a humanidade
A ordem na criaccedilatildeo tambeacutem natildeo gera conclusotildees de superioridade Se
entendecircssemos que os primeiros seriam submissos aos uacuteltimos seres criados entendendo
o homem a coroa da criaccedilatildeo o ser acima de toda a criaccedilatildeo poderiacuteamos supor que a
mulher criada depois dele lhe seria entatildeo superior Colocaccedilotildees deste tipo natildeo prosperam
na anaacutelise do texto biacuteblico porque haacute que se considerar o texto como um todo Ou entatildeo
seriam os astros celestes criados primeiros inferiores aos mares ou os animais Eacute certo
que a ordem natildeo sugere algum tipo de superioridade
Enfim o que se vecirc depois da criaccedilatildeo eacute uma luta constante da figura feminina pela
conquista de seu espaccedilo luta esta que infelizmente ainda persiste A necessidade de ser
semelhanccedila de Deus e natildeo soacute costela
REFEREcircNCIAS
A BIacuteBLIA Sagrada Trad Joatildeo Ferreira de Almeida Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do
Brasil 1958
BIacuteBLIA Hebraica Stuttgartensia 4a Ed Stuttgart Deustsche Bibelgesellschaft 1967
BEREZIN Rifka Dicionaacuterio Hebraico-Portuguecircs Satildeo Paulo EDUSP 1995
EVEN-SHOSHAN Abraham Hamilon Hechadash 3 Ed Jerusalm Qryiat-sefer
1972 3 vol
FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa
15a ed Rio de Janeiro Nova Fronteira
GOMES Antonio Maspoli de Arauacutejo ALMEIDA Vanessa Ponstinnicoff de O Mito de
Lilith e a Integraccedilatildeo do Feminino na Sociedade Contemporacircnea Revista acircncora digital
de Ciecircncias da Religiatildeo Disponiacutevel em ltwwwrevistaancoradigitalcombrgt
Homem e mulher os criou
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GOTTWALD Norman K Introduccedilatildeo socioliteraacuteria agrave Biacuteblia hebraica Traduccedilatildeo
Anacleto Alvarez revisatildeo H Dalbosco Satildeo Paulo Paulinas 1988
KOLTUV Barbara Black O Livro de Lilith psicologiamitologia Satildeo Paulo Cultrix
1986
PAIVA Vera Evas Marias e Liliths as voltas do feminino 2a Ed Rio de Janeiro
Brasiliense 1993
PLATAtildeO Diaacutelogos Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Traduccedilatildeo e
notas de Joseacute Cavalcante de Souza Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa 5 Ed Satildeo Paulo
Nova Cultural 1991 (Coleccedilatildeo Os pensadores)
DOI httpsdoiorg1012957principia201946508
AS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO E SEU IMPACTO NO
REINADO DE VALENTINIANO I
Carlos Eduardo Schmitt
RESUMO Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio (c 340-402) possui uma extensa obra da qual
chegaram agrave contemporaneidade mais de 900 cartas (epistolae) 49 informes (relationes)
e 8 discursos (orationes) Suas obras de maior destaque satildeo as Orationes I II e III
proferidas entre 369-370 e sua Relatio III escrita durante seu tempo como prefeito de
Roma em 384 Tais obras lhe renderam a fama de melhor orador de seu tempo ainda em
vida Nosso trabalho tem como objetivo expor o impacto que as Orationes I II e III
tiveram na carreira do orador e na relaccedilatildeo entre o Senado e o reinado de Valentiniano I
A partir de suas Orationes ressaltaremos a delicada missatildeo do orador enviado de Roma
agrave Treacuteveris para servir como ponte entre o Senado e o imperador
PALAVRAS-CHAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I
SYMMACHUSrsquo ORATIONES I II AND III AND ITS IMPACT IN THE
KINGDOM OF VALENTINIAN I
ABSTRACT Quintus Aurelius Symmachus Eusebius (c 340-402) has an extensive work
from which more than 900 letters (epistolae) 49 reports (relationes) and 8 discourses
(orationes) survived His most outstanding works are Orationes I II and III pronounced
between 369-370 and his Relatio III written during his time as praefectus of Rome in
384 Such works earned him the fame of the best speaker of his time being still alive Our
paper aims to expose the impact that Orationes I II and III had on the speakers career
and on the relation between the Senate and the reign of Valentinian I From his Orationes
we will highlight the delicate mission of the speaker sent from Rome to Trier to serve as
a bridge between the Senate and the emperor
KEYWORDS Symmachus Orationes Valentinian I
LAS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO Y SU IMPACTO EN EL
REINADO DE VALENTINIANO I
RESUMEN Quinto Aurelio Siacutemaco Eusebio (c 340-402) tiene una extensa obra de la
cual chegaron a la contemporaneidad maacutes de 900 cartas (epistolae) 49 informes
(relationes) e 8 discursos (orationes) Sus obras de mayor destaque son las Orationes I
Doutorando pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail carlosschmitt90gmailcom
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
14 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6
II y III pronunciadas entre el 369-370 y su Relatio III escrita durante su tiempo como
prefecto de Roma en 384 Tales obras le rindieron la fama de mejor orador de su tiempo
auacuten en vida Nuestro artiacuteculo tiene como objetivo exponer el impacto que las Orationes
I II y III tuvieron en la carrera del orador y en la relacioacuten entre el Senado y el reinado de
Valentiniano I A partir de sus Orationes resaltaremos la delicada misioacuten del orador
enviado de Roma a Treacuteveris para servir como puente entre el Senado y el emperador
PALAVRAS CLAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I
INTRODUCcedilAtildeO
Joseacute Antonio Gallego (2003 p 153) esclarece que a obra mais famosa de Siacutemaco
foi seu informe terceiro apesar de que durante a Idade Meacutedia as epistolae foram suas
obras mais valorizadas sendo utilizadas como modelo para escrever uma carta Contudo
em seu proacuteprio tempo ele era famoso por ser um grande orador Eacute por isso que Gallego
(2003 p 154) pondera como injusto o que a histoacuteria fez com Siacutemaco Apenas oito de
seus discursos chegaram ateacute noacutes sendo que estes satildeo dos iniacutecios de sua carreira aleacutem de
estarem num manuscrito palimpsesto com grandes lacunas Deve-se ter presente tambeacutem
que ldquoSiacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador romano se excetuarmos os escritores cristatildeosrdquo1
(GALLEGO 2003 p 154) Em outras palavras Siacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador da
religiatildeo tradicional romana
Cristiana Sogno (2006 p viii) faz uma reconstruccedilatildeo da carreira poliacutetica de
Siacutemaco atraveacutes de uma anaacutelise minuciosa de seus escritos Ele ocupa uma posiccedilatildeo
peculiar entre os autores latinos pela quantidade de escritos que nos chegaram A autora
defende que a razatildeo pelo desconhecimento de Siacutemaco por parte dos estudantes de
Claacutessicas e de Histoacuteria Antiga eacute o fato de natildeo existir uma traduccedilatildeo completa do corpus
simaquiano em nenhuma liacutengua moderna Sogno clarifica tambeacutem que a ediccedilatildeo de Otto
Seeck do seacuteculo XIX continua sendo o modelo do texto
Sogno (2006 p 1) clarifica que a primeira fase da carreira de Siacutemaco estaacute bem
documentada em suas orationes Sua nominaccedilatildeo como embaixador senatorial em 368 foi
um marco em sua vida sendo que sua reputaccedilatildeo como orador foi estabelecida na corte de
Valentiniano I tornando-se uma ponte entre o Senado e o imperador
Apesar de que Siacutemaco tenha a fama de ser um grande orador suas orationes
desapareceram ateacute seu redescobrimento no seacuteculo XIX Sabe-se que Siacutemaco ficou
conhecido por ser um bastiatildeo em defesa da religiatildeo tradicional romana sobretudo durante
seu periacuteodo como Prefeito de Roma por volta de 384 E Sogno (2006 p 1) sem perder
a oportunidade relata uma ldquoironia do destinordquo sendo que foi um cardeal da Igreja
Catoacutelica Romana Angelo Mai quem descobriu e publicou os fragmentos de suas
orationes em 1815 Tratava-se de um palimpsesto onde por cima havia uma traduccedilatildeo
latina das atas do Conciacutelio de Calcedocircnia O cardeal destruiu o documento para que as
orationes pudessem ser recuperadas Apesar disso Sogno (2006 p 2) constata como
esses discursos de Siacutemaco satildeo ainda pouco estudados em comparaccedilatildeo com outros
escritos seus como suas epistolae Esses oito discursos satildeo apenas uma parte de toda a
produccedilatildeo simaquiana Haacute tambeacutem um panegiacuterico em honra do usurpador Maacuteximo que
por razotildees oacutebvias natildeo foi publicada
1 ldquoSiacutemaco es el uacuteltimo gran orador romano si dejamos a un lado a los escritores cristianosrdquo
Carlos Eduardo Schmitt
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ORATIONES I II E III
Foi no inverno do ano 368-369 que Siacutemaco naquele tempo um jovem senador que
iniciava sua carreira poliacutetica foi enviado de Roma agrave Treacuteveris com o objetivo de dirigir
uma laudatio uma oraccedilatildeo de louvor a Valentiniano I por motivo de seus cinco anos de
reinado (Quinquennalia) Sogno (2006 p 2) destaca que tal missatildeo natildeo significava
apenas um reconhecimento por parte do Senado de seus dotes retoacutericos mas constituiacutea
tambeacutem uma oportunidade iacutempar para crescer na carreira poliacutetica e fazer amigos na corte
Apesar de ser um momento festivo Sogno (2006 pp 1-2) esclarece que constituiacutea
uma situaccedilatildeo delicada Ateacute o momento Valentiniano I natildeo havia estado em Roma e essa
era a primeira vez que ele se encontraria com uma delegaccedilatildeo senatorial Sendo assim
Siacutemaco tinha a importante missatildeo de estabelecer boas relaccedilotildees com o imperador Havia
natildeo apenas o discurso mas tambeacutem certa quantidade de ouro (aurum oblaticium2) que os
senadores ofereciam ldquovoluntariamenterdquo ao imperador Em Roma os senadores
aguardavam ansiosos pelo regresso de Siacutemaco e por informaccedilotildees de primeira matildeo
Eacute estranho ver que um senador tatildeo jovem ndash Siacutemaco natildeo tinha ainda nem trinta
anos ndash recebesse tamanha honra e responsabilidade Sogno (2006 p 6) sem colocar em
xeque a capacidade do orador argui que isso foi possiacutevel em parte graccedilas ao Prefeito de
Roma naquele entatildeo Pretextato responsaacutevel direto pela arrecadaccedilatildeo da oferenda de ouro
ao imperador e pela escolha do ldquocorretordquo orador que a levaria Haacute de se ter presente que
das epistolae de Siacutemaco vaacuterias delas tecircm Pretextato como destinataacuterio
Siacutemaco natildeo se limitou a estreitar laccedilos de amizade apenas no Senado Buscou
tambeacutem amigos na corte imperial E um de seus principais foi Ausocircnio tutor de Graciano
filho de Valentiniano I Sabe-se que eles trocavam correspondecircncias antes mesmo de
Siacutemaco ter ido agrave Treacuteveris e que havia entre eles uma muacutetua admiraccedilatildeo (SOGNO 2006
p 6)
A prova de que o panegiacuterico (laudatio) de Siacutemaco dirigido a Valentiniano foi um
sucesso de acordo com Sogno (2006 pp 8-9) foi o fato do proacuteprio imperador ter
solicitado ao orador um segundo panegiacuterico Siacutemaco eacute consciente de sua responsabilidade
e da honra que lhe eacute aferida e expressa esses sentimentos em seu discurso Consciente de
que o objetivo primeiro de uma laudatio eacute agradar ao puacuteblico Siacutemaco expotildee que tudo o
que anuncia e proclama eacute verdadeiro baseado em fatos que vivenciou e tambeacutem naqueles
de que ouviu o testemunho
Sogno (2006 p 9) classifica o primeiro panegiacuterico de Siacutemaco a Valentiniano
como um encocircmio biograacutefico composiccedilatildeo descrita em detalhe no terceiro livro da
Institutio oratoria de Quintiliano Nele Siacutemaco reconhece e celebra publicamente o
estabelecimento da dinastia valentiniana realizando um resumo dos seus cinco primeiros
anos de reinado desde que tinha sido escolhido pelo exeacutercito O encocircmio biograacutefico
como detalha Sogno requer discorrer tambeacutem sobre os ancestrais e os descendentes da
nova dinastia
2 ldquoOs clariacutessimos ie os indiviacuteduos de categoria senatorial tinham ainda que contribuir com o aurum
oblaticium oferecido pelo Senado por ocasiatildeo dos aniversaacuterios dos imperadoresrdquo (SILVA amp MENDES
2006 p 212) Isso era parte da reforma fiscal iniciada por Diocleciano e ampliada por Constantino
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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Satildeo estrateacutegicas as alusotildees que Siacutemaco faz do lugar de nascenccedila de Valentiniano
e daqueles onde ele acompanhou seu pai em campanhas militares O futuro imperador
nasceu na fria regiatildeo da Iliacuteria e acompanhou seu pai no calor escaldante da Aacutefrica Isso
significa natildeo soacute que ele estaacute preparado para qualquer dificuldade que advir mas
sobretudo que eacute um homem que conhece seu reino muito bem porque jaacute esteve em
diversas partes dele Todas essas dificuldades unidas aos inimigos enfrentados lhe
qualifica como a melhor pessoa para reger o Impeacuterio (SOGNO 2006 p 10) Um cuidado
que Siacutemaco tem em sua laudatio eacute o de reforccedilar a legitimidade de Valentiniano sobretudo
ao dizer que ningueacutem protestou quando o elegeram dando a impressatildeo de que houve um
consenso geral no exeacutercito (SOGNO 2006 p 12)
O conteuacutedo dos panegiacutericos eacute exagerado e por isso deve-se ter cuidado ao tomaacute-
los como fonte histoacuterica No entanto nos revelam muito sobre o tempo de Siacutemaco e sobre
ele mesmo No primeiro dedicado a Valentiniano I por motivo de seu primeiro lustro no
poder vemos como Siacutemaco enaltece a vida e a obras do imperador desde sua tenra
formaccedilatildeo nas diversas partes do Impeacuterio seguindo o bom exemplo de seu pai Graciano
Com verbosidade Siacutemaco atesta que natildeo havia outra pessoa melhor para o posto de
imperador que o proacuteprio Valentiniano superior a qualquer outro liacuteder Homem valente
assentou-se na parte mais perigosa do Impeacuterio Treacuteveris e lutou contra o inimigo mais
feroz dos romanos os alamanos Aleacutem de guerreiro eacute saacutebio e prefere defender os
interesses do Estado que os seus proacuteprios Eacute por isso que deixou a seu irmatildeo Valente
cuidar sozinho da rebeliatildeo de Procoacutepio uma guerra interna enquanto ele se dedicava a
proteger o Impeacuterio dos inimigos externos Foi um imperador que preferiu o bem comum
ao de sua proacutepria famiacutelia Realizou obras incriacuteveis
O comeccedilo do segundo panegiacuterico a Valentiniano indica sua razatildeo de ser o terceiro
consulado do imperador ao lado de seu irmatildeo Valente em 370 Siacutemaco
estrategicamente revela que iraacute relatar apenas alguns acontecimentos sem exaustatildeo
Deixaraacute todos os outros feitos natildeo mencionados para que sejam cantados pelos poetas
Parabeniza ao imperador por ser sua fonte de inspiraccedilatildeo e o restaurador da liberdade de
expressatildeo Ao mesmo tempo que Siacutemaco preza ao imperador por ter dado assunto que
fosse cantado e escrito como suas grandes vitoacuterias sobre os alamanos ele tambeacutem lembra
o imperador de que sem esses oradores e poetas haacute o silecircncio e que o silecircncio eacute o pior
inimigo da grandeza (SOGNO 2006 p 12)
Siacutemaco se dedica basicamente a enaltecer o imperador por suas conquistas e
fortificaccedilotildees ao longo do Reno e de que se impressionou ao ter visto as mesmas
pessoalmente Enaltece-o por seu terceiro consulado mas sobretudo se centra em seus
avanccedilos militares Entre outras exaltaccedilotildees Siacutemaco o parabeniza por ser exemplo de
governante ideal que eacute amado e temido por seu povo Tambeacutem o parabeniza por haver
aceitado o Impeacuterio de forma relutante (SOGNO 2006 p 14) Na verdade Siacutemaco
exaltou muito mais as fortificaccedilotildees erguidas por Valentiniano do que suas batalhas contra
os baacuterbaros Sogno (2006 p 15) pensa que isso se deve principalmente pelo acontecido
com Siaacutegrio uacutenico sobrevivente de uma batalha que foi considerado um desertor pelo
imperador E isso aconteceu exatamente quando o orador se encontrava na corte
O segundo panegiacuterico dedicado tambeacutem a Valentiniano I tinha por motivo
a designaccedilatildeo do imperador para o seu terceiro consulado que ele havia recebido como
um reconhecimento por seus feitos recentes Sendo assim o panegiacuterico deveria se centrar
em suas atividades recentes as quais lhe fizeram merecedor do terceiro consulado
Siacutemaco inicia dizendo que o consulado era uma recompensa insuficiente para
Valentiniano comparado com tudo o que perpetrou no Reno Mas como natildeo haacute algo
Carlos Eduardo Schmitt
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maior que eles possam ofertar Siacutemaco solicita ao imperador que se contente com o
melhor presente e honra que o Senado lhe pode oferecer E a partir de entatildeo o orador
narra as atividades beacutelicas de Valentiniano contra os alamanos e suas construccedilotildees ao
longo do Reno Em um determinado momento Siacutemaco o elogia por haver restaurado a
liberdade de expressatildeo no Impeacuterio Termina exaltando sua sobriedade
No panegiacuterico de Siacutemaco dedicado a Graciano vecirc-se claramente como ele se
dirige ao jovem imperador como a esperanccedila de Roma Durante todo o discurso o orador
enfatiza sua juventude enaltecendo-a Sogno acredita que essa insistecircncia seja uma forma
de favorecer a aceitaccedilatildeo do imperador possivelmente criticado pela aristocracia romana
por sua pouca idade (SOGNO 2006 p 18) Como recompensa por sua performance na
corte Siacutemaco recebeu o tiacutetulo honoriacutefico de comes tertii ordinis e trecircs anos depois em
Roma recebeu o proconsulado da Aacutefrica (373-374)
O panegiacuterico ao menino Graciano talvez tenha sido o mais difiacutecil para Siacutemaco
elaborar Devido a sua pouca idade objetivamente natildeo havia feitos grandiosos do qual
ele fosse sujeito No entanto Siacutemaco surpreendeu mesmo assim Vecirc em Graciano o iniacutecio
de uma nova eacutepoca porque eacute um imperador ainda menino e sendo assim estaraacute bem
treinado em todos os campos Seu louvor se centra entatildeo na juventude do imperador e
em seu governo ao lado de seu pai Valentiniano e de seu tio Valente Aos baacuterbaros natildeo
lhes restaraacute mais do que a escravidatildeo e eles jaacute sabem disso
OS DOZE PANEGIacuteRICOS LATINOS
Tendo em vista as trecircs orationes mencionadas podemos fazer uma breve anaacutelise
dos famosos doze panegiacutericos latinos com o intuito de entender melhor as diversas
asserccedilotildees simaquianas bem como seu estilo Susanna Morton Braund (2005 pp 90-91)
descreve que de forma convencional a oratoacuteria grega foi divida em trecircs tipos discurso
forense deliberativo e epidiacutectico O primeiro tambeacutem chamado de judicial eram aqueles
proferidos nos tribunais no foacuterum os discursos deliberativos eram aqueles proferidos
diante do Senado ou de uma assembleia do povo e os discursos epidiacutecticos eram aqueles
escritos para uma comemoraccedilatildeo especial Este uacuteltimo para Braund se revestiu de
especial importacircncia durante o principado como panegiacuterico (elogio)
Uma das coisas mais importantes para um aristocrata romano era o
reconhecimento pelas pessoas ao seu redor de seu valor puacuteblico e permanente
ndash sua auctoritas e sua dignitas Idealmente isso seria celebrado em panegiacuterico
ndash isto eacute louvor escrito em prosa ou verso3 (2005 p 110)
O panegiacuterico era um elemento central na poliacutetica romana e na vida puacuteblica sob
o Principado ndash e jaacute o era haacute muito tempo De fato alguns dos nossos mais
antigos textos latinos sobreviventes os epitaacutefios aos membros da famiacutelia
Cipiatildeo que datam do terceiro e segundo seacuteculos AEC (Scipionum elogia)
satildeo os louvores (poacutestumos) dos grandes homens4 (2005 p 112)
3 ldquoOne of the most important things for a Roman aristocrat was the recognition by people around him of
his public worth and standing ndash his auctoritas and his dignitas Ideally this would be celebrated in
panegyric ndash that is praise written in prose or verserdquo 4 ldquoPanegyric was a central element in Roman politics and public life under the Principate ndash and had been
so for a long time already In fact some of our earliest surviving Latin texts the epitaphs to members of
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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Ainda sobre o panegiacuterico e sua difusatildeo durante este periacuteodo do Impeacuterio Romano
Mitchell (2015 p 19) o relaciona agrave natureza autoritaacuteria do mesmo Segundo ele a
dissidecircncia aberta natildeo era tolerada e isso se vecirc pelos extremos dos discursos que satildeo de
louvor ou vituperaccedilatildeo mas raramente se encontram num meio termo Apesar de
parecerem pouco confiaacuteveis o autor defende a utilizaccedilatildeo de panegiacutericos e poemas como
fontes histoacutericas para o periacuteodo alegando que seus exageros omissotildees e estilos retoacutericos
expressam de forma criacutetica muito daquele momento Segundo Mitchell as obras mais
significativas neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos5
As obras-chave neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos que
provavelmente foram compilados pelo orador gaulecircs Pacato e foram
prefaciados pelo longo panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem para o imperador Trajano
(I) Aleacutem do trabalho do proacuteprio Pacato de 389 em louvor a Teodoacutesio I (II)
este inclui discursos a Maximiano em 289 (X de Cl Mamertino o Velho) e
291 (XI) a Constacircncio pai de Constantino em 296 e 298 (IX) para o
casamento de Constantino e Fausta em 307 (VII) a Constantino em 310 (VI)
312 (V) 314 (XII) e 321 (IV de Nazaacuterio) e a Juliano em 362 (III de Cl
Mamertino o Jovem em sua proacutepria nomeaccedilatildeo para o consulado)6
Mitchell (2015 p 4) realccedila que conforme o Impeacuterio crescia foi se dando cada
vez mais ecircnfase agrave religiatildeo do Estado Acreditava-se que ele era mantido devido ao apoio
dos deuses e os imperadores romanos que em parte controlavam as atividades religiosas
em seus territoacuterios eram vistos como aqueles que mantinham o pacto de paz com os
deuses a pax deorum E segundo Mitchell todos os meios de propaganda estavam
imbuiacutedos desta ideologia inclusive os discursos panegiacutericos
Braund (2005 129) especifica que o cocircnsul Pliacutenio entregou seu panegiacuterico ao
imperador Trajano no iniacutecio de seu reinado Era um discurso de gratidatildeo onde ele
aproveita para contrastar a imagem do bom Trajano com a do mau Domiciano imperador
de 81 a 96 EC Para Braund (2005 p 130)
Este texto revela dois modelos contrastantes de patrono ou imperador - e afinal
de contas o imperador era apenas o patrono mais poderoso em Roma O bom
patrono ou imperador eacute marcado por sua abertura acessibilidade e atitude
amigaacutevel e tolerante O mau patrono ou imperador eacute marcado pelo abuso
tiracircnico de seus poderes para tomar decisotildees de vida e morte sobre todos ao
seu redor do menor escravo ao senador mais eminente A celebraccedilatildeo do bom
modelo e a condenaccedilatildeo do ruim encontram-se em toda a gama de textos da
literatura latina incluindo poesia eacutepica e pastoral poesia liacuterica e elegiacuteaca
saacutetira e epigrama historiografia oratoacuteria e romance Isso natildeo nos deixa
duvidar de que o modo como um homem poderoso se comportava com seus
the Scipio family dating from the third and second centuries BCE (the Scipionic elogia) are the
(posthumous) praises of great menrdquo 5 Ver tambeacutem BERRY D H Oratory In HARRISON Stephen (ed) A Companion to Latin Literature
Oxford Blackwell 2005 pp 267-268 6 ldquoKey works in this genre are the twelve Latin panegyrics which were probably compiled by the Gallic
orator Pacatus and were prefaced by the younger Plinyrsquos lengthy panegyric for the emperor Trajan (I)
Apart from Pacatusrsquo own work of 389 in praise of Theodosius I (II) this includes speeches for
Maximianus in 289 (X by the elder Cl Mamertinus) and 291 (XI) for Constantius the father of
Constantine in 296 (VIII) and 298 (IX) for the marriage of Constantine and Fausta in 307 (VII) for
Constantine in 310 (VI) 312 (V) 314 (XII) and 321 (IV by Nazarius) and for Julian in 362 (III by the
younger Cl Mamertinus on his own appointment to the consulship)rdquo
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pares e seus subordinados era crucial para sua posiccedilatildeo social e reputaccedilatildeo
poliacutetica7
Bruce Gibson (2005 p 72) critica a postura deste gecircnero por natildeo se envolver
abertamente com a poliacutetica atual de seu tempo senatildeo de modo indireto e o panegiacuterico
modelo natildeo foi a exceccedilatildeo ldquoMesmo o Panegiacuterico de Pliacutenio um discurso em louvor ao
imperador Trajano dado por ocasiatildeo de seu consulado em setembro de 100 EC oferece
sua criacutetica de governo indiretamente atraveacutes da estrateacutegia de atacar o principado de
Domicianordquo8
CONSIDERACcedilOtildeES PARCIAIS
As condiccedilotildees do discurso representavam um novo momento para o Impeacuterio De
acordo com A D Lee (2013 p 1) foi por meados do seacuteculo IV que o Impeacuterio Romano
havia alcanccedilado quase tanto territoacuterio quanto durante o seacuteculo II periacuteodo conhecido pelo
auge do poder romano Foi o periacuteodo dos imperadores guerreiros que se viram forccedilados
a se retirar dos confortos de Roma para proteger suas fronteiras (LEE 2013 p 5) Roma
foi substituiacuteda como residecircncia imperial por Treacuteveris Milatildeo Sirmio e Antioquia Com a
criaccedilatildeo de Constantinopla por parte do imperador Constantino essa situaccedilatildeo soacute se
agravou De qualquer forma o tema que domina o seacuteculo e que dominou os discursos
traduzidos de Siacutemaco foi a histoacuteria militar (MITCHELL 2015 pp 11-12)
Natildeo eacute um Impeacuterio em decadecircncia mas sim um momento de transiccedilatildeo Mitchell
(2015 p 56) se daacute conta de como por exemplo Diocleciano Joviano e Valentiniano
vieram de origens semelhantes Eram todos militares de meia idade nascidos nas
proviacutencias da Iliacuteria o que plasma uma mudanccedila no eixo do poder Mitchell (2015 pp 56-
57) frisa como desde a ascensatildeo de Diocleciano em 284 ateacute a morte de Teodoacutesio I em
395 o Impeacuterio foi governado por esses imperadores guerreiros que aniquilavam inimigos
internos e externos O Estado estava centrado em guerras e batalhas Calcula-se que mais
de dois terccedilos de seu orccedilamento anual eram gastos em atividades militares atividades das
quais os imperadores participavam pessoalmente
Siacutemaco soube valer-se da situaccedilatildeo para estreitar laccedilos com a corte e obter ascensatildeo
poliacutetica Esse periacuteodo foi especial tambeacutem por sua produccedilatildeo literaacuteria e pela quantidade
de escritos que sobreviveu ao tempo Segundo OrsquoDonnel (2015 p 161) haacute mais literatura
latina que nos chegou entre 350 e 450 do que de qualquer outro periacuteodo mais ateacute mesmo
que a eacutepoca de ouro latina entre o final da Repuacuteblica e comeccedilo do Impeacuterio9
7 ldquoThis text reveals two contrasting models of patron or emperor ndash and after all the emperor was just the
most powerful patron in Rome The good patron or emperor is marked by his openness accessibility and
friendly and tolerant attitude The bad patron or emperor is marked by his tyrannical abuse of his powers
to make life and death decisions about everyone around him from the lowest slave to the most eminent
senator Celebration of the good model and condemnation of the bad model are found in the entire range
of texts of Latin literature including epic and pastoral poetry lyric and elegiac poetry satire and epigram
historiography oratory and the novel This can leave us in no doubt that how a powerful man behaved
towards his peers and his subordinates was crucial to his social standing and to his political reputationrdquo 8 ldquoEven Plinyrsquos Panegyricus a speech in praise of the emperor Trajan given on the occasion of his
consulship in September AD 100 offers its critique of rulership indirectly through the strategy of
assailing the principate of Domitianrdquo
9 ldquoWe have more surviving Latin literature from this century between 350 and 450 than for any comparable
period before that including the more famously golden age of Caesar Cicero and Vergilrdquo
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946510
OS IMPERADORES SUETONIANOS EM MEMOacuteRIAS POacuteSTUMAS
DE BRAacuteS CUBAS
Bruno Torres dos Santos
RESUMO O presente trabalho busca discutir atraveacutes da anaacutelise de traduccedilotildees proacuteprias as
referecircncias aos imperadores romanos descritos e consagrados pelo bioacutegrafo Suetocircnio em Vida
dos Ceacutesares na obra Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis Aquele no
iniacutecio do seacuteculo II da era comum demonstrou os viacutecios e as virtudes dos imperadores inclusive
enfatizando os escacircndalos de suas cortes Jaacute Machado trouxe agrave tona as vaidades e as ambiccedilotildees
da burguesia brasileira do seacuteculo XIX Entatildeo analisaremos e interpretaremos o uso destes
personagens histoacutericos para a criaccedilatildeo literaacuteria no referido romance partindo do pressuposto de
que eles poderiam passar despercebidos por leitores modernos que natildeo recuperassem as
referecircncias agrave cultura agrave literatura e agrave histoacuteria da Roma Antiga
PALAVRAS-CHAVE Machado de Assis Imperadores romanos Suetocircnio
THE SUETONIAN EMPERORS IN THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF
BRAS CUBAS
ABSTRACT The present work aims through the analysis of own translations the references to
the Roman emperors described and consecrated by the biographer Suetonius in Life of the
Caesars in the novel Posthumous Memoirs of Bras Cubas by Machado de Assis Suetonius
at the beginning of the second century of the common age demonstrated the vices and virtues
of the emperors including emphasizing the scandals of their courts Machado has already
brought to light the vanities and ambitions of the Brazilian bourgeoisie of the nineteenth
century Then we will analyze and interpret the use of these historical characters for the literary
creation in the novel assuming that they could go unnoticed by modern readers who do not
recover references to the culture literature and history of Ancient Rome
KEYWORDS Machado de Assis Roman emperors Suetonius
Entre os mais diversos romancistas com que a literatura brasileira teve contato natildeo haacute
nome maior do que Machado de Assis Tal personalidade nasceu no Morro do Livramento
Eacute doutorando no PPGLC-UFRJ bolsista CAPES sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Anderson Esteves e integrante
discente do grupo de pesquisa ATRIVM ndash Espaccedilo Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (PPGLC-UFRJ) E-
mail brunots_hotmailcom
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
24 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
localizado na aacuterea central do Rio de Janeiro proacuteximo a zona portuaacuteria em junho de 1839
Oriundo de famiacutelia pobre estudou em escolas puacuteblicas mas nunca frequentou uma
universidade Dedicou-se aos mais diversos gecircneros literaacuterios escrevendo poesia crocircnica
teatro conto romance Tambeacutem foi criacutetico literaacuterio e jornalista Testemunhou a Aboliccedilatildeo da
Escravatura e as mudanccedilas poliacuteticas no Brasil quando o Impeacuterio foi entatildeo substituiacutedo pela
Repuacuteblica comentando e relatando os respectivos eventos poliacutetico-sociais Em 1897 funda a
ABL (Academia Brasileira de Letras) da qual permaneceu presidente ateacute sua morte em 1908
com 69 anos
Ao discorrer sobre a consolidaccedilatildeo do nosso sistema literaacuterio o professor Antonio
Candido opina sobre Machado afirmando que ele ldquoera dotado de raro discernimento literaacuterio e
adquiriu por esforccedilo proacuteprio uma forte cultura intelectual baseada nos claacutessicos mas aberta aos
filoacutesofos e escritores contemporacircneosrdquo (CANDIDO 2010 p 65) E ainda acrescenta
Sua obra eacute variada e tem caracteriacutestica das produccedilotildees eminentes satisfaz tanto aos
requintados quanto aos simples Ela tem sobretudo a possibilidade de ser
reinterpretada agrave medida que o tempo passa porque tendo uma dimensatildeo profunda de
universalidade funciona como se se dirigisse a cada eacutepoca que surge (CANDIDO
2010 p 65)
Eacute esse diaacutelogo entre o claacutessico e o contemporacircneo com pitada filosoacutefica que daacute
singularidade agrave sua obra fazendo com que suas produccedilotildees sejam sempre atemporais Satildeo esses
traccedilos que se mostram mais produtivos para o nosso estudo no qual pretendemos analisar e
interpretar como os imperadores romanos descritos pelo bioacutegrafo Suetocircnio em sua obra satildeo
utilizados por Machado em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas1 Para tal julgamos necessaacuterio
primeiramente contextualizar brevemente os autores em apreccedilo bem como suas obras
(Memoacuterias Poacutestumas e Vida dos Ceacutesares2) os gecircneros praticados (Romance e Biografia
Antiga) e os tipos de criacutetica social dos dois autores Depois disso analisaremos os excertos do
romance machadiano em questatildeo no qual as presenccedilas dos principes (no singular princeps
termo latino usado na Roma Antiga para se referir ao que entendemos hoje por imperador) se
mostrem mais evidentes para entatildeo coligirmos com trechos da obra suetoniana Para o trabalho
com esta obra utilizaremos a ediccedilatildeo da Loeb Classical Library (1914) mas com traduccedilotildees de
nossa proacutepria autoria para o trabalho com aquela utilizaremos a ediccedilatildeo criacutetica estabelecida
pela Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira (1975)
Como jaacute afirmado Machado praticou os mais diversos gecircneros literaacuterios E jaacute demos os
merecidos creacuteditos pelo conjunto da obra Mas devemos frisar que eacute na praacutetica sobre o gecircnero
romance que os creacuteditos se mostram mais merecidos pois eacute nele que o autor apresenta natildeo soacute
todo o seu ingenium (talento natural) mas tambeacutem toda a sua ars (habilidade teacutecnica) para
usarmos termos proacuteprios da literatura latina
Foi esse talento somado a seu espiacuterito galhofeiro que proporcionou a criaccedilatildeo de um
narrador mais que incomum em Memoacuterias Poacutestumas Sobre esse narrador Francisco Silveira
discorre que ldquoele vinha pelo menos agrave primeira vista infringir dois postulados realistas a
impessoalidade e o verismordquo (SILVEIRA 2001 p 97) Convergirmos com tal visatildeo posto que
eacute com a referida obra e seu respectivo narrador defunto-autor que o Realismo enquanto esteacutetica
literaacuteria vai ser ldquoinauguradordquo no Brasil em 1881 Natildeo menos importante eacute a visatildeo de Alfredo
Bosi
1 Nas proacuteximas remissotildees a essa obra usaremos apenas Memoacuterias Poacutestumas 2 Em liacutengua latina De uita caesarum
Bruno Torres dos Santos
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 25
Quando o romancista assumiu naquele livro capital o foco narrativo na verdade
passou ao defunto-autor Machado-Braacutes Cubas delegaccedilatildeo para exibir com o despejo
dos que nada mais temem as peccedilas de cinismo e indiferenccedila com que via montada a
histoacuteria dos homens A revoluccedilatildeo dessa obra que parece cavar um fosso entre dois
mundos foi uma revoluccedilatildeo ideoloacutegica e formal aprofundando o desprezo agraves
idealizaccedilotildees romacircnticas e ferindo ao cerne o mito do narrador onisciente que tudo vecirc
e tudo julga deixou emergir a consciecircncia nua do indiviacuteduo fraco e incoerente O que
restou foram as memoacuterias de um homem igual a tantos outros o cauto e desfrutador
Braacutes Cubas (BOSI 2006 p 177)
Entendemos assim que o ser humano seraacute analisado sob seu cinismo e sob a
indiferenccedila por um narrador tambeacutem fraco e cheio de incoerecircncias rompendo nesse aspecto
com a esteacutetica Romacircntica Bosi ainda acrescenta
o ponto de vista um velho tema como o triacircngulo amoroso jaacute natildeo se carregaraacute do
pathos romacircntico que envolvia heroacutei-heroiacutena-o outro mas deixaraacute vir agrave tona os mil e
um interesses de posiccedilatildeo prestiacutegio e dinheiro dando a batuta agrave libido e agrave vontade de
poder que mais regem os passos do homem em sociedade Da histoacuteria vulgar do
adulteacuterio de Braacutes Cubas-Virgiacutenia-Lobo Neves agrave triste comeacutedia de equiacutevocos de
Rubiatildeo-Sofia-Palha (Quincas Borba) e desta agrave trageacutedia perfeita de Bentinho-Capitu-
Escobar (D Casmurro) soacute aparecem variantes de uma soacute e mesma lei natildeo haacute mais
heroacuteis a cumprir missotildees ou a afirmar a proacutepria vontade haacute apenas destinos destinos
sem grandeza (BOSI 2006 p 180)
Observamos o olhar aparentemente ldquodespretensiosordquo de Machado de Assis sem a
intenccedilatildeo de criar e de se defrontar com personagens heroicos mas ao lidar com homens-
personagens comuns lidaraacute tambeacutem com problemas comuns Ele analisa a psicologia do
ldquohomemrdquo com todas as suas peculiaridades inveja ganacircncia ambiccedilatildeo E eacute a atmosfera
burguesa que potencializa esses sentimentos De todo modo faz uma ldquocriacutetica socialrdquo sem querer
fazecirc-la Eacute isso que o aproxima e o distancia de Suetocircnio que analisa os retratos morais dos
imperadores romanos com todos os viacutecios e virtudes mas faz ldquocriacutetica socialrdquo e ateacute propaganda
poliacutetica de modo velado
Diferente do esforccedilo na anaacutelise da vida e obra de Machado quem se propotildee a estudar o
bioacutegrafo Caio Suetocircnio Tranquilo inicialmente se depara com algumas imprecisotildees acerca de
sua vida No tocante ao seu local de nascimento Anderson Esteves em seu artigo busca
encontrar vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas proacuteprias obras nos apontando como mais
plausiacutevel a ideia segundo a qual este teria nascido em Roma ou pelo menos se estabelecido
nessa cidade desde a infacircncia Ele nos informa sobre a origem e a condiccedilatildeo familiar de Suetocircnio
o avocirc era de uma condiccedilatildeo menos abastada visto que teria sido um liberto do imperador
Claacuteudio jaacute seu pai de uma condiccedilatildeo social mais elevada pois pertencia a ordem dos equestres
(ESTEVES 2015 p 1-7)
Eacute dado como certo que Suetocircnio teria nascido em 70 EC um ano apoacutes o conhecido ldquoAno
dos quatro imperadoresrdquo sobre o qual ainda falaremos Maacuterio Citroni esclarece-nos que em 69
EC o pai do bioacutegrafo foi combatente ao lado de Oto com o grau de tribunus militum (tribuno
militar) (CITRONI 2006 p 971) Natildeo menos importante eacute o que esclarece Ronald Mellor
segundo ele o cognomen ldquoTranquilordquo atribuiacutedo a Suetocircnio eacute decorrente do esforccedilo do seu pai
na busca pela estabilizaccedilatildeo da paz apoacutes esta terriacutevel guerra civil (MELLOR 1999 p 147)
Conforme observamos de alguma forma sua famiacutelia estava envolvida com as casas
imperiais e dada a condiccedilatildeo do seu pai Suetocircnio teve a possibilidade de ter uma boa educaccedilatildeo
na urbs dedicando-se aos estudos de gramaacutetica e de retoacuterica Nessa trajetoacuteria instrutiva o
bioacutegrafo torna-se amigo iacutentimo do renomado senador Pliacutenio o Jovem Por influecircncia dessa
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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amizade Suetocircnio consegue alguns cargos de prestiacutegio dentro das cortes imperiais Durante o
principado de Trajano ele ocupou os postos de a studiis (com a funccedilatildeo de cuidar dos interesses
e das obrigaccedilotildees culturais do imperador) e o de a bibliothecis (com a funccedilatildeo de cuidar das
bibliotecas puacuteblicas) Sob o principado de Adriano ocupou o posto de ab epistulis (com a
funccedilatildeo de redigir a correspondecircncia oficial) (MORENO 1997 p 645 CITRONI 2006 p
971)
A rede de contato iniciada por seu amigo Pliacutenio permitiu que Suetocircnio alcanccedilasse as
referidas ocupaccedilotildees e por consequecircncia o acesso direto aos arquivos imperiais muitas vezes
fundamentais para a feitura da sua obra De uita caesarum na qual discorre sobre os doze
primeiros ceacutesares de Roma desde o general Juacutelio Ceacutesar ateacute o polecircmico imperador Domiciano
Cabe considerar que ele iniciou a composiccedilatildeo desse seu opus magnum por volta dos primeiros
anos do principado de Adriano o qual se estendeu entre os anos de 117 e 138 EC
Acerca do gecircnero praticado por Suetocircnio devemos considerar que ateacute aqui muito foi
usada a terminologia moderna ldquobiografiardquo poreacutem conveacutem lembrarmos que esse gecircnero relativo
agrave escrita de uma vida na Antiguidade eacute referido por bios pelos gregos e uita pelos romanos
O termo ldquobiografiardquo como salienta Sabina Loriga soacute aparece ao longo do seacuteculo XVII
designando uma obra veriacutedica fundada numa descriccedilatildeo realista que se opotildee a outras formas
antigas de escritura idealizadoras do personagem e das circunstacircncias de sua vida tal qual o
panegiacuterico o elogio a oraccedilatildeo fuacutenebre e a hagiografia (LORIGA 2011 p 17)
A pesquisadora argumenta ainda que desde sua origem na Antiguidade a biografia eacute um
gecircnero hiacutebrido e composto que equilibrando-se entre a verdade histoacuterica e a verdade literaacuteria
sofreu ao longo do tempo profundas transformaccedilotildees sobretudo no que diz respeito agrave escolha e
agrave elaboraccedilatildeo dos fatos e do estilo de narraccedilatildeo (LORIGA 2011 p 18)
Frente a esses esclarecimentos avancemos aos excertos de Memoacuterias Poacutestumas em cujo
iniacutecio o narrador e protagonista Braacutes Cubas relata suas lembranccedilas apoacutes ter sido vitimado por
uma pneumonia Ele que pertencia a uma famiacutelia abastada do seacuteculo XIX narra sua morte e
seu enterro em que apareceram apenas onze amigos Relata diversos periacuteodos da vida infacircncia
adolescecircncia e fase adulta Ainda apresenta suas expectativas com o ldquoEmplastordquo um
medicamento por ele inventado com grande potencial de cura O narrador reconhece que esse
projeto se tornou uma ldquoideia fixardquo que entendemos como uma ideia difiacutecil de se retirar da
cabeccedila E eacute justamente no IV capiacutetulo intitulado A ideacutea fixa que o narrador machadiano faz a
primeira referecircncia a imperadores romanos e ao proacuteprio bioacutegrafo Suetocircnio
A minha ideacutea depois de tantas cabriolas constituiacutera-se ideacutea fixa Deus te livre leitor
de uma ideacutea fixa antes um argueiro antes uma trave no olho Vecirc o Cavour foi a ideacutea
fixa da unidade italiana que o matou Verdade eacute que Bismarck natildeo morreu mas
cumpre advertir que a natureza eacute uma grande caprichosa e a histoacuteria uma eterna
loureira Por exemplo Suetocircnio deu-nos um Claacuteudio que era um simploacuterio mdash ou
ldquouma aboacuteborardquo como lhe chamou Secircneca e um Tito que mereceu ser as deliacutecias de
Roma Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dous
ceacutesares o delicioso o verdadeiro delicioso foi o ldquoaboacuteborardquo de Secircneca E tu madama
Lucreacutecia flor dos Boacutergias se um poeta te pintou como a Messalina catoacutelica apareceu
um Gregorovius increacutedulo que te apagou muito essa qualidade e se natildeo vieste a liacuterio
tambeacutem natildeo ficaste pacircntano Eu deixo-me estar entre o poeta e o saacutebio (Machado de
Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap IV p 103)3
3 Para facilitar a leitura usaremos tal forma nas referecircncias a esta obra que compotildee nossa documentaccedilatildeo textual
Para as referecircncias agraves biografias de Vida dos Ceacutesares adotamos as abreviaccedilotildees do renomado The Oxford Latin
Dictionary (httpswwwoxfordscholarlyeditionscompageabbreviations acessado em 25102019)
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Nesse discurso metalinguiacutestico dirigido diretamente ao leitor a fim de exemplificar a
proacutepria noccedilatildeo de ldquoideia fixardquo Braacutes Cubas evidencia que Suetocircnio o qual ressignificou a ldquoideiardquo
do filoacutesofo estoico Secircneca teve a sua ldquoideiardquo ressignificada por um professor moderno
Diferentemente do bioacutegrafo Suetocircnio bem como os imperadores que ele ldquonos deurdquo que foram
personagens histoacutericas o referido professor natildeo o foi
Entatildeo passemos a essas referecircncias o primeiro imperador citado eacute Tibeacuterio Claacuteudio Druso
Braacutes Cubas adjetiva o Claacuteudio de Suetocircnio como um ldquosimploacuteriordquo que eacute assim descrito na
biografia suetoniana
Infans autem relictus a patre ac per omne fere pueritiae atque adulescentiae tempus
variis et tenacibus morbis conflictatus est adeo ut animo simul et corpore hebetato ne
progressa quidem aetate ulli publico privatoque muneri habilis existimaretur (Suet
Cl 21)
No entanto era crianccedila quando foi abandonado pelo pai e por quase todo o tempo da
primeira infacircncia e adolescecircncia foi acometido por vaacuterias doenccedilas persistentes de tal
modo que estivesse ao mesmo tempo com o espiacuterito e com o corpo debilitado foi
certamente por conta de sua idade avanccedilada estimado como natildeo apto para cargo no
acircmbito puacuteblico e no acircmbito privado
Posteriormente Suetocircnio faz o seguinte relato sobre a inesperada subida ao trono apoacutes o
assassinato do sobrinho Caliacutegula
Per haec ac talia maxima aetatis parte transacta quinquagesimo anno imperium cepit
quantumvis mirabili casu Exclusus inter ceteros ab insidiatoribus Gai cum quasi
secretum eo desiderante turbam submoverent in diaetam cui nomen est Hermaeum
recesserat neque multo post rumore caedis exterritus prorepsit ad solarium proximum
interque praetenta foribus vela se abdidit Latentem discurrens forte gregarius miles
animadversis pedibus studio sciscitandi quisnam esset adgnovit extractumque et prae
metu ad genua sibi accidentem imperatorem salutavit (Suet Cl10 1-2)
Por estas e outras coisas semelhantes tendo passado muito do tempo assumiu o
impeacuterio soacute com cinquenta anos atraveacutes de um caso extremamente interessante
Excluiacutedo entre os outros pelos assassinos de Caio Caliacutegula quando sob o pretexto
de expulsarem a multidatildeo e desejando ele um lugar isolado retirou-se para um
pavilhatildeo ao qual chamam de ldquoHermeacuteurdquo E natildeo muito depois aterrorizado com a
notiacutecia da morte avanccedilou se arrastando para uma galeria solar proacutexima e se escondeu
entre as cortinas postas diante das portas Tendo os peacutes sido observados um soldado
raso correndo de uma parte a outra com uma forte curiosidade procurou saber quem
estaria escondido e reconheceu quem por ele foi retirado do esconderijo Diante do
medo Claacuteudio se prostrou aos seus peacutes o soldado o saudou como imperador
Notamos que um eventual olhar do narrador machadiano sobre a dinastia julio-claudiana
sempre lembrada no pensamento ocidental pelos excelentes generais como Juacutelio Ceacutesar e
Augusto e pelos polecircmicos Tibeacuterio Caliacutegula e Nero pode justificar a anaacutelise de Claacuteudio como
um personagem simploacuterio Isso se daacute mesmo este tendo conquistado diversas regiotildees e tido boa
aceitaccedilatildeo pelo povo romano pois como percebemos nos excertos de sua biografia Suetocircnio
fez ressoar sua fraqueza de espiacuterito inaptidatildeo para o governo e a covardia Cabe lembrar ainda
que numa leitura completa da biografia do imperador ele aparece como um joguete nas matildeos
das proacuteprias esposas Primeiramente Valeacuteria Messalina (a mesma referida no capiacutetulo em
questatildeo das Memoacuterias Poacutestumas) tentou entregar o Impeacuterio nas matildeos de um de seus amantes
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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C Siacutelio mas sem sucesso foi por Claacuteudio condenada e executada Jaacute viuacutevo ele se casa com
Agripina que trama pela sua morte para legar o trono a seu filho Nero
Justifica-se assim tambeacutem o seu retrato como uma ldquoaboacuteborardquo na obra Apocoloquintose
na qual o filoacutesofo e tragedioacutegrafo Secircneca que foi banido de Roma por Claacuteudio em 41 em
razatildeo de intrigas palacianas critica ironicamente o receacutem-assassinado imperador Horaacutecio
Rolim de Freitas explica que
O tiacutetulo inicial seria Ludus de morte Claudii O historiador Dion Caacutessio sugeriu que
o tiacutetulo tenha sido Apocolocyntosis (transformaccedilatildeo em aboacutebora) do grego
Ἀποκολοκύνθοσις Tiacutetulo curioso mas era entendido pelos leitores da eacutepoca pois
aboacutebora (ποκολοκύντἡς) era siacutembolo da estupidez (FREITAS 2010 p 13)
Para compreendermos isso devemo-nos lembrar de um aspecto cultural importante na
Roma Antiga ndash a Apoteose A cerimocircnia de deificaccedilatildeo que ocorria durante os funerais dos
iminentes ceacutesares iniciada por Otaacutevio a partir da morte de seu tio Juacutelio Ceacutesar Ou seja o
argumento da obra senequiana eacute parodiar a narraccedilatildeo agraves avessas da apoteose de Claacuteudio
relatando como o morto foi recebido nos infernos pelos deuses transformando-se no alegoacuterico
legume
O segundo imperador citado nesse IV capiacutetulo de Memoacuterias Poacutestumas foi Tito
Vespasiano Augusto Tito foi o segundo princeps da dinastia flaviana Era o filho mais velho
de Vespasiano e irmatildeo de Domiciano os quais tambeacutem seratildeo citados por Braacutes Cubas ao longo
do romance Depois da morte de seu pai Tito assume as reacutedeas do Impeacuterio atuando de modo
similar a ele com excelecircncia no campo militar e com moderaccedilatildeo no campo poliacutetico foi visto
como um bom imperador por Roma Por essa razatildeo eacute descrito por Suetocircnio logo no primeiro
capiacutetulo de sua biografia como ldquoTito tendo o cognome do pai foi o amor e as deliacutecias do
gecircnero humano Tanto de inteligecircncia de habilidade e de fortuna abundava nele que ganhava a
simpatia de todos o que eacute muito difiacutecil durante um governordquo (Titus cognomine paterno amor
ac deliciae generis humani ndash tantum illi ad promerendam omnium voluntatem vel ingenii vel
artis vel fortunae superfuit et quod difficillimum est in impeacuterio () (Suet Tit 11) Com essa
seleccedilatildeo vocabular Suetocircnio ldquonos daacuterdquo o retrato de um imperador diferente de Claacuteudio Eacute esse
retrato com vastos predicados perante a humanidade que serviu de fonte para Machado de
Assis fazer o jogo de palavras com o termo ldquodeliacuteciardquo na ldquoideia fixardquo de um professor
Para encerrar a anaacutelise do capiacutetulo conveacutem observar a segunda referecircncia a tais principes
em ldquoViva pois a histoacuteria a voluacutevel histoacuteria que daacute para tudo e tornando agrave ideacutea fixa direi que
eacute ela a que faz os varotildees fortes e os doudos a ideacutea moacutebil vaga ou furta-cor eacute a que faz os
Claacuteudios mdash formula Suetocircniordquo (Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap
IV p 103) O Bruxo do Cosme Velho brinca com o gecircnero historiograacutefico ao qual o gecircnero
biograacutefico estaacute aparentado Chamando a histoacuteria de voluacutevel ele usa novamente o verbo ldquodarrdquo
Em nossa interpretaccedilatildeo o narrador quer reforccedilar que a histoacuteria ldquodaacuterdquo na acepccedilatildeo de ldquopromoverrdquo
diversos retratos sejam eles positivos ou negativos a depender da ldquoideiardquo que cada personagem
possui Esse modus operandi da formulaccedilatildeo de Suetocircnio muito se relaciona com o de Machado
Avancemos agora ao capiacutetulo XXIII de Memoacuterias Poacutestumas intitulado Triste mas curto
Em tal capiacutetulo Cubas narra sua chegada ao Rio de Janeiro e a sensaccedilatildeo de rever os locais de
sua infacircncia a tristeza de sua famiacutelia e o sofrimento de sua progenitora Quando vecirc sua matildee
com quem natildeo tinha contato haacute nove anos acha-a paacutelida e sem soltar uma palavra sequer pega
em suas matildeos No dia seguinte ela vem a falecer sendo a primeira vez que ele teria tido contato
com a morte de perto de uma pessoa amada Neste iacutenterim ele faz referecircncia a mais um ceacutesar
descrito por Suetocircnio o proacuteprio Juacutelio Ceacutesar que embora natildeo tenha chegado a ser um
ldquoimperadorrdquo enquanto chefe de estado eacute ele quem ldquodesenhardquo o que viria a ser o Impeacuterio
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romano iniciado por seu sobrinho-neto Otaviano Por essa razatildeo tambeacutem incluiacutemos tal general
em nossas anaacutelises e eacute assim referenciado no romance
Longa foi a agonia longa e cruel de uma crueldade minuciosa fria repisada que me
encheu de dor e estupefacccedilatildeo Era a primeira vez que eu via morrer algueacutem Conhecia
a morte de outiva quando muito tinha-a visto jaacute petrificada no rosto de algum
cadaacutever que acompanhei ao cemiteacuterio ou trazia-lhe a ideacutea embrulhada nas
amplificaccedilotildees de retoacuterica dos professores de coisas antigas mdash a morte aleivosa de
Ceacutesar a austera de Soacutecrates a orgulhosa de Catatildeo (Machado de Assis Memoacuterias
Poacutestumas de Braacutes Cubas cap XXIII p 145)
Nas referidas amplificaccedilotildees retoacutericas ressoa a morte do filoacutesofo Soacutecrates a qual de fato
ficou no imaginaacuterio ocidental como uma morte ldquoausterardquo dado o fato de ele ter se mantido
firme em suas ideias ldquocorruptorasrdquo dos jovens atenienses ateacute a hora de seu oacutebito A morte de
Catatildeo o Jovem tambeacutem eacute adjetivada por Braacutes Cubas poreacutem como ldquoorgulhosardquo A respectiva
adjetivaccedilatildeo se apresenta com ecircxito dado o fato de Catatildeo ter sido um poliacutetico romano notaacutevel
por sua integridade moral Sendo ele ainda partidaacuterio da filosofia estoica descrito pelo
historiador Saluacutestio como a antiacutetese direta de Juacutelio Ceacutesar suicidou-se apoacutes a vitoacuteria deste seu
opositor na Batalha de Tapso
Concentremo-nos poreacutem na morte de Ceacutesar mesmo que natildeo haja nenhuma associaccedilatildeo
direta dele com o bioacutegrafo diferentemente dos excertos com os imperadores anteriores isso
natildeo nos impede de relacionaacute-los O narrador machadiano adjetiva tal morte como ldquoaleivosardquo
denotando a atmosfera da traiccedilatildeo pela qual Ceacutesar passou no Senado romano relatada em sua
biografia deste modo
Assidentem conspirati specie officii circumsteterunt ilicoque Cimber Tillius qui
primas partes susceperat quasi aliquid rogaturus propius accessit renuentique et gestu
in aliud tempus differenti ab utroque umero togam adprehendit deinde clamantem
ldquoIsta quidem vis estrdquo alter e Cascis aversum vulnerat paulum infra iugulum Caesar
Cascae brachium arreptum graphio traiecit conatusque prosilire alio vulnere tardatus
est utque animadvertit undique se strictis pugionibus peti toga caput obvoluit simul
sinistra manu sinum ad ima crura deduxit quo honestius caderet etiam inferiore
corporis parte velata Atque ita tribus et viginti plagis confossus est uno modo ad
primum ictum gemitu sine voce edito etsi tradiderunt quidam Marco Bruto irruenti
dixisse καὶ σὺ τέκνον (Suet Jul 82 1-2)
Os que haviam concordado com a natureza do trabalho rodeavam aquele que estava
sentado Sem demorar Ciacutember Tiacutelio que se encarregava dos primeiros papeacuteis como
se houvesse de falar algo caminhou para mais perto Ceacutesar negando atraveacutes de um
gesto contraacuterio passou-o para outro momento Por ambos os lados aquele apertou sua
toga Entatildeo Ceacutesar clamou ldquoIsso eacute verdadeiramente uma violecircnciardquo Um dos Cascas
jaacute lhe tinha ferido por traacutes um pouco abaixo da garganta Com um ponteiro furou com
um ponteiro o braccedilo arrebatado de Casca e o impulso de arremeter foi detido por uma
outra ferida Mas quando observou que seria tomado por robustos punhais por todos
os lados cobriu a cabeccedila com a toga Ao mesmo tempo com a matildeo esquerda conduziu
a dobra da veste ateacute as extremidades das pernas de modo que jaacute estando com a parte
inferior do corpo coberta caiacutesse mais honrosamente Desta maneira foi dilacerado
por vinte e trecircs golpes Ateacute a primeira ferida teria produzido apenas um gemido sem
uma palavra sequer embora alguns afirmem que com o ataque de Marco Bruto teria
dito ldquoTambeacutem tu meu filhordquo
Como reconhecemos esses escritos de Suetocircnio com grande carga dramaacutetica foram
grandes responsaacuteveis por propagar no imaginaacuterio do mundo ocidental este evento que mudou
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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os rumos da Roma Antiga Machado de Assis foi ciruacutergico ao usar a palavra aleivosa para
qualificar a morte de Ceacutesar a qual condensa toda a ideia da conjuraccedilatildeo Muito provavelmente
teve acesso a isso atraveacutes da referida biografia
Podemos avanccedilar ao capiacutetulo LXXII do romance cujo tiacutetulo eacute O bibliocircmano no qual o
defunto-autor confessa que deveria suprimir o capiacutetulo antecedente alegando haver nele um
despropoacutesito acerca do qual natildeo gostaria de receber criacuteticas Afirma que setenta anos agrave frente
este leitor que eacute por ele caracterizado e denominado ldquobibliocircmanordquo procuraria minuciosamente
o tal ldquodespropoacutesitordquo poreacutem sem ecircxito natildeo encontraria Em seguida explica que ele natildeo o
encontraria pelo simples fato de ele natildeo existir jaacute que foi suprimido Discorre ainda que isso
natildeo causaria o desinteresse do leitor sobre o livro e que pelo contraacuterio ele o adoraria por ser
um exemplar uacutenico O bibliocircmano continua sua procura mas mesmo sem sucesso se contenta
com o fato de dispor do uacutenico tomo
Jaacute prometeu a si mesmo escrever uma breve memoacuteria na qual relate o achado do livro
e a descoberta da sublimidade se a houver por baixo daquela frase obscura Ao cabo
natildeo descobre nada e contenta-se com a posse Fecha o livro mira-o remira-o chega-
se agrave janela e mostra-o ao sol
Um exemplar uacutenico Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um Ceacutesar ou um
Cromwell a caminho do poder Ele daacute de ombros fecha a janela estira-se na rede e
folheia o livro de vagar com amor aos goles Um exemplar uacutenico (Machado de
Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap LXXII p 209-210)
Neste excerto em que Braacutes Cubas manteacutem sua divagaccedilatildeo sobre o despropoacutesito da mesma
forma que fez com a noccedilatildeo de ideia fixa notamos a segunda referecircncia ao general Juacutelio Ceacutesar
A menccedilatildeo a Ceacutesar e a Cromwell visa ilustrar o modo como uma pessoa estaria transitando pela
rua ldquoa caminho do poderrdquo Oliver Cromwell foi um comandante militar e poliacutetico nascido na
nobreza rural inglesa em 1599 Em 1630 passa por uma conversatildeo religiosa e reconhecendo-
se como um Puritano acreditava que Deus era quem o guiava em suas vitoacuterias sendo muito
ativo durante a Guerra Civil Inglesa Mas quem mais nos interessa eacute o outro poliacutetico e militar ndash
Juacutelio Ceacutesar ndash e este nome associado agrave expressatildeo ldquocaminho do poderrdquo leva-nos a lembrar de
outro aspecto cultural da Roma Antiga ndash a travessia ao Rio Rubicatildeo Jaacute durante a Repuacuteblica
esse rio que dividia a proviacutencia da Gaacutelia Cisalpina (ao norte) do resto da Itaacutelia (ao sul) era de
suma importacircncia visto que a lei romana proibia que fosse transpassado por quaisquer legiotildees
do exeacutercito romano caso isso fosse feito denotaria uma ameaccedila militar interna
Resumidamente os sucessos de Ceacutesar na Gaacutelia acarretaram o aumento de seu poder de
sua popularidade e da ira de seus inimigos Estes influenciados por Catatildeo o Jovem (tambeacutem
jaacute referido no romance de Machado) tentaram promover sua ruiacutena poliacutetica Em 50 AEC o
Senado aprovou uma moccedilatildeo para que Ceacutesar fosse retirado do cargo de governador na Gaacutelia
Marco Antocircnio embasado pelo poder de tribuno do povo vetou a proposta Apoacutes isso houve
uma intensa perseguiccedilatildeo aos partidaacuterios de Juacutelio Ceacutesar Antocircnio precisou deixar Roma por
conta da alta probabilidade de ser assassinado e sem oposiccedilatildeo do Senado declarou estado de
emergecircncia delegando poderes excepcionais a Pompeu Magno Ceacutesar retrucou isso com a
famosa cruzada assim relatada por Suetocircnio
Dein post solis occasum mulis e proximo pistrino ad vehiculum iunctis occultissimum
iter modico comitatu ingressus est et cum luminibus extinctis decessisset via diu
errabundus tandem ad lucem duce reperto per angustissimos tramites pedibus evasit
Consecutusque cohortis ad Rubiconem flumen qui provinciae eius finis erat paulum
constitit ac reputans quantum moliretur conversus ad proximos ldquoEtiam nuncrdquo
inquit ldquoregredi possumus quod si ponticulum transierimus omnia armis agenda
eruntrdquo (Suet Jul 31 2)
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Em seguida apoacutes o pocircr do Sol atadas as mulas desde o moinho mais proacuteximo ateacute o
veiacuteculo mais escondido comeccedilou o caminho com uma modesta caravana Com as
luzes acabando ia-se embora pelo caminho Entatildeo durante o dia tendo aparecido um
guia com peacutes errantes evadiu pelas mais estreitas veredas E acompanhado pelas
coortes ateacute o rio Rubicatildeo que traccedila o limite de sua proviacutencia parou um pouco e
calculou o quanto se moveu virou-se aos mais proacuteximos e disso ldquoAteacute agora podemos
recuar porque se atravessarmos a pequena ponte todas as coisas deveratildeo ser feitas
atraveacutes das armasrdquo
Cunctanti ostentum tale factum est Quidam eximia magnitudine et forma in proximo
sedens repente apparuit harundine canens ad quem audiendum cum praeter pastores
plurimi etiam ex stationibus milites concurrissent interque eos et aeneatores rapta ab
uno tuba prosilivit ad flumen et ingenti spiritu classicum exorsus pertendit ad alteram
ripam Tunc Caesar ldquoEaturrdquo inquit ldquoquo deorum ostenta et inimicorum iniquitas
vocat Iacta alea estrdquo inquit (Suet Jul 32)
Com ele ainda de tal modo titubeando foi eficaz um prodiacutegio Apareceu de repente
ali proacuteximo uma certa pessoa que estava sentada tocando com uma flauta exiacutemia em
grandeza e forma Para o ouvirem correram muitos pastores tambeacutem muitos soldados
das guarniccedilotildees entre eles alguns tocadores de trombeta Com a trombeta tomada de
um deles o muacutesico lanccedilou-se ao rio E com um imenso vigor realizou um toque
introdutoacuterio ateacute a outra margem do rio Entatildeo disse Ceacutesar ldquoVamos para onde o sinal
dos deuses e a hostilidade dos inimigos nos chamam A sorte estaacute lanccediladardquo
Como jaacute frisamos por parte do narrador de Machado natildeo haacute nenhuma referecircncia direta
desse Ceacutesar ao bioacutegrafo Suetocircnio mas vemos relaccedilotildees diretas entre o ato da desconhecida
pessoa ldquoa caminho do poderrdquo e os atos do general romano Mais uma vez o autor foi ciruacutergico
no uso da expressatildeo destacada para a qual muito provavelmente teve acesso ao excerto de
Suetocircnio cujo conteuacutedo tambeacutem faz parte do imaginaacuterio ocidental ndash a travessia ao rio Rubicatildeo
antecedida da frase ldquoA sorte estaacute lanccediladardquo Cabe lembrar que Machado jaacute usara a expressatildeo no
capiacutetulo XIII de seu romance Helena publicado em 1876 quando o personagem Estaacutecio na
tentativa de esquecer o amor pela protagonista Helena decide pedir Eugecircnia em casamento
Naquela mesma noite ouviu Eugecircnia a esperada palavra A alegria que se lhe
derramou nos olhos foi imensa e caracteriacutestica Um pouco mais de recato natildeo era
descabido em tal ocasiatildeo Natildeo houve nenhum o primeiro ato da mulher foi uma
meninice Eugecircnia ignorava tudo ateacute a dissimulaccedilatildeo do sexo Concedendo a matildeo a
Estaacutecio natildeo era uma castelatilde que entregava o precircmio mas um cavaleiro que o recebia
com alvoroccedilo e submissatildeo
Transposto o Rubicon natildeo havia mais que caminhar direito agrave cidade eterna do
matrimocircnio Estaacutecio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr Camargo pedindo-lhe
a matildeo de Eugecircnia carta seca e digna como as circunstacircncias a pediam (Machado de
Assis Helena cap XIII p 133)
Terminadas as referecircncias ao instaurador da dinastia juacutelio-claudiana faccedilamos um salto
ao capiacutetulo CXVI intitulado Filosofia das folhas velhas no qual Braacutes Cubas alega ter ficado
tatildeo triste com o capiacutetulo anterior a este4 pelo fato de sua amante Virgiacutelia ter embarcado para a
Europa No capiacutetulo CXVI vemos referecircncia a outro imperador associado ao escrito
suetoniano nesse caso trata-se do jaacute referido Domiciano
Apoacutes um governo moderado de dez anos o do seu pai Vespasiano seguido por outro
governo tambeacutem moderado de apenas dois anos o do seu irmatildeo Tito de modo contraacuterio
4 O capiacutetulo CXV intitulado O almoccedilo
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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Domiciano assume com bastante autoritarismo Durante seus quinze anos de governo o uacuteltimo
imperador flaviano cometeu assassinatos de diversos cidadatildeos importantes incluindo
senadores Essas razotildees acarretaram numa conjuraccedilatildeo para a sua morte E diferente do seu pai
e irmatildeo que foram divinizados apoacutes a morte Domiciano ldquorecebeurdquo do Senado um decreto para
a sua damnatio memoriae essa danaccedilatildeo da memoacuteria significava as retiradas de suas imagens
em bustos inscriccedilotildees etc
Esclarecidos esses pontos sobre o imperador Domiciano voltemos a Braacutes Cubas O
narrador inicia o referido capiacutetulo em questatildeo refletindo pela metalinguagem ldquoFiquei tatildeo triste
com o fim do uacuteltimo capiacutetulo que estava capaz de natildeo escrever este descansar um pouco purgar
o espiacuterito da melancolia que o empacha e continuar depois Mas natildeo natildeo quero perder tempordquo
(Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258) e continua a
reflexatildeo
A partida de Virgiacutelia deu-me uma amostra da viuvez Nos primeiros dias meti-me em
casa a fisgar moscas como Domiciano se natildeo mente o Suetocircnio mas a fisgaacute-las de
um modo particular com os olhos Fisgava-as uma a uma no fundo de uma sala
grande estirado na rede com um livro aberto entre as matildeos (Machado de Assis
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258)
O narrador-personagem machadiano Braacutes Cubas discorre sobre seu desgosto pela vida
e sobre a monotonia agrave qual estava submetido apoacutes a partida da mulher ldquoextraconjugalmenterdquo
amada Virgiacutelia Notamos que para ilustrar de modo exagerado o desacircnimo por parte de Braacutes
Cubas sendo esse abatimento comparado a uma viuvez Machado de Assis apresenta seu
defunto-autor de um modo tatildeo ocioso que fisgava as moscas apenas com os olhos Ou seja ele
eacute apresentado mais ociosamente que o imperador Domiciano que espetava moscas A fim de
captarmos essa menccedilatildeo valemo-nos do capiacutetulo 3 da biografia de Domiciano
Inter initia principatus cotidie secretum sibi horarum sumere solebat nec quicquam
amplius quam muscas captare ac stilo praeacuto configere ut cuidam interroganti
essetne quis intus cum Caesare non absurde responsum sit a Vibio Crispo ne muscam
quidem (Suet Dom 3)
Durante os iniacutecios de seu principado solitaacuterio estava ele habituado diariamente pelas
horas a colher para si nada mais que moscas e prender com um estilete pontudo Para
uma certa interrogaccedilatildeo se acaso natildeo tinha ningueacutem dentro do local com Ceacutesar de
modo adequado teria sido respondido por Viacutebio Crispo que natildeo que nem mesmo
uma mosca
Notamos entatildeo que se por um lado atraveacutes da intertextualidade Machado se volta para
o Domiciano de Suetocircnio com o intuito de descortinar o estado de alma de Braacutes Cubas por
outro Suetocircnio apresenta essa anedota das moscas para condicionar seu leitor a um juiacutezo
negativo sobre o retrato moral de Domiciano que nada fazia em prol da burocracia puacuteblica no
iniacutecio de seu principado Essa anedota sobre Domiciano com Viacutebio Crispo enquanto locutor
jamais deixaria de ser apresentada por Suetocircnio haja vista que os atos burocraacuteticos bem como
as accedilotildees militares e diplomaacuteticas faziam parte das temaacuteticas de suas biografias Somos tentados
a crer que o fato de Suetocircnio ser oriundo da ordem dos equestres e mais tarde ter assumido
algumas funccedilotildees puacuteblicas durante o principado de Trajano e de Adriano tambeacutem teria
contribuiacutedo para sua atenccedilatildeo a esses tipos de chistes
Embora Suetocircnio natildeo seja visto como um historioacutegrafo mas sim como um erudito
bioacutegrafo e natildeo tenha pertencido agrave ordem senatorial sabemos que ele enveredou pela tradiccedilatildeo
Bruno Torres dos Santos
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historiograacutefica senatorial isto eacute aquela que retratava moralmente bem os imperadores
favoraacuteveis ao Senado e moralmente mal os refrataacuterios a esse corpo Isso talvez tenha se dado
graccedilas ao seu contato com o influente senador Pliacutenio o Jovem e ao participar do seu ciacuterculo
de amizades tambeacutem teve contato com os historiadores Taacutecito e Faacutebio Ruacutestico Podemos
depreender que Domiciano natildeo deixou de apresentar motivos para ser exageradamente mal
retratado pela pena suetoniana e por isso a ressalva de Braacutes Cubas que diz ldquose natildeo mente o
Suetocircniordquo
Avancemos ao capiacutetulo CLII intitulado A moeda de Vespasiano no qual encontramos a
uacuteltima menccedilatildeo feita desde seu tiacutetulo a um imperador romano retratado por Suetocircnio Em tal
capiacutetulo na volta do enterro de Lobo Neves Braacutes Cubas refletia sobre o choro mais
precisamente sobre os soluccedilos sinceros da sua amante Virgiacutelia para o marido ao qual tinha
traiacutedo com igual sinceridade
Jaacute sabemos algumas informaccedilotildees acerca do ceacutesar em questatildeo todavia vale reforccedilar que
foi ele quem saiu vitorioso do conhecido historicamente Ano dos Quatro Imperadores em 69
Apoacutes o suiciacutedio ocorrido em 68 do uacuteltimo juacutelio-claudiano ndash o polecircmico Nero ndash que natildeo havia
deixado ningueacutem para linha sucessoacuteria os generais Galba Otatildeo Viteacutelio e Vespasiano atraveacutes
de sucessivos confrontos armados guerrearam entre si ansiando o trono deixado por Nero
Com a vitoacuteria de Vespasiano eacute instaurada a dinastia flaviana Entatildeo passemos ao curto capiacutetulo
das Memoacuterias Poacutestumas em completude
Tinham ido todos soacute o meu carro esperava pelo dono Accendi um charuto afastei-
me do cemiteacuterio Natildeo podia sacudir dos olhos a cerimocircnia do enterro nem dos ouvidos
os soluccedilos de Virgiacutelia Os soluccedilos principalmente tinham o som vago e misterioso
de um problema Virgiacutelia traiacutera o marido com sinceridade e agora chorava-o com
sinceridade Eis uma combinaccedilatildeo difiacutecil que natildeo pude fazer em todo o trajecto em
casa poreacutem apeando-me do carro suspeitei que a combinaccedilatildeo era possiacutevel e ateacute
faacutecil Meiga Natura A taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave
origem e tanto se colhe do mal como do bem A moral repreenderaacute porventura a
minha cuacutemplice eacute o que te natildeo importa implacaacutevel amiga uma vez que lhe recebeste
pontualmente as laacutegrimas Meiga trecircs vezes Meiga Natura (Machado de Assis
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CLII p 294)
Percebemos que na busca pela anaacutelise do estado de alma de sua amada Virgiacutelia o narrador
Braacutes Cubas reverbera que ldquoA taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave origem
e tanto se colhe do mal como do bemrdquo Mas de onde ele teria tirado essas relaccedilotildees semacircnticas
entre o imperador Vespasiano-moeda-taxa-cheiro Pois bem Mais uma vez quem nos traz a
resposta eacute Suetocircnio
Reprehendenti filio Tito quod etiam urinae vectigal commentus esset pecuniam ex
prima pensione admovit ad nares sciscitans num odore offenderetur et illo negante
ldquoAtquin inquit e lotio estrdquo (Suet Vesp 233)
Repreendeu seu filho Tito porque ele Vespasiano teria inventado um imposto sobre
a urina que por aquele foi advertido entatildeo aproximou o dinheiro do primeiro
pagamento desse tributo do nariz de Tito E perguntando-o se acaso natildeo se sentia
incomodado com odor e Tito negando Vespasiano respondeu No entanto eacute
proveniente da urinardquo
Na curiosa anedota Vespasiano criador de um imposto sobre a urina pois muitos
comerciantes as retiravam das latrinas puacuteblicas e as utilizavam para curtir os tecidos que
vendiam repreende o primogecircnito por ter discordado inicialmente da ideia Natildeo temos duacutevidas
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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de que Machado de Assis teve acesso a essa biografia para usar com propriedade em seu
romance nessa cena em que seu narrador busca explicaccedilotildees para fatos aparentemente
contraditoacuterios
Esse excurso pelas duas obras aparentemente distantes e des-relacionadas nos deu a liccedilatildeo
de que o narrataacuterio enquanto entidade leitora fictiacutecia compreende e decodifica os aspectos
concernentes agraves personalidades em apreccedilo os princepes no entanto para o leitor ideal isso se
mostra mais obscuro Machado de Assis aproveita os questionaacuteveis retratos dos ceacutesares de
Suetocircnio para enriquecer sua obra literaacuteria
Assim contribuindo mais para a compreensatildeo do romance machadiano pela anaacutelise da
traduccedilatildeo a qual nos permitiu o estudo sobre as referecircncias agrave histoacuteria agrave cultura e agrave literatura da
Roma Antiga cristalizados pelos Claacuteudio Tito Ceacutesar Domiciano e Vespasiano suetonianos
os esforccedilos empreendidos teratildeo alcanccedilado seu objetivo nessas ressignificaccedilotildees Se as
referecircncias e os eventos atrelados a esses ceacutesares que nos foram ldquodadosrdquo pelas biografias de
Suetocircnio tiverem sido descortinados dentro das Memoacuterias Poacutestumas de Machado de Assis
podemos ficar sem ldquoideias fixasrdquo de que criamos ldquodespropoacutesitosrdquo
IacuteNDICE DE ABREVIACcedilOtildeES
Suet Cl (Suetocircnio Claacuteudio)
Suet Dom (Suetocircnio Domiciano)
Suet Jul (Suetocircnio Juacutelio Ceacutesar)
Suet Tit (Suetocircnio Tito)
Suet Ves (Suet Vespasiano)
DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL
ASSIS Joaquim Maria Machado de Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Rio de Janeiro
Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975
______ Helena Rio de Janeiro Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975
SUETONIUS Lives of the Caesars Volume I Julius Augustus Tiberius Gaius
Caligula Translated by J C Rolfe Introduction by K R Bradley Loeb Classical Library 31
Cambridge MA Harvard University Press 1914
______ Lives of the Caesars Volume II Claudius Nero Galba Otho and Vitellius
Vespasian Titus Domitian Lives of Illustrious Men Grammarians and Rhetoricians
Poets (Terence Virgil Horace Tibullus Persius Lucan) Lives of Pliny the Elder and
Passienus Crispus Translated by J C Rolfe Loeb Classical Library 38 Cambridge MA
Harvard University Press 1914
Bruno Torres dos Santos
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REFEREcircNCIAS
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CANDIDO Antonio O sistema literaacuterio consolidado In Iniciaccedilatildeo agrave literatura Brasileira
6deg ed Rio de Janeiro Ouro Sobre Azul 2010 p65-126
CITRONI Maacuterio (Dir) CITRONI MCONSOLINO FELABATE M NARDUCCI
(orgs) Literatura de Roma Antiga Co-autores da traduccedilatildeo Margarida Miranda e Isaiacuteas
Hipoacutelito Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2006
ESTEVES Anderson Martins Biografia na biografia Vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas
obras Principia ndash Revista do Departamento de Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de
Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Ano 18 nXXX p1-7
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FREITAS Horaacutecio Apoloquintose In SILVA Amoacutes FREITAS Horaacutecio (orgs) Um
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LORIGA Sabina O limiar biograacutefico In O pequeno x da biografia agrave histoacuteria Traduccedilatildeo
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MELLOR Ronald The roman historians New York Routledge 1999
MORENO Isabel Historiografiacutea ndash Siglo II- Suetocircnio In CODONtildeER Carmen (Ed)
Historia de la literatura latina Madrid Catedra 1997 p643-652
SILVEIRA Francisco Maciel O conto machadiano ou ldquoa realidade eacute boa o Realismo eacute que
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p95-103 2001
36 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
DOI httpsdoiorg1012957principia201946511
LUCIacuteOLA E O TRAacuteGICO ESTUDO ACERCA DAS MARCAS DO HEROacuteI
TRAacuteGICO EM UM PERFIL DE MULHER ALENCARIANO
Heitor Victor
RESUMO Recorrer aos claacutessicos para entender nosso tempo natildeo eacute mesmo nenhuma novidade
Apelar para a trageacutedia grega a fim de identificar o que persiste em nossa compreensatildeo acerca
de noacutes mesmos se tornou lugar comum de investigaccedilotildees em diversas aacutereas de interesse Tal
estrateacutegia se repete em razatildeo evidentemente de uma inesgotaacutevel potecircncia alegoacuterica acerca da
existecircncia humana O que pretendo neste breve trabalho eacute uma anaacutelise em linha comparativa
das marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia de Alencar personagem que o proacuteprio autor considera
um de seus perfis de mulher Para tal dialogo com Benjamin que se apresenta como um elo de
compreensatildeo do heroacutei traacutegico figura esta que se mostrou mais longeva do que a proacutepria trageacutedia
helecircnica
PALAVRAS-CHAVE Luciacuteola Traacutegico Heroiacutena
LUCIacuteOLA AND THE TRAGIC ESSAY ABOUT THE MARKS OF THE
TRAGIC HERO IN A WOMAN PROFILE OF JOSEacute DE ALENCAR
ABSTRACT It is no novelty that a return to the classics helps to understand our own time It is
even a commonplace in many research fields that an approach to greek tragedy makes it
possible for us to better understand ourselves Such a strategy still turns out to be suitable
because there is an ongoing possibility of creating allegories of human existence My aim in
this short essay is to perform a comparative analysis of the tragical features of Luacutecia an
important character of Joseacute de Alencars prose who the author himself deems to be a crucial
example of his depictions of the feminine In order to do that I draw upon Walter Benjamins
work which provides us with a comprehensive overview of the tragic hero - who actually
proved himself to be more important than the helenic tragedy itself
KEYWORDS Luciacuteola Tragic Heroine
Introduccedilatildeo
O teatro traacutegico dos gregos natildeo pode mais retornar isso eacute um fato mas eacute marcante a sua
presenccedila ainda em nossa literatura ocidental Analisar o elemento traacutegico natildeo eacute necessariamente
uma novidade mas sempre se mostra desafiador relacionarmos o traacutegico agrave estrutura de
composiccedilatildeo da personagem do romance na literatura moderna O presente trabalho pretende
Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
E-mail heitor-victorhotmailcom
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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pois fazer uma leitura da personagem Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar pioneira da
seacuterie perfis de mulher como construiacuteda sob o signo do traacutegico uma heranccedila legada pelo teatro
grego e que perdura em nossa cultura
O desafio que salta aos olhos eacute certamente as dificuldades de se transpor para o romance
caracteriacutesticas da personagem do texto dramaacutetico ou entender nesta a capacidade de se
apresentar com a profundidade comum ao romance Eacute possiacutevel entender contudo que retiradas
as divergecircncias praacuteticas do meio de veiculaccedilatildeo das narrativas sobram elementos em comum
que residem no imaginaacuterio coletivo e soacute fazem enriquecer o repertoacuterio de leituras que nos
permite a prosa alencariana do seacuteculo XIX
Luacutecia eacute uma das heroiacutenas mais complexas de seu autor capaz de em poucas paacuteginas
fazer o leitor se questionar sobre sua verdadeira natureza ora por sua candura ora por sua ironia
aacutecida apego e desprendimento iacutempares no cenaacuterio romanesco de um tempo que vecirc transbordar
a quantidade de novas e encantadoras personagens Nossa heroiacutena permite-nos destacaacute-la
exatamente por encerrar um signo que extrapola o estilo de seu tempo por meio de grandes
dicotomias autoconsciecircncia e culpa sacrifiacutecio e desejo silecircncio e seduccedilatildeo a personagem se
nos mostra uacutenica no cenaacuterio veloz e dinacircmico dos romances de folhetim
Sublime Decaiacutedo Uma Alegoria
No intuito de criar um elemento intermediaacuterio entre o heroacutei da trageacutedia e o heroacutei traacutegico
que mostrarei estar presente no romance Luciacuteola de Joseacute de Alencar seraacute preciso recorrer agrave
descriccedilatildeo desse heroacutei feita por Walter Benjamin (2011) acerca do drama traacutegico alematildeo
Enquanto aparato cecircnico ou mesmo de criaccedilatildeo literaacuteria encontramos outro contexto e outra
realidade mas o elemento fundamental ainda estaraacute laacute presente O heroacutei traacutegico manteraacute uma
seacuterie de aspectos essenciais que o transformam no portador da anguacutestia humana sem perder o
inexoraacutevel do mito despido ainda mais do movimento de ritualizaccedilatildeo religioso Eacute o traacutegico que
permanece e esse seraacute fundamental para a construccedilatildeo de uma identidade nacional do drama
alematildeo segundo o autor o que nos mostra o potencial desse heroacutei traacutegico no processo de
aproximaccedilatildeo entre o discurso formador e o seu espectador (BENJAMIN 2011)
Um primeiro elemento identificado por Benjamin (2011) que nos interessa no heroacutei
traacutegico eacute o seu caraacuteter alegoacuterico se eacute que posso falar em alegoria do mito que jaacute o eacute em essecircncia
Certamente contudo figura nesse elemento a grande potecircncia reflexiva da personagem traacutegica
que poderaacute ser transportado para Luacutecia Ao relevarmos a ambiccedilatildeo do autor de traccedilar perfis de
mulher1 a alegoria destaca Luacutecia de Emiacutelia e Aureacutelia o que faz evidenciar naquela a tragicidade
em comparaccedilatildeo com estas Deixe-me verificar antes e em linhas mais gerais o que entende
Benjamin por alegoria no drama traacutegico
Devo dispensar em razatildeo de objetivos praacuteticos a discussatildeo do autor acerca das
concepccedilotildees de alegoacuterico e simboacutelico para o barroco e para o romantismo para ir diretamente ao
ponto o alegoacuterico eacute entendido como aquele que supera a unidade da obra e se posiciona com
transcendecircncia agrave medida que o siacutembolo se encerra em si mesmo mostra identidade e um caraacuteter
proacuteprio da obra em que se coloca Benjamin recorre a Goethe para mostrar a concepccedilatildeo
romacircntica de siacutembolo e alegoria ldquoHaacute uma grande diferenccedila entre o poeta procurar o particular
para chegar ao geral e contemplar o geral no particular No primeiro procedimento temos uma
alegoria e o particular serve apenas como exemplo como caso exemplar do geralrdquo
(BENJAMIN 2011 p 171)
1 Natildeo devemos deixar de reconhecer que essa intenccedilatildeo descritiva de construccedilatildeo de um perfil apresenta-se como
um elemento romanesco do narrador de Luciacuteola Como visto no primeiro capiacutetulo da obra quando o narrador
se justifica a G M sua pretensa correspondente ldquoEacute um perfil de mulher apenas esboccediladordquo (ALENCAR 1972
p 121) A todo momento que eu tocar nesse ponto se deve reconhecer que a nossa base reside antes de tudo
nesse caraacuteter narrativo do romance alencariano
Heitor Victor
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A despeito da valoraccedilatildeo feita por Goethe seguiremos a leitura de Benjamin para
entender Luacutecia como o caso particular representativo de um perfil maior o da mulher que
encarna o anjo caiacutedo seu nome daacute a grande indicaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo alegoacuterica mas a mesma
natildeo deixa de aparecer ao longo da obra Reconhecerei em minha anaacutelise na Luacutecia de Alencar
a alegoria da mulher sublime que decai em todo o seu caraacuteter duacutebio mas ainda assim
permanente que morre ao final do romance natildeo agrave toa mas de maneira necessaacuteria para
consolidar a aspiraccedilatildeo alegoacuterica desse perfil de mulher talvez o mais ousado de Alencar
Benjamin reconhece que
o seu (da alegoria) significado eacute aquele que o alegorista lhe atribuir Ele investe-o
desse significado e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele natildeo em sentido
psicoloacutegico mas ontoloacutegico Nas suas matildeos a coisa transforma-se em algo de diverso
atraveacutes dela ele fala de algo de diverso e ela torna-se para ele a chave que lhe daacute acesso
a um saber oculto que ele venera na coisa como seu emblema Eacute nisso que reside o
caraacuteter escritural da alegoria (BENJAMIN 2011 p 196)
Esse seraacute portanto o meu ponto de partida Para natildeo deixar qualquer duacutevida sobre essa
relaccedilatildeo devo me deter nesse tema ainda para mostrar na obra algumas marcas dessa relaccedilatildeo A
comeccedilar pelo elemento dramaacutetico de narraccedilatildeo o recado de G M ldquoao autorrdquo Apoacutes reconhecer
a grandeza da personagem e o valor da narrativa que se seguiraacute dramaticamente posta como
uma publicaccedilatildeo da mesma G M afirma ldquoNatildeo seraacute a imagem verdadeira da mulher que no
abismo da perdiccedilatildeo conserva a pureza drsquoalmardquo (ALENCAR 1972 p 120) Natildeo se pode
desaperceber que eacute usado natildeo a referecircncia definida dedicada agrave Luacutecia mas uma referecircncia geral
a todas as mulheres Eacute exatamente nesse caraacuteter geneacuterico que residiria o valor alegoacuterico de que
trato neste trabalho
Podemos tambeacutem recorrer aos eventos narrados no interior do romance para vermos
personificada a alegoria do anjo caiacutedo seja pela capacidade de transitar com primor entre um e
outro digo entre o angelical e o demoniacuteaco ou seja por encerrar em si mesma os dois
extremos Luacutecia se nos apresenta apenas pela narrativa de Paulo natildeo se pode esquecer e muito
de sua transitoriedade pode residir apenas nas impressotildees desse narrador personagem mas isso
em nada muda o seu caraacuteter alegoacuterico Um episoacutedio que expressa com clareza a ambivalecircncia
de Luacutecia eacute o de seu primeiro encontro iacutentimo com Paulo Em curto espaccedilo de tempo
cronoloacutegico e narrativo vemos uma transformaccedilatildeo que beira a ida pronta do sagrado ao
profano No momento em que avanccedila sobre Luacutecia Paulo reconhece
Quando poreacutem os meus laacutebios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as
formas encantadoras que debuxavam a seda pareceu-me que o sangue lhe refluiacutea ao
coraccedilatildeo As palpitaccedilotildees eram bruscas e precipites Estava liacutevida e mais branca do que
o alvo colarinho do seu roupatildeo Duas laacutegrimas em fio duas laacutegrimas longas e sentidas
como dizem que chora a corccedila expirando pareciam cristalizadas sobre a face de tatildeo
lentas que rolavam (ALENCAR 1972 p 134-135)
Vemos aqui com a reaccedilatildeo genuiacutena de Luacutecia somada agraves laacutegrimas sua comparaccedilatildeo ao
choro da corccedila notamos aqui o temperamento puro que nos surpreende a todos narrador e
leitor Surpresa que se justifica com a mudanccedila abrupta de Luacutecia para entregar a imagem que
nos foi construiacuteda pelos pares de Paulo de que nossa heroiacutena se tratava de uma cortesatilde das mais
haacutebeis
Era outra mulher O rosto cacircndido e diaacutefano que tanto me impressionou agrave doce
claridade da lua se transformara completamente tinha agora uns toques ardentes e
um fulgor estranho que o iluminava Os laacutebios finos e delicados pareciam tuacutemidos dos
desejos que incubavam Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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narina que tremiam com o aneacutelito do respiro curto e sibilante e tambeacutem nos fogos
surdos que incendiavam a pupila negra (ALENCAR 1972 p 136)
Nessa transformaccedilatildeo se apresenta a indistinguiacutevel transiccedilatildeo do sagrado do choro da
corccedila para a respiraccedilatildeo sibilante demoniacuteaca em lasciacutevia Seria inuacutetil continuar enumerando os
momentos em que se evidencia tal transformaccedilatildeo acredito que esses episoacutedios partem da
anteriormente citada alegoria que pode nortear nossa leitura do romance
Natildeo nos seraacute nunca possiacutevel bater o martelo sobre tal questatildeo seria Luacutecia o siacutembolo de
Goethe ou a alegoria de Benjamin Somando contudo as marcas supracitadas a ainda o
reconhecimento de outras marcas do traacutegico preferirei me manter na leitura de Benjamin de
que o alegoacuterico eacute ainda desejaacutevel mesmo no romance exatamente por seu valor transcendente
e assim poderemos entender Luacutecia e seu perfil exclusivo de mulher como tambeacutem dotado de
valor reflexivo e generalista das anguacutestias femininas
Marcas do Heroacutei Traacutegico
As laacutegrimas do episoacutedio transcrito acima servem como indicador do demais elementos
de proximidade entre o heroacutei traacutegico de Benjamin e a Luacutecia de Alencar Tal choro evidencia
uma dor suprimida mas acima de tudo encerra em si quatro aspectos sobre os quais tratarei
neste trabalho o silecircncio a culpa a consciecircncia e o sacrifiacutecio O silecircncio de quem guarda para
si o seu verdadeiro eu suas dores e reflexotildees Eacute nas laacutegrimas que temos o primeiro vislumbre
da profundidade traacutegica de Luacutecia A personagem demonstra nesse exato momento plena
consciecircncia de si de seu destino e sente a culpa que pesa sobre si as laacutegrimas expressam o
ardor do seu sacrifiacutecio pois satildeo sublimadas por sua candura Vejamos adiante o que pretendo
dizer com esses quatro aspectos e sua relaccedilatildeo com o traacutegico
Devo principiar contrariando a ordem anterior pelo sacrifiacutecio para manter a
abordagem de Benjamin O autor entende que o heroacutei traacutegico realiza sua atuaccedilatildeo maior em sua
proacutepria morte o sacrifiacutecio maior e que eacute exatamente entatildeo que o heroacutei se distingue dos demais
indiviacuteduos Benjamin afirma
A marca identificativa da trageacutedia natildeo estaacute pois num conflito de niacuteveis entre o heroacutei
e mundo circundante [] mas sim a forma uacutenica grega de tais conflitos E onde deve
ser procurada essa forma Que tendecircncia se esconde no fenocircmeno traacutegico Por que
causa morre o heroacutei A poesia traacutegica assenta na ideia do sacrifiacutecio (BENJAMIN
2011 p 108)
Luacutecia se sacrifica natildeo apenas porque morre mas se encerra em sua morte uma entrega
definitiva a Paulo e agrave sua irmatilde Ana A morte de Luacutecia eacute decisiva para a construccedilatildeo e para a
profundidade da personagem aleacutem de ser elemento fundamental para a generalidade
constitutiva da alegoria Ainda mais que o sacrifiacutecio do heroacutei traacutegico natildeo eacute um sacrifiacutecio
comum Seguindo ainda o raciociacutenio de Benjamin temos
o sacrifiacutecio traacutegico difere no seu objeto ndash o heroacutei ndash de todos os outros e eacute ao mesmo
tempo inaugural e terminal Terminal no sentido do sacrifiacutecio expiatoacuterio devido aos
deuses guardiatildees de um antigo direito e inaugural no sentido de uma accedilatildeo que em
algum lugar desse direito anuncia novos conteuacutedos da vida do povo (BENJAMIN
2011 p 108)
Ou seja o sacrifiacutecio de Luacutecia eacute terminal expiatoacuterio de sua vida de perfiacutedia Luacutecia
reconhece em seus uacuteltimos momentos para Paulo a sua importacircncia e exatamente por isso por
ele se sacrifica
Heitor Victor
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ndash Paulo Paulo Tu bem sabes que com essa palavra me farias cometer crimes se
crimes fosse necessaacuterio para te provar que eu soacute vivo da vida que me daacutes e me podes
tirar com um sopro Natildeo sou eu criatura tua natildeo renasci pela luz que derramaste em
minha alma Natildeo eacutes meu senhor meu artista meu pai e meu criador (ALENCAR
1972 p 243)
O sacrifiacutecio de Luacutecia como se evidencia natildeo estaacute apenas na morte mas na sua entrega
completa Entrega que se apresenta como sua uacutenica forma de se redimir da vida que levara O
sacrifiacutecio reconhecendo ainda tais aspectos de Benjamin eacute tambeacutem inaugural quando se
direciona a Ana sua irmatilde em quem enxerga a uacutenica continuidade possiacutevel Seja para sua
protegida ou mesmo para a continuidade da vida de Paulo possiacutevel apenas com o encerramento
da sua proacutepria vida
Outro aspecto do heroacutei traacutegico de Benjamin presente em Luciacuteola eacute o silecircncio jaacute
mencionado anteriormente ldquoO heroacutei traacutegico tem apenas uma linguagem que plenamente lhe
corresponde precisamente a do silecircncio Assim eacute desde o iniacuteciordquo (BENJAMIN 2011 p 109)
Esse silecircncio eacute identificaacutevel em diversos momentos em Luacutecia pois evoca a resiliecircncia da
heroiacutena com o seu fardo Natildeo eacute um silecircncio de conformismo ou mesmo qualquer espeacutecie de
natildeo se importar que a toma mas ldquoo testemunho de um sofrimento mudordquo (BENJAMIN 2011
p 109) Eacute com esse silecircncio que Luacutecia arrebata o leitor para o seu drama pessoal natildeo como um
perseguidor ou inquisidor mas como partiacutecipe de seu pesar de sua dor Tal silecircncio aparece
nos momentos de prazer como quando se divertia no banquete noturno na casa de Saacute ldquoLuacutecia
fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria e caiacutera no costumado abatimento e distraccedilatildeo Eu a
contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava
quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaiacutedordquo (ALENCAR 1972 p 152-
153) Ou mesmo em sua face mais sincera jaacute como Maria ldquoQuando cheguei Luacutecia estava soacute
no jardim debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujaacutes tatildeo absorvida em sua
meditaccedilatildeo que natildeo me percebeurdquo (ALENCAR 1972 p 245)
Seguindo com minha anaacutelise comparativa devo abordar o aspecto da consciecircncia
fundamental para a diferenciaccedilatildeo entre uma outra personagem qualquer e o heroacutei traacutegico Esse
aspecto em especial eacute importante para a leitura que apresento por se tratar de algo que
claramente distingue o heroacutei romacircntico convencional daquele que eacute regido pelo signo do
traacutegico O heroacutei do romance desconhece completamente o seu destino e reside precisamente
nisso suas duacutevidas e questionamentos Nossa heroiacutena traacutegica contudo ainda que tambeacutem
romacircntica ndash natildeo o desejamos negar em nenhum momento se mostra consciente do seu caminho
Para esclarecer esse sentido de consciecircncia Benjamin traz uma fala de Lukaacutecs acerca do
reconhecimento da proacutepria morte
Tambeacutem a escolha da morte pelo homem traacutegico eacute um heroiacutesmo soacute aparentemente
heroico soacute assim visto de um ponto de vista humano e psicoloacutegico os heroacuteis
moribundos da trageacutedia ndash escrevia haacute pouco tempo um jovem autor traacutegico ndash estatildeo
mortos muito tempo antes de morrerem (BENJAMIN 2011 p 117)
Apenas a cargo de exemplificaccedilatildeo que se encaixa bem na ideia de reconhecimento da
morte como marca do heroacutei traacutegico podemos citar a consciecircncia apresentada por Luacutecia antes
de sua proacutepria morte ldquondash Se eu pudesse viver haveria forccedilas que me separassem de ti Haveraacute
sacrifiacutecio que eu natildeo fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade Mas Deus natildeo
quis Sinto que a vida me fogerdquo (ALENCAR 1972 p 248)
Devo tratar por fim do quarto aspecto a que me reservei neste trabalho que eacute o da culpa
Sem duacutevidas o eixo central de todo o romance de Alencar A culpa natildeo pode ser entendida
contudo como o arrependimento de seus atos ou mesmo sujeiccedilatildeo completa ao proacuteprio erro A
culpa como elemento traacutegico traz um valor de compreensatildeo Nossa heroiacutena traacutegica natildeo apenas
se lamenta da vida que fora levada a ter mas por meio da culpa ela se reconstroacutei eacute precisamente
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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por meio da culpa que no fim em meio ao embate entre anjo e democircnio prevalece sua face
angelical e a alegoria alcanccedila a sua plenitude Recorro ainda agraves palavras de Benjamin para
clarificar essa noccedilatildeo de culpa no drama traacutegico
No decorrer da accedilatildeo traacutegica um heroacutei assume e internaliza essa culpa que segundo
as antigas normas eacute imposta aos homens a partir de fora pela desgraccedila Ao refleti-la
na sua consciecircncia de si ele furta-se agrave sua tutela demoniacuteaca [] Paradoxal como
todas as manifestaccedilotildees da culpa traacutegica ela consiste apenas numa orgulhosa
consciecircncia de culpa na qual a figura heroica se liberta da servidatildeo que na sua
lsquoinocecircnciarsquo a sujeita agrave culpa demoniacuteaca (BENJAMIN 2011 p 135)
Essa culpa talvez seja dentre os aspectos ateacute aqui elencados o que mais se mostra claro
ao longo de Luciacuteola Nos momentos de maior comoccedilatildeo compartilhamos com Luacutecia esse seu e
genuiacuteno sentimento e eacute precisamente graccedilas a ele que o lado sagrado desse anjo caiacutedo prevalece
e nos faz criar a empatia entre leitor e personagem Vejamos portanto dois casos que
expressam os dois extremos da culpa vivida por Luacutecia Ora tal sentimento se expressa pela
ironia como quando Paulo no evento da casa de Saacute tenta singularizar a sua presenccedila e nossa
heroiacutena rebate com acidez
ndash Ora Haacute tanta mulher bonita Qualquer destas vale mais do que eu acredite Demais
quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado saberaacute o senhor de
quem satildeo os laacutebios que toca Qual Eacute uma mulher Uma presa em que ceva o apetite
Que importa o nome Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe
prepararam esta ceia Conhece-os Nem por isso as iguarias lhe parecem menos
saborosas (ALENCAR 1972 p 153)
Em outro momento contudo vemos a culpa sob outra roupagem da maneira mais
sincera em um de seus momentos de maior entrega
ndash Tu podes me fazer voltar agrave treva de que me arrancaste podes estancar as fontes de
minha existecircncia que manam de tua alma e natildeo me haacutes de ouvir uma soacute queixa A
dor como a alegria seratildeo sempre benditas por que viratildeo de ti Mas Paulo a suacuteplica
do humilde natildeo ofende Deus a permite e exalccedila Natildeo me retires a graccedila e a becircnccedilatildeo
que me deste Salva-me Paulo Salva-me a ti Salva-me de mim mesma
(ALENCAR 1972 p 243)
Natildeo agrave toa seleciono esta uacuteltima fala de Luacutecia para encerrar a argumentaccedilatildeo pois
precisamente aqui a culpa se mostra como o elemento libertador e eacute aqui que Luacutecia talvez tenha
entendido e absorvido o orgulho citado por Benjamin para livraacute-la da tutela demoniacuteaca Liberta-
se finalmente da servidatildeo que a acomete por toda a obra A projeccedilatildeo em Paulo eacute certamente a
projeccedilatildeo em um amor libertador que foi capaz de transfigurar a modalidade da culpa que sentia
Eacute entatildeo que Luacutecia deixa claro que compreende que a dor e a alegria se complementam e assim
encerra o perfil da mulher que decaiu mas que no fim projeta em sua alegoria a clareza do seu
papel em sua proacutepria narrativa Essa compreensatildeo faz de Luacutecia a heroiacutena de Alencar que mais
beira a perdiccedilatildeo a mais altiva e capaz de se assemelhar agrave heroiacutena da trageacutedia e assim como laacute
melhor do que se realmente apresentam homens e mulheres
Conclusatildeo
Ao recorrer portanto agraves estrateacutegias de identificaccedilatildeo da interioridade e de posiccedilotildees
constitutivas do heroacutei traacutegico acredito que se torna possiacutevel clarificar como o teatro grego
passou a atuar sobre o mito por meio de maior variabilidade narrativa do mesmo Essa
possibilidade de apresentar uma personagem mais profunda ainda que por meio da accedilatildeo
Heitor Victor
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dramaacutetica eleva o texto teatral e especificamente a trageacutedia ndash que usa a personagem miacutetica
como forma de apresentar seres mais elevados do que os indiviacuteduos da sociedade ndash ao papel de
ressignificar o mito Eacute por meio dessas personagens dramaacuteticas que a fabulaccedilatildeo estaacutetica do mito
pode apresentar novos argumentos para o meio em que estaacute inserida
Reconhecendo nas estrateacutegias de interpretaccedilatildeo da personagem dramaacutetica a ferramenta
de atualizaccedilatildeo do mito despida do elemento religioso foi possiacutevel analisar com certo grau de
convicccedilatildeo o heroacutei da trageacutedia Evidenciou-se como isso o papel desse heroacutei e sua capacidade
de conduzir efetivamente a narrativa miacutetica para novos caminhos interpretativos possibilitando
essa narrativa a se apresentar sob nova perspectiva O heroacutei visto dessa maneira ganha
destaque como formador de questionamentos e permite ao leitorespectador por meio do
elemento traacutegico estabelecer nova compreensatildeo
Esse heroacutei traacutegico permanece com o seu poder reflexivo mesmo fora do contexto miacutetico
levando-nos ao reconhecimento do traacutegico como formador efetivo de questionamentos Satildeo
estes aspectos traacutegicos que Benjamin identifica como herdeiros do teatro grego no teatro
alematildeo que eu resgato como possiacuteveis na construccedilatildeo de profundidade do heroacutei do romance eacute
precisamente sob esses aspectos que Luacutecia ndash a heroiacutena romacircntica mas dotada do elemento
traacutegico ndash eacute capaz de saltar aos olhos do leitor como dona de seu proacuteprio destino jamais apenas
sujeita ao mesmo Com isso cada traccedilo da heroiacutena de Alencar eacute capaz de se mostrar natildeo apenas
como marca de um perfil de mulher mas tambeacutem o perfil de um aspecto comum a todas as
mulheres Somente por meio da alegoria do anjo caiacutedo se poderia alcanccedilar tamanha projeccedilatildeo
dentro de um cenaacuterio em que o indiviacuteduo eacute professado como ponto central da construccedilatildeo de
uma obra de arte
REFEREcircNCIAS
ALENCAR Joseacute de Obras Imortais da Nossa Literatura Joseacute de Alencar Iracema ndash
Luciacuteola Satildeo Paulo Editora Trecircs 1972
ARISTOacuteTELES Poeacutetica In A Poeacutetica Claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 12ordf ediccedilatildeo 2005
BENJAMIN Walter Origem do Drama Traacutegico Alematildeo Belo Horizonte Autecircntica Editora
2011
CANDIDO Antonio A Personagem do Romance In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo Paulo
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ELIADE Mircea Mito e Realidade Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2ordf ediccedilatildeo 1986
PRADO Deacutecio de Almeida A Personagem no Teatro In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo
Paulo Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946512
CARACTERIZACcedilAtildeO SIMBOacuteLICA ATRAVEacuteS DE SIacuteMILES
ANIMAIS NA ILIacuteADA
Marco Valeacuterio Classe Colonnelli (Universidade Federal da Paraiacuteba)
RESUMO O intuito deste artigo eacute demonstrar a partir de alguns siacutemiles como Homero
produz uma caracterizaccedilatildeo concisa de seus heroacuteis A perspectiva de abordagem neste
estudo eacute comprovar a eficaacutecia do uso dos siacutemiles pelo poeta em consonacircncia com a obra
de Aristoacuteteles Investigaccedilatildeo dos Animais que nos permite aferir certo valor simboacutelico de
determinados animais ainda no seacutec IV aC Partindo de comparaccedilotildees com animais o
poeta produz siacutemiles que formam um quadro imediato e eficaz do heroacutei projetado pela
forccedila simboacutelica e analoacutegica que o animal evoca como termo comparativo na cultura grega
arcaica e claacutessica
PALAVRAS-CHAVES Caracterizaccedilatildeo Iliacuteada Homero siacutemiles eacutepica Aristoacuteteles
SYMBOLIC CHARACTERIZATION THROUGH SIMILES
ANIMALS IN THE ILIAD
ABSTRACT The purpose of this article is to demonstrate from some similes how Homer
produces a concise characterization of his heroes The prospect of approach in this study
is to prove the efficacy of the use of similes by the poet in accord with the work of
Aristotle Research of the Animals which allows us to assess certain symbolic value of
certain animals even in the 4th century BC Starting from the comparison with animals
the poet produces similes that form an immediate and effective framework of the hero
projected by the symbolic and analogue force that the animal evokes as a comparative
term in the archaic and classical Greek culture
KEYWORDS Characterization Iliad Homero Facsimiles Epic Aristotle
1 Sobre o siacutemile homeacuterico
Desde o lanccedilamento do livro de Milman Parry ldquoThe Making of Homeric Verserdquo
que revelou novas facetas para o estudo de Homero o siacutemile passou a ser estudado por
uma infinidade de autores Foacutermulas funccedilotildees oralidade sequecircncias de imagens dentre
outras caracteriacutesticas foram tatildeo sistematicamente investigadas nos siacutemiles que um resumo
sobre essas principais teorias produziria um material muito denso1
E-mail mcolonnellihotmailcom 1 Desde os estudos de Milman Parry duas principais linhas de estudos tecircm debatido calorosamente a
possibilidade de uma caracterizaccedilatildeo de personagens a despeito das foacutermulas e repositoacuterios de palavras
usados nos dois poemas eacutepicos de Homero Adam Parry filho de Milman em seu artigo ldquoLanguage and
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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O siacutemile grosso modo eacute uma comparaccedilatildeo entre coisas Coffey que analisou os
siacutemiles na eacutepica homeacuterica encontra dois grupos um que eacute
composto de uma palavra introdutoacuteria tal como ὡς seguida por um nome que
eacute frequentemente qualificado por um adjetivo ou um particiacutepio [] e casos
nos quais uma ou mais oraccedilotildees relativas contendo uma forma infinitiva ou
verbos flexionados estatildeo ligadas a uma oraccedilatildeo anterior de comparaccedilatildeordquo
(Coffey 1957 60) e outro ldquoo siacutemile longo que consiste em uma sentenccedila
separada introduzida por ὡς ὅτε ou palavras similaresrdquo2
Aqui as duas formas de siacutemiles nos interessam jaacute que a primeira trata de uma economia
em termos de caracterizaccedilatildeo e a segunda um desenvolvimento da situaccedilatildeo da personagem
em conflitos eacuteticos e psicoloacutegicos
Um pouco mais tarde Moulton passa a estudar os siacutemiles a partir de suas
sequecircncias ultrapassando o esquema fechado dos siacutemiles e de suas correspondecircncias
sintaacuteticas para ampliaacute-los ateacute uma anaacutelise semacircntica demonstrando unidades de sentido
maiores na sequecircncia do enredo Duas tambeacutem satildeo as formas encontradas por ele siacutemiles
pares e ainda siacutemiles sucessivos ou seja respectivamente um siacutemile direto simples
menor e outro longo com unidades maiores e liames semacircnticos
Coffey ainda apresenta algumas funccedilotildees que o siacutemile homeacuterico desempenha tais
como movimentaccedilatildeo descriccedilatildeo notaccedilatildeo temporal enumeraccedilatildeo caracterizaccedilatildeo dentre
outras funccedilotildees Especificamente no tocante agrave caracterizaccedilatildeo diversos siacutemiles apresentam
como termo comparativo animais Clarke por exemplo em seu artigo ldquoEntre Homens e
Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo pontua em contraste com teoacutericos que soacute veem o
siacutemile como uma ornamentaccedilatildeo formulaica que ldquoo simbolismo envolvendo animais
selvagens e agressivos eacute muito maior que uma questatildeo de estilo e que eles desempenham
grande papel no retrato de Homero dos problemas eacuteticos e psicoloacutegicos do heroiacutesmordquo
(Clarke 2006 p 2)
Eacute desse ponto de vista entatildeo que partimos em nossa investigaccedilatildeo ou seja
examinar em suas duas formas o potencial que os siacutemiles animais possuem na Iliacuteada
como teacutecnica de caracterizaccedilatildeo3 Eacute necessaacuterio tambeacutem antes determinar para que o
quadro de comparaccedilatildeo seja efetivo o valor simboacutelico que cada animal pode atribuir ao
seu comparante dentro da estrutura do siacutemile e soacute assim procedermos com a anaacutelise de
caracterizaccedilatildeo
2 A simbologia dos animais como elemento caracterizador
Estudar a caracterizaccedilatildeo de uma personagem sem seu caraacuteter (ἦθος) manifesto
pode parecer uma empresa arriscada Entretanto eacute possiacutevel determinar este caraacutecter
atraveacutes de analogias que deixam entrever certos estados eacuteticos e psicoloacutegicos das
personagens Eacute dessa forma que entendemos com Clark que
Characterization in Homerrdquo jaacute havia contestado boa parte dos epiacutetetos formulaicos para demonstrar certa
habilidade do poeta eacutepico em sua construccedilatildeo de caracterizaccedilatildeo No tocante aos siacutemiles M Coffey em
ldquoThe function of the Homeric Similerdquo demonstra como os siacutemiles desempenham diversas funccedilotildees dentre
elas a de caracterizaccedilatildeo e ainda mais Carroll Moulton em ldquoSimiles in the Iliadrdquo e ldquoSimile Sequencesrdquo
aponta como os siacutemiles produzem caracterizaccedilatildeo e influenciam em toda narrativa posterior para aleacutem de
uma foacutermula meramente ornamental respectivamente Importante contribuiccedilatildeo tambeacutem eacute o artigo de
Michel Clark ldquoEntre Homens e Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo que aponta comportamentos eacuteticos e
psicoloacutegicos nos siacutemiles animais 2 Todas as traduccedilotildees satildeo de responsabilidade do autor Texto grego extraiacutedo das ediccedilotildees de Paul Mazon e
Balme 3 Cf Adam Parry 1972 p 1-22
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Os siacutemiles animais satildeo um excelente candidato para gerar tal tipo de sistema
eles satildeo tantos e tatildeo variados nas conexotildees que forjam que seu efeito
combinado pode natildeo apenas ampliar a narrativa mas de fato assimilar
aspectos da aparecircncia das personagens e da personalidade do guerreiro ao
animal (Clark 2006 p 4)4
Um dado relevante neste universo eacutepico eacute que ldquoos animais de Homero tecircm
igualmente o mesmo aparato emocional e cognitivo que os homensrdquo (Clark 2006 11)
Na Iliacuteada poreacutem jamais encontraremos algum tipo de eacutethos (ἦθος) aplicado ao animal
mas somente o contraacuterio disso o animal conferindo eacutethos ao homem Em Homero os
animais estatildeo encobertos por uma carga simboacutelica que os determina em certos aspectos
com traccedilos bem definidos Mas como eacute possiacutevel atribuir um eacutethos ao animal Como ver
tacitamente no animal um eacutethos humano Para entendermos melhor essa relaccedilatildeo eacute
preciso recorrermos a Aristoacuteteles
Em seu tratado Investigaccedilatildeo dos Animais o filoacutesofo faz uma afirmaccedilatildeo que parece
se coadunar com o mundo homeacuterico
Haacute pois tambeacutem em muitos desses outros animais traccedilos de caracteriacutesticas
psiacutequicas que nos homens possuem diferenccedilas mais claras Assim mansidatildeo
e ferocidade doccedilura e violecircncia coragem e covardia temor e ousadia vontade
e astuacutecia estatildeo em muitos animais semelhantes aos homens tambeacutem ateacute em
inteligecircncia
῎Ενεστι γὰρ ἐν τοῖς πλείστοις καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ἴχνη τῶν περὶ τὴν ψυχὴν
τρόπων ἅπερ ἐπὶ τῶν ἀνθρώπων ἔχει φανερωτέρας τὰς διαφοράςmiddot καὶ γὰρ
ἡμερότης καὶ ἀγριότης καὶ πραότης καὶ χαλεπότης καὶ ἀνδρία καὶ δειλία καὶ
φόβοι καὶ θάρρη καὶ θυμοὶ καὶ πανουργίαι καὶ τῆς περὶ τὴν διάνοιαν συνέσεως
ἔνεισιν ἐν πολλοῖς αὐτῶν ὁμοιότητες [] (Arist Investigaccedilotildees sobre os
animais 588 a 19-25)
Aristoacuteteles reconhece duas caracteriacutesticas psiacutequicas diferentes entre os animais e
os homens A primeira eacute de grau ou seja entre os homens uns teratildeo mais outros menos
dessas caracteriacutesticas e a mesma relaccedilatildeo entre homens e animais A segunda eacute por
analogia ou seja por certa semelhanccedila entre as caracteriacutesticas psiacutequicas dos homens
comparadas a certas manifestaccedilotildees nos animais5 Partindo dessa premissa analoacutegica
Aristoacuteteles neste tratado delineia o caraacuteter de alguns animais com base em sentimentos
humanos A analogia que faz a ponte entre essas constituiccedilotildees psiacutequicas se vale tambeacutem
do simbolismo que cada animal possuiacutea jaacute entre os gregos Este simbolismo natildeo tem um
vieacutes religioso ainda que seja necessaacuterio reconhecer essa dimensatildeo simboacutelica na cultura
grega6 mas meramente empiacuterico
Eacute nesse sentido que vamos encontrar em Aristoacuteteles a aplicaccedilatildeo do eacutethos humano
por analogia aos animais Worther tambeacutem assinala que
Aristoacuteteles define o ἦθος como uma capacidade ou potecircncia primeira e natural
possuiacuteda por todos os animais em virtude da qual eles satildeo natildeo somente capazes
4 Moulton discorda de que isso seja possiacutevel 5 Diferenccedila segundo a analogia consiste em estabelecer que a capacidade natural de um dado animal se
encontra sob uma forma diferente mas com a mesma funccedilatildeo ou uma funccedilatildeo anaacuteloga em um outro animal
Assim a arte a sabedoria ou a inteligecircncia do homem existem em outros animais mas sob a forma de
uma capacidade que natildeo faz intervir o elemento racional que pertence propriamente ao homem
(Woerther 2007 138) 6 Natildeo se nega o valor das relaccedilotildees religiosas entre homens e animais mas deve-se tambeacutem ressaltar as
relaccedilotildees sociais e poliacuteticas que esta associaccedilatildeo releva (Bodson 1994 55)
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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de ser afetados por paixotildees como tambeacutem suscetiacuteveis de desenvolver graccedilas
agraves accedilotildees repetidas disposiccedilotildees habituais da alma (Woerther 2007 p 138)
A observaccedilatildeo do filoacutesofo sobre o eacutethos animal tambeacutem eacute extraiacuteda da proacutepria obra
de Homero de quem ele muitas vezes cita passagens para justificar seus escritos
bioloacutegicos o que nos leva a crer que as observaccedilotildees homeacutericas e aristoteacutelicas formam um
todo empiacuterico de observaccedilotildees a respeito da natureza em geral Desse saber empiacuterico o
valor do eacutethos animal passa a figurar como um siacutembolo que o animal possui em si
Vejamos agora como certos valores simboacutelicos dos animais confluem para uma
caracterizaccedilatildeo taacutecita em algumas passagens da Iliacuteada
3 Siacutemiles animais como elementos caracterizadores
Muitos siacutemiles animais podem ser encontrados na Iliacuteada O leatildeo eacute de longe o
animal mais citado como imagem para os heroacuteis entretanto outros animais como o cervo
ou a cabra que satildeo presas tambeacutem abundam nas comparaccedilotildees Alguns animais satildeo
empregados especificamente em algumas passagens de modo natildeo muito usual Em uma
passagem do canto VIII da Iliacuteada Aquiles eacute comparado a um golfinho natildeo soacute pelo locus
de sua caccedila mas tambeacutem por algumas reconhecidas qualidades deste animal Vejamos o
siacutemile
Em seguida o divino Aquiles deixou sua lanccedila na ribeira
Inclinada nos arbustos e mergulhou semelhante a um deus
Portando apenas uma espada e na mente meditava maus atos
E golpeou dando giros dos feridos pela arma uma gritaria elevou-se
Indecorosa enquanto tingia a aacutegua de vermelho
Tal como quando outros peixes dos golfinhos de grande ventre
Fugindo enchem os recantos de uma baiacutea fundeada
Aterrados pois tudo aquilo que consegue apanhar devora
Assim os Troianos para as correntes do terriacutevel rio
Fugiam pelas iacutengremes ribanceiras Aquiles quando cansou
Suas matildeos de matar recolheu do rio doze jovens vivos
Paga pela morte de Paacutetroclo filho de Meneacutecio
Αὐτὰρ ὃ διογενὴς δόρυ μὲν λίπεν αὐτοῦ ἐπ ὄχθῃ
κεκλιμένον μυρίκῃσιν ὃ δ ἔσθορε δαίμονι ἶσος
φάσγανον οἶον ἔχων κακὰ δὲ φρεσὶ μήδετο ἔργα
τύπτε δ ἐπιστροφάδηνmiddot τῶν δὲ στόνος ὄρνυτ ἀεικὴς
ἄορι θεινομένων ἐρυθαίνετο δ αἵματι ὕδωρ
ὡς δ ὑπὸ δελφῖνος μεγακήτεος ἰχθύες ἄλλοι
φεύγοντες πιμπλᾶσι μυχοὺς λιμένος εὐόρμου
δειδιότεςmiddot μάλα γάρ τε κατεσθίει ὅν κε λάβῃσινmiddot
ὣς Τρῶες ποταμοῖο κατὰ δεινοῖο ῥέεθρα
πτῶσσον ὑπὸ κρημνούς ὃ δ ἐπεὶ κάμε χεῖρας ἐναίρων
ζωοὺς ἐκ ποταμοῖο δυώδεκα λέξατο κούρους
ποινὴν Πατρόκλοιο Μενοιτιάδαο θανόντοςmiddot
(Il VIII 17-28)
Em suas investigaccedilotildees Aristoacuteteles nos fornece certos traccedilos do animal que
configuram seu eacutethos Assim em 631a ele afirma que ldquodentre os animais mariacutetimos
muitos sinais de doccedilura e inteligecircncia satildeo anunciados a respeito dos golfinhos assim
como tambeacutem em relaccedilatildeo aos filhos satildeo amorosos e apaixonadosrdquo (Τῶν δὲ θαλαττίων
πλεῖστα λέγεται σημεῖα περὶ τοὺς δελφῖνας πραότητος καὶ ἡμερότητος καὶ δὴ καὶ πρὸς
παῖδας ἔρωτες καὶ ἐπιθυμίαι ndash Arist 631a 8-11) Natildeo obstante esta caracteriacutestica doacutecil
do animal a sua destreza na caccedila tambeacutem eacute exaltada Em outra passagem ele acrescenta
Marco V C Colonnelli
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Fala-se tambeacutem coisas incriacuteveis a respeito da rapidez do animal Parece pois
que dentre todos os animais tanto da aacutegua quanto da terra eacute o mais raacutepido e
tambeacutem saltam por cima dos mastros dos grandes navios Isso lhes acontece
sobretudo quando perseguem algum peixe graccedilas a sua necessidade alimentar
Neste momento pois se o peixe fugir perseguem-no ateacute o fundo do mar por
causa de sua fome [] E girando sobre si mesmos lanccedilam-se como uma
flecha desejando percorrer com velocidade uma grande extensatildeo para respirar
Λέγεται δὲ καὶ περὶ ταχυτῆτος ἄπιστα τοῦ ζῴουmiddot ἁπάντων γὰρ δοκεῖ εἶναι
ζῴων τάχιστον καὶ τῶν ἐνύδρων καὶ τῶν χερσαίων καὶ ὑπεράλλονται δὲ
πλοίων μεγάλων ἱστούς Μάλιστα δὲ τοῦτ αὐτοῖς συμβαίνει ὅταν διώκωσί
τινα ἰχθὺν τροφῆς χάρινmiddot τότε γάρ ἐὰν ἀποφεύγῃ συνακολουθοῦσιν εἰς βυθὸν
διὰ τὸ πεινῆν [] καὶ συστρέψαντες ἑαυτοὺς φέρονται ὥσπερ τόξευμα τῇ
ταχυτῆτι τὸ μῆκος διελθεῖν βουλόμενοι πρὸς τὴν ἀναπνοήν (Arist 631a 20-
27)
A caracteriacutestica do golfinho em sua caccedila parece iluminar o curto siacutemile em que
Aquiles toma as presas de guerra A rapidez do ataque do animal o mais raacutepido dentre
todos alude a proacutepria destreza do heroacutei que tambeacutem eacute raacutepido em seu ataque e efetivo em
sua conquista O ataque eacute motivado pela voracidade da fome do animal e o modo como
ele caccedila tambeacutem estaacute representado atraveacutes dos giros que facilmente o animal executa
Aquiles golpeia girando tal como o golfinho Se o amor filial eacute a caracteriacutestica do animal
natildeo se pode negar que o iacutempeto que move o heroacutei eacute a vinganccedila pela morte de Paacutetroclo
demonstrando a amizade que os unia A comparaccedilatildeo com o golfinho eacute salutar em diversos
aspectos mas sobretudo pela inteligecircncia e pela destreza que o animal evoca na passagem
Outro animal natildeo menos mencionado em siacutemiles do que o leatildeo eacute o catildeo de caccedila
Apesar de ser um animal domesticado sua ferocidade na caccedila eacute muito representada em
siacutemiles Aristoacuteteles nos informa a respeito deles que
A raccedila dos catildees de caccedila em Molosso natildeo diferem em nada das raccedilas de outras
localidades mas a raccedila que pastoreia junto aos rebanhos difere em porte e em
coragem contra animais selvagens E diferem em coragem e dedicaccedilatildeo
tambeacutem a raccedila dos catildees gerados do cruzamento entre os de Molosso e da
Lacocircnia
Τὸ δ ἐν τῇ Μολοττίᾳ γένος τῶν κυνῶν τὸ μὲν θηρευτικὸν οὐδὲν διαφέρει πρὸς
τὸ παρὰ τοῖς ἄλλοις τὸ δ ἀκόλουθον τοῖς προβάτοις τῷ μεγέθει καὶ τῇ ἀνδρείᾳ
τῇ πρὸς τὰ θηρία Διαφέρουσι δ οἱ ἐξ ἀμφοῖν ἀνδρείᾳ καὶ φιλοπονίᾳ οἵ τε ἐκ
τῶν ἐν τῇ Μολοττίᾳ γινομένων κυνῶν καὶ ἐκ τῶν Λακωνικῶν (Arist HA 608
a 27-33)
Duas caracteriacutesticas satildeo apontadas no animal a coragem contra animais selvagens
e a sua dedicaccedilatildeo na caccedila Eacute com esse eacutethos que Heitor eacute pintado no canto VIII da Iliacuteada
no momento em que Zeus o favorece na batalha contra os Aqueus
De novo nos Troianos o Oliacutempio excitou a coragem
E eles impeliram os Aqueus direto agrave profunda trincheira
Heitor entre os primeiros movia-se fero em sua forccedila
Como quando um dos catildees de javalis selvagens ou de leotildees
Toca sucessivamente perseguindo-os com patas ceacuteleres
As coxas ou naacutedegas e tem olhos fixos em quem se vira
Assim Heitor perseguia os Aqueus de longos cabelos
Matando sempre o mais recuado enquanto os outros fugiam
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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῍Αψ δ αὖτις Τρώεσσιν ᾿Ολύμπιος ἐν μένος ὦρσενmiddot
οἳ δ ἰθὺς τάφροιο βαθείης ὦσαν ᾿Αχαιούςmiddot
῞Εκτωρ δ ἐν πρώτοισι κίε σθένεϊ βλεμεαίνων
ὡς δ ὅτε τίς τε κύων συὸς ἀγρίου ἠὲ λέοντος
ἅπτηται κατόπισθε ποσὶν ταχέεσσι διώκων
ἰσχία τε γλουτούς τε ἑλισσόμενόν τε δοκεύει
ὣς ῞Εκτωρ ὤπαζε κάρη κομόωντας ᾿Αχαιούς
αἰὲν ἀποκτείνων τὸν ὀπίστατονmiddot οἳ δὲ φέβοντο
(Il VIII 335-343)
Na passagem acima a coragem tambeacutem encontrada no ethos animal eacute insuflada por Zeus
nos Troianos O siacutemile parece de fato retomar a qualidade deste animal em colocar em debandada
animais ferozes Entretanto a diligecircncia e a dedicaccedilatildeo do animal natildeo fica para traacutes na
representaccedilatildeo jaacute que o catildeo tem os olhos fixos nos animais que lhe satildeo superiores em porte fiacutesico
natildeo descuidando daqueles que viram O siacutemile indica sobretudo o cuidado presente no eacutethos do
animal na dispersatildeo das feras reproduzindo a imagem de heroacuteis mais fracos que inspirados pelos
deuses potildeem em debandada heroacuteis mais robustos Nesse sentido apesar da coragem eacute necessaacuteria
muita cautela na perseguiccedilatildeo para que natildeo se invertam as posiccedilotildees entre caccedila e caccedilador
Retomando a relaccedilatildeo entre os animais acima tambeacutem eacute possiacutevel perceber que o
caraacuteter dessas feras natildeo como habitualmente satildeo representadas ou seja como animais
ferozes e corajosos mas como animais que algumas vezes satildeo covardes Neste caso o
leatildeo tatildeo usado em siacutemiles de batalha para denotar violecircncia ferocidade tambeacutem possui
iacutendice de covardia Aristoacuteteles nas Investigaccedilotildees sobre os Animais observa que
Haacute duas raccedilas de Leotildees haacute uma que eacute mais roliccedila juba encaracolada e covarde
outra mais larga de juba ericcedilada e mais corajosa Fogem algumas vezes
entretanto com o rabo entre as pernas como os catildees Jaacute se viu tambeacutem um leatildeo
que estava a ponto de se lanccedilar sobre um javali e como percebeu que esse se
ouriccedilava fugiu Eacute deacutebil contra golpes em sua barriga mas suporta muitos
golpes em outra parte do corpo e tem um cabeccedila forte
Γένη δ ἐστὶ λεόντων δύοmiddot τούτων δ ἐστὶ τὸ μὲν στρογγυλώτερον καὶ
οὐλοτριχώτερον δειλότερον τὸ δὲ μακρότερον καὶ εὐθύτριχον ἀνδρειότερον
Φεύγουσι δ ἐνίοτε κατατείναντες τὴν κέρκον ὥσπερ κύνες ῎Ηδη δ ὦπται
λέων καὶ ὑῒ ἐπιτίθεσθαι μέλλων καὶ ὡς εἶδεν ἀντιφρίξαντα φεύγων ῎Εστι δὲ
πρὸς τὰς πληγὰς εἰς μὲν τὰ κοῖλα ἀσθενής κατὰ δὲ τὸ ἄλλο σῶμα δέχεται
πολλὰς καὶ κεφαλὴν ἔχει ἰσχυράν
(Arist HA 629 b 33- 639 a8)
A informaccedilatildeo que Aristoacuteteles nos traz natildeo soacute ilustra o siacutemile homeacuterico anterior
como tambeacutem demonstra que o encontro entre javalis e leotildees eram decididos por acaso
jaacute que os dois animais satildeo comumente representados na Iliacuteada como animais ferozes
Assim uma passagem pode ser lida de forma interessante quando dois grandes heroacuteis
satildeo postos frente a frente no canto VII Heitor e Aacutejax
Ambos concomitantes retirando as longas lanccedilas com as matildeos
De suacutebito se encontram parecendo leotildees apreciadores de carne
Ou selvagens javalis cuja forccedila eacute inesgotaacutevel
τὼ δ ἐκσπασσαμένω δολίχ ἔγχεα χερσὶν ἅμ ἄμφω
σύν ῥ ἔπεσον λείουσιν ἐοικότες ὠμοφάγοισιν
ἢ συσὶ κάπροισιν τῶν τε σθένος οὐκ ἀλαπαδνόν
(Il VII 255-257)
Atraveacutes desse siacutemile a passagem demonstra como forccedilas equacircnimes os dois heroacuteis
representados aiacute pela forccedila descomunal do javali e pelo apreciador de carne crua o leatildeo
Marco V C Colonnelli
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O choque entre os heroacuteis no resto da passagem natildeo terminaria jaacute que chegada a noite
o combate foi interrompido pelos arautos
O leatildeo em outros siacutemiles quando confrontado por caccediladores e catildees manifesta
cautela em seus ataques Aristoacuteteles descreve o comportamento do leatildeo face a essa
adversidade
Nas caccediladas sendo observado jamais foge ou se apavora mas se por uma
multidatildeo de caccediladores eacute forccedilado a se afastar retira-se passo a passo e com a
face voltada ao inimigo girando-se de pouco em pouco se ele se encontra
entre arbustos foge rapidamente ateacute chegar em uma clareira momento em que
de novo se afasta passo a passo Em campo aberto quando eacute forccedilado a fugir
para uma clareira por uma multidatildeo corre com passos raacutepidos e natildeo pula Sua
corrida eacute contiacutenua e extensa como a do catildeo
᾿Εν δὲ ταῖς θήραις ὁρώμενος μὲν οὐδέποτε φεύγει οὐδὲ πτήσσει ἀλλ ἐὰν καὶ
διὰ πλῆθος ἀναγκασθῇ τῶν θηρευόντων ὑπαγαγεῖν βάδην ὑποχωρεῖ καὶ κατὰ
σκέλος κατὰ βραχὺ ἐπιστρεφόμενοςmiddot ἐὰν μέντοι ἐπιλάβηται δασέος φεύγει
ταχέως ἕως ἂν καταστῇ εἰς φανερόνmiddot τότε δὲ πάλιν ὑπάγει βάδην ᾿Εν δὲ τοῖς
ψιλοῖς ἐάν ποτ ἀναγκασθῇ εἰς φανερὸν διὰ τὸ πλῆθος φεύγειν τρέχει
κατατείνας καὶ οὐ πηδᾷ Τὸ δὲ δρόμημα συνεχῶς ὥσπερ κυνός ἐστι
κατατεταμένονmiddot (Arist HA 629 b 12-20)
Ainda que muito forte a simbologia do leatildeo na Iliacuteada como o animal mais
intreacutepido dos que se encontram na obra eacute interessante tambeacutem notar que em alguns
siacutemiles de fuga o proacuteprio leatildeo o siacutembolo da coragem eacute usado para representar a fuga de
alguns heroacuteis No canto XI Aacutejax recua da seguinte maneira
Zeus pai de seu trono introduziu o medo em Aacutejax
E atocircnito ele estacou aos ombros laccedilou o escudo de sete camadas
E depois de ver uma multidatildeo fugiu semelhante a uma fera
Que se volta continuamente para traacutes alternando em breves passadas
Tal quando sobre um feroz leatildeo do curral
Dos bois afugentam catildees e pastores
E eles o impedem de arrebatar o melhor dos bois
Vigilantes por toda noite mas ele desejoso de carne
Avanccedila com zelo mas nada encontra pois dardos
Numerosos voam de corajosas matildeos em sua direccedilatildeo
E tochas acesas que teme ainda que sedento
E ao amanhecer retira-se com acircnimo aflito
Assim Aacutejax dos Troianos com o coraccedilatildeo inquieto
Afasta-se muito contrariado pois temia pelas naus dos Aqueus
Ζεὺς δὲ πατὴρ Αἴανθ ὑψίζυγος ἐν φόβον ὦρσεmiddot
στῆ δὲ ταφών ὄπιθεν δὲ σάκος βάλεν ἑπταβόειον
τρέσσε δὲ παπτήνας ἐφ ὁμίλου θηρὶ ἐοικὼς
ἐντροπαλιζόμενος ὀλίγον γόνυ γουνὸς ἀμείβων
ὡς δ αἴθωνα λέοντα βοῶν ἀπὸ μεσσαύλοιο
ἐσσεύαντο κύνες τε καὶ ἀνέρες ἀγροιῶται
οἵ τέ μιν οὐκ εἰῶσι βοῶν ἐκ πῖαρ ἑλέσθαι
πάννυχοι ἐγρήσσοντεςmiddot ὃ δὲ κρειῶν ἐρατίζων
ἰθύει ἀλλ οὔ τι πρήσσειmiddot θαμέες γὰρ ἄκοντες
ἀντίον ἀΐσσουσι θρασειάων ἀπὸ χειρῶν
καιόμεναί τε δεταί τάς τε τρεῖ ἐσσύμενός περmiddot
ἠῶθεν δ ἀπὸ νόσφιν ἔβη τετιηότι θυμῷmiddot
ὣς Αἴας τότ ἀπὸ Τρώων τετιημένος ἦτορ
ἤϊε πόλλ ἀέκωνmiddot περὶ γὰρ δίε νηυσὶν ᾿Αχαιῶν
(Il XI 544-557)
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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Diferente dos outros siacutemiles esse mais longo natildeo soacute caracteriza o recuo do heroacutei
em termos de movimentaccedilatildeo e comportamento mas tambeacutem em termos de iacutendices
psicoloacutegicos que abundam no siacutemile O leatildeo aqui ainda eacute visto como um animal corajoso
feroz sedento por carne em suma em sua simbologia completa Entretanto como a
situaccedilatildeo eacute de fuga e caacutelculo o comportamento animal descrito por Aristoacuteteles representa
bem a maneira como Aacutejax se encontra tanto em termos psicoloacutegicos quanto em situaccedilatildeo
Aacutejax recua foge mas sem a pressa dos covardes sua fuga eacute bem descrita pelo
comportamento do leatildeo que recua lentamente sempre se voltando para traacutes Ademais o
nuacutemero de inimigos na liccedila e os dardos em sua direccedilatildeo o forccedilam ao recuo
Quanto ao plano psicoloacutegico Aacutejax que em sua caracterizaccedilatildeo eacute visto sempre como
voluntarioso e corajoso torna-se temeroso por uma intervenccedilatildeo divina E o conflito
gerado por essas disposiccedilotildees psicoloacutegicas eacute bem expresso pelo comportamento calculado
do recuo do leatildeo Neste afastamento tanto o heroacutei quanto o leatildeo estatildeo com acircnimo aflito
e inquieto e por uacuteltimo Aacutejax deixa o campo de modo involuntaacuterio
A caracterizaccedilatildeo neste siacutemile eacute completa Ela cobre tanto a perspectiva de um
desenvolvimento da accedilatildeo quanto o conflito psicoloacutegico que ocorre com o heroacutei Natildeo se
trata aqui de um siacutemile curto em que teriacuteamos de projetar o comportamento animal para
a compreensatildeo da passagem mas de um siacutemile longo em que o desenvolvimento do
comportamento animal eacute tatildeo magistralmente descrito que podemos consideraacute-lo sem
exageros como o proacuteprio iniacutecio de toda ciecircncia empiacuterica encontrada quase quatro seacuteculos
depois em Aristoacuteteles
3 Conclusatildeo
O uso do siacutemile em Homero eacute extremamente complexo Aleacutem dos siacutemiles naturais
produzidos com as potecircncias da natureza haacute tambeacutem os siacutemiles animais que se tornam
muito impactantes sobretudo porque revelam natildeo soacute facetas de movimentaccedilatildeo mas
tambeacutem de caraacuteter que o animal comporta O mundo natural eacute usado por Homero com
maestria a ponto de produzir situaccedilotildees nos combates em que grande parte do que eacute
descrito jaacute eacute bem conhecido pela audiecircncia em contato com o mundo natural circundante
Hoje talvez para reconhecer a forccedila de seus siacutemiles nos seja preciso talvez aleacutem do
conhecimento do mundo arcaico grego um bom entendimento sobre a vida natural sem
o qual a complexidade das cenas na Iliacuteada pareceraacute meramente fantasiosas
REFEREcircNCIAS
ARISTOTLE Historia Animalium Transl by DArcy Wentworth Thompson Oxford
Clarendon Press 1910
___________ Historia Animalium Volume 1 Books I-X Text D M Balme amp Allan
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946513
OS PROFISSIONAIS DO SOBRENATURAL
MAacuteGOS GOacuteES E PHARMAKEUacuteS
Dulcileide V do Nascimento Braga (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO O presente artigo objetiva ao pressupor que as accedilotildees maacutegicas constituem
praacuteticas passiacuteveis de aprendizado apresentar a anaacutelise da estrutura vocabular dos termos
que classificam os profissionais da magia Busca-se tambeacutem a partir da tradiccedilatildeo miacutetico-
literaacuteria grega demonstrar que tais profissionais tecircm uma praacutetica registrada em diversos
periacuteodos da literatura grega e influenciaram accedilotildees que extrapolam o vieacutes temporal
PALAVRAS-CHAVE Teacutechne maacutegica Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes
THE SUPERNATURAL PROFESSIONALS
MAacuteGOS GOacuteES AND PHARMAKEUacuteS
ABSTRACT This article aims assuming that magical actions constitute practices that can
be learned to present the analysis of the vocabulary structure of the terms that classify
magic professionals It is also sought from the greek mythical-literary tradition to
demonstrate that these professionals have a practice recorded in several periods of greek
literature and influenced actions that go beyond the temporal bias
KEYWORDS Teacutechne magic Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes
Magia do grego mageiacutea segundo Tupet (1976 p X) eacute a praacutetica exercida atraveacutes
de palavras e gestos por um indiviacuteduo que deteacutem certos conhecimentos que o capacitam
a produzir resultados de toda ordem George Luck (1995 p 35) precisa essa definiccedilatildeo ao
afirmar que a magia eacute uma teacutecnica cuja crenccedila se baseia nos poderes localizados na alma
humana e no universo e que pretende impor a vontade humana sobre a natureza ou sobre
os seres humanos
Platatildeo em Leis XI 932e-933b jaacute enumera os principais procedimentos maacutegicos
no seacutec IV aC e a difiacutecil tarefa de analisar essa teacutecnica
Quanto aos malefiacutecios que uns podem causar aos outros por meio de drogas
(pharmaacutekois) jaacute tratamos dos de consequecircncias letais mas ainda natildeo falamos
dos incocircmodos provocados intencionalmente e com premeditaccedilatildeo por meio de
bebidas e alimentos ou com unguentos O difiacutecil na presente exposiccedilatildeo eacute que
haacute no gecircnero humano duas espeacutecies de envenenamento uma eacute a que acabamos
de nos referir e que consiste em causar dano ao corpo pela accedilatildeo natural de
outros corpos a outra por meio de sortileacutegios (magganeiacuteais) encantamentos
(epoidaicircs) e o que se denomina ligadura (katadeacutesesi) chega a persuadir aos
E-mail dulcinascimentobragagmailcom
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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que querem causar danos a terceiros que o conseguiratildeo com tal recurso como
tambeacutem convence a estes uacuteltimos que ningueacutem lhes pode ocasionar tanto mal
como as pessoas conhecedoras de artes maacutegicas O que possa haver de
verdadeiro em tudo isso natildeo eacute faacutecil conhecer nem depois de sabido deixar
aceitaacutevel para ningueacutem dada a desconfianccedila reinante nos espiacuteritos a respeito
de tais assuntos natildeo vale a pena procurar convencecirc-los sempre que
encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera ou em encruzilhadas ou
talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados de que natildeo devem dar a
menor importacircncia a essas praacuteticas pois acerca de tudo isto ningueacutem tecircm
opiniatildeo formada
Eacute relevante destacar que o conceito de pharmakeiacutea utilizado por Platatildeo natildeo se
restringe exclusivamente ao uso de um phaacutermakon (bebidas alimentos ou unguentos)
mas se prolonga atraveacutes de sortileacutegios encantamentos e ligaduras
Platatildeo ainda questiona a eficaacutecia dessas profissionais de magia cujas habilidades
eram difiacuteceis de se averiguar analisar ou compreender sendo a profissional julgada pela
eficiecircncia ou pelos danos causados por sua praacutetica
O fato de atribuir aos praticantes de magia um caraacuteter perigoso por conta do saber
que detinham e a necessidade de que essas praacuteticas fossem controladas por leis remetem-
nos aos diversos processos de impiedade sofridos por mulheres praticantes das teacutechnai
maacutegicas Dentre elas destacamos o nome de trecircs mulheres a hetaira Frinea de Thespis
que foi acusada pelo seu amante Euthias de utilizar lugares sagrados para a praacutetica de
atos iliacutecitos e por ter formado um thiacuteasos1 sem a autorizaccedilatildeo legal dos atenienses a
sacerdotisa Teoris de Lemos acusada de produzir phaacutermaka para curar a epilepsia e
ainda temos o processo sofrido pela sacerdotisa Ninos baseado nas mesmas acusaccedilotildees
direcionadas agraves duas mulheres citadas anteriormente
Tais atitudes eram consideradas desvios agrave ordem instituiacuteda pela poacutelis que
determinava que qualquer accedilatildeo envolvendo contato direto com uma divindade ou com os
mortos requereria a presenccedila de um sacerdote instituiacutedo pela cidade e responsaacutevel por
impedir qualquer praacutetica que pudesse contaminaacute-la de alguma maneira
Maria Regina Candido (2003 p 169) informa-nos sobre as praacuteticas dessas
mulheres
Acreditamos que Teoris de Lemos assim como Frinea de Thespis difundiam
a crenccedila na possibilidade de o homem efetuar de maneira direta a sua relaccedilatildeo
com as potecircncias sobrenaturais e controlar os processos mais complicados que
envolvem a vida como doenccedilas inimizades e maacute sorte de maneira eficaz e
segura Receitavam banhos infusotildees com ervas e oferendas agraves divindades
ctocircnicas estimulavam os praticantes a fazer incursotildees pelo mundo de seres
sobrenaturais como os mortos O mundo dos homens deixava de atender agraves
necessidades do cotidiano e a alternativa era solicitar auxiacutelio das potecircncias
sobrenaturais
Assim como Platatildeo Candido acredita que a puniccedilatildeo relacionada a estas praacuteticas e
a seus praticantes esteja baseada no resultado advindo das mesmas que nem sempre
acarretava proveito agravequele que solicitava um benefiacutecio maacutegico Portanto por temer a
extensatildeo do poder dessas praacuteticas os atenienses puniam seus praticantes na maioria dos
casos mulheres estrangeiras como uma forma de se precaverem
Tambeacutem salientamos que apesar de a praacutetica maacutegica ser em determinadas
circunstacircncias apontada como uma atividade marginal ou uma forma de corromper a
religiatildeo poliacuteade como mencionamos anteriormente os praticantes destas teacutechnai
1 Palavra utilizada para designar um grupo de pessoas que celebram um deus normalmente com festas
cantos e banquetes
Dulcileide V do Nascimento Braga
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detinham um conhecimento e um poder cuja eficaacutecia seria sustentada por uma crenccedila
coletiva e por uma dependecircncia de uma ordem moral que buscava a autoproteccedilatildeo fato
que garantia a continuidade das diversas formas de magia em todas as classes da
sociedade helecircnica como afirma o texto de Luck (1995 p 42)
Pode a magia antiga se basear em ideias ldquoprimitivasrdquo mas a forma em que nos
foi transmitida natildeo era de nenhum modo primitiva Pelo contraacuterio a magia
nesse sentido existiu somente dentro de culturas altamente desenvolvidas e
constituiu uma parte importante delas Natildeo soacute as classes baixas os ignorantes
e incultos criam nela mas ateacute o final da Antiguidade os ldquointelectuaisrdquo
estiveram convencidos de que poderosas forccedilas sobrenaturais atuavam em
torno deles podendo ser controladas por certos meios
Em grego destacamos trecircs termos para designar os detentores das artes maacutegicas
maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
O nome mais comumente utilizado para designar a feiticeira eacute maacutegos cognato de
mageiacutea magia Segundo Pierre Chantraine (1984 v maacutegos) esta palavra constitui um
empreacutestimo iraniano e no plural maacutegoi designa uma das tribos dos Medos como narra
Herocircdoto I 101 ldquoDeioces unificou a naccedilatildeo dos Medos governando-a A Meacutedia era
composta de diferentes povos os Busos Paretacenos Estrucatos Arizantos Budios e os
Magosrdquo
Segundo ainda o relato de Heroacutedoto haacute entre os maacutegoi aqueles que tecircm a funccedilatildeo
de ser ldquointeacuterpretes de sonhosrdquo Podemos verificar esta atribuiccedilatildeo dos magos em Histoacuteria
I 107 Astiacuteages apoacutes ter um sonho solicitou aos magos inteacuterpretes de sonhos que
revelassem o seu significado em I 120 Astiacuteages para decidir a sorte de Ciro mandou
chamar os mesmos magos que anteriormente tinham interpretado o seu sonho em I 128
vemos isso quando Astiacuteages manda empalar os magos inteacuterpretes dos sonhos que o
haviam convencido a deixar Ciro partir No livro VII 37 haacute uma passagem que ratifica a
funccedilatildeo de inteacuterprete dos sonhos aos magos Nela Xerxes apoacutes ver um eclipse solar
acreditando ser um mau pressaacutegio pede aos seus magos que interpretem o fenocircmeno
Segundo Graf (1994 p 30) aleacutem de serem inteacuterpretes dos sonhos os maacutegoi seriam os
responsaacuteveis pelos sacrifiacutecios reais pelos ritos funeraacuterios e pela adivinhaccedilatildeo
O termo maacutegos parece ter adquirido com o advento da filosofia conotaccedilatildeo
negativa sendo entatildeo utilizado para estigmatizar opiniotildees e comportamentos
considerados socialmente desviados a julgar por Heraacuteclito frag 14 que associa maacutegoi
aos ldquovagabundos da noite bacantes mecircnades e aos mistosrdquo e acredita serem esses homens
merecedores de morte posto que praticam accedilotildees iacutempias Graf (1994 32) discute se esta
caracterizaccedilatildeo de Heraacuteclito reproduziria a atuaccedilatildeo dos maacutegoi pois se ela corresponder agrave
realidade este termo semanticamente poderaacute ganhar a conotaccedilatildeo dos termos aguacutertes e
maacutentis pedinte e adivinho utilizados por Platatildeo na Repuacuteblica II-364b ou ser
interpretada a partir da expressatildeo utilizada no papiro de Derveni profissional dos ritos
Com base nesta definiccedilatildeo poderiacuteamos afirmar que Heraacuteclito ao utilizar a expressatildeo
ldquovagabundos da noiterdquo estaria dizendo que os maacutegoi seriam especialistas de toda uma
seacuterie de ritos privados e secretos como nos afirma o proacuteprio Graf (1994 p 33) ldquoPara um
jocircnico do fim do periacuteodo arcaico o maacutegos era semelhante aos especialistas itinerantes
dos cultos privados homens agrave margem da sociedade ridicularizados por uns e
secretamente temidos por outrosrdquo
Outro termo utilizado para nomear o praticante da magia eacute goeacutes termo cognato
do verbo goaacuteo gemer lamentar-se e que inicialmente designava um cantor que proferia
um lamento ritual pelos mortos ou seja o goeacutes eacute aquele que ldquocombina o ecircxtase com um
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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lamento ritual e a cura ritual com a adivinhaccedilatildeordquo (GRAF 1994 p 35) e que manteacutem
uma relaccedilatildeo estreita com o mundo dos mortos
Formadas a partir da mesma raiz encontramos as palavras goeteiacutea magia assim
como goeacuteteuma procedimento maacutegico fascinaccedilatildeo Heroacutedoto (II 33) ao narrar a histoacuteria
de Etearco o amocircnio aplica o termo goacuteetes para informar-nos sobre a crenccedila por parte
dos nasamones de que os habitantes de uma cidade em que entraram eram feiticeiros e
em IV 105 discorre sobre os relatos que afirmam que todos os Neuros eram goeacutetes
Encontramos ainda o termo goacutees associado a epoidos cantor aquele que canta
palavras maacutegicas para curar por exemplo em Euriacutepides As Bacantes 234-235 em que
encontramos os dois termos na fala de Penteu para fazer referecircncia ao estrangeiro que
estaacute propagando o culto a Dioniso ldquoDizem que veio um forasteiro feiticeiro cantor (goacutees
epoidoacutes) da terra da Iacutediardquo
Em Platatildeo Leis 903b quando a personagem chamada Ateniense ao mencionar
que iraacute convencer algueacutem por meio de argumentos diz ldquoMas ainda precisamos
acrescentar algumas histoacuterias a fim de imobilizaacute-lo com o encantamento (epoidocircn) que
lhes eacute proacutepriordquo E da mesma maneira eacute associado a maacutegos no Elogio agrave Helena de
Goacutergias ao evocar o poder da arte goeacutetica que encanta persuade e transforma Essas
teacutecnicas associadas agrave magia segundo o sofista seriam teacutecnicas do engano pois
desvirtuariam a alma e a opiniatildeo com falsas ilusotildees Desse modo Goacutergias defende Helena
dizendo que ela foi viacutetima da persuasatildeo maacutegica de Paacuteris contra a qual natildeo haveria defesa
O terceiro nome eacute pharmakeuacutes ou pharmakoacutes e designa um preparador de drogas
feiticeiro ou por ser cognato de pharmakeuacuteo significa simplesmente aquele que daacute um
remeacutedio ou veneno a algueacutem ou aquele que realiza uma operaccedilatildeo maacutegica Haacute ainda o
termo pharmakiacutes -idos atribuiacutedo agrave mulher que prepara poccedilotildees ou agrave feiticeira Aristoacutefanes
em As Nuvens 749 utiliza esta palavra como qualificativo para a mulher A expressatildeo
gunaicircka pharmakiacuteda encontrada em Aristoacutefanes refere-se a uma feiticeira da Tessaacutelia
que fazia a lua baixar agrave noite prendendo-a em um espelho
Cabe-nos contudo falar um pouco mais da magia das palavras ou do
encantamento Como jaacute mencionamos o termo goeacutes tem sua funccedilatildeo e significado
associado ao termo epoideacute que revela a natureza maacutegica do emprego da palavra e traz em
sua composiccedilatildeo o termo aoideacute canto que por sua vez estaacute relacionado com o termo audeacute
voz humana O grego distingue a linguagem humana audeacute do termo phoneacute que tanto
pode representar a linguagem humana como o som produzido por um animal
Pierre Chantraine (v aeidocirc) assinala que o prefixo epi- destaca o valor maacutegico do
canto assim epoideacute significa ldquocanto ou palavra maacutegicardquo
Eacute notoacuterio entretanto que o canto faz parte da cultura grega seja atraveacutes do maior
aedo de todos os tempos Homero atraveacutes do teatro da vida privada ou da puacuteblica O que
diferencia portanto essas utilizaccedilotildees da arte maacutegica das goeteacutes A diferenccedila estaacute na
estrutura destes encantamentos na tonalidade com que as palavras eram pronunciadas na
junccedilatildeo de siacutelabas estranhas apresentadas como verdadeiras foacutermulas maacutegicas bem como
aos poderes e divindades invocadas Tal estrutura eacute apresentada no seguinte fragmento
ldquoFebo o que auxilia na adivinhaccedilatildeo vem contente filho de Leto arqueiro infaliacutevel
protetor do mal venha aqui neste momento Vem Vaticinador daacute-me teus oraacuteculos
durante a noite allala allala santalala talalardquo (PGM II)
As foacutermulas maacutegicas do ponto de vista formal portanto tinham uma estrutura
preacute-estabelecida (pronunciada e realizadas de uma determinada maneira) que consistem
em uma seacuterie de instruccedilotildees que foram transmitidas atraveacutes do processo de iniciaccedilatildeo Esse
processo de aprendizado pode ser no acircmbito familiar ou em lugares considerados
sagrados
Dulcileide V do Nascimento Braga
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 59
Temos diversos registros de foacutermulas maacutegicas algumas por exemplo
denominadas eroacuteticas objetivam a realizaccedilatildeo do desejo de um solicitante e tecircm
basicamente a mesma estrutura Como exemplo cito o PGM IV 3
Que fulana me ame a mim fulano filho de cicrano que ela natildeo tenha relaccedilotildees
sexuais nem por frente nem por traacutes nem busque prazer com outro homem
somente comigo de modo que fulana natildeo possa beber nem comer nem amar
nem sofrer nem ter sauacutede que natildeo consiga dormir sem mim arrasta a fulana
pelos cabelos as entranhas sua alma em cada momento de sua vida ateacute que
venha ateacute mim e permaneccedila inseparavelmente unida a mim
Neste encantamento se invoca o espiacuterito de um morto ou de uma divindade
normalmente Tiacutefon Selene ou Heacutecate mas quando se trata de magia eroacutetica se invoca
especialmente a deusa Afrodite e seu filho Eros Essas praacuteticas satildeo acompanhadas de um
gesto do solicitante como por exemplo um suspiro diante da mulher desejada um beijo
na lacircmina que conteacutem o pedido ou a simples repeticcedilatildeo do nome de Afrodite
Teoacutecrito no Idiacutelio 2 com 166 versos demonstra-nos como essas foacutermulas eram
utilizadas ao narrar a histoacuteria de como Simeta executa um ritual maacutegico com o intuito de
reconquistar o amor de Deacutelfis um jovem atleta que a trocou por um novo amor Eis alguns
versos do poema
Trecircs vezes faccedilo uma libaccedilatildeo e trecircs vezes Soberana
Pronuncio estas palavras quer seja mulher quer seja homem
Que com ele dorme agora que um tatildeo grande esquecimento invada
Deacutelfis como aquele que ndash ao que dizem ndash fez Teseu esquecer um
Dia Ariadne de belas tranccedilas (43-47)
Essa ldquoteacutecnicardquo das palavras tambeacutem faz parte da tradiccedilatildeo de uma literatura meacutedica
pois aleacutem de apresentar vaacuterios deuses responsaacuteveis pela cura tinha um deus especiacutefico
para a medicina Ascleacutepio e um lugar de cura Epidauro Ascleacutepio tinha um poder de cura
muito grande acreditava-se que ele inclusive podia ressuscitar os mortos O filho de
Apolo curava a uns com as doces palavras da magia (contos poemas e muacutesica) a outros
oferecia poccedilotildees eficazes ou lhes aplicava ervas em torno de seus membros ou cortava o
mal com o ferro para devolver-lhes a sauacutede
A tradiccedilatildeo meacutedica incluiacutea uma mistura de curas que podiam genuinamente ser
observadas e uma medicina popular considerada maacutegica Uma parte dos que exerciam a
medicina maacutegica eram mulheres embora a maioria delas trabalhasse como parteiras
Os templos de Ascleacutepio foram encontrados em todo o mundo mediterracircneo
Nesses templos o processo de cura consistia mais em repouso massagem e uma dieta
modificada do que aquilo que poderiacuteamos chamar de medicina Um meacutetodo de cura que
se tornou conhecido foi a ldquoincubaccedilatildeordquo em que o doente dormia confinado no templo de
Ascleacutepio na esperanccedila de receber uma revelaccedilatildeo daquele deus por meio de sonho
Aqueles que haviam sido curados faziam contribuiccedilotildees especiais para os templos que
frequentemente incluiacuteam reproduccedilotildees de gesso de quaisquer partes de seus corpos que
tivessem sido curadas Estes eram colocados em exibiccedilatildeo como testemunhos do poder de
cura do deus
Um relato que corroborou esse processo foi o de Eacutelio Aristides orador e tambeacutem
um portador de doenccedila crocircnica que no seacuteculo da nossa era em seus Hieroigrave Loacutegoi nos daacute
uma visatildeo da necessidade que as pessoas tinham pela cura bem como os meacutetodos
empregados para esse fim Depois tentar vaacuterios procedimentos meacutedicos Aristides tornou-
se um devoto de Ascleacutepio As curas prescritas para ele nos sonhos incluiacuteam accedilotildees como
banhar-se em um rio agitado durante o inverno derramar lama em si mesmo antes de se
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assentar no paacutetio do templo andar sem sapatos todo o inverno e fazer sangria de vaacuterias
partes do seu corpo
A teacutecnica maacutegica portanto ao longo da histoacuteria foi um recurso utilizado como
tentativa de controlar o mundo natural atraveacutes de forccedilas consideradas sobrenaturais Essa
teacutecnica era ensinada somente aos iniciados e envolviam a arte da adivinhaccedilatildeo o preparo
de feiticcedilos e poccedilotildees a realizaccedilatildeo de rituais e cerimocircnias bem como a maneira correta de
se invocar deuses e espiacuteritos Quando realizados dentro dos templos tais procedimentos
eram considerados parte da religiatildeo Quando realizados fora eram classificado como
magia
A ideia de inferioridade feminina que perpassa toda a histoacuteria natildeo tem registro de
quando comeccedilou Desde a Antiguidade temos concepccedilotildees como a de Pitaacutegoras que
relacionava a mulher ao lado negativo ao dizer que ldquoHaacute um princiacutepio bom que criou a
ordem a luz e o homem e um princiacutepio mau que criou o caos as trevas e a mulherrdquo
(PITAacuteGORAS apud BEAUVOIR 1997 p 6)
Os elos que ligaram a imagem da mulher ao obscuro ao caos e ao infortuacutenio
masculino foram delineados e reforccedilados por figuras arquetiacutepicas como Pandora Lilith
e a proacutepria Eva Da mesma maneira as goeteacutes foram chamadas de charlatatildees quando natildeo
obtinham o resultado desejado ao evocarem os deuses e tentarem por teacutecnicas diversas
atender agrave solicitaccedilatildeo de algueacutem que recorria agraves praacuteticas maacutegicas para resolver problemas
particulares Essas solicitaccedilotildees normalmente envolviam uma accedilatildeo que prejudicaria
algueacutem fato que serviu para atenuar a fama negativa das goeteacutes
Ainda hoje encontramos aspectos desse tipo de comportamento maacutegico presentes
nos procedimentos considerados maacutegico-religiosos ou na proacutepria literatura ficcional que
demonstram a forccedila da seleccedilatildeo vocabular e da sonoridade provocada pela repeticcedilatildeo de
palavras e desejos com o uacutenico objetivo de concretizar desejos nem sempre passiacuteveis de
serem expressos em outras circunstacircncias Este eacute o caso da poesia citada abaixo
A VOLTA DA MULHER MORENA Vinicius de Moraes
Meus amigos meus irmatildeos cegai os olhos da mulher morena
Que os olhos da mulher morena estatildeo me envolvendo
E estatildeo me despertando de noite Meus amigos meus irmatildeos cortai os laacutebios
da mulher morena Eles satildeo maduros e uacutemidos e inquietos
E sabem tirar a voluacutepia de todos os frios
Meus amigos meus irmatildeos e voacutes que amais a poesia da minha alma
Cortai os peitos da mulher morena
Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono
E trazem cores tristes para os meus olhos
Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes
Traze-me para o contato casto de tuas vestes
Salva-me dos braccedilos da mulher morena
Eles satildeo lassos ficam estendidos imoacuteveis ao longo de mim
Satildeo como raiacutezes recendendo resina fresca
Satildeo como dois silecircncios que me paralisam
Aventureira do Rio da Vida compra o meu corpo da mulher morena
Livra-me do seu ventre como a campina matinal
Livra-me do seu dorso como a aacutegua escorrendo fria
Branca avozinha dos caminhos reza para ir embora a mulher morena
Reza para murcharem as pernas da mulher morena
Reza para a velhice roer dentro da mulher morena
Que a mulher morena estaacute encurvando os meus ombros
E estaacute trazendo tosse maacute para o meu peito
Meus amigos meus irmatildeos e voacutes todos que guardais ainda meus uacuteltimos
cantos
Dai morte cruel agrave mulher morena
Dulcileide V do Nascimento Braga
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O texto de Viniacutecius dialoga com o texto de Platatildeo citado anteriormente em que
faz menccedilatildeo agraves bonequinhas de cera utilizadas para fazer magia A finalidade dessas
bonecas conhecidas posteriormente por bonecas de vodu era gradativamente extinguir
a funcionalidade de determinados oacutergatildeos (cegar calar impedir de andar roer por dentro)
ateacute provocar a morte ldquodaiacute morte cruel agrave mulher morenardquo
O princiacutepio ldquose natildeo eacute meu natildeo seraacute de mais ningueacutemrdquo estaacute impliacutecito em inuacutemeros
encantamentos contidos nos PGM e representa natildeo soacute o desejo daquelea que foi
abandonadoa de se vingar de quem oa abandonou como tambeacutem o desejo de se livrar
daquelea que emocionalmente lhe causa mal
A voz humana eacute portanto o instrumento que potencializa a forccedila do pensamento
concretizando-os atraveacutes das palavras
Portanto a palavra quer cantada pronunciada em forma de versos ou balbuciada
em forma de encantamentos ou foacutermulas invocatoacuterias faz parte do universo sonoro grego
como forma de perpetuar segredos e manifestar um poder
Ainda hoje tentamos aprender sobre esta teacutechne que capacitava o indiviacuteduo a
concretizar desejos entretanto esbarramos nas lacunas temporais miacuteticas e religiosas
cujas entrelinhas foram desfeitas com o passar dos anos e que intencionalmente ou natildeo
desabilitaram a humanidade a obter o desejado com a mesma constacircncia com que eram
obtidas no passado
Os ritos religiosos continuam a utilizar a magia das palavras mas algumas
palavras tornaram-se impronunciaacuteveis e permanecem trancafiadas nas prisotildees silenciosas
do descaso cabe portanto a noacutes pronunciaacute-las ou natildeo reconhecendo a influecircncia que os
profissionais da magia tiveram e tecircm nas accedilotildees atemporais denominadas sobrenaturais
REFEREcircNCIAS
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946515
A AGOGEacute ESPARTANA
Luciene de Lima Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem O
desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo deviam ter
medo de nada sendo resistentes aos ferimentos odiando qualquer demonstraccedilatildeo de
covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Cada espartano tinha de ser um soldado
perfeito e sua maior gloacuteria era morrer em batalha retornar derrotado jamais Desse modo
toda a sociedade e educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases
atribuiacutedas agraves matildees espartanas era ldquoespero que meu filho volte com o seu escudo ou
deitado sobre elerdquo Assim eacute que este artigo tem por escopo discorrer a respeito da agogeacute
espartana que era um tipo de educaccedilatildeo peculiar com fins extremamente belicosos
PALAVRAS-CHAVE Esparta agogeacute guerra Licurgo
THE SPARTAN AGOGEacute
ABSTRACT In Sparta courage was part of the formation of a manrsquos character The
development of courage was a Spartan obsession Spartans should not be afraid of
anything showing themselves resistant to wounds They hated any type of cowardice and
were extremely dedicated to the poacutelis Each Spartan male had to be a perfect soldier and
the ultimate glory was to die in battle to never come back defeated Given this Spartan
society and education was focused on war One famous sentence related to Spartan
mothers was ldquoI hope my son comes back with his shield - or on itrdquo Thus this article has
as its scope the discussion of the practices of Spartan agogeacute their very peculiar
education with extremely bellicose objectives
KEYWORDS Sparta agogeacute war Lycurgus
Esparta tem de pleno direito um lugar na histoacuteria da educaccedilatildeo A
criaccedilatildeo mais caracteriacutestica de Esparta eacute o seu estado e o Estado
representa aqui pela primeira vez uma forccedila educadora no mais vasto
sentido da palavra (Werner Jaeger)
E-mail oliveira-lluolcombr
A agogeacute espartana
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Esparta tambeacutem intitulada Lacedemocircnia era a principal cidade de uma regiatildeo
denominada Lacocircnia na regiatildeo do Peloponeso A cidade localizava-se agraves margens do rio
Eurotas cercada de montanhas a nordeste
Os primeiros invasores da regiatildeo foram os aqueus esses expulsaram os povos preacute-
helecircnicos que ali habitavam e fundaram a cidade de Lacedemocircnia
A migraccedilatildeo doacuterica eacute o uacuteltimo dos movimentos de povos possivelmente
originaacuterios da Europa Central que a partir da Peniacutensula Balcacircnica entraram na Greacutecia e
se misturaram com os povos de outras raccedilas mediterracircneas ali fixadas primitivamente
constituindo assim o povo helecircnico
Os doacuterios ao se apoderarem da maior parte do Peloponeso invadiram Creta e
foram os responsaacuteveis pela colonizaccedilatildeo de algumas ilhas Ciclaacutedicas e Espoacuteradas Os
espartanos satildeo considerados descendentes dos doacuterios1 esses tinham por caracteriacutestica
peculiar a belicosidade
A cidade de Esparta era conhecida por usufruir de uma eunomiacutea ldquouma boa
legislaccedilatildeordquo De acordo com a tradiccedilatildeo Licurgo apoacutes consultar o oraacuteculo de Delfos2 teria
dado agrave Esparta leis para a vida social e econocircmica citem-se por exemplo a proibiccedilatildeo do
comeacutercio e a utilizaccedilatildeo de metais preciosos que foram substituiacutedos por moedas de ferro
instituiu uma educaccedilatildeo rigorosa as refeiccedilotildees coletivas regulamentaccedilatildeo do casamento a
maneira de viver etc
Os espartanos eram considerados xenofoacutebicos Plutarco escreve que eles natildeo
tinham permissatildeo para sair da cidade pois poderiam trazer costumes estranhos e
desordenados para dentro da cidade Os estrangeiros que residiam em Esparta foram
expulsos com exceccedilatildeo daqueles que faziam algo de uacutetil para a cidade Aleacutem do mais natildeo
comercializavam com o estrangeiro nenhum navio de fora entrava no porto para ali
comercializar (PLUTARCO Licurgo XIV LVII In Vidas Paralelas)
Ora foi o historiador Heroacutedoto o primeiro a retratar Licurgo como o idealizador
da eunomiacutea se dedicando ldquoagraves coisas relacionadas com a guerrardquo (HERODOTO Histoacuteria
I) Na Antiguidade jaacute havia duacutevidas sobre a sua eacutepoca e ateacute mesmo sua existecircncia
Os espartanos ndash ao contraacuterio de outros grupos ndash natildeo desenvolveram relaccedilotildees
culturais e comerciais externas sua crescente populaccedilatildeo soacute encontrou um meio de
expandir-se pelas armas
Xenofonte inclusive indaga como Esparta uma das cidades menos povoadas
tornou-se a mais poderosa e famosa dentre toda a Heacutelade (JENOFONTE La Republica
de los Lacedemonios I 1-2)
O vocaacutebulo que os espartanos empregavam para designar ldquoeducaccedilatildeordquo era agogeacute
que proveacutem do verbo aacutego ldquotransporto conduzordquo Os filoacutesofos Platatildeo (PLATAtildeO Leis
1 O helenista Jaeger faz a seguinte ponderaccedilatildeo a respeito dos doacuterios ldquoa raccedila doacuterica ofereceu a Piacutendaro o
seu ideal de homem loiro de alta estirpe tal como era representado natildeo soacute o Menelau de Homero como
tambeacutem o heroacutei Aquiles e de um modo geral os ldquohelenos de loira cabeleirardquo da antiguidade heroica
(JAEGER 2001 p 111) 2 Esparta pelo vieacutes poliacutetico constituiacutea uma diarquia hereditaacuteria real Acredita-se que Licurgo fora
descendente de uma das famiacutelias reais de Esparta a euripocircntida O legislador tinha um irmatildeo
rei mas apoacutes a morte daquele Licurgo subiria ao trono poreacutem o seu irmatildeo havia deixado um
descendente ainda no ventre de sua esposa Leobotas O legislador foi entatildeo tutor de seu
sobrinho Preocupado com a situaccedilatildeo de Esparta jaacute que o sobrinho era uma crianccedila Licurgo
se dirigiu a Delfos para receber conselhos diga-se leis escritas a rheacutetra em relaccedilatildeo a Esparta
(HEROacuteDOTO Histoacuteria I LXV) Sabe-se muita coisa de Licurgo por meio de Plutarco em
Vida de Licurgo
Luciene de Lima Oliveira
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659d) e Aristoacuteteles (ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1321) tambeacutem se referem a agogeacute como
ldquoeducaccedilatildeordquo
Entrementes Marrou emprega o termo ldquoadestramentordquo para traduzir agogeacute e
chama a atenccedilatildeo para o fato de ser ldquouma condiccedilatildeo necessaacuteria senatildeo suficiente para o
exerciacutecio dos direitos ciacutevicosrdquo (MARROU 1966 p 41) O helenista considera que a
educaccedilatildeo em Esparta possui natildeo soacute um lugar especial na histoacuteria da educaccedilatildeo como
tambeacutem na cultura grega (Op cit p 33)
Todos os cidadatildeos espartanos tinham uma participaccedilatildeo ativa na educaccedilatildeo militar
constituindo uma casta aristocraacutetica a priori lembrando a educaccedilatildeo da antiga nobreza
grega Natildeo obstante foi mais tarde estendida agravequeles que natildeo faziam parte da nobreza
Jaeger expotildee que mesmo que Licurgo tenha realmente existido e criado a rheacutetra
ldquoleis escritasrdquo que o poeta Tirteu (4W 1-10) bem a conhecia jaacute no seacuteculo VII aC natildeo
adiantaria muito saber a respeito da origem da educaccedilatildeo espartana conforme Xenofonte
a descreve (JAEGER 2001 p 114)
O pesquisador considera tambeacutem a agogeacute como ldquoo adestramento espartanordquo que
nada mais era do que o ideal do movimento educativo do seacuteculo IV aC (Op cit p 115)
O helenista destaca que a crenccedila de que a educaccedilatildeo espartana era uma preparaccedilatildeo militar
tinha sua origem na Poliacutetica de Aristoacuteteles Platatildeo igualmente jaacute havia definido essa
ideia quando relata nas suas Leis o espiacuterito do Estado de Licurgo (Op cit p 110)
As crianccedilas futuros guerreiros de Esparta eram ldquocriadasrdquo anatropheacute por seus
pais em suas casas ateacute os sete anos de idade depois essa tarefa era assumida pelo
governo sendo treinados para a obediecircncia em situaccedilotildees penosas e difiacuteceis3
Desse modo Licurgo natildeo colocou a educaccedilatildeo nas matildeos nem de mercenaacuterios nem
de servos comprados os pais natildeo poderiam educar seus filhos a seu bel prazer Quando
completavam sete anos eram divididos em grupos a fim de serem educados juntos e
brincassem entre si aprender e estudar uns com os outros Aquele que sobressaiacutesse e fosse
mais valente em combate se tornaria o liacuteder de todo o grupo os outros deveriam obedecer
as suas ordens O legislador considerava a educaccedilatildeo das crianccedilas como a coisa mais bela
que um legislador pudesse estabelecer (PLUTARCO Licurgo XXV XXXIII In Vidas
Paralelas)
Dos sete aos quinze anos eram instruiacutedos nas letras e nos caacutelculos e naturalmente
nos hinos do poeta Tirteu que ressaltavam a bravura e a coragem destemida
Na etapa final entre dezesseis e vinte anos quando denominados de eireacuten um
pouco antes de entrarem no serviccedilo da poacutelis eram treinados a manusear as armas na luta
com lanccedilas e espadas no arco e flecha Com isso a carga dos exerciacutecios e as operaccedilotildees
militares simuladas nas montanhas ao redor da poacutelis eram aumentadas
Plutarco daacute o seguinte testemunho
Quanto agraves letras aprendiam somente o necessaacuterio e em suma todo o
aprendizado consistia em bem obedecer suportar o trabalho e obter a vitoacuteria
em combate Por essa razatildeo agrave medida que avanccedilavam em idade aumentavam-
lhes tambeacutem os exerciacutecios corporais raspavam-lhes os
cabelos faziam-nos andar descalccedilos e os constrangiam a brincar juntos a maior
parte do tempo inteiramente nus depois quando chegavam agrave idade de doze
anos natildeo mais usavam saios daiacute por diante pois todos os anos lhes davam
somente uma tuacutenica simples o que era causa de andarem sempre sujos e
3 Plutarco daacute testemunho que estrangeiros se dirigiam ateacute a Lacocircnia para contratarem amas para criarem
seus filhos (PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)
A agogeacute espartana
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ensebados como aqueles que natildeo se lavavam nem se untavam senatildeo em certos
dias do ano quando os faziam gozar um pouco dessa doccedilura Deitavam e
dormiam juntos sobre enxergas que eles proacuteprios fabricavam com pontas dos
juncos e caniccedilos que cresciam no rio Eurotas os quais eles proacuteprios deviam ir
colher e quebrar somente com as matildeos sem nenhuma ferramenta mas no
inverno ajuntavam a isso e misturavam no meio o que se chama Lycophanos
porque parece que essa mateacuteria tem em si um pouco de calor (PLUTARCO
Licurgo XXIV In Vidas Paralelas)
A agogeacute propriamente dita se iniciava aos sete anos e finalizava ateacute os vinte anos
compreendendo portanto um periacuteodo de treze anos Havia a supervisatildeo de um
paidonoacutemos uma espeacutecie de magistrado especial
Marrou oferece a seguinte divisatildeo da agogeacute agrupados em trecircs ciclos (MARROU
1966 p 42)
Oitavo ano ao deacutecimo primeiro ano
a) rhobiacutedas (termo obscuro)
b) promikkizoacutemenos (meninote)
c) mikki(khi)zoacutemenos (menino)
Deacutecimo segundo ano ao deacutecimo quinto ano
a) pratopaacutempais (rapaz jaacute maduro de primeiro ano)
b) hatropaacutempais (rapaz jaacute maduro de segundo ano)
c) melleiacuteren (futuro irene)
d) melleiacuteren (irene de segundo ano)
Deacutecimo sexto ano ao vigeacutesimo ano
a) eireacuten de primeiro ano
b) eireacuten de segundo ano
c) eireacuten de terceiro ano
d) eireacuten de quarto ano
e) proteicircras (irene-chefe)
O historiador francecircs pontua que os meninos espartanos eram divididos em
unidades (iacutelai ou ageacutelai) comandadas pelos jovens maiores os proteicircrai de vinte anos
que eram os mais velhos dentre os irenes (Op cit p 43)
Plutarco lembra que os espartanos ldquonatildeo usam de muita linguagemrdquo eram
lacocircnicos ldquopessoas de poucas palavrasrdquo como resultado natildeo se expressavam com
propriedade mas nada os impedia de serem bem compreendidos pelos ouvintes O
bioacutegrafo sublinha que o proacuteprio Licurgo era breve no falar Interessante destacar que era
proibido entrar em Esparta algum retoacuterico para ensinar a arte da persuasatildeo ao povo Natildeo
obstante os espartanos eram exiacutemios compositores de belos cacircnticos em que incitavam
a coragem (PLUTARCO Licurgo XIV XL XLIV In Vidas Paralelas)
Quando estavam reunidos em Conselho os cidadatildeos espartanos natildeo poderiam
deliberar indagar seus superiores muito menos apresentar alguma opiniatildeo lhes era
permitido somente aprovar ou reprovar os informes propostos pelos reis ou senadores
(Op cit X)
O futuro guerreiro tinha de ter por haacutebitos a modeacutestia andar nas ruas com as
matildeos dentro do manto e caminhar em silecircncio sem dirigir o olhar a nenhum lugar apenas
olhando em direccedilatildeo a seus proacuteprios peacutes O historiador Xenofonte compara o jovem
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espartano que anda em silecircncio e de olhos baixos a uma estaacutetua de virgem
(JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)
Entre vinte e trinta anos os espartanos eram obrigados a se casar mas a vida
familiar natildeo era lhes permitida soacute depois dos trinta podiam deixar de dormir nos
acampamentos militares
A fim de dotar de coragem os seus infantes em Esparta havia a kryptiacutea um
ldquoesquadratildeo de extermiacuteniordquo que estimulava os jovens selecionados a caccedilarem sozinhos ou
em grupos os hilotas ou seja os escravos que por um acaso andassem desgarrados ou
que de alguma forma representassem pelo seu vigor fiacutesico uma ameaccedila agrave seguranccedila da
poacutelis Os hilotas quando localizados eram vitimados pela espada ou pela lanccedila armas
que o grupo de jovens sempre trazia consigo (PLUTARCO Licurgo LVIII In Vidas
Paralelas)
Os jovens espartanos estavam sempre forccedilando seus corpos ao limite cultivando
a excelecircncia da forccedila fiacutesica Aristoacuteteles destaca que de entre as cidades que mais se
preocupavam com a educaccedilatildeo infantil a maioria procurava aperfeiccediloaacute-la por meio de uma
disposiccedilatildeo atleacutetica O filoacutesofo sublinha que os espartanos davam para os futuros
guerreiros trabalhos aacuterduos como se essa atitude fosse vista como adequada para o culto
da bravura (ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1338b 10-15)
O estagirita ressalta que natildeo eacute contra a ginaacutestica mas deve-se praticaacute-la com
moderaccedilatildeo ateacute a adolescecircncia evitando exerciacutecios forccedilosos pois podem resultar em
prejuiacutezos para o corpo Daacute como exemplo que de entre os vencedores dos jogos
Oliacutempicos tem apenas dois ou trecircs espartanos vitoriosos Acredita que isso se daacute ao fato
de terem sido sujeitos desde crianccedila a treinos fiacutesicos extremos que acabaram por exaurir
suas forccedilas (Op cit II 1338b 35-40 1339a 1-5)
Aristoacuteteles sublinha que toda a organizaccedilatildeo legislativa dos espartanos tinha como
objetivo uma forma de virtude o valor guerreiro uma vez que eacute uacutetil para dominar Como
resultado disso o vigor e a forccedila dos espartanos foram preservados enquanto estiveram
em guerra mas houve um decliacutenio a partir do momento que alcanccedilaram a supremacia Na
verdade natildeo sabiam viver em paz aleacutem do mais natildeo haviam se exercitado em outra
disciplina superior agrave arte da guerra (Op cit II 1271b 1-10)
Jaeger sustenta que na vida dos espartanos por meio de uma educaccedilatildeo
diferenciada percebe-se um ideal de educaccedilatildeo anaacutelogo ao que Platatildeo propotildee na
Repuacuteblica A propoacutesito Platatildeo e outros teoacutericos da educaccedilatildeo posteriores tiveram Esparta
por paradigma em muitos aspectos (JAEGER 2001 p 112)
A necessidade de imposiccedilatildeo dos espartanos sobre a grande maioria de hilotas
(escravos que natildeo possuiacuteam direito algum) que a qualquer momento poderiam se
rebelar teve muita importacircncia na formaccedilatildeo da agogeacute espartana
Ora com as muitas conquistas espartanas havia sempre a iminecircncia de uma
revolta por parte dos povos conquistados Eacute fato que os povos conquistados constituiacuteam
em maior nuacutemero do que os conquistadores espartanos
Acredita-se que no final do seacuteculo VI aC depois da conquista da Messecircnia o
estado espartano completou sua organizaccedilatildeo transformando-se em um verdadeiro
ldquoacampamento militarrdquo permanente
Os resquiacutecios arqueoloacutegicos atestam que ateacute o seacuteculo VI aC Esparta era
dominada por uma aristocracia de grandes proprietaacuterios Devido agraves duas grandes guerras
pela conquista da Messecircnia houve um aumento consideraacutevel daqueles que poderiam
participar da funccedilatildeo guerreira e que se beneficiaram pela distribuiccedilatildeo de lotes de cleroacutei
A agogeacute espartana
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da regiatildeo conquistada Por outro lado os messecircnios foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de
hilotas A respeito da segunda guerra da Messecircnia4 Mosseacute escreve
Esparta parece ter se fechado em si mesma com a decadecircncia do artesanato e
o desaparecimento do uso da moeda de prata Diante da massa de populaccedilotildees
dependentes (hilotas da Lacocircnia e da Messecircnia periecos da Lacocircnia motacos
neodamodos etc) a classe guerreira dos homoioiacute dos semelhantes formada
pelo conjunto dos cidadatildeos espartanos passa a ser um grupo privilegiado que
vive recluso em perpeacutetuo estado de defesa Essa eacute a origem da vida austera que
tanto impressionava seus contemporacircneos e permitia a Esparta desempenhar
papel preponderante no mundo grego (MOSSEacute 2004 p 121) Com efeito
muitas disposiccedilotildees referentes agrave educaccedilatildeo e ao casamento natildeo deixam de evocar
os programas educativos elaborados por Platatildeo na Repuacuteblica e nas Leis Platatildeo
teria tomado o modelo espartano como inspiraccedilatildeo ou nos seacuteculos seguintes
esse modelo teria sido construiacutedo a partir das disposiccedilotildees imaginadas por
Platatildeo para suas cidades ideais Essa eacute uma pergunta de resposta difiacutecil O que
eacute inquestionaacutevel eacute o caraacuteter peculiar da educaccedilatildeo espartana essa agogeacute que
espantava os atenienses da eacutepoca claacutessica especialmente na medida em que
tambeacutem atingia as mulheres (Op cit p 189)
Ressalte-se que a guerra eacute um dos fenocircmenos a ser evitado mas que
frequentemente ocorre nas sociedades humanas Em O Homem Grego obra organizada
por Vernant o ensaio de Garlan denominado ldquoO Homem e a Guerrardquo eacute relevante pois
de acordo com Garlan embora o homem grego ldquonatildeo pudesse ser definido como algueacutem
que gosta da violecircncia pela violecircnciardquo isto eacute como um homo militaris muitos satildeo os
conflitos em que eles se envolveram sobretudo na eacutepoca arcaica e claacutessica Para Garlan
eacute ldquocomo se a paz fosse desde o primeiro momento considerada precaacuteria ou mesmo
concebida como uma espeacutecie de treacutegua prolongadardquo (GARLAN apud VERNANT 1994
pp 49-50)
Em uma sociedade predominantemente guerreira como a espartana a covardia de
um guerreiro era vista com repugnacircncia assim a desonra em Esparta acompanhava os
covardes sendo preferiacutevel a morte a uma vida infame e desonrosa Eacute um guerreiro que
natildeo merecia nenhuma timeacute ldquohonrardquo pois tem como aliados a atimiacutee ldquodesonrardquo e a
kakoacutetes ldquocovardiardquo Consequentemente este homem eacute algueacutem sem aidoacutes ou seja
algueacutem que natildeo eacute digno ldquode respeitordquo ldquode consideraccedilatildeordquo Haacute pois uma conexatildeo clara
entre aidoacutes ldquorespeitordquo e timeacute ldquohonrardquo na sociedade espartana
O binocircmio aidoacutes ldquorespeitordquo e aiskhryacutene ldquovergonhardquo satildeo vocaacutebulos que estatildeo
presentes no estatuto ciacutevico de Esparta como pontua Nicole Loraux (LORAUX 1989 p
82)
O desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo
poderiam ter medo de nada deveriam ser resistentes aos ferimentos odiando qualquer
4 Houve duas guerras entre Messecircnia e Esparta Na primeira os espartanos sob a lideranccedila do rei
Theopompo foram vencedores Os messecircnios eram comandados por Aristomenes Segundo Heroacutedoto
(HEROacuteDOTO Histoacuteria VIII 1312) o rei Theopompo pertencia agrave oitava geraccedilatildeo antes de Leoticidas
que governou de 491 a 469 aC Depois de cinquenta anos de opressatildeo os messecircnios se revoltaram com
a ajuda de aliados de Argos Arcaacutedia e Pisa Essa rebeliatildeo eacute conhecida como Segunda Guerra da
Messecircnia Campbell afirma que eacute difiacutecil estabelecer a cronologia das duas guerras (CAMPBELL 1967
p 169) Costuma-se contudo fixar o periacuteodo da primeira guerra em torno da segunda metade do seacuteculo
VIII aC mais precisamente entre 735 e 715 aC e a segunda guerra que teria durado aproximadamente
vinte e dois anos na segunda metade do seacuteculo VII aC por volta de 640-650 aC
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demonstraccedilatildeo de covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Toda a sociedade e
educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases atribuiacutedas agraves matildees
espartanas era ldquoespero que o meu filho volte com o seu escudo ou deitado sobre elerdquo
Cada espartano era formado para ser um soldado perfeito e sua maior gloacuteria era
morrer em batalha retornar derrotado jamais Digno de nota satildeo os versos tirteanos
ldquoLutemos com ardor por esta terra e pelos filhos morramos sem pouparmos nossas
vidasrdquo (10 W 13-14)
Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem A
propoacutesito Platatildeo era tambeacutem a favor da valentia de um guerreiro no campo de batalha
(PLATAtildeO Repuacuteblica 468e)
Os dois primeiros versos do fragmento 10W de Tirteu pontua dessa mentalidade
de morrer pela poacutelis ldquoeacute belo morrer caindo entre os combatentes das primeiras filas um
homem valente ao combater por sua terrardquo (10W 1-2)
A morte eacute bela quando eacute a de um heroacutei que morre pela cidade Esta ideia daacute agrave
morte o sentido de um ldquosacrifiacuteciordquo do proacuteprio cidadatildeo em prol de um bem mais alto ldquoa
morte gloriosardquo No mesmo fragmento aliaacutes o poeta contrasta a morte gloriosa no campo
de batalha com a vida desventurada e errante do homem que natildeo cumpriu na guerra seus
direitos de cidadatildeo e se viu na necessidade de deixar a cidade (10W 9-12)
A linguagem de Tirteu eacute em grande parte herdeira de tradiccedilatildeo eacutepica De um modo
geral as suas elegias demonstram um amplo conhecimento do vocabulaacuterio da Iliacuteada e da
Odisseia quando descreve a luta sangrenta e o heroiacutesmo guerreiro O ideal espartano eacute
proacuteximo da epopeia no que diz respeito agrave bravura apesar de pertencerem a tempos
literaacuterios diferentes
Jaeger destaca que os versos tirteanos eacute o primeiro testemunho do ideal poliacutetico e
guerreiro tendo mais adiante a sua realizaccedilatildeo na totalidade da educaccedilatildeo espartana ldquoos
seus poemas deixam ver claramente que a educaccedilatildeo espartana tal como as eacutepocas
seguintes a conheceram natildeo era uma coisa acabada mas estava em processo de
formaccedilatildeordquo (JAEGER 2001 p 115)
Qualquer fraqueza demonstrada era vista como pusilanimidade algo
veementemente repelido do seio daquela sociedade
Natildeo comeceis a fuga vergonhosa nem o medo
mas tornai grande e ardoroso o coraccedilatildeo no peito
natildeo ameis a vida ao combaterdes contra homens (10 W 16-18)
O modo de vida era regulamentado em funccedilatildeo das necessidades do Estado e
tinham consciecircncia de natildeo pertencerem a si proacuteprios mas agrave poacutelis
Em suma estimavam todos que natildeo tinham nascido para servirem a si mesmos
antes para servir o paiacutes e portanto se outra coisa natildeo lhes era recomendada
continuavam sempre a ir ver o que faziam os meninos e a ensinar-lhes alguma
coisa que resultasse em utilidade puacuteblica ou ainda a aprender eles proacuteprios
com os que eram mais idosos do que eles (PLUTARCO Licurgo LI In
Vidas Paralelas)
Licurgo teria imposto que os espartanos tivessem uma vida de austeridade por
exemplo diz-se que eram obrigados a fazerem as refeiccedilotildees em comum em torno de um
caldo negro (PLUTARCO Licurgo XXI In Vidas Paralelas)
Plutarco daacute testemunho dessa coletividade
A agogeacute espartana
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Em suma acostumou os cidadatildeos a natildeo quererem e natildeo poder jamais viver soacutes
antes serem por assim dizer colados e incorporados uns com os outros e a se
acharem sempre juntos como as abelhas em torno dos superiores saindo de
si mesmos quase por um arrebatamento de amor para com o paiacutes e de desejo
de honra para servir inteiramente ao bem da coisa puacuteblica (Op cit LIV In
Vidas Paralelas)
Eacute bom lembrar que Licurgo ordenou que os espartanos fizessem as mesmas
refeiccedilotildees juntos era proibido se alimentarem agrave parte e em particular em grandes
banquetes (Op cit XV In Vidas Paralelas)
Conveacutem citar Aristoacuteteles ldquoacreditamos que a amizade eacute o maior dos bens para as
cidades porquanto pode ser o melhor meio de evitar revoltasrdquo (ARISTOacuteTELES Poliacutetica
II 1262b 7-8)
O estagirita faz uma criacutetica a respeito das refeiccedilotildees comuns intituladas de phidiacutetia
Para o filoacutesofo essas refeiccedilotildees deveriam ser pagas pelo tesouro puacuteblico tal qual em Creta
Entretanto em Esparta os cidadatildeos tinham de fazer uma contribuiccedilatildeo ateacute os pobres que
tinham dificuldades de arrumar dinheiro para essas refeiccedilotildees O objetivo de Licurgo era
que essas refeiccedilotildees fossem democraacuteticas ldquoa maneira espartana tradicional de fixar o
limiar da cidadania consiste em privar de participaccedilatildeo o que natildeo pode pagar a taxa das
refeiccedilotildees comunsrdquo (Op cit II 1271a 26-30)
De acordo com o historiador Xenofonte nas accedilotildees de guerra os lacedemocircnios
(espartanos) usavam traje vermelho para que natildeo se percebessem as manchas de sangue
Se morressem em combate eram enterrados com essas tuacutenicas (JENOFONTE La
Republica de los Lacedemonios)5
Na agogeacute espartana a sophrosyacutene (temperanccedila moderaccedilatildeo autocontrole) tem um
caraacuteter social sendo um comportamento imposto regulamentado marcado pelo
comedimento que o jovem deve observar em todas as circunstacircncias comedimento em
seu andar em seu olhar em suas expressotildees comedimento diante das mulheres em face
dos mais velhos comedimento aos prazeres agrave bebida
Desse modo o futuro guerreiro era exercitado em dominar seus extintos Na
verdade a agogeacute era precisamente destinada a experimentar esse poder de domiacutenio de
si A sophrosyacutene submete assim cada indiviacuteduo em suas relaccedilotildees com o proacuteximo em
contraste com a hyacutebris a ldquodesmedidardquo a ldquotransgressatildeordquo
O ideal da sophrosyacutene era o nada em excesso haacute uma tendecircncia na qual a
sophrosyacutene e a hyacutebris se encarnam respectivamente nos velhos e nos jovens (ideia que
seraacute mais clara nos traacutegicos)
A bela morte espartana deve ter ligaccedilatildeo com a cidadania ou melhor um criteacuterio
de cidadania sendo uma manifestaccedilatildeo ciacutevica (12W 18 34) Uma das diferenccedilas mais
acentuadas entre o mundo de Tirteu e dos poemas homeacutericos estaacute nas relaccedilotildees do
indiviacuteduo com a comunidade pois os guerreiros de Homero lutam pela gloacuteria individual
enquanto os heroacuteis de Tirteu combatem pela comunidade por suas famiacutelias e
dependentes Assinale-se que haacute na Iliacuteada XV 494-9 um episoacutedio em que Heitor estaacute
claramente lutando pela sobrevivecircncia de Troia
5 Para Jaeger a Constituiccedilatildeo (Repuacuteblica) dos Lacedemocircnios de Xenofonte eacute resultado do romantismo ldquomeio
filosoacutefico meio poliacutetico do seacuteculo IV aC o qual via no Estado espartano uma espeacutecie de revelaccedilatildeo
poliacutetica primordialrdquo (JAEGER 2001 p 109)
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A cidade espartana condena o ato de bravura de um soacute combater e permanecer
corajosamente no seu lugar na falange natildeo ceder agrave vontade de fugir encorajar seu
companheiro de linha eacute um bem comum para a cidade e para todo o povo
Heroacutedoto disserta a respeito do espartano Aristodamos que estava entre os
trezentos lacedemocircnios que tinham defendido as Termoacutepilas ele foi o uacutenico sobrevivente
mas preocupado em livrar-se do oproacutebio que os espartanos infligiram a essa
sobrevivecircncia o guerreiro saiu de seu posto do seu lugar na falange e procurou e
encontrou a morte em Plateia ao realizar faccedilanhas extraordinaacuterias (HEROacuteDOTO
Histoacuteria IX 71)
Aleacutem do exemplo de Aristodamos o historiador daacute testemunho de outro episoacutedio
nas Termoacutepilas em que os combatentes saindo de seus postos lutavam de maneira furiosa
em torno do corpo de Leocircnidas Quando as espadas dos espartanos foram quebradas eles
se defenderam com as matildeos e os dentes (Op cit VII 225) em um estado de furor
belicoso que se assemelhava aos heroacuteis homeacutericos Diomedes e Aquiles Os espartanos
abandonaram a sophrosyacutene e estavam claramente em estado de lyacutessa o que a cidade natildeo
tolerava
Todavia apesar de sua valentia os espartanos natildeo lhe concederam as honras
fuacutenebres devidas aos melhores isto eacute recusaram-lhe a aristeacuteia porque violara a lei de
permanecer em seu lugar na falange Possuiacutedo pela lyacutessa por um furor guerreiro
combateu furiosamente fora de seu posto
A virtude guerreira natildeo pertence agrave ordem do thymoacutes do impulso e sim da
sophrosyacutene a temperanccedila um domiacutenio muito grande para que o guerreiro pudesse refrear
seus impulsos e natildeo perturbasse a ordem da formaccedilatildeo em falange
A eacutetica militar espartana proiacutebe o estado de furor de lyacutessa Vernant destaca que a
cidade rejeita atitudes tradicionais da aristocracia que tem por costume a exaltaccedilatildeo do
prestiacutegio do poder dos indiviacuteduos e de colocaacute-los acima do comum satildeo considerados
como um descomedimento uma hyacutebris de igual modo o furor guerreiro e a busca no
combate de uma gloacuteria particular (VERNANT 2002 p 69)
Ateacute os sessenta anos os espartanos estavam sujeitos a participar das guerras
pertenciam ao Estado ate agrave morte As moccedilas natildeo eram tratadas de modo diverso acima
da famiacutelia vinha a poacutelis
Xenofonte destaca que Licurgo ordenou que o sexo feminino exercitasse tanto
quanto o masculino A mulher espartana tambeacutem tinha uma formaccedilatildeo regulamentada
cuja muacutesica a danccedila e o canto natildeo possuiacuteam tanta importacircncia quanto a ginaacutestica e o
esporte (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios 1 4)
As espartanas estavam a serviccedilo da cidade quando solteiras praticavam
exerciacutecios que a tornavam forte e saudaacutevel a fim de que seus corpos se tornassem riacutegidos
ao se exercitarem havia exerciacutecios de correr de lutar de jogar a barra e de lanccedilar o dardo
com o objetivo de gerarem filhos igualmente robustos e para suportarem as dores do
parto (PLUTARCO Licurgo XXV In Vidas Paralelas)
Havia a ideia entre os homens de que pai e matildee fortes gerariam igualmente filhos
mais vigorosos Por isso quando casada a missatildeo da mulher era dar ao Estado filhos
fortes grandes guerreiros e bons cidadatildeos Percebe-se que haacute uma preocupaccedilatildeo de
eugenia dentro da sociedade espartana
Os receacutem-nascidos eram observados e se constatada qualquer imperfeiccedilatildeo essas
crianccedilas consideradas ldquodefeituosasrdquo que tivessem qualquer tipo de doenccedila ou
deformidade eram sumariamente assassinadas sendo atiradas de um precipiacutecio Esses
A agogeacute espartana
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receacutem-nascidos natildeo estariam prontos para defender a cidade-estado e consequentemente
natildeo seriam bons guerreiros na fase adulta6
Entrementes depois que a crianccedila nascia [] mas se lhes parecia feia
disforme ou franzina mandavam atiraacute-la num precipiacutecio a que vulgarmente se
dava o nome de Apothetes isto eacute depositoacuterios pois tinham a opiniatildeo de que
natildeo era expediente nem para a crianccedila nem para a coisa puacuteblica que ela
vivesse visto como desde o nascimento natildeo se mostrava bem constituiacuteda para
ser forte satilde e rija durante toda a vida E por esse motivo as proacuteprias mulheres
que as governavam natildeo as lavavam com aacutegua simples como se faz por toda
parte mas com uma mistura de aacutegua e vinho e por esse meio experimentavam
se a compleiccedilatildeo e a tecircmpera de seus corpos era boa ou maacute porque dizem eles
que as crianccedilas sujeitas agrave epilepsia ou entatildeo catarrosas e doentias natildeo podem
resistir nem tolerar esse banho de vinho mas definham e caem em langor e
ao contraacuterio as que tecircm sauacutede se tornam mais rijas e mais fortes
(PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)
Aristoacuteteles sublinha que Licurgo com o objetivo de fazer com que os espartanos
fossem numerosos encorajava-os a terem o maior nuacutemero possiacutevel de filhos haacute a lei de
que o pai de trecircs filhos estaacute isento do serviccedilo militar e o de quatro livre de impostos
(ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1270b 1-5)
A renomada helenista Claude Mosseacute infere que seria interessante acreditar que
Esparta passou por uma seacuterie de etapas entre a adoccedilatildeo da falange hopliacutetica seacuteculo VII
aC e o ldquofechamento da cidade em si mesmardquo iniacutecio seacuteculo IV aC Aleacutem do mais a
rheacutetra que fora atribuiacuteda a um possiacutevel legislador Licurgo pode ter sido resultado de
uma possiacutevel abertura da falange aos membros do decircmos cuja participaccedilatildeo nas tomadas
de decisatildeo era reconhecida Em relaccedilatildeo agrave partilha de terras pode ter acontecido depois
do teacutermino da segunda guerra da Messecircnia (uacuteltimo quarto do seacuteculo VII aC) e a agogeacute
e o militarismo da cidade podem ter ocorridos no princiacutepio do seacuteculo VI aC tendo por
principal objetivo a defesa da cidade-estado espartana contra os povos da Lacocircnia e
Messecircnia que foram escravizados
A Esparta do seacuteculo VII aC estaacute empenhada em um movimento que leva as
aristocracias das diversas cidades ao luxo Depois a ruptura se daacute entre o final do seacuteculo
VII aC e o iniacutecio do VI aC concentra-se em si mesma repudiando a ostentaccedilatildeo da
riqueza proibindo o uso dos metais preciosos depois a moeda de ouro e de prata (o
dinheiro era feito de um ferro de maacute qualidade que natildeo deveria ser fundido em grandes
quantidades) permanece fora das correntes intelectuais fecha-se a tudo o que eacute
intercacircmbio com o estrangeiro comeacutercio atividade artesanal voltam-se sua preocupaccedilatildeo
para a guerra em defesa da poacutelis (MOSSEacute 2004 p 189-190)
Qualquer riqueza natildeo poderia ser exposta em puacuteblico os artesatildeos natildeo
confeccionavam luxos desnecessaacuterios como tapetes e adornos mas faziam muito bem
apenas o baacutesico pois a riqueza seria a causa de muitos males Xenofonte escreve que os
espartanos natildeo se adornavam com riquezas de vestuaacuterios exceto com a boa forma fiacutesica
de seus corpos (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)
Pode-se conceituar a agogeacute como uma educaccedilatildeo estatal com fins extremamente
belicosos que se estendia da infacircncia ateacute a adolescecircncia Nessa educaccedilatildeo os futuros
6 Esse costume natildeo ocorreu soacute em Esparta a Lei das XII taacutebuas na Roma antiga autorizava os patriarcas a
matar seus filhos fraacutegeis ou deficientes
Luciene de Lima Oliveira
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combatentes aprendiam as artes militares as manobras em campos de batalha e a ser
destemidos diante do inimigo
Infere-se que o principal objetivo da agogeacute era formar poderosos guerreiros para
a defesa da poacutelis Para isso uma riacutegida educaccedilatildeo foi imposta aos jovens e uma peculiar
maneira de viver aos adultos
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Publicaccedilatildeo semestral do Departamento de Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de Letras da
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SUMAacuteRIO
Apresentaccedilatildeo 6
Homem e mulher os criou
Isabel Arco Verde Santos 7
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
Carlos Eduardo Schmitt 13
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
Bruno Torres dos Santos 23
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher
alencariano
Heitor Victor 37
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
Marco Valeacuterio Classe Colonnelli 45
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
Dulcileide V do Nascimento Braga 55
A agogeacute espartana
Luciene de Lima Oliveira 63
DOI httpsdoiorg1012957principia201946484
APRESENTACcedilAtildeO
Em seu primeiro volume de 2019 a Revista Principia traz agrave luz artigos
contemplando natildeo apenas o olhar para os princiacutepios de nossa cultura greco-romana-
judaico-cristatilde mas um diaacutelogo entre passado e presente
No primeiro artigo por exemplo temos uma retomada e uma anaacutelise reflexiva
sobre os termos hebraicos na narrativa da criaccedilatildeo da mulher segundo a Biacuteblia Com esta
reflexatildeo a Profa Me Isabel Arco Verde Santos (UERJ) nos leva a rever as questotildees de
gecircnero na atualidade para quiccedilaacute diminuiacute-las
No segundo artigo selecionado passando ao domiacutenio latino o Prof Me Carlos
Eduardo Schmitt (doutorando da USP) se debruccedila sobre a vida e mui extensa obra do
orador Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio no contexto do reinado de Valentiniano I
Em seguida acompanhamos o pesquisador bolsista da CAPES e doutorando da
UFRJ Bruno Torres dos Santos em sua anaacutelise comparada sobre o real trabalho do
bioacutegrafo de imperadores romanos Suetocircnio e o uso que dele fez Machado de Assis em
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Teria Machado partido do pressuposto de que tal
comparaccedilatildeo nunca seria feita
Seguindo para o domiacutenio grego outra anaacutelise comparada nos aguarda o Prof
Heitor Victor mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada da UERJ
analisa as marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar
utilizando-se para isso de diaacutelogo com texto de Walter Benjamin
Mergulhando ainda mais na cultura helecircnica o Prof Dr Marco Valeacuterio Colonnelli
(UFPB) nos demonstra o potencial de concisatildeo dos siacutemiles homeacutericos conforme
aparecem na Iliacuteada atraveacutes do valor simboacutelico de determinados animais conforme
anotados por Aristoacuteteles em sua Investigaccedilatildeo dos animais
Na sequecircncia dois artigos que nos fazem refletir mais sobre a vida na Antiga
Greacutecia No primeiro a Profa Dra Dulci Nascimento Braga apresenta sua pesquisa que
visa demonstrar a praacutetica registrada na literatura de diversos tipos de profissionais da
magia os quais em muito a influenciaram
No segundo a Profa Dra Luciene Oliveira reflete sobre a formaccedilatildeo educacional
belicosa dos espartanos segundo a qual a coragem parece ser o maior valor de caraacuteter
que esses homens poderiam ter
Desejamos a todos uma boa leitura
Elisa Figueira de Souza Correcirca
Editora-chefe da Principia XXXVIII
DOI httpsdoiorg1012957principia201946485
HOMEM E MULHER OS CRIOU
Isabel Arco Verde Santos (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO O presente artigo retoma os textos da criaccedilatildeo e reflete reflete especificamente
na criaccedilatildeo da mulher Os termos hebraicos que acompanham a narrativa da criaccedilatildeo e se
relacionem com a figura feminina tecircm muito a nos contar Afinal qual o papel da mulher
e seu objetivo ao ser criada frente ao homem Haveria uma clara dimensatildeo de
superioridade ou inferioridade refletidas nestes relatos Em nossa sociedade de cultura
cristatilde o texto biacuteblico tem valor imensuraacutevel na relaccedilatildeo de gecircnero que vivemos em nossa
sociedade Voltar o olhar ao texto biacuteblico e buscar nele caminhos a partir da criacutetica textual
eacute uma forma de buscar respostas para diminuir as injusticcedilas que separam homens e
mulheres
PALAVRAS-CHAVE relatos de criaccedilatildeo relaccedilatildeo homem mulher Eva e Lilith
MALE AND FEMALE CREATED HE THEM
ABSTRACT This article analyzes the Hebrew texts of creation and reflects specifically
on the creation of women The Hebrew terms that accompany the creation narrative and
relate to the female figure have much to tell us What is the function of women and their
purpose when being created Would there be a clear dimension of superiority or
inferiority between men and women reflected in these texts In our Christian culture
society the biblical text has immeasurable value in the gender relationship we live in our
society Turning to the biblical text through textual criticism is a way of seeking answers
to reduce the injustices that separate men and women
KEYWORDS creation texts men and women relationship Eva and Lilith
Nosso objetivo neste primeiro momento eacute tratar do texto da criaccedilatildeo do homem e
da mulher Este texto eacute baacutesico para qualquer discussatildeo Os textos que iremos usar
encontram-se todos no livro de Bereshit ou Gecircnesis Eacute o primeiro livro da Torah ou
Pentateuco e traz nos seus primeiros capiacutetulos o relato da criaccedilatildeo
Eacute possiacutevel identificar dois relatos diferentes para esta histoacuteria Histoacuterias de
enfoques diferentes e origens tambeacutem diferentes O primeiro encontra-se em Gecircnesis
126-31 O segundo no capiacutetulo 215 a 24 deste mesmo livro Ambos tratam da criaccedilatildeo
do ser humano homem e mulher
No primeiro texto a designaccedilatildeo hebraica usada para homem eacute zakhar1 e neqebah2
para a mulher Estes termos indicam o que eacute masculino e o que eacute feminino E-mail verdesantosuolcombr 1 Zainkafresh 2 Nunqophbeit
Homem e mulher os criou
8 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
respectivamente O termo para masculino eacute da mesma raiz do verbo lembrar trazer a
memoacuteria O termo para feminino tem uma ideia mais ampla em sua raiz verbal mas para
o texto destaca-se a ideia de efeminar tornar feminino
Alguns autores interpretam a partir deste texto biacuteblico a criaccedilatildeo de um ser
androacutegino Adatildeo o primeiro homem seria ao mesmo tempo homem e mulher isto
porque no relato no verso 26 primeiramente acontece o termo Adam sem artigo e sem
a partiacutecula acusativa o que indicaria a criaccedilatildeo da humanidade uma coletividade o
chamado Adatildeo primordial3 Assim este verso no portuguecircs ficaria E disse Deus faccedilamos
(a) humanidade com nossa imagem e semelhanccedila
No verso 27 quando Deus abenccediloa a criaccedilatildeo desta humanidade o termo Adam
vem agora acompanhado de artigo HaAdam e da partiacutecula acusativa Aqui como haacute o
artigo antes do nome Adam entendemos que natildeo soacute o ser denominado Adatildeo estaacute sendo
abenccediloado pois em hebraico o artigo nunca ocorre antes de nome proacuteprio mas uma
indicaccedilatildeo definida daquilo que se estaacute abenccediloando Natildeo um ser humano qualquer mas o
ser humano criado
O texto pode ser traduzido entatildeo assim E abenccediloou Deus o ser humano com sua
imagem Com imagem de Deus o criou (ser humano - refere-se ao termo masculino
HaAdam) macho e fecircmea os criou A ideia androacutegina seria difiacutecil de contestar caso o
pronome que sucede o verbo criar no estivesse no plural Criou a eles e natildeo a ele
A ordem divina entende que o domiacutenio sobre a criaccedilatildeo eacute dado indiferentemente a Adatildeo
ao ser humano (bom enfatizar sem o artigo definido) subentende-se assim uma natildeo
discriminaccedilatildeo na ordem Ela eacute dada ao ser humano e natildeo exatamente a Adatildeo - o primeiro
homem - visto que a partiacutecula acusativa (Alephtaw) natildeo ocorre
Vale ainda salientar que a dimensatildeo da becircnccedilatildeo de Deus sobre Adatildeo
primeiramente e ressalvada a becircnccedilatildeo sobre macho e fecircmea sobre homemmulher se
concretiza em ser a imagem de Deus No verso 26 do capiacutetulo primeiro haacute o movimento
de criaccedilatildeo da humanidade ndash do ADAM sem artigo Este eacute criado agrave imagem e semelhanccedila
de Deus No verso 27 Deus abenccediloa Adatildeo ndash o homem especiacutefico o homem criado ndash com
sua imagem No verso 28 a becircnccedilatildeo se esclarece estendida sobre homem e mulher A ausecircncia ou presenccedila da partiacutecula de objeto direto (lsquoet ndash alephtaw) eacute de suma
importacircncia no estudo do texto isto porque ela ocorre indicando o objeto direto quando
este eacute especificado com o artigo ou quando ele por si mesmo como ocorre com qualquer
nome proacuteprio eacute especificado por natureza4
Esta questatildeo do artigo junto agrave palavra Adam merece um outro estudo e eacute preciso
atenccedilatildeo ao analisar o termo nestes primeiros capiacutetulos No capiacutetulo 3 por exemplo Adam
ainda aparece como nome plural (vide verso 17) designando um ser geral natildeo obstante
no verso 22 reaparece HaAdam indicando uma especificaccedilatildeo do termo entendendo o ser
homem Adatildeo
O texto da criaccedilatildeo do homem e mais objetivamente da mulher ocorre no capiacutetulo
seguinte em 215-24 O capiacutetulo dois retorna agrave histoacuteria da criaccedilatildeo de forma resumida
dando mais atenccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem e da mulher Na traduccedilatildeo de Almeida (A
BIacuteBLIA 1958) o verso 15 se lecirc assim Tomou pois o SENHOR Deus ao homem e o
colocou no jardim do Eacuteden para o cultivar e guardar O termo traduzido aqui por homem
3 Em primeiro lugar trecircs eram os gecircneros da humanidade natildeo dois como agora o masculino e o feminino
mas tambeacutem havia a mais um terceiro comum a estes dois do qual resta agora um nome desaparecida a
coisa androacutegino era entatildeo um gecircnero distinto tanto na forma como nome comum aos dois ao masculino
e ao feminino enquanto agora nada mais eacute que um nome posto em desonra (PLATAtildeO 1991 p 57-58) 4 Esta partiacutecula eacute muito importante na anaacutelise sintaacutetica da frase hebraica No caso do verbo transitivo direito
ela ajuda a identificar o predicado
Isabel Arco Verde Santos
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 9
eacute HaAdam ou seja o nome aparece com o artigo o que se entende o nome do primeiro
homem ndash Adatildeo
Natildeo haacute exatamente uma sequecircncia neste segundo relato A narrativa da criaccedilatildeo tatildeo
cuidadosa e minuciosa exposta no relato anterior neste capiacutetulo jaacute natildeo mais importa No
verso 18 o comentaacuterio divino aponta para a preocupaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave solidatildeo de Adam
e a necessidade de fazer algueacutem segundo traduccedilatildeo de Almeida uma auxiliadora que lhe
seja idocircnea A aplicaccedilatildeo do artigo aqui no termo Adam parece indicar algo mais
especiacutefico tendo em vista o autor deixar claro que ele Adam estaacute soacute A vocalizaccedilatildeo
hebraica confunde porque o termo que se usa no verso 20 do capiacutetulo 2 ao dizer que natildeo
havia para Adam ndash e desta vez a vocalizaccedilatildeo sugere a inexistecircncia do artigo - quem fosse
eacutezer e neacuteged
Ocorre que neste verso 20 aparece o termo LeAdam Se a forma com artigo
acontecesse a contraccedilatildeo do artigo com a preposiccedilatildeo suporia a forma LaAdam E parece
ser a forma mais correta de se ler o texto dando continuidade a ideia que estaacute sendo
desenvolvida
HaAdam ndash Adatildeo - daacute nome aos elementos da criaccedilatildeo mas eacute Adam ndash o nome geral
a humanidade - que natildeo encontrou algueacutem para estar ao seu lado De uma forma ou de
outra o que se quer eacute justificar o relato da criaccedilatildeo da mulher Os termos usados por
Almeida auxiliadora e idocircnea traduzem o hebraico eacutezer e neacuteged respectivamente
Ora eacutezer eacute a palavra usada no conhecido Salmo 121 (Elevo os olhos para o monte
de onde me viraacute o socorro) Ressalte-se que o socorro natildeo eacute encontrado natildeo em seres
inferiores O salmista eleva os olhos busca acima de si o socorro Isto deixa claro que
natildeo haacute qualquer tipo de inferioridade na criaccedilatildeo da mulher
O outro termo neacuteged eacute uma preposiccedilatildeo que pode ser traduzida por defronte de
em frente contra diante de em oposiccedilatildeo defronte comparado com Como verbo na
forma simples paal significa ser contra ou estar defronte Na forma causativa no hiphil
o verbo significa contar revelar dizer algo ainda natildeo conhecido Estes termos vatildeo reaparecer no verso 20 quando apoacutes o homem ter dado nome a
todos os seres se conclui mais uma vez que natildeo havia nada que lhe fosse eacutezer e neacuteged O
hebraico nos aponta ideias mais fortes que a traduccedilatildeo de Almeida No portuguecircs
auxiliador tem a ideia de ajudante assistente conforme explica o Aureacutelio Idocircneo tem o
sentido de conveniente e adequado ainda segundo este mesmo dicionaacuterio
O que se procura na criaccedilatildeo para HaAdam (Adatildeo) eacute o seu oposto o seu contraacuterio
porque o objetivo eacute crescer e encher a terra Por outro lado procura-se algo que lhe venha
socorrer em sua solidatildeo O interessante poreacutem eacute que embora se entenda neacuteged como
uma possibilidade contraacuteria porque haacute a necessidade de encher a terra tanto este termo
como o termo socorro (eacutezer) natildeo vecircm em forma feminina mas masculina apesar de tanto
este quanto aquele ter uma forma hebraica similar feminina (ezrah e negdah)
Se prosseguirmos a leitura naquilo que seria o relato da criaccedilatildeo da mulher
identificamos que apoacutes cair em sono profundo Deus retirou uma costela de Adatildeo para
construir a mulher
Trecircs termos agora se encontram neste texto da criaccedilatildeo tzeacutelem a imagem de Deus
com que a humanidade foi abenccediloada eacute o termo que associa a humanidade a Deus que
ficou no capiacutetulo primeiro tzeacutelarsquo a costela retirada de Adatildeo que eacute a mateacuteria da qual eacute
feita a mulher Por uacuteltimo temos o termo lsquoeacutetzem que aparece na fala deslumbrada de
Adatildeo ao acordar de seu sono e ver a criaccedilatildeo de Deus na forma da mulher oriunda de sua
costela
O novo ser criado eacute denominado lsquoyshah Sua denominaccedilatildeo eacute da mesma raiz da
palavra lsquoysh que quer dizer homem Esta semelhanccedila dos dois nomes demonstra o
reconhecimento de si mesmo no outro ser criado HaAdam reconhece a mulher como algo
Homem e mulher os criou
10 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
semelhante a ele - daiacute o uso dos termos tsela e tselem (costela e osso) O termo lsquoeacutetzem -
semelhanccedila ndash une em sua raiz os dois termos que identificam a mulher como parte da
humanidade HaAdam natildeo a identifica como lsquoysh pois percebe que existem diferenccedilas
entre eles ndash afinal ela eacute seu contraacuterio Este texto biacuteblico como outros textos do Gecircnesis tenta explicar criaccedilatildeo de
homem e mulher como partes da humanidade Sua preocupaccedilatildeo em desenvolver uma
narrativa que explique a criaccedilatildeo da mulher se daacute para que natildeo se incorra no erro de ignorar
que a mulher tambeacutem eacute abenccediloada com a semelhanccedila de Deus corroborada na criaccedilatildeo
que se faz da mesma mateacuteria
Natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo em inferiorizar a mulher Embora HaAdam a tenha
chamado de lsquoyshah seu nome apareceraacute somente no capiacutetulo seguinte apoacutes a expulsatildeo
do Eacuteden quando entatildeo ele a chamaraacute de Chawav ou Eva Se haacute superioridade porque ele
lhe daacute um nome esta superioridade eacute uma das consequecircncias do que se denominou pecado
e gerou a expulsatildeo do paraiacuteso
Os relatos cabaliacutesticos datildeo conta de criaccedilatildeo de uma outra mulher Esta ideia natildeo
soacute eacute desenvolvida pelos dois relatos de criaccedilatildeo mas tambeacutem pela fala de HaAdam
quando desperta de seu sono Ele diz segundo a traduccedilatildeo que fazemos aqui do hebraico
e disse o homem esta desta vez eacute osso dos meus ossos 5 Se desta vez HaAdam se
identifica com algo na criaccedilatildeo talvez teria acontecido algo antes com o qual ele natildeo teria
se adaptado ou natildeo se sentiria reconhecido
Lilith eacute a mulher que domina e seduz HaAdam que lhe aproxima de seus
institntos Chavah a segunda mulher eacute a que gera e constroacutei a histoacuteria Na religiatildeo a
primeira eacute tida como a mulher que deve ser desprezada apesar de figurar no imaginaacuterio
masculino pois retorna nos sonhos de Adatildeo Ela tambeacutem retorna aos textos biacuteblicos
principalmente nos sapiencieais mais especificamente no livro de proveacuterbios nos
capiacutetulos 1 a 9 quando se faz oposiccedilatildeo entre a sabedoria e a ignoracircncia entre a mulher
do povo e a estrangeira
Chavah vive com esta sombra - a mulher principal para a sociedade mas natildeo nos
desejos de seu marido A presenccedila de Lilith na cultura judaica natildeo eacute uacutenica Ela pode ser
encontrada no eacutepico de Gilgamesh que data de 2000 aEC na pseudoepiacutegrafe
denominada Testamento de Salomatildeo que data de 200 EC no Talmud e no Alfabeto de
Ben Sira6 do ano 800 de nossa era aproximadamente Alguns indicam haver menccedilatildeo
tambeacutem no livro biacuteblico de Isaiacuteas 3414 (a palavra Lilith vem da raiz laylah que significa
noite)
Lilith teria sido criada tatildeo bonita e interessante que logo arranjou
problemas com o primeiro o homem Ainda segundo a narrativa
miacutetica Eva foi criada para substituir Lilith Eva seria o oposto de
Lilith por sua vez reuacutene traccedilos marcantes de obediecircncia boa
imagem companheira submissa ao sacerdote ao Pai e agrave Lei e por
fim tambeacutem fonte de pecado e desobediecircncia (GOMES
ALMEIDA 2019)
Eacute importante tambeacutem observar que o capiacutetulo 2 de Gecircnesis este que se propotildee a
recontar a criaccedilatildeo focando a criaccedilatildeo do homem e da mulher eacute um texto javista-eloiacutesta
Observa-se que o capiacutetulo primeiro do gecircnesis eacute notoriamente um texto eloiacutesta Jaacute o
5 Cf capiacutetulo 2 versiacuteculo 23 do livro de Gecircnesis 6 Onde se tem o registro mais antigo sobre Lilith datado entre os seacuteculos VIII e X aC segundo Koltuv
(1986)
Isabel Arco Verde Santos
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 11
capiacutetulo 2 refere-se a deus com o tetragrama sagrado (Yhwh) seguido da forma Elohim
O texto mistura entatildeo as duas fontes
A conclusatildeo de HaAdam natildeo necessariamente afirma a lenda mas abrem uma
possibilidade neste sentido O que se pode concluir eacute que natildeo havia nada na criaccedilatildeo com
a qual ele HaAdam se identificasse
A preocupaccedilatildeo da leitura biacuteblica e as possiacuteveis interpretaccedilotildees relacionando ao
papel da mulher na sociedade ainda precisam ser mais bem resolvidas Mesmo que se
faccedila a presenccedila de Lilith no texto como a histoacuteria omitida e natildeo contada porque precisava
ser reescrita na forma de Chawah ainda assim carece a ideia de submissatildeo e inferioridade
que culturalmente ainda se insiste afirmar
O texto Eloiacutesta que domina o capiacutetulo primeiro do Gecircnesis natildeo tem qualquer
preocupaccedilatildeo em distinguir homem e mulher O capiacutetulo segundo na comunhatildeo Javista-
Eloiacutesta tem a preocupaccedilatildeo em frisar que satildeo diferentes e ateacute mesmo contraacuterios mas que
natildeo perdem a noccedilatildeo da mesma mateacuteria e partilham da mesma becircnccedilatildeo da semelhanccedila
divina Natildeo haacute uma prioridade A confusatildeo que suscita a ideia androacutegina surge da essecircncia
comum dois elementos criados partes de uma soacute ideia a humanidade
A ordem na criaccedilatildeo tambeacutem natildeo gera conclusotildees de superioridade Se
entendecircssemos que os primeiros seriam submissos aos uacuteltimos seres criados entendendo
o homem a coroa da criaccedilatildeo o ser acima de toda a criaccedilatildeo poderiacuteamos supor que a
mulher criada depois dele lhe seria entatildeo superior Colocaccedilotildees deste tipo natildeo prosperam
na anaacutelise do texto biacuteblico porque haacute que se considerar o texto como um todo Ou entatildeo
seriam os astros celestes criados primeiros inferiores aos mares ou os animais Eacute certo
que a ordem natildeo sugere algum tipo de superioridade
Enfim o que se vecirc depois da criaccedilatildeo eacute uma luta constante da figura feminina pela
conquista de seu espaccedilo luta esta que infelizmente ainda persiste A necessidade de ser
semelhanccedila de Deus e natildeo soacute costela
REFEREcircNCIAS
A BIacuteBLIA Sagrada Trad Joatildeo Ferreira de Almeida Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do
Brasil 1958
BIacuteBLIA Hebraica Stuttgartensia 4a Ed Stuttgart Deustsche Bibelgesellschaft 1967
BEREZIN Rifka Dicionaacuterio Hebraico-Portuguecircs Satildeo Paulo EDUSP 1995
EVEN-SHOSHAN Abraham Hamilon Hechadash 3 Ed Jerusalm Qryiat-sefer
1972 3 vol
FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa
15a ed Rio de Janeiro Nova Fronteira
GOMES Antonio Maspoli de Arauacutejo ALMEIDA Vanessa Ponstinnicoff de O Mito de
Lilith e a Integraccedilatildeo do Feminino na Sociedade Contemporacircnea Revista acircncora digital
de Ciecircncias da Religiatildeo Disponiacutevel em ltwwwrevistaancoradigitalcombrgt
Homem e mulher os criou
12 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
GOTTWALD Norman K Introduccedilatildeo socioliteraacuteria agrave Biacuteblia hebraica Traduccedilatildeo
Anacleto Alvarez revisatildeo H Dalbosco Satildeo Paulo Paulinas 1988
KOLTUV Barbara Black O Livro de Lilith psicologiamitologia Satildeo Paulo Cultrix
1986
PAIVA Vera Evas Marias e Liliths as voltas do feminino 2a Ed Rio de Janeiro
Brasiliense 1993
PLATAtildeO Diaacutelogos Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Traduccedilatildeo e
notas de Joseacute Cavalcante de Souza Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa 5 Ed Satildeo Paulo
Nova Cultural 1991 (Coleccedilatildeo Os pensadores)
DOI httpsdoiorg1012957principia201946508
AS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO E SEU IMPACTO NO
REINADO DE VALENTINIANO I
Carlos Eduardo Schmitt
RESUMO Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio (c 340-402) possui uma extensa obra da qual
chegaram agrave contemporaneidade mais de 900 cartas (epistolae) 49 informes (relationes)
e 8 discursos (orationes) Suas obras de maior destaque satildeo as Orationes I II e III
proferidas entre 369-370 e sua Relatio III escrita durante seu tempo como prefeito de
Roma em 384 Tais obras lhe renderam a fama de melhor orador de seu tempo ainda em
vida Nosso trabalho tem como objetivo expor o impacto que as Orationes I II e III
tiveram na carreira do orador e na relaccedilatildeo entre o Senado e o reinado de Valentiniano I
A partir de suas Orationes ressaltaremos a delicada missatildeo do orador enviado de Roma
agrave Treacuteveris para servir como ponte entre o Senado e o imperador
PALAVRAS-CHAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I
SYMMACHUSrsquo ORATIONES I II AND III AND ITS IMPACT IN THE
KINGDOM OF VALENTINIAN I
ABSTRACT Quintus Aurelius Symmachus Eusebius (c 340-402) has an extensive work
from which more than 900 letters (epistolae) 49 reports (relationes) and 8 discourses
(orationes) survived His most outstanding works are Orationes I II and III pronounced
between 369-370 and his Relatio III written during his time as praefectus of Rome in
384 Such works earned him the fame of the best speaker of his time being still alive Our
paper aims to expose the impact that Orationes I II and III had on the speakers career
and on the relation between the Senate and the reign of Valentinian I From his Orationes
we will highlight the delicate mission of the speaker sent from Rome to Trier to serve as
a bridge between the Senate and the emperor
KEYWORDS Symmachus Orationes Valentinian I
LAS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO Y SU IMPACTO EN EL
REINADO DE VALENTINIANO I
RESUMEN Quinto Aurelio Siacutemaco Eusebio (c 340-402) tiene una extensa obra de la
cual chegaron a la contemporaneidad maacutes de 900 cartas (epistolae) 49 informes
(relationes) e 8 discursos (orationes) Sus obras de mayor destaque son las Orationes I
Doutorando pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail carlosschmitt90gmailcom
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
14 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6
II y III pronunciadas entre el 369-370 y su Relatio III escrita durante su tiempo como
prefecto de Roma en 384 Tales obras le rindieron la fama de mejor orador de su tiempo
auacuten en vida Nuestro artiacuteculo tiene como objetivo exponer el impacto que las Orationes
I II y III tuvieron en la carrera del orador y en la relacioacuten entre el Senado y el reinado de
Valentiniano I A partir de sus Orationes resaltaremos la delicada misioacuten del orador
enviado de Roma a Treacuteveris para servir como puente entre el Senado y el emperador
PALAVRAS CLAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I
INTRODUCcedilAtildeO
Joseacute Antonio Gallego (2003 p 153) esclarece que a obra mais famosa de Siacutemaco
foi seu informe terceiro apesar de que durante a Idade Meacutedia as epistolae foram suas
obras mais valorizadas sendo utilizadas como modelo para escrever uma carta Contudo
em seu proacuteprio tempo ele era famoso por ser um grande orador Eacute por isso que Gallego
(2003 p 154) pondera como injusto o que a histoacuteria fez com Siacutemaco Apenas oito de
seus discursos chegaram ateacute noacutes sendo que estes satildeo dos iniacutecios de sua carreira aleacutem de
estarem num manuscrito palimpsesto com grandes lacunas Deve-se ter presente tambeacutem
que ldquoSiacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador romano se excetuarmos os escritores cristatildeosrdquo1
(GALLEGO 2003 p 154) Em outras palavras Siacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador da
religiatildeo tradicional romana
Cristiana Sogno (2006 p viii) faz uma reconstruccedilatildeo da carreira poliacutetica de
Siacutemaco atraveacutes de uma anaacutelise minuciosa de seus escritos Ele ocupa uma posiccedilatildeo
peculiar entre os autores latinos pela quantidade de escritos que nos chegaram A autora
defende que a razatildeo pelo desconhecimento de Siacutemaco por parte dos estudantes de
Claacutessicas e de Histoacuteria Antiga eacute o fato de natildeo existir uma traduccedilatildeo completa do corpus
simaquiano em nenhuma liacutengua moderna Sogno clarifica tambeacutem que a ediccedilatildeo de Otto
Seeck do seacuteculo XIX continua sendo o modelo do texto
Sogno (2006 p 1) clarifica que a primeira fase da carreira de Siacutemaco estaacute bem
documentada em suas orationes Sua nominaccedilatildeo como embaixador senatorial em 368 foi
um marco em sua vida sendo que sua reputaccedilatildeo como orador foi estabelecida na corte de
Valentiniano I tornando-se uma ponte entre o Senado e o imperador
Apesar de que Siacutemaco tenha a fama de ser um grande orador suas orationes
desapareceram ateacute seu redescobrimento no seacuteculo XIX Sabe-se que Siacutemaco ficou
conhecido por ser um bastiatildeo em defesa da religiatildeo tradicional romana sobretudo durante
seu periacuteodo como Prefeito de Roma por volta de 384 E Sogno (2006 p 1) sem perder
a oportunidade relata uma ldquoironia do destinordquo sendo que foi um cardeal da Igreja
Catoacutelica Romana Angelo Mai quem descobriu e publicou os fragmentos de suas
orationes em 1815 Tratava-se de um palimpsesto onde por cima havia uma traduccedilatildeo
latina das atas do Conciacutelio de Calcedocircnia O cardeal destruiu o documento para que as
orationes pudessem ser recuperadas Apesar disso Sogno (2006 p 2) constata como
esses discursos de Siacutemaco satildeo ainda pouco estudados em comparaccedilatildeo com outros
escritos seus como suas epistolae Esses oito discursos satildeo apenas uma parte de toda a
produccedilatildeo simaquiana Haacute tambeacutem um panegiacuterico em honra do usurpador Maacuteximo que
por razotildees oacutebvias natildeo foi publicada
1 ldquoSiacutemaco es el uacuteltimo gran orador romano si dejamos a un lado a los escritores cristianosrdquo
Carlos Eduardo Schmitt
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6 15
ORATIONES I II E III
Foi no inverno do ano 368-369 que Siacutemaco naquele tempo um jovem senador que
iniciava sua carreira poliacutetica foi enviado de Roma agrave Treacuteveris com o objetivo de dirigir
uma laudatio uma oraccedilatildeo de louvor a Valentiniano I por motivo de seus cinco anos de
reinado (Quinquennalia) Sogno (2006 p 2) destaca que tal missatildeo natildeo significava
apenas um reconhecimento por parte do Senado de seus dotes retoacutericos mas constituiacutea
tambeacutem uma oportunidade iacutempar para crescer na carreira poliacutetica e fazer amigos na corte
Apesar de ser um momento festivo Sogno (2006 pp 1-2) esclarece que constituiacutea
uma situaccedilatildeo delicada Ateacute o momento Valentiniano I natildeo havia estado em Roma e essa
era a primeira vez que ele se encontraria com uma delegaccedilatildeo senatorial Sendo assim
Siacutemaco tinha a importante missatildeo de estabelecer boas relaccedilotildees com o imperador Havia
natildeo apenas o discurso mas tambeacutem certa quantidade de ouro (aurum oblaticium2) que os
senadores ofereciam ldquovoluntariamenterdquo ao imperador Em Roma os senadores
aguardavam ansiosos pelo regresso de Siacutemaco e por informaccedilotildees de primeira matildeo
Eacute estranho ver que um senador tatildeo jovem ndash Siacutemaco natildeo tinha ainda nem trinta
anos ndash recebesse tamanha honra e responsabilidade Sogno (2006 p 6) sem colocar em
xeque a capacidade do orador argui que isso foi possiacutevel em parte graccedilas ao Prefeito de
Roma naquele entatildeo Pretextato responsaacutevel direto pela arrecadaccedilatildeo da oferenda de ouro
ao imperador e pela escolha do ldquocorretordquo orador que a levaria Haacute de se ter presente que
das epistolae de Siacutemaco vaacuterias delas tecircm Pretextato como destinataacuterio
Siacutemaco natildeo se limitou a estreitar laccedilos de amizade apenas no Senado Buscou
tambeacutem amigos na corte imperial E um de seus principais foi Ausocircnio tutor de Graciano
filho de Valentiniano I Sabe-se que eles trocavam correspondecircncias antes mesmo de
Siacutemaco ter ido agrave Treacuteveris e que havia entre eles uma muacutetua admiraccedilatildeo (SOGNO 2006
p 6)
A prova de que o panegiacuterico (laudatio) de Siacutemaco dirigido a Valentiniano foi um
sucesso de acordo com Sogno (2006 pp 8-9) foi o fato do proacuteprio imperador ter
solicitado ao orador um segundo panegiacuterico Siacutemaco eacute consciente de sua responsabilidade
e da honra que lhe eacute aferida e expressa esses sentimentos em seu discurso Consciente de
que o objetivo primeiro de uma laudatio eacute agradar ao puacuteblico Siacutemaco expotildee que tudo o
que anuncia e proclama eacute verdadeiro baseado em fatos que vivenciou e tambeacutem naqueles
de que ouviu o testemunho
Sogno (2006 p 9) classifica o primeiro panegiacuterico de Siacutemaco a Valentiniano
como um encocircmio biograacutefico composiccedilatildeo descrita em detalhe no terceiro livro da
Institutio oratoria de Quintiliano Nele Siacutemaco reconhece e celebra publicamente o
estabelecimento da dinastia valentiniana realizando um resumo dos seus cinco primeiros
anos de reinado desde que tinha sido escolhido pelo exeacutercito O encocircmio biograacutefico
como detalha Sogno requer discorrer tambeacutem sobre os ancestrais e os descendentes da
nova dinastia
2 ldquoOs clariacutessimos ie os indiviacuteduos de categoria senatorial tinham ainda que contribuir com o aurum
oblaticium oferecido pelo Senado por ocasiatildeo dos aniversaacuterios dos imperadoresrdquo (SILVA amp MENDES
2006 p 212) Isso era parte da reforma fiscal iniciada por Diocleciano e ampliada por Constantino
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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Satildeo estrateacutegicas as alusotildees que Siacutemaco faz do lugar de nascenccedila de Valentiniano
e daqueles onde ele acompanhou seu pai em campanhas militares O futuro imperador
nasceu na fria regiatildeo da Iliacuteria e acompanhou seu pai no calor escaldante da Aacutefrica Isso
significa natildeo soacute que ele estaacute preparado para qualquer dificuldade que advir mas
sobretudo que eacute um homem que conhece seu reino muito bem porque jaacute esteve em
diversas partes dele Todas essas dificuldades unidas aos inimigos enfrentados lhe
qualifica como a melhor pessoa para reger o Impeacuterio (SOGNO 2006 p 10) Um cuidado
que Siacutemaco tem em sua laudatio eacute o de reforccedilar a legitimidade de Valentiniano sobretudo
ao dizer que ningueacutem protestou quando o elegeram dando a impressatildeo de que houve um
consenso geral no exeacutercito (SOGNO 2006 p 12)
O conteuacutedo dos panegiacutericos eacute exagerado e por isso deve-se ter cuidado ao tomaacute-
los como fonte histoacuterica No entanto nos revelam muito sobre o tempo de Siacutemaco e sobre
ele mesmo No primeiro dedicado a Valentiniano I por motivo de seu primeiro lustro no
poder vemos como Siacutemaco enaltece a vida e a obras do imperador desde sua tenra
formaccedilatildeo nas diversas partes do Impeacuterio seguindo o bom exemplo de seu pai Graciano
Com verbosidade Siacutemaco atesta que natildeo havia outra pessoa melhor para o posto de
imperador que o proacuteprio Valentiniano superior a qualquer outro liacuteder Homem valente
assentou-se na parte mais perigosa do Impeacuterio Treacuteveris e lutou contra o inimigo mais
feroz dos romanos os alamanos Aleacutem de guerreiro eacute saacutebio e prefere defender os
interesses do Estado que os seus proacuteprios Eacute por isso que deixou a seu irmatildeo Valente
cuidar sozinho da rebeliatildeo de Procoacutepio uma guerra interna enquanto ele se dedicava a
proteger o Impeacuterio dos inimigos externos Foi um imperador que preferiu o bem comum
ao de sua proacutepria famiacutelia Realizou obras incriacuteveis
O comeccedilo do segundo panegiacuterico a Valentiniano indica sua razatildeo de ser o terceiro
consulado do imperador ao lado de seu irmatildeo Valente em 370 Siacutemaco
estrategicamente revela que iraacute relatar apenas alguns acontecimentos sem exaustatildeo
Deixaraacute todos os outros feitos natildeo mencionados para que sejam cantados pelos poetas
Parabeniza ao imperador por ser sua fonte de inspiraccedilatildeo e o restaurador da liberdade de
expressatildeo Ao mesmo tempo que Siacutemaco preza ao imperador por ter dado assunto que
fosse cantado e escrito como suas grandes vitoacuterias sobre os alamanos ele tambeacutem lembra
o imperador de que sem esses oradores e poetas haacute o silecircncio e que o silecircncio eacute o pior
inimigo da grandeza (SOGNO 2006 p 12)
Siacutemaco se dedica basicamente a enaltecer o imperador por suas conquistas e
fortificaccedilotildees ao longo do Reno e de que se impressionou ao ter visto as mesmas
pessoalmente Enaltece-o por seu terceiro consulado mas sobretudo se centra em seus
avanccedilos militares Entre outras exaltaccedilotildees Siacutemaco o parabeniza por ser exemplo de
governante ideal que eacute amado e temido por seu povo Tambeacutem o parabeniza por haver
aceitado o Impeacuterio de forma relutante (SOGNO 2006 p 14) Na verdade Siacutemaco
exaltou muito mais as fortificaccedilotildees erguidas por Valentiniano do que suas batalhas contra
os baacuterbaros Sogno (2006 p 15) pensa que isso se deve principalmente pelo acontecido
com Siaacutegrio uacutenico sobrevivente de uma batalha que foi considerado um desertor pelo
imperador E isso aconteceu exatamente quando o orador se encontrava na corte
O segundo panegiacuterico dedicado tambeacutem a Valentiniano I tinha por motivo
a designaccedilatildeo do imperador para o seu terceiro consulado que ele havia recebido como
um reconhecimento por seus feitos recentes Sendo assim o panegiacuterico deveria se centrar
em suas atividades recentes as quais lhe fizeram merecedor do terceiro consulado
Siacutemaco inicia dizendo que o consulado era uma recompensa insuficiente para
Valentiniano comparado com tudo o que perpetrou no Reno Mas como natildeo haacute algo
Carlos Eduardo Schmitt
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maior que eles possam ofertar Siacutemaco solicita ao imperador que se contente com o
melhor presente e honra que o Senado lhe pode oferecer E a partir de entatildeo o orador
narra as atividades beacutelicas de Valentiniano contra os alamanos e suas construccedilotildees ao
longo do Reno Em um determinado momento Siacutemaco o elogia por haver restaurado a
liberdade de expressatildeo no Impeacuterio Termina exaltando sua sobriedade
No panegiacuterico de Siacutemaco dedicado a Graciano vecirc-se claramente como ele se
dirige ao jovem imperador como a esperanccedila de Roma Durante todo o discurso o orador
enfatiza sua juventude enaltecendo-a Sogno acredita que essa insistecircncia seja uma forma
de favorecer a aceitaccedilatildeo do imperador possivelmente criticado pela aristocracia romana
por sua pouca idade (SOGNO 2006 p 18) Como recompensa por sua performance na
corte Siacutemaco recebeu o tiacutetulo honoriacutefico de comes tertii ordinis e trecircs anos depois em
Roma recebeu o proconsulado da Aacutefrica (373-374)
O panegiacuterico ao menino Graciano talvez tenha sido o mais difiacutecil para Siacutemaco
elaborar Devido a sua pouca idade objetivamente natildeo havia feitos grandiosos do qual
ele fosse sujeito No entanto Siacutemaco surpreendeu mesmo assim Vecirc em Graciano o iniacutecio
de uma nova eacutepoca porque eacute um imperador ainda menino e sendo assim estaraacute bem
treinado em todos os campos Seu louvor se centra entatildeo na juventude do imperador e
em seu governo ao lado de seu pai Valentiniano e de seu tio Valente Aos baacuterbaros natildeo
lhes restaraacute mais do que a escravidatildeo e eles jaacute sabem disso
OS DOZE PANEGIacuteRICOS LATINOS
Tendo em vista as trecircs orationes mencionadas podemos fazer uma breve anaacutelise
dos famosos doze panegiacutericos latinos com o intuito de entender melhor as diversas
asserccedilotildees simaquianas bem como seu estilo Susanna Morton Braund (2005 pp 90-91)
descreve que de forma convencional a oratoacuteria grega foi divida em trecircs tipos discurso
forense deliberativo e epidiacutectico O primeiro tambeacutem chamado de judicial eram aqueles
proferidos nos tribunais no foacuterum os discursos deliberativos eram aqueles proferidos
diante do Senado ou de uma assembleia do povo e os discursos epidiacutecticos eram aqueles
escritos para uma comemoraccedilatildeo especial Este uacuteltimo para Braund se revestiu de
especial importacircncia durante o principado como panegiacuterico (elogio)
Uma das coisas mais importantes para um aristocrata romano era o
reconhecimento pelas pessoas ao seu redor de seu valor puacuteblico e permanente
ndash sua auctoritas e sua dignitas Idealmente isso seria celebrado em panegiacuterico
ndash isto eacute louvor escrito em prosa ou verso3 (2005 p 110)
O panegiacuterico era um elemento central na poliacutetica romana e na vida puacuteblica sob
o Principado ndash e jaacute o era haacute muito tempo De fato alguns dos nossos mais
antigos textos latinos sobreviventes os epitaacutefios aos membros da famiacutelia
Cipiatildeo que datam do terceiro e segundo seacuteculos AEC (Scipionum elogia)
satildeo os louvores (poacutestumos) dos grandes homens4 (2005 p 112)
3 ldquoOne of the most important things for a Roman aristocrat was the recognition by people around him of
his public worth and standing ndash his auctoritas and his dignitas Ideally this would be celebrated in
panegyric ndash that is praise written in prose or verserdquo 4 ldquoPanegyric was a central element in Roman politics and public life under the Principate ndash and had been
so for a long time already In fact some of our earliest surviving Latin texts the epitaphs to members of
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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Ainda sobre o panegiacuterico e sua difusatildeo durante este periacuteodo do Impeacuterio Romano
Mitchell (2015 p 19) o relaciona agrave natureza autoritaacuteria do mesmo Segundo ele a
dissidecircncia aberta natildeo era tolerada e isso se vecirc pelos extremos dos discursos que satildeo de
louvor ou vituperaccedilatildeo mas raramente se encontram num meio termo Apesar de
parecerem pouco confiaacuteveis o autor defende a utilizaccedilatildeo de panegiacutericos e poemas como
fontes histoacutericas para o periacuteodo alegando que seus exageros omissotildees e estilos retoacutericos
expressam de forma criacutetica muito daquele momento Segundo Mitchell as obras mais
significativas neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos5
As obras-chave neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos que
provavelmente foram compilados pelo orador gaulecircs Pacato e foram
prefaciados pelo longo panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem para o imperador Trajano
(I) Aleacutem do trabalho do proacuteprio Pacato de 389 em louvor a Teodoacutesio I (II)
este inclui discursos a Maximiano em 289 (X de Cl Mamertino o Velho) e
291 (XI) a Constacircncio pai de Constantino em 296 e 298 (IX) para o
casamento de Constantino e Fausta em 307 (VII) a Constantino em 310 (VI)
312 (V) 314 (XII) e 321 (IV de Nazaacuterio) e a Juliano em 362 (III de Cl
Mamertino o Jovem em sua proacutepria nomeaccedilatildeo para o consulado)6
Mitchell (2015 p 4) realccedila que conforme o Impeacuterio crescia foi se dando cada
vez mais ecircnfase agrave religiatildeo do Estado Acreditava-se que ele era mantido devido ao apoio
dos deuses e os imperadores romanos que em parte controlavam as atividades religiosas
em seus territoacuterios eram vistos como aqueles que mantinham o pacto de paz com os
deuses a pax deorum E segundo Mitchell todos os meios de propaganda estavam
imbuiacutedos desta ideologia inclusive os discursos panegiacutericos
Braund (2005 129) especifica que o cocircnsul Pliacutenio entregou seu panegiacuterico ao
imperador Trajano no iniacutecio de seu reinado Era um discurso de gratidatildeo onde ele
aproveita para contrastar a imagem do bom Trajano com a do mau Domiciano imperador
de 81 a 96 EC Para Braund (2005 p 130)
Este texto revela dois modelos contrastantes de patrono ou imperador - e afinal
de contas o imperador era apenas o patrono mais poderoso em Roma O bom
patrono ou imperador eacute marcado por sua abertura acessibilidade e atitude
amigaacutevel e tolerante O mau patrono ou imperador eacute marcado pelo abuso
tiracircnico de seus poderes para tomar decisotildees de vida e morte sobre todos ao
seu redor do menor escravo ao senador mais eminente A celebraccedilatildeo do bom
modelo e a condenaccedilatildeo do ruim encontram-se em toda a gama de textos da
literatura latina incluindo poesia eacutepica e pastoral poesia liacuterica e elegiacuteaca
saacutetira e epigrama historiografia oratoacuteria e romance Isso natildeo nos deixa
duvidar de que o modo como um homem poderoso se comportava com seus
the Scipio family dating from the third and second centuries BCE (the Scipionic elogia) are the
(posthumous) praises of great menrdquo 5 Ver tambeacutem BERRY D H Oratory In HARRISON Stephen (ed) A Companion to Latin Literature
Oxford Blackwell 2005 pp 267-268 6 ldquoKey works in this genre are the twelve Latin panegyrics which were probably compiled by the Gallic
orator Pacatus and were prefaced by the younger Plinyrsquos lengthy panegyric for the emperor Trajan (I)
Apart from Pacatusrsquo own work of 389 in praise of Theodosius I (II) this includes speeches for
Maximianus in 289 (X by the elder Cl Mamertinus) and 291 (XI) for Constantius the father of
Constantine in 296 (VIII) and 298 (IX) for the marriage of Constantine and Fausta in 307 (VII) for
Constantine in 310 (VI) 312 (V) 314 (XII) and 321 (IV by Nazarius) and for Julian in 362 (III by the
younger Cl Mamertinus on his own appointment to the consulship)rdquo
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pares e seus subordinados era crucial para sua posiccedilatildeo social e reputaccedilatildeo
poliacutetica7
Bruce Gibson (2005 p 72) critica a postura deste gecircnero por natildeo se envolver
abertamente com a poliacutetica atual de seu tempo senatildeo de modo indireto e o panegiacuterico
modelo natildeo foi a exceccedilatildeo ldquoMesmo o Panegiacuterico de Pliacutenio um discurso em louvor ao
imperador Trajano dado por ocasiatildeo de seu consulado em setembro de 100 EC oferece
sua criacutetica de governo indiretamente atraveacutes da estrateacutegia de atacar o principado de
Domicianordquo8
CONSIDERACcedilOtildeES PARCIAIS
As condiccedilotildees do discurso representavam um novo momento para o Impeacuterio De
acordo com A D Lee (2013 p 1) foi por meados do seacuteculo IV que o Impeacuterio Romano
havia alcanccedilado quase tanto territoacuterio quanto durante o seacuteculo II periacuteodo conhecido pelo
auge do poder romano Foi o periacuteodo dos imperadores guerreiros que se viram forccedilados
a se retirar dos confortos de Roma para proteger suas fronteiras (LEE 2013 p 5) Roma
foi substituiacuteda como residecircncia imperial por Treacuteveris Milatildeo Sirmio e Antioquia Com a
criaccedilatildeo de Constantinopla por parte do imperador Constantino essa situaccedilatildeo soacute se
agravou De qualquer forma o tema que domina o seacuteculo e que dominou os discursos
traduzidos de Siacutemaco foi a histoacuteria militar (MITCHELL 2015 pp 11-12)
Natildeo eacute um Impeacuterio em decadecircncia mas sim um momento de transiccedilatildeo Mitchell
(2015 p 56) se daacute conta de como por exemplo Diocleciano Joviano e Valentiniano
vieram de origens semelhantes Eram todos militares de meia idade nascidos nas
proviacutencias da Iliacuteria o que plasma uma mudanccedila no eixo do poder Mitchell (2015 pp 56-
57) frisa como desde a ascensatildeo de Diocleciano em 284 ateacute a morte de Teodoacutesio I em
395 o Impeacuterio foi governado por esses imperadores guerreiros que aniquilavam inimigos
internos e externos O Estado estava centrado em guerras e batalhas Calcula-se que mais
de dois terccedilos de seu orccedilamento anual eram gastos em atividades militares atividades das
quais os imperadores participavam pessoalmente
Siacutemaco soube valer-se da situaccedilatildeo para estreitar laccedilos com a corte e obter ascensatildeo
poliacutetica Esse periacuteodo foi especial tambeacutem por sua produccedilatildeo literaacuteria e pela quantidade
de escritos que sobreviveu ao tempo Segundo OrsquoDonnel (2015 p 161) haacute mais literatura
latina que nos chegou entre 350 e 450 do que de qualquer outro periacuteodo mais ateacute mesmo
que a eacutepoca de ouro latina entre o final da Repuacuteblica e comeccedilo do Impeacuterio9
7 ldquoThis text reveals two contrasting models of patron or emperor ndash and after all the emperor was just the
most powerful patron in Rome The good patron or emperor is marked by his openness accessibility and
friendly and tolerant attitude The bad patron or emperor is marked by his tyrannical abuse of his powers
to make life and death decisions about everyone around him from the lowest slave to the most eminent
senator Celebration of the good model and condemnation of the bad model are found in the entire range
of texts of Latin literature including epic and pastoral poetry lyric and elegiac poetry satire and epigram
historiography oratory and the novel This can leave us in no doubt that how a powerful man behaved
towards his peers and his subordinates was crucial to his social standing and to his political reputationrdquo 8 ldquoEven Plinyrsquos Panegyricus a speech in praise of the emperor Trajan given on the occasion of his
consulship in September AD 100 offers its critique of rulership indirectly through the strategy of
assailing the principate of Domitianrdquo
9 ldquoWe have more surviving Latin literature from this century between 350 and 450 than for any comparable
period before that including the more famously golden age of Caesar Cicero and Vergilrdquo
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946510
OS IMPERADORES SUETONIANOS EM MEMOacuteRIAS POacuteSTUMAS
DE BRAacuteS CUBAS
Bruno Torres dos Santos
RESUMO O presente trabalho busca discutir atraveacutes da anaacutelise de traduccedilotildees proacuteprias as
referecircncias aos imperadores romanos descritos e consagrados pelo bioacutegrafo Suetocircnio em Vida
dos Ceacutesares na obra Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis Aquele no
iniacutecio do seacuteculo II da era comum demonstrou os viacutecios e as virtudes dos imperadores inclusive
enfatizando os escacircndalos de suas cortes Jaacute Machado trouxe agrave tona as vaidades e as ambiccedilotildees
da burguesia brasileira do seacuteculo XIX Entatildeo analisaremos e interpretaremos o uso destes
personagens histoacutericos para a criaccedilatildeo literaacuteria no referido romance partindo do pressuposto de
que eles poderiam passar despercebidos por leitores modernos que natildeo recuperassem as
referecircncias agrave cultura agrave literatura e agrave histoacuteria da Roma Antiga
PALAVRAS-CHAVE Machado de Assis Imperadores romanos Suetocircnio
THE SUETONIAN EMPERORS IN THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF
BRAS CUBAS
ABSTRACT The present work aims through the analysis of own translations the references to
the Roman emperors described and consecrated by the biographer Suetonius in Life of the
Caesars in the novel Posthumous Memoirs of Bras Cubas by Machado de Assis Suetonius
at the beginning of the second century of the common age demonstrated the vices and virtues
of the emperors including emphasizing the scandals of their courts Machado has already
brought to light the vanities and ambitions of the Brazilian bourgeoisie of the nineteenth
century Then we will analyze and interpret the use of these historical characters for the literary
creation in the novel assuming that they could go unnoticed by modern readers who do not
recover references to the culture literature and history of Ancient Rome
KEYWORDS Machado de Assis Roman emperors Suetonius
Entre os mais diversos romancistas com que a literatura brasileira teve contato natildeo haacute
nome maior do que Machado de Assis Tal personalidade nasceu no Morro do Livramento
Eacute doutorando no PPGLC-UFRJ bolsista CAPES sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Anderson Esteves e integrante
discente do grupo de pesquisa ATRIVM ndash Espaccedilo Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (PPGLC-UFRJ) E-
mail brunots_hotmailcom
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
24 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
localizado na aacuterea central do Rio de Janeiro proacuteximo a zona portuaacuteria em junho de 1839
Oriundo de famiacutelia pobre estudou em escolas puacuteblicas mas nunca frequentou uma
universidade Dedicou-se aos mais diversos gecircneros literaacuterios escrevendo poesia crocircnica
teatro conto romance Tambeacutem foi criacutetico literaacuterio e jornalista Testemunhou a Aboliccedilatildeo da
Escravatura e as mudanccedilas poliacuteticas no Brasil quando o Impeacuterio foi entatildeo substituiacutedo pela
Repuacuteblica comentando e relatando os respectivos eventos poliacutetico-sociais Em 1897 funda a
ABL (Academia Brasileira de Letras) da qual permaneceu presidente ateacute sua morte em 1908
com 69 anos
Ao discorrer sobre a consolidaccedilatildeo do nosso sistema literaacuterio o professor Antonio
Candido opina sobre Machado afirmando que ele ldquoera dotado de raro discernimento literaacuterio e
adquiriu por esforccedilo proacuteprio uma forte cultura intelectual baseada nos claacutessicos mas aberta aos
filoacutesofos e escritores contemporacircneosrdquo (CANDIDO 2010 p 65) E ainda acrescenta
Sua obra eacute variada e tem caracteriacutestica das produccedilotildees eminentes satisfaz tanto aos
requintados quanto aos simples Ela tem sobretudo a possibilidade de ser
reinterpretada agrave medida que o tempo passa porque tendo uma dimensatildeo profunda de
universalidade funciona como se se dirigisse a cada eacutepoca que surge (CANDIDO
2010 p 65)
Eacute esse diaacutelogo entre o claacutessico e o contemporacircneo com pitada filosoacutefica que daacute
singularidade agrave sua obra fazendo com que suas produccedilotildees sejam sempre atemporais Satildeo esses
traccedilos que se mostram mais produtivos para o nosso estudo no qual pretendemos analisar e
interpretar como os imperadores romanos descritos pelo bioacutegrafo Suetocircnio em sua obra satildeo
utilizados por Machado em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas1 Para tal julgamos necessaacuterio
primeiramente contextualizar brevemente os autores em apreccedilo bem como suas obras
(Memoacuterias Poacutestumas e Vida dos Ceacutesares2) os gecircneros praticados (Romance e Biografia
Antiga) e os tipos de criacutetica social dos dois autores Depois disso analisaremos os excertos do
romance machadiano em questatildeo no qual as presenccedilas dos principes (no singular princeps
termo latino usado na Roma Antiga para se referir ao que entendemos hoje por imperador) se
mostrem mais evidentes para entatildeo coligirmos com trechos da obra suetoniana Para o trabalho
com esta obra utilizaremos a ediccedilatildeo da Loeb Classical Library (1914) mas com traduccedilotildees de
nossa proacutepria autoria para o trabalho com aquela utilizaremos a ediccedilatildeo criacutetica estabelecida
pela Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira (1975)
Como jaacute afirmado Machado praticou os mais diversos gecircneros literaacuterios E jaacute demos os
merecidos creacuteditos pelo conjunto da obra Mas devemos frisar que eacute na praacutetica sobre o gecircnero
romance que os creacuteditos se mostram mais merecidos pois eacute nele que o autor apresenta natildeo soacute
todo o seu ingenium (talento natural) mas tambeacutem toda a sua ars (habilidade teacutecnica) para
usarmos termos proacuteprios da literatura latina
Foi esse talento somado a seu espiacuterito galhofeiro que proporcionou a criaccedilatildeo de um
narrador mais que incomum em Memoacuterias Poacutestumas Sobre esse narrador Francisco Silveira
discorre que ldquoele vinha pelo menos agrave primeira vista infringir dois postulados realistas a
impessoalidade e o verismordquo (SILVEIRA 2001 p 97) Convergirmos com tal visatildeo posto que
eacute com a referida obra e seu respectivo narrador defunto-autor que o Realismo enquanto esteacutetica
literaacuteria vai ser ldquoinauguradordquo no Brasil em 1881 Natildeo menos importante eacute a visatildeo de Alfredo
Bosi
1 Nas proacuteximas remissotildees a essa obra usaremos apenas Memoacuterias Poacutestumas 2 Em liacutengua latina De uita caesarum
Bruno Torres dos Santos
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 25
Quando o romancista assumiu naquele livro capital o foco narrativo na verdade
passou ao defunto-autor Machado-Braacutes Cubas delegaccedilatildeo para exibir com o despejo
dos que nada mais temem as peccedilas de cinismo e indiferenccedila com que via montada a
histoacuteria dos homens A revoluccedilatildeo dessa obra que parece cavar um fosso entre dois
mundos foi uma revoluccedilatildeo ideoloacutegica e formal aprofundando o desprezo agraves
idealizaccedilotildees romacircnticas e ferindo ao cerne o mito do narrador onisciente que tudo vecirc
e tudo julga deixou emergir a consciecircncia nua do indiviacuteduo fraco e incoerente O que
restou foram as memoacuterias de um homem igual a tantos outros o cauto e desfrutador
Braacutes Cubas (BOSI 2006 p 177)
Entendemos assim que o ser humano seraacute analisado sob seu cinismo e sob a
indiferenccedila por um narrador tambeacutem fraco e cheio de incoerecircncias rompendo nesse aspecto
com a esteacutetica Romacircntica Bosi ainda acrescenta
o ponto de vista um velho tema como o triacircngulo amoroso jaacute natildeo se carregaraacute do
pathos romacircntico que envolvia heroacutei-heroiacutena-o outro mas deixaraacute vir agrave tona os mil e
um interesses de posiccedilatildeo prestiacutegio e dinheiro dando a batuta agrave libido e agrave vontade de
poder que mais regem os passos do homem em sociedade Da histoacuteria vulgar do
adulteacuterio de Braacutes Cubas-Virgiacutenia-Lobo Neves agrave triste comeacutedia de equiacutevocos de
Rubiatildeo-Sofia-Palha (Quincas Borba) e desta agrave trageacutedia perfeita de Bentinho-Capitu-
Escobar (D Casmurro) soacute aparecem variantes de uma soacute e mesma lei natildeo haacute mais
heroacuteis a cumprir missotildees ou a afirmar a proacutepria vontade haacute apenas destinos destinos
sem grandeza (BOSI 2006 p 180)
Observamos o olhar aparentemente ldquodespretensiosordquo de Machado de Assis sem a
intenccedilatildeo de criar e de se defrontar com personagens heroicos mas ao lidar com homens-
personagens comuns lidaraacute tambeacutem com problemas comuns Ele analisa a psicologia do
ldquohomemrdquo com todas as suas peculiaridades inveja ganacircncia ambiccedilatildeo E eacute a atmosfera
burguesa que potencializa esses sentimentos De todo modo faz uma ldquocriacutetica socialrdquo sem querer
fazecirc-la Eacute isso que o aproxima e o distancia de Suetocircnio que analisa os retratos morais dos
imperadores romanos com todos os viacutecios e virtudes mas faz ldquocriacutetica socialrdquo e ateacute propaganda
poliacutetica de modo velado
Diferente do esforccedilo na anaacutelise da vida e obra de Machado quem se propotildee a estudar o
bioacutegrafo Caio Suetocircnio Tranquilo inicialmente se depara com algumas imprecisotildees acerca de
sua vida No tocante ao seu local de nascimento Anderson Esteves em seu artigo busca
encontrar vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas proacuteprias obras nos apontando como mais
plausiacutevel a ideia segundo a qual este teria nascido em Roma ou pelo menos se estabelecido
nessa cidade desde a infacircncia Ele nos informa sobre a origem e a condiccedilatildeo familiar de Suetocircnio
o avocirc era de uma condiccedilatildeo menos abastada visto que teria sido um liberto do imperador
Claacuteudio jaacute seu pai de uma condiccedilatildeo social mais elevada pois pertencia a ordem dos equestres
(ESTEVES 2015 p 1-7)
Eacute dado como certo que Suetocircnio teria nascido em 70 EC um ano apoacutes o conhecido ldquoAno
dos quatro imperadoresrdquo sobre o qual ainda falaremos Maacuterio Citroni esclarece-nos que em 69
EC o pai do bioacutegrafo foi combatente ao lado de Oto com o grau de tribunus militum (tribuno
militar) (CITRONI 2006 p 971) Natildeo menos importante eacute o que esclarece Ronald Mellor
segundo ele o cognomen ldquoTranquilordquo atribuiacutedo a Suetocircnio eacute decorrente do esforccedilo do seu pai
na busca pela estabilizaccedilatildeo da paz apoacutes esta terriacutevel guerra civil (MELLOR 1999 p 147)
Conforme observamos de alguma forma sua famiacutelia estava envolvida com as casas
imperiais e dada a condiccedilatildeo do seu pai Suetocircnio teve a possibilidade de ter uma boa educaccedilatildeo
na urbs dedicando-se aos estudos de gramaacutetica e de retoacuterica Nessa trajetoacuteria instrutiva o
bioacutegrafo torna-se amigo iacutentimo do renomado senador Pliacutenio o Jovem Por influecircncia dessa
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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amizade Suetocircnio consegue alguns cargos de prestiacutegio dentro das cortes imperiais Durante o
principado de Trajano ele ocupou os postos de a studiis (com a funccedilatildeo de cuidar dos interesses
e das obrigaccedilotildees culturais do imperador) e o de a bibliothecis (com a funccedilatildeo de cuidar das
bibliotecas puacuteblicas) Sob o principado de Adriano ocupou o posto de ab epistulis (com a
funccedilatildeo de redigir a correspondecircncia oficial) (MORENO 1997 p 645 CITRONI 2006 p
971)
A rede de contato iniciada por seu amigo Pliacutenio permitiu que Suetocircnio alcanccedilasse as
referidas ocupaccedilotildees e por consequecircncia o acesso direto aos arquivos imperiais muitas vezes
fundamentais para a feitura da sua obra De uita caesarum na qual discorre sobre os doze
primeiros ceacutesares de Roma desde o general Juacutelio Ceacutesar ateacute o polecircmico imperador Domiciano
Cabe considerar que ele iniciou a composiccedilatildeo desse seu opus magnum por volta dos primeiros
anos do principado de Adriano o qual se estendeu entre os anos de 117 e 138 EC
Acerca do gecircnero praticado por Suetocircnio devemos considerar que ateacute aqui muito foi
usada a terminologia moderna ldquobiografiardquo poreacutem conveacutem lembrarmos que esse gecircnero relativo
agrave escrita de uma vida na Antiguidade eacute referido por bios pelos gregos e uita pelos romanos
O termo ldquobiografiardquo como salienta Sabina Loriga soacute aparece ao longo do seacuteculo XVII
designando uma obra veriacutedica fundada numa descriccedilatildeo realista que se opotildee a outras formas
antigas de escritura idealizadoras do personagem e das circunstacircncias de sua vida tal qual o
panegiacuterico o elogio a oraccedilatildeo fuacutenebre e a hagiografia (LORIGA 2011 p 17)
A pesquisadora argumenta ainda que desde sua origem na Antiguidade a biografia eacute um
gecircnero hiacutebrido e composto que equilibrando-se entre a verdade histoacuterica e a verdade literaacuteria
sofreu ao longo do tempo profundas transformaccedilotildees sobretudo no que diz respeito agrave escolha e
agrave elaboraccedilatildeo dos fatos e do estilo de narraccedilatildeo (LORIGA 2011 p 18)
Frente a esses esclarecimentos avancemos aos excertos de Memoacuterias Poacutestumas em cujo
iniacutecio o narrador e protagonista Braacutes Cubas relata suas lembranccedilas apoacutes ter sido vitimado por
uma pneumonia Ele que pertencia a uma famiacutelia abastada do seacuteculo XIX narra sua morte e
seu enterro em que apareceram apenas onze amigos Relata diversos periacuteodos da vida infacircncia
adolescecircncia e fase adulta Ainda apresenta suas expectativas com o ldquoEmplastordquo um
medicamento por ele inventado com grande potencial de cura O narrador reconhece que esse
projeto se tornou uma ldquoideia fixardquo que entendemos como uma ideia difiacutecil de se retirar da
cabeccedila E eacute justamente no IV capiacutetulo intitulado A ideacutea fixa que o narrador machadiano faz a
primeira referecircncia a imperadores romanos e ao proacuteprio bioacutegrafo Suetocircnio
A minha ideacutea depois de tantas cabriolas constituiacutera-se ideacutea fixa Deus te livre leitor
de uma ideacutea fixa antes um argueiro antes uma trave no olho Vecirc o Cavour foi a ideacutea
fixa da unidade italiana que o matou Verdade eacute que Bismarck natildeo morreu mas
cumpre advertir que a natureza eacute uma grande caprichosa e a histoacuteria uma eterna
loureira Por exemplo Suetocircnio deu-nos um Claacuteudio que era um simploacuterio mdash ou
ldquouma aboacuteborardquo como lhe chamou Secircneca e um Tito que mereceu ser as deliacutecias de
Roma Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dous
ceacutesares o delicioso o verdadeiro delicioso foi o ldquoaboacuteborardquo de Secircneca E tu madama
Lucreacutecia flor dos Boacutergias se um poeta te pintou como a Messalina catoacutelica apareceu
um Gregorovius increacutedulo que te apagou muito essa qualidade e se natildeo vieste a liacuterio
tambeacutem natildeo ficaste pacircntano Eu deixo-me estar entre o poeta e o saacutebio (Machado de
Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap IV p 103)3
3 Para facilitar a leitura usaremos tal forma nas referecircncias a esta obra que compotildee nossa documentaccedilatildeo textual
Para as referecircncias agraves biografias de Vida dos Ceacutesares adotamos as abreviaccedilotildees do renomado The Oxford Latin
Dictionary (httpswwwoxfordscholarlyeditionscompageabbreviations acessado em 25102019)
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Nesse discurso metalinguiacutestico dirigido diretamente ao leitor a fim de exemplificar a
proacutepria noccedilatildeo de ldquoideia fixardquo Braacutes Cubas evidencia que Suetocircnio o qual ressignificou a ldquoideiardquo
do filoacutesofo estoico Secircneca teve a sua ldquoideiardquo ressignificada por um professor moderno
Diferentemente do bioacutegrafo Suetocircnio bem como os imperadores que ele ldquonos deurdquo que foram
personagens histoacutericas o referido professor natildeo o foi
Entatildeo passemos a essas referecircncias o primeiro imperador citado eacute Tibeacuterio Claacuteudio Druso
Braacutes Cubas adjetiva o Claacuteudio de Suetocircnio como um ldquosimploacuteriordquo que eacute assim descrito na
biografia suetoniana
Infans autem relictus a patre ac per omne fere pueritiae atque adulescentiae tempus
variis et tenacibus morbis conflictatus est adeo ut animo simul et corpore hebetato ne
progressa quidem aetate ulli publico privatoque muneri habilis existimaretur (Suet
Cl 21)
No entanto era crianccedila quando foi abandonado pelo pai e por quase todo o tempo da
primeira infacircncia e adolescecircncia foi acometido por vaacuterias doenccedilas persistentes de tal
modo que estivesse ao mesmo tempo com o espiacuterito e com o corpo debilitado foi
certamente por conta de sua idade avanccedilada estimado como natildeo apto para cargo no
acircmbito puacuteblico e no acircmbito privado
Posteriormente Suetocircnio faz o seguinte relato sobre a inesperada subida ao trono apoacutes o
assassinato do sobrinho Caliacutegula
Per haec ac talia maxima aetatis parte transacta quinquagesimo anno imperium cepit
quantumvis mirabili casu Exclusus inter ceteros ab insidiatoribus Gai cum quasi
secretum eo desiderante turbam submoverent in diaetam cui nomen est Hermaeum
recesserat neque multo post rumore caedis exterritus prorepsit ad solarium proximum
interque praetenta foribus vela se abdidit Latentem discurrens forte gregarius miles
animadversis pedibus studio sciscitandi quisnam esset adgnovit extractumque et prae
metu ad genua sibi accidentem imperatorem salutavit (Suet Cl10 1-2)
Por estas e outras coisas semelhantes tendo passado muito do tempo assumiu o
impeacuterio soacute com cinquenta anos atraveacutes de um caso extremamente interessante
Excluiacutedo entre os outros pelos assassinos de Caio Caliacutegula quando sob o pretexto
de expulsarem a multidatildeo e desejando ele um lugar isolado retirou-se para um
pavilhatildeo ao qual chamam de ldquoHermeacuteurdquo E natildeo muito depois aterrorizado com a
notiacutecia da morte avanccedilou se arrastando para uma galeria solar proacutexima e se escondeu
entre as cortinas postas diante das portas Tendo os peacutes sido observados um soldado
raso correndo de uma parte a outra com uma forte curiosidade procurou saber quem
estaria escondido e reconheceu quem por ele foi retirado do esconderijo Diante do
medo Claacuteudio se prostrou aos seus peacutes o soldado o saudou como imperador
Notamos que um eventual olhar do narrador machadiano sobre a dinastia julio-claudiana
sempre lembrada no pensamento ocidental pelos excelentes generais como Juacutelio Ceacutesar e
Augusto e pelos polecircmicos Tibeacuterio Caliacutegula e Nero pode justificar a anaacutelise de Claacuteudio como
um personagem simploacuterio Isso se daacute mesmo este tendo conquistado diversas regiotildees e tido boa
aceitaccedilatildeo pelo povo romano pois como percebemos nos excertos de sua biografia Suetocircnio
fez ressoar sua fraqueza de espiacuterito inaptidatildeo para o governo e a covardia Cabe lembrar ainda
que numa leitura completa da biografia do imperador ele aparece como um joguete nas matildeos
das proacuteprias esposas Primeiramente Valeacuteria Messalina (a mesma referida no capiacutetulo em
questatildeo das Memoacuterias Poacutestumas) tentou entregar o Impeacuterio nas matildeos de um de seus amantes
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C Siacutelio mas sem sucesso foi por Claacuteudio condenada e executada Jaacute viuacutevo ele se casa com
Agripina que trama pela sua morte para legar o trono a seu filho Nero
Justifica-se assim tambeacutem o seu retrato como uma ldquoaboacuteborardquo na obra Apocoloquintose
na qual o filoacutesofo e tragedioacutegrafo Secircneca que foi banido de Roma por Claacuteudio em 41 em
razatildeo de intrigas palacianas critica ironicamente o receacutem-assassinado imperador Horaacutecio
Rolim de Freitas explica que
O tiacutetulo inicial seria Ludus de morte Claudii O historiador Dion Caacutessio sugeriu que
o tiacutetulo tenha sido Apocolocyntosis (transformaccedilatildeo em aboacutebora) do grego
Ἀποκολοκύνθοσις Tiacutetulo curioso mas era entendido pelos leitores da eacutepoca pois
aboacutebora (ποκολοκύντἡς) era siacutembolo da estupidez (FREITAS 2010 p 13)
Para compreendermos isso devemo-nos lembrar de um aspecto cultural importante na
Roma Antiga ndash a Apoteose A cerimocircnia de deificaccedilatildeo que ocorria durante os funerais dos
iminentes ceacutesares iniciada por Otaacutevio a partir da morte de seu tio Juacutelio Ceacutesar Ou seja o
argumento da obra senequiana eacute parodiar a narraccedilatildeo agraves avessas da apoteose de Claacuteudio
relatando como o morto foi recebido nos infernos pelos deuses transformando-se no alegoacuterico
legume
O segundo imperador citado nesse IV capiacutetulo de Memoacuterias Poacutestumas foi Tito
Vespasiano Augusto Tito foi o segundo princeps da dinastia flaviana Era o filho mais velho
de Vespasiano e irmatildeo de Domiciano os quais tambeacutem seratildeo citados por Braacutes Cubas ao longo
do romance Depois da morte de seu pai Tito assume as reacutedeas do Impeacuterio atuando de modo
similar a ele com excelecircncia no campo militar e com moderaccedilatildeo no campo poliacutetico foi visto
como um bom imperador por Roma Por essa razatildeo eacute descrito por Suetocircnio logo no primeiro
capiacutetulo de sua biografia como ldquoTito tendo o cognome do pai foi o amor e as deliacutecias do
gecircnero humano Tanto de inteligecircncia de habilidade e de fortuna abundava nele que ganhava a
simpatia de todos o que eacute muito difiacutecil durante um governordquo (Titus cognomine paterno amor
ac deliciae generis humani ndash tantum illi ad promerendam omnium voluntatem vel ingenii vel
artis vel fortunae superfuit et quod difficillimum est in impeacuterio () (Suet Tit 11) Com essa
seleccedilatildeo vocabular Suetocircnio ldquonos daacuterdquo o retrato de um imperador diferente de Claacuteudio Eacute esse
retrato com vastos predicados perante a humanidade que serviu de fonte para Machado de
Assis fazer o jogo de palavras com o termo ldquodeliacuteciardquo na ldquoideia fixardquo de um professor
Para encerrar a anaacutelise do capiacutetulo conveacutem observar a segunda referecircncia a tais principes
em ldquoViva pois a histoacuteria a voluacutevel histoacuteria que daacute para tudo e tornando agrave ideacutea fixa direi que
eacute ela a que faz os varotildees fortes e os doudos a ideacutea moacutebil vaga ou furta-cor eacute a que faz os
Claacuteudios mdash formula Suetocircniordquo (Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap
IV p 103) O Bruxo do Cosme Velho brinca com o gecircnero historiograacutefico ao qual o gecircnero
biograacutefico estaacute aparentado Chamando a histoacuteria de voluacutevel ele usa novamente o verbo ldquodarrdquo
Em nossa interpretaccedilatildeo o narrador quer reforccedilar que a histoacuteria ldquodaacuterdquo na acepccedilatildeo de ldquopromoverrdquo
diversos retratos sejam eles positivos ou negativos a depender da ldquoideiardquo que cada personagem
possui Esse modus operandi da formulaccedilatildeo de Suetocircnio muito se relaciona com o de Machado
Avancemos agora ao capiacutetulo XXIII de Memoacuterias Poacutestumas intitulado Triste mas curto
Em tal capiacutetulo Cubas narra sua chegada ao Rio de Janeiro e a sensaccedilatildeo de rever os locais de
sua infacircncia a tristeza de sua famiacutelia e o sofrimento de sua progenitora Quando vecirc sua matildee
com quem natildeo tinha contato haacute nove anos acha-a paacutelida e sem soltar uma palavra sequer pega
em suas matildeos No dia seguinte ela vem a falecer sendo a primeira vez que ele teria tido contato
com a morte de perto de uma pessoa amada Neste iacutenterim ele faz referecircncia a mais um ceacutesar
descrito por Suetocircnio o proacuteprio Juacutelio Ceacutesar que embora natildeo tenha chegado a ser um
ldquoimperadorrdquo enquanto chefe de estado eacute ele quem ldquodesenhardquo o que viria a ser o Impeacuterio
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romano iniciado por seu sobrinho-neto Otaviano Por essa razatildeo tambeacutem incluiacutemos tal general
em nossas anaacutelises e eacute assim referenciado no romance
Longa foi a agonia longa e cruel de uma crueldade minuciosa fria repisada que me
encheu de dor e estupefacccedilatildeo Era a primeira vez que eu via morrer algueacutem Conhecia
a morte de outiva quando muito tinha-a visto jaacute petrificada no rosto de algum
cadaacutever que acompanhei ao cemiteacuterio ou trazia-lhe a ideacutea embrulhada nas
amplificaccedilotildees de retoacuterica dos professores de coisas antigas mdash a morte aleivosa de
Ceacutesar a austera de Soacutecrates a orgulhosa de Catatildeo (Machado de Assis Memoacuterias
Poacutestumas de Braacutes Cubas cap XXIII p 145)
Nas referidas amplificaccedilotildees retoacutericas ressoa a morte do filoacutesofo Soacutecrates a qual de fato
ficou no imaginaacuterio ocidental como uma morte ldquoausterardquo dado o fato de ele ter se mantido
firme em suas ideias ldquocorruptorasrdquo dos jovens atenienses ateacute a hora de seu oacutebito A morte de
Catatildeo o Jovem tambeacutem eacute adjetivada por Braacutes Cubas poreacutem como ldquoorgulhosardquo A respectiva
adjetivaccedilatildeo se apresenta com ecircxito dado o fato de Catatildeo ter sido um poliacutetico romano notaacutevel
por sua integridade moral Sendo ele ainda partidaacuterio da filosofia estoica descrito pelo
historiador Saluacutestio como a antiacutetese direta de Juacutelio Ceacutesar suicidou-se apoacutes a vitoacuteria deste seu
opositor na Batalha de Tapso
Concentremo-nos poreacutem na morte de Ceacutesar mesmo que natildeo haja nenhuma associaccedilatildeo
direta dele com o bioacutegrafo diferentemente dos excertos com os imperadores anteriores isso
natildeo nos impede de relacionaacute-los O narrador machadiano adjetiva tal morte como ldquoaleivosardquo
denotando a atmosfera da traiccedilatildeo pela qual Ceacutesar passou no Senado romano relatada em sua
biografia deste modo
Assidentem conspirati specie officii circumsteterunt ilicoque Cimber Tillius qui
primas partes susceperat quasi aliquid rogaturus propius accessit renuentique et gestu
in aliud tempus differenti ab utroque umero togam adprehendit deinde clamantem
ldquoIsta quidem vis estrdquo alter e Cascis aversum vulnerat paulum infra iugulum Caesar
Cascae brachium arreptum graphio traiecit conatusque prosilire alio vulnere tardatus
est utque animadvertit undique se strictis pugionibus peti toga caput obvoluit simul
sinistra manu sinum ad ima crura deduxit quo honestius caderet etiam inferiore
corporis parte velata Atque ita tribus et viginti plagis confossus est uno modo ad
primum ictum gemitu sine voce edito etsi tradiderunt quidam Marco Bruto irruenti
dixisse καὶ σὺ τέκνον (Suet Jul 82 1-2)
Os que haviam concordado com a natureza do trabalho rodeavam aquele que estava
sentado Sem demorar Ciacutember Tiacutelio que se encarregava dos primeiros papeacuteis como
se houvesse de falar algo caminhou para mais perto Ceacutesar negando atraveacutes de um
gesto contraacuterio passou-o para outro momento Por ambos os lados aquele apertou sua
toga Entatildeo Ceacutesar clamou ldquoIsso eacute verdadeiramente uma violecircnciardquo Um dos Cascas
jaacute lhe tinha ferido por traacutes um pouco abaixo da garganta Com um ponteiro furou com
um ponteiro o braccedilo arrebatado de Casca e o impulso de arremeter foi detido por uma
outra ferida Mas quando observou que seria tomado por robustos punhais por todos
os lados cobriu a cabeccedila com a toga Ao mesmo tempo com a matildeo esquerda conduziu
a dobra da veste ateacute as extremidades das pernas de modo que jaacute estando com a parte
inferior do corpo coberta caiacutesse mais honrosamente Desta maneira foi dilacerado
por vinte e trecircs golpes Ateacute a primeira ferida teria produzido apenas um gemido sem
uma palavra sequer embora alguns afirmem que com o ataque de Marco Bruto teria
dito ldquoTambeacutem tu meu filhordquo
Como reconhecemos esses escritos de Suetocircnio com grande carga dramaacutetica foram
grandes responsaacuteveis por propagar no imaginaacuterio do mundo ocidental este evento que mudou
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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os rumos da Roma Antiga Machado de Assis foi ciruacutergico ao usar a palavra aleivosa para
qualificar a morte de Ceacutesar a qual condensa toda a ideia da conjuraccedilatildeo Muito provavelmente
teve acesso a isso atraveacutes da referida biografia
Podemos avanccedilar ao capiacutetulo LXXII do romance cujo tiacutetulo eacute O bibliocircmano no qual o
defunto-autor confessa que deveria suprimir o capiacutetulo antecedente alegando haver nele um
despropoacutesito acerca do qual natildeo gostaria de receber criacuteticas Afirma que setenta anos agrave frente
este leitor que eacute por ele caracterizado e denominado ldquobibliocircmanordquo procuraria minuciosamente
o tal ldquodespropoacutesitordquo poreacutem sem ecircxito natildeo encontraria Em seguida explica que ele natildeo o
encontraria pelo simples fato de ele natildeo existir jaacute que foi suprimido Discorre ainda que isso
natildeo causaria o desinteresse do leitor sobre o livro e que pelo contraacuterio ele o adoraria por ser
um exemplar uacutenico O bibliocircmano continua sua procura mas mesmo sem sucesso se contenta
com o fato de dispor do uacutenico tomo
Jaacute prometeu a si mesmo escrever uma breve memoacuteria na qual relate o achado do livro
e a descoberta da sublimidade se a houver por baixo daquela frase obscura Ao cabo
natildeo descobre nada e contenta-se com a posse Fecha o livro mira-o remira-o chega-
se agrave janela e mostra-o ao sol
Um exemplar uacutenico Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um Ceacutesar ou um
Cromwell a caminho do poder Ele daacute de ombros fecha a janela estira-se na rede e
folheia o livro de vagar com amor aos goles Um exemplar uacutenico (Machado de
Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap LXXII p 209-210)
Neste excerto em que Braacutes Cubas manteacutem sua divagaccedilatildeo sobre o despropoacutesito da mesma
forma que fez com a noccedilatildeo de ideia fixa notamos a segunda referecircncia ao general Juacutelio Ceacutesar
A menccedilatildeo a Ceacutesar e a Cromwell visa ilustrar o modo como uma pessoa estaria transitando pela
rua ldquoa caminho do poderrdquo Oliver Cromwell foi um comandante militar e poliacutetico nascido na
nobreza rural inglesa em 1599 Em 1630 passa por uma conversatildeo religiosa e reconhecendo-
se como um Puritano acreditava que Deus era quem o guiava em suas vitoacuterias sendo muito
ativo durante a Guerra Civil Inglesa Mas quem mais nos interessa eacute o outro poliacutetico e militar ndash
Juacutelio Ceacutesar ndash e este nome associado agrave expressatildeo ldquocaminho do poderrdquo leva-nos a lembrar de
outro aspecto cultural da Roma Antiga ndash a travessia ao Rio Rubicatildeo Jaacute durante a Repuacuteblica
esse rio que dividia a proviacutencia da Gaacutelia Cisalpina (ao norte) do resto da Itaacutelia (ao sul) era de
suma importacircncia visto que a lei romana proibia que fosse transpassado por quaisquer legiotildees
do exeacutercito romano caso isso fosse feito denotaria uma ameaccedila militar interna
Resumidamente os sucessos de Ceacutesar na Gaacutelia acarretaram o aumento de seu poder de
sua popularidade e da ira de seus inimigos Estes influenciados por Catatildeo o Jovem (tambeacutem
jaacute referido no romance de Machado) tentaram promover sua ruiacutena poliacutetica Em 50 AEC o
Senado aprovou uma moccedilatildeo para que Ceacutesar fosse retirado do cargo de governador na Gaacutelia
Marco Antocircnio embasado pelo poder de tribuno do povo vetou a proposta Apoacutes isso houve
uma intensa perseguiccedilatildeo aos partidaacuterios de Juacutelio Ceacutesar Antocircnio precisou deixar Roma por
conta da alta probabilidade de ser assassinado e sem oposiccedilatildeo do Senado declarou estado de
emergecircncia delegando poderes excepcionais a Pompeu Magno Ceacutesar retrucou isso com a
famosa cruzada assim relatada por Suetocircnio
Dein post solis occasum mulis e proximo pistrino ad vehiculum iunctis occultissimum
iter modico comitatu ingressus est et cum luminibus extinctis decessisset via diu
errabundus tandem ad lucem duce reperto per angustissimos tramites pedibus evasit
Consecutusque cohortis ad Rubiconem flumen qui provinciae eius finis erat paulum
constitit ac reputans quantum moliretur conversus ad proximos ldquoEtiam nuncrdquo
inquit ldquoregredi possumus quod si ponticulum transierimus omnia armis agenda
eruntrdquo (Suet Jul 31 2)
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Em seguida apoacutes o pocircr do Sol atadas as mulas desde o moinho mais proacuteximo ateacute o
veiacuteculo mais escondido comeccedilou o caminho com uma modesta caravana Com as
luzes acabando ia-se embora pelo caminho Entatildeo durante o dia tendo aparecido um
guia com peacutes errantes evadiu pelas mais estreitas veredas E acompanhado pelas
coortes ateacute o rio Rubicatildeo que traccedila o limite de sua proviacutencia parou um pouco e
calculou o quanto se moveu virou-se aos mais proacuteximos e disso ldquoAteacute agora podemos
recuar porque se atravessarmos a pequena ponte todas as coisas deveratildeo ser feitas
atraveacutes das armasrdquo
Cunctanti ostentum tale factum est Quidam eximia magnitudine et forma in proximo
sedens repente apparuit harundine canens ad quem audiendum cum praeter pastores
plurimi etiam ex stationibus milites concurrissent interque eos et aeneatores rapta ab
uno tuba prosilivit ad flumen et ingenti spiritu classicum exorsus pertendit ad alteram
ripam Tunc Caesar ldquoEaturrdquo inquit ldquoquo deorum ostenta et inimicorum iniquitas
vocat Iacta alea estrdquo inquit (Suet Jul 32)
Com ele ainda de tal modo titubeando foi eficaz um prodiacutegio Apareceu de repente
ali proacuteximo uma certa pessoa que estava sentada tocando com uma flauta exiacutemia em
grandeza e forma Para o ouvirem correram muitos pastores tambeacutem muitos soldados
das guarniccedilotildees entre eles alguns tocadores de trombeta Com a trombeta tomada de
um deles o muacutesico lanccedilou-se ao rio E com um imenso vigor realizou um toque
introdutoacuterio ateacute a outra margem do rio Entatildeo disse Ceacutesar ldquoVamos para onde o sinal
dos deuses e a hostilidade dos inimigos nos chamam A sorte estaacute lanccediladardquo
Como jaacute frisamos por parte do narrador de Machado natildeo haacute nenhuma referecircncia direta
desse Ceacutesar ao bioacutegrafo Suetocircnio mas vemos relaccedilotildees diretas entre o ato da desconhecida
pessoa ldquoa caminho do poderrdquo e os atos do general romano Mais uma vez o autor foi ciruacutergico
no uso da expressatildeo destacada para a qual muito provavelmente teve acesso ao excerto de
Suetocircnio cujo conteuacutedo tambeacutem faz parte do imaginaacuterio ocidental ndash a travessia ao rio Rubicatildeo
antecedida da frase ldquoA sorte estaacute lanccediladardquo Cabe lembrar que Machado jaacute usara a expressatildeo no
capiacutetulo XIII de seu romance Helena publicado em 1876 quando o personagem Estaacutecio na
tentativa de esquecer o amor pela protagonista Helena decide pedir Eugecircnia em casamento
Naquela mesma noite ouviu Eugecircnia a esperada palavra A alegria que se lhe
derramou nos olhos foi imensa e caracteriacutestica Um pouco mais de recato natildeo era
descabido em tal ocasiatildeo Natildeo houve nenhum o primeiro ato da mulher foi uma
meninice Eugecircnia ignorava tudo ateacute a dissimulaccedilatildeo do sexo Concedendo a matildeo a
Estaacutecio natildeo era uma castelatilde que entregava o precircmio mas um cavaleiro que o recebia
com alvoroccedilo e submissatildeo
Transposto o Rubicon natildeo havia mais que caminhar direito agrave cidade eterna do
matrimocircnio Estaacutecio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr Camargo pedindo-lhe
a matildeo de Eugecircnia carta seca e digna como as circunstacircncias a pediam (Machado de
Assis Helena cap XIII p 133)
Terminadas as referecircncias ao instaurador da dinastia juacutelio-claudiana faccedilamos um salto
ao capiacutetulo CXVI intitulado Filosofia das folhas velhas no qual Braacutes Cubas alega ter ficado
tatildeo triste com o capiacutetulo anterior a este4 pelo fato de sua amante Virgiacutelia ter embarcado para a
Europa No capiacutetulo CXVI vemos referecircncia a outro imperador associado ao escrito
suetoniano nesse caso trata-se do jaacute referido Domiciano
Apoacutes um governo moderado de dez anos o do seu pai Vespasiano seguido por outro
governo tambeacutem moderado de apenas dois anos o do seu irmatildeo Tito de modo contraacuterio
4 O capiacutetulo CXV intitulado O almoccedilo
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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Domiciano assume com bastante autoritarismo Durante seus quinze anos de governo o uacuteltimo
imperador flaviano cometeu assassinatos de diversos cidadatildeos importantes incluindo
senadores Essas razotildees acarretaram numa conjuraccedilatildeo para a sua morte E diferente do seu pai
e irmatildeo que foram divinizados apoacutes a morte Domiciano ldquorecebeurdquo do Senado um decreto para
a sua damnatio memoriae essa danaccedilatildeo da memoacuteria significava as retiradas de suas imagens
em bustos inscriccedilotildees etc
Esclarecidos esses pontos sobre o imperador Domiciano voltemos a Braacutes Cubas O
narrador inicia o referido capiacutetulo em questatildeo refletindo pela metalinguagem ldquoFiquei tatildeo triste
com o fim do uacuteltimo capiacutetulo que estava capaz de natildeo escrever este descansar um pouco purgar
o espiacuterito da melancolia que o empacha e continuar depois Mas natildeo natildeo quero perder tempordquo
(Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258) e continua a
reflexatildeo
A partida de Virgiacutelia deu-me uma amostra da viuvez Nos primeiros dias meti-me em
casa a fisgar moscas como Domiciano se natildeo mente o Suetocircnio mas a fisgaacute-las de
um modo particular com os olhos Fisgava-as uma a uma no fundo de uma sala
grande estirado na rede com um livro aberto entre as matildeos (Machado de Assis
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258)
O narrador-personagem machadiano Braacutes Cubas discorre sobre seu desgosto pela vida
e sobre a monotonia agrave qual estava submetido apoacutes a partida da mulher ldquoextraconjugalmenterdquo
amada Virgiacutelia Notamos que para ilustrar de modo exagerado o desacircnimo por parte de Braacutes
Cubas sendo esse abatimento comparado a uma viuvez Machado de Assis apresenta seu
defunto-autor de um modo tatildeo ocioso que fisgava as moscas apenas com os olhos Ou seja ele
eacute apresentado mais ociosamente que o imperador Domiciano que espetava moscas A fim de
captarmos essa menccedilatildeo valemo-nos do capiacutetulo 3 da biografia de Domiciano
Inter initia principatus cotidie secretum sibi horarum sumere solebat nec quicquam
amplius quam muscas captare ac stilo praeacuto configere ut cuidam interroganti
essetne quis intus cum Caesare non absurde responsum sit a Vibio Crispo ne muscam
quidem (Suet Dom 3)
Durante os iniacutecios de seu principado solitaacuterio estava ele habituado diariamente pelas
horas a colher para si nada mais que moscas e prender com um estilete pontudo Para
uma certa interrogaccedilatildeo se acaso natildeo tinha ningueacutem dentro do local com Ceacutesar de
modo adequado teria sido respondido por Viacutebio Crispo que natildeo que nem mesmo
uma mosca
Notamos entatildeo que se por um lado atraveacutes da intertextualidade Machado se volta para
o Domiciano de Suetocircnio com o intuito de descortinar o estado de alma de Braacutes Cubas por
outro Suetocircnio apresenta essa anedota das moscas para condicionar seu leitor a um juiacutezo
negativo sobre o retrato moral de Domiciano que nada fazia em prol da burocracia puacuteblica no
iniacutecio de seu principado Essa anedota sobre Domiciano com Viacutebio Crispo enquanto locutor
jamais deixaria de ser apresentada por Suetocircnio haja vista que os atos burocraacuteticos bem como
as accedilotildees militares e diplomaacuteticas faziam parte das temaacuteticas de suas biografias Somos tentados
a crer que o fato de Suetocircnio ser oriundo da ordem dos equestres e mais tarde ter assumido
algumas funccedilotildees puacuteblicas durante o principado de Trajano e de Adriano tambeacutem teria
contribuiacutedo para sua atenccedilatildeo a esses tipos de chistes
Embora Suetocircnio natildeo seja visto como um historioacutegrafo mas sim como um erudito
bioacutegrafo e natildeo tenha pertencido agrave ordem senatorial sabemos que ele enveredou pela tradiccedilatildeo
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historiograacutefica senatorial isto eacute aquela que retratava moralmente bem os imperadores
favoraacuteveis ao Senado e moralmente mal os refrataacuterios a esse corpo Isso talvez tenha se dado
graccedilas ao seu contato com o influente senador Pliacutenio o Jovem e ao participar do seu ciacuterculo
de amizades tambeacutem teve contato com os historiadores Taacutecito e Faacutebio Ruacutestico Podemos
depreender que Domiciano natildeo deixou de apresentar motivos para ser exageradamente mal
retratado pela pena suetoniana e por isso a ressalva de Braacutes Cubas que diz ldquose natildeo mente o
Suetocircniordquo
Avancemos ao capiacutetulo CLII intitulado A moeda de Vespasiano no qual encontramos a
uacuteltima menccedilatildeo feita desde seu tiacutetulo a um imperador romano retratado por Suetocircnio Em tal
capiacutetulo na volta do enterro de Lobo Neves Braacutes Cubas refletia sobre o choro mais
precisamente sobre os soluccedilos sinceros da sua amante Virgiacutelia para o marido ao qual tinha
traiacutedo com igual sinceridade
Jaacute sabemos algumas informaccedilotildees acerca do ceacutesar em questatildeo todavia vale reforccedilar que
foi ele quem saiu vitorioso do conhecido historicamente Ano dos Quatro Imperadores em 69
Apoacutes o suiciacutedio ocorrido em 68 do uacuteltimo juacutelio-claudiano ndash o polecircmico Nero ndash que natildeo havia
deixado ningueacutem para linha sucessoacuteria os generais Galba Otatildeo Viteacutelio e Vespasiano atraveacutes
de sucessivos confrontos armados guerrearam entre si ansiando o trono deixado por Nero
Com a vitoacuteria de Vespasiano eacute instaurada a dinastia flaviana Entatildeo passemos ao curto capiacutetulo
das Memoacuterias Poacutestumas em completude
Tinham ido todos soacute o meu carro esperava pelo dono Accendi um charuto afastei-
me do cemiteacuterio Natildeo podia sacudir dos olhos a cerimocircnia do enterro nem dos ouvidos
os soluccedilos de Virgiacutelia Os soluccedilos principalmente tinham o som vago e misterioso
de um problema Virgiacutelia traiacutera o marido com sinceridade e agora chorava-o com
sinceridade Eis uma combinaccedilatildeo difiacutecil que natildeo pude fazer em todo o trajecto em
casa poreacutem apeando-me do carro suspeitei que a combinaccedilatildeo era possiacutevel e ateacute
faacutecil Meiga Natura A taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave
origem e tanto se colhe do mal como do bem A moral repreenderaacute porventura a
minha cuacutemplice eacute o que te natildeo importa implacaacutevel amiga uma vez que lhe recebeste
pontualmente as laacutegrimas Meiga trecircs vezes Meiga Natura (Machado de Assis
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CLII p 294)
Percebemos que na busca pela anaacutelise do estado de alma de sua amada Virgiacutelia o narrador
Braacutes Cubas reverbera que ldquoA taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave origem
e tanto se colhe do mal como do bemrdquo Mas de onde ele teria tirado essas relaccedilotildees semacircnticas
entre o imperador Vespasiano-moeda-taxa-cheiro Pois bem Mais uma vez quem nos traz a
resposta eacute Suetocircnio
Reprehendenti filio Tito quod etiam urinae vectigal commentus esset pecuniam ex
prima pensione admovit ad nares sciscitans num odore offenderetur et illo negante
ldquoAtquin inquit e lotio estrdquo (Suet Vesp 233)
Repreendeu seu filho Tito porque ele Vespasiano teria inventado um imposto sobre
a urina que por aquele foi advertido entatildeo aproximou o dinheiro do primeiro
pagamento desse tributo do nariz de Tito E perguntando-o se acaso natildeo se sentia
incomodado com odor e Tito negando Vespasiano respondeu No entanto eacute
proveniente da urinardquo
Na curiosa anedota Vespasiano criador de um imposto sobre a urina pois muitos
comerciantes as retiravam das latrinas puacuteblicas e as utilizavam para curtir os tecidos que
vendiam repreende o primogecircnito por ter discordado inicialmente da ideia Natildeo temos duacutevidas
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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de que Machado de Assis teve acesso a essa biografia para usar com propriedade em seu
romance nessa cena em que seu narrador busca explicaccedilotildees para fatos aparentemente
contraditoacuterios
Esse excurso pelas duas obras aparentemente distantes e des-relacionadas nos deu a liccedilatildeo
de que o narrataacuterio enquanto entidade leitora fictiacutecia compreende e decodifica os aspectos
concernentes agraves personalidades em apreccedilo os princepes no entanto para o leitor ideal isso se
mostra mais obscuro Machado de Assis aproveita os questionaacuteveis retratos dos ceacutesares de
Suetocircnio para enriquecer sua obra literaacuteria
Assim contribuindo mais para a compreensatildeo do romance machadiano pela anaacutelise da
traduccedilatildeo a qual nos permitiu o estudo sobre as referecircncias agrave histoacuteria agrave cultura e agrave literatura da
Roma Antiga cristalizados pelos Claacuteudio Tito Ceacutesar Domiciano e Vespasiano suetonianos
os esforccedilos empreendidos teratildeo alcanccedilado seu objetivo nessas ressignificaccedilotildees Se as
referecircncias e os eventos atrelados a esses ceacutesares que nos foram ldquodadosrdquo pelas biografias de
Suetocircnio tiverem sido descortinados dentro das Memoacuterias Poacutestumas de Machado de Assis
podemos ficar sem ldquoideias fixasrdquo de que criamos ldquodespropoacutesitosrdquo
IacuteNDICE DE ABREVIACcedilOtildeES
Suet Cl (Suetocircnio Claacuteudio)
Suet Dom (Suetocircnio Domiciano)
Suet Jul (Suetocircnio Juacutelio Ceacutesar)
Suet Tit (Suetocircnio Tito)
Suet Ves (Suet Vespasiano)
DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL
ASSIS Joaquim Maria Machado de Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Rio de Janeiro
Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975
______ Helena Rio de Janeiro Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975
SUETONIUS Lives of the Caesars Volume I Julius Augustus Tiberius Gaius
Caligula Translated by J C Rolfe Introduction by K R Bradley Loeb Classical Library 31
Cambridge MA Harvard University Press 1914
______ Lives of the Caesars Volume II Claudius Nero Galba Otho and Vitellius
Vespasian Titus Domitian Lives of Illustrious Men Grammarians and Rhetoricians
Poets (Terence Virgil Horace Tibullus Persius Lucan) Lives of Pliny the Elder and
Passienus Crispus Translated by J C Rolfe Loeb Classical Library 38 Cambridge MA
Harvard University Press 1914
Bruno Torres dos Santos
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REFEREcircNCIAS
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CANDIDO Antonio O sistema literaacuterio consolidado In Iniciaccedilatildeo agrave literatura Brasileira
6deg ed Rio de Janeiro Ouro Sobre Azul 2010 p65-126
CITRONI Maacuterio (Dir) CITRONI MCONSOLINO FELABATE M NARDUCCI
(orgs) Literatura de Roma Antiga Co-autores da traduccedilatildeo Margarida Miranda e Isaiacuteas
Hipoacutelito Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2006
ESTEVES Anderson Martins Biografia na biografia Vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas
obras Principia ndash Revista do Departamento de Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de
Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Ano 18 nXXX p1-7
2015
FREITAS Horaacutecio Apoloquintose In SILVA Amoacutes FREITAS Horaacutecio (orgs) Um
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Caeteacutes 2010 p 13-18
LORIGA Sabina O limiar biograacutefico In O pequeno x da biografia agrave histoacuteria Traduccedilatildeo
Fernando Sheibe Belo Horizonte Autecircntica Editora 2011 p17-48
MELLOR Ronald The roman historians New York Routledge 1999
MORENO Isabel Historiografiacutea ndash Siglo II- Suetocircnio In CODONtildeER Carmen (Ed)
Historia de la literatura latina Madrid Catedra 1997 p643-652
SILVEIRA Francisco Maciel O conto machadiano ou ldquoa realidade eacute boa o Realismo eacute que
natildeo prestardquo Veredas ndash revista da Associaccedilatildeo Internacional de Lusitanistas Porto 4deg volume
p95-103 2001
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946511
LUCIacuteOLA E O TRAacuteGICO ESTUDO ACERCA DAS MARCAS DO HEROacuteI
TRAacuteGICO EM UM PERFIL DE MULHER ALENCARIANO
Heitor Victor
RESUMO Recorrer aos claacutessicos para entender nosso tempo natildeo eacute mesmo nenhuma novidade
Apelar para a trageacutedia grega a fim de identificar o que persiste em nossa compreensatildeo acerca
de noacutes mesmos se tornou lugar comum de investigaccedilotildees em diversas aacutereas de interesse Tal
estrateacutegia se repete em razatildeo evidentemente de uma inesgotaacutevel potecircncia alegoacuterica acerca da
existecircncia humana O que pretendo neste breve trabalho eacute uma anaacutelise em linha comparativa
das marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia de Alencar personagem que o proacuteprio autor considera
um de seus perfis de mulher Para tal dialogo com Benjamin que se apresenta como um elo de
compreensatildeo do heroacutei traacutegico figura esta que se mostrou mais longeva do que a proacutepria trageacutedia
helecircnica
PALAVRAS-CHAVE Luciacuteola Traacutegico Heroiacutena
LUCIacuteOLA AND THE TRAGIC ESSAY ABOUT THE MARKS OF THE
TRAGIC HERO IN A WOMAN PROFILE OF JOSEacute DE ALENCAR
ABSTRACT It is no novelty that a return to the classics helps to understand our own time It is
even a commonplace in many research fields that an approach to greek tragedy makes it
possible for us to better understand ourselves Such a strategy still turns out to be suitable
because there is an ongoing possibility of creating allegories of human existence My aim in
this short essay is to perform a comparative analysis of the tragical features of Luacutecia an
important character of Joseacute de Alencars prose who the author himself deems to be a crucial
example of his depictions of the feminine In order to do that I draw upon Walter Benjamins
work which provides us with a comprehensive overview of the tragic hero - who actually
proved himself to be more important than the helenic tragedy itself
KEYWORDS Luciacuteola Tragic Heroine
Introduccedilatildeo
O teatro traacutegico dos gregos natildeo pode mais retornar isso eacute um fato mas eacute marcante a sua
presenccedila ainda em nossa literatura ocidental Analisar o elemento traacutegico natildeo eacute necessariamente
uma novidade mas sempre se mostra desafiador relacionarmos o traacutegico agrave estrutura de
composiccedilatildeo da personagem do romance na literatura moderna O presente trabalho pretende
Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
E-mail heitor-victorhotmailcom
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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pois fazer uma leitura da personagem Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar pioneira da
seacuterie perfis de mulher como construiacuteda sob o signo do traacutegico uma heranccedila legada pelo teatro
grego e que perdura em nossa cultura
O desafio que salta aos olhos eacute certamente as dificuldades de se transpor para o romance
caracteriacutesticas da personagem do texto dramaacutetico ou entender nesta a capacidade de se
apresentar com a profundidade comum ao romance Eacute possiacutevel entender contudo que retiradas
as divergecircncias praacuteticas do meio de veiculaccedilatildeo das narrativas sobram elementos em comum
que residem no imaginaacuterio coletivo e soacute fazem enriquecer o repertoacuterio de leituras que nos
permite a prosa alencariana do seacuteculo XIX
Luacutecia eacute uma das heroiacutenas mais complexas de seu autor capaz de em poucas paacuteginas
fazer o leitor se questionar sobre sua verdadeira natureza ora por sua candura ora por sua ironia
aacutecida apego e desprendimento iacutempares no cenaacuterio romanesco de um tempo que vecirc transbordar
a quantidade de novas e encantadoras personagens Nossa heroiacutena permite-nos destacaacute-la
exatamente por encerrar um signo que extrapola o estilo de seu tempo por meio de grandes
dicotomias autoconsciecircncia e culpa sacrifiacutecio e desejo silecircncio e seduccedilatildeo a personagem se
nos mostra uacutenica no cenaacuterio veloz e dinacircmico dos romances de folhetim
Sublime Decaiacutedo Uma Alegoria
No intuito de criar um elemento intermediaacuterio entre o heroacutei da trageacutedia e o heroacutei traacutegico
que mostrarei estar presente no romance Luciacuteola de Joseacute de Alencar seraacute preciso recorrer agrave
descriccedilatildeo desse heroacutei feita por Walter Benjamin (2011) acerca do drama traacutegico alematildeo
Enquanto aparato cecircnico ou mesmo de criaccedilatildeo literaacuteria encontramos outro contexto e outra
realidade mas o elemento fundamental ainda estaraacute laacute presente O heroacutei traacutegico manteraacute uma
seacuterie de aspectos essenciais que o transformam no portador da anguacutestia humana sem perder o
inexoraacutevel do mito despido ainda mais do movimento de ritualizaccedilatildeo religioso Eacute o traacutegico que
permanece e esse seraacute fundamental para a construccedilatildeo de uma identidade nacional do drama
alematildeo segundo o autor o que nos mostra o potencial desse heroacutei traacutegico no processo de
aproximaccedilatildeo entre o discurso formador e o seu espectador (BENJAMIN 2011)
Um primeiro elemento identificado por Benjamin (2011) que nos interessa no heroacutei
traacutegico eacute o seu caraacuteter alegoacuterico se eacute que posso falar em alegoria do mito que jaacute o eacute em essecircncia
Certamente contudo figura nesse elemento a grande potecircncia reflexiva da personagem traacutegica
que poderaacute ser transportado para Luacutecia Ao relevarmos a ambiccedilatildeo do autor de traccedilar perfis de
mulher1 a alegoria destaca Luacutecia de Emiacutelia e Aureacutelia o que faz evidenciar naquela a tragicidade
em comparaccedilatildeo com estas Deixe-me verificar antes e em linhas mais gerais o que entende
Benjamin por alegoria no drama traacutegico
Devo dispensar em razatildeo de objetivos praacuteticos a discussatildeo do autor acerca das
concepccedilotildees de alegoacuterico e simboacutelico para o barroco e para o romantismo para ir diretamente ao
ponto o alegoacuterico eacute entendido como aquele que supera a unidade da obra e se posiciona com
transcendecircncia agrave medida que o siacutembolo se encerra em si mesmo mostra identidade e um caraacuteter
proacuteprio da obra em que se coloca Benjamin recorre a Goethe para mostrar a concepccedilatildeo
romacircntica de siacutembolo e alegoria ldquoHaacute uma grande diferenccedila entre o poeta procurar o particular
para chegar ao geral e contemplar o geral no particular No primeiro procedimento temos uma
alegoria e o particular serve apenas como exemplo como caso exemplar do geralrdquo
(BENJAMIN 2011 p 171)
1 Natildeo devemos deixar de reconhecer que essa intenccedilatildeo descritiva de construccedilatildeo de um perfil apresenta-se como
um elemento romanesco do narrador de Luciacuteola Como visto no primeiro capiacutetulo da obra quando o narrador
se justifica a G M sua pretensa correspondente ldquoEacute um perfil de mulher apenas esboccediladordquo (ALENCAR 1972
p 121) A todo momento que eu tocar nesse ponto se deve reconhecer que a nossa base reside antes de tudo
nesse caraacuteter narrativo do romance alencariano
Heitor Victor
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A despeito da valoraccedilatildeo feita por Goethe seguiremos a leitura de Benjamin para
entender Luacutecia como o caso particular representativo de um perfil maior o da mulher que
encarna o anjo caiacutedo seu nome daacute a grande indicaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo alegoacuterica mas a mesma
natildeo deixa de aparecer ao longo da obra Reconhecerei em minha anaacutelise na Luacutecia de Alencar
a alegoria da mulher sublime que decai em todo o seu caraacuteter duacutebio mas ainda assim
permanente que morre ao final do romance natildeo agrave toa mas de maneira necessaacuteria para
consolidar a aspiraccedilatildeo alegoacuterica desse perfil de mulher talvez o mais ousado de Alencar
Benjamin reconhece que
o seu (da alegoria) significado eacute aquele que o alegorista lhe atribuir Ele investe-o
desse significado e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele natildeo em sentido
psicoloacutegico mas ontoloacutegico Nas suas matildeos a coisa transforma-se em algo de diverso
atraveacutes dela ele fala de algo de diverso e ela torna-se para ele a chave que lhe daacute acesso
a um saber oculto que ele venera na coisa como seu emblema Eacute nisso que reside o
caraacuteter escritural da alegoria (BENJAMIN 2011 p 196)
Esse seraacute portanto o meu ponto de partida Para natildeo deixar qualquer duacutevida sobre essa
relaccedilatildeo devo me deter nesse tema ainda para mostrar na obra algumas marcas dessa relaccedilatildeo A
comeccedilar pelo elemento dramaacutetico de narraccedilatildeo o recado de G M ldquoao autorrdquo Apoacutes reconhecer
a grandeza da personagem e o valor da narrativa que se seguiraacute dramaticamente posta como
uma publicaccedilatildeo da mesma G M afirma ldquoNatildeo seraacute a imagem verdadeira da mulher que no
abismo da perdiccedilatildeo conserva a pureza drsquoalmardquo (ALENCAR 1972 p 120) Natildeo se pode
desaperceber que eacute usado natildeo a referecircncia definida dedicada agrave Luacutecia mas uma referecircncia geral
a todas as mulheres Eacute exatamente nesse caraacuteter geneacuterico que residiria o valor alegoacuterico de que
trato neste trabalho
Podemos tambeacutem recorrer aos eventos narrados no interior do romance para vermos
personificada a alegoria do anjo caiacutedo seja pela capacidade de transitar com primor entre um e
outro digo entre o angelical e o demoniacuteaco ou seja por encerrar em si mesma os dois
extremos Luacutecia se nos apresenta apenas pela narrativa de Paulo natildeo se pode esquecer e muito
de sua transitoriedade pode residir apenas nas impressotildees desse narrador personagem mas isso
em nada muda o seu caraacuteter alegoacuterico Um episoacutedio que expressa com clareza a ambivalecircncia
de Luacutecia eacute o de seu primeiro encontro iacutentimo com Paulo Em curto espaccedilo de tempo
cronoloacutegico e narrativo vemos uma transformaccedilatildeo que beira a ida pronta do sagrado ao
profano No momento em que avanccedila sobre Luacutecia Paulo reconhece
Quando poreacutem os meus laacutebios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as
formas encantadoras que debuxavam a seda pareceu-me que o sangue lhe refluiacutea ao
coraccedilatildeo As palpitaccedilotildees eram bruscas e precipites Estava liacutevida e mais branca do que
o alvo colarinho do seu roupatildeo Duas laacutegrimas em fio duas laacutegrimas longas e sentidas
como dizem que chora a corccedila expirando pareciam cristalizadas sobre a face de tatildeo
lentas que rolavam (ALENCAR 1972 p 134-135)
Vemos aqui com a reaccedilatildeo genuiacutena de Luacutecia somada agraves laacutegrimas sua comparaccedilatildeo ao
choro da corccedila notamos aqui o temperamento puro que nos surpreende a todos narrador e
leitor Surpresa que se justifica com a mudanccedila abrupta de Luacutecia para entregar a imagem que
nos foi construiacuteda pelos pares de Paulo de que nossa heroiacutena se tratava de uma cortesatilde das mais
haacutebeis
Era outra mulher O rosto cacircndido e diaacutefano que tanto me impressionou agrave doce
claridade da lua se transformara completamente tinha agora uns toques ardentes e
um fulgor estranho que o iluminava Os laacutebios finos e delicados pareciam tuacutemidos dos
desejos que incubavam Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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narina que tremiam com o aneacutelito do respiro curto e sibilante e tambeacutem nos fogos
surdos que incendiavam a pupila negra (ALENCAR 1972 p 136)
Nessa transformaccedilatildeo se apresenta a indistinguiacutevel transiccedilatildeo do sagrado do choro da
corccedila para a respiraccedilatildeo sibilante demoniacuteaca em lasciacutevia Seria inuacutetil continuar enumerando os
momentos em que se evidencia tal transformaccedilatildeo acredito que esses episoacutedios partem da
anteriormente citada alegoria que pode nortear nossa leitura do romance
Natildeo nos seraacute nunca possiacutevel bater o martelo sobre tal questatildeo seria Luacutecia o siacutembolo de
Goethe ou a alegoria de Benjamin Somando contudo as marcas supracitadas a ainda o
reconhecimento de outras marcas do traacutegico preferirei me manter na leitura de Benjamin de
que o alegoacuterico eacute ainda desejaacutevel mesmo no romance exatamente por seu valor transcendente
e assim poderemos entender Luacutecia e seu perfil exclusivo de mulher como tambeacutem dotado de
valor reflexivo e generalista das anguacutestias femininas
Marcas do Heroacutei Traacutegico
As laacutegrimas do episoacutedio transcrito acima servem como indicador do demais elementos
de proximidade entre o heroacutei traacutegico de Benjamin e a Luacutecia de Alencar Tal choro evidencia
uma dor suprimida mas acima de tudo encerra em si quatro aspectos sobre os quais tratarei
neste trabalho o silecircncio a culpa a consciecircncia e o sacrifiacutecio O silecircncio de quem guarda para
si o seu verdadeiro eu suas dores e reflexotildees Eacute nas laacutegrimas que temos o primeiro vislumbre
da profundidade traacutegica de Luacutecia A personagem demonstra nesse exato momento plena
consciecircncia de si de seu destino e sente a culpa que pesa sobre si as laacutegrimas expressam o
ardor do seu sacrifiacutecio pois satildeo sublimadas por sua candura Vejamos adiante o que pretendo
dizer com esses quatro aspectos e sua relaccedilatildeo com o traacutegico
Devo principiar contrariando a ordem anterior pelo sacrifiacutecio para manter a
abordagem de Benjamin O autor entende que o heroacutei traacutegico realiza sua atuaccedilatildeo maior em sua
proacutepria morte o sacrifiacutecio maior e que eacute exatamente entatildeo que o heroacutei se distingue dos demais
indiviacuteduos Benjamin afirma
A marca identificativa da trageacutedia natildeo estaacute pois num conflito de niacuteveis entre o heroacutei
e mundo circundante [] mas sim a forma uacutenica grega de tais conflitos E onde deve
ser procurada essa forma Que tendecircncia se esconde no fenocircmeno traacutegico Por que
causa morre o heroacutei A poesia traacutegica assenta na ideia do sacrifiacutecio (BENJAMIN
2011 p 108)
Luacutecia se sacrifica natildeo apenas porque morre mas se encerra em sua morte uma entrega
definitiva a Paulo e agrave sua irmatilde Ana A morte de Luacutecia eacute decisiva para a construccedilatildeo e para a
profundidade da personagem aleacutem de ser elemento fundamental para a generalidade
constitutiva da alegoria Ainda mais que o sacrifiacutecio do heroacutei traacutegico natildeo eacute um sacrifiacutecio
comum Seguindo ainda o raciociacutenio de Benjamin temos
o sacrifiacutecio traacutegico difere no seu objeto ndash o heroacutei ndash de todos os outros e eacute ao mesmo
tempo inaugural e terminal Terminal no sentido do sacrifiacutecio expiatoacuterio devido aos
deuses guardiatildees de um antigo direito e inaugural no sentido de uma accedilatildeo que em
algum lugar desse direito anuncia novos conteuacutedos da vida do povo (BENJAMIN
2011 p 108)
Ou seja o sacrifiacutecio de Luacutecia eacute terminal expiatoacuterio de sua vida de perfiacutedia Luacutecia
reconhece em seus uacuteltimos momentos para Paulo a sua importacircncia e exatamente por isso por
ele se sacrifica
Heitor Victor
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 41
ndash Paulo Paulo Tu bem sabes que com essa palavra me farias cometer crimes se
crimes fosse necessaacuterio para te provar que eu soacute vivo da vida que me daacutes e me podes
tirar com um sopro Natildeo sou eu criatura tua natildeo renasci pela luz que derramaste em
minha alma Natildeo eacutes meu senhor meu artista meu pai e meu criador (ALENCAR
1972 p 243)
O sacrifiacutecio de Luacutecia como se evidencia natildeo estaacute apenas na morte mas na sua entrega
completa Entrega que se apresenta como sua uacutenica forma de se redimir da vida que levara O
sacrifiacutecio reconhecendo ainda tais aspectos de Benjamin eacute tambeacutem inaugural quando se
direciona a Ana sua irmatilde em quem enxerga a uacutenica continuidade possiacutevel Seja para sua
protegida ou mesmo para a continuidade da vida de Paulo possiacutevel apenas com o encerramento
da sua proacutepria vida
Outro aspecto do heroacutei traacutegico de Benjamin presente em Luciacuteola eacute o silecircncio jaacute
mencionado anteriormente ldquoO heroacutei traacutegico tem apenas uma linguagem que plenamente lhe
corresponde precisamente a do silecircncio Assim eacute desde o iniacuteciordquo (BENJAMIN 2011 p 109)
Esse silecircncio eacute identificaacutevel em diversos momentos em Luacutecia pois evoca a resiliecircncia da
heroiacutena com o seu fardo Natildeo eacute um silecircncio de conformismo ou mesmo qualquer espeacutecie de
natildeo se importar que a toma mas ldquoo testemunho de um sofrimento mudordquo (BENJAMIN 2011
p 109) Eacute com esse silecircncio que Luacutecia arrebata o leitor para o seu drama pessoal natildeo como um
perseguidor ou inquisidor mas como partiacutecipe de seu pesar de sua dor Tal silecircncio aparece
nos momentos de prazer como quando se divertia no banquete noturno na casa de Saacute ldquoLuacutecia
fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria e caiacutera no costumado abatimento e distraccedilatildeo Eu a
contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava
quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaiacutedordquo (ALENCAR 1972 p 152-
153) Ou mesmo em sua face mais sincera jaacute como Maria ldquoQuando cheguei Luacutecia estava soacute
no jardim debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujaacutes tatildeo absorvida em sua
meditaccedilatildeo que natildeo me percebeurdquo (ALENCAR 1972 p 245)
Seguindo com minha anaacutelise comparativa devo abordar o aspecto da consciecircncia
fundamental para a diferenciaccedilatildeo entre uma outra personagem qualquer e o heroacutei traacutegico Esse
aspecto em especial eacute importante para a leitura que apresento por se tratar de algo que
claramente distingue o heroacutei romacircntico convencional daquele que eacute regido pelo signo do
traacutegico O heroacutei do romance desconhece completamente o seu destino e reside precisamente
nisso suas duacutevidas e questionamentos Nossa heroiacutena traacutegica contudo ainda que tambeacutem
romacircntica ndash natildeo o desejamos negar em nenhum momento se mostra consciente do seu caminho
Para esclarecer esse sentido de consciecircncia Benjamin traz uma fala de Lukaacutecs acerca do
reconhecimento da proacutepria morte
Tambeacutem a escolha da morte pelo homem traacutegico eacute um heroiacutesmo soacute aparentemente
heroico soacute assim visto de um ponto de vista humano e psicoloacutegico os heroacuteis
moribundos da trageacutedia ndash escrevia haacute pouco tempo um jovem autor traacutegico ndash estatildeo
mortos muito tempo antes de morrerem (BENJAMIN 2011 p 117)
Apenas a cargo de exemplificaccedilatildeo que se encaixa bem na ideia de reconhecimento da
morte como marca do heroacutei traacutegico podemos citar a consciecircncia apresentada por Luacutecia antes
de sua proacutepria morte ldquondash Se eu pudesse viver haveria forccedilas que me separassem de ti Haveraacute
sacrifiacutecio que eu natildeo fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade Mas Deus natildeo
quis Sinto que a vida me fogerdquo (ALENCAR 1972 p 248)
Devo tratar por fim do quarto aspecto a que me reservei neste trabalho que eacute o da culpa
Sem duacutevidas o eixo central de todo o romance de Alencar A culpa natildeo pode ser entendida
contudo como o arrependimento de seus atos ou mesmo sujeiccedilatildeo completa ao proacuteprio erro A
culpa como elemento traacutegico traz um valor de compreensatildeo Nossa heroiacutena traacutegica natildeo apenas
se lamenta da vida que fora levada a ter mas por meio da culpa ela se reconstroacutei eacute precisamente
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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por meio da culpa que no fim em meio ao embate entre anjo e democircnio prevalece sua face
angelical e a alegoria alcanccedila a sua plenitude Recorro ainda agraves palavras de Benjamin para
clarificar essa noccedilatildeo de culpa no drama traacutegico
No decorrer da accedilatildeo traacutegica um heroacutei assume e internaliza essa culpa que segundo
as antigas normas eacute imposta aos homens a partir de fora pela desgraccedila Ao refleti-la
na sua consciecircncia de si ele furta-se agrave sua tutela demoniacuteaca [] Paradoxal como
todas as manifestaccedilotildees da culpa traacutegica ela consiste apenas numa orgulhosa
consciecircncia de culpa na qual a figura heroica se liberta da servidatildeo que na sua
lsquoinocecircnciarsquo a sujeita agrave culpa demoniacuteaca (BENJAMIN 2011 p 135)
Essa culpa talvez seja dentre os aspectos ateacute aqui elencados o que mais se mostra claro
ao longo de Luciacuteola Nos momentos de maior comoccedilatildeo compartilhamos com Luacutecia esse seu e
genuiacuteno sentimento e eacute precisamente graccedilas a ele que o lado sagrado desse anjo caiacutedo prevalece
e nos faz criar a empatia entre leitor e personagem Vejamos portanto dois casos que
expressam os dois extremos da culpa vivida por Luacutecia Ora tal sentimento se expressa pela
ironia como quando Paulo no evento da casa de Saacute tenta singularizar a sua presenccedila e nossa
heroiacutena rebate com acidez
ndash Ora Haacute tanta mulher bonita Qualquer destas vale mais do que eu acredite Demais
quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado saberaacute o senhor de
quem satildeo os laacutebios que toca Qual Eacute uma mulher Uma presa em que ceva o apetite
Que importa o nome Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe
prepararam esta ceia Conhece-os Nem por isso as iguarias lhe parecem menos
saborosas (ALENCAR 1972 p 153)
Em outro momento contudo vemos a culpa sob outra roupagem da maneira mais
sincera em um de seus momentos de maior entrega
ndash Tu podes me fazer voltar agrave treva de que me arrancaste podes estancar as fontes de
minha existecircncia que manam de tua alma e natildeo me haacutes de ouvir uma soacute queixa A
dor como a alegria seratildeo sempre benditas por que viratildeo de ti Mas Paulo a suacuteplica
do humilde natildeo ofende Deus a permite e exalccedila Natildeo me retires a graccedila e a becircnccedilatildeo
que me deste Salva-me Paulo Salva-me a ti Salva-me de mim mesma
(ALENCAR 1972 p 243)
Natildeo agrave toa seleciono esta uacuteltima fala de Luacutecia para encerrar a argumentaccedilatildeo pois
precisamente aqui a culpa se mostra como o elemento libertador e eacute aqui que Luacutecia talvez tenha
entendido e absorvido o orgulho citado por Benjamin para livraacute-la da tutela demoniacuteaca Liberta-
se finalmente da servidatildeo que a acomete por toda a obra A projeccedilatildeo em Paulo eacute certamente a
projeccedilatildeo em um amor libertador que foi capaz de transfigurar a modalidade da culpa que sentia
Eacute entatildeo que Luacutecia deixa claro que compreende que a dor e a alegria se complementam e assim
encerra o perfil da mulher que decaiu mas que no fim projeta em sua alegoria a clareza do seu
papel em sua proacutepria narrativa Essa compreensatildeo faz de Luacutecia a heroiacutena de Alencar que mais
beira a perdiccedilatildeo a mais altiva e capaz de se assemelhar agrave heroiacutena da trageacutedia e assim como laacute
melhor do que se realmente apresentam homens e mulheres
Conclusatildeo
Ao recorrer portanto agraves estrateacutegias de identificaccedilatildeo da interioridade e de posiccedilotildees
constitutivas do heroacutei traacutegico acredito que se torna possiacutevel clarificar como o teatro grego
passou a atuar sobre o mito por meio de maior variabilidade narrativa do mesmo Essa
possibilidade de apresentar uma personagem mais profunda ainda que por meio da accedilatildeo
Heitor Victor
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dramaacutetica eleva o texto teatral e especificamente a trageacutedia ndash que usa a personagem miacutetica
como forma de apresentar seres mais elevados do que os indiviacuteduos da sociedade ndash ao papel de
ressignificar o mito Eacute por meio dessas personagens dramaacuteticas que a fabulaccedilatildeo estaacutetica do mito
pode apresentar novos argumentos para o meio em que estaacute inserida
Reconhecendo nas estrateacutegias de interpretaccedilatildeo da personagem dramaacutetica a ferramenta
de atualizaccedilatildeo do mito despida do elemento religioso foi possiacutevel analisar com certo grau de
convicccedilatildeo o heroacutei da trageacutedia Evidenciou-se como isso o papel desse heroacutei e sua capacidade
de conduzir efetivamente a narrativa miacutetica para novos caminhos interpretativos possibilitando
essa narrativa a se apresentar sob nova perspectiva O heroacutei visto dessa maneira ganha
destaque como formador de questionamentos e permite ao leitorespectador por meio do
elemento traacutegico estabelecer nova compreensatildeo
Esse heroacutei traacutegico permanece com o seu poder reflexivo mesmo fora do contexto miacutetico
levando-nos ao reconhecimento do traacutegico como formador efetivo de questionamentos Satildeo
estes aspectos traacutegicos que Benjamin identifica como herdeiros do teatro grego no teatro
alematildeo que eu resgato como possiacuteveis na construccedilatildeo de profundidade do heroacutei do romance eacute
precisamente sob esses aspectos que Luacutecia ndash a heroiacutena romacircntica mas dotada do elemento
traacutegico ndash eacute capaz de saltar aos olhos do leitor como dona de seu proacuteprio destino jamais apenas
sujeita ao mesmo Com isso cada traccedilo da heroiacutena de Alencar eacute capaz de se mostrar natildeo apenas
como marca de um perfil de mulher mas tambeacutem o perfil de um aspecto comum a todas as
mulheres Somente por meio da alegoria do anjo caiacutedo se poderia alcanccedilar tamanha projeccedilatildeo
dentro de um cenaacuterio em que o indiviacuteduo eacute professado como ponto central da construccedilatildeo de
uma obra de arte
REFEREcircNCIAS
ALENCAR Joseacute de Obras Imortais da Nossa Literatura Joseacute de Alencar Iracema ndash
Luciacuteola Satildeo Paulo Editora Trecircs 1972
ARISTOacuteTELES Poeacutetica In A Poeacutetica Claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 12ordf ediccedilatildeo 2005
BENJAMIN Walter Origem do Drama Traacutegico Alematildeo Belo Horizonte Autecircntica Editora
2011
CANDIDO Antonio A Personagem do Romance In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo Paulo
Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014
ELIADE Mircea Mito e Realidade Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2ordf ediccedilatildeo 1986
PRADO Deacutecio de Almeida A Personagem no Teatro In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo
Paulo Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946512
CARACTERIZACcedilAtildeO SIMBOacuteLICA ATRAVEacuteS DE SIacuteMILES
ANIMAIS NA ILIacuteADA
Marco Valeacuterio Classe Colonnelli (Universidade Federal da Paraiacuteba)
RESUMO O intuito deste artigo eacute demonstrar a partir de alguns siacutemiles como Homero
produz uma caracterizaccedilatildeo concisa de seus heroacuteis A perspectiva de abordagem neste
estudo eacute comprovar a eficaacutecia do uso dos siacutemiles pelo poeta em consonacircncia com a obra
de Aristoacuteteles Investigaccedilatildeo dos Animais que nos permite aferir certo valor simboacutelico de
determinados animais ainda no seacutec IV aC Partindo de comparaccedilotildees com animais o
poeta produz siacutemiles que formam um quadro imediato e eficaz do heroacutei projetado pela
forccedila simboacutelica e analoacutegica que o animal evoca como termo comparativo na cultura grega
arcaica e claacutessica
PALAVRAS-CHAVES Caracterizaccedilatildeo Iliacuteada Homero siacutemiles eacutepica Aristoacuteteles
SYMBOLIC CHARACTERIZATION THROUGH SIMILES
ANIMALS IN THE ILIAD
ABSTRACT The purpose of this article is to demonstrate from some similes how Homer
produces a concise characterization of his heroes The prospect of approach in this study
is to prove the efficacy of the use of similes by the poet in accord with the work of
Aristotle Research of the Animals which allows us to assess certain symbolic value of
certain animals even in the 4th century BC Starting from the comparison with animals
the poet produces similes that form an immediate and effective framework of the hero
projected by the symbolic and analogue force that the animal evokes as a comparative
term in the archaic and classical Greek culture
KEYWORDS Characterization Iliad Homero Facsimiles Epic Aristotle
1 Sobre o siacutemile homeacuterico
Desde o lanccedilamento do livro de Milman Parry ldquoThe Making of Homeric Verserdquo
que revelou novas facetas para o estudo de Homero o siacutemile passou a ser estudado por
uma infinidade de autores Foacutermulas funccedilotildees oralidade sequecircncias de imagens dentre
outras caracteriacutesticas foram tatildeo sistematicamente investigadas nos siacutemiles que um resumo
sobre essas principais teorias produziria um material muito denso1
E-mail mcolonnellihotmailcom 1 Desde os estudos de Milman Parry duas principais linhas de estudos tecircm debatido calorosamente a
possibilidade de uma caracterizaccedilatildeo de personagens a despeito das foacutermulas e repositoacuterios de palavras
usados nos dois poemas eacutepicos de Homero Adam Parry filho de Milman em seu artigo ldquoLanguage and
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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O siacutemile grosso modo eacute uma comparaccedilatildeo entre coisas Coffey que analisou os
siacutemiles na eacutepica homeacuterica encontra dois grupos um que eacute
composto de uma palavra introdutoacuteria tal como ὡς seguida por um nome que
eacute frequentemente qualificado por um adjetivo ou um particiacutepio [] e casos
nos quais uma ou mais oraccedilotildees relativas contendo uma forma infinitiva ou
verbos flexionados estatildeo ligadas a uma oraccedilatildeo anterior de comparaccedilatildeordquo
(Coffey 1957 60) e outro ldquoo siacutemile longo que consiste em uma sentenccedila
separada introduzida por ὡς ὅτε ou palavras similaresrdquo2
Aqui as duas formas de siacutemiles nos interessam jaacute que a primeira trata de uma economia
em termos de caracterizaccedilatildeo e a segunda um desenvolvimento da situaccedilatildeo da personagem
em conflitos eacuteticos e psicoloacutegicos
Um pouco mais tarde Moulton passa a estudar os siacutemiles a partir de suas
sequecircncias ultrapassando o esquema fechado dos siacutemiles e de suas correspondecircncias
sintaacuteticas para ampliaacute-los ateacute uma anaacutelise semacircntica demonstrando unidades de sentido
maiores na sequecircncia do enredo Duas tambeacutem satildeo as formas encontradas por ele siacutemiles
pares e ainda siacutemiles sucessivos ou seja respectivamente um siacutemile direto simples
menor e outro longo com unidades maiores e liames semacircnticos
Coffey ainda apresenta algumas funccedilotildees que o siacutemile homeacuterico desempenha tais
como movimentaccedilatildeo descriccedilatildeo notaccedilatildeo temporal enumeraccedilatildeo caracterizaccedilatildeo dentre
outras funccedilotildees Especificamente no tocante agrave caracterizaccedilatildeo diversos siacutemiles apresentam
como termo comparativo animais Clarke por exemplo em seu artigo ldquoEntre Homens e
Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo pontua em contraste com teoacutericos que soacute veem o
siacutemile como uma ornamentaccedilatildeo formulaica que ldquoo simbolismo envolvendo animais
selvagens e agressivos eacute muito maior que uma questatildeo de estilo e que eles desempenham
grande papel no retrato de Homero dos problemas eacuteticos e psicoloacutegicos do heroiacutesmordquo
(Clarke 2006 p 2)
Eacute desse ponto de vista entatildeo que partimos em nossa investigaccedilatildeo ou seja
examinar em suas duas formas o potencial que os siacutemiles animais possuem na Iliacuteada
como teacutecnica de caracterizaccedilatildeo3 Eacute necessaacuterio tambeacutem antes determinar para que o
quadro de comparaccedilatildeo seja efetivo o valor simboacutelico que cada animal pode atribuir ao
seu comparante dentro da estrutura do siacutemile e soacute assim procedermos com a anaacutelise de
caracterizaccedilatildeo
2 A simbologia dos animais como elemento caracterizador
Estudar a caracterizaccedilatildeo de uma personagem sem seu caraacuteter (ἦθος) manifesto
pode parecer uma empresa arriscada Entretanto eacute possiacutevel determinar este caraacutecter
atraveacutes de analogias que deixam entrever certos estados eacuteticos e psicoloacutegicos das
personagens Eacute dessa forma que entendemos com Clark que
Characterization in Homerrdquo jaacute havia contestado boa parte dos epiacutetetos formulaicos para demonstrar certa
habilidade do poeta eacutepico em sua construccedilatildeo de caracterizaccedilatildeo No tocante aos siacutemiles M Coffey em
ldquoThe function of the Homeric Similerdquo demonstra como os siacutemiles desempenham diversas funccedilotildees dentre
elas a de caracterizaccedilatildeo e ainda mais Carroll Moulton em ldquoSimiles in the Iliadrdquo e ldquoSimile Sequencesrdquo
aponta como os siacutemiles produzem caracterizaccedilatildeo e influenciam em toda narrativa posterior para aleacutem de
uma foacutermula meramente ornamental respectivamente Importante contribuiccedilatildeo tambeacutem eacute o artigo de
Michel Clark ldquoEntre Homens e Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo que aponta comportamentos eacuteticos e
psicoloacutegicos nos siacutemiles animais 2 Todas as traduccedilotildees satildeo de responsabilidade do autor Texto grego extraiacutedo das ediccedilotildees de Paul Mazon e
Balme 3 Cf Adam Parry 1972 p 1-22
Marco V C Colonnelli
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Os siacutemiles animais satildeo um excelente candidato para gerar tal tipo de sistema
eles satildeo tantos e tatildeo variados nas conexotildees que forjam que seu efeito
combinado pode natildeo apenas ampliar a narrativa mas de fato assimilar
aspectos da aparecircncia das personagens e da personalidade do guerreiro ao
animal (Clark 2006 p 4)4
Um dado relevante neste universo eacutepico eacute que ldquoos animais de Homero tecircm
igualmente o mesmo aparato emocional e cognitivo que os homensrdquo (Clark 2006 11)
Na Iliacuteada poreacutem jamais encontraremos algum tipo de eacutethos (ἦθος) aplicado ao animal
mas somente o contraacuterio disso o animal conferindo eacutethos ao homem Em Homero os
animais estatildeo encobertos por uma carga simboacutelica que os determina em certos aspectos
com traccedilos bem definidos Mas como eacute possiacutevel atribuir um eacutethos ao animal Como ver
tacitamente no animal um eacutethos humano Para entendermos melhor essa relaccedilatildeo eacute
preciso recorrermos a Aristoacuteteles
Em seu tratado Investigaccedilatildeo dos Animais o filoacutesofo faz uma afirmaccedilatildeo que parece
se coadunar com o mundo homeacuterico
Haacute pois tambeacutem em muitos desses outros animais traccedilos de caracteriacutesticas
psiacutequicas que nos homens possuem diferenccedilas mais claras Assim mansidatildeo
e ferocidade doccedilura e violecircncia coragem e covardia temor e ousadia vontade
e astuacutecia estatildeo em muitos animais semelhantes aos homens tambeacutem ateacute em
inteligecircncia
῎Ενεστι γὰρ ἐν τοῖς πλείστοις καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ἴχνη τῶν περὶ τὴν ψυχὴν
τρόπων ἅπερ ἐπὶ τῶν ἀνθρώπων ἔχει φανερωτέρας τὰς διαφοράςmiddot καὶ γὰρ
ἡμερότης καὶ ἀγριότης καὶ πραότης καὶ χαλεπότης καὶ ἀνδρία καὶ δειλία καὶ
φόβοι καὶ θάρρη καὶ θυμοὶ καὶ πανουργίαι καὶ τῆς περὶ τὴν διάνοιαν συνέσεως
ἔνεισιν ἐν πολλοῖς αὐτῶν ὁμοιότητες [] (Arist Investigaccedilotildees sobre os
animais 588 a 19-25)
Aristoacuteteles reconhece duas caracteriacutesticas psiacutequicas diferentes entre os animais e
os homens A primeira eacute de grau ou seja entre os homens uns teratildeo mais outros menos
dessas caracteriacutesticas e a mesma relaccedilatildeo entre homens e animais A segunda eacute por
analogia ou seja por certa semelhanccedila entre as caracteriacutesticas psiacutequicas dos homens
comparadas a certas manifestaccedilotildees nos animais5 Partindo dessa premissa analoacutegica
Aristoacuteteles neste tratado delineia o caraacuteter de alguns animais com base em sentimentos
humanos A analogia que faz a ponte entre essas constituiccedilotildees psiacutequicas se vale tambeacutem
do simbolismo que cada animal possuiacutea jaacute entre os gregos Este simbolismo natildeo tem um
vieacutes religioso ainda que seja necessaacuterio reconhecer essa dimensatildeo simboacutelica na cultura
grega6 mas meramente empiacuterico
Eacute nesse sentido que vamos encontrar em Aristoacuteteles a aplicaccedilatildeo do eacutethos humano
por analogia aos animais Worther tambeacutem assinala que
Aristoacuteteles define o ἦθος como uma capacidade ou potecircncia primeira e natural
possuiacuteda por todos os animais em virtude da qual eles satildeo natildeo somente capazes
4 Moulton discorda de que isso seja possiacutevel 5 Diferenccedila segundo a analogia consiste em estabelecer que a capacidade natural de um dado animal se
encontra sob uma forma diferente mas com a mesma funccedilatildeo ou uma funccedilatildeo anaacuteloga em um outro animal
Assim a arte a sabedoria ou a inteligecircncia do homem existem em outros animais mas sob a forma de
uma capacidade que natildeo faz intervir o elemento racional que pertence propriamente ao homem
(Woerther 2007 138) 6 Natildeo se nega o valor das relaccedilotildees religiosas entre homens e animais mas deve-se tambeacutem ressaltar as
relaccedilotildees sociais e poliacuteticas que esta associaccedilatildeo releva (Bodson 1994 55)
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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de ser afetados por paixotildees como tambeacutem suscetiacuteveis de desenvolver graccedilas
agraves accedilotildees repetidas disposiccedilotildees habituais da alma (Woerther 2007 p 138)
A observaccedilatildeo do filoacutesofo sobre o eacutethos animal tambeacutem eacute extraiacuteda da proacutepria obra
de Homero de quem ele muitas vezes cita passagens para justificar seus escritos
bioloacutegicos o que nos leva a crer que as observaccedilotildees homeacutericas e aristoteacutelicas formam um
todo empiacuterico de observaccedilotildees a respeito da natureza em geral Desse saber empiacuterico o
valor do eacutethos animal passa a figurar como um siacutembolo que o animal possui em si
Vejamos agora como certos valores simboacutelicos dos animais confluem para uma
caracterizaccedilatildeo taacutecita em algumas passagens da Iliacuteada
3 Siacutemiles animais como elementos caracterizadores
Muitos siacutemiles animais podem ser encontrados na Iliacuteada O leatildeo eacute de longe o
animal mais citado como imagem para os heroacuteis entretanto outros animais como o cervo
ou a cabra que satildeo presas tambeacutem abundam nas comparaccedilotildees Alguns animais satildeo
empregados especificamente em algumas passagens de modo natildeo muito usual Em uma
passagem do canto VIII da Iliacuteada Aquiles eacute comparado a um golfinho natildeo soacute pelo locus
de sua caccedila mas tambeacutem por algumas reconhecidas qualidades deste animal Vejamos o
siacutemile
Em seguida o divino Aquiles deixou sua lanccedila na ribeira
Inclinada nos arbustos e mergulhou semelhante a um deus
Portando apenas uma espada e na mente meditava maus atos
E golpeou dando giros dos feridos pela arma uma gritaria elevou-se
Indecorosa enquanto tingia a aacutegua de vermelho
Tal como quando outros peixes dos golfinhos de grande ventre
Fugindo enchem os recantos de uma baiacutea fundeada
Aterrados pois tudo aquilo que consegue apanhar devora
Assim os Troianos para as correntes do terriacutevel rio
Fugiam pelas iacutengremes ribanceiras Aquiles quando cansou
Suas matildeos de matar recolheu do rio doze jovens vivos
Paga pela morte de Paacutetroclo filho de Meneacutecio
Αὐτὰρ ὃ διογενὴς δόρυ μὲν λίπεν αὐτοῦ ἐπ ὄχθῃ
κεκλιμένον μυρίκῃσιν ὃ δ ἔσθορε δαίμονι ἶσος
φάσγανον οἶον ἔχων κακὰ δὲ φρεσὶ μήδετο ἔργα
τύπτε δ ἐπιστροφάδηνmiddot τῶν δὲ στόνος ὄρνυτ ἀεικὴς
ἄορι θεινομένων ἐρυθαίνετο δ αἵματι ὕδωρ
ὡς δ ὑπὸ δελφῖνος μεγακήτεος ἰχθύες ἄλλοι
φεύγοντες πιμπλᾶσι μυχοὺς λιμένος εὐόρμου
δειδιότεςmiddot μάλα γάρ τε κατεσθίει ὅν κε λάβῃσινmiddot
ὣς Τρῶες ποταμοῖο κατὰ δεινοῖο ῥέεθρα
πτῶσσον ὑπὸ κρημνούς ὃ δ ἐπεὶ κάμε χεῖρας ἐναίρων
ζωοὺς ἐκ ποταμοῖο δυώδεκα λέξατο κούρους
ποινὴν Πατρόκλοιο Μενοιτιάδαο θανόντοςmiddot
(Il VIII 17-28)
Em suas investigaccedilotildees Aristoacuteteles nos fornece certos traccedilos do animal que
configuram seu eacutethos Assim em 631a ele afirma que ldquodentre os animais mariacutetimos
muitos sinais de doccedilura e inteligecircncia satildeo anunciados a respeito dos golfinhos assim
como tambeacutem em relaccedilatildeo aos filhos satildeo amorosos e apaixonadosrdquo (Τῶν δὲ θαλαττίων
πλεῖστα λέγεται σημεῖα περὶ τοὺς δελφῖνας πραότητος καὶ ἡμερότητος καὶ δὴ καὶ πρὸς
παῖδας ἔρωτες καὶ ἐπιθυμίαι ndash Arist 631a 8-11) Natildeo obstante esta caracteriacutestica doacutecil
do animal a sua destreza na caccedila tambeacutem eacute exaltada Em outra passagem ele acrescenta
Marco V C Colonnelli
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Fala-se tambeacutem coisas incriacuteveis a respeito da rapidez do animal Parece pois
que dentre todos os animais tanto da aacutegua quanto da terra eacute o mais raacutepido e
tambeacutem saltam por cima dos mastros dos grandes navios Isso lhes acontece
sobretudo quando perseguem algum peixe graccedilas a sua necessidade alimentar
Neste momento pois se o peixe fugir perseguem-no ateacute o fundo do mar por
causa de sua fome [] E girando sobre si mesmos lanccedilam-se como uma
flecha desejando percorrer com velocidade uma grande extensatildeo para respirar
Λέγεται δὲ καὶ περὶ ταχυτῆτος ἄπιστα τοῦ ζῴουmiddot ἁπάντων γὰρ δοκεῖ εἶναι
ζῴων τάχιστον καὶ τῶν ἐνύδρων καὶ τῶν χερσαίων καὶ ὑπεράλλονται δὲ
πλοίων μεγάλων ἱστούς Μάλιστα δὲ τοῦτ αὐτοῖς συμβαίνει ὅταν διώκωσί
τινα ἰχθὺν τροφῆς χάρινmiddot τότε γάρ ἐὰν ἀποφεύγῃ συνακολουθοῦσιν εἰς βυθὸν
διὰ τὸ πεινῆν [] καὶ συστρέψαντες ἑαυτοὺς φέρονται ὥσπερ τόξευμα τῇ
ταχυτῆτι τὸ μῆκος διελθεῖν βουλόμενοι πρὸς τὴν ἀναπνοήν (Arist 631a 20-
27)
A caracteriacutestica do golfinho em sua caccedila parece iluminar o curto siacutemile em que
Aquiles toma as presas de guerra A rapidez do ataque do animal o mais raacutepido dentre
todos alude a proacutepria destreza do heroacutei que tambeacutem eacute raacutepido em seu ataque e efetivo em
sua conquista O ataque eacute motivado pela voracidade da fome do animal e o modo como
ele caccedila tambeacutem estaacute representado atraveacutes dos giros que facilmente o animal executa
Aquiles golpeia girando tal como o golfinho Se o amor filial eacute a caracteriacutestica do animal
natildeo se pode negar que o iacutempeto que move o heroacutei eacute a vinganccedila pela morte de Paacutetroclo
demonstrando a amizade que os unia A comparaccedilatildeo com o golfinho eacute salutar em diversos
aspectos mas sobretudo pela inteligecircncia e pela destreza que o animal evoca na passagem
Outro animal natildeo menos mencionado em siacutemiles do que o leatildeo eacute o catildeo de caccedila
Apesar de ser um animal domesticado sua ferocidade na caccedila eacute muito representada em
siacutemiles Aristoacuteteles nos informa a respeito deles que
A raccedila dos catildees de caccedila em Molosso natildeo diferem em nada das raccedilas de outras
localidades mas a raccedila que pastoreia junto aos rebanhos difere em porte e em
coragem contra animais selvagens E diferem em coragem e dedicaccedilatildeo
tambeacutem a raccedila dos catildees gerados do cruzamento entre os de Molosso e da
Lacocircnia
Τὸ δ ἐν τῇ Μολοττίᾳ γένος τῶν κυνῶν τὸ μὲν θηρευτικὸν οὐδὲν διαφέρει πρὸς
τὸ παρὰ τοῖς ἄλλοις τὸ δ ἀκόλουθον τοῖς προβάτοις τῷ μεγέθει καὶ τῇ ἀνδρείᾳ
τῇ πρὸς τὰ θηρία Διαφέρουσι δ οἱ ἐξ ἀμφοῖν ἀνδρείᾳ καὶ φιλοπονίᾳ οἵ τε ἐκ
τῶν ἐν τῇ Μολοττίᾳ γινομένων κυνῶν καὶ ἐκ τῶν Λακωνικῶν (Arist HA 608
a 27-33)
Duas caracteriacutesticas satildeo apontadas no animal a coragem contra animais selvagens
e a sua dedicaccedilatildeo na caccedila Eacute com esse eacutethos que Heitor eacute pintado no canto VIII da Iliacuteada
no momento em que Zeus o favorece na batalha contra os Aqueus
De novo nos Troianos o Oliacutempio excitou a coragem
E eles impeliram os Aqueus direto agrave profunda trincheira
Heitor entre os primeiros movia-se fero em sua forccedila
Como quando um dos catildees de javalis selvagens ou de leotildees
Toca sucessivamente perseguindo-os com patas ceacuteleres
As coxas ou naacutedegas e tem olhos fixos em quem se vira
Assim Heitor perseguia os Aqueus de longos cabelos
Matando sempre o mais recuado enquanto os outros fugiam
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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῍Αψ δ αὖτις Τρώεσσιν ᾿Ολύμπιος ἐν μένος ὦρσενmiddot
οἳ δ ἰθὺς τάφροιο βαθείης ὦσαν ᾿Αχαιούςmiddot
῞Εκτωρ δ ἐν πρώτοισι κίε σθένεϊ βλεμεαίνων
ὡς δ ὅτε τίς τε κύων συὸς ἀγρίου ἠὲ λέοντος
ἅπτηται κατόπισθε ποσὶν ταχέεσσι διώκων
ἰσχία τε γλουτούς τε ἑλισσόμενόν τε δοκεύει
ὣς ῞Εκτωρ ὤπαζε κάρη κομόωντας ᾿Αχαιούς
αἰὲν ἀποκτείνων τὸν ὀπίστατονmiddot οἳ δὲ φέβοντο
(Il VIII 335-343)
Na passagem acima a coragem tambeacutem encontrada no ethos animal eacute insuflada por Zeus
nos Troianos O siacutemile parece de fato retomar a qualidade deste animal em colocar em debandada
animais ferozes Entretanto a diligecircncia e a dedicaccedilatildeo do animal natildeo fica para traacutes na
representaccedilatildeo jaacute que o catildeo tem os olhos fixos nos animais que lhe satildeo superiores em porte fiacutesico
natildeo descuidando daqueles que viram O siacutemile indica sobretudo o cuidado presente no eacutethos do
animal na dispersatildeo das feras reproduzindo a imagem de heroacuteis mais fracos que inspirados pelos
deuses potildeem em debandada heroacuteis mais robustos Nesse sentido apesar da coragem eacute necessaacuteria
muita cautela na perseguiccedilatildeo para que natildeo se invertam as posiccedilotildees entre caccedila e caccedilador
Retomando a relaccedilatildeo entre os animais acima tambeacutem eacute possiacutevel perceber que o
caraacuteter dessas feras natildeo como habitualmente satildeo representadas ou seja como animais
ferozes e corajosos mas como animais que algumas vezes satildeo covardes Neste caso o
leatildeo tatildeo usado em siacutemiles de batalha para denotar violecircncia ferocidade tambeacutem possui
iacutendice de covardia Aristoacuteteles nas Investigaccedilotildees sobre os Animais observa que
Haacute duas raccedilas de Leotildees haacute uma que eacute mais roliccedila juba encaracolada e covarde
outra mais larga de juba ericcedilada e mais corajosa Fogem algumas vezes
entretanto com o rabo entre as pernas como os catildees Jaacute se viu tambeacutem um leatildeo
que estava a ponto de se lanccedilar sobre um javali e como percebeu que esse se
ouriccedilava fugiu Eacute deacutebil contra golpes em sua barriga mas suporta muitos
golpes em outra parte do corpo e tem um cabeccedila forte
Γένη δ ἐστὶ λεόντων δύοmiddot τούτων δ ἐστὶ τὸ μὲν στρογγυλώτερον καὶ
οὐλοτριχώτερον δειλότερον τὸ δὲ μακρότερον καὶ εὐθύτριχον ἀνδρειότερον
Φεύγουσι δ ἐνίοτε κατατείναντες τὴν κέρκον ὥσπερ κύνες ῎Ηδη δ ὦπται
λέων καὶ ὑῒ ἐπιτίθεσθαι μέλλων καὶ ὡς εἶδεν ἀντιφρίξαντα φεύγων ῎Εστι δὲ
πρὸς τὰς πληγὰς εἰς μὲν τὰ κοῖλα ἀσθενής κατὰ δὲ τὸ ἄλλο σῶμα δέχεται
πολλὰς καὶ κεφαλὴν ἔχει ἰσχυράν
(Arist HA 629 b 33- 639 a8)
A informaccedilatildeo que Aristoacuteteles nos traz natildeo soacute ilustra o siacutemile homeacuterico anterior
como tambeacutem demonstra que o encontro entre javalis e leotildees eram decididos por acaso
jaacute que os dois animais satildeo comumente representados na Iliacuteada como animais ferozes
Assim uma passagem pode ser lida de forma interessante quando dois grandes heroacuteis
satildeo postos frente a frente no canto VII Heitor e Aacutejax
Ambos concomitantes retirando as longas lanccedilas com as matildeos
De suacutebito se encontram parecendo leotildees apreciadores de carne
Ou selvagens javalis cuja forccedila eacute inesgotaacutevel
τὼ δ ἐκσπασσαμένω δολίχ ἔγχεα χερσὶν ἅμ ἄμφω
σύν ῥ ἔπεσον λείουσιν ἐοικότες ὠμοφάγοισιν
ἢ συσὶ κάπροισιν τῶν τε σθένος οὐκ ἀλαπαδνόν
(Il VII 255-257)
Atraveacutes desse siacutemile a passagem demonstra como forccedilas equacircnimes os dois heroacuteis
representados aiacute pela forccedila descomunal do javali e pelo apreciador de carne crua o leatildeo
Marco V C Colonnelli
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O choque entre os heroacuteis no resto da passagem natildeo terminaria jaacute que chegada a noite
o combate foi interrompido pelos arautos
O leatildeo em outros siacutemiles quando confrontado por caccediladores e catildees manifesta
cautela em seus ataques Aristoacuteteles descreve o comportamento do leatildeo face a essa
adversidade
Nas caccediladas sendo observado jamais foge ou se apavora mas se por uma
multidatildeo de caccediladores eacute forccedilado a se afastar retira-se passo a passo e com a
face voltada ao inimigo girando-se de pouco em pouco se ele se encontra
entre arbustos foge rapidamente ateacute chegar em uma clareira momento em que
de novo se afasta passo a passo Em campo aberto quando eacute forccedilado a fugir
para uma clareira por uma multidatildeo corre com passos raacutepidos e natildeo pula Sua
corrida eacute contiacutenua e extensa como a do catildeo
᾿Εν δὲ ταῖς θήραις ὁρώμενος μὲν οὐδέποτε φεύγει οὐδὲ πτήσσει ἀλλ ἐὰν καὶ
διὰ πλῆθος ἀναγκασθῇ τῶν θηρευόντων ὑπαγαγεῖν βάδην ὑποχωρεῖ καὶ κατὰ
σκέλος κατὰ βραχὺ ἐπιστρεφόμενοςmiddot ἐὰν μέντοι ἐπιλάβηται δασέος φεύγει
ταχέως ἕως ἂν καταστῇ εἰς φανερόνmiddot τότε δὲ πάλιν ὑπάγει βάδην ᾿Εν δὲ τοῖς
ψιλοῖς ἐάν ποτ ἀναγκασθῇ εἰς φανερὸν διὰ τὸ πλῆθος φεύγειν τρέχει
κατατείνας καὶ οὐ πηδᾷ Τὸ δὲ δρόμημα συνεχῶς ὥσπερ κυνός ἐστι
κατατεταμένονmiddot (Arist HA 629 b 12-20)
Ainda que muito forte a simbologia do leatildeo na Iliacuteada como o animal mais
intreacutepido dos que se encontram na obra eacute interessante tambeacutem notar que em alguns
siacutemiles de fuga o proacuteprio leatildeo o siacutembolo da coragem eacute usado para representar a fuga de
alguns heroacuteis No canto XI Aacutejax recua da seguinte maneira
Zeus pai de seu trono introduziu o medo em Aacutejax
E atocircnito ele estacou aos ombros laccedilou o escudo de sete camadas
E depois de ver uma multidatildeo fugiu semelhante a uma fera
Que se volta continuamente para traacutes alternando em breves passadas
Tal quando sobre um feroz leatildeo do curral
Dos bois afugentam catildees e pastores
E eles o impedem de arrebatar o melhor dos bois
Vigilantes por toda noite mas ele desejoso de carne
Avanccedila com zelo mas nada encontra pois dardos
Numerosos voam de corajosas matildeos em sua direccedilatildeo
E tochas acesas que teme ainda que sedento
E ao amanhecer retira-se com acircnimo aflito
Assim Aacutejax dos Troianos com o coraccedilatildeo inquieto
Afasta-se muito contrariado pois temia pelas naus dos Aqueus
Ζεὺς δὲ πατὴρ Αἴανθ ὑψίζυγος ἐν φόβον ὦρσεmiddot
στῆ δὲ ταφών ὄπιθεν δὲ σάκος βάλεν ἑπταβόειον
τρέσσε δὲ παπτήνας ἐφ ὁμίλου θηρὶ ἐοικὼς
ἐντροπαλιζόμενος ὀλίγον γόνυ γουνὸς ἀμείβων
ὡς δ αἴθωνα λέοντα βοῶν ἀπὸ μεσσαύλοιο
ἐσσεύαντο κύνες τε καὶ ἀνέρες ἀγροιῶται
οἵ τέ μιν οὐκ εἰῶσι βοῶν ἐκ πῖαρ ἑλέσθαι
πάννυχοι ἐγρήσσοντεςmiddot ὃ δὲ κρειῶν ἐρατίζων
ἰθύει ἀλλ οὔ τι πρήσσειmiddot θαμέες γὰρ ἄκοντες
ἀντίον ἀΐσσουσι θρασειάων ἀπὸ χειρῶν
καιόμεναί τε δεταί τάς τε τρεῖ ἐσσύμενός περmiddot
ἠῶθεν δ ἀπὸ νόσφιν ἔβη τετιηότι θυμῷmiddot
ὣς Αἴας τότ ἀπὸ Τρώων τετιημένος ἦτορ
ἤϊε πόλλ ἀέκωνmiddot περὶ γὰρ δίε νηυσὶν ᾿Αχαιῶν
(Il XI 544-557)
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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Diferente dos outros siacutemiles esse mais longo natildeo soacute caracteriza o recuo do heroacutei
em termos de movimentaccedilatildeo e comportamento mas tambeacutem em termos de iacutendices
psicoloacutegicos que abundam no siacutemile O leatildeo aqui ainda eacute visto como um animal corajoso
feroz sedento por carne em suma em sua simbologia completa Entretanto como a
situaccedilatildeo eacute de fuga e caacutelculo o comportamento animal descrito por Aristoacuteteles representa
bem a maneira como Aacutejax se encontra tanto em termos psicoloacutegicos quanto em situaccedilatildeo
Aacutejax recua foge mas sem a pressa dos covardes sua fuga eacute bem descrita pelo
comportamento do leatildeo que recua lentamente sempre se voltando para traacutes Ademais o
nuacutemero de inimigos na liccedila e os dardos em sua direccedilatildeo o forccedilam ao recuo
Quanto ao plano psicoloacutegico Aacutejax que em sua caracterizaccedilatildeo eacute visto sempre como
voluntarioso e corajoso torna-se temeroso por uma intervenccedilatildeo divina E o conflito
gerado por essas disposiccedilotildees psicoloacutegicas eacute bem expresso pelo comportamento calculado
do recuo do leatildeo Neste afastamento tanto o heroacutei quanto o leatildeo estatildeo com acircnimo aflito
e inquieto e por uacuteltimo Aacutejax deixa o campo de modo involuntaacuterio
A caracterizaccedilatildeo neste siacutemile eacute completa Ela cobre tanto a perspectiva de um
desenvolvimento da accedilatildeo quanto o conflito psicoloacutegico que ocorre com o heroacutei Natildeo se
trata aqui de um siacutemile curto em que teriacuteamos de projetar o comportamento animal para
a compreensatildeo da passagem mas de um siacutemile longo em que o desenvolvimento do
comportamento animal eacute tatildeo magistralmente descrito que podemos consideraacute-lo sem
exageros como o proacuteprio iniacutecio de toda ciecircncia empiacuterica encontrada quase quatro seacuteculos
depois em Aristoacuteteles
3 Conclusatildeo
O uso do siacutemile em Homero eacute extremamente complexo Aleacutem dos siacutemiles naturais
produzidos com as potecircncias da natureza haacute tambeacutem os siacutemiles animais que se tornam
muito impactantes sobretudo porque revelam natildeo soacute facetas de movimentaccedilatildeo mas
tambeacutem de caraacuteter que o animal comporta O mundo natural eacute usado por Homero com
maestria a ponto de produzir situaccedilotildees nos combates em que grande parte do que eacute
descrito jaacute eacute bem conhecido pela audiecircncia em contato com o mundo natural circundante
Hoje talvez para reconhecer a forccedila de seus siacutemiles nos seja preciso talvez aleacutem do
conhecimento do mundo arcaico grego um bom entendimento sobre a vida natural sem
o qual a complexidade das cenas na Iliacuteada pareceraacute meramente fantasiosas
REFEREcircNCIAS
ARISTOTLE Historia Animalium Transl by DArcy Wentworth Thompson Oxford
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54 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326
DOI httpsdoiorg1012957principia201946513
OS PROFISSIONAIS DO SOBRENATURAL
MAacuteGOS GOacuteES E PHARMAKEUacuteS
Dulcileide V do Nascimento Braga (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO O presente artigo objetiva ao pressupor que as accedilotildees maacutegicas constituem
praacuteticas passiacuteveis de aprendizado apresentar a anaacutelise da estrutura vocabular dos termos
que classificam os profissionais da magia Busca-se tambeacutem a partir da tradiccedilatildeo miacutetico-
literaacuteria grega demonstrar que tais profissionais tecircm uma praacutetica registrada em diversos
periacuteodos da literatura grega e influenciaram accedilotildees que extrapolam o vieacutes temporal
PALAVRAS-CHAVE Teacutechne maacutegica Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes
THE SUPERNATURAL PROFESSIONALS
MAacuteGOS GOacuteES AND PHARMAKEUacuteS
ABSTRACT This article aims assuming that magical actions constitute practices that can
be learned to present the analysis of the vocabulary structure of the terms that classify
magic professionals It is also sought from the greek mythical-literary tradition to
demonstrate that these professionals have a practice recorded in several periods of greek
literature and influenced actions that go beyond the temporal bias
KEYWORDS Teacutechne magic Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes
Magia do grego mageiacutea segundo Tupet (1976 p X) eacute a praacutetica exercida atraveacutes
de palavras e gestos por um indiviacuteduo que deteacutem certos conhecimentos que o capacitam
a produzir resultados de toda ordem George Luck (1995 p 35) precisa essa definiccedilatildeo ao
afirmar que a magia eacute uma teacutecnica cuja crenccedila se baseia nos poderes localizados na alma
humana e no universo e que pretende impor a vontade humana sobre a natureza ou sobre
os seres humanos
Platatildeo em Leis XI 932e-933b jaacute enumera os principais procedimentos maacutegicos
no seacutec IV aC e a difiacutecil tarefa de analisar essa teacutecnica
Quanto aos malefiacutecios que uns podem causar aos outros por meio de drogas
(pharmaacutekois) jaacute tratamos dos de consequecircncias letais mas ainda natildeo falamos
dos incocircmodos provocados intencionalmente e com premeditaccedilatildeo por meio de
bebidas e alimentos ou com unguentos O difiacutecil na presente exposiccedilatildeo eacute que
haacute no gecircnero humano duas espeacutecies de envenenamento uma eacute a que acabamos
de nos referir e que consiste em causar dano ao corpo pela accedilatildeo natural de
outros corpos a outra por meio de sortileacutegios (magganeiacuteais) encantamentos
(epoidaicircs) e o que se denomina ligadura (katadeacutesesi) chega a persuadir aos
E-mail dulcinascimentobragagmailcom
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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que querem causar danos a terceiros que o conseguiratildeo com tal recurso como
tambeacutem convence a estes uacuteltimos que ningueacutem lhes pode ocasionar tanto mal
como as pessoas conhecedoras de artes maacutegicas O que possa haver de
verdadeiro em tudo isso natildeo eacute faacutecil conhecer nem depois de sabido deixar
aceitaacutevel para ningueacutem dada a desconfianccedila reinante nos espiacuteritos a respeito
de tais assuntos natildeo vale a pena procurar convencecirc-los sempre que
encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera ou em encruzilhadas ou
talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados de que natildeo devem dar a
menor importacircncia a essas praacuteticas pois acerca de tudo isto ningueacutem tecircm
opiniatildeo formada
Eacute relevante destacar que o conceito de pharmakeiacutea utilizado por Platatildeo natildeo se
restringe exclusivamente ao uso de um phaacutermakon (bebidas alimentos ou unguentos)
mas se prolonga atraveacutes de sortileacutegios encantamentos e ligaduras
Platatildeo ainda questiona a eficaacutecia dessas profissionais de magia cujas habilidades
eram difiacuteceis de se averiguar analisar ou compreender sendo a profissional julgada pela
eficiecircncia ou pelos danos causados por sua praacutetica
O fato de atribuir aos praticantes de magia um caraacuteter perigoso por conta do saber
que detinham e a necessidade de que essas praacuteticas fossem controladas por leis remetem-
nos aos diversos processos de impiedade sofridos por mulheres praticantes das teacutechnai
maacutegicas Dentre elas destacamos o nome de trecircs mulheres a hetaira Frinea de Thespis
que foi acusada pelo seu amante Euthias de utilizar lugares sagrados para a praacutetica de
atos iliacutecitos e por ter formado um thiacuteasos1 sem a autorizaccedilatildeo legal dos atenienses a
sacerdotisa Teoris de Lemos acusada de produzir phaacutermaka para curar a epilepsia e
ainda temos o processo sofrido pela sacerdotisa Ninos baseado nas mesmas acusaccedilotildees
direcionadas agraves duas mulheres citadas anteriormente
Tais atitudes eram consideradas desvios agrave ordem instituiacuteda pela poacutelis que
determinava que qualquer accedilatildeo envolvendo contato direto com uma divindade ou com os
mortos requereria a presenccedila de um sacerdote instituiacutedo pela cidade e responsaacutevel por
impedir qualquer praacutetica que pudesse contaminaacute-la de alguma maneira
Maria Regina Candido (2003 p 169) informa-nos sobre as praacuteticas dessas
mulheres
Acreditamos que Teoris de Lemos assim como Frinea de Thespis difundiam
a crenccedila na possibilidade de o homem efetuar de maneira direta a sua relaccedilatildeo
com as potecircncias sobrenaturais e controlar os processos mais complicados que
envolvem a vida como doenccedilas inimizades e maacute sorte de maneira eficaz e
segura Receitavam banhos infusotildees com ervas e oferendas agraves divindades
ctocircnicas estimulavam os praticantes a fazer incursotildees pelo mundo de seres
sobrenaturais como os mortos O mundo dos homens deixava de atender agraves
necessidades do cotidiano e a alternativa era solicitar auxiacutelio das potecircncias
sobrenaturais
Assim como Platatildeo Candido acredita que a puniccedilatildeo relacionada a estas praacuteticas e
a seus praticantes esteja baseada no resultado advindo das mesmas que nem sempre
acarretava proveito agravequele que solicitava um benefiacutecio maacutegico Portanto por temer a
extensatildeo do poder dessas praacuteticas os atenienses puniam seus praticantes na maioria dos
casos mulheres estrangeiras como uma forma de se precaverem
Tambeacutem salientamos que apesar de a praacutetica maacutegica ser em determinadas
circunstacircncias apontada como uma atividade marginal ou uma forma de corromper a
religiatildeo poliacuteade como mencionamos anteriormente os praticantes destas teacutechnai
1 Palavra utilizada para designar um grupo de pessoas que celebram um deus normalmente com festas
cantos e banquetes
Dulcileide V do Nascimento Braga
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detinham um conhecimento e um poder cuja eficaacutecia seria sustentada por uma crenccedila
coletiva e por uma dependecircncia de uma ordem moral que buscava a autoproteccedilatildeo fato
que garantia a continuidade das diversas formas de magia em todas as classes da
sociedade helecircnica como afirma o texto de Luck (1995 p 42)
Pode a magia antiga se basear em ideias ldquoprimitivasrdquo mas a forma em que nos
foi transmitida natildeo era de nenhum modo primitiva Pelo contraacuterio a magia
nesse sentido existiu somente dentro de culturas altamente desenvolvidas e
constituiu uma parte importante delas Natildeo soacute as classes baixas os ignorantes
e incultos criam nela mas ateacute o final da Antiguidade os ldquointelectuaisrdquo
estiveram convencidos de que poderosas forccedilas sobrenaturais atuavam em
torno deles podendo ser controladas por certos meios
Em grego destacamos trecircs termos para designar os detentores das artes maacutegicas
maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
O nome mais comumente utilizado para designar a feiticeira eacute maacutegos cognato de
mageiacutea magia Segundo Pierre Chantraine (1984 v maacutegos) esta palavra constitui um
empreacutestimo iraniano e no plural maacutegoi designa uma das tribos dos Medos como narra
Herocircdoto I 101 ldquoDeioces unificou a naccedilatildeo dos Medos governando-a A Meacutedia era
composta de diferentes povos os Busos Paretacenos Estrucatos Arizantos Budios e os
Magosrdquo
Segundo ainda o relato de Heroacutedoto haacute entre os maacutegoi aqueles que tecircm a funccedilatildeo
de ser ldquointeacuterpretes de sonhosrdquo Podemos verificar esta atribuiccedilatildeo dos magos em Histoacuteria
I 107 Astiacuteages apoacutes ter um sonho solicitou aos magos inteacuterpretes de sonhos que
revelassem o seu significado em I 120 Astiacuteages para decidir a sorte de Ciro mandou
chamar os mesmos magos que anteriormente tinham interpretado o seu sonho em I 128
vemos isso quando Astiacuteages manda empalar os magos inteacuterpretes dos sonhos que o
haviam convencido a deixar Ciro partir No livro VII 37 haacute uma passagem que ratifica a
funccedilatildeo de inteacuterprete dos sonhos aos magos Nela Xerxes apoacutes ver um eclipse solar
acreditando ser um mau pressaacutegio pede aos seus magos que interpretem o fenocircmeno
Segundo Graf (1994 p 30) aleacutem de serem inteacuterpretes dos sonhos os maacutegoi seriam os
responsaacuteveis pelos sacrifiacutecios reais pelos ritos funeraacuterios e pela adivinhaccedilatildeo
O termo maacutegos parece ter adquirido com o advento da filosofia conotaccedilatildeo
negativa sendo entatildeo utilizado para estigmatizar opiniotildees e comportamentos
considerados socialmente desviados a julgar por Heraacuteclito frag 14 que associa maacutegoi
aos ldquovagabundos da noite bacantes mecircnades e aos mistosrdquo e acredita serem esses homens
merecedores de morte posto que praticam accedilotildees iacutempias Graf (1994 32) discute se esta
caracterizaccedilatildeo de Heraacuteclito reproduziria a atuaccedilatildeo dos maacutegoi pois se ela corresponder agrave
realidade este termo semanticamente poderaacute ganhar a conotaccedilatildeo dos termos aguacutertes e
maacutentis pedinte e adivinho utilizados por Platatildeo na Repuacuteblica II-364b ou ser
interpretada a partir da expressatildeo utilizada no papiro de Derveni profissional dos ritos
Com base nesta definiccedilatildeo poderiacuteamos afirmar que Heraacuteclito ao utilizar a expressatildeo
ldquovagabundos da noiterdquo estaria dizendo que os maacutegoi seriam especialistas de toda uma
seacuterie de ritos privados e secretos como nos afirma o proacuteprio Graf (1994 p 33) ldquoPara um
jocircnico do fim do periacuteodo arcaico o maacutegos era semelhante aos especialistas itinerantes
dos cultos privados homens agrave margem da sociedade ridicularizados por uns e
secretamente temidos por outrosrdquo
Outro termo utilizado para nomear o praticante da magia eacute goeacutes termo cognato
do verbo goaacuteo gemer lamentar-se e que inicialmente designava um cantor que proferia
um lamento ritual pelos mortos ou seja o goeacutes eacute aquele que ldquocombina o ecircxtase com um
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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lamento ritual e a cura ritual com a adivinhaccedilatildeordquo (GRAF 1994 p 35) e que manteacutem
uma relaccedilatildeo estreita com o mundo dos mortos
Formadas a partir da mesma raiz encontramos as palavras goeteiacutea magia assim
como goeacuteteuma procedimento maacutegico fascinaccedilatildeo Heroacutedoto (II 33) ao narrar a histoacuteria
de Etearco o amocircnio aplica o termo goacuteetes para informar-nos sobre a crenccedila por parte
dos nasamones de que os habitantes de uma cidade em que entraram eram feiticeiros e
em IV 105 discorre sobre os relatos que afirmam que todos os Neuros eram goeacutetes
Encontramos ainda o termo goacutees associado a epoidos cantor aquele que canta
palavras maacutegicas para curar por exemplo em Euriacutepides As Bacantes 234-235 em que
encontramos os dois termos na fala de Penteu para fazer referecircncia ao estrangeiro que
estaacute propagando o culto a Dioniso ldquoDizem que veio um forasteiro feiticeiro cantor (goacutees
epoidoacutes) da terra da Iacutediardquo
Em Platatildeo Leis 903b quando a personagem chamada Ateniense ao mencionar
que iraacute convencer algueacutem por meio de argumentos diz ldquoMas ainda precisamos
acrescentar algumas histoacuterias a fim de imobilizaacute-lo com o encantamento (epoidocircn) que
lhes eacute proacutepriordquo E da mesma maneira eacute associado a maacutegos no Elogio agrave Helena de
Goacutergias ao evocar o poder da arte goeacutetica que encanta persuade e transforma Essas
teacutecnicas associadas agrave magia segundo o sofista seriam teacutecnicas do engano pois
desvirtuariam a alma e a opiniatildeo com falsas ilusotildees Desse modo Goacutergias defende Helena
dizendo que ela foi viacutetima da persuasatildeo maacutegica de Paacuteris contra a qual natildeo haveria defesa
O terceiro nome eacute pharmakeuacutes ou pharmakoacutes e designa um preparador de drogas
feiticeiro ou por ser cognato de pharmakeuacuteo significa simplesmente aquele que daacute um
remeacutedio ou veneno a algueacutem ou aquele que realiza uma operaccedilatildeo maacutegica Haacute ainda o
termo pharmakiacutes -idos atribuiacutedo agrave mulher que prepara poccedilotildees ou agrave feiticeira Aristoacutefanes
em As Nuvens 749 utiliza esta palavra como qualificativo para a mulher A expressatildeo
gunaicircka pharmakiacuteda encontrada em Aristoacutefanes refere-se a uma feiticeira da Tessaacutelia
que fazia a lua baixar agrave noite prendendo-a em um espelho
Cabe-nos contudo falar um pouco mais da magia das palavras ou do
encantamento Como jaacute mencionamos o termo goeacutes tem sua funccedilatildeo e significado
associado ao termo epoideacute que revela a natureza maacutegica do emprego da palavra e traz em
sua composiccedilatildeo o termo aoideacute canto que por sua vez estaacute relacionado com o termo audeacute
voz humana O grego distingue a linguagem humana audeacute do termo phoneacute que tanto
pode representar a linguagem humana como o som produzido por um animal
Pierre Chantraine (v aeidocirc) assinala que o prefixo epi- destaca o valor maacutegico do
canto assim epoideacute significa ldquocanto ou palavra maacutegicardquo
Eacute notoacuterio entretanto que o canto faz parte da cultura grega seja atraveacutes do maior
aedo de todos os tempos Homero atraveacutes do teatro da vida privada ou da puacuteblica O que
diferencia portanto essas utilizaccedilotildees da arte maacutegica das goeteacutes A diferenccedila estaacute na
estrutura destes encantamentos na tonalidade com que as palavras eram pronunciadas na
junccedilatildeo de siacutelabas estranhas apresentadas como verdadeiras foacutermulas maacutegicas bem como
aos poderes e divindades invocadas Tal estrutura eacute apresentada no seguinte fragmento
ldquoFebo o que auxilia na adivinhaccedilatildeo vem contente filho de Leto arqueiro infaliacutevel
protetor do mal venha aqui neste momento Vem Vaticinador daacute-me teus oraacuteculos
durante a noite allala allala santalala talalardquo (PGM II)
As foacutermulas maacutegicas do ponto de vista formal portanto tinham uma estrutura
preacute-estabelecida (pronunciada e realizadas de uma determinada maneira) que consistem
em uma seacuterie de instruccedilotildees que foram transmitidas atraveacutes do processo de iniciaccedilatildeo Esse
processo de aprendizado pode ser no acircmbito familiar ou em lugares considerados
sagrados
Dulcileide V do Nascimento Braga
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Temos diversos registros de foacutermulas maacutegicas algumas por exemplo
denominadas eroacuteticas objetivam a realizaccedilatildeo do desejo de um solicitante e tecircm
basicamente a mesma estrutura Como exemplo cito o PGM IV 3
Que fulana me ame a mim fulano filho de cicrano que ela natildeo tenha relaccedilotildees
sexuais nem por frente nem por traacutes nem busque prazer com outro homem
somente comigo de modo que fulana natildeo possa beber nem comer nem amar
nem sofrer nem ter sauacutede que natildeo consiga dormir sem mim arrasta a fulana
pelos cabelos as entranhas sua alma em cada momento de sua vida ateacute que
venha ateacute mim e permaneccedila inseparavelmente unida a mim
Neste encantamento se invoca o espiacuterito de um morto ou de uma divindade
normalmente Tiacutefon Selene ou Heacutecate mas quando se trata de magia eroacutetica se invoca
especialmente a deusa Afrodite e seu filho Eros Essas praacuteticas satildeo acompanhadas de um
gesto do solicitante como por exemplo um suspiro diante da mulher desejada um beijo
na lacircmina que conteacutem o pedido ou a simples repeticcedilatildeo do nome de Afrodite
Teoacutecrito no Idiacutelio 2 com 166 versos demonstra-nos como essas foacutermulas eram
utilizadas ao narrar a histoacuteria de como Simeta executa um ritual maacutegico com o intuito de
reconquistar o amor de Deacutelfis um jovem atleta que a trocou por um novo amor Eis alguns
versos do poema
Trecircs vezes faccedilo uma libaccedilatildeo e trecircs vezes Soberana
Pronuncio estas palavras quer seja mulher quer seja homem
Que com ele dorme agora que um tatildeo grande esquecimento invada
Deacutelfis como aquele que ndash ao que dizem ndash fez Teseu esquecer um
Dia Ariadne de belas tranccedilas (43-47)
Essa ldquoteacutecnicardquo das palavras tambeacutem faz parte da tradiccedilatildeo de uma literatura meacutedica
pois aleacutem de apresentar vaacuterios deuses responsaacuteveis pela cura tinha um deus especiacutefico
para a medicina Ascleacutepio e um lugar de cura Epidauro Ascleacutepio tinha um poder de cura
muito grande acreditava-se que ele inclusive podia ressuscitar os mortos O filho de
Apolo curava a uns com as doces palavras da magia (contos poemas e muacutesica) a outros
oferecia poccedilotildees eficazes ou lhes aplicava ervas em torno de seus membros ou cortava o
mal com o ferro para devolver-lhes a sauacutede
A tradiccedilatildeo meacutedica incluiacutea uma mistura de curas que podiam genuinamente ser
observadas e uma medicina popular considerada maacutegica Uma parte dos que exerciam a
medicina maacutegica eram mulheres embora a maioria delas trabalhasse como parteiras
Os templos de Ascleacutepio foram encontrados em todo o mundo mediterracircneo
Nesses templos o processo de cura consistia mais em repouso massagem e uma dieta
modificada do que aquilo que poderiacuteamos chamar de medicina Um meacutetodo de cura que
se tornou conhecido foi a ldquoincubaccedilatildeordquo em que o doente dormia confinado no templo de
Ascleacutepio na esperanccedila de receber uma revelaccedilatildeo daquele deus por meio de sonho
Aqueles que haviam sido curados faziam contribuiccedilotildees especiais para os templos que
frequentemente incluiacuteam reproduccedilotildees de gesso de quaisquer partes de seus corpos que
tivessem sido curadas Estes eram colocados em exibiccedilatildeo como testemunhos do poder de
cura do deus
Um relato que corroborou esse processo foi o de Eacutelio Aristides orador e tambeacutem
um portador de doenccedila crocircnica que no seacuteculo da nossa era em seus Hieroigrave Loacutegoi nos daacute
uma visatildeo da necessidade que as pessoas tinham pela cura bem como os meacutetodos
empregados para esse fim Depois tentar vaacuterios procedimentos meacutedicos Aristides tornou-
se um devoto de Ascleacutepio As curas prescritas para ele nos sonhos incluiacuteam accedilotildees como
banhar-se em um rio agitado durante o inverno derramar lama em si mesmo antes de se
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assentar no paacutetio do templo andar sem sapatos todo o inverno e fazer sangria de vaacuterias
partes do seu corpo
A teacutecnica maacutegica portanto ao longo da histoacuteria foi um recurso utilizado como
tentativa de controlar o mundo natural atraveacutes de forccedilas consideradas sobrenaturais Essa
teacutecnica era ensinada somente aos iniciados e envolviam a arte da adivinhaccedilatildeo o preparo
de feiticcedilos e poccedilotildees a realizaccedilatildeo de rituais e cerimocircnias bem como a maneira correta de
se invocar deuses e espiacuteritos Quando realizados dentro dos templos tais procedimentos
eram considerados parte da religiatildeo Quando realizados fora eram classificado como
magia
A ideia de inferioridade feminina que perpassa toda a histoacuteria natildeo tem registro de
quando comeccedilou Desde a Antiguidade temos concepccedilotildees como a de Pitaacutegoras que
relacionava a mulher ao lado negativo ao dizer que ldquoHaacute um princiacutepio bom que criou a
ordem a luz e o homem e um princiacutepio mau que criou o caos as trevas e a mulherrdquo
(PITAacuteGORAS apud BEAUVOIR 1997 p 6)
Os elos que ligaram a imagem da mulher ao obscuro ao caos e ao infortuacutenio
masculino foram delineados e reforccedilados por figuras arquetiacutepicas como Pandora Lilith
e a proacutepria Eva Da mesma maneira as goeteacutes foram chamadas de charlatatildees quando natildeo
obtinham o resultado desejado ao evocarem os deuses e tentarem por teacutecnicas diversas
atender agrave solicitaccedilatildeo de algueacutem que recorria agraves praacuteticas maacutegicas para resolver problemas
particulares Essas solicitaccedilotildees normalmente envolviam uma accedilatildeo que prejudicaria
algueacutem fato que serviu para atenuar a fama negativa das goeteacutes
Ainda hoje encontramos aspectos desse tipo de comportamento maacutegico presentes
nos procedimentos considerados maacutegico-religiosos ou na proacutepria literatura ficcional que
demonstram a forccedila da seleccedilatildeo vocabular e da sonoridade provocada pela repeticcedilatildeo de
palavras e desejos com o uacutenico objetivo de concretizar desejos nem sempre passiacuteveis de
serem expressos em outras circunstacircncias Este eacute o caso da poesia citada abaixo
A VOLTA DA MULHER MORENA Vinicius de Moraes
Meus amigos meus irmatildeos cegai os olhos da mulher morena
Que os olhos da mulher morena estatildeo me envolvendo
E estatildeo me despertando de noite Meus amigos meus irmatildeos cortai os laacutebios
da mulher morena Eles satildeo maduros e uacutemidos e inquietos
E sabem tirar a voluacutepia de todos os frios
Meus amigos meus irmatildeos e voacutes que amais a poesia da minha alma
Cortai os peitos da mulher morena
Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono
E trazem cores tristes para os meus olhos
Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes
Traze-me para o contato casto de tuas vestes
Salva-me dos braccedilos da mulher morena
Eles satildeo lassos ficam estendidos imoacuteveis ao longo de mim
Satildeo como raiacutezes recendendo resina fresca
Satildeo como dois silecircncios que me paralisam
Aventureira do Rio da Vida compra o meu corpo da mulher morena
Livra-me do seu ventre como a campina matinal
Livra-me do seu dorso como a aacutegua escorrendo fria
Branca avozinha dos caminhos reza para ir embora a mulher morena
Reza para murcharem as pernas da mulher morena
Reza para a velhice roer dentro da mulher morena
Que a mulher morena estaacute encurvando os meus ombros
E estaacute trazendo tosse maacute para o meu peito
Meus amigos meus irmatildeos e voacutes todos que guardais ainda meus uacuteltimos
cantos
Dai morte cruel agrave mulher morena
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O texto de Viniacutecius dialoga com o texto de Platatildeo citado anteriormente em que
faz menccedilatildeo agraves bonequinhas de cera utilizadas para fazer magia A finalidade dessas
bonecas conhecidas posteriormente por bonecas de vodu era gradativamente extinguir
a funcionalidade de determinados oacutergatildeos (cegar calar impedir de andar roer por dentro)
ateacute provocar a morte ldquodaiacute morte cruel agrave mulher morenardquo
O princiacutepio ldquose natildeo eacute meu natildeo seraacute de mais ningueacutemrdquo estaacute impliacutecito em inuacutemeros
encantamentos contidos nos PGM e representa natildeo soacute o desejo daquelea que foi
abandonadoa de se vingar de quem oa abandonou como tambeacutem o desejo de se livrar
daquelea que emocionalmente lhe causa mal
A voz humana eacute portanto o instrumento que potencializa a forccedila do pensamento
concretizando-os atraveacutes das palavras
Portanto a palavra quer cantada pronunciada em forma de versos ou balbuciada
em forma de encantamentos ou foacutermulas invocatoacuterias faz parte do universo sonoro grego
como forma de perpetuar segredos e manifestar um poder
Ainda hoje tentamos aprender sobre esta teacutechne que capacitava o indiviacuteduo a
concretizar desejos entretanto esbarramos nas lacunas temporais miacuteticas e religiosas
cujas entrelinhas foram desfeitas com o passar dos anos e que intencionalmente ou natildeo
desabilitaram a humanidade a obter o desejado com a mesma constacircncia com que eram
obtidas no passado
Os ritos religiosos continuam a utilizar a magia das palavras mas algumas
palavras tornaram-se impronunciaacuteveis e permanecem trancafiadas nas prisotildees silenciosas
do descaso cabe portanto a noacutes pronunciaacute-las ou natildeo reconhecendo a influecircncia que os
profissionais da magia tiveram e tecircm nas accedilotildees atemporais denominadas sobrenaturais
REFEREcircNCIAS
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946515
A AGOGEacute ESPARTANA
Luciene de Lima Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem O
desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo deviam ter
medo de nada sendo resistentes aos ferimentos odiando qualquer demonstraccedilatildeo de
covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Cada espartano tinha de ser um soldado
perfeito e sua maior gloacuteria era morrer em batalha retornar derrotado jamais Desse modo
toda a sociedade e educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases
atribuiacutedas agraves matildees espartanas era ldquoespero que meu filho volte com o seu escudo ou
deitado sobre elerdquo Assim eacute que este artigo tem por escopo discorrer a respeito da agogeacute
espartana que era um tipo de educaccedilatildeo peculiar com fins extremamente belicosos
PALAVRAS-CHAVE Esparta agogeacute guerra Licurgo
THE SPARTAN AGOGEacute
ABSTRACT In Sparta courage was part of the formation of a manrsquos character The
development of courage was a Spartan obsession Spartans should not be afraid of
anything showing themselves resistant to wounds They hated any type of cowardice and
were extremely dedicated to the poacutelis Each Spartan male had to be a perfect soldier and
the ultimate glory was to die in battle to never come back defeated Given this Spartan
society and education was focused on war One famous sentence related to Spartan
mothers was ldquoI hope my son comes back with his shield - or on itrdquo Thus this article has
as its scope the discussion of the practices of Spartan agogeacute their very peculiar
education with extremely bellicose objectives
KEYWORDS Sparta agogeacute war Lycurgus
Esparta tem de pleno direito um lugar na histoacuteria da educaccedilatildeo A
criaccedilatildeo mais caracteriacutestica de Esparta eacute o seu estado e o Estado
representa aqui pela primeira vez uma forccedila educadora no mais vasto
sentido da palavra (Werner Jaeger)
E-mail oliveira-lluolcombr
A agogeacute espartana
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Esparta tambeacutem intitulada Lacedemocircnia era a principal cidade de uma regiatildeo
denominada Lacocircnia na regiatildeo do Peloponeso A cidade localizava-se agraves margens do rio
Eurotas cercada de montanhas a nordeste
Os primeiros invasores da regiatildeo foram os aqueus esses expulsaram os povos preacute-
helecircnicos que ali habitavam e fundaram a cidade de Lacedemocircnia
A migraccedilatildeo doacuterica eacute o uacuteltimo dos movimentos de povos possivelmente
originaacuterios da Europa Central que a partir da Peniacutensula Balcacircnica entraram na Greacutecia e
se misturaram com os povos de outras raccedilas mediterracircneas ali fixadas primitivamente
constituindo assim o povo helecircnico
Os doacuterios ao se apoderarem da maior parte do Peloponeso invadiram Creta e
foram os responsaacuteveis pela colonizaccedilatildeo de algumas ilhas Ciclaacutedicas e Espoacuteradas Os
espartanos satildeo considerados descendentes dos doacuterios1 esses tinham por caracteriacutestica
peculiar a belicosidade
A cidade de Esparta era conhecida por usufruir de uma eunomiacutea ldquouma boa
legislaccedilatildeordquo De acordo com a tradiccedilatildeo Licurgo apoacutes consultar o oraacuteculo de Delfos2 teria
dado agrave Esparta leis para a vida social e econocircmica citem-se por exemplo a proibiccedilatildeo do
comeacutercio e a utilizaccedilatildeo de metais preciosos que foram substituiacutedos por moedas de ferro
instituiu uma educaccedilatildeo rigorosa as refeiccedilotildees coletivas regulamentaccedilatildeo do casamento a
maneira de viver etc
Os espartanos eram considerados xenofoacutebicos Plutarco escreve que eles natildeo
tinham permissatildeo para sair da cidade pois poderiam trazer costumes estranhos e
desordenados para dentro da cidade Os estrangeiros que residiam em Esparta foram
expulsos com exceccedilatildeo daqueles que faziam algo de uacutetil para a cidade Aleacutem do mais natildeo
comercializavam com o estrangeiro nenhum navio de fora entrava no porto para ali
comercializar (PLUTARCO Licurgo XIV LVII In Vidas Paralelas)
Ora foi o historiador Heroacutedoto o primeiro a retratar Licurgo como o idealizador
da eunomiacutea se dedicando ldquoagraves coisas relacionadas com a guerrardquo (HERODOTO Histoacuteria
I) Na Antiguidade jaacute havia duacutevidas sobre a sua eacutepoca e ateacute mesmo sua existecircncia
Os espartanos ndash ao contraacuterio de outros grupos ndash natildeo desenvolveram relaccedilotildees
culturais e comerciais externas sua crescente populaccedilatildeo soacute encontrou um meio de
expandir-se pelas armas
Xenofonte inclusive indaga como Esparta uma das cidades menos povoadas
tornou-se a mais poderosa e famosa dentre toda a Heacutelade (JENOFONTE La Republica
de los Lacedemonios I 1-2)
O vocaacutebulo que os espartanos empregavam para designar ldquoeducaccedilatildeordquo era agogeacute
que proveacutem do verbo aacutego ldquotransporto conduzordquo Os filoacutesofos Platatildeo (PLATAtildeO Leis
1 O helenista Jaeger faz a seguinte ponderaccedilatildeo a respeito dos doacuterios ldquoa raccedila doacuterica ofereceu a Piacutendaro o
seu ideal de homem loiro de alta estirpe tal como era representado natildeo soacute o Menelau de Homero como
tambeacutem o heroacutei Aquiles e de um modo geral os ldquohelenos de loira cabeleirardquo da antiguidade heroica
(JAEGER 2001 p 111) 2 Esparta pelo vieacutes poliacutetico constituiacutea uma diarquia hereditaacuteria real Acredita-se que Licurgo fora
descendente de uma das famiacutelias reais de Esparta a euripocircntida O legislador tinha um irmatildeo
rei mas apoacutes a morte daquele Licurgo subiria ao trono poreacutem o seu irmatildeo havia deixado um
descendente ainda no ventre de sua esposa Leobotas O legislador foi entatildeo tutor de seu
sobrinho Preocupado com a situaccedilatildeo de Esparta jaacute que o sobrinho era uma crianccedila Licurgo
se dirigiu a Delfos para receber conselhos diga-se leis escritas a rheacutetra em relaccedilatildeo a Esparta
(HEROacuteDOTO Histoacuteria I LXV) Sabe-se muita coisa de Licurgo por meio de Plutarco em
Vida de Licurgo
Luciene de Lima Oliveira
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659d) e Aristoacuteteles (ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1321) tambeacutem se referem a agogeacute como
ldquoeducaccedilatildeordquo
Entrementes Marrou emprega o termo ldquoadestramentordquo para traduzir agogeacute e
chama a atenccedilatildeo para o fato de ser ldquouma condiccedilatildeo necessaacuteria senatildeo suficiente para o
exerciacutecio dos direitos ciacutevicosrdquo (MARROU 1966 p 41) O helenista considera que a
educaccedilatildeo em Esparta possui natildeo soacute um lugar especial na histoacuteria da educaccedilatildeo como
tambeacutem na cultura grega (Op cit p 33)
Todos os cidadatildeos espartanos tinham uma participaccedilatildeo ativa na educaccedilatildeo militar
constituindo uma casta aristocraacutetica a priori lembrando a educaccedilatildeo da antiga nobreza
grega Natildeo obstante foi mais tarde estendida agravequeles que natildeo faziam parte da nobreza
Jaeger expotildee que mesmo que Licurgo tenha realmente existido e criado a rheacutetra
ldquoleis escritasrdquo que o poeta Tirteu (4W 1-10) bem a conhecia jaacute no seacuteculo VII aC natildeo
adiantaria muito saber a respeito da origem da educaccedilatildeo espartana conforme Xenofonte
a descreve (JAEGER 2001 p 114)
O pesquisador considera tambeacutem a agogeacute como ldquoo adestramento espartanordquo que
nada mais era do que o ideal do movimento educativo do seacuteculo IV aC (Op cit p 115)
O helenista destaca que a crenccedila de que a educaccedilatildeo espartana era uma preparaccedilatildeo militar
tinha sua origem na Poliacutetica de Aristoacuteteles Platatildeo igualmente jaacute havia definido essa
ideia quando relata nas suas Leis o espiacuterito do Estado de Licurgo (Op cit p 110)
As crianccedilas futuros guerreiros de Esparta eram ldquocriadasrdquo anatropheacute por seus
pais em suas casas ateacute os sete anos de idade depois essa tarefa era assumida pelo
governo sendo treinados para a obediecircncia em situaccedilotildees penosas e difiacuteceis3
Desse modo Licurgo natildeo colocou a educaccedilatildeo nas matildeos nem de mercenaacuterios nem
de servos comprados os pais natildeo poderiam educar seus filhos a seu bel prazer Quando
completavam sete anos eram divididos em grupos a fim de serem educados juntos e
brincassem entre si aprender e estudar uns com os outros Aquele que sobressaiacutesse e fosse
mais valente em combate se tornaria o liacuteder de todo o grupo os outros deveriam obedecer
as suas ordens O legislador considerava a educaccedilatildeo das crianccedilas como a coisa mais bela
que um legislador pudesse estabelecer (PLUTARCO Licurgo XXV XXXIII In Vidas
Paralelas)
Dos sete aos quinze anos eram instruiacutedos nas letras e nos caacutelculos e naturalmente
nos hinos do poeta Tirteu que ressaltavam a bravura e a coragem destemida
Na etapa final entre dezesseis e vinte anos quando denominados de eireacuten um
pouco antes de entrarem no serviccedilo da poacutelis eram treinados a manusear as armas na luta
com lanccedilas e espadas no arco e flecha Com isso a carga dos exerciacutecios e as operaccedilotildees
militares simuladas nas montanhas ao redor da poacutelis eram aumentadas
Plutarco daacute o seguinte testemunho
Quanto agraves letras aprendiam somente o necessaacuterio e em suma todo o
aprendizado consistia em bem obedecer suportar o trabalho e obter a vitoacuteria
em combate Por essa razatildeo agrave medida que avanccedilavam em idade aumentavam-
lhes tambeacutem os exerciacutecios corporais raspavam-lhes os
cabelos faziam-nos andar descalccedilos e os constrangiam a brincar juntos a maior
parte do tempo inteiramente nus depois quando chegavam agrave idade de doze
anos natildeo mais usavam saios daiacute por diante pois todos os anos lhes davam
somente uma tuacutenica simples o que era causa de andarem sempre sujos e
3 Plutarco daacute testemunho que estrangeiros se dirigiam ateacute a Lacocircnia para contratarem amas para criarem
seus filhos (PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)
A agogeacute espartana
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ensebados como aqueles que natildeo se lavavam nem se untavam senatildeo em certos
dias do ano quando os faziam gozar um pouco dessa doccedilura Deitavam e
dormiam juntos sobre enxergas que eles proacuteprios fabricavam com pontas dos
juncos e caniccedilos que cresciam no rio Eurotas os quais eles proacuteprios deviam ir
colher e quebrar somente com as matildeos sem nenhuma ferramenta mas no
inverno ajuntavam a isso e misturavam no meio o que se chama Lycophanos
porque parece que essa mateacuteria tem em si um pouco de calor (PLUTARCO
Licurgo XXIV In Vidas Paralelas)
A agogeacute propriamente dita se iniciava aos sete anos e finalizava ateacute os vinte anos
compreendendo portanto um periacuteodo de treze anos Havia a supervisatildeo de um
paidonoacutemos uma espeacutecie de magistrado especial
Marrou oferece a seguinte divisatildeo da agogeacute agrupados em trecircs ciclos (MARROU
1966 p 42)
Oitavo ano ao deacutecimo primeiro ano
a) rhobiacutedas (termo obscuro)
b) promikkizoacutemenos (meninote)
c) mikki(khi)zoacutemenos (menino)
Deacutecimo segundo ano ao deacutecimo quinto ano
a) pratopaacutempais (rapaz jaacute maduro de primeiro ano)
b) hatropaacutempais (rapaz jaacute maduro de segundo ano)
c) melleiacuteren (futuro irene)
d) melleiacuteren (irene de segundo ano)
Deacutecimo sexto ano ao vigeacutesimo ano
a) eireacuten de primeiro ano
b) eireacuten de segundo ano
c) eireacuten de terceiro ano
d) eireacuten de quarto ano
e) proteicircras (irene-chefe)
O historiador francecircs pontua que os meninos espartanos eram divididos em
unidades (iacutelai ou ageacutelai) comandadas pelos jovens maiores os proteicircrai de vinte anos
que eram os mais velhos dentre os irenes (Op cit p 43)
Plutarco lembra que os espartanos ldquonatildeo usam de muita linguagemrdquo eram
lacocircnicos ldquopessoas de poucas palavrasrdquo como resultado natildeo se expressavam com
propriedade mas nada os impedia de serem bem compreendidos pelos ouvintes O
bioacutegrafo sublinha que o proacuteprio Licurgo era breve no falar Interessante destacar que era
proibido entrar em Esparta algum retoacuterico para ensinar a arte da persuasatildeo ao povo Natildeo
obstante os espartanos eram exiacutemios compositores de belos cacircnticos em que incitavam
a coragem (PLUTARCO Licurgo XIV XL XLIV In Vidas Paralelas)
Quando estavam reunidos em Conselho os cidadatildeos espartanos natildeo poderiam
deliberar indagar seus superiores muito menos apresentar alguma opiniatildeo lhes era
permitido somente aprovar ou reprovar os informes propostos pelos reis ou senadores
(Op cit X)
O futuro guerreiro tinha de ter por haacutebitos a modeacutestia andar nas ruas com as
matildeos dentro do manto e caminhar em silecircncio sem dirigir o olhar a nenhum lugar apenas
olhando em direccedilatildeo a seus proacuteprios peacutes O historiador Xenofonte compara o jovem
Luciene de Lima Oliveira
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espartano que anda em silecircncio e de olhos baixos a uma estaacutetua de virgem
(JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)
Entre vinte e trinta anos os espartanos eram obrigados a se casar mas a vida
familiar natildeo era lhes permitida soacute depois dos trinta podiam deixar de dormir nos
acampamentos militares
A fim de dotar de coragem os seus infantes em Esparta havia a kryptiacutea um
ldquoesquadratildeo de extermiacuteniordquo que estimulava os jovens selecionados a caccedilarem sozinhos ou
em grupos os hilotas ou seja os escravos que por um acaso andassem desgarrados ou
que de alguma forma representassem pelo seu vigor fiacutesico uma ameaccedila agrave seguranccedila da
poacutelis Os hilotas quando localizados eram vitimados pela espada ou pela lanccedila armas
que o grupo de jovens sempre trazia consigo (PLUTARCO Licurgo LVIII In Vidas
Paralelas)
Os jovens espartanos estavam sempre forccedilando seus corpos ao limite cultivando
a excelecircncia da forccedila fiacutesica Aristoacuteteles destaca que de entre as cidades que mais se
preocupavam com a educaccedilatildeo infantil a maioria procurava aperfeiccediloaacute-la por meio de uma
disposiccedilatildeo atleacutetica O filoacutesofo sublinha que os espartanos davam para os futuros
guerreiros trabalhos aacuterduos como se essa atitude fosse vista como adequada para o culto
da bravura (ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1338b 10-15)
O estagirita ressalta que natildeo eacute contra a ginaacutestica mas deve-se praticaacute-la com
moderaccedilatildeo ateacute a adolescecircncia evitando exerciacutecios forccedilosos pois podem resultar em
prejuiacutezos para o corpo Daacute como exemplo que de entre os vencedores dos jogos
Oliacutempicos tem apenas dois ou trecircs espartanos vitoriosos Acredita que isso se daacute ao fato
de terem sido sujeitos desde crianccedila a treinos fiacutesicos extremos que acabaram por exaurir
suas forccedilas (Op cit II 1338b 35-40 1339a 1-5)
Aristoacuteteles sublinha que toda a organizaccedilatildeo legislativa dos espartanos tinha como
objetivo uma forma de virtude o valor guerreiro uma vez que eacute uacutetil para dominar Como
resultado disso o vigor e a forccedila dos espartanos foram preservados enquanto estiveram
em guerra mas houve um decliacutenio a partir do momento que alcanccedilaram a supremacia Na
verdade natildeo sabiam viver em paz aleacutem do mais natildeo haviam se exercitado em outra
disciplina superior agrave arte da guerra (Op cit II 1271b 1-10)
Jaeger sustenta que na vida dos espartanos por meio de uma educaccedilatildeo
diferenciada percebe-se um ideal de educaccedilatildeo anaacutelogo ao que Platatildeo propotildee na
Repuacuteblica A propoacutesito Platatildeo e outros teoacutericos da educaccedilatildeo posteriores tiveram Esparta
por paradigma em muitos aspectos (JAEGER 2001 p 112)
A necessidade de imposiccedilatildeo dos espartanos sobre a grande maioria de hilotas
(escravos que natildeo possuiacuteam direito algum) que a qualquer momento poderiam se
rebelar teve muita importacircncia na formaccedilatildeo da agogeacute espartana
Ora com as muitas conquistas espartanas havia sempre a iminecircncia de uma
revolta por parte dos povos conquistados Eacute fato que os povos conquistados constituiacuteam
em maior nuacutemero do que os conquistadores espartanos
Acredita-se que no final do seacuteculo VI aC depois da conquista da Messecircnia o
estado espartano completou sua organizaccedilatildeo transformando-se em um verdadeiro
ldquoacampamento militarrdquo permanente
Os resquiacutecios arqueoloacutegicos atestam que ateacute o seacuteculo VI aC Esparta era
dominada por uma aristocracia de grandes proprietaacuterios Devido agraves duas grandes guerras
pela conquista da Messecircnia houve um aumento consideraacutevel daqueles que poderiam
participar da funccedilatildeo guerreira e que se beneficiaram pela distribuiccedilatildeo de lotes de cleroacutei
A agogeacute espartana
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da regiatildeo conquistada Por outro lado os messecircnios foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de
hilotas A respeito da segunda guerra da Messecircnia4 Mosseacute escreve
Esparta parece ter se fechado em si mesma com a decadecircncia do artesanato e
o desaparecimento do uso da moeda de prata Diante da massa de populaccedilotildees
dependentes (hilotas da Lacocircnia e da Messecircnia periecos da Lacocircnia motacos
neodamodos etc) a classe guerreira dos homoioiacute dos semelhantes formada
pelo conjunto dos cidadatildeos espartanos passa a ser um grupo privilegiado que
vive recluso em perpeacutetuo estado de defesa Essa eacute a origem da vida austera que
tanto impressionava seus contemporacircneos e permitia a Esparta desempenhar
papel preponderante no mundo grego (MOSSEacute 2004 p 121) Com efeito
muitas disposiccedilotildees referentes agrave educaccedilatildeo e ao casamento natildeo deixam de evocar
os programas educativos elaborados por Platatildeo na Repuacuteblica e nas Leis Platatildeo
teria tomado o modelo espartano como inspiraccedilatildeo ou nos seacuteculos seguintes
esse modelo teria sido construiacutedo a partir das disposiccedilotildees imaginadas por
Platatildeo para suas cidades ideais Essa eacute uma pergunta de resposta difiacutecil O que
eacute inquestionaacutevel eacute o caraacuteter peculiar da educaccedilatildeo espartana essa agogeacute que
espantava os atenienses da eacutepoca claacutessica especialmente na medida em que
tambeacutem atingia as mulheres (Op cit p 189)
Ressalte-se que a guerra eacute um dos fenocircmenos a ser evitado mas que
frequentemente ocorre nas sociedades humanas Em O Homem Grego obra organizada
por Vernant o ensaio de Garlan denominado ldquoO Homem e a Guerrardquo eacute relevante pois
de acordo com Garlan embora o homem grego ldquonatildeo pudesse ser definido como algueacutem
que gosta da violecircncia pela violecircnciardquo isto eacute como um homo militaris muitos satildeo os
conflitos em que eles se envolveram sobretudo na eacutepoca arcaica e claacutessica Para Garlan
eacute ldquocomo se a paz fosse desde o primeiro momento considerada precaacuteria ou mesmo
concebida como uma espeacutecie de treacutegua prolongadardquo (GARLAN apud VERNANT 1994
pp 49-50)
Em uma sociedade predominantemente guerreira como a espartana a covardia de
um guerreiro era vista com repugnacircncia assim a desonra em Esparta acompanhava os
covardes sendo preferiacutevel a morte a uma vida infame e desonrosa Eacute um guerreiro que
natildeo merecia nenhuma timeacute ldquohonrardquo pois tem como aliados a atimiacutee ldquodesonrardquo e a
kakoacutetes ldquocovardiardquo Consequentemente este homem eacute algueacutem sem aidoacutes ou seja
algueacutem que natildeo eacute digno ldquode respeitordquo ldquode consideraccedilatildeordquo Haacute pois uma conexatildeo clara
entre aidoacutes ldquorespeitordquo e timeacute ldquohonrardquo na sociedade espartana
O binocircmio aidoacutes ldquorespeitordquo e aiskhryacutene ldquovergonhardquo satildeo vocaacutebulos que estatildeo
presentes no estatuto ciacutevico de Esparta como pontua Nicole Loraux (LORAUX 1989 p
82)
O desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo
poderiam ter medo de nada deveriam ser resistentes aos ferimentos odiando qualquer
4 Houve duas guerras entre Messecircnia e Esparta Na primeira os espartanos sob a lideranccedila do rei
Theopompo foram vencedores Os messecircnios eram comandados por Aristomenes Segundo Heroacutedoto
(HEROacuteDOTO Histoacuteria VIII 1312) o rei Theopompo pertencia agrave oitava geraccedilatildeo antes de Leoticidas
que governou de 491 a 469 aC Depois de cinquenta anos de opressatildeo os messecircnios se revoltaram com
a ajuda de aliados de Argos Arcaacutedia e Pisa Essa rebeliatildeo eacute conhecida como Segunda Guerra da
Messecircnia Campbell afirma que eacute difiacutecil estabelecer a cronologia das duas guerras (CAMPBELL 1967
p 169) Costuma-se contudo fixar o periacuteodo da primeira guerra em torno da segunda metade do seacuteculo
VIII aC mais precisamente entre 735 e 715 aC e a segunda guerra que teria durado aproximadamente
vinte e dois anos na segunda metade do seacuteculo VII aC por volta de 640-650 aC
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demonstraccedilatildeo de covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Toda a sociedade e
educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases atribuiacutedas agraves matildees
espartanas era ldquoespero que o meu filho volte com o seu escudo ou deitado sobre elerdquo
Cada espartano era formado para ser um soldado perfeito e sua maior gloacuteria era
morrer em batalha retornar derrotado jamais Digno de nota satildeo os versos tirteanos
ldquoLutemos com ardor por esta terra e pelos filhos morramos sem pouparmos nossas
vidasrdquo (10 W 13-14)
Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem A
propoacutesito Platatildeo era tambeacutem a favor da valentia de um guerreiro no campo de batalha
(PLATAtildeO Repuacuteblica 468e)
Os dois primeiros versos do fragmento 10W de Tirteu pontua dessa mentalidade
de morrer pela poacutelis ldquoeacute belo morrer caindo entre os combatentes das primeiras filas um
homem valente ao combater por sua terrardquo (10W 1-2)
A morte eacute bela quando eacute a de um heroacutei que morre pela cidade Esta ideia daacute agrave
morte o sentido de um ldquosacrifiacuteciordquo do proacuteprio cidadatildeo em prol de um bem mais alto ldquoa
morte gloriosardquo No mesmo fragmento aliaacutes o poeta contrasta a morte gloriosa no campo
de batalha com a vida desventurada e errante do homem que natildeo cumpriu na guerra seus
direitos de cidadatildeo e se viu na necessidade de deixar a cidade (10W 9-12)
A linguagem de Tirteu eacute em grande parte herdeira de tradiccedilatildeo eacutepica De um modo
geral as suas elegias demonstram um amplo conhecimento do vocabulaacuterio da Iliacuteada e da
Odisseia quando descreve a luta sangrenta e o heroiacutesmo guerreiro O ideal espartano eacute
proacuteximo da epopeia no que diz respeito agrave bravura apesar de pertencerem a tempos
literaacuterios diferentes
Jaeger destaca que os versos tirteanos eacute o primeiro testemunho do ideal poliacutetico e
guerreiro tendo mais adiante a sua realizaccedilatildeo na totalidade da educaccedilatildeo espartana ldquoos
seus poemas deixam ver claramente que a educaccedilatildeo espartana tal como as eacutepocas
seguintes a conheceram natildeo era uma coisa acabada mas estava em processo de
formaccedilatildeordquo (JAEGER 2001 p 115)
Qualquer fraqueza demonstrada era vista como pusilanimidade algo
veementemente repelido do seio daquela sociedade
Natildeo comeceis a fuga vergonhosa nem o medo
mas tornai grande e ardoroso o coraccedilatildeo no peito
natildeo ameis a vida ao combaterdes contra homens (10 W 16-18)
O modo de vida era regulamentado em funccedilatildeo das necessidades do Estado e
tinham consciecircncia de natildeo pertencerem a si proacuteprios mas agrave poacutelis
Em suma estimavam todos que natildeo tinham nascido para servirem a si mesmos
antes para servir o paiacutes e portanto se outra coisa natildeo lhes era recomendada
continuavam sempre a ir ver o que faziam os meninos e a ensinar-lhes alguma
coisa que resultasse em utilidade puacuteblica ou ainda a aprender eles proacuteprios
com os que eram mais idosos do que eles (PLUTARCO Licurgo LI In
Vidas Paralelas)
Licurgo teria imposto que os espartanos tivessem uma vida de austeridade por
exemplo diz-se que eram obrigados a fazerem as refeiccedilotildees em comum em torno de um
caldo negro (PLUTARCO Licurgo XXI In Vidas Paralelas)
Plutarco daacute testemunho dessa coletividade
A agogeacute espartana
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Em suma acostumou os cidadatildeos a natildeo quererem e natildeo poder jamais viver soacutes
antes serem por assim dizer colados e incorporados uns com os outros e a se
acharem sempre juntos como as abelhas em torno dos superiores saindo de
si mesmos quase por um arrebatamento de amor para com o paiacutes e de desejo
de honra para servir inteiramente ao bem da coisa puacuteblica (Op cit LIV In
Vidas Paralelas)
Eacute bom lembrar que Licurgo ordenou que os espartanos fizessem as mesmas
refeiccedilotildees juntos era proibido se alimentarem agrave parte e em particular em grandes
banquetes (Op cit XV In Vidas Paralelas)
Conveacutem citar Aristoacuteteles ldquoacreditamos que a amizade eacute o maior dos bens para as
cidades porquanto pode ser o melhor meio de evitar revoltasrdquo (ARISTOacuteTELES Poliacutetica
II 1262b 7-8)
O estagirita faz uma criacutetica a respeito das refeiccedilotildees comuns intituladas de phidiacutetia
Para o filoacutesofo essas refeiccedilotildees deveriam ser pagas pelo tesouro puacuteblico tal qual em Creta
Entretanto em Esparta os cidadatildeos tinham de fazer uma contribuiccedilatildeo ateacute os pobres que
tinham dificuldades de arrumar dinheiro para essas refeiccedilotildees O objetivo de Licurgo era
que essas refeiccedilotildees fossem democraacuteticas ldquoa maneira espartana tradicional de fixar o
limiar da cidadania consiste em privar de participaccedilatildeo o que natildeo pode pagar a taxa das
refeiccedilotildees comunsrdquo (Op cit II 1271a 26-30)
De acordo com o historiador Xenofonte nas accedilotildees de guerra os lacedemocircnios
(espartanos) usavam traje vermelho para que natildeo se percebessem as manchas de sangue
Se morressem em combate eram enterrados com essas tuacutenicas (JENOFONTE La
Republica de los Lacedemonios)5
Na agogeacute espartana a sophrosyacutene (temperanccedila moderaccedilatildeo autocontrole) tem um
caraacuteter social sendo um comportamento imposto regulamentado marcado pelo
comedimento que o jovem deve observar em todas as circunstacircncias comedimento em
seu andar em seu olhar em suas expressotildees comedimento diante das mulheres em face
dos mais velhos comedimento aos prazeres agrave bebida
Desse modo o futuro guerreiro era exercitado em dominar seus extintos Na
verdade a agogeacute era precisamente destinada a experimentar esse poder de domiacutenio de
si A sophrosyacutene submete assim cada indiviacuteduo em suas relaccedilotildees com o proacuteximo em
contraste com a hyacutebris a ldquodesmedidardquo a ldquotransgressatildeordquo
O ideal da sophrosyacutene era o nada em excesso haacute uma tendecircncia na qual a
sophrosyacutene e a hyacutebris se encarnam respectivamente nos velhos e nos jovens (ideia que
seraacute mais clara nos traacutegicos)
A bela morte espartana deve ter ligaccedilatildeo com a cidadania ou melhor um criteacuterio
de cidadania sendo uma manifestaccedilatildeo ciacutevica (12W 18 34) Uma das diferenccedilas mais
acentuadas entre o mundo de Tirteu e dos poemas homeacutericos estaacute nas relaccedilotildees do
indiviacuteduo com a comunidade pois os guerreiros de Homero lutam pela gloacuteria individual
enquanto os heroacuteis de Tirteu combatem pela comunidade por suas famiacutelias e
dependentes Assinale-se que haacute na Iliacuteada XV 494-9 um episoacutedio em que Heitor estaacute
claramente lutando pela sobrevivecircncia de Troia
5 Para Jaeger a Constituiccedilatildeo (Repuacuteblica) dos Lacedemocircnios de Xenofonte eacute resultado do romantismo ldquomeio
filosoacutefico meio poliacutetico do seacuteculo IV aC o qual via no Estado espartano uma espeacutecie de revelaccedilatildeo
poliacutetica primordialrdquo (JAEGER 2001 p 109)
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A cidade espartana condena o ato de bravura de um soacute combater e permanecer
corajosamente no seu lugar na falange natildeo ceder agrave vontade de fugir encorajar seu
companheiro de linha eacute um bem comum para a cidade e para todo o povo
Heroacutedoto disserta a respeito do espartano Aristodamos que estava entre os
trezentos lacedemocircnios que tinham defendido as Termoacutepilas ele foi o uacutenico sobrevivente
mas preocupado em livrar-se do oproacutebio que os espartanos infligiram a essa
sobrevivecircncia o guerreiro saiu de seu posto do seu lugar na falange e procurou e
encontrou a morte em Plateia ao realizar faccedilanhas extraordinaacuterias (HEROacuteDOTO
Histoacuteria IX 71)
Aleacutem do exemplo de Aristodamos o historiador daacute testemunho de outro episoacutedio
nas Termoacutepilas em que os combatentes saindo de seus postos lutavam de maneira furiosa
em torno do corpo de Leocircnidas Quando as espadas dos espartanos foram quebradas eles
se defenderam com as matildeos e os dentes (Op cit VII 225) em um estado de furor
belicoso que se assemelhava aos heroacuteis homeacutericos Diomedes e Aquiles Os espartanos
abandonaram a sophrosyacutene e estavam claramente em estado de lyacutessa o que a cidade natildeo
tolerava
Todavia apesar de sua valentia os espartanos natildeo lhe concederam as honras
fuacutenebres devidas aos melhores isto eacute recusaram-lhe a aristeacuteia porque violara a lei de
permanecer em seu lugar na falange Possuiacutedo pela lyacutessa por um furor guerreiro
combateu furiosamente fora de seu posto
A virtude guerreira natildeo pertence agrave ordem do thymoacutes do impulso e sim da
sophrosyacutene a temperanccedila um domiacutenio muito grande para que o guerreiro pudesse refrear
seus impulsos e natildeo perturbasse a ordem da formaccedilatildeo em falange
A eacutetica militar espartana proiacutebe o estado de furor de lyacutessa Vernant destaca que a
cidade rejeita atitudes tradicionais da aristocracia que tem por costume a exaltaccedilatildeo do
prestiacutegio do poder dos indiviacuteduos e de colocaacute-los acima do comum satildeo considerados
como um descomedimento uma hyacutebris de igual modo o furor guerreiro e a busca no
combate de uma gloacuteria particular (VERNANT 2002 p 69)
Ateacute os sessenta anos os espartanos estavam sujeitos a participar das guerras
pertenciam ao Estado ate agrave morte As moccedilas natildeo eram tratadas de modo diverso acima
da famiacutelia vinha a poacutelis
Xenofonte destaca que Licurgo ordenou que o sexo feminino exercitasse tanto
quanto o masculino A mulher espartana tambeacutem tinha uma formaccedilatildeo regulamentada
cuja muacutesica a danccedila e o canto natildeo possuiacuteam tanta importacircncia quanto a ginaacutestica e o
esporte (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios 1 4)
As espartanas estavam a serviccedilo da cidade quando solteiras praticavam
exerciacutecios que a tornavam forte e saudaacutevel a fim de que seus corpos se tornassem riacutegidos
ao se exercitarem havia exerciacutecios de correr de lutar de jogar a barra e de lanccedilar o dardo
com o objetivo de gerarem filhos igualmente robustos e para suportarem as dores do
parto (PLUTARCO Licurgo XXV In Vidas Paralelas)
Havia a ideia entre os homens de que pai e matildee fortes gerariam igualmente filhos
mais vigorosos Por isso quando casada a missatildeo da mulher era dar ao Estado filhos
fortes grandes guerreiros e bons cidadatildeos Percebe-se que haacute uma preocupaccedilatildeo de
eugenia dentro da sociedade espartana
Os receacutem-nascidos eram observados e se constatada qualquer imperfeiccedilatildeo essas
crianccedilas consideradas ldquodefeituosasrdquo que tivessem qualquer tipo de doenccedila ou
deformidade eram sumariamente assassinadas sendo atiradas de um precipiacutecio Esses
A agogeacute espartana
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receacutem-nascidos natildeo estariam prontos para defender a cidade-estado e consequentemente
natildeo seriam bons guerreiros na fase adulta6
Entrementes depois que a crianccedila nascia [] mas se lhes parecia feia
disforme ou franzina mandavam atiraacute-la num precipiacutecio a que vulgarmente se
dava o nome de Apothetes isto eacute depositoacuterios pois tinham a opiniatildeo de que
natildeo era expediente nem para a crianccedila nem para a coisa puacuteblica que ela
vivesse visto como desde o nascimento natildeo se mostrava bem constituiacuteda para
ser forte satilde e rija durante toda a vida E por esse motivo as proacuteprias mulheres
que as governavam natildeo as lavavam com aacutegua simples como se faz por toda
parte mas com uma mistura de aacutegua e vinho e por esse meio experimentavam
se a compleiccedilatildeo e a tecircmpera de seus corpos era boa ou maacute porque dizem eles
que as crianccedilas sujeitas agrave epilepsia ou entatildeo catarrosas e doentias natildeo podem
resistir nem tolerar esse banho de vinho mas definham e caem em langor e
ao contraacuterio as que tecircm sauacutede se tornam mais rijas e mais fortes
(PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)
Aristoacuteteles sublinha que Licurgo com o objetivo de fazer com que os espartanos
fossem numerosos encorajava-os a terem o maior nuacutemero possiacutevel de filhos haacute a lei de
que o pai de trecircs filhos estaacute isento do serviccedilo militar e o de quatro livre de impostos
(ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1270b 1-5)
A renomada helenista Claude Mosseacute infere que seria interessante acreditar que
Esparta passou por uma seacuterie de etapas entre a adoccedilatildeo da falange hopliacutetica seacuteculo VII
aC e o ldquofechamento da cidade em si mesmardquo iniacutecio seacuteculo IV aC Aleacutem do mais a
rheacutetra que fora atribuiacuteda a um possiacutevel legislador Licurgo pode ter sido resultado de
uma possiacutevel abertura da falange aos membros do decircmos cuja participaccedilatildeo nas tomadas
de decisatildeo era reconhecida Em relaccedilatildeo agrave partilha de terras pode ter acontecido depois
do teacutermino da segunda guerra da Messecircnia (uacuteltimo quarto do seacuteculo VII aC) e a agogeacute
e o militarismo da cidade podem ter ocorridos no princiacutepio do seacuteculo VI aC tendo por
principal objetivo a defesa da cidade-estado espartana contra os povos da Lacocircnia e
Messecircnia que foram escravizados
A Esparta do seacuteculo VII aC estaacute empenhada em um movimento que leva as
aristocracias das diversas cidades ao luxo Depois a ruptura se daacute entre o final do seacuteculo
VII aC e o iniacutecio do VI aC concentra-se em si mesma repudiando a ostentaccedilatildeo da
riqueza proibindo o uso dos metais preciosos depois a moeda de ouro e de prata (o
dinheiro era feito de um ferro de maacute qualidade que natildeo deveria ser fundido em grandes
quantidades) permanece fora das correntes intelectuais fecha-se a tudo o que eacute
intercacircmbio com o estrangeiro comeacutercio atividade artesanal voltam-se sua preocupaccedilatildeo
para a guerra em defesa da poacutelis (MOSSEacute 2004 p 189-190)
Qualquer riqueza natildeo poderia ser exposta em puacuteblico os artesatildeos natildeo
confeccionavam luxos desnecessaacuterios como tapetes e adornos mas faziam muito bem
apenas o baacutesico pois a riqueza seria a causa de muitos males Xenofonte escreve que os
espartanos natildeo se adornavam com riquezas de vestuaacuterios exceto com a boa forma fiacutesica
de seus corpos (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)
Pode-se conceituar a agogeacute como uma educaccedilatildeo estatal com fins extremamente
belicosos que se estendia da infacircncia ateacute a adolescecircncia Nessa educaccedilatildeo os futuros
6 Esse costume natildeo ocorreu soacute em Esparta a Lei das XII taacutebuas na Roma antiga autorizava os patriarcas a
matar seus filhos fraacutegeis ou deficientes
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combatentes aprendiam as artes militares as manobras em campos de batalha e a ser
destemidos diante do inimigo
Infere-se que o principal objetivo da agogeacute era formar poderosos guerreiros para
a defesa da poacutelis Para isso uma riacutegida educaccedilatildeo foi imposta aos jovens e uma peculiar
maneira de viver aos adultos
REFEREcircNCIAS
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SUMAacuteRIO
Apresentaccedilatildeo 6
Homem e mulher os criou
Isabel Arco Verde Santos 7
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
Carlos Eduardo Schmitt 13
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
Bruno Torres dos Santos 23
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher
alencariano
Heitor Victor 37
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
Marco Valeacuterio Classe Colonnelli 45
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
Dulcileide V do Nascimento Braga 55
A agogeacute espartana
Luciene de Lima Oliveira 63
DOI httpsdoiorg1012957principia201946484
APRESENTACcedilAtildeO
Em seu primeiro volume de 2019 a Revista Principia traz agrave luz artigos
contemplando natildeo apenas o olhar para os princiacutepios de nossa cultura greco-romana-
judaico-cristatilde mas um diaacutelogo entre passado e presente
No primeiro artigo por exemplo temos uma retomada e uma anaacutelise reflexiva
sobre os termos hebraicos na narrativa da criaccedilatildeo da mulher segundo a Biacuteblia Com esta
reflexatildeo a Profa Me Isabel Arco Verde Santos (UERJ) nos leva a rever as questotildees de
gecircnero na atualidade para quiccedilaacute diminuiacute-las
No segundo artigo selecionado passando ao domiacutenio latino o Prof Me Carlos
Eduardo Schmitt (doutorando da USP) se debruccedila sobre a vida e mui extensa obra do
orador Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio no contexto do reinado de Valentiniano I
Em seguida acompanhamos o pesquisador bolsista da CAPES e doutorando da
UFRJ Bruno Torres dos Santos em sua anaacutelise comparada sobre o real trabalho do
bioacutegrafo de imperadores romanos Suetocircnio e o uso que dele fez Machado de Assis em
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Teria Machado partido do pressuposto de que tal
comparaccedilatildeo nunca seria feita
Seguindo para o domiacutenio grego outra anaacutelise comparada nos aguarda o Prof
Heitor Victor mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada da UERJ
analisa as marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar
utilizando-se para isso de diaacutelogo com texto de Walter Benjamin
Mergulhando ainda mais na cultura helecircnica o Prof Dr Marco Valeacuterio Colonnelli
(UFPB) nos demonstra o potencial de concisatildeo dos siacutemiles homeacutericos conforme
aparecem na Iliacuteada atraveacutes do valor simboacutelico de determinados animais conforme
anotados por Aristoacuteteles em sua Investigaccedilatildeo dos animais
Na sequecircncia dois artigos que nos fazem refletir mais sobre a vida na Antiga
Greacutecia No primeiro a Profa Dra Dulci Nascimento Braga apresenta sua pesquisa que
visa demonstrar a praacutetica registrada na literatura de diversos tipos de profissionais da
magia os quais em muito a influenciaram
No segundo a Profa Dra Luciene Oliveira reflete sobre a formaccedilatildeo educacional
belicosa dos espartanos segundo a qual a coragem parece ser o maior valor de caraacuteter
que esses homens poderiam ter
Desejamos a todos uma boa leitura
Elisa Figueira de Souza Correcirca
Editora-chefe da Principia XXXVIII
DOI httpsdoiorg1012957principia201946485
HOMEM E MULHER OS CRIOU
Isabel Arco Verde Santos (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO O presente artigo retoma os textos da criaccedilatildeo e reflete reflete especificamente
na criaccedilatildeo da mulher Os termos hebraicos que acompanham a narrativa da criaccedilatildeo e se
relacionem com a figura feminina tecircm muito a nos contar Afinal qual o papel da mulher
e seu objetivo ao ser criada frente ao homem Haveria uma clara dimensatildeo de
superioridade ou inferioridade refletidas nestes relatos Em nossa sociedade de cultura
cristatilde o texto biacuteblico tem valor imensuraacutevel na relaccedilatildeo de gecircnero que vivemos em nossa
sociedade Voltar o olhar ao texto biacuteblico e buscar nele caminhos a partir da criacutetica textual
eacute uma forma de buscar respostas para diminuir as injusticcedilas que separam homens e
mulheres
PALAVRAS-CHAVE relatos de criaccedilatildeo relaccedilatildeo homem mulher Eva e Lilith
MALE AND FEMALE CREATED HE THEM
ABSTRACT This article analyzes the Hebrew texts of creation and reflects specifically
on the creation of women The Hebrew terms that accompany the creation narrative and
relate to the female figure have much to tell us What is the function of women and their
purpose when being created Would there be a clear dimension of superiority or
inferiority between men and women reflected in these texts In our Christian culture
society the biblical text has immeasurable value in the gender relationship we live in our
society Turning to the biblical text through textual criticism is a way of seeking answers
to reduce the injustices that separate men and women
KEYWORDS creation texts men and women relationship Eva and Lilith
Nosso objetivo neste primeiro momento eacute tratar do texto da criaccedilatildeo do homem e
da mulher Este texto eacute baacutesico para qualquer discussatildeo Os textos que iremos usar
encontram-se todos no livro de Bereshit ou Gecircnesis Eacute o primeiro livro da Torah ou
Pentateuco e traz nos seus primeiros capiacutetulos o relato da criaccedilatildeo
Eacute possiacutevel identificar dois relatos diferentes para esta histoacuteria Histoacuterias de
enfoques diferentes e origens tambeacutem diferentes O primeiro encontra-se em Gecircnesis
126-31 O segundo no capiacutetulo 215 a 24 deste mesmo livro Ambos tratam da criaccedilatildeo
do ser humano homem e mulher
No primeiro texto a designaccedilatildeo hebraica usada para homem eacute zakhar1 e neqebah2
para a mulher Estes termos indicam o que eacute masculino e o que eacute feminino E-mail verdesantosuolcombr 1 Zainkafresh 2 Nunqophbeit
Homem e mulher os criou
8 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
respectivamente O termo para masculino eacute da mesma raiz do verbo lembrar trazer a
memoacuteria O termo para feminino tem uma ideia mais ampla em sua raiz verbal mas para
o texto destaca-se a ideia de efeminar tornar feminino
Alguns autores interpretam a partir deste texto biacuteblico a criaccedilatildeo de um ser
androacutegino Adatildeo o primeiro homem seria ao mesmo tempo homem e mulher isto
porque no relato no verso 26 primeiramente acontece o termo Adam sem artigo e sem
a partiacutecula acusativa o que indicaria a criaccedilatildeo da humanidade uma coletividade o
chamado Adatildeo primordial3 Assim este verso no portuguecircs ficaria E disse Deus faccedilamos
(a) humanidade com nossa imagem e semelhanccedila
No verso 27 quando Deus abenccediloa a criaccedilatildeo desta humanidade o termo Adam
vem agora acompanhado de artigo HaAdam e da partiacutecula acusativa Aqui como haacute o
artigo antes do nome Adam entendemos que natildeo soacute o ser denominado Adatildeo estaacute sendo
abenccediloado pois em hebraico o artigo nunca ocorre antes de nome proacuteprio mas uma
indicaccedilatildeo definida daquilo que se estaacute abenccediloando Natildeo um ser humano qualquer mas o
ser humano criado
O texto pode ser traduzido entatildeo assim E abenccediloou Deus o ser humano com sua
imagem Com imagem de Deus o criou (ser humano - refere-se ao termo masculino
HaAdam) macho e fecircmea os criou A ideia androacutegina seria difiacutecil de contestar caso o
pronome que sucede o verbo criar no estivesse no plural Criou a eles e natildeo a ele
A ordem divina entende que o domiacutenio sobre a criaccedilatildeo eacute dado indiferentemente a Adatildeo
ao ser humano (bom enfatizar sem o artigo definido) subentende-se assim uma natildeo
discriminaccedilatildeo na ordem Ela eacute dada ao ser humano e natildeo exatamente a Adatildeo - o primeiro
homem - visto que a partiacutecula acusativa (Alephtaw) natildeo ocorre
Vale ainda salientar que a dimensatildeo da becircnccedilatildeo de Deus sobre Adatildeo
primeiramente e ressalvada a becircnccedilatildeo sobre macho e fecircmea sobre homemmulher se
concretiza em ser a imagem de Deus No verso 26 do capiacutetulo primeiro haacute o movimento
de criaccedilatildeo da humanidade ndash do ADAM sem artigo Este eacute criado agrave imagem e semelhanccedila
de Deus No verso 27 Deus abenccediloa Adatildeo ndash o homem especiacutefico o homem criado ndash com
sua imagem No verso 28 a becircnccedilatildeo se esclarece estendida sobre homem e mulher A ausecircncia ou presenccedila da partiacutecula de objeto direto (lsquoet ndash alephtaw) eacute de suma
importacircncia no estudo do texto isto porque ela ocorre indicando o objeto direto quando
este eacute especificado com o artigo ou quando ele por si mesmo como ocorre com qualquer
nome proacuteprio eacute especificado por natureza4
Esta questatildeo do artigo junto agrave palavra Adam merece um outro estudo e eacute preciso
atenccedilatildeo ao analisar o termo nestes primeiros capiacutetulos No capiacutetulo 3 por exemplo Adam
ainda aparece como nome plural (vide verso 17) designando um ser geral natildeo obstante
no verso 22 reaparece HaAdam indicando uma especificaccedilatildeo do termo entendendo o ser
homem Adatildeo
O texto da criaccedilatildeo do homem e mais objetivamente da mulher ocorre no capiacutetulo
seguinte em 215-24 O capiacutetulo dois retorna agrave histoacuteria da criaccedilatildeo de forma resumida
dando mais atenccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem e da mulher Na traduccedilatildeo de Almeida (A
BIacuteBLIA 1958) o verso 15 se lecirc assim Tomou pois o SENHOR Deus ao homem e o
colocou no jardim do Eacuteden para o cultivar e guardar O termo traduzido aqui por homem
3 Em primeiro lugar trecircs eram os gecircneros da humanidade natildeo dois como agora o masculino e o feminino
mas tambeacutem havia a mais um terceiro comum a estes dois do qual resta agora um nome desaparecida a
coisa androacutegino era entatildeo um gecircnero distinto tanto na forma como nome comum aos dois ao masculino
e ao feminino enquanto agora nada mais eacute que um nome posto em desonra (PLATAtildeO 1991 p 57-58) 4 Esta partiacutecula eacute muito importante na anaacutelise sintaacutetica da frase hebraica No caso do verbo transitivo direito
ela ajuda a identificar o predicado
Isabel Arco Verde Santos
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eacute HaAdam ou seja o nome aparece com o artigo o que se entende o nome do primeiro
homem ndash Adatildeo
Natildeo haacute exatamente uma sequecircncia neste segundo relato A narrativa da criaccedilatildeo tatildeo
cuidadosa e minuciosa exposta no relato anterior neste capiacutetulo jaacute natildeo mais importa No
verso 18 o comentaacuterio divino aponta para a preocupaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave solidatildeo de Adam
e a necessidade de fazer algueacutem segundo traduccedilatildeo de Almeida uma auxiliadora que lhe
seja idocircnea A aplicaccedilatildeo do artigo aqui no termo Adam parece indicar algo mais
especiacutefico tendo em vista o autor deixar claro que ele Adam estaacute soacute A vocalizaccedilatildeo
hebraica confunde porque o termo que se usa no verso 20 do capiacutetulo 2 ao dizer que natildeo
havia para Adam ndash e desta vez a vocalizaccedilatildeo sugere a inexistecircncia do artigo - quem fosse
eacutezer e neacuteged
Ocorre que neste verso 20 aparece o termo LeAdam Se a forma com artigo
acontecesse a contraccedilatildeo do artigo com a preposiccedilatildeo suporia a forma LaAdam E parece
ser a forma mais correta de se ler o texto dando continuidade a ideia que estaacute sendo
desenvolvida
HaAdam ndash Adatildeo - daacute nome aos elementos da criaccedilatildeo mas eacute Adam ndash o nome geral
a humanidade - que natildeo encontrou algueacutem para estar ao seu lado De uma forma ou de
outra o que se quer eacute justificar o relato da criaccedilatildeo da mulher Os termos usados por
Almeida auxiliadora e idocircnea traduzem o hebraico eacutezer e neacuteged respectivamente
Ora eacutezer eacute a palavra usada no conhecido Salmo 121 (Elevo os olhos para o monte
de onde me viraacute o socorro) Ressalte-se que o socorro natildeo eacute encontrado natildeo em seres
inferiores O salmista eleva os olhos busca acima de si o socorro Isto deixa claro que
natildeo haacute qualquer tipo de inferioridade na criaccedilatildeo da mulher
O outro termo neacuteged eacute uma preposiccedilatildeo que pode ser traduzida por defronte de
em frente contra diante de em oposiccedilatildeo defronte comparado com Como verbo na
forma simples paal significa ser contra ou estar defronte Na forma causativa no hiphil
o verbo significa contar revelar dizer algo ainda natildeo conhecido Estes termos vatildeo reaparecer no verso 20 quando apoacutes o homem ter dado nome a
todos os seres se conclui mais uma vez que natildeo havia nada que lhe fosse eacutezer e neacuteged O
hebraico nos aponta ideias mais fortes que a traduccedilatildeo de Almeida No portuguecircs
auxiliador tem a ideia de ajudante assistente conforme explica o Aureacutelio Idocircneo tem o
sentido de conveniente e adequado ainda segundo este mesmo dicionaacuterio
O que se procura na criaccedilatildeo para HaAdam (Adatildeo) eacute o seu oposto o seu contraacuterio
porque o objetivo eacute crescer e encher a terra Por outro lado procura-se algo que lhe venha
socorrer em sua solidatildeo O interessante poreacutem eacute que embora se entenda neacuteged como
uma possibilidade contraacuteria porque haacute a necessidade de encher a terra tanto este termo
como o termo socorro (eacutezer) natildeo vecircm em forma feminina mas masculina apesar de tanto
este quanto aquele ter uma forma hebraica similar feminina (ezrah e negdah)
Se prosseguirmos a leitura naquilo que seria o relato da criaccedilatildeo da mulher
identificamos que apoacutes cair em sono profundo Deus retirou uma costela de Adatildeo para
construir a mulher
Trecircs termos agora se encontram neste texto da criaccedilatildeo tzeacutelem a imagem de Deus
com que a humanidade foi abenccediloada eacute o termo que associa a humanidade a Deus que
ficou no capiacutetulo primeiro tzeacutelarsquo a costela retirada de Adatildeo que eacute a mateacuteria da qual eacute
feita a mulher Por uacuteltimo temos o termo lsquoeacutetzem que aparece na fala deslumbrada de
Adatildeo ao acordar de seu sono e ver a criaccedilatildeo de Deus na forma da mulher oriunda de sua
costela
O novo ser criado eacute denominado lsquoyshah Sua denominaccedilatildeo eacute da mesma raiz da
palavra lsquoysh que quer dizer homem Esta semelhanccedila dos dois nomes demonstra o
reconhecimento de si mesmo no outro ser criado HaAdam reconhece a mulher como algo
Homem e mulher os criou
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semelhante a ele - daiacute o uso dos termos tsela e tselem (costela e osso) O termo lsquoeacutetzem -
semelhanccedila ndash une em sua raiz os dois termos que identificam a mulher como parte da
humanidade HaAdam natildeo a identifica como lsquoysh pois percebe que existem diferenccedilas
entre eles ndash afinal ela eacute seu contraacuterio Este texto biacuteblico como outros textos do Gecircnesis tenta explicar criaccedilatildeo de
homem e mulher como partes da humanidade Sua preocupaccedilatildeo em desenvolver uma
narrativa que explique a criaccedilatildeo da mulher se daacute para que natildeo se incorra no erro de ignorar
que a mulher tambeacutem eacute abenccediloada com a semelhanccedila de Deus corroborada na criaccedilatildeo
que se faz da mesma mateacuteria
Natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo em inferiorizar a mulher Embora HaAdam a tenha
chamado de lsquoyshah seu nome apareceraacute somente no capiacutetulo seguinte apoacutes a expulsatildeo
do Eacuteden quando entatildeo ele a chamaraacute de Chawav ou Eva Se haacute superioridade porque ele
lhe daacute um nome esta superioridade eacute uma das consequecircncias do que se denominou pecado
e gerou a expulsatildeo do paraiacuteso
Os relatos cabaliacutesticos datildeo conta de criaccedilatildeo de uma outra mulher Esta ideia natildeo
soacute eacute desenvolvida pelos dois relatos de criaccedilatildeo mas tambeacutem pela fala de HaAdam
quando desperta de seu sono Ele diz segundo a traduccedilatildeo que fazemos aqui do hebraico
e disse o homem esta desta vez eacute osso dos meus ossos 5 Se desta vez HaAdam se
identifica com algo na criaccedilatildeo talvez teria acontecido algo antes com o qual ele natildeo teria
se adaptado ou natildeo se sentiria reconhecido
Lilith eacute a mulher que domina e seduz HaAdam que lhe aproxima de seus
institntos Chavah a segunda mulher eacute a que gera e constroacutei a histoacuteria Na religiatildeo a
primeira eacute tida como a mulher que deve ser desprezada apesar de figurar no imaginaacuterio
masculino pois retorna nos sonhos de Adatildeo Ela tambeacutem retorna aos textos biacuteblicos
principalmente nos sapiencieais mais especificamente no livro de proveacuterbios nos
capiacutetulos 1 a 9 quando se faz oposiccedilatildeo entre a sabedoria e a ignoracircncia entre a mulher
do povo e a estrangeira
Chavah vive com esta sombra - a mulher principal para a sociedade mas natildeo nos
desejos de seu marido A presenccedila de Lilith na cultura judaica natildeo eacute uacutenica Ela pode ser
encontrada no eacutepico de Gilgamesh que data de 2000 aEC na pseudoepiacutegrafe
denominada Testamento de Salomatildeo que data de 200 EC no Talmud e no Alfabeto de
Ben Sira6 do ano 800 de nossa era aproximadamente Alguns indicam haver menccedilatildeo
tambeacutem no livro biacuteblico de Isaiacuteas 3414 (a palavra Lilith vem da raiz laylah que significa
noite)
Lilith teria sido criada tatildeo bonita e interessante que logo arranjou
problemas com o primeiro o homem Ainda segundo a narrativa
miacutetica Eva foi criada para substituir Lilith Eva seria o oposto de
Lilith por sua vez reuacutene traccedilos marcantes de obediecircncia boa
imagem companheira submissa ao sacerdote ao Pai e agrave Lei e por
fim tambeacutem fonte de pecado e desobediecircncia (GOMES
ALMEIDA 2019)
Eacute importante tambeacutem observar que o capiacutetulo 2 de Gecircnesis este que se propotildee a
recontar a criaccedilatildeo focando a criaccedilatildeo do homem e da mulher eacute um texto javista-eloiacutesta
Observa-se que o capiacutetulo primeiro do gecircnesis eacute notoriamente um texto eloiacutesta Jaacute o
5 Cf capiacutetulo 2 versiacuteculo 23 do livro de Gecircnesis 6 Onde se tem o registro mais antigo sobre Lilith datado entre os seacuteculos VIII e X aC segundo Koltuv
(1986)
Isabel Arco Verde Santos
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capiacutetulo 2 refere-se a deus com o tetragrama sagrado (Yhwh) seguido da forma Elohim
O texto mistura entatildeo as duas fontes
A conclusatildeo de HaAdam natildeo necessariamente afirma a lenda mas abrem uma
possibilidade neste sentido O que se pode concluir eacute que natildeo havia nada na criaccedilatildeo com
a qual ele HaAdam se identificasse
A preocupaccedilatildeo da leitura biacuteblica e as possiacuteveis interpretaccedilotildees relacionando ao
papel da mulher na sociedade ainda precisam ser mais bem resolvidas Mesmo que se
faccedila a presenccedila de Lilith no texto como a histoacuteria omitida e natildeo contada porque precisava
ser reescrita na forma de Chawah ainda assim carece a ideia de submissatildeo e inferioridade
que culturalmente ainda se insiste afirmar
O texto Eloiacutesta que domina o capiacutetulo primeiro do Gecircnesis natildeo tem qualquer
preocupaccedilatildeo em distinguir homem e mulher O capiacutetulo segundo na comunhatildeo Javista-
Eloiacutesta tem a preocupaccedilatildeo em frisar que satildeo diferentes e ateacute mesmo contraacuterios mas que
natildeo perdem a noccedilatildeo da mesma mateacuteria e partilham da mesma becircnccedilatildeo da semelhanccedila
divina Natildeo haacute uma prioridade A confusatildeo que suscita a ideia androacutegina surge da essecircncia
comum dois elementos criados partes de uma soacute ideia a humanidade
A ordem na criaccedilatildeo tambeacutem natildeo gera conclusotildees de superioridade Se
entendecircssemos que os primeiros seriam submissos aos uacuteltimos seres criados entendendo
o homem a coroa da criaccedilatildeo o ser acima de toda a criaccedilatildeo poderiacuteamos supor que a
mulher criada depois dele lhe seria entatildeo superior Colocaccedilotildees deste tipo natildeo prosperam
na anaacutelise do texto biacuteblico porque haacute que se considerar o texto como um todo Ou entatildeo
seriam os astros celestes criados primeiros inferiores aos mares ou os animais Eacute certo
que a ordem natildeo sugere algum tipo de superioridade
Enfim o que se vecirc depois da criaccedilatildeo eacute uma luta constante da figura feminina pela
conquista de seu espaccedilo luta esta que infelizmente ainda persiste A necessidade de ser
semelhanccedila de Deus e natildeo soacute costela
REFEREcircNCIAS
A BIacuteBLIA Sagrada Trad Joatildeo Ferreira de Almeida Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do
Brasil 1958
BIacuteBLIA Hebraica Stuttgartensia 4a Ed Stuttgart Deustsche Bibelgesellschaft 1967
BEREZIN Rifka Dicionaacuterio Hebraico-Portuguecircs Satildeo Paulo EDUSP 1995
EVEN-SHOSHAN Abraham Hamilon Hechadash 3 Ed Jerusalm Qryiat-sefer
1972 3 vol
FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa
15a ed Rio de Janeiro Nova Fronteira
GOMES Antonio Maspoli de Arauacutejo ALMEIDA Vanessa Ponstinnicoff de O Mito de
Lilith e a Integraccedilatildeo do Feminino na Sociedade Contemporacircnea Revista acircncora digital
de Ciecircncias da Religiatildeo Disponiacutevel em ltwwwrevistaancoradigitalcombrgt
Homem e mulher os criou
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GOTTWALD Norman K Introduccedilatildeo socioliteraacuteria agrave Biacuteblia hebraica Traduccedilatildeo
Anacleto Alvarez revisatildeo H Dalbosco Satildeo Paulo Paulinas 1988
KOLTUV Barbara Black O Livro de Lilith psicologiamitologia Satildeo Paulo Cultrix
1986
PAIVA Vera Evas Marias e Liliths as voltas do feminino 2a Ed Rio de Janeiro
Brasiliense 1993
PLATAtildeO Diaacutelogos Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Traduccedilatildeo e
notas de Joseacute Cavalcante de Souza Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa 5 Ed Satildeo Paulo
Nova Cultural 1991 (Coleccedilatildeo Os pensadores)
DOI httpsdoiorg1012957principia201946508
AS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO E SEU IMPACTO NO
REINADO DE VALENTINIANO I
Carlos Eduardo Schmitt
RESUMO Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio (c 340-402) possui uma extensa obra da qual
chegaram agrave contemporaneidade mais de 900 cartas (epistolae) 49 informes (relationes)
e 8 discursos (orationes) Suas obras de maior destaque satildeo as Orationes I II e III
proferidas entre 369-370 e sua Relatio III escrita durante seu tempo como prefeito de
Roma em 384 Tais obras lhe renderam a fama de melhor orador de seu tempo ainda em
vida Nosso trabalho tem como objetivo expor o impacto que as Orationes I II e III
tiveram na carreira do orador e na relaccedilatildeo entre o Senado e o reinado de Valentiniano I
A partir de suas Orationes ressaltaremos a delicada missatildeo do orador enviado de Roma
agrave Treacuteveris para servir como ponte entre o Senado e o imperador
PALAVRAS-CHAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I
SYMMACHUSrsquo ORATIONES I II AND III AND ITS IMPACT IN THE
KINGDOM OF VALENTINIAN I
ABSTRACT Quintus Aurelius Symmachus Eusebius (c 340-402) has an extensive work
from which more than 900 letters (epistolae) 49 reports (relationes) and 8 discourses
(orationes) survived His most outstanding works are Orationes I II and III pronounced
between 369-370 and his Relatio III written during his time as praefectus of Rome in
384 Such works earned him the fame of the best speaker of his time being still alive Our
paper aims to expose the impact that Orationes I II and III had on the speakers career
and on the relation between the Senate and the reign of Valentinian I From his Orationes
we will highlight the delicate mission of the speaker sent from Rome to Trier to serve as
a bridge between the Senate and the emperor
KEYWORDS Symmachus Orationes Valentinian I
LAS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO Y SU IMPACTO EN EL
REINADO DE VALENTINIANO I
RESUMEN Quinto Aurelio Siacutemaco Eusebio (c 340-402) tiene una extensa obra de la
cual chegaron a la contemporaneidad maacutes de 900 cartas (epistolae) 49 informes
(relationes) e 8 discursos (orationes) Sus obras de mayor destaque son las Orationes I
Doutorando pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail carlosschmitt90gmailcom
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
14 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6
II y III pronunciadas entre el 369-370 y su Relatio III escrita durante su tiempo como
prefecto de Roma en 384 Tales obras le rindieron la fama de mejor orador de su tiempo
auacuten en vida Nuestro artiacuteculo tiene como objetivo exponer el impacto que las Orationes
I II y III tuvieron en la carrera del orador y en la relacioacuten entre el Senado y el reinado de
Valentiniano I A partir de sus Orationes resaltaremos la delicada misioacuten del orador
enviado de Roma a Treacuteveris para servir como puente entre el Senado y el emperador
PALAVRAS CLAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I
INTRODUCcedilAtildeO
Joseacute Antonio Gallego (2003 p 153) esclarece que a obra mais famosa de Siacutemaco
foi seu informe terceiro apesar de que durante a Idade Meacutedia as epistolae foram suas
obras mais valorizadas sendo utilizadas como modelo para escrever uma carta Contudo
em seu proacuteprio tempo ele era famoso por ser um grande orador Eacute por isso que Gallego
(2003 p 154) pondera como injusto o que a histoacuteria fez com Siacutemaco Apenas oito de
seus discursos chegaram ateacute noacutes sendo que estes satildeo dos iniacutecios de sua carreira aleacutem de
estarem num manuscrito palimpsesto com grandes lacunas Deve-se ter presente tambeacutem
que ldquoSiacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador romano se excetuarmos os escritores cristatildeosrdquo1
(GALLEGO 2003 p 154) Em outras palavras Siacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador da
religiatildeo tradicional romana
Cristiana Sogno (2006 p viii) faz uma reconstruccedilatildeo da carreira poliacutetica de
Siacutemaco atraveacutes de uma anaacutelise minuciosa de seus escritos Ele ocupa uma posiccedilatildeo
peculiar entre os autores latinos pela quantidade de escritos que nos chegaram A autora
defende que a razatildeo pelo desconhecimento de Siacutemaco por parte dos estudantes de
Claacutessicas e de Histoacuteria Antiga eacute o fato de natildeo existir uma traduccedilatildeo completa do corpus
simaquiano em nenhuma liacutengua moderna Sogno clarifica tambeacutem que a ediccedilatildeo de Otto
Seeck do seacuteculo XIX continua sendo o modelo do texto
Sogno (2006 p 1) clarifica que a primeira fase da carreira de Siacutemaco estaacute bem
documentada em suas orationes Sua nominaccedilatildeo como embaixador senatorial em 368 foi
um marco em sua vida sendo que sua reputaccedilatildeo como orador foi estabelecida na corte de
Valentiniano I tornando-se uma ponte entre o Senado e o imperador
Apesar de que Siacutemaco tenha a fama de ser um grande orador suas orationes
desapareceram ateacute seu redescobrimento no seacuteculo XIX Sabe-se que Siacutemaco ficou
conhecido por ser um bastiatildeo em defesa da religiatildeo tradicional romana sobretudo durante
seu periacuteodo como Prefeito de Roma por volta de 384 E Sogno (2006 p 1) sem perder
a oportunidade relata uma ldquoironia do destinordquo sendo que foi um cardeal da Igreja
Catoacutelica Romana Angelo Mai quem descobriu e publicou os fragmentos de suas
orationes em 1815 Tratava-se de um palimpsesto onde por cima havia uma traduccedilatildeo
latina das atas do Conciacutelio de Calcedocircnia O cardeal destruiu o documento para que as
orationes pudessem ser recuperadas Apesar disso Sogno (2006 p 2) constata como
esses discursos de Siacutemaco satildeo ainda pouco estudados em comparaccedilatildeo com outros
escritos seus como suas epistolae Esses oito discursos satildeo apenas uma parte de toda a
produccedilatildeo simaquiana Haacute tambeacutem um panegiacuterico em honra do usurpador Maacuteximo que
por razotildees oacutebvias natildeo foi publicada
1 ldquoSiacutemaco es el uacuteltimo gran orador romano si dejamos a un lado a los escritores cristianosrdquo
Carlos Eduardo Schmitt
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ORATIONES I II E III
Foi no inverno do ano 368-369 que Siacutemaco naquele tempo um jovem senador que
iniciava sua carreira poliacutetica foi enviado de Roma agrave Treacuteveris com o objetivo de dirigir
uma laudatio uma oraccedilatildeo de louvor a Valentiniano I por motivo de seus cinco anos de
reinado (Quinquennalia) Sogno (2006 p 2) destaca que tal missatildeo natildeo significava
apenas um reconhecimento por parte do Senado de seus dotes retoacutericos mas constituiacutea
tambeacutem uma oportunidade iacutempar para crescer na carreira poliacutetica e fazer amigos na corte
Apesar de ser um momento festivo Sogno (2006 pp 1-2) esclarece que constituiacutea
uma situaccedilatildeo delicada Ateacute o momento Valentiniano I natildeo havia estado em Roma e essa
era a primeira vez que ele se encontraria com uma delegaccedilatildeo senatorial Sendo assim
Siacutemaco tinha a importante missatildeo de estabelecer boas relaccedilotildees com o imperador Havia
natildeo apenas o discurso mas tambeacutem certa quantidade de ouro (aurum oblaticium2) que os
senadores ofereciam ldquovoluntariamenterdquo ao imperador Em Roma os senadores
aguardavam ansiosos pelo regresso de Siacutemaco e por informaccedilotildees de primeira matildeo
Eacute estranho ver que um senador tatildeo jovem ndash Siacutemaco natildeo tinha ainda nem trinta
anos ndash recebesse tamanha honra e responsabilidade Sogno (2006 p 6) sem colocar em
xeque a capacidade do orador argui que isso foi possiacutevel em parte graccedilas ao Prefeito de
Roma naquele entatildeo Pretextato responsaacutevel direto pela arrecadaccedilatildeo da oferenda de ouro
ao imperador e pela escolha do ldquocorretordquo orador que a levaria Haacute de se ter presente que
das epistolae de Siacutemaco vaacuterias delas tecircm Pretextato como destinataacuterio
Siacutemaco natildeo se limitou a estreitar laccedilos de amizade apenas no Senado Buscou
tambeacutem amigos na corte imperial E um de seus principais foi Ausocircnio tutor de Graciano
filho de Valentiniano I Sabe-se que eles trocavam correspondecircncias antes mesmo de
Siacutemaco ter ido agrave Treacuteveris e que havia entre eles uma muacutetua admiraccedilatildeo (SOGNO 2006
p 6)
A prova de que o panegiacuterico (laudatio) de Siacutemaco dirigido a Valentiniano foi um
sucesso de acordo com Sogno (2006 pp 8-9) foi o fato do proacuteprio imperador ter
solicitado ao orador um segundo panegiacuterico Siacutemaco eacute consciente de sua responsabilidade
e da honra que lhe eacute aferida e expressa esses sentimentos em seu discurso Consciente de
que o objetivo primeiro de uma laudatio eacute agradar ao puacuteblico Siacutemaco expotildee que tudo o
que anuncia e proclama eacute verdadeiro baseado em fatos que vivenciou e tambeacutem naqueles
de que ouviu o testemunho
Sogno (2006 p 9) classifica o primeiro panegiacuterico de Siacutemaco a Valentiniano
como um encocircmio biograacutefico composiccedilatildeo descrita em detalhe no terceiro livro da
Institutio oratoria de Quintiliano Nele Siacutemaco reconhece e celebra publicamente o
estabelecimento da dinastia valentiniana realizando um resumo dos seus cinco primeiros
anos de reinado desde que tinha sido escolhido pelo exeacutercito O encocircmio biograacutefico
como detalha Sogno requer discorrer tambeacutem sobre os ancestrais e os descendentes da
nova dinastia
2 ldquoOs clariacutessimos ie os indiviacuteduos de categoria senatorial tinham ainda que contribuir com o aurum
oblaticium oferecido pelo Senado por ocasiatildeo dos aniversaacuterios dos imperadoresrdquo (SILVA amp MENDES
2006 p 212) Isso era parte da reforma fiscal iniciada por Diocleciano e ampliada por Constantino
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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Satildeo estrateacutegicas as alusotildees que Siacutemaco faz do lugar de nascenccedila de Valentiniano
e daqueles onde ele acompanhou seu pai em campanhas militares O futuro imperador
nasceu na fria regiatildeo da Iliacuteria e acompanhou seu pai no calor escaldante da Aacutefrica Isso
significa natildeo soacute que ele estaacute preparado para qualquer dificuldade que advir mas
sobretudo que eacute um homem que conhece seu reino muito bem porque jaacute esteve em
diversas partes dele Todas essas dificuldades unidas aos inimigos enfrentados lhe
qualifica como a melhor pessoa para reger o Impeacuterio (SOGNO 2006 p 10) Um cuidado
que Siacutemaco tem em sua laudatio eacute o de reforccedilar a legitimidade de Valentiniano sobretudo
ao dizer que ningueacutem protestou quando o elegeram dando a impressatildeo de que houve um
consenso geral no exeacutercito (SOGNO 2006 p 12)
O conteuacutedo dos panegiacutericos eacute exagerado e por isso deve-se ter cuidado ao tomaacute-
los como fonte histoacuterica No entanto nos revelam muito sobre o tempo de Siacutemaco e sobre
ele mesmo No primeiro dedicado a Valentiniano I por motivo de seu primeiro lustro no
poder vemos como Siacutemaco enaltece a vida e a obras do imperador desde sua tenra
formaccedilatildeo nas diversas partes do Impeacuterio seguindo o bom exemplo de seu pai Graciano
Com verbosidade Siacutemaco atesta que natildeo havia outra pessoa melhor para o posto de
imperador que o proacuteprio Valentiniano superior a qualquer outro liacuteder Homem valente
assentou-se na parte mais perigosa do Impeacuterio Treacuteveris e lutou contra o inimigo mais
feroz dos romanos os alamanos Aleacutem de guerreiro eacute saacutebio e prefere defender os
interesses do Estado que os seus proacuteprios Eacute por isso que deixou a seu irmatildeo Valente
cuidar sozinho da rebeliatildeo de Procoacutepio uma guerra interna enquanto ele se dedicava a
proteger o Impeacuterio dos inimigos externos Foi um imperador que preferiu o bem comum
ao de sua proacutepria famiacutelia Realizou obras incriacuteveis
O comeccedilo do segundo panegiacuterico a Valentiniano indica sua razatildeo de ser o terceiro
consulado do imperador ao lado de seu irmatildeo Valente em 370 Siacutemaco
estrategicamente revela que iraacute relatar apenas alguns acontecimentos sem exaustatildeo
Deixaraacute todos os outros feitos natildeo mencionados para que sejam cantados pelos poetas
Parabeniza ao imperador por ser sua fonte de inspiraccedilatildeo e o restaurador da liberdade de
expressatildeo Ao mesmo tempo que Siacutemaco preza ao imperador por ter dado assunto que
fosse cantado e escrito como suas grandes vitoacuterias sobre os alamanos ele tambeacutem lembra
o imperador de que sem esses oradores e poetas haacute o silecircncio e que o silecircncio eacute o pior
inimigo da grandeza (SOGNO 2006 p 12)
Siacutemaco se dedica basicamente a enaltecer o imperador por suas conquistas e
fortificaccedilotildees ao longo do Reno e de que se impressionou ao ter visto as mesmas
pessoalmente Enaltece-o por seu terceiro consulado mas sobretudo se centra em seus
avanccedilos militares Entre outras exaltaccedilotildees Siacutemaco o parabeniza por ser exemplo de
governante ideal que eacute amado e temido por seu povo Tambeacutem o parabeniza por haver
aceitado o Impeacuterio de forma relutante (SOGNO 2006 p 14) Na verdade Siacutemaco
exaltou muito mais as fortificaccedilotildees erguidas por Valentiniano do que suas batalhas contra
os baacuterbaros Sogno (2006 p 15) pensa que isso se deve principalmente pelo acontecido
com Siaacutegrio uacutenico sobrevivente de uma batalha que foi considerado um desertor pelo
imperador E isso aconteceu exatamente quando o orador se encontrava na corte
O segundo panegiacuterico dedicado tambeacutem a Valentiniano I tinha por motivo
a designaccedilatildeo do imperador para o seu terceiro consulado que ele havia recebido como
um reconhecimento por seus feitos recentes Sendo assim o panegiacuterico deveria se centrar
em suas atividades recentes as quais lhe fizeram merecedor do terceiro consulado
Siacutemaco inicia dizendo que o consulado era uma recompensa insuficiente para
Valentiniano comparado com tudo o que perpetrou no Reno Mas como natildeo haacute algo
Carlos Eduardo Schmitt
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maior que eles possam ofertar Siacutemaco solicita ao imperador que se contente com o
melhor presente e honra que o Senado lhe pode oferecer E a partir de entatildeo o orador
narra as atividades beacutelicas de Valentiniano contra os alamanos e suas construccedilotildees ao
longo do Reno Em um determinado momento Siacutemaco o elogia por haver restaurado a
liberdade de expressatildeo no Impeacuterio Termina exaltando sua sobriedade
No panegiacuterico de Siacutemaco dedicado a Graciano vecirc-se claramente como ele se
dirige ao jovem imperador como a esperanccedila de Roma Durante todo o discurso o orador
enfatiza sua juventude enaltecendo-a Sogno acredita que essa insistecircncia seja uma forma
de favorecer a aceitaccedilatildeo do imperador possivelmente criticado pela aristocracia romana
por sua pouca idade (SOGNO 2006 p 18) Como recompensa por sua performance na
corte Siacutemaco recebeu o tiacutetulo honoriacutefico de comes tertii ordinis e trecircs anos depois em
Roma recebeu o proconsulado da Aacutefrica (373-374)
O panegiacuterico ao menino Graciano talvez tenha sido o mais difiacutecil para Siacutemaco
elaborar Devido a sua pouca idade objetivamente natildeo havia feitos grandiosos do qual
ele fosse sujeito No entanto Siacutemaco surpreendeu mesmo assim Vecirc em Graciano o iniacutecio
de uma nova eacutepoca porque eacute um imperador ainda menino e sendo assim estaraacute bem
treinado em todos os campos Seu louvor se centra entatildeo na juventude do imperador e
em seu governo ao lado de seu pai Valentiniano e de seu tio Valente Aos baacuterbaros natildeo
lhes restaraacute mais do que a escravidatildeo e eles jaacute sabem disso
OS DOZE PANEGIacuteRICOS LATINOS
Tendo em vista as trecircs orationes mencionadas podemos fazer uma breve anaacutelise
dos famosos doze panegiacutericos latinos com o intuito de entender melhor as diversas
asserccedilotildees simaquianas bem como seu estilo Susanna Morton Braund (2005 pp 90-91)
descreve que de forma convencional a oratoacuteria grega foi divida em trecircs tipos discurso
forense deliberativo e epidiacutectico O primeiro tambeacutem chamado de judicial eram aqueles
proferidos nos tribunais no foacuterum os discursos deliberativos eram aqueles proferidos
diante do Senado ou de uma assembleia do povo e os discursos epidiacutecticos eram aqueles
escritos para uma comemoraccedilatildeo especial Este uacuteltimo para Braund se revestiu de
especial importacircncia durante o principado como panegiacuterico (elogio)
Uma das coisas mais importantes para um aristocrata romano era o
reconhecimento pelas pessoas ao seu redor de seu valor puacuteblico e permanente
ndash sua auctoritas e sua dignitas Idealmente isso seria celebrado em panegiacuterico
ndash isto eacute louvor escrito em prosa ou verso3 (2005 p 110)
O panegiacuterico era um elemento central na poliacutetica romana e na vida puacuteblica sob
o Principado ndash e jaacute o era haacute muito tempo De fato alguns dos nossos mais
antigos textos latinos sobreviventes os epitaacutefios aos membros da famiacutelia
Cipiatildeo que datam do terceiro e segundo seacuteculos AEC (Scipionum elogia)
satildeo os louvores (poacutestumos) dos grandes homens4 (2005 p 112)
3 ldquoOne of the most important things for a Roman aristocrat was the recognition by people around him of
his public worth and standing ndash his auctoritas and his dignitas Ideally this would be celebrated in
panegyric ndash that is praise written in prose or verserdquo 4 ldquoPanegyric was a central element in Roman politics and public life under the Principate ndash and had been
so for a long time already In fact some of our earliest surviving Latin texts the epitaphs to members of
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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Ainda sobre o panegiacuterico e sua difusatildeo durante este periacuteodo do Impeacuterio Romano
Mitchell (2015 p 19) o relaciona agrave natureza autoritaacuteria do mesmo Segundo ele a
dissidecircncia aberta natildeo era tolerada e isso se vecirc pelos extremos dos discursos que satildeo de
louvor ou vituperaccedilatildeo mas raramente se encontram num meio termo Apesar de
parecerem pouco confiaacuteveis o autor defende a utilizaccedilatildeo de panegiacutericos e poemas como
fontes histoacutericas para o periacuteodo alegando que seus exageros omissotildees e estilos retoacutericos
expressam de forma criacutetica muito daquele momento Segundo Mitchell as obras mais
significativas neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos5
As obras-chave neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos que
provavelmente foram compilados pelo orador gaulecircs Pacato e foram
prefaciados pelo longo panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem para o imperador Trajano
(I) Aleacutem do trabalho do proacuteprio Pacato de 389 em louvor a Teodoacutesio I (II)
este inclui discursos a Maximiano em 289 (X de Cl Mamertino o Velho) e
291 (XI) a Constacircncio pai de Constantino em 296 e 298 (IX) para o
casamento de Constantino e Fausta em 307 (VII) a Constantino em 310 (VI)
312 (V) 314 (XII) e 321 (IV de Nazaacuterio) e a Juliano em 362 (III de Cl
Mamertino o Jovem em sua proacutepria nomeaccedilatildeo para o consulado)6
Mitchell (2015 p 4) realccedila que conforme o Impeacuterio crescia foi se dando cada
vez mais ecircnfase agrave religiatildeo do Estado Acreditava-se que ele era mantido devido ao apoio
dos deuses e os imperadores romanos que em parte controlavam as atividades religiosas
em seus territoacuterios eram vistos como aqueles que mantinham o pacto de paz com os
deuses a pax deorum E segundo Mitchell todos os meios de propaganda estavam
imbuiacutedos desta ideologia inclusive os discursos panegiacutericos
Braund (2005 129) especifica que o cocircnsul Pliacutenio entregou seu panegiacuterico ao
imperador Trajano no iniacutecio de seu reinado Era um discurso de gratidatildeo onde ele
aproveita para contrastar a imagem do bom Trajano com a do mau Domiciano imperador
de 81 a 96 EC Para Braund (2005 p 130)
Este texto revela dois modelos contrastantes de patrono ou imperador - e afinal
de contas o imperador era apenas o patrono mais poderoso em Roma O bom
patrono ou imperador eacute marcado por sua abertura acessibilidade e atitude
amigaacutevel e tolerante O mau patrono ou imperador eacute marcado pelo abuso
tiracircnico de seus poderes para tomar decisotildees de vida e morte sobre todos ao
seu redor do menor escravo ao senador mais eminente A celebraccedilatildeo do bom
modelo e a condenaccedilatildeo do ruim encontram-se em toda a gama de textos da
literatura latina incluindo poesia eacutepica e pastoral poesia liacuterica e elegiacuteaca
saacutetira e epigrama historiografia oratoacuteria e romance Isso natildeo nos deixa
duvidar de que o modo como um homem poderoso se comportava com seus
the Scipio family dating from the third and second centuries BCE (the Scipionic elogia) are the
(posthumous) praises of great menrdquo 5 Ver tambeacutem BERRY D H Oratory In HARRISON Stephen (ed) A Companion to Latin Literature
Oxford Blackwell 2005 pp 267-268 6 ldquoKey works in this genre are the twelve Latin panegyrics which were probably compiled by the Gallic
orator Pacatus and were prefaced by the younger Plinyrsquos lengthy panegyric for the emperor Trajan (I)
Apart from Pacatusrsquo own work of 389 in praise of Theodosius I (II) this includes speeches for
Maximianus in 289 (X by the elder Cl Mamertinus) and 291 (XI) for Constantius the father of
Constantine in 296 (VIII) and 298 (IX) for the marriage of Constantine and Fausta in 307 (VII) for
Constantine in 310 (VI) 312 (V) 314 (XII) and 321 (IV by Nazarius) and for Julian in 362 (III by the
younger Cl Mamertinus on his own appointment to the consulship)rdquo
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pares e seus subordinados era crucial para sua posiccedilatildeo social e reputaccedilatildeo
poliacutetica7
Bruce Gibson (2005 p 72) critica a postura deste gecircnero por natildeo se envolver
abertamente com a poliacutetica atual de seu tempo senatildeo de modo indireto e o panegiacuterico
modelo natildeo foi a exceccedilatildeo ldquoMesmo o Panegiacuterico de Pliacutenio um discurso em louvor ao
imperador Trajano dado por ocasiatildeo de seu consulado em setembro de 100 EC oferece
sua criacutetica de governo indiretamente atraveacutes da estrateacutegia de atacar o principado de
Domicianordquo8
CONSIDERACcedilOtildeES PARCIAIS
As condiccedilotildees do discurso representavam um novo momento para o Impeacuterio De
acordo com A D Lee (2013 p 1) foi por meados do seacuteculo IV que o Impeacuterio Romano
havia alcanccedilado quase tanto territoacuterio quanto durante o seacuteculo II periacuteodo conhecido pelo
auge do poder romano Foi o periacuteodo dos imperadores guerreiros que se viram forccedilados
a se retirar dos confortos de Roma para proteger suas fronteiras (LEE 2013 p 5) Roma
foi substituiacuteda como residecircncia imperial por Treacuteveris Milatildeo Sirmio e Antioquia Com a
criaccedilatildeo de Constantinopla por parte do imperador Constantino essa situaccedilatildeo soacute se
agravou De qualquer forma o tema que domina o seacuteculo e que dominou os discursos
traduzidos de Siacutemaco foi a histoacuteria militar (MITCHELL 2015 pp 11-12)
Natildeo eacute um Impeacuterio em decadecircncia mas sim um momento de transiccedilatildeo Mitchell
(2015 p 56) se daacute conta de como por exemplo Diocleciano Joviano e Valentiniano
vieram de origens semelhantes Eram todos militares de meia idade nascidos nas
proviacutencias da Iliacuteria o que plasma uma mudanccedila no eixo do poder Mitchell (2015 pp 56-
57) frisa como desde a ascensatildeo de Diocleciano em 284 ateacute a morte de Teodoacutesio I em
395 o Impeacuterio foi governado por esses imperadores guerreiros que aniquilavam inimigos
internos e externos O Estado estava centrado em guerras e batalhas Calcula-se que mais
de dois terccedilos de seu orccedilamento anual eram gastos em atividades militares atividades das
quais os imperadores participavam pessoalmente
Siacutemaco soube valer-se da situaccedilatildeo para estreitar laccedilos com a corte e obter ascensatildeo
poliacutetica Esse periacuteodo foi especial tambeacutem por sua produccedilatildeo literaacuteria e pela quantidade
de escritos que sobreviveu ao tempo Segundo OrsquoDonnel (2015 p 161) haacute mais literatura
latina que nos chegou entre 350 e 450 do que de qualquer outro periacuteodo mais ateacute mesmo
que a eacutepoca de ouro latina entre o final da Repuacuteblica e comeccedilo do Impeacuterio9
7 ldquoThis text reveals two contrasting models of patron or emperor ndash and after all the emperor was just the
most powerful patron in Rome The good patron or emperor is marked by his openness accessibility and
friendly and tolerant attitude The bad patron or emperor is marked by his tyrannical abuse of his powers
to make life and death decisions about everyone around him from the lowest slave to the most eminent
senator Celebration of the good model and condemnation of the bad model are found in the entire range
of texts of Latin literature including epic and pastoral poetry lyric and elegiac poetry satire and epigram
historiography oratory and the novel This can leave us in no doubt that how a powerful man behaved
towards his peers and his subordinates was crucial to his social standing and to his political reputationrdquo 8 ldquoEven Plinyrsquos Panegyricus a speech in praise of the emperor Trajan given on the occasion of his
consulship in September AD 100 offers its critique of rulership indirectly through the strategy of
assailing the principate of Domitianrdquo
9 ldquoWe have more surviving Latin literature from this century between 350 and 450 than for any comparable
period before that including the more famously golden age of Caesar Cicero and Vergilrdquo
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946510
OS IMPERADORES SUETONIANOS EM MEMOacuteRIAS POacuteSTUMAS
DE BRAacuteS CUBAS
Bruno Torres dos Santos
RESUMO O presente trabalho busca discutir atraveacutes da anaacutelise de traduccedilotildees proacuteprias as
referecircncias aos imperadores romanos descritos e consagrados pelo bioacutegrafo Suetocircnio em Vida
dos Ceacutesares na obra Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis Aquele no
iniacutecio do seacuteculo II da era comum demonstrou os viacutecios e as virtudes dos imperadores inclusive
enfatizando os escacircndalos de suas cortes Jaacute Machado trouxe agrave tona as vaidades e as ambiccedilotildees
da burguesia brasileira do seacuteculo XIX Entatildeo analisaremos e interpretaremos o uso destes
personagens histoacutericos para a criaccedilatildeo literaacuteria no referido romance partindo do pressuposto de
que eles poderiam passar despercebidos por leitores modernos que natildeo recuperassem as
referecircncias agrave cultura agrave literatura e agrave histoacuteria da Roma Antiga
PALAVRAS-CHAVE Machado de Assis Imperadores romanos Suetocircnio
THE SUETONIAN EMPERORS IN THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF
BRAS CUBAS
ABSTRACT The present work aims through the analysis of own translations the references to
the Roman emperors described and consecrated by the biographer Suetonius in Life of the
Caesars in the novel Posthumous Memoirs of Bras Cubas by Machado de Assis Suetonius
at the beginning of the second century of the common age demonstrated the vices and virtues
of the emperors including emphasizing the scandals of their courts Machado has already
brought to light the vanities and ambitions of the Brazilian bourgeoisie of the nineteenth
century Then we will analyze and interpret the use of these historical characters for the literary
creation in the novel assuming that they could go unnoticed by modern readers who do not
recover references to the culture literature and history of Ancient Rome
KEYWORDS Machado de Assis Roman emperors Suetonius
Entre os mais diversos romancistas com que a literatura brasileira teve contato natildeo haacute
nome maior do que Machado de Assis Tal personalidade nasceu no Morro do Livramento
Eacute doutorando no PPGLC-UFRJ bolsista CAPES sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Anderson Esteves e integrante
discente do grupo de pesquisa ATRIVM ndash Espaccedilo Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (PPGLC-UFRJ) E-
mail brunots_hotmailcom
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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localizado na aacuterea central do Rio de Janeiro proacuteximo a zona portuaacuteria em junho de 1839
Oriundo de famiacutelia pobre estudou em escolas puacuteblicas mas nunca frequentou uma
universidade Dedicou-se aos mais diversos gecircneros literaacuterios escrevendo poesia crocircnica
teatro conto romance Tambeacutem foi criacutetico literaacuterio e jornalista Testemunhou a Aboliccedilatildeo da
Escravatura e as mudanccedilas poliacuteticas no Brasil quando o Impeacuterio foi entatildeo substituiacutedo pela
Repuacuteblica comentando e relatando os respectivos eventos poliacutetico-sociais Em 1897 funda a
ABL (Academia Brasileira de Letras) da qual permaneceu presidente ateacute sua morte em 1908
com 69 anos
Ao discorrer sobre a consolidaccedilatildeo do nosso sistema literaacuterio o professor Antonio
Candido opina sobre Machado afirmando que ele ldquoera dotado de raro discernimento literaacuterio e
adquiriu por esforccedilo proacuteprio uma forte cultura intelectual baseada nos claacutessicos mas aberta aos
filoacutesofos e escritores contemporacircneosrdquo (CANDIDO 2010 p 65) E ainda acrescenta
Sua obra eacute variada e tem caracteriacutestica das produccedilotildees eminentes satisfaz tanto aos
requintados quanto aos simples Ela tem sobretudo a possibilidade de ser
reinterpretada agrave medida que o tempo passa porque tendo uma dimensatildeo profunda de
universalidade funciona como se se dirigisse a cada eacutepoca que surge (CANDIDO
2010 p 65)
Eacute esse diaacutelogo entre o claacutessico e o contemporacircneo com pitada filosoacutefica que daacute
singularidade agrave sua obra fazendo com que suas produccedilotildees sejam sempre atemporais Satildeo esses
traccedilos que se mostram mais produtivos para o nosso estudo no qual pretendemos analisar e
interpretar como os imperadores romanos descritos pelo bioacutegrafo Suetocircnio em sua obra satildeo
utilizados por Machado em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas1 Para tal julgamos necessaacuterio
primeiramente contextualizar brevemente os autores em apreccedilo bem como suas obras
(Memoacuterias Poacutestumas e Vida dos Ceacutesares2) os gecircneros praticados (Romance e Biografia
Antiga) e os tipos de criacutetica social dos dois autores Depois disso analisaremos os excertos do
romance machadiano em questatildeo no qual as presenccedilas dos principes (no singular princeps
termo latino usado na Roma Antiga para se referir ao que entendemos hoje por imperador) se
mostrem mais evidentes para entatildeo coligirmos com trechos da obra suetoniana Para o trabalho
com esta obra utilizaremos a ediccedilatildeo da Loeb Classical Library (1914) mas com traduccedilotildees de
nossa proacutepria autoria para o trabalho com aquela utilizaremos a ediccedilatildeo criacutetica estabelecida
pela Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira (1975)
Como jaacute afirmado Machado praticou os mais diversos gecircneros literaacuterios E jaacute demos os
merecidos creacuteditos pelo conjunto da obra Mas devemos frisar que eacute na praacutetica sobre o gecircnero
romance que os creacuteditos se mostram mais merecidos pois eacute nele que o autor apresenta natildeo soacute
todo o seu ingenium (talento natural) mas tambeacutem toda a sua ars (habilidade teacutecnica) para
usarmos termos proacuteprios da literatura latina
Foi esse talento somado a seu espiacuterito galhofeiro que proporcionou a criaccedilatildeo de um
narrador mais que incomum em Memoacuterias Poacutestumas Sobre esse narrador Francisco Silveira
discorre que ldquoele vinha pelo menos agrave primeira vista infringir dois postulados realistas a
impessoalidade e o verismordquo (SILVEIRA 2001 p 97) Convergirmos com tal visatildeo posto que
eacute com a referida obra e seu respectivo narrador defunto-autor que o Realismo enquanto esteacutetica
literaacuteria vai ser ldquoinauguradordquo no Brasil em 1881 Natildeo menos importante eacute a visatildeo de Alfredo
Bosi
1 Nas proacuteximas remissotildees a essa obra usaremos apenas Memoacuterias Poacutestumas 2 Em liacutengua latina De uita caesarum
Bruno Torres dos Santos
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 25
Quando o romancista assumiu naquele livro capital o foco narrativo na verdade
passou ao defunto-autor Machado-Braacutes Cubas delegaccedilatildeo para exibir com o despejo
dos que nada mais temem as peccedilas de cinismo e indiferenccedila com que via montada a
histoacuteria dos homens A revoluccedilatildeo dessa obra que parece cavar um fosso entre dois
mundos foi uma revoluccedilatildeo ideoloacutegica e formal aprofundando o desprezo agraves
idealizaccedilotildees romacircnticas e ferindo ao cerne o mito do narrador onisciente que tudo vecirc
e tudo julga deixou emergir a consciecircncia nua do indiviacuteduo fraco e incoerente O que
restou foram as memoacuterias de um homem igual a tantos outros o cauto e desfrutador
Braacutes Cubas (BOSI 2006 p 177)
Entendemos assim que o ser humano seraacute analisado sob seu cinismo e sob a
indiferenccedila por um narrador tambeacutem fraco e cheio de incoerecircncias rompendo nesse aspecto
com a esteacutetica Romacircntica Bosi ainda acrescenta
o ponto de vista um velho tema como o triacircngulo amoroso jaacute natildeo se carregaraacute do
pathos romacircntico que envolvia heroacutei-heroiacutena-o outro mas deixaraacute vir agrave tona os mil e
um interesses de posiccedilatildeo prestiacutegio e dinheiro dando a batuta agrave libido e agrave vontade de
poder que mais regem os passos do homem em sociedade Da histoacuteria vulgar do
adulteacuterio de Braacutes Cubas-Virgiacutenia-Lobo Neves agrave triste comeacutedia de equiacutevocos de
Rubiatildeo-Sofia-Palha (Quincas Borba) e desta agrave trageacutedia perfeita de Bentinho-Capitu-
Escobar (D Casmurro) soacute aparecem variantes de uma soacute e mesma lei natildeo haacute mais
heroacuteis a cumprir missotildees ou a afirmar a proacutepria vontade haacute apenas destinos destinos
sem grandeza (BOSI 2006 p 180)
Observamos o olhar aparentemente ldquodespretensiosordquo de Machado de Assis sem a
intenccedilatildeo de criar e de se defrontar com personagens heroicos mas ao lidar com homens-
personagens comuns lidaraacute tambeacutem com problemas comuns Ele analisa a psicologia do
ldquohomemrdquo com todas as suas peculiaridades inveja ganacircncia ambiccedilatildeo E eacute a atmosfera
burguesa que potencializa esses sentimentos De todo modo faz uma ldquocriacutetica socialrdquo sem querer
fazecirc-la Eacute isso que o aproxima e o distancia de Suetocircnio que analisa os retratos morais dos
imperadores romanos com todos os viacutecios e virtudes mas faz ldquocriacutetica socialrdquo e ateacute propaganda
poliacutetica de modo velado
Diferente do esforccedilo na anaacutelise da vida e obra de Machado quem se propotildee a estudar o
bioacutegrafo Caio Suetocircnio Tranquilo inicialmente se depara com algumas imprecisotildees acerca de
sua vida No tocante ao seu local de nascimento Anderson Esteves em seu artigo busca
encontrar vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas proacuteprias obras nos apontando como mais
plausiacutevel a ideia segundo a qual este teria nascido em Roma ou pelo menos se estabelecido
nessa cidade desde a infacircncia Ele nos informa sobre a origem e a condiccedilatildeo familiar de Suetocircnio
o avocirc era de uma condiccedilatildeo menos abastada visto que teria sido um liberto do imperador
Claacuteudio jaacute seu pai de uma condiccedilatildeo social mais elevada pois pertencia a ordem dos equestres
(ESTEVES 2015 p 1-7)
Eacute dado como certo que Suetocircnio teria nascido em 70 EC um ano apoacutes o conhecido ldquoAno
dos quatro imperadoresrdquo sobre o qual ainda falaremos Maacuterio Citroni esclarece-nos que em 69
EC o pai do bioacutegrafo foi combatente ao lado de Oto com o grau de tribunus militum (tribuno
militar) (CITRONI 2006 p 971) Natildeo menos importante eacute o que esclarece Ronald Mellor
segundo ele o cognomen ldquoTranquilordquo atribuiacutedo a Suetocircnio eacute decorrente do esforccedilo do seu pai
na busca pela estabilizaccedilatildeo da paz apoacutes esta terriacutevel guerra civil (MELLOR 1999 p 147)
Conforme observamos de alguma forma sua famiacutelia estava envolvida com as casas
imperiais e dada a condiccedilatildeo do seu pai Suetocircnio teve a possibilidade de ter uma boa educaccedilatildeo
na urbs dedicando-se aos estudos de gramaacutetica e de retoacuterica Nessa trajetoacuteria instrutiva o
bioacutegrafo torna-se amigo iacutentimo do renomado senador Pliacutenio o Jovem Por influecircncia dessa
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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amizade Suetocircnio consegue alguns cargos de prestiacutegio dentro das cortes imperiais Durante o
principado de Trajano ele ocupou os postos de a studiis (com a funccedilatildeo de cuidar dos interesses
e das obrigaccedilotildees culturais do imperador) e o de a bibliothecis (com a funccedilatildeo de cuidar das
bibliotecas puacuteblicas) Sob o principado de Adriano ocupou o posto de ab epistulis (com a
funccedilatildeo de redigir a correspondecircncia oficial) (MORENO 1997 p 645 CITRONI 2006 p
971)
A rede de contato iniciada por seu amigo Pliacutenio permitiu que Suetocircnio alcanccedilasse as
referidas ocupaccedilotildees e por consequecircncia o acesso direto aos arquivos imperiais muitas vezes
fundamentais para a feitura da sua obra De uita caesarum na qual discorre sobre os doze
primeiros ceacutesares de Roma desde o general Juacutelio Ceacutesar ateacute o polecircmico imperador Domiciano
Cabe considerar que ele iniciou a composiccedilatildeo desse seu opus magnum por volta dos primeiros
anos do principado de Adriano o qual se estendeu entre os anos de 117 e 138 EC
Acerca do gecircnero praticado por Suetocircnio devemos considerar que ateacute aqui muito foi
usada a terminologia moderna ldquobiografiardquo poreacutem conveacutem lembrarmos que esse gecircnero relativo
agrave escrita de uma vida na Antiguidade eacute referido por bios pelos gregos e uita pelos romanos
O termo ldquobiografiardquo como salienta Sabina Loriga soacute aparece ao longo do seacuteculo XVII
designando uma obra veriacutedica fundada numa descriccedilatildeo realista que se opotildee a outras formas
antigas de escritura idealizadoras do personagem e das circunstacircncias de sua vida tal qual o
panegiacuterico o elogio a oraccedilatildeo fuacutenebre e a hagiografia (LORIGA 2011 p 17)
A pesquisadora argumenta ainda que desde sua origem na Antiguidade a biografia eacute um
gecircnero hiacutebrido e composto que equilibrando-se entre a verdade histoacuterica e a verdade literaacuteria
sofreu ao longo do tempo profundas transformaccedilotildees sobretudo no que diz respeito agrave escolha e
agrave elaboraccedilatildeo dos fatos e do estilo de narraccedilatildeo (LORIGA 2011 p 18)
Frente a esses esclarecimentos avancemos aos excertos de Memoacuterias Poacutestumas em cujo
iniacutecio o narrador e protagonista Braacutes Cubas relata suas lembranccedilas apoacutes ter sido vitimado por
uma pneumonia Ele que pertencia a uma famiacutelia abastada do seacuteculo XIX narra sua morte e
seu enterro em que apareceram apenas onze amigos Relata diversos periacuteodos da vida infacircncia
adolescecircncia e fase adulta Ainda apresenta suas expectativas com o ldquoEmplastordquo um
medicamento por ele inventado com grande potencial de cura O narrador reconhece que esse
projeto se tornou uma ldquoideia fixardquo que entendemos como uma ideia difiacutecil de se retirar da
cabeccedila E eacute justamente no IV capiacutetulo intitulado A ideacutea fixa que o narrador machadiano faz a
primeira referecircncia a imperadores romanos e ao proacuteprio bioacutegrafo Suetocircnio
A minha ideacutea depois de tantas cabriolas constituiacutera-se ideacutea fixa Deus te livre leitor
de uma ideacutea fixa antes um argueiro antes uma trave no olho Vecirc o Cavour foi a ideacutea
fixa da unidade italiana que o matou Verdade eacute que Bismarck natildeo morreu mas
cumpre advertir que a natureza eacute uma grande caprichosa e a histoacuteria uma eterna
loureira Por exemplo Suetocircnio deu-nos um Claacuteudio que era um simploacuterio mdash ou
ldquouma aboacuteborardquo como lhe chamou Secircneca e um Tito que mereceu ser as deliacutecias de
Roma Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dous
ceacutesares o delicioso o verdadeiro delicioso foi o ldquoaboacuteborardquo de Secircneca E tu madama
Lucreacutecia flor dos Boacutergias se um poeta te pintou como a Messalina catoacutelica apareceu
um Gregorovius increacutedulo que te apagou muito essa qualidade e se natildeo vieste a liacuterio
tambeacutem natildeo ficaste pacircntano Eu deixo-me estar entre o poeta e o saacutebio (Machado de
Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap IV p 103)3
3 Para facilitar a leitura usaremos tal forma nas referecircncias a esta obra que compotildee nossa documentaccedilatildeo textual
Para as referecircncias agraves biografias de Vida dos Ceacutesares adotamos as abreviaccedilotildees do renomado The Oxford Latin
Dictionary (httpswwwoxfordscholarlyeditionscompageabbreviations acessado em 25102019)
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Nesse discurso metalinguiacutestico dirigido diretamente ao leitor a fim de exemplificar a
proacutepria noccedilatildeo de ldquoideia fixardquo Braacutes Cubas evidencia que Suetocircnio o qual ressignificou a ldquoideiardquo
do filoacutesofo estoico Secircneca teve a sua ldquoideiardquo ressignificada por um professor moderno
Diferentemente do bioacutegrafo Suetocircnio bem como os imperadores que ele ldquonos deurdquo que foram
personagens histoacutericas o referido professor natildeo o foi
Entatildeo passemos a essas referecircncias o primeiro imperador citado eacute Tibeacuterio Claacuteudio Druso
Braacutes Cubas adjetiva o Claacuteudio de Suetocircnio como um ldquosimploacuteriordquo que eacute assim descrito na
biografia suetoniana
Infans autem relictus a patre ac per omne fere pueritiae atque adulescentiae tempus
variis et tenacibus morbis conflictatus est adeo ut animo simul et corpore hebetato ne
progressa quidem aetate ulli publico privatoque muneri habilis existimaretur (Suet
Cl 21)
No entanto era crianccedila quando foi abandonado pelo pai e por quase todo o tempo da
primeira infacircncia e adolescecircncia foi acometido por vaacuterias doenccedilas persistentes de tal
modo que estivesse ao mesmo tempo com o espiacuterito e com o corpo debilitado foi
certamente por conta de sua idade avanccedilada estimado como natildeo apto para cargo no
acircmbito puacuteblico e no acircmbito privado
Posteriormente Suetocircnio faz o seguinte relato sobre a inesperada subida ao trono apoacutes o
assassinato do sobrinho Caliacutegula
Per haec ac talia maxima aetatis parte transacta quinquagesimo anno imperium cepit
quantumvis mirabili casu Exclusus inter ceteros ab insidiatoribus Gai cum quasi
secretum eo desiderante turbam submoverent in diaetam cui nomen est Hermaeum
recesserat neque multo post rumore caedis exterritus prorepsit ad solarium proximum
interque praetenta foribus vela se abdidit Latentem discurrens forte gregarius miles
animadversis pedibus studio sciscitandi quisnam esset adgnovit extractumque et prae
metu ad genua sibi accidentem imperatorem salutavit (Suet Cl10 1-2)
Por estas e outras coisas semelhantes tendo passado muito do tempo assumiu o
impeacuterio soacute com cinquenta anos atraveacutes de um caso extremamente interessante
Excluiacutedo entre os outros pelos assassinos de Caio Caliacutegula quando sob o pretexto
de expulsarem a multidatildeo e desejando ele um lugar isolado retirou-se para um
pavilhatildeo ao qual chamam de ldquoHermeacuteurdquo E natildeo muito depois aterrorizado com a
notiacutecia da morte avanccedilou se arrastando para uma galeria solar proacutexima e se escondeu
entre as cortinas postas diante das portas Tendo os peacutes sido observados um soldado
raso correndo de uma parte a outra com uma forte curiosidade procurou saber quem
estaria escondido e reconheceu quem por ele foi retirado do esconderijo Diante do
medo Claacuteudio se prostrou aos seus peacutes o soldado o saudou como imperador
Notamos que um eventual olhar do narrador machadiano sobre a dinastia julio-claudiana
sempre lembrada no pensamento ocidental pelos excelentes generais como Juacutelio Ceacutesar e
Augusto e pelos polecircmicos Tibeacuterio Caliacutegula e Nero pode justificar a anaacutelise de Claacuteudio como
um personagem simploacuterio Isso se daacute mesmo este tendo conquistado diversas regiotildees e tido boa
aceitaccedilatildeo pelo povo romano pois como percebemos nos excertos de sua biografia Suetocircnio
fez ressoar sua fraqueza de espiacuterito inaptidatildeo para o governo e a covardia Cabe lembrar ainda
que numa leitura completa da biografia do imperador ele aparece como um joguete nas matildeos
das proacuteprias esposas Primeiramente Valeacuteria Messalina (a mesma referida no capiacutetulo em
questatildeo das Memoacuterias Poacutestumas) tentou entregar o Impeacuterio nas matildeos de um de seus amantes
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C Siacutelio mas sem sucesso foi por Claacuteudio condenada e executada Jaacute viuacutevo ele se casa com
Agripina que trama pela sua morte para legar o trono a seu filho Nero
Justifica-se assim tambeacutem o seu retrato como uma ldquoaboacuteborardquo na obra Apocoloquintose
na qual o filoacutesofo e tragedioacutegrafo Secircneca que foi banido de Roma por Claacuteudio em 41 em
razatildeo de intrigas palacianas critica ironicamente o receacutem-assassinado imperador Horaacutecio
Rolim de Freitas explica que
O tiacutetulo inicial seria Ludus de morte Claudii O historiador Dion Caacutessio sugeriu que
o tiacutetulo tenha sido Apocolocyntosis (transformaccedilatildeo em aboacutebora) do grego
Ἀποκολοκύνθοσις Tiacutetulo curioso mas era entendido pelos leitores da eacutepoca pois
aboacutebora (ποκολοκύντἡς) era siacutembolo da estupidez (FREITAS 2010 p 13)
Para compreendermos isso devemo-nos lembrar de um aspecto cultural importante na
Roma Antiga ndash a Apoteose A cerimocircnia de deificaccedilatildeo que ocorria durante os funerais dos
iminentes ceacutesares iniciada por Otaacutevio a partir da morte de seu tio Juacutelio Ceacutesar Ou seja o
argumento da obra senequiana eacute parodiar a narraccedilatildeo agraves avessas da apoteose de Claacuteudio
relatando como o morto foi recebido nos infernos pelos deuses transformando-se no alegoacuterico
legume
O segundo imperador citado nesse IV capiacutetulo de Memoacuterias Poacutestumas foi Tito
Vespasiano Augusto Tito foi o segundo princeps da dinastia flaviana Era o filho mais velho
de Vespasiano e irmatildeo de Domiciano os quais tambeacutem seratildeo citados por Braacutes Cubas ao longo
do romance Depois da morte de seu pai Tito assume as reacutedeas do Impeacuterio atuando de modo
similar a ele com excelecircncia no campo militar e com moderaccedilatildeo no campo poliacutetico foi visto
como um bom imperador por Roma Por essa razatildeo eacute descrito por Suetocircnio logo no primeiro
capiacutetulo de sua biografia como ldquoTito tendo o cognome do pai foi o amor e as deliacutecias do
gecircnero humano Tanto de inteligecircncia de habilidade e de fortuna abundava nele que ganhava a
simpatia de todos o que eacute muito difiacutecil durante um governordquo (Titus cognomine paterno amor
ac deliciae generis humani ndash tantum illi ad promerendam omnium voluntatem vel ingenii vel
artis vel fortunae superfuit et quod difficillimum est in impeacuterio () (Suet Tit 11) Com essa
seleccedilatildeo vocabular Suetocircnio ldquonos daacuterdquo o retrato de um imperador diferente de Claacuteudio Eacute esse
retrato com vastos predicados perante a humanidade que serviu de fonte para Machado de
Assis fazer o jogo de palavras com o termo ldquodeliacuteciardquo na ldquoideia fixardquo de um professor
Para encerrar a anaacutelise do capiacutetulo conveacutem observar a segunda referecircncia a tais principes
em ldquoViva pois a histoacuteria a voluacutevel histoacuteria que daacute para tudo e tornando agrave ideacutea fixa direi que
eacute ela a que faz os varotildees fortes e os doudos a ideacutea moacutebil vaga ou furta-cor eacute a que faz os
Claacuteudios mdash formula Suetocircniordquo (Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap
IV p 103) O Bruxo do Cosme Velho brinca com o gecircnero historiograacutefico ao qual o gecircnero
biograacutefico estaacute aparentado Chamando a histoacuteria de voluacutevel ele usa novamente o verbo ldquodarrdquo
Em nossa interpretaccedilatildeo o narrador quer reforccedilar que a histoacuteria ldquodaacuterdquo na acepccedilatildeo de ldquopromoverrdquo
diversos retratos sejam eles positivos ou negativos a depender da ldquoideiardquo que cada personagem
possui Esse modus operandi da formulaccedilatildeo de Suetocircnio muito se relaciona com o de Machado
Avancemos agora ao capiacutetulo XXIII de Memoacuterias Poacutestumas intitulado Triste mas curto
Em tal capiacutetulo Cubas narra sua chegada ao Rio de Janeiro e a sensaccedilatildeo de rever os locais de
sua infacircncia a tristeza de sua famiacutelia e o sofrimento de sua progenitora Quando vecirc sua matildee
com quem natildeo tinha contato haacute nove anos acha-a paacutelida e sem soltar uma palavra sequer pega
em suas matildeos No dia seguinte ela vem a falecer sendo a primeira vez que ele teria tido contato
com a morte de perto de uma pessoa amada Neste iacutenterim ele faz referecircncia a mais um ceacutesar
descrito por Suetocircnio o proacuteprio Juacutelio Ceacutesar que embora natildeo tenha chegado a ser um
ldquoimperadorrdquo enquanto chefe de estado eacute ele quem ldquodesenhardquo o que viria a ser o Impeacuterio
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romano iniciado por seu sobrinho-neto Otaviano Por essa razatildeo tambeacutem incluiacutemos tal general
em nossas anaacutelises e eacute assim referenciado no romance
Longa foi a agonia longa e cruel de uma crueldade minuciosa fria repisada que me
encheu de dor e estupefacccedilatildeo Era a primeira vez que eu via morrer algueacutem Conhecia
a morte de outiva quando muito tinha-a visto jaacute petrificada no rosto de algum
cadaacutever que acompanhei ao cemiteacuterio ou trazia-lhe a ideacutea embrulhada nas
amplificaccedilotildees de retoacuterica dos professores de coisas antigas mdash a morte aleivosa de
Ceacutesar a austera de Soacutecrates a orgulhosa de Catatildeo (Machado de Assis Memoacuterias
Poacutestumas de Braacutes Cubas cap XXIII p 145)
Nas referidas amplificaccedilotildees retoacutericas ressoa a morte do filoacutesofo Soacutecrates a qual de fato
ficou no imaginaacuterio ocidental como uma morte ldquoausterardquo dado o fato de ele ter se mantido
firme em suas ideias ldquocorruptorasrdquo dos jovens atenienses ateacute a hora de seu oacutebito A morte de
Catatildeo o Jovem tambeacutem eacute adjetivada por Braacutes Cubas poreacutem como ldquoorgulhosardquo A respectiva
adjetivaccedilatildeo se apresenta com ecircxito dado o fato de Catatildeo ter sido um poliacutetico romano notaacutevel
por sua integridade moral Sendo ele ainda partidaacuterio da filosofia estoica descrito pelo
historiador Saluacutestio como a antiacutetese direta de Juacutelio Ceacutesar suicidou-se apoacutes a vitoacuteria deste seu
opositor na Batalha de Tapso
Concentremo-nos poreacutem na morte de Ceacutesar mesmo que natildeo haja nenhuma associaccedilatildeo
direta dele com o bioacutegrafo diferentemente dos excertos com os imperadores anteriores isso
natildeo nos impede de relacionaacute-los O narrador machadiano adjetiva tal morte como ldquoaleivosardquo
denotando a atmosfera da traiccedilatildeo pela qual Ceacutesar passou no Senado romano relatada em sua
biografia deste modo
Assidentem conspirati specie officii circumsteterunt ilicoque Cimber Tillius qui
primas partes susceperat quasi aliquid rogaturus propius accessit renuentique et gestu
in aliud tempus differenti ab utroque umero togam adprehendit deinde clamantem
ldquoIsta quidem vis estrdquo alter e Cascis aversum vulnerat paulum infra iugulum Caesar
Cascae brachium arreptum graphio traiecit conatusque prosilire alio vulnere tardatus
est utque animadvertit undique se strictis pugionibus peti toga caput obvoluit simul
sinistra manu sinum ad ima crura deduxit quo honestius caderet etiam inferiore
corporis parte velata Atque ita tribus et viginti plagis confossus est uno modo ad
primum ictum gemitu sine voce edito etsi tradiderunt quidam Marco Bruto irruenti
dixisse καὶ σὺ τέκνον (Suet Jul 82 1-2)
Os que haviam concordado com a natureza do trabalho rodeavam aquele que estava
sentado Sem demorar Ciacutember Tiacutelio que se encarregava dos primeiros papeacuteis como
se houvesse de falar algo caminhou para mais perto Ceacutesar negando atraveacutes de um
gesto contraacuterio passou-o para outro momento Por ambos os lados aquele apertou sua
toga Entatildeo Ceacutesar clamou ldquoIsso eacute verdadeiramente uma violecircnciardquo Um dos Cascas
jaacute lhe tinha ferido por traacutes um pouco abaixo da garganta Com um ponteiro furou com
um ponteiro o braccedilo arrebatado de Casca e o impulso de arremeter foi detido por uma
outra ferida Mas quando observou que seria tomado por robustos punhais por todos
os lados cobriu a cabeccedila com a toga Ao mesmo tempo com a matildeo esquerda conduziu
a dobra da veste ateacute as extremidades das pernas de modo que jaacute estando com a parte
inferior do corpo coberta caiacutesse mais honrosamente Desta maneira foi dilacerado
por vinte e trecircs golpes Ateacute a primeira ferida teria produzido apenas um gemido sem
uma palavra sequer embora alguns afirmem que com o ataque de Marco Bruto teria
dito ldquoTambeacutem tu meu filhordquo
Como reconhecemos esses escritos de Suetocircnio com grande carga dramaacutetica foram
grandes responsaacuteveis por propagar no imaginaacuterio do mundo ocidental este evento que mudou
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os rumos da Roma Antiga Machado de Assis foi ciruacutergico ao usar a palavra aleivosa para
qualificar a morte de Ceacutesar a qual condensa toda a ideia da conjuraccedilatildeo Muito provavelmente
teve acesso a isso atraveacutes da referida biografia
Podemos avanccedilar ao capiacutetulo LXXII do romance cujo tiacutetulo eacute O bibliocircmano no qual o
defunto-autor confessa que deveria suprimir o capiacutetulo antecedente alegando haver nele um
despropoacutesito acerca do qual natildeo gostaria de receber criacuteticas Afirma que setenta anos agrave frente
este leitor que eacute por ele caracterizado e denominado ldquobibliocircmanordquo procuraria minuciosamente
o tal ldquodespropoacutesitordquo poreacutem sem ecircxito natildeo encontraria Em seguida explica que ele natildeo o
encontraria pelo simples fato de ele natildeo existir jaacute que foi suprimido Discorre ainda que isso
natildeo causaria o desinteresse do leitor sobre o livro e que pelo contraacuterio ele o adoraria por ser
um exemplar uacutenico O bibliocircmano continua sua procura mas mesmo sem sucesso se contenta
com o fato de dispor do uacutenico tomo
Jaacute prometeu a si mesmo escrever uma breve memoacuteria na qual relate o achado do livro
e a descoberta da sublimidade se a houver por baixo daquela frase obscura Ao cabo
natildeo descobre nada e contenta-se com a posse Fecha o livro mira-o remira-o chega-
se agrave janela e mostra-o ao sol
Um exemplar uacutenico Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um Ceacutesar ou um
Cromwell a caminho do poder Ele daacute de ombros fecha a janela estira-se na rede e
folheia o livro de vagar com amor aos goles Um exemplar uacutenico (Machado de
Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap LXXII p 209-210)
Neste excerto em que Braacutes Cubas manteacutem sua divagaccedilatildeo sobre o despropoacutesito da mesma
forma que fez com a noccedilatildeo de ideia fixa notamos a segunda referecircncia ao general Juacutelio Ceacutesar
A menccedilatildeo a Ceacutesar e a Cromwell visa ilustrar o modo como uma pessoa estaria transitando pela
rua ldquoa caminho do poderrdquo Oliver Cromwell foi um comandante militar e poliacutetico nascido na
nobreza rural inglesa em 1599 Em 1630 passa por uma conversatildeo religiosa e reconhecendo-
se como um Puritano acreditava que Deus era quem o guiava em suas vitoacuterias sendo muito
ativo durante a Guerra Civil Inglesa Mas quem mais nos interessa eacute o outro poliacutetico e militar ndash
Juacutelio Ceacutesar ndash e este nome associado agrave expressatildeo ldquocaminho do poderrdquo leva-nos a lembrar de
outro aspecto cultural da Roma Antiga ndash a travessia ao Rio Rubicatildeo Jaacute durante a Repuacuteblica
esse rio que dividia a proviacutencia da Gaacutelia Cisalpina (ao norte) do resto da Itaacutelia (ao sul) era de
suma importacircncia visto que a lei romana proibia que fosse transpassado por quaisquer legiotildees
do exeacutercito romano caso isso fosse feito denotaria uma ameaccedila militar interna
Resumidamente os sucessos de Ceacutesar na Gaacutelia acarretaram o aumento de seu poder de
sua popularidade e da ira de seus inimigos Estes influenciados por Catatildeo o Jovem (tambeacutem
jaacute referido no romance de Machado) tentaram promover sua ruiacutena poliacutetica Em 50 AEC o
Senado aprovou uma moccedilatildeo para que Ceacutesar fosse retirado do cargo de governador na Gaacutelia
Marco Antocircnio embasado pelo poder de tribuno do povo vetou a proposta Apoacutes isso houve
uma intensa perseguiccedilatildeo aos partidaacuterios de Juacutelio Ceacutesar Antocircnio precisou deixar Roma por
conta da alta probabilidade de ser assassinado e sem oposiccedilatildeo do Senado declarou estado de
emergecircncia delegando poderes excepcionais a Pompeu Magno Ceacutesar retrucou isso com a
famosa cruzada assim relatada por Suetocircnio
Dein post solis occasum mulis e proximo pistrino ad vehiculum iunctis occultissimum
iter modico comitatu ingressus est et cum luminibus extinctis decessisset via diu
errabundus tandem ad lucem duce reperto per angustissimos tramites pedibus evasit
Consecutusque cohortis ad Rubiconem flumen qui provinciae eius finis erat paulum
constitit ac reputans quantum moliretur conversus ad proximos ldquoEtiam nuncrdquo
inquit ldquoregredi possumus quod si ponticulum transierimus omnia armis agenda
eruntrdquo (Suet Jul 31 2)
Bruno Torres dos Santos
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Em seguida apoacutes o pocircr do Sol atadas as mulas desde o moinho mais proacuteximo ateacute o
veiacuteculo mais escondido comeccedilou o caminho com uma modesta caravana Com as
luzes acabando ia-se embora pelo caminho Entatildeo durante o dia tendo aparecido um
guia com peacutes errantes evadiu pelas mais estreitas veredas E acompanhado pelas
coortes ateacute o rio Rubicatildeo que traccedila o limite de sua proviacutencia parou um pouco e
calculou o quanto se moveu virou-se aos mais proacuteximos e disso ldquoAteacute agora podemos
recuar porque se atravessarmos a pequena ponte todas as coisas deveratildeo ser feitas
atraveacutes das armasrdquo
Cunctanti ostentum tale factum est Quidam eximia magnitudine et forma in proximo
sedens repente apparuit harundine canens ad quem audiendum cum praeter pastores
plurimi etiam ex stationibus milites concurrissent interque eos et aeneatores rapta ab
uno tuba prosilivit ad flumen et ingenti spiritu classicum exorsus pertendit ad alteram
ripam Tunc Caesar ldquoEaturrdquo inquit ldquoquo deorum ostenta et inimicorum iniquitas
vocat Iacta alea estrdquo inquit (Suet Jul 32)
Com ele ainda de tal modo titubeando foi eficaz um prodiacutegio Apareceu de repente
ali proacuteximo uma certa pessoa que estava sentada tocando com uma flauta exiacutemia em
grandeza e forma Para o ouvirem correram muitos pastores tambeacutem muitos soldados
das guarniccedilotildees entre eles alguns tocadores de trombeta Com a trombeta tomada de
um deles o muacutesico lanccedilou-se ao rio E com um imenso vigor realizou um toque
introdutoacuterio ateacute a outra margem do rio Entatildeo disse Ceacutesar ldquoVamos para onde o sinal
dos deuses e a hostilidade dos inimigos nos chamam A sorte estaacute lanccediladardquo
Como jaacute frisamos por parte do narrador de Machado natildeo haacute nenhuma referecircncia direta
desse Ceacutesar ao bioacutegrafo Suetocircnio mas vemos relaccedilotildees diretas entre o ato da desconhecida
pessoa ldquoa caminho do poderrdquo e os atos do general romano Mais uma vez o autor foi ciruacutergico
no uso da expressatildeo destacada para a qual muito provavelmente teve acesso ao excerto de
Suetocircnio cujo conteuacutedo tambeacutem faz parte do imaginaacuterio ocidental ndash a travessia ao rio Rubicatildeo
antecedida da frase ldquoA sorte estaacute lanccediladardquo Cabe lembrar que Machado jaacute usara a expressatildeo no
capiacutetulo XIII de seu romance Helena publicado em 1876 quando o personagem Estaacutecio na
tentativa de esquecer o amor pela protagonista Helena decide pedir Eugecircnia em casamento
Naquela mesma noite ouviu Eugecircnia a esperada palavra A alegria que se lhe
derramou nos olhos foi imensa e caracteriacutestica Um pouco mais de recato natildeo era
descabido em tal ocasiatildeo Natildeo houve nenhum o primeiro ato da mulher foi uma
meninice Eugecircnia ignorava tudo ateacute a dissimulaccedilatildeo do sexo Concedendo a matildeo a
Estaacutecio natildeo era uma castelatilde que entregava o precircmio mas um cavaleiro que o recebia
com alvoroccedilo e submissatildeo
Transposto o Rubicon natildeo havia mais que caminhar direito agrave cidade eterna do
matrimocircnio Estaacutecio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr Camargo pedindo-lhe
a matildeo de Eugecircnia carta seca e digna como as circunstacircncias a pediam (Machado de
Assis Helena cap XIII p 133)
Terminadas as referecircncias ao instaurador da dinastia juacutelio-claudiana faccedilamos um salto
ao capiacutetulo CXVI intitulado Filosofia das folhas velhas no qual Braacutes Cubas alega ter ficado
tatildeo triste com o capiacutetulo anterior a este4 pelo fato de sua amante Virgiacutelia ter embarcado para a
Europa No capiacutetulo CXVI vemos referecircncia a outro imperador associado ao escrito
suetoniano nesse caso trata-se do jaacute referido Domiciano
Apoacutes um governo moderado de dez anos o do seu pai Vespasiano seguido por outro
governo tambeacutem moderado de apenas dois anos o do seu irmatildeo Tito de modo contraacuterio
4 O capiacutetulo CXV intitulado O almoccedilo
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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Domiciano assume com bastante autoritarismo Durante seus quinze anos de governo o uacuteltimo
imperador flaviano cometeu assassinatos de diversos cidadatildeos importantes incluindo
senadores Essas razotildees acarretaram numa conjuraccedilatildeo para a sua morte E diferente do seu pai
e irmatildeo que foram divinizados apoacutes a morte Domiciano ldquorecebeurdquo do Senado um decreto para
a sua damnatio memoriae essa danaccedilatildeo da memoacuteria significava as retiradas de suas imagens
em bustos inscriccedilotildees etc
Esclarecidos esses pontos sobre o imperador Domiciano voltemos a Braacutes Cubas O
narrador inicia o referido capiacutetulo em questatildeo refletindo pela metalinguagem ldquoFiquei tatildeo triste
com o fim do uacuteltimo capiacutetulo que estava capaz de natildeo escrever este descansar um pouco purgar
o espiacuterito da melancolia que o empacha e continuar depois Mas natildeo natildeo quero perder tempordquo
(Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258) e continua a
reflexatildeo
A partida de Virgiacutelia deu-me uma amostra da viuvez Nos primeiros dias meti-me em
casa a fisgar moscas como Domiciano se natildeo mente o Suetocircnio mas a fisgaacute-las de
um modo particular com os olhos Fisgava-as uma a uma no fundo de uma sala
grande estirado na rede com um livro aberto entre as matildeos (Machado de Assis
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258)
O narrador-personagem machadiano Braacutes Cubas discorre sobre seu desgosto pela vida
e sobre a monotonia agrave qual estava submetido apoacutes a partida da mulher ldquoextraconjugalmenterdquo
amada Virgiacutelia Notamos que para ilustrar de modo exagerado o desacircnimo por parte de Braacutes
Cubas sendo esse abatimento comparado a uma viuvez Machado de Assis apresenta seu
defunto-autor de um modo tatildeo ocioso que fisgava as moscas apenas com os olhos Ou seja ele
eacute apresentado mais ociosamente que o imperador Domiciano que espetava moscas A fim de
captarmos essa menccedilatildeo valemo-nos do capiacutetulo 3 da biografia de Domiciano
Inter initia principatus cotidie secretum sibi horarum sumere solebat nec quicquam
amplius quam muscas captare ac stilo praeacuto configere ut cuidam interroganti
essetne quis intus cum Caesare non absurde responsum sit a Vibio Crispo ne muscam
quidem (Suet Dom 3)
Durante os iniacutecios de seu principado solitaacuterio estava ele habituado diariamente pelas
horas a colher para si nada mais que moscas e prender com um estilete pontudo Para
uma certa interrogaccedilatildeo se acaso natildeo tinha ningueacutem dentro do local com Ceacutesar de
modo adequado teria sido respondido por Viacutebio Crispo que natildeo que nem mesmo
uma mosca
Notamos entatildeo que se por um lado atraveacutes da intertextualidade Machado se volta para
o Domiciano de Suetocircnio com o intuito de descortinar o estado de alma de Braacutes Cubas por
outro Suetocircnio apresenta essa anedota das moscas para condicionar seu leitor a um juiacutezo
negativo sobre o retrato moral de Domiciano que nada fazia em prol da burocracia puacuteblica no
iniacutecio de seu principado Essa anedota sobre Domiciano com Viacutebio Crispo enquanto locutor
jamais deixaria de ser apresentada por Suetocircnio haja vista que os atos burocraacuteticos bem como
as accedilotildees militares e diplomaacuteticas faziam parte das temaacuteticas de suas biografias Somos tentados
a crer que o fato de Suetocircnio ser oriundo da ordem dos equestres e mais tarde ter assumido
algumas funccedilotildees puacuteblicas durante o principado de Trajano e de Adriano tambeacutem teria
contribuiacutedo para sua atenccedilatildeo a esses tipos de chistes
Embora Suetocircnio natildeo seja visto como um historioacutegrafo mas sim como um erudito
bioacutegrafo e natildeo tenha pertencido agrave ordem senatorial sabemos que ele enveredou pela tradiccedilatildeo
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historiograacutefica senatorial isto eacute aquela que retratava moralmente bem os imperadores
favoraacuteveis ao Senado e moralmente mal os refrataacuterios a esse corpo Isso talvez tenha se dado
graccedilas ao seu contato com o influente senador Pliacutenio o Jovem e ao participar do seu ciacuterculo
de amizades tambeacutem teve contato com os historiadores Taacutecito e Faacutebio Ruacutestico Podemos
depreender que Domiciano natildeo deixou de apresentar motivos para ser exageradamente mal
retratado pela pena suetoniana e por isso a ressalva de Braacutes Cubas que diz ldquose natildeo mente o
Suetocircniordquo
Avancemos ao capiacutetulo CLII intitulado A moeda de Vespasiano no qual encontramos a
uacuteltima menccedilatildeo feita desde seu tiacutetulo a um imperador romano retratado por Suetocircnio Em tal
capiacutetulo na volta do enterro de Lobo Neves Braacutes Cubas refletia sobre o choro mais
precisamente sobre os soluccedilos sinceros da sua amante Virgiacutelia para o marido ao qual tinha
traiacutedo com igual sinceridade
Jaacute sabemos algumas informaccedilotildees acerca do ceacutesar em questatildeo todavia vale reforccedilar que
foi ele quem saiu vitorioso do conhecido historicamente Ano dos Quatro Imperadores em 69
Apoacutes o suiciacutedio ocorrido em 68 do uacuteltimo juacutelio-claudiano ndash o polecircmico Nero ndash que natildeo havia
deixado ningueacutem para linha sucessoacuteria os generais Galba Otatildeo Viteacutelio e Vespasiano atraveacutes
de sucessivos confrontos armados guerrearam entre si ansiando o trono deixado por Nero
Com a vitoacuteria de Vespasiano eacute instaurada a dinastia flaviana Entatildeo passemos ao curto capiacutetulo
das Memoacuterias Poacutestumas em completude
Tinham ido todos soacute o meu carro esperava pelo dono Accendi um charuto afastei-
me do cemiteacuterio Natildeo podia sacudir dos olhos a cerimocircnia do enterro nem dos ouvidos
os soluccedilos de Virgiacutelia Os soluccedilos principalmente tinham o som vago e misterioso
de um problema Virgiacutelia traiacutera o marido com sinceridade e agora chorava-o com
sinceridade Eis uma combinaccedilatildeo difiacutecil que natildeo pude fazer em todo o trajecto em
casa poreacutem apeando-me do carro suspeitei que a combinaccedilatildeo era possiacutevel e ateacute
faacutecil Meiga Natura A taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave
origem e tanto se colhe do mal como do bem A moral repreenderaacute porventura a
minha cuacutemplice eacute o que te natildeo importa implacaacutevel amiga uma vez que lhe recebeste
pontualmente as laacutegrimas Meiga trecircs vezes Meiga Natura (Machado de Assis
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CLII p 294)
Percebemos que na busca pela anaacutelise do estado de alma de sua amada Virgiacutelia o narrador
Braacutes Cubas reverbera que ldquoA taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave origem
e tanto se colhe do mal como do bemrdquo Mas de onde ele teria tirado essas relaccedilotildees semacircnticas
entre o imperador Vespasiano-moeda-taxa-cheiro Pois bem Mais uma vez quem nos traz a
resposta eacute Suetocircnio
Reprehendenti filio Tito quod etiam urinae vectigal commentus esset pecuniam ex
prima pensione admovit ad nares sciscitans num odore offenderetur et illo negante
ldquoAtquin inquit e lotio estrdquo (Suet Vesp 233)
Repreendeu seu filho Tito porque ele Vespasiano teria inventado um imposto sobre
a urina que por aquele foi advertido entatildeo aproximou o dinheiro do primeiro
pagamento desse tributo do nariz de Tito E perguntando-o se acaso natildeo se sentia
incomodado com odor e Tito negando Vespasiano respondeu No entanto eacute
proveniente da urinardquo
Na curiosa anedota Vespasiano criador de um imposto sobre a urina pois muitos
comerciantes as retiravam das latrinas puacuteblicas e as utilizavam para curtir os tecidos que
vendiam repreende o primogecircnito por ter discordado inicialmente da ideia Natildeo temos duacutevidas
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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de que Machado de Assis teve acesso a essa biografia para usar com propriedade em seu
romance nessa cena em que seu narrador busca explicaccedilotildees para fatos aparentemente
contraditoacuterios
Esse excurso pelas duas obras aparentemente distantes e des-relacionadas nos deu a liccedilatildeo
de que o narrataacuterio enquanto entidade leitora fictiacutecia compreende e decodifica os aspectos
concernentes agraves personalidades em apreccedilo os princepes no entanto para o leitor ideal isso se
mostra mais obscuro Machado de Assis aproveita os questionaacuteveis retratos dos ceacutesares de
Suetocircnio para enriquecer sua obra literaacuteria
Assim contribuindo mais para a compreensatildeo do romance machadiano pela anaacutelise da
traduccedilatildeo a qual nos permitiu o estudo sobre as referecircncias agrave histoacuteria agrave cultura e agrave literatura da
Roma Antiga cristalizados pelos Claacuteudio Tito Ceacutesar Domiciano e Vespasiano suetonianos
os esforccedilos empreendidos teratildeo alcanccedilado seu objetivo nessas ressignificaccedilotildees Se as
referecircncias e os eventos atrelados a esses ceacutesares que nos foram ldquodadosrdquo pelas biografias de
Suetocircnio tiverem sido descortinados dentro das Memoacuterias Poacutestumas de Machado de Assis
podemos ficar sem ldquoideias fixasrdquo de que criamos ldquodespropoacutesitosrdquo
IacuteNDICE DE ABREVIACcedilOtildeES
Suet Cl (Suetocircnio Claacuteudio)
Suet Dom (Suetocircnio Domiciano)
Suet Jul (Suetocircnio Juacutelio Ceacutesar)
Suet Tit (Suetocircnio Tito)
Suet Ves (Suet Vespasiano)
DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL
ASSIS Joaquim Maria Machado de Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Rio de Janeiro
Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975
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Caligula Translated by J C Rolfe Introduction by K R Bradley Loeb Classical Library 31
Cambridge MA Harvard University Press 1914
______ Lives of the Caesars Volume II Claudius Nero Galba Otho and Vitellius
Vespasian Titus Domitian Lives of Illustrious Men Grammarians and Rhetoricians
Poets (Terence Virgil Horace Tibullus Persius Lucan) Lives of Pliny the Elder and
Passienus Crispus Translated by J C Rolfe Loeb Classical Library 38 Cambridge MA
Harvard University Press 1914
Bruno Torres dos Santos
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(orgs) Literatura de Roma Antiga Co-autores da traduccedilatildeo Margarida Miranda e Isaiacuteas
Hipoacutelito Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2006
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946511
LUCIacuteOLA E O TRAacuteGICO ESTUDO ACERCA DAS MARCAS DO HEROacuteI
TRAacuteGICO EM UM PERFIL DE MULHER ALENCARIANO
Heitor Victor
RESUMO Recorrer aos claacutessicos para entender nosso tempo natildeo eacute mesmo nenhuma novidade
Apelar para a trageacutedia grega a fim de identificar o que persiste em nossa compreensatildeo acerca
de noacutes mesmos se tornou lugar comum de investigaccedilotildees em diversas aacutereas de interesse Tal
estrateacutegia se repete em razatildeo evidentemente de uma inesgotaacutevel potecircncia alegoacuterica acerca da
existecircncia humana O que pretendo neste breve trabalho eacute uma anaacutelise em linha comparativa
das marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia de Alencar personagem que o proacuteprio autor considera
um de seus perfis de mulher Para tal dialogo com Benjamin que se apresenta como um elo de
compreensatildeo do heroacutei traacutegico figura esta que se mostrou mais longeva do que a proacutepria trageacutedia
helecircnica
PALAVRAS-CHAVE Luciacuteola Traacutegico Heroiacutena
LUCIacuteOLA AND THE TRAGIC ESSAY ABOUT THE MARKS OF THE
TRAGIC HERO IN A WOMAN PROFILE OF JOSEacute DE ALENCAR
ABSTRACT It is no novelty that a return to the classics helps to understand our own time It is
even a commonplace in many research fields that an approach to greek tragedy makes it
possible for us to better understand ourselves Such a strategy still turns out to be suitable
because there is an ongoing possibility of creating allegories of human existence My aim in
this short essay is to perform a comparative analysis of the tragical features of Luacutecia an
important character of Joseacute de Alencars prose who the author himself deems to be a crucial
example of his depictions of the feminine In order to do that I draw upon Walter Benjamins
work which provides us with a comprehensive overview of the tragic hero - who actually
proved himself to be more important than the helenic tragedy itself
KEYWORDS Luciacuteola Tragic Heroine
Introduccedilatildeo
O teatro traacutegico dos gregos natildeo pode mais retornar isso eacute um fato mas eacute marcante a sua
presenccedila ainda em nossa literatura ocidental Analisar o elemento traacutegico natildeo eacute necessariamente
uma novidade mas sempre se mostra desafiador relacionarmos o traacutegico agrave estrutura de
composiccedilatildeo da personagem do romance na literatura moderna O presente trabalho pretende
Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
E-mail heitor-victorhotmailcom
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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pois fazer uma leitura da personagem Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar pioneira da
seacuterie perfis de mulher como construiacuteda sob o signo do traacutegico uma heranccedila legada pelo teatro
grego e que perdura em nossa cultura
O desafio que salta aos olhos eacute certamente as dificuldades de se transpor para o romance
caracteriacutesticas da personagem do texto dramaacutetico ou entender nesta a capacidade de se
apresentar com a profundidade comum ao romance Eacute possiacutevel entender contudo que retiradas
as divergecircncias praacuteticas do meio de veiculaccedilatildeo das narrativas sobram elementos em comum
que residem no imaginaacuterio coletivo e soacute fazem enriquecer o repertoacuterio de leituras que nos
permite a prosa alencariana do seacuteculo XIX
Luacutecia eacute uma das heroiacutenas mais complexas de seu autor capaz de em poucas paacuteginas
fazer o leitor se questionar sobre sua verdadeira natureza ora por sua candura ora por sua ironia
aacutecida apego e desprendimento iacutempares no cenaacuterio romanesco de um tempo que vecirc transbordar
a quantidade de novas e encantadoras personagens Nossa heroiacutena permite-nos destacaacute-la
exatamente por encerrar um signo que extrapola o estilo de seu tempo por meio de grandes
dicotomias autoconsciecircncia e culpa sacrifiacutecio e desejo silecircncio e seduccedilatildeo a personagem se
nos mostra uacutenica no cenaacuterio veloz e dinacircmico dos romances de folhetim
Sublime Decaiacutedo Uma Alegoria
No intuito de criar um elemento intermediaacuterio entre o heroacutei da trageacutedia e o heroacutei traacutegico
que mostrarei estar presente no romance Luciacuteola de Joseacute de Alencar seraacute preciso recorrer agrave
descriccedilatildeo desse heroacutei feita por Walter Benjamin (2011) acerca do drama traacutegico alematildeo
Enquanto aparato cecircnico ou mesmo de criaccedilatildeo literaacuteria encontramos outro contexto e outra
realidade mas o elemento fundamental ainda estaraacute laacute presente O heroacutei traacutegico manteraacute uma
seacuterie de aspectos essenciais que o transformam no portador da anguacutestia humana sem perder o
inexoraacutevel do mito despido ainda mais do movimento de ritualizaccedilatildeo religioso Eacute o traacutegico que
permanece e esse seraacute fundamental para a construccedilatildeo de uma identidade nacional do drama
alematildeo segundo o autor o que nos mostra o potencial desse heroacutei traacutegico no processo de
aproximaccedilatildeo entre o discurso formador e o seu espectador (BENJAMIN 2011)
Um primeiro elemento identificado por Benjamin (2011) que nos interessa no heroacutei
traacutegico eacute o seu caraacuteter alegoacuterico se eacute que posso falar em alegoria do mito que jaacute o eacute em essecircncia
Certamente contudo figura nesse elemento a grande potecircncia reflexiva da personagem traacutegica
que poderaacute ser transportado para Luacutecia Ao relevarmos a ambiccedilatildeo do autor de traccedilar perfis de
mulher1 a alegoria destaca Luacutecia de Emiacutelia e Aureacutelia o que faz evidenciar naquela a tragicidade
em comparaccedilatildeo com estas Deixe-me verificar antes e em linhas mais gerais o que entende
Benjamin por alegoria no drama traacutegico
Devo dispensar em razatildeo de objetivos praacuteticos a discussatildeo do autor acerca das
concepccedilotildees de alegoacuterico e simboacutelico para o barroco e para o romantismo para ir diretamente ao
ponto o alegoacuterico eacute entendido como aquele que supera a unidade da obra e se posiciona com
transcendecircncia agrave medida que o siacutembolo se encerra em si mesmo mostra identidade e um caraacuteter
proacuteprio da obra em que se coloca Benjamin recorre a Goethe para mostrar a concepccedilatildeo
romacircntica de siacutembolo e alegoria ldquoHaacute uma grande diferenccedila entre o poeta procurar o particular
para chegar ao geral e contemplar o geral no particular No primeiro procedimento temos uma
alegoria e o particular serve apenas como exemplo como caso exemplar do geralrdquo
(BENJAMIN 2011 p 171)
1 Natildeo devemos deixar de reconhecer que essa intenccedilatildeo descritiva de construccedilatildeo de um perfil apresenta-se como
um elemento romanesco do narrador de Luciacuteola Como visto no primeiro capiacutetulo da obra quando o narrador
se justifica a G M sua pretensa correspondente ldquoEacute um perfil de mulher apenas esboccediladordquo (ALENCAR 1972
p 121) A todo momento que eu tocar nesse ponto se deve reconhecer que a nossa base reside antes de tudo
nesse caraacuteter narrativo do romance alencariano
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A despeito da valoraccedilatildeo feita por Goethe seguiremos a leitura de Benjamin para
entender Luacutecia como o caso particular representativo de um perfil maior o da mulher que
encarna o anjo caiacutedo seu nome daacute a grande indicaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo alegoacuterica mas a mesma
natildeo deixa de aparecer ao longo da obra Reconhecerei em minha anaacutelise na Luacutecia de Alencar
a alegoria da mulher sublime que decai em todo o seu caraacuteter duacutebio mas ainda assim
permanente que morre ao final do romance natildeo agrave toa mas de maneira necessaacuteria para
consolidar a aspiraccedilatildeo alegoacuterica desse perfil de mulher talvez o mais ousado de Alencar
Benjamin reconhece que
o seu (da alegoria) significado eacute aquele que o alegorista lhe atribuir Ele investe-o
desse significado e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele natildeo em sentido
psicoloacutegico mas ontoloacutegico Nas suas matildeos a coisa transforma-se em algo de diverso
atraveacutes dela ele fala de algo de diverso e ela torna-se para ele a chave que lhe daacute acesso
a um saber oculto que ele venera na coisa como seu emblema Eacute nisso que reside o
caraacuteter escritural da alegoria (BENJAMIN 2011 p 196)
Esse seraacute portanto o meu ponto de partida Para natildeo deixar qualquer duacutevida sobre essa
relaccedilatildeo devo me deter nesse tema ainda para mostrar na obra algumas marcas dessa relaccedilatildeo A
comeccedilar pelo elemento dramaacutetico de narraccedilatildeo o recado de G M ldquoao autorrdquo Apoacutes reconhecer
a grandeza da personagem e o valor da narrativa que se seguiraacute dramaticamente posta como
uma publicaccedilatildeo da mesma G M afirma ldquoNatildeo seraacute a imagem verdadeira da mulher que no
abismo da perdiccedilatildeo conserva a pureza drsquoalmardquo (ALENCAR 1972 p 120) Natildeo se pode
desaperceber que eacute usado natildeo a referecircncia definida dedicada agrave Luacutecia mas uma referecircncia geral
a todas as mulheres Eacute exatamente nesse caraacuteter geneacuterico que residiria o valor alegoacuterico de que
trato neste trabalho
Podemos tambeacutem recorrer aos eventos narrados no interior do romance para vermos
personificada a alegoria do anjo caiacutedo seja pela capacidade de transitar com primor entre um e
outro digo entre o angelical e o demoniacuteaco ou seja por encerrar em si mesma os dois
extremos Luacutecia se nos apresenta apenas pela narrativa de Paulo natildeo se pode esquecer e muito
de sua transitoriedade pode residir apenas nas impressotildees desse narrador personagem mas isso
em nada muda o seu caraacuteter alegoacuterico Um episoacutedio que expressa com clareza a ambivalecircncia
de Luacutecia eacute o de seu primeiro encontro iacutentimo com Paulo Em curto espaccedilo de tempo
cronoloacutegico e narrativo vemos uma transformaccedilatildeo que beira a ida pronta do sagrado ao
profano No momento em que avanccedila sobre Luacutecia Paulo reconhece
Quando poreacutem os meus laacutebios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as
formas encantadoras que debuxavam a seda pareceu-me que o sangue lhe refluiacutea ao
coraccedilatildeo As palpitaccedilotildees eram bruscas e precipites Estava liacutevida e mais branca do que
o alvo colarinho do seu roupatildeo Duas laacutegrimas em fio duas laacutegrimas longas e sentidas
como dizem que chora a corccedila expirando pareciam cristalizadas sobre a face de tatildeo
lentas que rolavam (ALENCAR 1972 p 134-135)
Vemos aqui com a reaccedilatildeo genuiacutena de Luacutecia somada agraves laacutegrimas sua comparaccedilatildeo ao
choro da corccedila notamos aqui o temperamento puro que nos surpreende a todos narrador e
leitor Surpresa que se justifica com a mudanccedila abrupta de Luacutecia para entregar a imagem que
nos foi construiacuteda pelos pares de Paulo de que nossa heroiacutena se tratava de uma cortesatilde das mais
haacutebeis
Era outra mulher O rosto cacircndido e diaacutefano que tanto me impressionou agrave doce
claridade da lua se transformara completamente tinha agora uns toques ardentes e
um fulgor estranho que o iluminava Os laacutebios finos e delicados pareciam tuacutemidos dos
desejos que incubavam Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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narina que tremiam com o aneacutelito do respiro curto e sibilante e tambeacutem nos fogos
surdos que incendiavam a pupila negra (ALENCAR 1972 p 136)
Nessa transformaccedilatildeo se apresenta a indistinguiacutevel transiccedilatildeo do sagrado do choro da
corccedila para a respiraccedilatildeo sibilante demoniacuteaca em lasciacutevia Seria inuacutetil continuar enumerando os
momentos em que se evidencia tal transformaccedilatildeo acredito que esses episoacutedios partem da
anteriormente citada alegoria que pode nortear nossa leitura do romance
Natildeo nos seraacute nunca possiacutevel bater o martelo sobre tal questatildeo seria Luacutecia o siacutembolo de
Goethe ou a alegoria de Benjamin Somando contudo as marcas supracitadas a ainda o
reconhecimento de outras marcas do traacutegico preferirei me manter na leitura de Benjamin de
que o alegoacuterico eacute ainda desejaacutevel mesmo no romance exatamente por seu valor transcendente
e assim poderemos entender Luacutecia e seu perfil exclusivo de mulher como tambeacutem dotado de
valor reflexivo e generalista das anguacutestias femininas
Marcas do Heroacutei Traacutegico
As laacutegrimas do episoacutedio transcrito acima servem como indicador do demais elementos
de proximidade entre o heroacutei traacutegico de Benjamin e a Luacutecia de Alencar Tal choro evidencia
uma dor suprimida mas acima de tudo encerra em si quatro aspectos sobre os quais tratarei
neste trabalho o silecircncio a culpa a consciecircncia e o sacrifiacutecio O silecircncio de quem guarda para
si o seu verdadeiro eu suas dores e reflexotildees Eacute nas laacutegrimas que temos o primeiro vislumbre
da profundidade traacutegica de Luacutecia A personagem demonstra nesse exato momento plena
consciecircncia de si de seu destino e sente a culpa que pesa sobre si as laacutegrimas expressam o
ardor do seu sacrifiacutecio pois satildeo sublimadas por sua candura Vejamos adiante o que pretendo
dizer com esses quatro aspectos e sua relaccedilatildeo com o traacutegico
Devo principiar contrariando a ordem anterior pelo sacrifiacutecio para manter a
abordagem de Benjamin O autor entende que o heroacutei traacutegico realiza sua atuaccedilatildeo maior em sua
proacutepria morte o sacrifiacutecio maior e que eacute exatamente entatildeo que o heroacutei se distingue dos demais
indiviacuteduos Benjamin afirma
A marca identificativa da trageacutedia natildeo estaacute pois num conflito de niacuteveis entre o heroacutei
e mundo circundante [] mas sim a forma uacutenica grega de tais conflitos E onde deve
ser procurada essa forma Que tendecircncia se esconde no fenocircmeno traacutegico Por que
causa morre o heroacutei A poesia traacutegica assenta na ideia do sacrifiacutecio (BENJAMIN
2011 p 108)
Luacutecia se sacrifica natildeo apenas porque morre mas se encerra em sua morte uma entrega
definitiva a Paulo e agrave sua irmatilde Ana A morte de Luacutecia eacute decisiva para a construccedilatildeo e para a
profundidade da personagem aleacutem de ser elemento fundamental para a generalidade
constitutiva da alegoria Ainda mais que o sacrifiacutecio do heroacutei traacutegico natildeo eacute um sacrifiacutecio
comum Seguindo ainda o raciociacutenio de Benjamin temos
o sacrifiacutecio traacutegico difere no seu objeto ndash o heroacutei ndash de todos os outros e eacute ao mesmo
tempo inaugural e terminal Terminal no sentido do sacrifiacutecio expiatoacuterio devido aos
deuses guardiatildees de um antigo direito e inaugural no sentido de uma accedilatildeo que em
algum lugar desse direito anuncia novos conteuacutedos da vida do povo (BENJAMIN
2011 p 108)
Ou seja o sacrifiacutecio de Luacutecia eacute terminal expiatoacuterio de sua vida de perfiacutedia Luacutecia
reconhece em seus uacuteltimos momentos para Paulo a sua importacircncia e exatamente por isso por
ele se sacrifica
Heitor Victor
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ndash Paulo Paulo Tu bem sabes que com essa palavra me farias cometer crimes se
crimes fosse necessaacuterio para te provar que eu soacute vivo da vida que me daacutes e me podes
tirar com um sopro Natildeo sou eu criatura tua natildeo renasci pela luz que derramaste em
minha alma Natildeo eacutes meu senhor meu artista meu pai e meu criador (ALENCAR
1972 p 243)
O sacrifiacutecio de Luacutecia como se evidencia natildeo estaacute apenas na morte mas na sua entrega
completa Entrega que se apresenta como sua uacutenica forma de se redimir da vida que levara O
sacrifiacutecio reconhecendo ainda tais aspectos de Benjamin eacute tambeacutem inaugural quando se
direciona a Ana sua irmatilde em quem enxerga a uacutenica continuidade possiacutevel Seja para sua
protegida ou mesmo para a continuidade da vida de Paulo possiacutevel apenas com o encerramento
da sua proacutepria vida
Outro aspecto do heroacutei traacutegico de Benjamin presente em Luciacuteola eacute o silecircncio jaacute
mencionado anteriormente ldquoO heroacutei traacutegico tem apenas uma linguagem que plenamente lhe
corresponde precisamente a do silecircncio Assim eacute desde o iniacuteciordquo (BENJAMIN 2011 p 109)
Esse silecircncio eacute identificaacutevel em diversos momentos em Luacutecia pois evoca a resiliecircncia da
heroiacutena com o seu fardo Natildeo eacute um silecircncio de conformismo ou mesmo qualquer espeacutecie de
natildeo se importar que a toma mas ldquoo testemunho de um sofrimento mudordquo (BENJAMIN 2011
p 109) Eacute com esse silecircncio que Luacutecia arrebata o leitor para o seu drama pessoal natildeo como um
perseguidor ou inquisidor mas como partiacutecipe de seu pesar de sua dor Tal silecircncio aparece
nos momentos de prazer como quando se divertia no banquete noturno na casa de Saacute ldquoLuacutecia
fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria e caiacutera no costumado abatimento e distraccedilatildeo Eu a
contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava
quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaiacutedordquo (ALENCAR 1972 p 152-
153) Ou mesmo em sua face mais sincera jaacute como Maria ldquoQuando cheguei Luacutecia estava soacute
no jardim debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujaacutes tatildeo absorvida em sua
meditaccedilatildeo que natildeo me percebeurdquo (ALENCAR 1972 p 245)
Seguindo com minha anaacutelise comparativa devo abordar o aspecto da consciecircncia
fundamental para a diferenciaccedilatildeo entre uma outra personagem qualquer e o heroacutei traacutegico Esse
aspecto em especial eacute importante para a leitura que apresento por se tratar de algo que
claramente distingue o heroacutei romacircntico convencional daquele que eacute regido pelo signo do
traacutegico O heroacutei do romance desconhece completamente o seu destino e reside precisamente
nisso suas duacutevidas e questionamentos Nossa heroiacutena traacutegica contudo ainda que tambeacutem
romacircntica ndash natildeo o desejamos negar em nenhum momento se mostra consciente do seu caminho
Para esclarecer esse sentido de consciecircncia Benjamin traz uma fala de Lukaacutecs acerca do
reconhecimento da proacutepria morte
Tambeacutem a escolha da morte pelo homem traacutegico eacute um heroiacutesmo soacute aparentemente
heroico soacute assim visto de um ponto de vista humano e psicoloacutegico os heroacuteis
moribundos da trageacutedia ndash escrevia haacute pouco tempo um jovem autor traacutegico ndash estatildeo
mortos muito tempo antes de morrerem (BENJAMIN 2011 p 117)
Apenas a cargo de exemplificaccedilatildeo que se encaixa bem na ideia de reconhecimento da
morte como marca do heroacutei traacutegico podemos citar a consciecircncia apresentada por Luacutecia antes
de sua proacutepria morte ldquondash Se eu pudesse viver haveria forccedilas que me separassem de ti Haveraacute
sacrifiacutecio que eu natildeo fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade Mas Deus natildeo
quis Sinto que a vida me fogerdquo (ALENCAR 1972 p 248)
Devo tratar por fim do quarto aspecto a que me reservei neste trabalho que eacute o da culpa
Sem duacutevidas o eixo central de todo o romance de Alencar A culpa natildeo pode ser entendida
contudo como o arrependimento de seus atos ou mesmo sujeiccedilatildeo completa ao proacuteprio erro A
culpa como elemento traacutegico traz um valor de compreensatildeo Nossa heroiacutena traacutegica natildeo apenas
se lamenta da vida que fora levada a ter mas por meio da culpa ela se reconstroacutei eacute precisamente
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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por meio da culpa que no fim em meio ao embate entre anjo e democircnio prevalece sua face
angelical e a alegoria alcanccedila a sua plenitude Recorro ainda agraves palavras de Benjamin para
clarificar essa noccedilatildeo de culpa no drama traacutegico
No decorrer da accedilatildeo traacutegica um heroacutei assume e internaliza essa culpa que segundo
as antigas normas eacute imposta aos homens a partir de fora pela desgraccedila Ao refleti-la
na sua consciecircncia de si ele furta-se agrave sua tutela demoniacuteaca [] Paradoxal como
todas as manifestaccedilotildees da culpa traacutegica ela consiste apenas numa orgulhosa
consciecircncia de culpa na qual a figura heroica se liberta da servidatildeo que na sua
lsquoinocecircnciarsquo a sujeita agrave culpa demoniacuteaca (BENJAMIN 2011 p 135)
Essa culpa talvez seja dentre os aspectos ateacute aqui elencados o que mais se mostra claro
ao longo de Luciacuteola Nos momentos de maior comoccedilatildeo compartilhamos com Luacutecia esse seu e
genuiacuteno sentimento e eacute precisamente graccedilas a ele que o lado sagrado desse anjo caiacutedo prevalece
e nos faz criar a empatia entre leitor e personagem Vejamos portanto dois casos que
expressam os dois extremos da culpa vivida por Luacutecia Ora tal sentimento se expressa pela
ironia como quando Paulo no evento da casa de Saacute tenta singularizar a sua presenccedila e nossa
heroiacutena rebate com acidez
ndash Ora Haacute tanta mulher bonita Qualquer destas vale mais do que eu acredite Demais
quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado saberaacute o senhor de
quem satildeo os laacutebios que toca Qual Eacute uma mulher Uma presa em que ceva o apetite
Que importa o nome Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe
prepararam esta ceia Conhece-os Nem por isso as iguarias lhe parecem menos
saborosas (ALENCAR 1972 p 153)
Em outro momento contudo vemos a culpa sob outra roupagem da maneira mais
sincera em um de seus momentos de maior entrega
ndash Tu podes me fazer voltar agrave treva de que me arrancaste podes estancar as fontes de
minha existecircncia que manam de tua alma e natildeo me haacutes de ouvir uma soacute queixa A
dor como a alegria seratildeo sempre benditas por que viratildeo de ti Mas Paulo a suacuteplica
do humilde natildeo ofende Deus a permite e exalccedila Natildeo me retires a graccedila e a becircnccedilatildeo
que me deste Salva-me Paulo Salva-me a ti Salva-me de mim mesma
(ALENCAR 1972 p 243)
Natildeo agrave toa seleciono esta uacuteltima fala de Luacutecia para encerrar a argumentaccedilatildeo pois
precisamente aqui a culpa se mostra como o elemento libertador e eacute aqui que Luacutecia talvez tenha
entendido e absorvido o orgulho citado por Benjamin para livraacute-la da tutela demoniacuteaca Liberta-
se finalmente da servidatildeo que a acomete por toda a obra A projeccedilatildeo em Paulo eacute certamente a
projeccedilatildeo em um amor libertador que foi capaz de transfigurar a modalidade da culpa que sentia
Eacute entatildeo que Luacutecia deixa claro que compreende que a dor e a alegria se complementam e assim
encerra o perfil da mulher que decaiu mas que no fim projeta em sua alegoria a clareza do seu
papel em sua proacutepria narrativa Essa compreensatildeo faz de Luacutecia a heroiacutena de Alencar que mais
beira a perdiccedilatildeo a mais altiva e capaz de se assemelhar agrave heroiacutena da trageacutedia e assim como laacute
melhor do que se realmente apresentam homens e mulheres
Conclusatildeo
Ao recorrer portanto agraves estrateacutegias de identificaccedilatildeo da interioridade e de posiccedilotildees
constitutivas do heroacutei traacutegico acredito que se torna possiacutevel clarificar como o teatro grego
passou a atuar sobre o mito por meio de maior variabilidade narrativa do mesmo Essa
possibilidade de apresentar uma personagem mais profunda ainda que por meio da accedilatildeo
Heitor Victor
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dramaacutetica eleva o texto teatral e especificamente a trageacutedia ndash que usa a personagem miacutetica
como forma de apresentar seres mais elevados do que os indiviacuteduos da sociedade ndash ao papel de
ressignificar o mito Eacute por meio dessas personagens dramaacuteticas que a fabulaccedilatildeo estaacutetica do mito
pode apresentar novos argumentos para o meio em que estaacute inserida
Reconhecendo nas estrateacutegias de interpretaccedilatildeo da personagem dramaacutetica a ferramenta
de atualizaccedilatildeo do mito despida do elemento religioso foi possiacutevel analisar com certo grau de
convicccedilatildeo o heroacutei da trageacutedia Evidenciou-se como isso o papel desse heroacutei e sua capacidade
de conduzir efetivamente a narrativa miacutetica para novos caminhos interpretativos possibilitando
essa narrativa a se apresentar sob nova perspectiva O heroacutei visto dessa maneira ganha
destaque como formador de questionamentos e permite ao leitorespectador por meio do
elemento traacutegico estabelecer nova compreensatildeo
Esse heroacutei traacutegico permanece com o seu poder reflexivo mesmo fora do contexto miacutetico
levando-nos ao reconhecimento do traacutegico como formador efetivo de questionamentos Satildeo
estes aspectos traacutegicos que Benjamin identifica como herdeiros do teatro grego no teatro
alematildeo que eu resgato como possiacuteveis na construccedilatildeo de profundidade do heroacutei do romance eacute
precisamente sob esses aspectos que Luacutecia ndash a heroiacutena romacircntica mas dotada do elemento
traacutegico ndash eacute capaz de saltar aos olhos do leitor como dona de seu proacuteprio destino jamais apenas
sujeita ao mesmo Com isso cada traccedilo da heroiacutena de Alencar eacute capaz de se mostrar natildeo apenas
como marca de um perfil de mulher mas tambeacutem o perfil de um aspecto comum a todas as
mulheres Somente por meio da alegoria do anjo caiacutedo se poderia alcanccedilar tamanha projeccedilatildeo
dentro de um cenaacuterio em que o indiviacuteduo eacute professado como ponto central da construccedilatildeo de
uma obra de arte
REFEREcircNCIAS
ALENCAR Joseacute de Obras Imortais da Nossa Literatura Joseacute de Alencar Iracema ndash
Luciacuteola Satildeo Paulo Editora Trecircs 1972
ARISTOacuteTELES Poeacutetica In A Poeacutetica Claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 12ordf ediccedilatildeo 2005
BENJAMIN Walter Origem do Drama Traacutegico Alematildeo Belo Horizonte Autecircntica Editora
2011
CANDIDO Antonio A Personagem do Romance In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo Paulo
Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014
ELIADE Mircea Mito e Realidade Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2ordf ediccedilatildeo 1986
PRADO Deacutecio de Almeida A Personagem no Teatro In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo
Paulo Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946512
CARACTERIZACcedilAtildeO SIMBOacuteLICA ATRAVEacuteS DE SIacuteMILES
ANIMAIS NA ILIacuteADA
Marco Valeacuterio Classe Colonnelli (Universidade Federal da Paraiacuteba)
RESUMO O intuito deste artigo eacute demonstrar a partir de alguns siacutemiles como Homero
produz uma caracterizaccedilatildeo concisa de seus heroacuteis A perspectiva de abordagem neste
estudo eacute comprovar a eficaacutecia do uso dos siacutemiles pelo poeta em consonacircncia com a obra
de Aristoacuteteles Investigaccedilatildeo dos Animais que nos permite aferir certo valor simboacutelico de
determinados animais ainda no seacutec IV aC Partindo de comparaccedilotildees com animais o
poeta produz siacutemiles que formam um quadro imediato e eficaz do heroacutei projetado pela
forccedila simboacutelica e analoacutegica que o animal evoca como termo comparativo na cultura grega
arcaica e claacutessica
PALAVRAS-CHAVES Caracterizaccedilatildeo Iliacuteada Homero siacutemiles eacutepica Aristoacuteteles
SYMBOLIC CHARACTERIZATION THROUGH SIMILES
ANIMALS IN THE ILIAD
ABSTRACT The purpose of this article is to demonstrate from some similes how Homer
produces a concise characterization of his heroes The prospect of approach in this study
is to prove the efficacy of the use of similes by the poet in accord with the work of
Aristotle Research of the Animals which allows us to assess certain symbolic value of
certain animals even in the 4th century BC Starting from the comparison with animals
the poet produces similes that form an immediate and effective framework of the hero
projected by the symbolic and analogue force that the animal evokes as a comparative
term in the archaic and classical Greek culture
KEYWORDS Characterization Iliad Homero Facsimiles Epic Aristotle
1 Sobre o siacutemile homeacuterico
Desde o lanccedilamento do livro de Milman Parry ldquoThe Making of Homeric Verserdquo
que revelou novas facetas para o estudo de Homero o siacutemile passou a ser estudado por
uma infinidade de autores Foacutermulas funccedilotildees oralidade sequecircncias de imagens dentre
outras caracteriacutesticas foram tatildeo sistematicamente investigadas nos siacutemiles que um resumo
sobre essas principais teorias produziria um material muito denso1
E-mail mcolonnellihotmailcom 1 Desde os estudos de Milman Parry duas principais linhas de estudos tecircm debatido calorosamente a
possibilidade de uma caracterizaccedilatildeo de personagens a despeito das foacutermulas e repositoacuterios de palavras
usados nos dois poemas eacutepicos de Homero Adam Parry filho de Milman em seu artigo ldquoLanguage and
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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O siacutemile grosso modo eacute uma comparaccedilatildeo entre coisas Coffey que analisou os
siacutemiles na eacutepica homeacuterica encontra dois grupos um que eacute
composto de uma palavra introdutoacuteria tal como ὡς seguida por um nome que
eacute frequentemente qualificado por um adjetivo ou um particiacutepio [] e casos
nos quais uma ou mais oraccedilotildees relativas contendo uma forma infinitiva ou
verbos flexionados estatildeo ligadas a uma oraccedilatildeo anterior de comparaccedilatildeordquo
(Coffey 1957 60) e outro ldquoo siacutemile longo que consiste em uma sentenccedila
separada introduzida por ὡς ὅτε ou palavras similaresrdquo2
Aqui as duas formas de siacutemiles nos interessam jaacute que a primeira trata de uma economia
em termos de caracterizaccedilatildeo e a segunda um desenvolvimento da situaccedilatildeo da personagem
em conflitos eacuteticos e psicoloacutegicos
Um pouco mais tarde Moulton passa a estudar os siacutemiles a partir de suas
sequecircncias ultrapassando o esquema fechado dos siacutemiles e de suas correspondecircncias
sintaacuteticas para ampliaacute-los ateacute uma anaacutelise semacircntica demonstrando unidades de sentido
maiores na sequecircncia do enredo Duas tambeacutem satildeo as formas encontradas por ele siacutemiles
pares e ainda siacutemiles sucessivos ou seja respectivamente um siacutemile direto simples
menor e outro longo com unidades maiores e liames semacircnticos
Coffey ainda apresenta algumas funccedilotildees que o siacutemile homeacuterico desempenha tais
como movimentaccedilatildeo descriccedilatildeo notaccedilatildeo temporal enumeraccedilatildeo caracterizaccedilatildeo dentre
outras funccedilotildees Especificamente no tocante agrave caracterizaccedilatildeo diversos siacutemiles apresentam
como termo comparativo animais Clarke por exemplo em seu artigo ldquoEntre Homens e
Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo pontua em contraste com teoacutericos que soacute veem o
siacutemile como uma ornamentaccedilatildeo formulaica que ldquoo simbolismo envolvendo animais
selvagens e agressivos eacute muito maior que uma questatildeo de estilo e que eles desempenham
grande papel no retrato de Homero dos problemas eacuteticos e psicoloacutegicos do heroiacutesmordquo
(Clarke 2006 p 2)
Eacute desse ponto de vista entatildeo que partimos em nossa investigaccedilatildeo ou seja
examinar em suas duas formas o potencial que os siacutemiles animais possuem na Iliacuteada
como teacutecnica de caracterizaccedilatildeo3 Eacute necessaacuterio tambeacutem antes determinar para que o
quadro de comparaccedilatildeo seja efetivo o valor simboacutelico que cada animal pode atribuir ao
seu comparante dentro da estrutura do siacutemile e soacute assim procedermos com a anaacutelise de
caracterizaccedilatildeo
2 A simbologia dos animais como elemento caracterizador
Estudar a caracterizaccedilatildeo de uma personagem sem seu caraacuteter (ἦθος) manifesto
pode parecer uma empresa arriscada Entretanto eacute possiacutevel determinar este caraacutecter
atraveacutes de analogias que deixam entrever certos estados eacuteticos e psicoloacutegicos das
personagens Eacute dessa forma que entendemos com Clark que
Characterization in Homerrdquo jaacute havia contestado boa parte dos epiacutetetos formulaicos para demonstrar certa
habilidade do poeta eacutepico em sua construccedilatildeo de caracterizaccedilatildeo No tocante aos siacutemiles M Coffey em
ldquoThe function of the Homeric Similerdquo demonstra como os siacutemiles desempenham diversas funccedilotildees dentre
elas a de caracterizaccedilatildeo e ainda mais Carroll Moulton em ldquoSimiles in the Iliadrdquo e ldquoSimile Sequencesrdquo
aponta como os siacutemiles produzem caracterizaccedilatildeo e influenciam em toda narrativa posterior para aleacutem de
uma foacutermula meramente ornamental respectivamente Importante contribuiccedilatildeo tambeacutem eacute o artigo de
Michel Clark ldquoEntre Homens e Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo que aponta comportamentos eacuteticos e
psicoloacutegicos nos siacutemiles animais 2 Todas as traduccedilotildees satildeo de responsabilidade do autor Texto grego extraiacutedo das ediccedilotildees de Paul Mazon e
Balme 3 Cf Adam Parry 1972 p 1-22
Marco V C Colonnelli
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Os siacutemiles animais satildeo um excelente candidato para gerar tal tipo de sistema
eles satildeo tantos e tatildeo variados nas conexotildees que forjam que seu efeito
combinado pode natildeo apenas ampliar a narrativa mas de fato assimilar
aspectos da aparecircncia das personagens e da personalidade do guerreiro ao
animal (Clark 2006 p 4)4
Um dado relevante neste universo eacutepico eacute que ldquoos animais de Homero tecircm
igualmente o mesmo aparato emocional e cognitivo que os homensrdquo (Clark 2006 11)
Na Iliacuteada poreacutem jamais encontraremos algum tipo de eacutethos (ἦθος) aplicado ao animal
mas somente o contraacuterio disso o animal conferindo eacutethos ao homem Em Homero os
animais estatildeo encobertos por uma carga simboacutelica que os determina em certos aspectos
com traccedilos bem definidos Mas como eacute possiacutevel atribuir um eacutethos ao animal Como ver
tacitamente no animal um eacutethos humano Para entendermos melhor essa relaccedilatildeo eacute
preciso recorrermos a Aristoacuteteles
Em seu tratado Investigaccedilatildeo dos Animais o filoacutesofo faz uma afirmaccedilatildeo que parece
se coadunar com o mundo homeacuterico
Haacute pois tambeacutem em muitos desses outros animais traccedilos de caracteriacutesticas
psiacutequicas que nos homens possuem diferenccedilas mais claras Assim mansidatildeo
e ferocidade doccedilura e violecircncia coragem e covardia temor e ousadia vontade
e astuacutecia estatildeo em muitos animais semelhantes aos homens tambeacutem ateacute em
inteligecircncia
῎Ενεστι γὰρ ἐν τοῖς πλείστοις καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ἴχνη τῶν περὶ τὴν ψυχὴν
τρόπων ἅπερ ἐπὶ τῶν ἀνθρώπων ἔχει φανερωτέρας τὰς διαφοράςmiddot καὶ γὰρ
ἡμερότης καὶ ἀγριότης καὶ πραότης καὶ χαλεπότης καὶ ἀνδρία καὶ δειλία καὶ
φόβοι καὶ θάρρη καὶ θυμοὶ καὶ πανουργίαι καὶ τῆς περὶ τὴν διάνοιαν συνέσεως
ἔνεισιν ἐν πολλοῖς αὐτῶν ὁμοιότητες [] (Arist Investigaccedilotildees sobre os
animais 588 a 19-25)
Aristoacuteteles reconhece duas caracteriacutesticas psiacutequicas diferentes entre os animais e
os homens A primeira eacute de grau ou seja entre os homens uns teratildeo mais outros menos
dessas caracteriacutesticas e a mesma relaccedilatildeo entre homens e animais A segunda eacute por
analogia ou seja por certa semelhanccedila entre as caracteriacutesticas psiacutequicas dos homens
comparadas a certas manifestaccedilotildees nos animais5 Partindo dessa premissa analoacutegica
Aristoacuteteles neste tratado delineia o caraacuteter de alguns animais com base em sentimentos
humanos A analogia que faz a ponte entre essas constituiccedilotildees psiacutequicas se vale tambeacutem
do simbolismo que cada animal possuiacutea jaacute entre os gregos Este simbolismo natildeo tem um
vieacutes religioso ainda que seja necessaacuterio reconhecer essa dimensatildeo simboacutelica na cultura
grega6 mas meramente empiacuterico
Eacute nesse sentido que vamos encontrar em Aristoacuteteles a aplicaccedilatildeo do eacutethos humano
por analogia aos animais Worther tambeacutem assinala que
Aristoacuteteles define o ἦθος como uma capacidade ou potecircncia primeira e natural
possuiacuteda por todos os animais em virtude da qual eles satildeo natildeo somente capazes
4 Moulton discorda de que isso seja possiacutevel 5 Diferenccedila segundo a analogia consiste em estabelecer que a capacidade natural de um dado animal se
encontra sob uma forma diferente mas com a mesma funccedilatildeo ou uma funccedilatildeo anaacuteloga em um outro animal
Assim a arte a sabedoria ou a inteligecircncia do homem existem em outros animais mas sob a forma de
uma capacidade que natildeo faz intervir o elemento racional que pertence propriamente ao homem
(Woerther 2007 138) 6 Natildeo se nega o valor das relaccedilotildees religiosas entre homens e animais mas deve-se tambeacutem ressaltar as
relaccedilotildees sociais e poliacuteticas que esta associaccedilatildeo releva (Bodson 1994 55)
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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de ser afetados por paixotildees como tambeacutem suscetiacuteveis de desenvolver graccedilas
agraves accedilotildees repetidas disposiccedilotildees habituais da alma (Woerther 2007 p 138)
A observaccedilatildeo do filoacutesofo sobre o eacutethos animal tambeacutem eacute extraiacuteda da proacutepria obra
de Homero de quem ele muitas vezes cita passagens para justificar seus escritos
bioloacutegicos o que nos leva a crer que as observaccedilotildees homeacutericas e aristoteacutelicas formam um
todo empiacuterico de observaccedilotildees a respeito da natureza em geral Desse saber empiacuterico o
valor do eacutethos animal passa a figurar como um siacutembolo que o animal possui em si
Vejamos agora como certos valores simboacutelicos dos animais confluem para uma
caracterizaccedilatildeo taacutecita em algumas passagens da Iliacuteada
3 Siacutemiles animais como elementos caracterizadores
Muitos siacutemiles animais podem ser encontrados na Iliacuteada O leatildeo eacute de longe o
animal mais citado como imagem para os heroacuteis entretanto outros animais como o cervo
ou a cabra que satildeo presas tambeacutem abundam nas comparaccedilotildees Alguns animais satildeo
empregados especificamente em algumas passagens de modo natildeo muito usual Em uma
passagem do canto VIII da Iliacuteada Aquiles eacute comparado a um golfinho natildeo soacute pelo locus
de sua caccedila mas tambeacutem por algumas reconhecidas qualidades deste animal Vejamos o
siacutemile
Em seguida o divino Aquiles deixou sua lanccedila na ribeira
Inclinada nos arbustos e mergulhou semelhante a um deus
Portando apenas uma espada e na mente meditava maus atos
E golpeou dando giros dos feridos pela arma uma gritaria elevou-se
Indecorosa enquanto tingia a aacutegua de vermelho
Tal como quando outros peixes dos golfinhos de grande ventre
Fugindo enchem os recantos de uma baiacutea fundeada
Aterrados pois tudo aquilo que consegue apanhar devora
Assim os Troianos para as correntes do terriacutevel rio
Fugiam pelas iacutengremes ribanceiras Aquiles quando cansou
Suas matildeos de matar recolheu do rio doze jovens vivos
Paga pela morte de Paacutetroclo filho de Meneacutecio
Αὐτὰρ ὃ διογενὴς δόρυ μὲν λίπεν αὐτοῦ ἐπ ὄχθῃ
κεκλιμένον μυρίκῃσιν ὃ δ ἔσθορε δαίμονι ἶσος
φάσγανον οἶον ἔχων κακὰ δὲ φρεσὶ μήδετο ἔργα
τύπτε δ ἐπιστροφάδηνmiddot τῶν δὲ στόνος ὄρνυτ ἀεικὴς
ἄορι θεινομένων ἐρυθαίνετο δ αἵματι ὕδωρ
ὡς δ ὑπὸ δελφῖνος μεγακήτεος ἰχθύες ἄλλοι
φεύγοντες πιμπλᾶσι μυχοὺς λιμένος εὐόρμου
δειδιότεςmiddot μάλα γάρ τε κατεσθίει ὅν κε λάβῃσινmiddot
ὣς Τρῶες ποταμοῖο κατὰ δεινοῖο ῥέεθρα
πτῶσσον ὑπὸ κρημνούς ὃ δ ἐπεὶ κάμε χεῖρας ἐναίρων
ζωοὺς ἐκ ποταμοῖο δυώδεκα λέξατο κούρους
ποινὴν Πατρόκλοιο Μενοιτιάδαο θανόντοςmiddot
(Il VIII 17-28)
Em suas investigaccedilotildees Aristoacuteteles nos fornece certos traccedilos do animal que
configuram seu eacutethos Assim em 631a ele afirma que ldquodentre os animais mariacutetimos
muitos sinais de doccedilura e inteligecircncia satildeo anunciados a respeito dos golfinhos assim
como tambeacutem em relaccedilatildeo aos filhos satildeo amorosos e apaixonadosrdquo (Τῶν δὲ θαλαττίων
πλεῖστα λέγεται σημεῖα περὶ τοὺς δελφῖνας πραότητος καὶ ἡμερότητος καὶ δὴ καὶ πρὸς
παῖδας ἔρωτες καὶ ἐπιθυμίαι ndash Arist 631a 8-11) Natildeo obstante esta caracteriacutestica doacutecil
do animal a sua destreza na caccedila tambeacutem eacute exaltada Em outra passagem ele acrescenta
Marco V C Colonnelli
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Fala-se tambeacutem coisas incriacuteveis a respeito da rapidez do animal Parece pois
que dentre todos os animais tanto da aacutegua quanto da terra eacute o mais raacutepido e
tambeacutem saltam por cima dos mastros dos grandes navios Isso lhes acontece
sobretudo quando perseguem algum peixe graccedilas a sua necessidade alimentar
Neste momento pois se o peixe fugir perseguem-no ateacute o fundo do mar por
causa de sua fome [] E girando sobre si mesmos lanccedilam-se como uma
flecha desejando percorrer com velocidade uma grande extensatildeo para respirar
Λέγεται δὲ καὶ περὶ ταχυτῆτος ἄπιστα τοῦ ζῴουmiddot ἁπάντων γὰρ δοκεῖ εἶναι
ζῴων τάχιστον καὶ τῶν ἐνύδρων καὶ τῶν χερσαίων καὶ ὑπεράλλονται δὲ
πλοίων μεγάλων ἱστούς Μάλιστα δὲ τοῦτ αὐτοῖς συμβαίνει ὅταν διώκωσί
τινα ἰχθὺν τροφῆς χάρινmiddot τότε γάρ ἐὰν ἀποφεύγῃ συνακολουθοῦσιν εἰς βυθὸν
διὰ τὸ πεινῆν [] καὶ συστρέψαντες ἑαυτοὺς φέρονται ὥσπερ τόξευμα τῇ
ταχυτῆτι τὸ μῆκος διελθεῖν βουλόμενοι πρὸς τὴν ἀναπνοήν (Arist 631a 20-
27)
A caracteriacutestica do golfinho em sua caccedila parece iluminar o curto siacutemile em que
Aquiles toma as presas de guerra A rapidez do ataque do animal o mais raacutepido dentre
todos alude a proacutepria destreza do heroacutei que tambeacutem eacute raacutepido em seu ataque e efetivo em
sua conquista O ataque eacute motivado pela voracidade da fome do animal e o modo como
ele caccedila tambeacutem estaacute representado atraveacutes dos giros que facilmente o animal executa
Aquiles golpeia girando tal como o golfinho Se o amor filial eacute a caracteriacutestica do animal
natildeo se pode negar que o iacutempeto que move o heroacutei eacute a vinganccedila pela morte de Paacutetroclo
demonstrando a amizade que os unia A comparaccedilatildeo com o golfinho eacute salutar em diversos
aspectos mas sobretudo pela inteligecircncia e pela destreza que o animal evoca na passagem
Outro animal natildeo menos mencionado em siacutemiles do que o leatildeo eacute o catildeo de caccedila
Apesar de ser um animal domesticado sua ferocidade na caccedila eacute muito representada em
siacutemiles Aristoacuteteles nos informa a respeito deles que
A raccedila dos catildees de caccedila em Molosso natildeo diferem em nada das raccedilas de outras
localidades mas a raccedila que pastoreia junto aos rebanhos difere em porte e em
coragem contra animais selvagens E diferem em coragem e dedicaccedilatildeo
tambeacutem a raccedila dos catildees gerados do cruzamento entre os de Molosso e da
Lacocircnia
Τὸ δ ἐν τῇ Μολοττίᾳ γένος τῶν κυνῶν τὸ μὲν θηρευτικὸν οὐδὲν διαφέρει πρὸς
τὸ παρὰ τοῖς ἄλλοις τὸ δ ἀκόλουθον τοῖς προβάτοις τῷ μεγέθει καὶ τῇ ἀνδρείᾳ
τῇ πρὸς τὰ θηρία Διαφέρουσι δ οἱ ἐξ ἀμφοῖν ἀνδρείᾳ καὶ φιλοπονίᾳ οἵ τε ἐκ
τῶν ἐν τῇ Μολοττίᾳ γινομένων κυνῶν καὶ ἐκ τῶν Λακωνικῶν (Arist HA 608
a 27-33)
Duas caracteriacutesticas satildeo apontadas no animal a coragem contra animais selvagens
e a sua dedicaccedilatildeo na caccedila Eacute com esse eacutethos que Heitor eacute pintado no canto VIII da Iliacuteada
no momento em que Zeus o favorece na batalha contra os Aqueus
De novo nos Troianos o Oliacutempio excitou a coragem
E eles impeliram os Aqueus direto agrave profunda trincheira
Heitor entre os primeiros movia-se fero em sua forccedila
Como quando um dos catildees de javalis selvagens ou de leotildees
Toca sucessivamente perseguindo-os com patas ceacuteleres
As coxas ou naacutedegas e tem olhos fixos em quem se vira
Assim Heitor perseguia os Aqueus de longos cabelos
Matando sempre o mais recuado enquanto os outros fugiam
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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῍Αψ δ αὖτις Τρώεσσιν ᾿Ολύμπιος ἐν μένος ὦρσενmiddot
οἳ δ ἰθὺς τάφροιο βαθείης ὦσαν ᾿Αχαιούςmiddot
῞Εκτωρ δ ἐν πρώτοισι κίε σθένεϊ βλεμεαίνων
ὡς δ ὅτε τίς τε κύων συὸς ἀγρίου ἠὲ λέοντος
ἅπτηται κατόπισθε ποσὶν ταχέεσσι διώκων
ἰσχία τε γλουτούς τε ἑλισσόμενόν τε δοκεύει
ὣς ῞Εκτωρ ὤπαζε κάρη κομόωντας ᾿Αχαιούς
αἰὲν ἀποκτείνων τὸν ὀπίστατονmiddot οἳ δὲ φέβοντο
(Il VIII 335-343)
Na passagem acima a coragem tambeacutem encontrada no ethos animal eacute insuflada por Zeus
nos Troianos O siacutemile parece de fato retomar a qualidade deste animal em colocar em debandada
animais ferozes Entretanto a diligecircncia e a dedicaccedilatildeo do animal natildeo fica para traacutes na
representaccedilatildeo jaacute que o catildeo tem os olhos fixos nos animais que lhe satildeo superiores em porte fiacutesico
natildeo descuidando daqueles que viram O siacutemile indica sobretudo o cuidado presente no eacutethos do
animal na dispersatildeo das feras reproduzindo a imagem de heroacuteis mais fracos que inspirados pelos
deuses potildeem em debandada heroacuteis mais robustos Nesse sentido apesar da coragem eacute necessaacuteria
muita cautela na perseguiccedilatildeo para que natildeo se invertam as posiccedilotildees entre caccedila e caccedilador
Retomando a relaccedilatildeo entre os animais acima tambeacutem eacute possiacutevel perceber que o
caraacuteter dessas feras natildeo como habitualmente satildeo representadas ou seja como animais
ferozes e corajosos mas como animais que algumas vezes satildeo covardes Neste caso o
leatildeo tatildeo usado em siacutemiles de batalha para denotar violecircncia ferocidade tambeacutem possui
iacutendice de covardia Aristoacuteteles nas Investigaccedilotildees sobre os Animais observa que
Haacute duas raccedilas de Leotildees haacute uma que eacute mais roliccedila juba encaracolada e covarde
outra mais larga de juba ericcedilada e mais corajosa Fogem algumas vezes
entretanto com o rabo entre as pernas como os catildees Jaacute se viu tambeacutem um leatildeo
que estava a ponto de se lanccedilar sobre um javali e como percebeu que esse se
ouriccedilava fugiu Eacute deacutebil contra golpes em sua barriga mas suporta muitos
golpes em outra parte do corpo e tem um cabeccedila forte
Γένη δ ἐστὶ λεόντων δύοmiddot τούτων δ ἐστὶ τὸ μὲν στρογγυλώτερον καὶ
οὐλοτριχώτερον δειλότερον τὸ δὲ μακρότερον καὶ εὐθύτριχον ἀνδρειότερον
Φεύγουσι δ ἐνίοτε κατατείναντες τὴν κέρκον ὥσπερ κύνες ῎Ηδη δ ὦπται
λέων καὶ ὑῒ ἐπιτίθεσθαι μέλλων καὶ ὡς εἶδεν ἀντιφρίξαντα φεύγων ῎Εστι δὲ
πρὸς τὰς πληγὰς εἰς μὲν τὰ κοῖλα ἀσθενής κατὰ δὲ τὸ ἄλλο σῶμα δέχεται
πολλὰς καὶ κεφαλὴν ἔχει ἰσχυράν
(Arist HA 629 b 33- 639 a8)
A informaccedilatildeo que Aristoacuteteles nos traz natildeo soacute ilustra o siacutemile homeacuterico anterior
como tambeacutem demonstra que o encontro entre javalis e leotildees eram decididos por acaso
jaacute que os dois animais satildeo comumente representados na Iliacuteada como animais ferozes
Assim uma passagem pode ser lida de forma interessante quando dois grandes heroacuteis
satildeo postos frente a frente no canto VII Heitor e Aacutejax
Ambos concomitantes retirando as longas lanccedilas com as matildeos
De suacutebito se encontram parecendo leotildees apreciadores de carne
Ou selvagens javalis cuja forccedila eacute inesgotaacutevel
τὼ δ ἐκσπασσαμένω δολίχ ἔγχεα χερσὶν ἅμ ἄμφω
σύν ῥ ἔπεσον λείουσιν ἐοικότες ὠμοφάγοισιν
ἢ συσὶ κάπροισιν τῶν τε σθένος οὐκ ἀλαπαδνόν
(Il VII 255-257)
Atraveacutes desse siacutemile a passagem demonstra como forccedilas equacircnimes os dois heroacuteis
representados aiacute pela forccedila descomunal do javali e pelo apreciador de carne crua o leatildeo
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O choque entre os heroacuteis no resto da passagem natildeo terminaria jaacute que chegada a noite
o combate foi interrompido pelos arautos
O leatildeo em outros siacutemiles quando confrontado por caccediladores e catildees manifesta
cautela em seus ataques Aristoacuteteles descreve o comportamento do leatildeo face a essa
adversidade
Nas caccediladas sendo observado jamais foge ou se apavora mas se por uma
multidatildeo de caccediladores eacute forccedilado a se afastar retira-se passo a passo e com a
face voltada ao inimigo girando-se de pouco em pouco se ele se encontra
entre arbustos foge rapidamente ateacute chegar em uma clareira momento em que
de novo se afasta passo a passo Em campo aberto quando eacute forccedilado a fugir
para uma clareira por uma multidatildeo corre com passos raacutepidos e natildeo pula Sua
corrida eacute contiacutenua e extensa como a do catildeo
᾿Εν δὲ ταῖς θήραις ὁρώμενος μὲν οὐδέποτε φεύγει οὐδὲ πτήσσει ἀλλ ἐὰν καὶ
διὰ πλῆθος ἀναγκασθῇ τῶν θηρευόντων ὑπαγαγεῖν βάδην ὑποχωρεῖ καὶ κατὰ
σκέλος κατὰ βραχὺ ἐπιστρεφόμενοςmiddot ἐὰν μέντοι ἐπιλάβηται δασέος φεύγει
ταχέως ἕως ἂν καταστῇ εἰς φανερόνmiddot τότε δὲ πάλιν ὑπάγει βάδην ᾿Εν δὲ τοῖς
ψιλοῖς ἐάν ποτ ἀναγκασθῇ εἰς φανερὸν διὰ τὸ πλῆθος φεύγειν τρέχει
κατατείνας καὶ οὐ πηδᾷ Τὸ δὲ δρόμημα συνεχῶς ὥσπερ κυνός ἐστι
κατατεταμένονmiddot (Arist HA 629 b 12-20)
Ainda que muito forte a simbologia do leatildeo na Iliacuteada como o animal mais
intreacutepido dos que se encontram na obra eacute interessante tambeacutem notar que em alguns
siacutemiles de fuga o proacuteprio leatildeo o siacutembolo da coragem eacute usado para representar a fuga de
alguns heroacuteis No canto XI Aacutejax recua da seguinte maneira
Zeus pai de seu trono introduziu o medo em Aacutejax
E atocircnito ele estacou aos ombros laccedilou o escudo de sete camadas
E depois de ver uma multidatildeo fugiu semelhante a uma fera
Que se volta continuamente para traacutes alternando em breves passadas
Tal quando sobre um feroz leatildeo do curral
Dos bois afugentam catildees e pastores
E eles o impedem de arrebatar o melhor dos bois
Vigilantes por toda noite mas ele desejoso de carne
Avanccedila com zelo mas nada encontra pois dardos
Numerosos voam de corajosas matildeos em sua direccedilatildeo
E tochas acesas que teme ainda que sedento
E ao amanhecer retira-se com acircnimo aflito
Assim Aacutejax dos Troianos com o coraccedilatildeo inquieto
Afasta-se muito contrariado pois temia pelas naus dos Aqueus
Ζεὺς δὲ πατὴρ Αἴανθ ὑψίζυγος ἐν φόβον ὦρσεmiddot
στῆ δὲ ταφών ὄπιθεν δὲ σάκος βάλεν ἑπταβόειον
τρέσσε δὲ παπτήνας ἐφ ὁμίλου θηρὶ ἐοικὼς
ἐντροπαλιζόμενος ὀλίγον γόνυ γουνὸς ἀμείβων
ὡς δ αἴθωνα λέοντα βοῶν ἀπὸ μεσσαύλοιο
ἐσσεύαντο κύνες τε καὶ ἀνέρες ἀγροιῶται
οἵ τέ μιν οὐκ εἰῶσι βοῶν ἐκ πῖαρ ἑλέσθαι
πάννυχοι ἐγρήσσοντεςmiddot ὃ δὲ κρειῶν ἐρατίζων
ἰθύει ἀλλ οὔ τι πρήσσειmiddot θαμέες γὰρ ἄκοντες
ἀντίον ἀΐσσουσι θρασειάων ἀπὸ χειρῶν
καιόμεναί τε δεταί τάς τε τρεῖ ἐσσύμενός περmiddot
ἠῶθεν δ ἀπὸ νόσφιν ἔβη τετιηότι θυμῷmiddot
ὣς Αἴας τότ ἀπὸ Τρώων τετιημένος ἦτορ
ἤϊε πόλλ ἀέκωνmiddot περὶ γὰρ δίε νηυσὶν ᾿Αχαιῶν
(Il XI 544-557)
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Diferente dos outros siacutemiles esse mais longo natildeo soacute caracteriza o recuo do heroacutei
em termos de movimentaccedilatildeo e comportamento mas tambeacutem em termos de iacutendices
psicoloacutegicos que abundam no siacutemile O leatildeo aqui ainda eacute visto como um animal corajoso
feroz sedento por carne em suma em sua simbologia completa Entretanto como a
situaccedilatildeo eacute de fuga e caacutelculo o comportamento animal descrito por Aristoacuteteles representa
bem a maneira como Aacutejax se encontra tanto em termos psicoloacutegicos quanto em situaccedilatildeo
Aacutejax recua foge mas sem a pressa dos covardes sua fuga eacute bem descrita pelo
comportamento do leatildeo que recua lentamente sempre se voltando para traacutes Ademais o
nuacutemero de inimigos na liccedila e os dardos em sua direccedilatildeo o forccedilam ao recuo
Quanto ao plano psicoloacutegico Aacutejax que em sua caracterizaccedilatildeo eacute visto sempre como
voluntarioso e corajoso torna-se temeroso por uma intervenccedilatildeo divina E o conflito
gerado por essas disposiccedilotildees psicoloacutegicas eacute bem expresso pelo comportamento calculado
do recuo do leatildeo Neste afastamento tanto o heroacutei quanto o leatildeo estatildeo com acircnimo aflito
e inquieto e por uacuteltimo Aacutejax deixa o campo de modo involuntaacuterio
A caracterizaccedilatildeo neste siacutemile eacute completa Ela cobre tanto a perspectiva de um
desenvolvimento da accedilatildeo quanto o conflito psicoloacutegico que ocorre com o heroacutei Natildeo se
trata aqui de um siacutemile curto em que teriacuteamos de projetar o comportamento animal para
a compreensatildeo da passagem mas de um siacutemile longo em que o desenvolvimento do
comportamento animal eacute tatildeo magistralmente descrito que podemos consideraacute-lo sem
exageros como o proacuteprio iniacutecio de toda ciecircncia empiacuterica encontrada quase quatro seacuteculos
depois em Aristoacuteteles
3 Conclusatildeo
O uso do siacutemile em Homero eacute extremamente complexo Aleacutem dos siacutemiles naturais
produzidos com as potecircncias da natureza haacute tambeacutem os siacutemiles animais que se tornam
muito impactantes sobretudo porque revelam natildeo soacute facetas de movimentaccedilatildeo mas
tambeacutem de caraacuteter que o animal comporta O mundo natural eacute usado por Homero com
maestria a ponto de produzir situaccedilotildees nos combates em que grande parte do que eacute
descrito jaacute eacute bem conhecido pela audiecircncia em contato com o mundo natural circundante
Hoje talvez para reconhecer a forccedila de seus siacutemiles nos seja preciso talvez aleacutem do
conhecimento do mundo arcaico grego um bom entendimento sobre a vida natural sem
o qual a complexidade das cenas na Iliacuteada pareceraacute meramente fantasiosas
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946513
OS PROFISSIONAIS DO SOBRENATURAL
MAacuteGOS GOacuteES E PHARMAKEUacuteS
Dulcileide V do Nascimento Braga (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO O presente artigo objetiva ao pressupor que as accedilotildees maacutegicas constituem
praacuteticas passiacuteveis de aprendizado apresentar a anaacutelise da estrutura vocabular dos termos
que classificam os profissionais da magia Busca-se tambeacutem a partir da tradiccedilatildeo miacutetico-
literaacuteria grega demonstrar que tais profissionais tecircm uma praacutetica registrada em diversos
periacuteodos da literatura grega e influenciaram accedilotildees que extrapolam o vieacutes temporal
PALAVRAS-CHAVE Teacutechne maacutegica Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes
THE SUPERNATURAL PROFESSIONALS
MAacuteGOS GOacuteES AND PHARMAKEUacuteS
ABSTRACT This article aims assuming that magical actions constitute practices that can
be learned to present the analysis of the vocabulary structure of the terms that classify
magic professionals It is also sought from the greek mythical-literary tradition to
demonstrate that these professionals have a practice recorded in several periods of greek
literature and influenced actions that go beyond the temporal bias
KEYWORDS Teacutechne magic Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes
Magia do grego mageiacutea segundo Tupet (1976 p X) eacute a praacutetica exercida atraveacutes
de palavras e gestos por um indiviacuteduo que deteacutem certos conhecimentos que o capacitam
a produzir resultados de toda ordem George Luck (1995 p 35) precisa essa definiccedilatildeo ao
afirmar que a magia eacute uma teacutecnica cuja crenccedila se baseia nos poderes localizados na alma
humana e no universo e que pretende impor a vontade humana sobre a natureza ou sobre
os seres humanos
Platatildeo em Leis XI 932e-933b jaacute enumera os principais procedimentos maacutegicos
no seacutec IV aC e a difiacutecil tarefa de analisar essa teacutecnica
Quanto aos malefiacutecios que uns podem causar aos outros por meio de drogas
(pharmaacutekois) jaacute tratamos dos de consequecircncias letais mas ainda natildeo falamos
dos incocircmodos provocados intencionalmente e com premeditaccedilatildeo por meio de
bebidas e alimentos ou com unguentos O difiacutecil na presente exposiccedilatildeo eacute que
haacute no gecircnero humano duas espeacutecies de envenenamento uma eacute a que acabamos
de nos referir e que consiste em causar dano ao corpo pela accedilatildeo natural de
outros corpos a outra por meio de sortileacutegios (magganeiacuteais) encantamentos
(epoidaicircs) e o que se denomina ligadura (katadeacutesesi) chega a persuadir aos
E-mail dulcinascimentobragagmailcom
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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que querem causar danos a terceiros que o conseguiratildeo com tal recurso como
tambeacutem convence a estes uacuteltimos que ningueacutem lhes pode ocasionar tanto mal
como as pessoas conhecedoras de artes maacutegicas O que possa haver de
verdadeiro em tudo isso natildeo eacute faacutecil conhecer nem depois de sabido deixar
aceitaacutevel para ningueacutem dada a desconfianccedila reinante nos espiacuteritos a respeito
de tais assuntos natildeo vale a pena procurar convencecirc-los sempre que
encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera ou em encruzilhadas ou
talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados de que natildeo devem dar a
menor importacircncia a essas praacuteticas pois acerca de tudo isto ningueacutem tecircm
opiniatildeo formada
Eacute relevante destacar que o conceito de pharmakeiacutea utilizado por Platatildeo natildeo se
restringe exclusivamente ao uso de um phaacutermakon (bebidas alimentos ou unguentos)
mas se prolonga atraveacutes de sortileacutegios encantamentos e ligaduras
Platatildeo ainda questiona a eficaacutecia dessas profissionais de magia cujas habilidades
eram difiacuteceis de se averiguar analisar ou compreender sendo a profissional julgada pela
eficiecircncia ou pelos danos causados por sua praacutetica
O fato de atribuir aos praticantes de magia um caraacuteter perigoso por conta do saber
que detinham e a necessidade de que essas praacuteticas fossem controladas por leis remetem-
nos aos diversos processos de impiedade sofridos por mulheres praticantes das teacutechnai
maacutegicas Dentre elas destacamos o nome de trecircs mulheres a hetaira Frinea de Thespis
que foi acusada pelo seu amante Euthias de utilizar lugares sagrados para a praacutetica de
atos iliacutecitos e por ter formado um thiacuteasos1 sem a autorizaccedilatildeo legal dos atenienses a
sacerdotisa Teoris de Lemos acusada de produzir phaacutermaka para curar a epilepsia e
ainda temos o processo sofrido pela sacerdotisa Ninos baseado nas mesmas acusaccedilotildees
direcionadas agraves duas mulheres citadas anteriormente
Tais atitudes eram consideradas desvios agrave ordem instituiacuteda pela poacutelis que
determinava que qualquer accedilatildeo envolvendo contato direto com uma divindade ou com os
mortos requereria a presenccedila de um sacerdote instituiacutedo pela cidade e responsaacutevel por
impedir qualquer praacutetica que pudesse contaminaacute-la de alguma maneira
Maria Regina Candido (2003 p 169) informa-nos sobre as praacuteticas dessas
mulheres
Acreditamos que Teoris de Lemos assim como Frinea de Thespis difundiam
a crenccedila na possibilidade de o homem efetuar de maneira direta a sua relaccedilatildeo
com as potecircncias sobrenaturais e controlar os processos mais complicados que
envolvem a vida como doenccedilas inimizades e maacute sorte de maneira eficaz e
segura Receitavam banhos infusotildees com ervas e oferendas agraves divindades
ctocircnicas estimulavam os praticantes a fazer incursotildees pelo mundo de seres
sobrenaturais como os mortos O mundo dos homens deixava de atender agraves
necessidades do cotidiano e a alternativa era solicitar auxiacutelio das potecircncias
sobrenaturais
Assim como Platatildeo Candido acredita que a puniccedilatildeo relacionada a estas praacuteticas e
a seus praticantes esteja baseada no resultado advindo das mesmas que nem sempre
acarretava proveito agravequele que solicitava um benefiacutecio maacutegico Portanto por temer a
extensatildeo do poder dessas praacuteticas os atenienses puniam seus praticantes na maioria dos
casos mulheres estrangeiras como uma forma de se precaverem
Tambeacutem salientamos que apesar de a praacutetica maacutegica ser em determinadas
circunstacircncias apontada como uma atividade marginal ou uma forma de corromper a
religiatildeo poliacuteade como mencionamos anteriormente os praticantes destas teacutechnai
1 Palavra utilizada para designar um grupo de pessoas que celebram um deus normalmente com festas
cantos e banquetes
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detinham um conhecimento e um poder cuja eficaacutecia seria sustentada por uma crenccedila
coletiva e por uma dependecircncia de uma ordem moral que buscava a autoproteccedilatildeo fato
que garantia a continuidade das diversas formas de magia em todas as classes da
sociedade helecircnica como afirma o texto de Luck (1995 p 42)
Pode a magia antiga se basear em ideias ldquoprimitivasrdquo mas a forma em que nos
foi transmitida natildeo era de nenhum modo primitiva Pelo contraacuterio a magia
nesse sentido existiu somente dentro de culturas altamente desenvolvidas e
constituiu uma parte importante delas Natildeo soacute as classes baixas os ignorantes
e incultos criam nela mas ateacute o final da Antiguidade os ldquointelectuaisrdquo
estiveram convencidos de que poderosas forccedilas sobrenaturais atuavam em
torno deles podendo ser controladas por certos meios
Em grego destacamos trecircs termos para designar os detentores das artes maacutegicas
maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
O nome mais comumente utilizado para designar a feiticeira eacute maacutegos cognato de
mageiacutea magia Segundo Pierre Chantraine (1984 v maacutegos) esta palavra constitui um
empreacutestimo iraniano e no plural maacutegoi designa uma das tribos dos Medos como narra
Herocircdoto I 101 ldquoDeioces unificou a naccedilatildeo dos Medos governando-a A Meacutedia era
composta de diferentes povos os Busos Paretacenos Estrucatos Arizantos Budios e os
Magosrdquo
Segundo ainda o relato de Heroacutedoto haacute entre os maacutegoi aqueles que tecircm a funccedilatildeo
de ser ldquointeacuterpretes de sonhosrdquo Podemos verificar esta atribuiccedilatildeo dos magos em Histoacuteria
I 107 Astiacuteages apoacutes ter um sonho solicitou aos magos inteacuterpretes de sonhos que
revelassem o seu significado em I 120 Astiacuteages para decidir a sorte de Ciro mandou
chamar os mesmos magos que anteriormente tinham interpretado o seu sonho em I 128
vemos isso quando Astiacuteages manda empalar os magos inteacuterpretes dos sonhos que o
haviam convencido a deixar Ciro partir No livro VII 37 haacute uma passagem que ratifica a
funccedilatildeo de inteacuterprete dos sonhos aos magos Nela Xerxes apoacutes ver um eclipse solar
acreditando ser um mau pressaacutegio pede aos seus magos que interpretem o fenocircmeno
Segundo Graf (1994 p 30) aleacutem de serem inteacuterpretes dos sonhos os maacutegoi seriam os
responsaacuteveis pelos sacrifiacutecios reais pelos ritos funeraacuterios e pela adivinhaccedilatildeo
O termo maacutegos parece ter adquirido com o advento da filosofia conotaccedilatildeo
negativa sendo entatildeo utilizado para estigmatizar opiniotildees e comportamentos
considerados socialmente desviados a julgar por Heraacuteclito frag 14 que associa maacutegoi
aos ldquovagabundos da noite bacantes mecircnades e aos mistosrdquo e acredita serem esses homens
merecedores de morte posto que praticam accedilotildees iacutempias Graf (1994 32) discute se esta
caracterizaccedilatildeo de Heraacuteclito reproduziria a atuaccedilatildeo dos maacutegoi pois se ela corresponder agrave
realidade este termo semanticamente poderaacute ganhar a conotaccedilatildeo dos termos aguacutertes e
maacutentis pedinte e adivinho utilizados por Platatildeo na Repuacuteblica II-364b ou ser
interpretada a partir da expressatildeo utilizada no papiro de Derveni profissional dos ritos
Com base nesta definiccedilatildeo poderiacuteamos afirmar que Heraacuteclito ao utilizar a expressatildeo
ldquovagabundos da noiterdquo estaria dizendo que os maacutegoi seriam especialistas de toda uma
seacuterie de ritos privados e secretos como nos afirma o proacuteprio Graf (1994 p 33) ldquoPara um
jocircnico do fim do periacuteodo arcaico o maacutegos era semelhante aos especialistas itinerantes
dos cultos privados homens agrave margem da sociedade ridicularizados por uns e
secretamente temidos por outrosrdquo
Outro termo utilizado para nomear o praticante da magia eacute goeacutes termo cognato
do verbo goaacuteo gemer lamentar-se e que inicialmente designava um cantor que proferia
um lamento ritual pelos mortos ou seja o goeacutes eacute aquele que ldquocombina o ecircxtase com um
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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lamento ritual e a cura ritual com a adivinhaccedilatildeordquo (GRAF 1994 p 35) e que manteacutem
uma relaccedilatildeo estreita com o mundo dos mortos
Formadas a partir da mesma raiz encontramos as palavras goeteiacutea magia assim
como goeacuteteuma procedimento maacutegico fascinaccedilatildeo Heroacutedoto (II 33) ao narrar a histoacuteria
de Etearco o amocircnio aplica o termo goacuteetes para informar-nos sobre a crenccedila por parte
dos nasamones de que os habitantes de uma cidade em que entraram eram feiticeiros e
em IV 105 discorre sobre os relatos que afirmam que todos os Neuros eram goeacutetes
Encontramos ainda o termo goacutees associado a epoidos cantor aquele que canta
palavras maacutegicas para curar por exemplo em Euriacutepides As Bacantes 234-235 em que
encontramos os dois termos na fala de Penteu para fazer referecircncia ao estrangeiro que
estaacute propagando o culto a Dioniso ldquoDizem que veio um forasteiro feiticeiro cantor (goacutees
epoidoacutes) da terra da Iacutediardquo
Em Platatildeo Leis 903b quando a personagem chamada Ateniense ao mencionar
que iraacute convencer algueacutem por meio de argumentos diz ldquoMas ainda precisamos
acrescentar algumas histoacuterias a fim de imobilizaacute-lo com o encantamento (epoidocircn) que
lhes eacute proacutepriordquo E da mesma maneira eacute associado a maacutegos no Elogio agrave Helena de
Goacutergias ao evocar o poder da arte goeacutetica que encanta persuade e transforma Essas
teacutecnicas associadas agrave magia segundo o sofista seriam teacutecnicas do engano pois
desvirtuariam a alma e a opiniatildeo com falsas ilusotildees Desse modo Goacutergias defende Helena
dizendo que ela foi viacutetima da persuasatildeo maacutegica de Paacuteris contra a qual natildeo haveria defesa
O terceiro nome eacute pharmakeuacutes ou pharmakoacutes e designa um preparador de drogas
feiticeiro ou por ser cognato de pharmakeuacuteo significa simplesmente aquele que daacute um
remeacutedio ou veneno a algueacutem ou aquele que realiza uma operaccedilatildeo maacutegica Haacute ainda o
termo pharmakiacutes -idos atribuiacutedo agrave mulher que prepara poccedilotildees ou agrave feiticeira Aristoacutefanes
em As Nuvens 749 utiliza esta palavra como qualificativo para a mulher A expressatildeo
gunaicircka pharmakiacuteda encontrada em Aristoacutefanes refere-se a uma feiticeira da Tessaacutelia
que fazia a lua baixar agrave noite prendendo-a em um espelho
Cabe-nos contudo falar um pouco mais da magia das palavras ou do
encantamento Como jaacute mencionamos o termo goeacutes tem sua funccedilatildeo e significado
associado ao termo epoideacute que revela a natureza maacutegica do emprego da palavra e traz em
sua composiccedilatildeo o termo aoideacute canto que por sua vez estaacute relacionado com o termo audeacute
voz humana O grego distingue a linguagem humana audeacute do termo phoneacute que tanto
pode representar a linguagem humana como o som produzido por um animal
Pierre Chantraine (v aeidocirc) assinala que o prefixo epi- destaca o valor maacutegico do
canto assim epoideacute significa ldquocanto ou palavra maacutegicardquo
Eacute notoacuterio entretanto que o canto faz parte da cultura grega seja atraveacutes do maior
aedo de todos os tempos Homero atraveacutes do teatro da vida privada ou da puacuteblica O que
diferencia portanto essas utilizaccedilotildees da arte maacutegica das goeteacutes A diferenccedila estaacute na
estrutura destes encantamentos na tonalidade com que as palavras eram pronunciadas na
junccedilatildeo de siacutelabas estranhas apresentadas como verdadeiras foacutermulas maacutegicas bem como
aos poderes e divindades invocadas Tal estrutura eacute apresentada no seguinte fragmento
ldquoFebo o que auxilia na adivinhaccedilatildeo vem contente filho de Leto arqueiro infaliacutevel
protetor do mal venha aqui neste momento Vem Vaticinador daacute-me teus oraacuteculos
durante a noite allala allala santalala talalardquo (PGM II)
As foacutermulas maacutegicas do ponto de vista formal portanto tinham uma estrutura
preacute-estabelecida (pronunciada e realizadas de uma determinada maneira) que consistem
em uma seacuterie de instruccedilotildees que foram transmitidas atraveacutes do processo de iniciaccedilatildeo Esse
processo de aprendizado pode ser no acircmbito familiar ou em lugares considerados
sagrados
Dulcileide V do Nascimento Braga
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Temos diversos registros de foacutermulas maacutegicas algumas por exemplo
denominadas eroacuteticas objetivam a realizaccedilatildeo do desejo de um solicitante e tecircm
basicamente a mesma estrutura Como exemplo cito o PGM IV 3
Que fulana me ame a mim fulano filho de cicrano que ela natildeo tenha relaccedilotildees
sexuais nem por frente nem por traacutes nem busque prazer com outro homem
somente comigo de modo que fulana natildeo possa beber nem comer nem amar
nem sofrer nem ter sauacutede que natildeo consiga dormir sem mim arrasta a fulana
pelos cabelos as entranhas sua alma em cada momento de sua vida ateacute que
venha ateacute mim e permaneccedila inseparavelmente unida a mim
Neste encantamento se invoca o espiacuterito de um morto ou de uma divindade
normalmente Tiacutefon Selene ou Heacutecate mas quando se trata de magia eroacutetica se invoca
especialmente a deusa Afrodite e seu filho Eros Essas praacuteticas satildeo acompanhadas de um
gesto do solicitante como por exemplo um suspiro diante da mulher desejada um beijo
na lacircmina que conteacutem o pedido ou a simples repeticcedilatildeo do nome de Afrodite
Teoacutecrito no Idiacutelio 2 com 166 versos demonstra-nos como essas foacutermulas eram
utilizadas ao narrar a histoacuteria de como Simeta executa um ritual maacutegico com o intuito de
reconquistar o amor de Deacutelfis um jovem atleta que a trocou por um novo amor Eis alguns
versos do poema
Trecircs vezes faccedilo uma libaccedilatildeo e trecircs vezes Soberana
Pronuncio estas palavras quer seja mulher quer seja homem
Que com ele dorme agora que um tatildeo grande esquecimento invada
Deacutelfis como aquele que ndash ao que dizem ndash fez Teseu esquecer um
Dia Ariadne de belas tranccedilas (43-47)
Essa ldquoteacutecnicardquo das palavras tambeacutem faz parte da tradiccedilatildeo de uma literatura meacutedica
pois aleacutem de apresentar vaacuterios deuses responsaacuteveis pela cura tinha um deus especiacutefico
para a medicina Ascleacutepio e um lugar de cura Epidauro Ascleacutepio tinha um poder de cura
muito grande acreditava-se que ele inclusive podia ressuscitar os mortos O filho de
Apolo curava a uns com as doces palavras da magia (contos poemas e muacutesica) a outros
oferecia poccedilotildees eficazes ou lhes aplicava ervas em torno de seus membros ou cortava o
mal com o ferro para devolver-lhes a sauacutede
A tradiccedilatildeo meacutedica incluiacutea uma mistura de curas que podiam genuinamente ser
observadas e uma medicina popular considerada maacutegica Uma parte dos que exerciam a
medicina maacutegica eram mulheres embora a maioria delas trabalhasse como parteiras
Os templos de Ascleacutepio foram encontrados em todo o mundo mediterracircneo
Nesses templos o processo de cura consistia mais em repouso massagem e uma dieta
modificada do que aquilo que poderiacuteamos chamar de medicina Um meacutetodo de cura que
se tornou conhecido foi a ldquoincubaccedilatildeordquo em que o doente dormia confinado no templo de
Ascleacutepio na esperanccedila de receber uma revelaccedilatildeo daquele deus por meio de sonho
Aqueles que haviam sido curados faziam contribuiccedilotildees especiais para os templos que
frequentemente incluiacuteam reproduccedilotildees de gesso de quaisquer partes de seus corpos que
tivessem sido curadas Estes eram colocados em exibiccedilatildeo como testemunhos do poder de
cura do deus
Um relato que corroborou esse processo foi o de Eacutelio Aristides orador e tambeacutem
um portador de doenccedila crocircnica que no seacuteculo da nossa era em seus Hieroigrave Loacutegoi nos daacute
uma visatildeo da necessidade que as pessoas tinham pela cura bem como os meacutetodos
empregados para esse fim Depois tentar vaacuterios procedimentos meacutedicos Aristides tornou-
se um devoto de Ascleacutepio As curas prescritas para ele nos sonhos incluiacuteam accedilotildees como
banhar-se em um rio agitado durante o inverno derramar lama em si mesmo antes de se
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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assentar no paacutetio do templo andar sem sapatos todo o inverno e fazer sangria de vaacuterias
partes do seu corpo
A teacutecnica maacutegica portanto ao longo da histoacuteria foi um recurso utilizado como
tentativa de controlar o mundo natural atraveacutes de forccedilas consideradas sobrenaturais Essa
teacutecnica era ensinada somente aos iniciados e envolviam a arte da adivinhaccedilatildeo o preparo
de feiticcedilos e poccedilotildees a realizaccedilatildeo de rituais e cerimocircnias bem como a maneira correta de
se invocar deuses e espiacuteritos Quando realizados dentro dos templos tais procedimentos
eram considerados parte da religiatildeo Quando realizados fora eram classificado como
magia
A ideia de inferioridade feminina que perpassa toda a histoacuteria natildeo tem registro de
quando comeccedilou Desde a Antiguidade temos concepccedilotildees como a de Pitaacutegoras que
relacionava a mulher ao lado negativo ao dizer que ldquoHaacute um princiacutepio bom que criou a
ordem a luz e o homem e um princiacutepio mau que criou o caos as trevas e a mulherrdquo
(PITAacuteGORAS apud BEAUVOIR 1997 p 6)
Os elos que ligaram a imagem da mulher ao obscuro ao caos e ao infortuacutenio
masculino foram delineados e reforccedilados por figuras arquetiacutepicas como Pandora Lilith
e a proacutepria Eva Da mesma maneira as goeteacutes foram chamadas de charlatatildees quando natildeo
obtinham o resultado desejado ao evocarem os deuses e tentarem por teacutecnicas diversas
atender agrave solicitaccedilatildeo de algueacutem que recorria agraves praacuteticas maacutegicas para resolver problemas
particulares Essas solicitaccedilotildees normalmente envolviam uma accedilatildeo que prejudicaria
algueacutem fato que serviu para atenuar a fama negativa das goeteacutes
Ainda hoje encontramos aspectos desse tipo de comportamento maacutegico presentes
nos procedimentos considerados maacutegico-religiosos ou na proacutepria literatura ficcional que
demonstram a forccedila da seleccedilatildeo vocabular e da sonoridade provocada pela repeticcedilatildeo de
palavras e desejos com o uacutenico objetivo de concretizar desejos nem sempre passiacuteveis de
serem expressos em outras circunstacircncias Este eacute o caso da poesia citada abaixo
A VOLTA DA MULHER MORENA Vinicius de Moraes
Meus amigos meus irmatildeos cegai os olhos da mulher morena
Que os olhos da mulher morena estatildeo me envolvendo
E estatildeo me despertando de noite Meus amigos meus irmatildeos cortai os laacutebios
da mulher morena Eles satildeo maduros e uacutemidos e inquietos
E sabem tirar a voluacutepia de todos os frios
Meus amigos meus irmatildeos e voacutes que amais a poesia da minha alma
Cortai os peitos da mulher morena
Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono
E trazem cores tristes para os meus olhos
Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes
Traze-me para o contato casto de tuas vestes
Salva-me dos braccedilos da mulher morena
Eles satildeo lassos ficam estendidos imoacuteveis ao longo de mim
Satildeo como raiacutezes recendendo resina fresca
Satildeo como dois silecircncios que me paralisam
Aventureira do Rio da Vida compra o meu corpo da mulher morena
Livra-me do seu ventre como a campina matinal
Livra-me do seu dorso como a aacutegua escorrendo fria
Branca avozinha dos caminhos reza para ir embora a mulher morena
Reza para murcharem as pernas da mulher morena
Reza para a velhice roer dentro da mulher morena
Que a mulher morena estaacute encurvando os meus ombros
E estaacute trazendo tosse maacute para o meu peito
Meus amigos meus irmatildeos e voacutes todos que guardais ainda meus uacuteltimos
cantos
Dai morte cruel agrave mulher morena
Dulcileide V do Nascimento Braga
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O texto de Viniacutecius dialoga com o texto de Platatildeo citado anteriormente em que
faz menccedilatildeo agraves bonequinhas de cera utilizadas para fazer magia A finalidade dessas
bonecas conhecidas posteriormente por bonecas de vodu era gradativamente extinguir
a funcionalidade de determinados oacutergatildeos (cegar calar impedir de andar roer por dentro)
ateacute provocar a morte ldquodaiacute morte cruel agrave mulher morenardquo
O princiacutepio ldquose natildeo eacute meu natildeo seraacute de mais ningueacutemrdquo estaacute impliacutecito em inuacutemeros
encantamentos contidos nos PGM e representa natildeo soacute o desejo daquelea que foi
abandonadoa de se vingar de quem oa abandonou como tambeacutem o desejo de se livrar
daquelea que emocionalmente lhe causa mal
A voz humana eacute portanto o instrumento que potencializa a forccedila do pensamento
concretizando-os atraveacutes das palavras
Portanto a palavra quer cantada pronunciada em forma de versos ou balbuciada
em forma de encantamentos ou foacutermulas invocatoacuterias faz parte do universo sonoro grego
como forma de perpetuar segredos e manifestar um poder
Ainda hoje tentamos aprender sobre esta teacutechne que capacitava o indiviacuteduo a
concretizar desejos entretanto esbarramos nas lacunas temporais miacuteticas e religiosas
cujas entrelinhas foram desfeitas com o passar dos anos e que intencionalmente ou natildeo
desabilitaram a humanidade a obter o desejado com a mesma constacircncia com que eram
obtidas no passado
Os ritos religiosos continuam a utilizar a magia das palavras mas algumas
palavras tornaram-se impronunciaacuteveis e permanecem trancafiadas nas prisotildees silenciosas
do descaso cabe portanto a noacutes pronunciaacute-las ou natildeo reconhecendo a influecircncia que os
profissionais da magia tiveram e tecircm nas accedilotildees atemporais denominadas sobrenaturais
REFEREcircNCIAS
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946515
A AGOGEacute ESPARTANA
Luciene de Lima Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem O
desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo deviam ter
medo de nada sendo resistentes aos ferimentos odiando qualquer demonstraccedilatildeo de
covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Cada espartano tinha de ser um soldado
perfeito e sua maior gloacuteria era morrer em batalha retornar derrotado jamais Desse modo
toda a sociedade e educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases
atribuiacutedas agraves matildees espartanas era ldquoespero que meu filho volte com o seu escudo ou
deitado sobre elerdquo Assim eacute que este artigo tem por escopo discorrer a respeito da agogeacute
espartana que era um tipo de educaccedilatildeo peculiar com fins extremamente belicosos
PALAVRAS-CHAVE Esparta agogeacute guerra Licurgo
THE SPARTAN AGOGEacute
ABSTRACT In Sparta courage was part of the formation of a manrsquos character The
development of courage was a Spartan obsession Spartans should not be afraid of
anything showing themselves resistant to wounds They hated any type of cowardice and
were extremely dedicated to the poacutelis Each Spartan male had to be a perfect soldier and
the ultimate glory was to die in battle to never come back defeated Given this Spartan
society and education was focused on war One famous sentence related to Spartan
mothers was ldquoI hope my son comes back with his shield - or on itrdquo Thus this article has
as its scope the discussion of the practices of Spartan agogeacute their very peculiar
education with extremely bellicose objectives
KEYWORDS Sparta agogeacute war Lycurgus
Esparta tem de pleno direito um lugar na histoacuteria da educaccedilatildeo A
criaccedilatildeo mais caracteriacutestica de Esparta eacute o seu estado e o Estado
representa aqui pela primeira vez uma forccedila educadora no mais vasto
sentido da palavra (Werner Jaeger)
E-mail oliveira-lluolcombr
A agogeacute espartana
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Esparta tambeacutem intitulada Lacedemocircnia era a principal cidade de uma regiatildeo
denominada Lacocircnia na regiatildeo do Peloponeso A cidade localizava-se agraves margens do rio
Eurotas cercada de montanhas a nordeste
Os primeiros invasores da regiatildeo foram os aqueus esses expulsaram os povos preacute-
helecircnicos que ali habitavam e fundaram a cidade de Lacedemocircnia
A migraccedilatildeo doacuterica eacute o uacuteltimo dos movimentos de povos possivelmente
originaacuterios da Europa Central que a partir da Peniacutensula Balcacircnica entraram na Greacutecia e
se misturaram com os povos de outras raccedilas mediterracircneas ali fixadas primitivamente
constituindo assim o povo helecircnico
Os doacuterios ao se apoderarem da maior parte do Peloponeso invadiram Creta e
foram os responsaacuteveis pela colonizaccedilatildeo de algumas ilhas Ciclaacutedicas e Espoacuteradas Os
espartanos satildeo considerados descendentes dos doacuterios1 esses tinham por caracteriacutestica
peculiar a belicosidade
A cidade de Esparta era conhecida por usufruir de uma eunomiacutea ldquouma boa
legislaccedilatildeordquo De acordo com a tradiccedilatildeo Licurgo apoacutes consultar o oraacuteculo de Delfos2 teria
dado agrave Esparta leis para a vida social e econocircmica citem-se por exemplo a proibiccedilatildeo do
comeacutercio e a utilizaccedilatildeo de metais preciosos que foram substituiacutedos por moedas de ferro
instituiu uma educaccedilatildeo rigorosa as refeiccedilotildees coletivas regulamentaccedilatildeo do casamento a
maneira de viver etc
Os espartanos eram considerados xenofoacutebicos Plutarco escreve que eles natildeo
tinham permissatildeo para sair da cidade pois poderiam trazer costumes estranhos e
desordenados para dentro da cidade Os estrangeiros que residiam em Esparta foram
expulsos com exceccedilatildeo daqueles que faziam algo de uacutetil para a cidade Aleacutem do mais natildeo
comercializavam com o estrangeiro nenhum navio de fora entrava no porto para ali
comercializar (PLUTARCO Licurgo XIV LVII In Vidas Paralelas)
Ora foi o historiador Heroacutedoto o primeiro a retratar Licurgo como o idealizador
da eunomiacutea se dedicando ldquoagraves coisas relacionadas com a guerrardquo (HERODOTO Histoacuteria
I) Na Antiguidade jaacute havia duacutevidas sobre a sua eacutepoca e ateacute mesmo sua existecircncia
Os espartanos ndash ao contraacuterio de outros grupos ndash natildeo desenvolveram relaccedilotildees
culturais e comerciais externas sua crescente populaccedilatildeo soacute encontrou um meio de
expandir-se pelas armas
Xenofonte inclusive indaga como Esparta uma das cidades menos povoadas
tornou-se a mais poderosa e famosa dentre toda a Heacutelade (JENOFONTE La Republica
de los Lacedemonios I 1-2)
O vocaacutebulo que os espartanos empregavam para designar ldquoeducaccedilatildeordquo era agogeacute
que proveacutem do verbo aacutego ldquotransporto conduzordquo Os filoacutesofos Platatildeo (PLATAtildeO Leis
1 O helenista Jaeger faz a seguinte ponderaccedilatildeo a respeito dos doacuterios ldquoa raccedila doacuterica ofereceu a Piacutendaro o
seu ideal de homem loiro de alta estirpe tal como era representado natildeo soacute o Menelau de Homero como
tambeacutem o heroacutei Aquiles e de um modo geral os ldquohelenos de loira cabeleirardquo da antiguidade heroica
(JAEGER 2001 p 111) 2 Esparta pelo vieacutes poliacutetico constituiacutea uma diarquia hereditaacuteria real Acredita-se que Licurgo fora
descendente de uma das famiacutelias reais de Esparta a euripocircntida O legislador tinha um irmatildeo
rei mas apoacutes a morte daquele Licurgo subiria ao trono poreacutem o seu irmatildeo havia deixado um
descendente ainda no ventre de sua esposa Leobotas O legislador foi entatildeo tutor de seu
sobrinho Preocupado com a situaccedilatildeo de Esparta jaacute que o sobrinho era uma crianccedila Licurgo
se dirigiu a Delfos para receber conselhos diga-se leis escritas a rheacutetra em relaccedilatildeo a Esparta
(HEROacuteDOTO Histoacuteria I LXV) Sabe-se muita coisa de Licurgo por meio de Plutarco em
Vida de Licurgo
Luciene de Lima Oliveira
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659d) e Aristoacuteteles (ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1321) tambeacutem se referem a agogeacute como
ldquoeducaccedilatildeordquo
Entrementes Marrou emprega o termo ldquoadestramentordquo para traduzir agogeacute e
chama a atenccedilatildeo para o fato de ser ldquouma condiccedilatildeo necessaacuteria senatildeo suficiente para o
exerciacutecio dos direitos ciacutevicosrdquo (MARROU 1966 p 41) O helenista considera que a
educaccedilatildeo em Esparta possui natildeo soacute um lugar especial na histoacuteria da educaccedilatildeo como
tambeacutem na cultura grega (Op cit p 33)
Todos os cidadatildeos espartanos tinham uma participaccedilatildeo ativa na educaccedilatildeo militar
constituindo uma casta aristocraacutetica a priori lembrando a educaccedilatildeo da antiga nobreza
grega Natildeo obstante foi mais tarde estendida agravequeles que natildeo faziam parte da nobreza
Jaeger expotildee que mesmo que Licurgo tenha realmente existido e criado a rheacutetra
ldquoleis escritasrdquo que o poeta Tirteu (4W 1-10) bem a conhecia jaacute no seacuteculo VII aC natildeo
adiantaria muito saber a respeito da origem da educaccedilatildeo espartana conforme Xenofonte
a descreve (JAEGER 2001 p 114)
O pesquisador considera tambeacutem a agogeacute como ldquoo adestramento espartanordquo que
nada mais era do que o ideal do movimento educativo do seacuteculo IV aC (Op cit p 115)
O helenista destaca que a crenccedila de que a educaccedilatildeo espartana era uma preparaccedilatildeo militar
tinha sua origem na Poliacutetica de Aristoacuteteles Platatildeo igualmente jaacute havia definido essa
ideia quando relata nas suas Leis o espiacuterito do Estado de Licurgo (Op cit p 110)
As crianccedilas futuros guerreiros de Esparta eram ldquocriadasrdquo anatropheacute por seus
pais em suas casas ateacute os sete anos de idade depois essa tarefa era assumida pelo
governo sendo treinados para a obediecircncia em situaccedilotildees penosas e difiacuteceis3
Desse modo Licurgo natildeo colocou a educaccedilatildeo nas matildeos nem de mercenaacuterios nem
de servos comprados os pais natildeo poderiam educar seus filhos a seu bel prazer Quando
completavam sete anos eram divididos em grupos a fim de serem educados juntos e
brincassem entre si aprender e estudar uns com os outros Aquele que sobressaiacutesse e fosse
mais valente em combate se tornaria o liacuteder de todo o grupo os outros deveriam obedecer
as suas ordens O legislador considerava a educaccedilatildeo das crianccedilas como a coisa mais bela
que um legislador pudesse estabelecer (PLUTARCO Licurgo XXV XXXIII In Vidas
Paralelas)
Dos sete aos quinze anos eram instruiacutedos nas letras e nos caacutelculos e naturalmente
nos hinos do poeta Tirteu que ressaltavam a bravura e a coragem destemida
Na etapa final entre dezesseis e vinte anos quando denominados de eireacuten um
pouco antes de entrarem no serviccedilo da poacutelis eram treinados a manusear as armas na luta
com lanccedilas e espadas no arco e flecha Com isso a carga dos exerciacutecios e as operaccedilotildees
militares simuladas nas montanhas ao redor da poacutelis eram aumentadas
Plutarco daacute o seguinte testemunho
Quanto agraves letras aprendiam somente o necessaacuterio e em suma todo o
aprendizado consistia em bem obedecer suportar o trabalho e obter a vitoacuteria
em combate Por essa razatildeo agrave medida que avanccedilavam em idade aumentavam-
lhes tambeacutem os exerciacutecios corporais raspavam-lhes os
cabelos faziam-nos andar descalccedilos e os constrangiam a brincar juntos a maior
parte do tempo inteiramente nus depois quando chegavam agrave idade de doze
anos natildeo mais usavam saios daiacute por diante pois todos os anos lhes davam
somente uma tuacutenica simples o que era causa de andarem sempre sujos e
3 Plutarco daacute testemunho que estrangeiros se dirigiam ateacute a Lacocircnia para contratarem amas para criarem
seus filhos (PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)
A agogeacute espartana
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ensebados como aqueles que natildeo se lavavam nem se untavam senatildeo em certos
dias do ano quando os faziam gozar um pouco dessa doccedilura Deitavam e
dormiam juntos sobre enxergas que eles proacuteprios fabricavam com pontas dos
juncos e caniccedilos que cresciam no rio Eurotas os quais eles proacuteprios deviam ir
colher e quebrar somente com as matildeos sem nenhuma ferramenta mas no
inverno ajuntavam a isso e misturavam no meio o que se chama Lycophanos
porque parece que essa mateacuteria tem em si um pouco de calor (PLUTARCO
Licurgo XXIV In Vidas Paralelas)
A agogeacute propriamente dita se iniciava aos sete anos e finalizava ateacute os vinte anos
compreendendo portanto um periacuteodo de treze anos Havia a supervisatildeo de um
paidonoacutemos uma espeacutecie de magistrado especial
Marrou oferece a seguinte divisatildeo da agogeacute agrupados em trecircs ciclos (MARROU
1966 p 42)
Oitavo ano ao deacutecimo primeiro ano
a) rhobiacutedas (termo obscuro)
b) promikkizoacutemenos (meninote)
c) mikki(khi)zoacutemenos (menino)
Deacutecimo segundo ano ao deacutecimo quinto ano
a) pratopaacutempais (rapaz jaacute maduro de primeiro ano)
b) hatropaacutempais (rapaz jaacute maduro de segundo ano)
c) melleiacuteren (futuro irene)
d) melleiacuteren (irene de segundo ano)
Deacutecimo sexto ano ao vigeacutesimo ano
a) eireacuten de primeiro ano
b) eireacuten de segundo ano
c) eireacuten de terceiro ano
d) eireacuten de quarto ano
e) proteicircras (irene-chefe)
O historiador francecircs pontua que os meninos espartanos eram divididos em
unidades (iacutelai ou ageacutelai) comandadas pelos jovens maiores os proteicircrai de vinte anos
que eram os mais velhos dentre os irenes (Op cit p 43)
Plutarco lembra que os espartanos ldquonatildeo usam de muita linguagemrdquo eram
lacocircnicos ldquopessoas de poucas palavrasrdquo como resultado natildeo se expressavam com
propriedade mas nada os impedia de serem bem compreendidos pelos ouvintes O
bioacutegrafo sublinha que o proacuteprio Licurgo era breve no falar Interessante destacar que era
proibido entrar em Esparta algum retoacuterico para ensinar a arte da persuasatildeo ao povo Natildeo
obstante os espartanos eram exiacutemios compositores de belos cacircnticos em que incitavam
a coragem (PLUTARCO Licurgo XIV XL XLIV In Vidas Paralelas)
Quando estavam reunidos em Conselho os cidadatildeos espartanos natildeo poderiam
deliberar indagar seus superiores muito menos apresentar alguma opiniatildeo lhes era
permitido somente aprovar ou reprovar os informes propostos pelos reis ou senadores
(Op cit X)
O futuro guerreiro tinha de ter por haacutebitos a modeacutestia andar nas ruas com as
matildeos dentro do manto e caminhar em silecircncio sem dirigir o olhar a nenhum lugar apenas
olhando em direccedilatildeo a seus proacuteprios peacutes O historiador Xenofonte compara o jovem
Luciene de Lima Oliveira
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espartano que anda em silecircncio e de olhos baixos a uma estaacutetua de virgem
(JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)
Entre vinte e trinta anos os espartanos eram obrigados a se casar mas a vida
familiar natildeo era lhes permitida soacute depois dos trinta podiam deixar de dormir nos
acampamentos militares
A fim de dotar de coragem os seus infantes em Esparta havia a kryptiacutea um
ldquoesquadratildeo de extermiacuteniordquo que estimulava os jovens selecionados a caccedilarem sozinhos ou
em grupos os hilotas ou seja os escravos que por um acaso andassem desgarrados ou
que de alguma forma representassem pelo seu vigor fiacutesico uma ameaccedila agrave seguranccedila da
poacutelis Os hilotas quando localizados eram vitimados pela espada ou pela lanccedila armas
que o grupo de jovens sempre trazia consigo (PLUTARCO Licurgo LVIII In Vidas
Paralelas)
Os jovens espartanos estavam sempre forccedilando seus corpos ao limite cultivando
a excelecircncia da forccedila fiacutesica Aristoacuteteles destaca que de entre as cidades que mais se
preocupavam com a educaccedilatildeo infantil a maioria procurava aperfeiccediloaacute-la por meio de uma
disposiccedilatildeo atleacutetica O filoacutesofo sublinha que os espartanos davam para os futuros
guerreiros trabalhos aacuterduos como se essa atitude fosse vista como adequada para o culto
da bravura (ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1338b 10-15)
O estagirita ressalta que natildeo eacute contra a ginaacutestica mas deve-se praticaacute-la com
moderaccedilatildeo ateacute a adolescecircncia evitando exerciacutecios forccedilosos pois podem resultar em
prejuiacutezos para o corpo Daacute como exemplo que de entre os vencedores dos jogos
Oliacutempicos tem apenas dois ou trecircs espartanos vitoriosos Acredita que isso se daacute ao fato
de terem sido sujeitos desde crianccedila a treinos fiacutesicos extremos que acabaram por exaurir
suas forccedilas (Op cit II 1338b 35-40 1339a 1-5)
Aristoacuteteles sublinha que toda a organizaccedilatildeo legislativa dos espartanos tinha como
objetivo uma forma de virtude o valor guerreiro uma vez que eacute uacutetil para dominar Como
resultado disso o vigor e a forccedila dos espartanos foram preservados enquanto estiveram
em guerra mas houve um decliacutenio a partir do momento que alcanccedilaram a supremacia Na
verdade natildeo sabiam viver em paz aleacutem do mais natildeo haviam se exercitado em outra
disciplina superior agrave arte da guerra (Op cit II 1271b 1-10)
Jaeger sustenta que na vida dos espartanos por meio de uma educaccedilatildeo
diferenciada percebe-se um ideal de educaccedilatildeo anaacutelogo ao que Platatildeo propotildee na
Repuacuteblica A propoacutesito Platatildeo e outros teoacutericos da educaccedilatildeo posteriores tiveram Esparta
por paradigma em muitos aspectos (JAEGER 2001 p 112)
A necessidade de imposiccedilatildeo dos espartanos sobre a grande maioria de hilotas
(escravos que natildeo possuiacuteam direito algum) que a qualquer momento poderiam se
rebelar teve muita importacircncia na formaccedilatildeo da agogeacute espartana
Ora com as muitas conquistas espartanas havia sempre a iminecircncia de uma
revolta por parte dos povos conquistados Eacute fato que os povos conquistados constituiacuteam
em maior nuacutemero do que os conquistadores espartanos
Acredita-se que no final do seacuteculo VI aC depois da conquista da Messecircnia o
estado espartano completou sua organizaccedilatildeo transformando-se em um verdadeiro
ldquoacampamento militarrdquo permanente
Os resquiacutecios arqueoloacutegicos atestam que ateacute o seacuteculo VI aC Esparta era
dominada por uma aristocracia de grandes proprietaacuterios Devido agraves duas grandes guerras
pela conquista da Messecircnia houve um aumento consideraacutevel daqueles que poderiam
participar da funccedilatildeo guerreira e que se beneficiaram pela distribuiccedilatildeo de lotes de cleroacutei
A agogeacute espartana
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da regiatildeo conquistada Por outro lado os messecircnios foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de
hilotas A respeito da segunda guerra da Messecircnia4 Mosseacute escreve
Esparta parece ter se fechado em si mesma com a decadecircncia do artesanato e
o desaparecimento do uso da moeda de prata Diante da massa de populaccedilotildees
dependentes (hilotas da Lacocircnia e da Messecircnia periecos da Lacocircnia motacos
neodamodos etc) a classe guerreira dos homoioiacute dos semelhantes formada
pelo conjunto dos cidadatildeos espartanos passa a ser um grupo privilegiado que
vive recluso em perpeacutetuo estado de defesa Essa eacute a origem da vida austera que
tanto impressionava seus contemporacircneos e permitia a Esparta desempenhar
papel preponderante no mundo grego (MOSSEacute 2004 p 121) Com efeito
muitas disposiccedilotildees referentes agrave educaccedilatildeo e ao casamento natildeo deixam de evocar
os programas educativos elaborados por Platatildeo na Repuacuteblica e nas Leis Platatildeo
teria tomado o modelo espartano como inspiraccedilatildeo ou nos seacuteculos seguintes
esse modelo teria sido construiacutedo a partir das disposiccedilotildees imaginadas por
Platatildeo para suas cidades ideais Essa eacute uma pergunta de resposta difiacutecil O que
eacute inquestionaacutevel eacute o caraacuteter peculiar da educaccedilatildeo espartana essa agogeacute que
espantava os atenienses da eacutepoca claacutessica especialmente na medida em que
tambeacutem atingia as mulheres (Op cit p 189)
Ressalte-se que a guerra eacute um dos fenocircmenos a ser evitado mas que
frequentemente ocorre nas sociedades humanas Em O Homem Grego obra organizada
por Vernant o ensaio de Garlan denominado ldquoO Homem e a Guerrardquo eacute relevante pois
de acordo com Garlan embora o homem grego ldquonatildeo pudesse ser definido como algueacutem
que gosta da violecircncia pela violecircnciardquo isto eacute como um homo militaris muitos satildeo os
conflitos em que eles se envolveram sobretudo na eacutepoca arcaica e claacutessica Para Garlan
eacute ldquocomo se a paz fosse desde o primeiro momento considerada precaacuteria ou mesmo
concebida como uma espeacutecie de treacutegua prolongadardquo (GARLAN apud VERNANT 1994
pp 49-50)
Em uma sociedade predominantemente guerreira como a espartana a covardia de
um guerreiro era vista com repugnacircncia assim a desonra em Esparta acompanhava os
covardes sendo preferiacutevel a morte a uma vida infame e desonrosa Eacute um guerreiro que
natildeo merecia nenhuma timeacute ldquohonrardquo pois tem como aliados a atimiacutee ldquodesonrardquo e a
kakoacutetes ldquocovardiardquo Consequentemente este homem eacute algueacutem sem aidoacutes ou seja
algueacutem que natildeo eacute digno ldquode respeitordquo ldquode consideraccedilatildeordquo Haacute pois uma conexatildeo clara
entre aidoacutes ldquorespeitordquo e timeacute ldquohonrardquo na sociedade espartana
O binocircmio aidoacutes ldquorespeitordquo e aiskhryacutene ldquovergonhardquo satildeo vocaacutebulos que estatildeo
presentes no estatuto ciacutevico de Esparta como pontua Nicole Loraux (LORAUX 1989 p
82)
O desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo
poderiam ter medo de nada deveriam ser resistentes aos ferimentos odiando qualquer
4 Houve duas guerras entre Messecircnia e Esparta Na primeira os espartanos sob a lideranccedila do rei
Theopompo foram vencedores Os messecircnios eram comandados por Aristomenes Segundo Heroacutedoto
(HEROacuteDOTO Histoacuteria VIII 1312) o rei Theopompo pertencia agrave oitava geraccedilatildeo antes de Leoticidas
que governou de 491 a 469 aC Depois de cinquenta anos de opressatildeo os messecircnios se revoltaram com
a ajuda de aliados de Argos Arcaacutedia e Pisa Essa rebeliatildeo eacute conhecida como Segunda Guerra da
Messecircnia Campbell afirma que eacute difiacutecil estabelecer a cronologia das duas guerras (CAMPBELL 1967
p 169) Costuma-se contudo fixar o periacuteodo da primeira guerra em torno da segunda metade do seacuteculo
VIII aC mais precisamente entre 735 e 715 aC e a segunda guerra que teria durado aproximadamente
vinte e dois anos na segunda metade do seacuteculo VII aC por volta de 640-650 aC
Luciene de Lima Oliveira
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demonstraccedilatildeo de covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Toda a sociedade e
educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases atribuiacutedas agraves matildees
espartanas era ldquoespero que o meu filho volte com o seu escudo ou deitado sobre elerdquo
Cada espartano era formado para ser um soldado perfeito e sua maior gloacuteria era
morrer em batalha retornar derrotado jamais Digno de nota satildeo os versos tirteanos
ldquoLutemos com ardor por esta terra e pelos filhos morramos sem pouparmos nossas
vidasrdquo (10 W 13-14)
Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem A
propoacutesito Platatildeo era tambeacutem a favor da valentia de um guerreiro no campo de batalha
(PLATAtildeO Repuacuteblica 468e)
Os dois primeiros versos do fragmento 10W de Tirteu pontua dessa mentalidade
de morrer pela poacutelis ldquoeacute belo morrer caindo entre os combatentes das primeiras filas um
homem valente ao combater por sua terrardquo (10W 1-2)
A morte eacute bela quando eacute a de um heroacutei que morre pela cidade Esta ideia daacute agrave
morte o sentido de um ldquosacrifiacuteciordquo do proacuteprio cidadatildeo em prol de um bem mais alto ldquoa
morte gloriosardquo No mesmo fragmento aliaacutes o poeta contrasta a morte gloriosa no campo
de batalha com a vida desventurada e errante do homem que natildeo cumpriu na guerra seus
direitos de cidadatildeo e se viu na necessidade de deixar a cidade (10W 9-12)
A linguagem de Tirteu eacute em grande parte herdeira de tradiccedilatildeo eacutepica De um modo
geral as suas elegias demonstram um amplo conhecimento do vocabulaacuterio da Iliacuteada e da
Odisseia quando descreve a luta sangrenta e o heroiacutesmo guerreiro O ideal espartano eacute
proacuteximo da epopeia no que diz respeito agrave bravura apesar de pertencerem a tempos
literaacuterios diferentes
Jaeger destaca que os versos tirteanos eacute o primeiro testemunho do ideal poliacutetico e
guerreiro tendo mais adiante a sua realizaccedilatildeo na totalidade da educaccedilatildeo espartana ldquoos
seus poemas deixam ver claramente que a educaccedilatildeo espartana tal como as eacutepocas
seguintes a conheceram natildeo era uma coisa acabada mas estava em processo de
formaccedilatildeordquo (JAEGER 2001 p 115)
Qualquer fraqueza demonstrada era vista como pusilanimidade algo
veementemente repelido do seio daquela sociedade
Natildeo comeceis a fuga vergonhosa nem o medo
mas tornai grande e ardoroso o coraccedilatildeo no peito
natildeo ameis a vida ao combaterdes contra homens (10 W 16-18)
O modo de vida era regulamentado em funccedilatildeo das necessidades do Estado e
tinham consciecircncia de natildeo pertencerem a si proacuteprios mas agrave poacutelis
Em suma estimavam todos que natildeo tinham nascido para servirem a si mesmos
antes para servir o paiacutes e portanto se outra coisa natildeo lhes era recomendada
continuavam sempre a ir ver o que faziam os meninos e a ensinar-lhes alguma
coisa que resultasse em utilidade puacuteblica ou ainda a aprender eles proacuteprios
com os que eram mais idosos do que eles (PLUTARCO Licurgo LI In
Vidas Paralelas)
Licurgo teria imposto que os espartanos tivessem uma vida de austeridade por
exemplo diz-se que eram obrigados a fazerem as refeiccedilotildees em comum em torno de um
caldo negro (PLUTARCO Licurgo XXI In Vidas Paralelas)
Plutarco daacute testemunho dessa coletividade
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Em suma acostumou os cidadatildeos a natildeo quererem e natildeo poder jamais viver soacutes
antes serem por assim dizer colados e incorporados uns com os outros e a se
acharem sempre juntos como as abelhas em torno dos superiores saindo de
si mesmos quase por um arrebatamento de amor para com o paiacutes e de desejo
de honra para servir inteiramente ao bem da coisa puacuteblica (Op cit LIV In
Vidas Paralelas)
Eacute bom lembrar que Licurgo ordenou que os espartanos fizessem as mesmas
refeiccedilotildees juntos era proibido se alimentarem agrave parte e em particular em grandes
banquetes (Op cit XV In Vidas Paralelas)
Conveacutem citar Aristoacuteteles ldquoacreditamos que a amizade eacute o maior dos bens para as
cidades porquanto pode ser o melhor meio de evitar revoltasrdquo (ARISTOacuteTELES Poliacutetica
II 1262b 7-8)
O estagirita faz uma criacutetica a respeito das refeiccedilotildees comuns intituladas de phidiacutetia
Para o filoacutesofo essas refeiccedilotildees deveriam ser pagas pelo tesouro puacuteblico tal qual em Creta
Entretanto em Esparta os cidadatildeos tinham de fazer uma contribuiccedilatildeo ateacute os pobres que
tinham dificuldades de arrumar dinheiro para essas refeiccedilotildees O objetivo de Licurgo era
que essas refeiccedilotildees fossem democraacuteticas ldquoa maneira espartana tradicional de fixar o
limiar da cidadania consiste em privar de participaccedilatildeo o que natildeo pode pagar a taxa das
refeiccedilotildees comunsrdquo (Op cit II 1271a 26-30)
De acordo com o historiador Xenofonte nas accedilotildees de guerra os lacedemocircnios
(espartanos) usavam traje vermelho para que natildeo se percebessem as manchas de sangue
Se morressem em combate eram enterrados com essas tuacutenicas (JENOFONTE La
Republica de los Lacedemonios)5
Na agogeacute espartana a sophrosyacutene (temperanccedila moderaccedilatildeo autocontrole) tem um
caraacuteter social sendo um comportamento imposto regulamentado marcado pelo
comedimento que o jovem deve observar em todas as circunstacircncias comedimento em
seu andar em seu olhar em suas expressotildees comedimento diante das mulheres em face
dos mais velhos comedimento aos prazeres agrave bebida
Desse modo o futuro guerreiro era exercitado em dominar seus extintos Na
verdade a agogeacute era precisamente destinada a experimentar esse poder de domiacutenio de
si A sophrosyacutene submete assim cada indiviacuteduo em suas relaccedilotildees com o proacuteximo em
contraste com a hyacutebris a ldquodesmedidardquo a ldquotransgressatildeordquo
O ideal da sophrosyacutene era o nada em excesso haacute uma tendecircncia na qual a
sophrosyacutene e a hyacutebris se encarnam respectivamente nos velhos e nos jovens (ideia que
seraacute mais clara nos traacutegicos)
A bela morte espartana deve ter ligaccedilatildeo com a cidadania ou melhor um criteacuterio
de cidadania sendo uma manifestaccedilatildeo ciacutevica (12W 18 34) Uma das diferenccedilas mais
acentuadas entre o mundo de Tirteu e dos poemas homeacutericos estaacute nas relaccedilotildees do
indiviacuteduo com a comunidade pois os guerreiros de Homero lutam pela gloacuteria individual
enquanto os heroacuteis de Tirteu combatem pela comunidade por suas famiacutelias e
dependentes Assinale-se que haacute na Iliacuteada XV 494-9 um episoacutedio em que Heitor estaacute
claramente lutando pela sobrevivecircncia de Troia
5 Para Jaeger a Constituiccedilatildeo (Repuacuteblica) dos Lacedemocircnios de Xenofonte eacute resultado do romantismo ldquomeio
filosoacutefico meio poliacutetico do seacuteculo IV aC o qual via no Estado espartano uma espeacutecie de revelaccedilatildeo
poliacutetica primordialrdquo (JAEGER 2001 p 109)
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A cidade espartana condena o ato de bravura de um soacute combater e permanecer
corajosamente no seu lugar na falange natildeo ceder agrave vontade de fugir encorajar seu
companheiro de linha eacute um bem comum para a cidade e para todo o povo
Heroacutedoto disserta a respeito do espartano Aristodamos que estava entre os
trezentos lacedemocircnios que tinham defendido as Termoacutepilas ele foi o uacutenico sobrevivente
mas preocupado em livrar-se do oproacutebio que os espartanos infligiram a essa
sobrevivecircncia o guerreiro saiu de seu posto do seu lugar na falange e procurou e
encontrou a morte em Plateia ao realizar faccedilanhas extraordinaacuterias (HEROacuteDOTO
Histoacuteria IX 71)
Aleacutem do exemplo de Aristodamos o historiador daacute testemunho de outro episoacutedio
nas Termoacutepilas em que os combatentes saindo de seus postos lutavam de maneira furiosa
em torno do corpo de Leocircnidas Quando as espadas dos espartanos foram quebradas eles
se defenderam com as matildeos e os dentes (Op cit VII 225) em um estado de furor
belicoso que se assemelhava aos heroacuteis homeacutericos Diomedes e Aquiles Os espartanos
abandonaram a sophrosyacutene e estavam claramente em estado de lyacutessa o que a cidade natildeo
tolerava
Todavia apesar de sua valentia os espartanos natildeo lhe concederam as honras
fuacutenebres devidas aos melhores isto eacute recusaram-lhe a aristeacuteia porque violara a lei de
permanecer em seu lugar na falange Possuiacutedo pela lyacutessa por um furor guerreiro
combateu furiosamente fora de seu posto
A virtude guerreira natildeo pertence agrave ordem do thymoacutes do impulso e sim da
sophrosyacutene a temperanccedila um domiacutenio muito grande para que o guerreiro pudesse refrear
seus impulsos e natildeo perturbasse a ordem da formaccedilatildeo em falange
A eacutetica militar espartana proiacutebe o estado de furor de lyacutessa Vernant destaca que a
cidade rejeita atitudes tradicionais da aristocracia que tem por costume a exaltaccedilatildeo do
prestiacutegio do poder dos indiviacuteduos e de colocaacute-los acima do comum satildeo considerados
como um descomedimento uma hyacutebris de igual modo o furor guerreiro e a busca no
combate de uma gloacuteria particular (VERNANT 2002 p 69)
Ateacute os sessenta anos os espartanos estavam sujeitos a participar das guerras
pertenciam ao Estado ate agrave morte As moccedilas natildeo eram tratadas de modo diverso acima
da famiacutelia vinha a poacutelis
Xenofonte destaca que Licurgo ordenou que o sexo feminino exercitasse tanto
quanto o masculino A mulher espartana tambeacutem tinha uma formaccedilatildeo regulamentada
cuja muacutesica a danccedila e o canto natildeo possuiacuteam tanta importacircncia quanto a ginaacutestica e o
esporte (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios 1 4)
As espartanas estavam a serviccedilo da cidade quando solteiras praticavam
exerciacutecios que a tornavam forte e saudaacutevel a fim de que seus corpos se tornassem riacutegidos
ao se exercitarem havia exerciacutecios de correr de lutar de jogar a barra e de lanccedilar o dardo
com o objetivo de gerarem filhos igualmente robustos e para suportarem as dores do
parto (PLUTARCO Licurgo XXV In Vidas Paralelas)
Havia a ideia entre os homens de que pai e matildee fortes gerariam igualmente filhos
mais vigorosos Por isso quando casada a missatildeo da mulher era dar ao Estado filhos
fortes grandes guerreiros e bons cidadatildeos Percebe-se que haacute uma preocupaccedilatildeo de
eugenia dentro da sociedade espartana
Os receacutem-nascidos eram observados e se constatada qualquer imperfeiccedilatildeo essas
crianccedilas consideradas ldquodefeituosasrdquo que tivessem qualquer tipo de doenccedila ou
deformidade eram sumariamente assassinadas sendo atiradas de um precipiacutecio Esses
A agogeacute espartana
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receacutem-nascidos natildeo estariam prontos para defender a cidade-estado e consequentemente
natildeo seriam bons guerreiros na fase adulta6
Entrementes depois que a crianccedila nascia [] mas se lhes parecia feia
disforme ou franzina mandavam atiraacute-la num precipiacutecio a que vulgarmente se
dava o nome de Apothetes isto eacute depositoacuterios pois tinham a opiniatildeo de que
natildeo era expediente nem para a crianccedila nem para a coisa puacuteblica que ela
vivesse visto como desde o nascimento natildeo se mostrava bem constituiacuteda para
ser forte satilde e rija durante toda a vida E por esse motivo as proacuteprias mulheres
que as governavam natildeo as lavavam com aacutegua simples como se faz por toda
parte mas com uma mistura de aacutegua e vinho e por esse meio experimentavam
se a compleiccedilatildeo e a tecircmpera de seus corpos era boa ou maacute porque dizem eles
que as crianccedilas sujeitas agrave epilepsia ou entatildeo catarrosas e doentias natildeo podem
resistir nem tolerar esse banho de vinho mas definham e caem em langor e
ao contraacuterio as que tecircm sauacutede se tornam mais rijas e mais fortes
(PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)
Aristoacuteteles sublinha que Licurgo com o objetivo de fazer com que os espartanos
fossem numerosos encorajava-os a terem o maior nuacutemero possiacutevel de filhos haacute a lei de
que o pai de trecircs filhos estaacute isento do serviccedilo militar e o de quatro livre de impostos
(ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1270b 1-5)
A renomada helenista Claude Mosseacute infere que seria interessante acreditar que
Esparta passou por uma seacuterie de etapas entre a adoccedilatildeo da falange hopliacutetica seacuteculo VII
aC e o ldquofechamento da cidade em si mesmardquo iniacutecio seacuteculo IV aC Aleacutem do mais a
rheacutetra que fora atribuiacuteda a um possiacutevel legislador Licurgo pode ter sido resultado de
uma possiacutevel abertura da falange aos membros do decircmos cuja participaccedilatildeo nas tomadas
de decisatildeo era reconhecida Em relaccedilatildeo agrave partilha de terras pode ter acontecido depois
do teacutermino da segunda guerra da Messecircnia (uacuteltimo quarto do seacuteculo VII aC) e a agogeacute
e o militarismo da cidade podem ter ocorridos no princiacutepio do seacuteculo VI aC tendo por
principal objetivo a defesa da cidade-estado espartana contra os povos da Lacocircnia e
Messecircnia que foram escravizados
A Esparta do seacuteculo VII aC estaacute empenhada em um movimento que leva as
aristocracias das diversas cidades ao luxo Depois a ruptura se daacute entre o final do seacuteculo
VII aC e o iniacutecio do VI aC concentra-se em si mesma repudiando a ostentaccedilatildeo da
riqueza proibindo o uso dos metais preciosos depois a moeda de ouro e de prata (o
dinheiro era feito de um ferro de maacute qualidade que natildeo deveria ser fundido em grandes
quantidades) permanece fora das correntes intelectuais fecha-se a tudo o que eacute
intercacircmbio com o estrangeiro comeacutercio atividade artesanal voltam-se sua preocupaccedilatildeo
para a guerra em defesa da poacutelis (MOSSEacute 2004 p 189-190)
Qualquer riqueza natildeo poderia ser exposta em puacuteblico os artesatildeos natildeo
confeccionavam luxos desnecessaacuterios como tapetes e adornos mas faziam muito bem
apenas o baacutesico pois a riqueza seria a causa de muitos males Xenofonte escreve que os
espartanos natildeo se adornavam com riquezas de vestuaacuterios exceto com a boa forma fiacutesica
de seus corpos (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)
Pode-se conceituar a agogeacute como uma educaccedilatildeo estatal com fins extremamente
belicosos que se estendia da infacircncia ateacute a adolescecircncia Nessa educaccedilatildeo os futuros
6 Esse costume natildeo ocorreu soacute em Esparta a Lei das XII taacutebuas na Roma antiga autorizava os patriarcas a
matar seus filhos fraacutegeis ou deficientes
Luciene de Lima Oliveira
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combatentes aprendiam as artes militares as manobras em campos de batalha e a ser
destemidos diante do inimigo
Infere-se que o principal objetivo da agogeacute era formar poderosos guerreiros para
a defesa da poacutelis Para isso uma riacutegida educaccedilatildeo foi imposta aos jovens e uma peculiar
maneira de viver aos adultos
REFEREcircNCIAS
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A agogeacute espartana
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________ A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Eduardo Menezes Satildeo Paulo Hemus Livraria
Editora 1970
PLUTARCO Licurgo In Vidas Paralelas Traduccedilatildeo de Aristides da Silva Lobo Satildeo
Paulo Ed das Ameacutericas sd
VERNANT Jean-Pierre O Homem Grego Lisboa Editorial Presenccedila 1994
________ Jean-Pierre As Origens do Pensamento Grego Rio de Janeiro Difel
2002
WEST Martin Iambi et Elegi Graeci ante Alexandrum Cantati New York Oxford
1992
DOI httpsdoiorg1012957principia201946484
APRESENTACcedilAtildeO
Em seu primeiro volume de 2019 a Revista Principia traz agrave luz artigos
contemplando natildeo apenas o olhar para os princiacutepios de nossa cultura greco-romana-
judaico-cristatilde mas um diaacutelogo entre passado e presente
No primeiro artigo por exemplo temos uma retomada e uma anaacutelise reflexiva
sobre os termos hebraicos na narrativa da criaccedilatildeo da mulher segundo a Biacuteblia Com esta
reflexatildeo a Profa Me Isabel Arco Verde Santos (UERJ) nos leva a rever as questotildees de
gecircnero na atualidade para quiccedilaacute diminuiacute-las
No segundo artigo selecionado passando ao domiacutenio latino o Prof Me Carlos
Eduardo Schmitt (doutorando da USP) se debruccedila sobre a vida e mui extensa obra do
orador Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio no contexto do reinado de Valentiniano I
Em seguida acompanhamos o pesquisador bolsista da CAPES e doutorando da
UFRJ Bruno Torres dos Santos em sua anaacutelise comparada sobre o real trabalho do
bioacutegrafo de imperadores romanos Suetocircnio e o uso que dele fez Machado de Assis em
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Teria Machado partido do pressuposto de que tal
comparaccedilatildeo nunca seria feita
Seguindo para o domiacutenio grego outra anaacutelise comparada nos aguarda o Prof
Heitor Victor mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada da UERJ
analisa as marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar
utilizando-se para isso de diaacutelogo com texto de Walter Benjamin
Mergulhando ainda mais na cultura helecircnica o Prof Dr Marco Valeacuterio Colonnelli
(UFPB) nos demonstra o potencial de concisatildeo dos siacutemiles homeacutericos conforme
aparecem na Iliacuteada atraveacutes do valor simboacutelico de determinados animais conforme
anotados por Aristoacuteteles em sua Investigaccedilatildeo dos animais
Na sequecircncia dois artigos que nos fazem refletir mais sobre a vida na Antiga
Greacutecia No primeiro a Profa Dra Dulci Nascimento Braga apresenta sua pesquisa que
visa demonstrar a praacutetica registrada na literatura de diversos tipos de profissionais da
magia os quais em muito a influenciaram
No segundo a Profa Dra Luciene Oliveira reflete sobre a formaccedilatildeo educacional
belicosa dos espartanos segundo a qual a coragem parece ser o maior valor de caraacuteter
que esses homens poderiam ter
Desejamos a todos uma boa leitura
Elisa Figueira de Souza Correcirca
Editora-chefe da Principia XXXVIII
DOI httpsdoiorg1012957principia201946485
HOMEM E MULHER OS CRIOU
Isabel Arco Verde Santos (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO O presente artigo retoma os textos da criaccedilatildeo e reflete reflete especificamente
na criaccedilatildeo da mulher Os termos hebraicos que acompanham a narrativa da criaccedilatildeo e se
relacionem com a figura feminina tecircm muito a nos contar Afinal qual o papel da mulher
e seu objetivo ao ser criada frente ao homem Haveria uma clara dimensatildeo de
superioridade ou inferioridade refletidas nestes relatos Em nossa sociedade de cultura
cristatilde o texto biacuteblico tem valor imensuraacutevel na relaccedilatildeo de gecircnero que vivemos em nossa
sociedade Voltar o olhar ao texto biacuteblico e buscar nele caminhos a partir da criacutetica textual
eacute uma forma de buscar respostas para diminuir as injusticcedilas que separam homens e
mulheres
PALAVRAS-CHAVE relatos de criaccedilatildeo relaccedilatildeo homem mulher Eva e Lilith
MALE AND FEMALE CREATED HE THEM
ABSTRACT This article analyzes the Hebrew texts of creation and reflects specifically
on the creation of women The Hebrew terms that accompany the creation narrative and
relate to the female figure have much to tell us What is the function of women and their
purpose when being created Would there be a clear dimension of superiority or
inferiority between men and women reflected in these texts In our Christian culture
society the biblical text has immeasurable value in the gender relationship we live in our
society Turning to the biblical text through textual criticism is a way of seeking answers
to reduce the injustices that separate men and women
KEYWORDS creation texts men and women relationship Eva and Lilith
Nosso objetivo neste primeiro momento eacute tratar do texto da criaccedilatildeo do homem e
da mulher Este texto eacute baacutesico para qualquer discussatildeo Os textos que iremos usar
encontram-se todos no livro de Bereshit ou Gecircnesis Eacute o primeiro livro da Torah ou
Pentateuco e traz nos seus primeiros capiacutetulos o relato da criaccedilatildeo
Eacute possiacutevel identificar dois relatos diferentes para esta histoacuteria Histoacuterias de
enfoques diferentes e origens tambeacutem diferentes O primeiro encontra-se em Gecircnesis
126-31 O segundo no capiacutetulo 215 a 24 deste mesmo livro Ambos tratam da criaccedilatildeo
do ser humano homem e mulher
No primeiro texto a designaccedilatildeo hebraica usada para homem eacute zakhar1 e neqebah2
para a mulher Estes termos indicam o que eacute masculino e o que eacute feminino E-mail verdesantosuolcombr 1 Zainkafresh 2 Nunqophbeit
Homem e mulher os criou
8 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
respectivamente O termo para masculino eacute da mesma raiz do verbo lembrar trazer a
memoacuteria O termo para feminino tem uma ideia mais ampla em sua raiz verbal mas para
o texto destaca-se a ideia de efeminar tornar feminino
Alguns autores interpretam a partir deste texto biacuteblico a criaccedilatildeo de um ser
androacutegino Adatildeo o primeiro homem seria ao mesmo tempo homem e mulher isto
porque no relato no verso 26 primeiramente acontece o termo Adam sem artigo e sem
a partiacutecula acusativa o que indicaria a criaccedilatildeo da humanidade uma coletividade o
chamado Adatildeo primordial3 Assim este verso no portuguecircs ficaria E disse Deus faccedilamos
(a) humanidade com nossa imagem e semelhanccedila
No verso 27 quando Deus abenccediloa a criaccedilatildeo desta humanidade o termo Adam
vem agora acompanhado de artigo HaAdam e da partiacutecula acusativa Aqui como haacute o
artigo antes do nome Adam entendemos que natildeo soacute o ser denominado Adatildeo estaacute sendo
abenccediloado pois em hebraico o artigo nunca ocorre antes de nome proacuteprio mas uma
indicaccedilatildeo definida daquilo que se estaacute abenccediloando Natildeo um ser humano qualquer mas o
ser humano criado
O texto pode ser traduzido entatildeo assim E abenccediloou Deus o ser humano com sua
imagem Com imagem de Deus o criou (ser humano - refere-se ao termo masculino
HaAdam) macho e fecircmea os criou A ideia androacutegina seria difiacutecil de contestar caso o
pronome que sucede o verbo criar no estivesse no plural Criou a eles e natildeo a ele
A ordem divina entende que o domiacutenio sobre a criaccedilatildeo eacute dado indiferentemente a Adatildeo
ao ser humano (bom enfatizar sem o artigo definido) subentende-se assim uma natildeo
discriminaccedilatildeo na ordem Ela eacute dada ao ser humano e natildeo exatamente a Adatildeo - o primeiro
homem - visto que a partiacutecula acusativa (Alephtaw) natildeo ocorre
Vale ainda salientar que a dimensatildeo da becircnccedilatildeo de Deus sobre Adatildeo
primeiramente e ressalvada a becircnccedilatildeo sobre macho e fecircmea sobre homemmulher se
concretiza em ser a imagem de Deus No verso 26 do capiacutetulo primeiro haacute o movimento
de criaccedilatildeo da humanidade ndash do ADAM sem artigo Este eacute criado agrave imagem e semelhanccedila
de Deus No verso 27 Deus abenccediloa Adatildeo ndash o homem especiacutefico o homem criado ndash com
sua imagem No verso 28 a becircnccedilatildeo se esclarece estendida sobre homem e mulher A ausecircncia ou presenccedila da partiacutecula de objeto direto (lsquoet ndash alephtaw) eacute de suma
importacircncia no estudo do texto isto porque ela ocorre indicando o objeto direto quando
este eacute especificado com o artigo ou quando ele por si mesmo como ocorre com qualquer
nome proacuteprio eacute especificado por natureza4
Esta questatildeo do artigo junto agrave palavra Adam merece um outro estudo e eacute preciso
atenccedilatildeo ao analisar o termo nestes primeiros capiacutetulos No capiacutetulo 3 por exemplo Adam
ainda aparece como nome plural (vide verso 17) designando um ser geral natildeo obstante
no verso 22 reaparece HaAdam indicando uma especificaccedilatildeo do termo entendendo o ser
homem Adatildeo
O texto da criaccedilatildeo do homem e mais objetivamente da mulher ocorre no capiacutetulo
seguinte em 215-24 O capiacutetulo dois retorna agrave histoacuteria da criaccedilatildeo de forma resumida
dando mais atenccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem e da mulher Na traduccedilatildeo de Almeida (A
BIacuteBLIA 1958) o verso 15 se lecirc assim Tomou pois o SENHOR Deus ao homem e o
colocou no jardim do Eacuteden para o cultivar e guardar O termo traduzido aqui por homem
3 Em primeiro lugar trecircs eram os gecircneros da humanidade natildeo dois como agora o masculino e o feminino
mas tambeacutem havia a mais um terceiro comum a estes dois do qual resta agora um nome desaparecida a
coisa androacutegino era entatildeo um gecircnero distinto tanto na forma como nome comum aos dois ao masculino
e ao feminino enquanto agora nada mais eacute que um nome posto em desonra (PLATAtildeO 1991 p 57-58) 4 Esta partiacutecula eacute muito importante na anaacutelise sintaacutetica da frase hebraica No caso do verbo transitivo direito
ela ajuda a identificar o predicado
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eacute HaAdam ou seja o nome aparece com o artigo o que se entende o nome do primeiro
homem ndash Adatildeo
Natildeo haacute exatamente uma sequecircncia neste segundo relato A narrativa da criaccedilatildeo tatildeo
cuidadosa e minuciosa exposta no relato anterior neste capiacutetulo jaacute natildeo mais importa No
verso 18 o comentaacuterio divino aponta para a preocupaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave solidatildeo de Adam
e a necessidade de fazer algueacutem segundo traduccedilatildeo de Almeida uma auxiliadora que lhe
seja idocircnea A aplicaccedilatildeo do artigo aqui no termo Adam parece indicar algo mais
especiacutefico tendo em vista o autor deixar claro que ele Adam estaacute soacute A vocalizaccedilatildeo
hebraica confunde porque o termo que se usa no verso 20 do capiacutetulo 2 ao dizer que natildeo
havia para Adam ndash e desta vez a vocalizaccedilatildeo sugere a inexistecircncia do artigo - quem fosse
eacutezer e neacuteged
Ocorre que neste verso 20 aparece o termo LeAdam Se a forma com artigo
acontecesse a contraccedilatildeo do artigo com a preposiccedilatildeo suporia a forma LaAdam E parece
ser a forma mais correta de se ler o texto dando continuidade a ideia que estaacute sendo
desenvolvida
HaAdam ndash Adatildeo - daacute nome aos elementos da criaccedilatildeo mas eacute Adam ndash o nome geral
a humanidade - que natildeo encontrou algueacutem para estar ao seu lado De uma forma ou de
outra o que se quer eacute justificar o relato da criaccedilatildeo da mulher Os termos usados por
Almeida auxiliadora e idocircnea traduzem o hebraico eacutezer e neacuteged respectivamente
Ora eacutezer eacute a palavra usada no conhecido Salmo 121 (Elevo os olhos para o monte
de onde me viraacute o socorro) Ressalte-se que o socorro natildeo eacute encontrado natildeo em seres
inferiores O salmista eleva os olhos busca acima de si o socorro Isto deixa claro que
natildeo haacute qualquer tipo de inferioridade na criaccedilatildeo da mulher
O outro termo neacuteged eacute uma preposiccedilatildeo que pode ser traduzida por defronte de
em frente contra diante de em oposiccedilatildeo defronte comparado com Como verbo na
forma simples paal significa ser contra ou estar defronte Na forma causativa no hiphil
o verbo significa contar revelar dizer algo ainda natildeo conhecido Estes termos vatildeo reaparecer no verso 20 quando apoacutes o homem ter dado nome a
todos os seres se conclui mais uma vez que natildeo havia nada que lhe fosse eacutezer e neacuteged O
hebraico nos aponta ideias mais fortes que a traduccedilatildeo de Almeida No portuguecircs
auxiliador tem a ideia de ajudante assistente conforme explica o Aureacutelio Idocircneo tem o
sentido de conveniente e adequado ainda segundo este mesmo dicionaacuterio
O que se procura na criaccedilatildeo para HaAdam (Adatildeo) eacute o seu oposto o seu contraacuterio
porque o objetivo eacute crescer e encher a terra Por outro lado procura-se algo que lhe venha
socorrer em sua solidatildeo O interessante poreacutem eacute que embora se entenda neacuteged como
uma possibilidade contraacuteria porque haacute a necessidade de encher a terra tanto este termo
como o termo socorro (eacutezer) natildeo vecircm em forma feminina mas masculina apesar de tanto
este quanto aquele ter uma forma hebraica similar feminina (ezrah e negdah)
Se prosseguirmos a leitura naquilo que seria o relato da criaccedilatildeo da mulher
identificamos que apoacutes cair em sono profundo Deus retirou uma costela de Adatildeo para
construir a mulher
Trecircs termos agora se encontram neste texto da criaccedilatildeo tzeacutelem a imagem de Deus
com que a humanidade foi abenccediloada eacute o termo que associa a humanidade a Deus que
ficou no capiacutetulo primeiro tzeacutelarsquo a costela retirada de Adatildeo que eacute a mateacuteria da qual eacute
feita a mulher Por uacuteltimo temos o termo lsquoeacutetzem que aparece na fala deslumbrada de
Adatildeo ao acordar de seu sono e ver a criaccedilatildeo de Deus na forma da mulher oriunda de sua
costela
O novo ser criado eacute denominado lsquoyshah Sua denominaccedilatildeo eacute da mesma raiz da
palavra lsquoysh que quer dizer homem Esta semelhanccedila dos dois nomes demonstra o
reconhecimento de si mesmo no outro ser criado HaAdam reconhece a mulher como algo
Homem e mulher os criou
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semelhante a ele - daiacute o uso dos termos tsela e tselem (costela e osso) O termo lsquoeacutetzem -
semelhanccedila ndash une em sua raiz os dois termos que identificam a mulher como parte da
humanidade HaAdam natildeo a identifica como lsquoysh pois percebe que existem diferenccedilas
entre eles ndash afinal ela eacute seu contraacuterio Este texto biacuteblico como outros textos do Gecircnesis tenta explicar criaccedilatildeo de
homem e mulher como partes da humanidade Sua preocupaccedilatildeo em desenvolver uma
narrativa que explique a criaccedilatildeo da mulher se daacute para que natildeo se incorra no erro de ignorar
que a mulher tambeacutem eacute abenccediloada com a semelhanccedila de Deus corroborada na criaccedilatildeo
que se faz da mesma mateacuteria
Natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo em inferiorizar a mulher Embora HaAdam a tenha
chamado de lsquoyshah seu nome apareceraacute somente no capiacutetulo seguinte apoacutes a expulsatildeo
do Eacuteden quando entatildeo ele a chamaraacute de Chawav ou Eva Se haacute superioridade porque ele
lhe daacute um nome esta superioridade eacute uma das consequecircncias do que se denominou pecado
e gerou a expulsatildeo do paraiacuteso
Os relatos cabaliacutesticos datildeo conta de criaccedilatildeo de uma outra mulher Esta ideia natildeo
soacute eacute desenvolvida pelos dois relatos de criaccedilatildeo mas tambeacutem pela fala de HaAdam
quando desperta de seu sono Ele diz segundo a traduccedilatildeo que fazemos aqui do hebraico
e disse o homem esta desta vez eacute osso dos meus ossos 5 Se desta vez HaAdam se
identifica com algo na criaccedilatildeo talvez teria acontecido algo antes com o qual ele natildeo teria
se adaptado ou natildeo se sentiria reconhecido
Lilith eacute a mulher que domina e seduz HaAdam que lhe aproxima de seus
institntos Chavah a segunda mulher eacute a que gera e constroacutei a histoacuteria Na religiatildeo a
primeira eacute tida como a mulher que deve ser desprezada apesar de figurar no imaginaacuterio
masculino pois retorna nos sonhos de Adatildeo Ela tambeacutem retorna aos textos biacuteblicos
principalmente nos sapiencieais mais especificamente no livro de proveacuterbios nos
capiacutetulos 1 a 9 quando se faz oposiccedilatildeo entre a sabedoria e a ignoracircncia entre a mulher
do povo e a estrangeira
Chavah vive com esta sombra - a mulher principal para a sociedade mas natildeo nos
desejos de seu marido A presenccedila de Lilith na cultura judaica natildeo eacute uacutenica Ela pode ser
encontrada no eacutepico de Gilgamesh que data de 2000 aEC na pseudoepiacutegrafe
denominada Testamento de Salomatildeo que data de 200 EC no Talmud e no Alfabeto de
Ben Sira6 do ano 800 de nossa era aproximadamente Alguns indicam haver menccedilatildeo
tambeacutem no livro biacuteblico de Isaiacuteas 3414 (a palavra Lilith vem da raiz laylah que significa
noite)
Lilith teria sido criada tatildeo bonita e interessante que logo arranjou
problemas com o primeiro o homem Ainda segundo a narrativa
miacutetica Eva foi criada para substituir Lilith Eva seria o oposto de
Lilith por sua vez reuacutene traccedilos marcantes de obediecircncia boa
imagem companheira submissa ao sacerdote ao Pai e agrave Lei e por
fim tambeacutem fonte de pecado e desobediecircncia (GOMES
ALMEIDA 2019)
Eacute importante tambeacutem observar que o capiacutetulo 2 de Gecircnesis este que se propotildee a
recontar a criaccedilatildeo focando a criaccedilatildeo do homem e da mulher eacute um texto javista-eloiacutesta
Observa-se que o capiacutetulo primeiro do gecircnesis eacute notoriamente um texto eloiacutesta Jaacute o
5 Cf capiacutetulo 2 versiacuteculo 23 do livro de Gecircnesis 6 Onde se tem o registro mais antigo sobre Lilith datado entre os seacuteculos VIII e X aC segundo Koltuv
(1986)
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capiacutetulo 2 refere-se a deus com o tetragrama sagrado (Yhwh) seguido da forma Elohim
O texto mistura entatildeo as duas fontes
A conclusatildeo de HaAdam natildeo necessariamente afirma a lenda mas abrem uma
possibilidade neste sentido O que se pode concluir eacute que natildeo havia nada na criaccedilatildeo com
a qual ele HaAdam se identificasse
A preocupaccedilatildeo da leitura biacuteblica e as possiacuteveis interpretaccedilotildees relacionando ao
papel da mulher na sociedade ainda precisam ser mais bem resolvidas Mesmo que se
faccedila a presenccedila de Lilith no texto como a histoacuteria omitida e natildeo contada porque precisava
ser reescrita na forma de Chawah ainda assim carece a ideia de submissatildeo e inferioridade
que culturalmente ainda se insiste afirmar
O texto Eloiacutesta que domina o capiacutetulo primeiro do Gecircnesis natildeo tem qualquer
preocupaccedilatildeo em distinguir homem e mulher O capiacutetulo segundo na comunhatildeo Javista-
Eloiacutesta tem a preocupaccedilatildeo em frisar que satildeo diferentes e ateacute mesmo contraacuterios mas que
natildeo perdem a noccedilatildeo da mesma mateacuteria e partilham da mesma becircnccedilatildeo da semelhanccedila
divina Natildeo haacute uma prioridade A confusatildeo que suscita a ideia androacutegina surge da essecircncia
comum dois elementos criados partes de uma soacute ideia a humanidade
A ordem na criaccedilatildeo tambeacutem natildeo gera conclusotildees de superioridade Se
entendecircssemos que os primeiros seriam submissos aos uacuteltimos seres criados entendendo
o homem a coroa da criaccedilatildeo o ser acima de toda a criaccedilatildeo poderiacuteamos supor que a
mulher criada depois dele lhe seria entatildeo superior Colocaccedilotildees deste tipo natildeo prosperam
na anaacutelise do texto biacuteblico porque haacute que se considerar o texto como um todo Ou entatildeo
seriam os astros celestes criados primeiros inferiores aos mares ou os animais Eacute certo
que a ordem natildeo sugere algum tipo de superioridade
Enfim o que se vecirc depois da criaccedilatildeo eacute uma luta constante da figura feminina pela
conquista de seu espaccedilo luta esta que infelizmente ainda persiste A necessidade de ser
semelhanccedila de Deus e natildeo soacute costela
REFEREcircNCIAS
A BIacuteBLIA Sagrada Trad Joatildeo Ferreira de Almeida Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do
Brasil 1958
BIacuteBLIA Hebraica Stuttgartensia 4a Ed Stuttgart Deustsche Bibelgesellschaft 1967
BEREZIN Rifka Dicionaacuterio Hebraico-Portuguecircs Satildeo Paulo EDUSP 1995
EVEN-SHOSHAN Abraham Hamilon Hechadash 3 Ed Jerusalm Qryiat-sefer
1972 3 vol
FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa
15a ed Rio de Janeiro Nova Fronteira
GOMES Antonio Maspoli de Arauacutejo ALMEIDA Vanessa Ponstinnicoff de O Mito de
Lilith e a Integraccedilatildeo do Feminino na Sociedade Contemporacircnea Revista acircncora digital
de Ciecircncias da Religiatildeo Disponiacutevel em ltwwwrevistaancoradigitalcombrgt
Homem e mulher os criou
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GOTTWALD Norman K Introduccedilatildeo socioliteraacuteria agrave Biacuteblia hebraica Traduccedilatildeo
Anacleto Alvarez revisatildeo H Dalbosco Satildeo Paulo Paulinas 1988
KOLTUV Barbara Black O Livro de Lilith psicologiamitologia Satildeo Paulo Cultrix
1986
PAIVA Vera Evas Marias e Liliths as voltas do feminino 2a Ed Rio de Janeiro
Brasiliense 1993
PLATAtildeO Diaacutelogos Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Traduccedilatildeo e
notas de Joseacute Cavalcante de Souza Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa 5 Ed Satildeo Paulo
Nova Cultural 1991 (Coleccedilatildeo Os pensadores)
DOI httpsdoiorg1012957principia201946508
AS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO E SEU IMPACTO NO
REINADO DE VALENTINIANO I
Carlos Eduardo Schmitt
RESUMO Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio (c 340-402) possui uma extensa obra da qual
chegaram agrave contemporaneidade mais de 900 cartas (epistolae) 49 informes (relationes)
e 8 discursos (orationes) Suas obras de maior destaque satildeo as Orationes I II e III
proferidas entre 369-370 e sua Relatio III escrita durante seu tempo como prefeito de
Roma em 384 Tais obras lhe renderam a fama de melhor orador de seu tempo ainda em
vida Nosso trabalho tem como objetivo expor o impacto que as Orationes I II e III
tiveram na carreira do orador e na relaccedilatildeo entre o Senado e o reinado de Valentiniano I
A partir de suas Orationes ressaltaremos a delicada missatildeo do orador enviado de Roma
agrave Treacuteveris para servir como ponte entre o Senado e o imperador
PALAVRAS-CHAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I
SYMMACHUSrsquo ORATIONES I II AND III AND ITS IMPACT IN THE
KINGDOM OF VALENTINIAN I
ABSTRACT Quintus Aurelius Symmachus Eusebius (c 340-402) has an extensive work
from which more than 900 letters (epistolae) 49 reports (relationes) and 8 discourses
(orationes) survived His most outstanding works are Orationes I II and III pronounced
between 369-370 and his Relatio III written during his time as praefectus of Rome in
384 Such works earned him the fame of the best speaker of his time being still alive Our
paper aims to expose the impact that Orationes I II and III had on the speakers career
and on the relation between the Senate and the reign of Valentinian I From his Orationes
we will highlight the delicate mission of the speaker sent from Rome to Trier to serve as
a bridge between the Senate and the emperor
KEYWORDS Symmachus Orationes Valentinian I
LAS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO Y SU IMPACTO EN EL
REINADO DE VALENTINIANO I
RESUMEN Quinto Aurelio Siacutemaco Eusebio (c 340-402) tiene una extensa obra de la
cual chegaron a la contemporaneidad maacutes de 900 cartas (epistolae) 49 informes
(relationes) e 8 discursos (orationes) Sus obras de mayor destaque son las Orationes I
Doutorando pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail carlosschmitt90gmailcom
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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II y III pronunciadas entre el 369-370 y su Relatio III escrita durante su tiempo como
prefecto de Roma en 384 Tales obras le rindieron la fama de mejor orador de su tiempo
auacuten en vida Nuestro artiacuteculo tiene como objetivo exponer el impacto que las Orationes
I II y III tuvieron en la carrera del orador y en la relacioacuten entre el Senado y el reinado de
Valentiniano I A partir de sus Orationes resaltaremos la delicada misioacuten del orador
enviado de Roma a Treacuteveris para servir como puente entre el Senado y el emperador
PALAVRAS CLAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I
INTRODUCcedilAtildeO
Joseacute Antonio Gallego (2003 p 153) esclarece que a obra mais famosa de Siacutemaco
foi seu informe terceiro apesar de que durante a Idade Meacutedia as epistolae foram suas
obras mais valorizadas sendo utilizadas como modelo para escrever uma carta Contudo
em seu proacuteprio tempo ele era famoso por ser um grande orador Eacute por isso que Gallego
(2003 p 154) pondera como injusto o que a histoacuteria fez com Siacutemaco Apenas oito de
seus discursos chegaram ateacute noacutes sendo que estes satildeo dos iniacutecios de sua carreira aleacutem de
estarem num manuscrito palimpsesto com grandes lacunas Deve-se ter presente tambeacutem
que ldquoSiacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador romano se excetuarmos os escritores cristatildeosrdquo1
(GALLEGO 2003 p 154) Em outras palavras Siacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador da
religiatildeo tradicional romana
Cristiana Sogno (2006 p viii) faz uma reconstruccedilatildeo da carreira poliacutetica de
Siacutemaco atraveacutes de uma anaacutelise minuciosa de seus escritos Ele ocupa uma posiccedilatildeo
peculiar entre os autores latinos pela quantidade de escritos que nos chegaram A autora
defende que a razatildeo pelo desconhecimento de Siacutemaco por parte dos estudantes de
Claacutessicas e de Histoacuteria Antiga eacute o fato de natildeo existir uma traduccedilatildeo completa do corpus
simaquiano em nenhuma liacutengua moderna Sogno clarifica tambeacutem que a ediccedilatildeo de Otto
Seeck do seacuteculo XIX continua sendo o modelo do texto
Sogno (2006 p 1) clarifica que a primeira fase da carreira de Siacutemaco estaacute bem
documentada em suas orationes Sua nominaccedilatildeo como embaixador senatorial em 368 foi
um marco em sua vida sendo que sua reputaccedilatildeo como orador foi estabelecida na corte de
Valentiniano I tornando-se uma ponte entre o Senado e o imperador
Apesar de que Siacutemaco tenha a fama de ser um grande orador suas orationes
desapareceram ateacute seu redescobrimento no seacuteculo XIX Sabe-se que Siacutemaco ficou
conhecido por ser um bastiatildeo em defesa da religiatildeo tradicional romana sobretudo durante
seu periacuteodo como Prefeito de Roma por volta de 384 E Sogno (2006 p 1) sem perder
a oportunidade relata uma ldquoironia do destinordquo sendo que foi um cardeal da Igreja
Catoacutelica Romana Angelo Mai quem descobriu e publicou os fragmentos de suas
orationes em 1815 Tratava-se de um palimpsesto onde por cima havia uma traduccedilatildeo
latina das atas do Conciacutelio de Calcedocircnia O cardeal destruiu o documento para que as
orationes pudessem ser recuperadas Apesar disso Sogno (2006 p 2) constata como
esses discursos de Siacutemaco satildeo ainda pouco estudados em comparaccedilatildeo com outros
escritos seus como suas epistolae Esses oito discursos satildeo apenas uma parte de toda a
produccedilatildeo simaquiana Haacute tambeacutem um panegiacuterico em honra do usurpador Maacuteximo que
por razotildees oacutebvias natildeo foi publicada
1 ldquoSiacutemaco es el uacuteltimo gran orador romano si dejamos a un lado a los escritores cristianosrdquo
Carlos Eduardo Schmitt
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ORATIONES I II E III
Foi no inverno do ano 368-369 que Siacutemaco naquele tempo um jovem senador que
iniciava sua carreira poliacutetica foi enviado de Roma agrave Treacuteveris com o objetivo de dirigir
uma laudatio uma oraccedilatildeo de louvor a Valentiniano I por motivo de seus cinco anos de
reinado (Quinquennalia) Sogno (2006 p 2) destaca que tal missatildeo natildeo significava
apenas um reconhecimento por parte do Senado de seus dotes retoacutericos mas constituiacutea
tambeacutem uma oportunidade iacutempar para crescer na carreira poliacutetica e fazer amigos na corte
Apesar de ser um momento festivo Sogno (2006 pp 1-2) esclarece que constituiacutea
uma situaccedilatildeo delicada Ateacute o momento Valentiniano I natildeo havia estado em Roma e essa
era a primeira vez que ele se encontraria com uma delegaccedilatildeo senatorial Sendo assim
Siacutemaco tinha a importante missatildeo de estabelecer boas relaccedilotildees com o imperador Havia
natildeo apenas o discurso mas tambeacutem certa quantidade de ouro (aurum oblaticium2) que os
senadores ofereciam ldquovoluntariamenterdquo ao imperador Em Roma os senadores
aguardavam ansiosos pelo regresso de Siacutemaco e por informaccedilotildees de primeira matildeo
Eacute estranho ver que um senador tatildeo jovem ndash Siacutemaco natildeo tinha ainda nem trinta
anos ndash recebesse tamanha honra e responsabilidade Sogno (2006 p 6) sem colocar em
xeque a capacidade do orador argui que isso foi possiacutevel em parte graccedilas ao Prefeito de
Roma naquele entatildeo Pretextato responsaacutevel direto pela arrecadaccedilatildeo da oferenda de ouro
ao imperador e pela escolha do ldquocorretordquo orador que a levaria Haacute de se ter presente que
das epistolae de Siacutemaco vaacuterias delas tecircm Pretextato como destinataacuterio
Siacutemaco natildeo se limitou a estreitar laccedilos de amizade apenas no Senado Buscou
tambeacutem amigos na corte imperial E um de seus principais foi Ausocircnio tutor de Graciano
filho de Valentiniano I Sabe-se que eles trocavam correspondecircncias antes mesmo de
Siacutemaco ter ido agrave Treacuteveris e que havia entre eles uma muacutetua admiraccedilatildeo (SOGNO 2006
p 6)
A prova de que o panegiacuterico (laudatio) de Siacutemaco dirigido a Valentiniano foi um
sucesso de acordo com Sogno (2006 pp 8-9) foi o fato do proacuteprio imperador ter
solicitado ao orador um segundo panegiacuterico Siacutemaco eacute consciente de sua responsabilidade
e da honra que lhe eacute aferida e expressa esses sentimentos em seu discurso Consciente de
que o objetivo primeiro de uma laudatio eacute agradar ao puacuteblico Siacutemaco expotildee que tudo o
que anuncia e proclama eacute verdadeiro baseado em fatos que vivenciou e tambeacutem naqueles
de que ouviu o testemunho
Sogno (2006 p 9) classifica o primeiro panegiacuterico de Siacutemaco a Valentiniano
como um encocircmio biograacutefico composiccedilatildeo descrita em detalhe no terceiro livro da
Institutio oratoria de Quintiliano Nele Siacutemaco reconhece e celebra publicamente o
estabelecimento da dinastia valentiniana realizando um resumo dos seus cinco primeiros
anos de reinado desde que tinha sido escolhido pelo exeacutercito O encocircmio biograacutefico
como detalha Sogno requer discorrer tambeacutem sobre os ancestrais e os descendentes da
nova dinastia
2 ldquoOs clariacutessimos ie os indiviacuteduos de categoria senatorial tinham ainda que contribuir com o aurum
oblaticium oferecido pelo Senado por ocasiatildeo dos aniversaacuterios dos imperadoresrdquo (SILVA amp MENDES
2006 p 212) Isso era parte da reforma fiscal iniciada por Diocleciano e ampliada por Constantino
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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Satildeo estrateacutegicas as alusotildees que Siacutemaco faz do lugar de nascenccedila de Valentiniano
e daqueles onde ele acompanhou seu pai em campanhas militares O futuro imperador
nasceu na fria regiatildeo da Iliacuteria e acompanhou seu pai no calor escaldante da Aacutefrica Isso
significa natildeo soacute que ele estaacute preparado para qualquer dificuldade que advir mas
sobretudo que eacute um homem que conhece seu reino muito bem porque jaacute esteve em
diversas partes dele Todas essas dificuldades unidas aos inimigos enfrentados lhe
qualifica como a melhor pessoa para reger o Impeacuterio (SOGNO 2006 p 10) Um cuidado
que Siacutemaco tem em sua laudatio eacute o de reforccedilar a legitimidade de Valentiniano sobretudo
ao dizer que ningueacutem protestou quando o elegeram dando a impressatildeo de que houve um
consenso geral no exeacutercito (SOGNO 2006 p 12)
O conteuacutedo dos panegiacutericos eacute exagerado e por isso deve-se ter cuidado ao tomaacute-
los como fonte histoacuterica No entanto nos revelam muito sobre o tempo de Siacutemaco e sobre
ele mesmo No primeiro dedicado a Valentiniano I por motivo de seu primeiro lustro no
poder vemos como Siacutemaco enaltece a vida e a obras do imperador desde sua tenra
formaccedilatildeo nas diversas partes do Impeacuterio seguindo o bom exemplo de seu pai Graciano
Com verbosidade Siacutemaco atesta que natildeo havia outra pessoa melhor para o posto de
imperador que o proacuteprio Valentiniano superior a qualquer outro liacuteder Homem valente
assentou-se na parte mais perigosa do Impeacuterio Treacuteveris e lutou contra o inimigo mais
feroz dos romanos os alamanos Aleacutem de guerreiro eacute saacutebio e prefere defender os
interesses do Estado que os seus proacuteprios Eacute por isso que deixou a seu irmatildeo Valente
cuidar sozinho da rebeliatildeo de Procoacutepio uma guerra interna enquanto ele se dedicava a
proteger o Impeacuterio dos inimigos externos Foi um imperador que preferiu o bem comum
ao de sua proacutepria famiacutelia Realizou obras incriacuteveis
O comeccedilo do segundo panegiacuterico a Valentiniano indica sua razatildeo de ser o terceiro
consulado do imperador ao lado de seu irmatildeo Valente em 370 Siacutemaco
estrategicamente revela que iraacute relatar apenas alguns acontecimentos sem exaustatildeo
Deixaraacute todos os outros feitos natildeo mencionados para que sejam cantados pelos poetas
Parabeniza ao imperador por ser sua fonte de inspiraccedilatildeo e o restaurador da liberdade de
expressatildeo Ao mesmo tempo que Siacutemaco preza ao imperador por ter dado assunto que
fosse cantado e escrito como suas grandes vitoacuterias sobre os alamanos ele tambeacutem lembra
o imperador de que sem esses oradores e poetas haacute o silecircncio e que o silecircncio eacute o pior
inimigo da grandeza (SOGNO 2006 p 12)
Siacutemaco se dedica basicamente a enaltecer o imperador por suas conquistas e
fortificaccedilotildees ao longo do Reno e de que se impressionou ao ter visto as mesmas
pessoalmente Enaltece-o por seu terceiro consulado mas sobretudo se centra em seus
avanccedilos militares Entre outras exaltaccedilotildees Siacutemaco o parabeniza por ser exemplo de
governante ideal que eacute amado e temido por seu povo Tambeacutem o parabeniza por haver
aceitado o Impeacuterio de forma relutante (SOGNO 2006 p 14) Na verdade Siacutemaco
exaltou muito mais as fortificaccedilotildees erguidas por Valentiniano do que suas batalhas contra
os baacuterbaros Sogno (2006 p 15) pensa que isso se deve principalmente pelo acontecido
com Siaacutegrio uacutenico sobrevivente de uma batalha que foi considerado um desertor pelo
imperador E isso aconteceu exatamente quando o orador se encontrava na corte
O segundo panegiacuterico dedicado tambeacutem a Valentiniano I tinha por motivo
a designaccedilatildeo do imperador para o seu terceiro consulado que ele havia recebido como
um reconhecimento por seus feitos recentes Sendo assim o panegiacuterico deveria se centrar
em suas atividades recentes as quais lhe fizeram merecedor do terceiro consulado
Siacutemaco inicia dizendo que o consulado era uma recompensa insuficiente para
Valentiniano comparado com tudo o que perpetrou no Reno Mas como natildeo haacute algo
Carlos Eduardo Schmitt
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6 17
maior que eles possam ofertar Siacutemaco solicita ao imperador que se contente com o
melhor presente e honra que o Senado lhe pode oferecer E a partir de entatildeo o orador
narra as atividades beacutelicas de Valentiniano contra os alamanos e suas construccedilotildees ao
longo do Reno Em um determinado momento Siacutemaco o elogia por haver restaurado a
liberdade de expressatildeo no Impeacuterio Termina exaltando sua sobriedade
No panegiacuterico de Siacutemaco dedicado a Graciano vecirc-se claramente como ele se
dirige ao jovem imperador como a esperanccedila de Roma Durante todo o discurso o orador
enfatiza sua juventude enaltecendo-a Sogno acredita que essa insistecircncia seja uma forma
de favorecer a aceitaccedilatildeo do imperador possivelmente criticado pela aristocracia romana
por sua pouca idade (SOGNO 2006 p 18) Como recompensa por sua performance na
corte Siacutemaco recebeu o tiacutetulo honoriacutefico de comes tertii ordinis e trecircs anos depois em
Roma recebeu o proconsulado da Aacutefrica (373-374)
O panegiacuterico ao menino Graciano talvez tenha sido o mais difiacutecil para Siacutemaco
elaborar Devido a sua pouca idade objetivamente natildeo havia feitos grandiosos do qual
ele fosse sujeito No entanto Siacutemaco surpreendeu mesmo assim Vecirc em Graciano o iniacutecio
de uma nova eacutepoca porque eacute um imperador ainda menino e sendo assim estaraacute bem
treinado em todos os campos Seu louvor se centra entatildeo na juventude do imperador e
em seu governo ao lado de seu pai Valentiniano e de seu tio Valente Aos baacuterbaros natildeo
lhes restaraacute mais do que a escravidatildeo e eles jaacute sabem disso
OS DOZE PANEGIacuteRICOS LATINOS
Tendo em vista as trecircs orationes mencionadas podemos fazer uma breve anaacutelise
dos famosos doze panegiacutericos latinos com o intuito de entender melhor as diversas
asserccedilotildees simaquianas bem como seu estilo Susanna Morton Braund (2005 pp 90-91)
descreve que de forma convencional a oratoacuteria grega foi divida em trecircs tipos discurso
forense deliberativo e epidiacutectico O primeiro tambeacutem chamado de judicial eram aqueles
proferidos nos tribunais no foacuterum os discursos deliberativos eram aqueles proferidos
diante do Senado ou de uma assembleia do povo e os discursos epidiacutecticos eram aqueles
escritos para uma comemoraccedilatildeo especial Este uacuteltimo para Braund se revestiu de
especial importacircncia durante o principado como panegiacuterico (elogio)
Uma das coisas mais importantes para um aristocrata romano era o
reconhecimento pelas pessoas ao seu redor de seu valor puacuteblico e permanente
ndash sua auctoritas e sua dignitas Idealmente isso seria celebrado em panegiacuterico
ndash isto eacute louvor escrito em prosa ou verso3 (2005 p 110)
O panegiacuterico era um elemento central na poliacutetica romana e na vida puacuteblica sob
o Principado ndash e jaacute o era haacute muito tempo De fato alguns dos nossos mais
antigos textos latinos sobreviventes os epitaacutefios aos membros da famiacutelia
Cipiatildeo que datam do terceiro e segundo seacuteculos AEC (Scipionum elogia)
satildeo os louvores (poacutestumos) dos grandes homens4 (2005 p 112)
3 ldquoOne of the most important things for a Roman aristocrat was the recognition by people around him of
his public worth and standing ndash his auctoritas and his dignitas Ideally this would be celebrated in
panegyric ndash that is praise written in prose or verserdquo 4 ldquoPanegyric was a central element in Roman politics and public life under the Principate ndash and had been
so for a long time already In fact some of our earliest surviving Latin texts the epitaphs to members of
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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Ainda sobre o panegiacuterico e sua difusatildeo durante este periacuteodo do Impeacuterio Romano
Mitchell (2015 p 19) o relaciona agrave natureza autoritaacuteria do mesmo Segundo ele a
dissidecircncia aberta natildeo era tolerada e isso se vecirc pelos extremos dos discursos que satildeo de
louvor ou vituperaccedilatildeo mas raramente se encontram num meio termo Apesar de
parecerem pouco confiaacuteveis o autor defende a utilizaccedilatildeo de panegiacutericos e poemas como
fontes histoacutericas para o periacuteodo alegando que seus exageros omissotildees e estilos retoacutericos
expressam de forma criacutetica muito daquele momento Segundo Mitchell as obras mais
significativas neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos5
As obras-chave neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos que
provavelmente foram compilados pelo orador gaulecircs Pacato e foram
prefaciados pelo longo panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem para o imperador Trajano
(I) Aleacutem do trabalho do proacuteprio Pacato de 389 em louvor a Teodoacutesio I (II)
este inclui discursos a Maximiano em 289 (X de Cl Mamertino o Velho) e
291 (XI) a Constacircncio pai de Constantino em 296 e 298 (IX) para o
casamento de Constantino e Fausta em 307 (VII) a Constantino em 310 (VI)
312 (V) 314 (XII) e 321 (IV de Nazaacuterio) e a Juliano em 362 (III de Cl
Mamertino o Jovem em sua proacutepria nomeaccedilatildeo para o consulado)6
Mitchell (2015 p 4) realccedila que conforme o Impeacuterio crescia foi se dando cada
vez mais ecircnfase agrave religiatildeo do Estado Acreditava-se que ele era mantido devido ao apoio
dos deuses e os imperadores romanos que em parte controlavam as atividades religiosas
em seus territoacuterios eram vistos como aqueles que mantinham o pacto de paz com os
deuses a pax deorum E segundo Mitchell todos os meios de propaganda estavam
imbuiacutedos desta ideologia inclusive os discursos panegiacutericos
Braund (2005 129) especifica que o cocircnsul Pliacutenio entregou seu panegiacuterico ao
imperador Trajano no iniacutecio de seu reinado Era um discurso de gratidatildeo onde ele
aproveita para contrastar a imagem do bom Trajano com a do mau Domiciano imperador
de 81 a 96 EC Para Braund (2005 p 130)
Este texto revela dois modelos contrastantes de patrono ou imperador - e afinal
de contas o imperador era apenas o patrono mais poderoso em Roma O bom
patrono ou imperador eacute marcado por sua abertura acessibilidade e atitude
amigaacutevel e tolerante O mau patrono ou imperador eacute marcado pelo abuso
tiracircnico de seus poderes para tomar decisotildees de vida e morte sobre todos ao
seu redor do menor escravo ao senador mais eminente A celebraccedilatildeo do bom
modelo e a condenaccedilatildeo do ruim encontram-se em toda a gama de textos da
literatura latina incluindo poesia eacutepica e pastoral poesia liacuterica e elegiacuteaca
saacutetira e epigrama historiografia oratoacuteria e romance Isso natildeo nos deixa
duvidar de que o modo como um homem poderoso se comportava com seus
the Scipio family dating from the third and second centuries BCE (the Scipionic elogia) are the
(posthumous) praises of great menrdquo 5 Ver tambeacutem BERRY D H Oratory In HARRISON Stephen (ed) A Companion to Latin Literature
Oxford Blackwell 2005 pp 267-268 6 ldquoKey works in this genre are the twelve Latin panegyrics which were probably compiled by the Gallic
orator Pacatus and were prefaced by the younger Plinyrsquos lengthy panegyric for the emperor Trajan (I)
Apart from Pacatusrsquo own work of 389 in praise of Theodosius I (II) this includes speeches for
Maximianus in 289 (X by the elder Cl Mamertinus) and 291 (XI) for Constantius the father of
Constantine in 296 (VIII) and 298 (IX) for the marriage of Constantine and Fausta in 307 (VII) for
Constantine in 310 (VI) 312 (V) 314 (XII) and 321 (IV by Nazarius) and for Julian in 362 (III by the
younger Cl Mamertinus on his own appointment to the consulship)rdquo
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pares e seus subordinados era crucial para sua posiccedilatildeo social e reputaccedilatildeo
poliacutetica7
Bruce Gibson (2005 p 72) critica a postura deste gecircnero por natildeo se envolver
abertamente com a poliacutetica atual de seu tempo senatildeo de modo indireto e o panegiacuterico
modelo natildeo foi a exceccedilatildeo ldquoMesmo o Panegiacuterico de Pliacutenio um discurso em louvor ao
imperador Trajano dado por ocasiatildeo de seu consulado em setembro de 100 EC oferece
sua criacutetica de governo indiretamente atraveacutes da estrateacutegia de atacar o principado de
Domicianordquo8
CONSIDERACcedilOtildeES PARCIAIS
As condiccedilotildees do discurso representavam um novo momento para o Impeacuterio De
acordo com A D Lee (2013 p 1) foi por meados do seacuteculo IV que o Impeacuterio Romano
havia alcanccedilado quase tanto territoacuterio quanto durante o seacuteculo II periacuteodo conhecido pelo
auge do poder romano Foi o periacuteodo dos imperadores guerreiros que se viram forccedilados
a se retirar dos confortos de Roma para proteger suas fronteiras (LEE 2013 p 5) Roma
foi substituiacuteda como residecircncia imperial por Treacuteveris Milatildeo Sirmio e Antioquia Com a
criaccedilatildeo de Constantinopla por parte do imperador Constantino essa situaccedilatildeo soacute se
agravou De qualquer forma o tema que domina o seacuteculo e que dominou os discursos
traduzidos de Siacutemaco foi a histoacuteria militar (MITCHELL 2015 pp 11-12)
Natildeo eacute um Impeacuterio em decadecircncia mas sim um momento de transiccedilatildeo Mitchell
(2015 p 56) se daacute conta de como por exemplo Diocleciano Joviano e Valentiniano
vieram de origens semelhantes Eram todos militares de meia idade nascidos nas
proviacutencias da Iliacuteria o que plasma uma mudanccedila no eixo do poder Mitchell (2015 pp 56-
57) frisa como desde a ascensatildeo de Diocleciano em 284 ateacute a morte de Teodoacutesio I em
395 o Impeacuterio foi governado por esses imperadores guerreiros que aniquilavam inimigos
internos e externos O Estado estava centrado em guerras e batalhas Calcula-se que mais
de dois terccedilos de seu orccedilamento anual eram gastos em atividades militares atividades das
quais os imperadores participavam pessoalmente
Siacutemaco soube valer-se da situaccedilatildeo para estreitar laccedilos com a corte e obter ascensatildeo
poliacutetica Esse periacuteodo foi especial tambeacutem por sua produccedilatildeo literaacuteria e pela quantidade
de escritos que sobreviveu ao tempo Segundo OrsquoDonnel (2015 p 161) haacute mais literatura
latina que nos chegou entre 350 e 450 do que de qualquer outro periacuteodo mais ateacute mesmo
que a eacutepoca de ouro latina entre o final da Repuacuteblica e comeccedilo do Impeacuterio9
7 ldquoThis text reveals two contrasting models of patron or emperor ndash and after all the emperor was just the
most powerful patron in Rome The good patron or emperor is marked by his openness accessibility and
friendly and tolerant attitude The bad patron or emperor is marked by his tyrannical abuse of his powers
to make life and death decisions about everyone around him from the lowest slave to the most eminent
senator Celebration of the good model and condemnation of the bad model are found in the entire range
of texts of Latin literature including epic and pastoral poetry lyric and elegiac poetry satire and epigram
historiography oratory and the novel This can leave us in no doubt that how a powerful man behaved
towards his peers and his subordinates was crucial to his social standing and to his political reputationrdquo 8 ldquoEven Plinyrsquos Panegyricus a speech in praise of the emperor Trajan given on the occasion of his
consulship in September AD 100 offers its critique of rulership indirectly through the strategy of
assailing the principate of Domitianrdquo
9 ldquoWe have more surviving Latin literature from this century between 350 and 450 than for any comparable
period before that including the more famously golden age of Caesar Cicero and Vergilrdquo
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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22 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6
DOI httpsdoiorg1012957principia201946510
OS IMPERADORES SUETONIANOS EM MEMOacuteRIAS POacuteSTUMAS
DE BRAacuteS CUBAS
Bruno Torres dos Santos
RESUMO O presente trabalho busca discutir atraveacutes da anaacutelise de traduccedilotildees proacuteprias as
referecircncias aos imperadores romanos descritos e consagrados pelo bioacutegrafo Suetocircnio em Vida
dos Ceacutesares na obra Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis Aquele no
iniacutecio do seacuteculo II da era comum demonstrou os viacutecios e as virtudes dos imperadores inclusive
enfatizando os escacircndalos de suas cortes Jaacute Machado trouxe agrave tona as vaidades e as ambiccedilotildees
da burguesia brasileira do seacuteculo XIX Entatildeo analisaremos e interpretaremos o uso destes
personagens histoacutericos para a criaccedilatildeo literaacuteria no referido romance partindo do pressuposto de
que eles poderiam passar despercebidos por leitores modernos que natildeo recuperassem as
referecircncias agrave cultura agrave literatura e agrave histoacuteria da Roma Antiga
PALAVRAS-CHAVE Machado de Assis Imperadores romanos Suetocircnio
THE SUETONIAN EMPERORS IN THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF
BRAS CUBAS
ABSTRACT The present work aims through the analysis of own translations the references to
the Roman emperors described and consecrated by the biographer Suetonius in Life of the
Caesars in the novel Posthumous Memoirs of Bras Cubas by Machado de Assis Suetonius
at the beginning of the second century of the common age demonstrated the vices and virtues
of the emperors including emphasizing the scandals of their courts Machado has already
brought to light the vanities and ambitions of the Brazilian bourgeoisie of the nineteenth
century Then we will analyze and interpret the use of these historical characters for the literary
creation in the novel assuming that they could go unnoticed by modern readers who do not
recover references to the culture literature and history of Ancient Rome
KEYWORDS Machado de Assis Roman emperors Suetonius
Entre os mais diversos romancistas com que a literatura brasileira teve contato natildeo haacute
nome maior do que Machado de Assis Tal personalidade nasceu no Morro do Livramento
Eacute doutorando no PPGLC-UFRJ bolsista CAPES sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Anderson Esteves e integrante
discente do grupo de pesquisa ATRIVM ndash Espaccedilo Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (PPGLC-UFRJ) E-
mail brunots_hotmailcom
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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localizado na aacuterea central do Rio de Janeiro proacuteximo a zona portuaacuteria em junho de 1839
Oriundo de famiacutelia pobre estudou em escolas puacuteblicas mas nunca frequentou uma
universidade Dedicou-se aos mais diversos gecircneros literaacuterios escrevendo poesia crocircnica
teatro conto romance Tambeacutem foi criacutetico literaacuterio e jornalista Testemunhou a Aboliccedilatildeo da
Escravatura e as mudanccedilas poliacuteticas no Brasil quando o Impeacuterio foi entatildeo substituiacutedo pela
Repuacuteblica comentando e relatando os respectivos eventos poliacutetico-sociais Em 1897 funda a
ABL (Academia Brasileira de Letras) da qual permaneceu presidente ateacute sua morte em 1908
com 69 anos
Ao discorrer sobre a consolidaccedilatildeo do nosso sistema literaacuterio o professor Antonio
Candido opina sobre Machado afirmando que ele ldquoera dotado de raro discernimento literaacuterio e
adquiriu por esforccedilo proacuteprio uma forte cultura intelectual baseada nos claacutessicos mas aberta aos
filoacutesofos e escritores contemporacircneosrdquo (CANDIDO 2010 p 65) E ainda acrescenta
Sua obra eacute variada e tem caracteriacutestica das produccedilotildees eminentes satisfaz tanto aos
requintados quanto aos simples Ela tem sobretudo a possibilidade de ser
reinterpretada agrave medida que o tempo passa porque tendo uma dimensatildeo profunda de
universalidade funciona como se se dirigisse a cada eacutepoca que surge (CANDIDO
2010 p 65)
Eacute esse diaacutelogo entre o claacutessico e o contemporacircneo com pitada filosoacutefica que daacute
singularidade agrave sua obra fazendo com que suas produccedilotildees sejam sempre atemporais Satildeo esses
traccedilos que se mostram mais produtivos para o nosso estudo no qual pretendemos analisar e
interpretar como os imperadores romanos descritos pelo bioacutegrafo Suetocircnio em sua obra satildeo
utilizados por Machado em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas1 Para tal julgamos necessaacuterio
primeiramente contextualizar brevemente os autores em apreccedilo bem como suas obras
(Memoacuterias Poacutestumas e Vida dos Ceacutesares2) os gecircneros praticados (Romance e Biografia
Antiga) e os tipos de criacutetica social dos dois autores Depois disso analisaremos os excertos do
romance machadiano em questatildeo no qual as presenccedilas dos principes (no singular princeps
termo latino usado na Roma Antiga para se referir ao que entendemos hoje por imperador) se
mostrem mais evidentes para entatildeo coligirmos com trechos da obra suetoniana Para o trabalho
com esta obra utilizaremos a ediccedilatildeo da Loeb Classical Library (1914) mas com traduccedilotildees de
nossa proacutepria autoria para o trabalho com aquela utilizaremos a ediccedilatildeo criacutetica estabelecida
pela Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira (1975)
Como jaacute afirmado Machado praticou os mais diversos gecircneros literaacuterios E jaacute demos os
merecidos creacuteditos pelo conjunto da obra Mas devemos frisar que eacute na praacutetica sobre o gecircnero
romance que os creacuteditos se mostram mais merecidos pois eacute nele que o autor apresenta natildeo soacute
todo o seu ingenium (talento natural) mas tambeacutem toda a sua ars (habilidade teacutecnica) para
usarmos termos proacuteprios da literatura latina
Foi esse talento somado a seu espiacuterito galhofeiro que proporcionou a criaccedilatildeo de um
narrador mais que incomum em Memoacuterias Poacutestumas Sobre esse narrador Francisco Silveira
discorre que ldquoele vinha pelo menos agrave primeira vista infringir dois postulados realistas a
impessoalidade e o verismordquo (SILVEIRA 2001 p 97) Convergirmos com tal visatildeo posto que
eacute com a referida obra e seu respectivo narrador defunto-autor que o Realismo enquanto esteacutetica
literaacuteria vai ser ldquoinauguradordquo no Brasil em 1881 Natildeo menos importante eacute a visatildeo de Alfredo
Bosi
1 Nas proacuteximas remissotildees a essa obra usaremos apenas Memoacuterias Poacutestumas 2 Em liacutengua latina De uita caesarum
Bruno Torres dos Santos
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Quando o romancista assumiu naquele livro capital o foco narrativo na verdade
passou ao defunto-autor Machado-Braacutes Cubas delegaccedilatildeo para exibir com o despejo
dos que nada mais temem as peccedilas de cinismo e indiferenccedila com que via montada a
histoacuteria dos homens A revoluccedilatildeo dessa obra que parece cavar um fosso entre dois
mundos foi uma revoluccedilatildeo ideoloacutegica e formal aprofundando o desprezo agraves
idealizaccedilotildees romacircnticas e ferindo ao cerne o mito do narrador onisciente que tudo vecirc
e tudo julga deixou emergir a consciecircncia nua do indiviacuteduo fraco e incoerente O que
restou foram as memoacuterias de um homem igual a tantos outros o cauto e desfrutador
Braacutes Cubas (BOSI 2006 p 177)
Entendemos assim que o ser humano seraacute analisado sob seu cinismo e sob a
indiferenccedila por um narrador tambeacutem fraco e cheio de incoerecircncias rompendo nesse aspecto
com a esteacutetica Romacircntica Bosi ainda acrescenta
o ponto de vista um velho tema como o triacircngulo amoroso jaacute natildeo se carregaraacute do
pathos romacircntico que envolvia heroacutei-heroiacutena-o outro mas deixaraacute vir agrave tona os mil e
um interesses de posiccedilatildeo prestiacutegio e dinheiro dando a batuta agrave libido e agrave vontade de
poder que mais regem os passos do homem em sociedade Da histoacuteria vulgar do
adulteacuterio de Braacutes Cubas-Virgiacutenia-Lobo Neves agrave triste comeacutedia de equiacutevocos de
Rubiatildeo-Sofia-Palha (Quincas Borba) e desta agrave trageacutedia perfeita de Bentinho-Capitu-
Escobar (D Casmurro) soacute aparecem variantes de uma soacute e mesma lei natildeo haacute mais
heroacuteis a cumprir missotildees ou a afirmar a proacutepria vontade haacute apenas destinos destinos
sem grandeza (BOSI 2006 p 180)
Observamos o olhar aparentemente ldquodespretensiosordquo de Machado de Assis sem a
intenccedilatildeo de criar e de se defrontar com personagens heroicos mas ao lidar com homens-
personagens comuns lidaraacute tambeacutem com problemas comuns Ele analisa a psicologia do
ldquohomemrdquo com todas as suas peculiaridades inveja ganacircncia ambiccedilatildeo E eacute a atmosfera
burguesa que potencializa esses sentimentos De todo modo faz uma ldquocriacutetica socialrdquo sem querer
fazecirc-la Eacute isso que o aproxima e o distancia de Suetocircnio que analisa os retratos morais dos
imperadores romanos com todos os viacutecios e virtudes mas faz ldquocriacutetica socialrdquo e ateacute propaganda
poliacutetica de modo velado
Diferente do esforccedilo na anaacutelise da vida e obra de Machado quem se propotildee a estudar o
bioacutegrafo Caio Suetocircnio Tranquilo inicialmente se depara com algumas imprecisotildees acerca de
sua vida No tocante ao seu local de nascimento Anderson Esteves em seu artigo busca
encontrar vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas proacuteprias obras nos apontando como mais
plausiacutevel a ideia segundo a qual este teria nascido em Roma ou pelo menos se estabelecido
nessa cidade desde a infacircncia Ele nos informa sobre a origem e a condiccedilatildeo familiar de Suetocircnio
o avocirc era de uma condiccedilatildeo menos abastada visto que teria sido um liberto do imperador
Claacuteudio jaacute seu pai de uma condiccedilatildeo social mais elevada pois pertencia a ordem dos equestres
(ESTEVES 2015 p 1-7)
Eacute dado como certo que Suetocircnio teria nascido em 70 EC um ano apoacutes o conhecido ldquoAno
dos quatro imperadoresrdquo sobre o qual ainda falaremos Maacuterio Citroni esclarece-nos que em 69
EC o pai do bioacutegrafo foi combatente ao lado de Oto com o grau de tribunus militum (tribuno
militar) (CITRONI 2006 p 971) Natildeo menos importante eacute o que esclarece Ronald Mellor
segundo ele o cognomen ldquoTranquilordquo atribuiacutedo a Suetocircnio eacute decorrente do esforccedilo do seu pai
na busca pela estabilizaccedilatildeo da paz apoacutes esta terriacutevel guerra civil (MELLOR 1999 p 147)
Conforme observamos de alguma forma sua famiacutelia estava envolvida com as casas
imperiais e dada a condiccedilatildeo do seu pai Suetocircnio teve a possibilidade de ter uma boa educaccedilatildeo
na urbs dedicando-se aos estudos de gramaacutetica e de retoacuterica Nessa trajetoacuteria instrutiva o
bioacutegrafo torna-se amigo iacutentimo do renomado senador Pliacutenio o Jovem Por influecircncia dessa
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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amizade Suetocircnio consegue alguns cargos de prestiacutegio dentro das cortes imperiais Durante o
principado de Trajano ele ocupou os postos de a studiis (com a funccedilatildeo de cuidar dos interesses
e das obrigaccedilotildees culturais do imperador) e o de a bibliothecis (com a funccedilatildeo de cuidar das
bibliotecas puacuteblicas) Sob o principado de Adriano ocupou o posto de ab epistulis (com a
funccedilatildeo de redigir a correspondecircncia oficial) (MORENO 1997 p 645 CITRONI 2006 p
971)
A rede de contato iniciada por seu amigo Pliacutenio permitiu que Suetocircnio alcanccedilasse as
referidas ocupaccedilotildees e por consequecircncia o acesso direto aos arquivos imperiais muitas vezes
fundamentais para a feitura da sua obra De uita caesarum na qual discorre sobre os doze
primeiros ceacutesares de Roma desde o general Juacutelio Ceacutesar ateacute o polecircmico imperador Domiciano
Cabe considerar que ele iniciou a composiccedilatildeo desse seu opus magnum por volta dos primeiros
anos do principado de Adriano o qual se estendeu entre os anos de 117 e 138 EC
Acerca do gecircnero praticado por Suetocircnio devemos considerar que ateacute aqui muito foi
usada a terminologia moderna ldquobiografiardquo poreacutem conveacutem lembrarmos que esse gecircnero relativo
agrave escrita de uma vida na Antiguidade eacute referido por bios pelos gregos e uita pelos romanos
O termo ldquobiografiardquo como salienta Sabina Loriga soacute aparece ao longo do seacuteculo XVII
designando uma obra veriacutedica fundada numa descriccedilatildeo realista que se opotildee a outras formas
antigas de escritura idealizadoras do personagem e das circunstacircncias de sua vida tal qual o
panegiacuterico o elogio a oraccedilatildeo fuacutenebre e a hagiografia (LORIGA 2011 p 17)
A pesquisadora argumenta ainda que desde sua origem na Antiguidade a biografia eacute um
gecircnero hiacutebrido e composto que equilibrando-se entre a verdade histoacuterica e a verdade literaacuteria
sofreu ao longo do tempo profundas transformaccedilotildees sobretudo no que diz respeito agrave escolha e
agrave elaboraccedilatildeo dos fatos e do estilo de narraccedilatildeo (LORIGA 2011 p 18)
Frente a esses esclarecimentos avancemos aos excertos de Memoacuterias Poacutestumas em cujo
iniacutecio o narrador e protagonista Braacutes Cubas relata suas lembranccedilas apoacutes ter sido vitimado por
uma pneumonia Ele que pertencia a uma famiacutelia abastada do seacuteculo XIX narra sua morte e
seu enterro em que apareceram apenas onze amigos Relata diversos periacuteodos da vida infacircncia
adolescecircncia e fase adulta Ainda apresenta suas expectativas com o ldquoEmplastordquo um
medicamento por ele inventado com grande potencial de cura O narrador reconhece que esse
projeto se tornou uma ldquoideia fixardquo que entendemos como uma ideia difiacutecil de se retirar da
cabeccedila E eacute justamente no IV capiacutetulo intitulado A ideacutea fixa que o narrador machadiano faz a
primeira referecircncia a imperadores romanos e ao proacuteprio bioacutegrafo Suetocircnio
A minha ideacutea depois de tantas cabriolas constituiacutera-se ideacutea fixa Deus te livre leitor
de uma ideacutea fixa antes um argueiro antes uma trave no olho Vecirc o Cavour foi a ideacutea
fixa da unidade italiana que o matou Verdade eacute que Bismarck natildeo morreu mas
cumpre advertir que a natureza eacute uma grande caprichosa e a histoacuteria uma eterna
loureira Por exemplo Suetocircnio deu-nos um Claacuteudio que era um simploacuterio mdash ou
ldquouma aboacuteborardquo como lhe chamou Secircneca e um Tito que mereceu ser as deliacutecias de
Roma Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dous
ceacutesares o delicioso o verdadeiro delicioso foi o ldquoaboacuteborardquo de Secircneca E tu madama
Lucreacutecia flor dos Boacutergias se um poeta te pintou como a Messalina catoacutelica apareceu
um Gregorovius increacutedulo que te apagou muito essa qualidade e se natildeo vieste a liacuterio
tambeacutem natildeo ficaste pacircntano Eu deixo-me estar entre o poeta e o saacutebio (Machado de
Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap IV p 103)3
3 Para facilitar a leitura usaremos tal forma nas referecircncias a esta obra que compotildee nossa documentaccedilatildeo textual
Para as referecircncias agraves biografias de Vida dos Ceacutesares adotamos as abreviaccedilotildees do renomado The Oxford Latin
Dictionary (httpswwwoxfordscholarlyeditionscompageabbreviations acessado em 25102019)
Bruno Torres dos Santos
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 27
Nesse discurso metalinguiacutestico dirigido diretamente ao leitor a fim de exemplificar a
proacutepria noccedilatildeo de ldquoideia fixardquo Braacutes Cubas evidencia que Suetocircnio o qual ressignificou a ldquoideiardquo
do filoacutesofo estoico Secircneca teve a sua ldquoideiardquo ressignificada por um professor moderno
Diferentemente do bioacutegrafo Suetocircnio bem como os imperadores que ele ldquonos deurdquo que foram
personagens histoacutericas o referido professor natildeo o foi
Entatildeo passemos a essas referecircncias o primeiro imperador citado eacute Tibeacuterio Claacuteudio Druso
Braacutes Cubas adjetiva o Claacuteudio de Suetocircnio como um ldquosimploacuteriordquo que eacute assim descrito na
biografia suetoniana
Infans autem relictus a patre ac per omne fere pueritiae atque adulescentiae tempus
variis et tenacibus morbis conflictatus est adeo ut animo simul et corpore hebetato ne
progressa quidem aetate ulli publico privatoque muneri habilis existimaretur (Suet
Cl 21)
No entanto era crianccedila quando foi abandonado pelo pai e por quase todo o tempo da
primeira infacircncia e adolescecircncia foi acometido por vaacuterias doenccedilas persistentes de tal
modo que estivesse ao mesmo tempo com o espiacuterito e com o corpo debilitado foi
certamente por conta de sua idade avanccedilada estimado como natildeo apto para cargo no
acircmbito puacuteblico e no acircmbito privado
Posteriormente Suetocircnio faz o seguinte relato sobre a inesperada subida ao trono apoacutes o
assassinato do sobrinho Caliacutegula
Per haec ac talia maxima aetatis parte transacta quinquagesimo anno imperium cepit
quantumvis mirabili casu Exclusus inter ceteros ab insidiatoribus Gai cum quasi
secretum eo desiderante turbam submoverent in diaetam cui nomen est Hermaeum
recesserat neque multo post rumore caedis exterritus prorepsit ad solarium proximum
interque praetenta foribus vela se abdidit Latentem discurrens forte gregarius miles
animadversis pedibus studio sciscitandi quisnam esset adgnovit extractumque et prae
metu ad genua sibi accidentem imperatorem salutavit (Suet Cl10 1-2)
Por estas e outras coisas semelhantes tendo passado muito do tempo assumiu o
impeacuterio soacute com cinquenta anos atraveacutes de um caso extremamente interessante
Excluiacutedo entre os outros pelos assassinos de Caio Caliacutegula quando sob o pretexto
de expulsarem a multidatildeo e desejando ele um lugar isolado retirou-se para um
pavilhatildeo ao qual chamam de ldquoHermeacuteurdquo E natildeo muito depois aterrorizado com a
notiacutecia da morte avanccedilou se arrastando para uma galeria solar proacutexima e se escondeu
entre as cortinas postas diante das portas Tendo os peacutes sido observados um soldado
raso correndo de uma parte a outra com uma forte curiosidade procurou saber quem
estaria escondido e reconheceu quem por ele foi retirado do esconderijo Diante do
medo Claacuteudio se prostrou aos seus peacutes o soldado o saudou como imperador
Notamos que um eventual olhar do narrador machadiano sobre a dinastia julio-claudiana
sempre lembrada no pensamento ocidental pelos excelentes generais como Juacutelio Ceacutesar e
Augusto e pelos polecircmicos Tibeacuterio Caliacutegula e Nero pode justificar a anaacutelise de Claacuteudio como
um personagem simploacuterio Isso se daacute mesmo este tendo conquistado diversas regiotildees e tido boa
aceitaccedilatildeo pelo povo romano pois como percebemos nos excertos de sua biografia Suetocircnio
fez ressoar sua fraqueza de espiacuterito inaptidatildeo para o governo e a covardia Cabe lembrar ainda
que numa leitura completa da biografia do imperador ele aparece como um joguete nas matildeos
das proacuteprias esposas Primeiramente Valeacuteria Messalina (a mesma referida no capiacutetulo em
questatildeo das Memoacuterias Poacutestumas) tentou entregar o Impeacuterio nas matildeos de um de seus amantes
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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C Siacutelio mas sem sucesso foi por Claacuteudio condenada e executada Jaacute viuacutevo ele se casa com
Agripina que trama pela sua morte para legar o trono a seu filho Nero
Justifica-se assim tambeacutem o seu retrato como uma ldquoaboacuteborardquo na obra Apocoloquintose
na qual o filoacutesofo e tragedioacutegrafo Secircneca que foi banido de Roma por Claacuteudio em 41 em
razatildeo de intrigas palacianas critica ironicamente o receacutem-assassinado imperador Horaacutecio
Rolim de Freitas explica que
O tiacutetulo inicial seria Ludus de morte Claudii O historiador Dion Caacutessio sugeriu que
o tiacutetulo tenha sido Apocolocyntosis (transformaccedilatildeo em aboacutebora) do grego
Ἀποκολοκύνθοσις Tiacutetulo curioso mas era entendido pelos leitores da eacutepoca pois
aboacutebora (ποκολοκύντἡς) era siacutembolo da estupidez (FREITAS 2010 p 13)
Para compreendermos isso devemo-nos lembrar de um aspecto cultural importante na
Roma Antiga ndash a Apoteose A cerimocircnia de deificaccedilatildeo que ocorria durante os funerais dos
iminentes ceacutesares iniciada por Otaacutevio a partir da morte de seu tio Juacutelio Ceacutesar Ou seja o
argumento da obra senequiana eacute parodiar a narraccedilatildeo agraves avessas da apoteose de Claacuteudio
relatando como o morto foi recebido nos infernos pelos deuses transformando-se no alegoacuterico
legume
O segundo imperador citado nesse IV capiacutetulo de Memoacuterias Poacutestumas foi Tito
Vespasiano Augusto Tito foi o segundo princeps da dinastia flaviana Era o filho mais velho
de Vespasiano e irmatildeo de Domiciano os quais tambeacutem seratildeo citados por Braacutes Cubas ao longo
do romance Depois da morte de seu pai Tito assume as reacutedeas do Impeacuterio atuando de modo
similar a ele com excelecircncia no campo militar e com moderaccedilatildeo no campo poliacutetico foi visto
como um bom imperador por Roma Por essa razatildeo eacute descrito por Suetocircnio logo no primeiro
capiacutetulo de sua biografia como ldquoTito tendo o cognome do pai foi o amor e as deliacutecias do
gecircnero humano Tanto de inteligecircncia de habilidade e de fortuna abundava nele que ganhava a
simpatia de todos o que eacute muito difiacutecil durante um governordquo (Titus cognomine paterno amor
ac deliciae generis humani ndash tantum illi ad promerendam omnium voluntatem vel ingenii vel
artis vel fortunae superfuit et quod difficillimum est in impeacuterio () (Suet Tit 11) Com essa
seleccedilatildeo vocabular Suetocircnio ldquonos daacuterdquo o retrato de um imperador diferente de Claacuteudio Eacute esse
retrato com vastos predicados perante a humanidade que serviu de fonte para Machado de
Assis fazer o jogo de palavras com o termo ldquodeliacuteciardquo na ldquoideia fixardquo de um professor
Para encerrar a anaacutelise do capiacutetulo conveacutem observar a segunda referecircncia a tais principes
em ldquoViva pois a histoacuteria a voluacutevel histoacuteria que daacute para tudo e tornando agrave ideacutea fixa direi que
eacute ela a que faz os varotildees fortes e os doudos a ideacutea moacutebil vaga ou furta-cor eacute a que faz os
Claacuteudios mdash formula Suetocircniordquo (Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap
IV p 103) O Bruxo do Cosme Velho brinca com o gecircnero historiograacutefico ao qual o gecircnero
biograacutefico estaacute aparentado Chamando a histoacuteria de voluacutevel ele usa novamente o verbo ldquodarrdquo
Em nossa interpretaccedilatildeo o narrador quer reforccedilar que a histoacuteria ldquodaacuterdquo na acepccedilatildeo de ldquopromoverrdquo
diversos retratos sejam eles positivos ou negativos a depender da ldquoideiardquo que cada personagem
possui Esse modus operandi da formulaccedilatildeo de Suetocircnio muito se relaciona com o de Machado
Avancemos agora ao capiacutetulo XXIII de Memoacuterias Poacutestumas intitulado Triste mas curto
Em tal capiacutetulo Cubas narra sua chegada ao Rio de Janeiro e a sensaccedilatildeo de rever os locais de
sua infacircncia a tristeza de sua famiacutelia e o sofrimento de sua progenitora Quando vecirc sua matildee
com quem natildeo tinha contato haacute nove anos acha-a paacutelida e sem soltar uma palavra sequer pega
em suas matildeos No dia seguinte ela vem a falecer sendo a primeira vez que ele teria tido contato
com a morte de perto de uma pessoa amada Neste iacutenterim ele faz referecircncia a mais um ceacutesar
descrito por Suetocircnio o proacuteprio Juacutelio Ceacutesar que embora natildeo tenha chegado a ser um
ldquoimperadorrdquo enquanto chefe de estado eacute ele quem ldquodesenhardquo o que viria a ser o Impeacuterio
Bruno Torres dos Santos
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romano iniciado por seu sobrinho-neto Otaviano Por essa razatildeo tambeacutem incluiacutemos tal general
em nossas anaacutelises e eacute assim referenciado no romance
Longa foi a agonia longa e cruel de uma crueldade minuciosa fria repisada que me
encheu de dor e estupefacccedilatildeo Era a primeira vez que eu via morrer algueacutem Conhecia
a morte de outiva quando muito tinha-a visto jaacute petrificada no rosto de algum
cadaacutever que acompanhei ao cemiteacuterio ou trazia-lhe a ideacutea embrulhada nas
amplificaccedilotildees de retoacuterica dos professores de coisas antigas mdash a morte aleivosa de
Ceacutesar a austera de Soacutecrates a orgulhosa de Catatildeo (Machado de Assis Memoacuterias
Poacutestumas de Braacutes Cubas cap XXIII p 145)
Nas referidas amplificaccedilotildees retoacutericas ressoa a morte do filoacutesofo Soacutecrates a qual de fato
ficou no imaginaacuterio ocidental como uma morte ldquoausterardquo dado o fato de ele ter se mantido
firme em suas ideias ldquocorruptorasrdquo dos jovens atenienses ateacute a hora de seu oacutebito A morte de
Catatildeo o Jovem tambeacutem eacute adjetivada por Braacutes Cubas poreacutem como ldquoorgulhosardquo A respectiva
adjetivaccedilatildeo se apresenta com ecircxito dado o fato de Catatildeo ter sido um poliacutetico romano notaacutevel
por sua integridade moral Sendo ele ainda partidaacuterio da filosofia estoica descrito pelo
historiador Saluacutestio como a antiacutetese direta de Juacutelio Ceacutesar suicidou-se apoacutes a vitoacuteria deste seu
opositor na Batalha de Tapso
Concentremo-nos poreacutem na morte de Ceacutesar mesmo que natildeo haja nenhuma associaccedilatildeo
direta dele com o bioacutegrafo diferentemente dos excertos com os imperadores anteriores isso
natildeo nos impede de relacionaacute-los O narrador machadiano adjetiva tal morte como ldquoaleivosardquo
denotando a atmosfera da traiccedilatildeo pela qual Ceacutesar passou no Senado romano relatada em sua
biografia deste modo
Assidentem conspirati specie officii circumsteterunt ilicoque Cimber Tillius qui
primas partes susceperat quasi aliquid rogaturus propius accessit renuentique et gestu
in aliud tempus differenti ab utroque umero togam adprehendit deinde clamantem
ldquoIsta quidem vis estrdquo alter e Cascis aversum vulnerat paulum infra iugulum Caesar
Cascae brachium arreptum graphio traiecit conatusque prosilire alio vulnere tardatus
est utque animadvertit undique se strictis pugionibus peti toga caput obvoluit simul
sinistra manu sinum ad ima crura deduxit quo honestius caderet etiam inferiore
corporis parte velata Atque ita tribus et viginti plagis confossus est uno modo ad
primum ictum gemitu sine voce edito etsi tradiderunt quidam Marco Bruto irruenti
dixisse καὶ σὺ τέκνον (Suet Jul 82 1-2)
Os que haviam concordado com a natureza do trabalho rodeavam aquele que estava
sentado Sem demorar Ciacutember Tiacutelio que se encarregava dos primeiros papeacuteis como
se houvesse de falar algo caminhou para mais perto Ceacutesar negando atraveacutes de um
gesto contraacuterio passou-o para outro momento Por ambos os lados aquele apertou sua
toga Entatildeo Ceacutesar clamou ldquoIsso eacute verdadeiramente uma violecircnciardquo Um dos Cascas
jaacute lhe tinha ferido por traacutes um pouco abaixo da garganta Com um ponteiro furou com
um ponteiro o braccedilo arrebatado de Casca e o impulso de arremeter foi detido por uma
outra ferida Mas quando observou que seria tomado por robustos punhais por todos
os lados cobriu a cabeccedila com a toga Ao mesmo tempo com a matildeo esquerda conduziu
a dobra da veste ateacute as extremidades das pernas de modo que jaacute estando com a parte
inferior do corpo coberta caiacutesse mais honrosamente Desta maneira foi dilacerado
por vinte e trecircs golpes Ateacute a primeira ferida teria produzido apenas um gemido sem
uma palavra sequer embora alguns afirmem que com o ataque de Marco Bruto teria
dito ldquoTambeacutem tu meu filhordquo
Como reconhecemos esses escritos de Suetocircnio com grande carga dramaacutetica foram
grandes responsaacuteveis por propagar no imaginaacuterio do mundo ocidental este evento que mudou
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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os rumos da Roma Antiga Machado de Assis foi ciruacutergico ao usar a palavra aleivosa para
qualificar a morte de Ceacutesar a qual condensa toda a ideia da conjuraccedilatildeo Muito provavelmente
teve acesso a isso atraveacutes da referida biografia
Podemos avanccedilar ao capiacutetulo LXXII do romance cujo tiacutetulo eacute O bibliocircmano no qual o
defunto-autor confessa que deveria suprimir o capiacutetulo antecedente alegando haver nele um
despropoacutesito acerca do qual natildeo gostaria de receber criacuteticas Afirma que setenta anos agrave frente
este leitor que eacute por ele caracterizado e denominado ldquobibliocircmanordquo procuraria minuciosamente
o tal ldquodespropoacutesitordquo poreacutem sem ecircxito natildeo encontraria Em seguida explica que ele natildeo o
encontraria pelo simples fato de ele natildeo existir jaacute que foi suprimido Discorre ainda que isso
natildeo causaria o desinteresse do leitor sobre o livro e que pelo contraacuterio ele o adoraria por ser
um exemplar uacutenico O bibliocircmano continua sua procura mas mesmo sem sucesso se contenta
com o fato de dispor do uacutenico tomo
Jaacute prometeu a si mesmo escrever uma breve memoacuteria na qual relate o achado do livro
e a descoberta da sublimidade se a houver por baixo daquela frase obscura Ao cabo
natildeo descobre nada e contenta-se com a posse Fecha o livro mira-o remira-o chega-
se agrave janela e mostra-o ao sol
Um exemplar uacutenico Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um Ceacutesar ou um
Cromwell a caminho do poder Ele daacute de ombros fecha a janela estira-se na rede e
folheia o livro de vagar com amor aos goles Um exemplar uacutenico (Machado de
Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap LXXII p 209-210)
Neste excerto em que Braacutes Cubas manteacutem sua divagaccedilatildeo sobre o despropoacutesito da mesma
forma que fez com a noccedilatildeo de ideia fixa notamos a segunda referecircncia ao general Juacutelio Ceacutesar
A menccedilatildeo a Ceacutesar e a Cromwell visa ilustrar o modo como uma pessoa estaria transitando pela
rua ldquoa caminho do poderrdquo Oliver Cromwell foi um comandante militar e poliacutetico nascido na
nobreza rural inglesa em 1599 Em 1630 passa por uma conversatildeo religiosa e reconhecendo-
se como um Puritano acreditava que Deus era quem o guiava em suas vitoacuterias sendo muito
ativo durante a Guerra Civil Inglesa Mas quem mais nos interessa eacute o outro poliacutetico e militar ndash
Juacutelio Ceacutesar ndash e este nome associado agrave expressatildeo ldquocaminho do poderrdquo leva-nos a lembrar de
outro aspecto cultural da Roma Antiga ndash a travessia ao Rio Rubicatildeo Jaacute durante a Repuacuteblica
esse rio que dividia a proviacutencia da Gaacutelia Cisalpina (ao norte) do resto da Itaacutelia (ao sul) era de
suma importacircncia visto que a lei romana proibia que fosse transpassado por quaisquer legiotildees
do exeacutercito romano caso isso fosse feito denotaria uma ameaccedila militar interna
Resumidamente os sucessos de Ceacutesar na Gaacutelia acarretaram o aumento de seu poder de
sua popularidade e da ira de seus inimigos Estes influenciados por Catatildeo o Jovem (tambeacutem
jaacute referido no romance de Machado) tentaram promover sua ruiacutena poliacutetica Em 50 AEC o
Senado aprovou uma moccedilatildeo para que Ceacutesar fosse retirado do cargo de governador na Gaacutelia
Marco Antocircnio embasado pelo poder de tribuno do povo vetou a proposta Apoacutes isso houve
uma intensa perseguiccedilatildeo aos partidaacuterios de Juacutelio Ceacutesar Antocircnio precisou deixar Roma por
conta da alta probabilidade de ser assassinado e sem oposiccedilatildeo do Senado declarou estado de
emergecircncia delegando poderes excepcionais a Pompeu Magno Ceacutesar retrucou isso com a
famosa cruzada assim relatada por Suetocircnio
Dein post solis occasum mulis e proximo pistrino ad vehiculum iunctis occultissimum
iter modico comitatu ingressus est et cum luminibus extinctis decessisset via diu
errabundus tandem ad lucem duce reperto per angustissimos tramites pedibus evasit
Consecutusque cohortis ad Rubiconem flumen qui provinciae eius finis erat paulum
constitit ac reputans quantum moliretur conversus ad proximos ldquoEtiam nuncrdquo
inquit ldquoregredi possumus quod si ponticulum transierimus omnia armis agenda
eruntrdquo (Suet Jul 31 2)
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Em seguida apoacutes o pocircr do Sol atadas as mulas desde o moinho mais proacuteximo ateacute o
veiacuteculo mais escondido comeccedilou o caminho com uma modesta caravana Com as
luzes acabando ia-se embora pelo caminho Entatildeo durante o dia tendo aparecido um
guia com peacutes errantes evadiu pelas mais estreitas veredas E acompanhado pelas
coortes ateacute o rio Rubicatildeo que traccedila o limite de sua proviacutencia parou um pouco e
calculou o quanto se moveu virou-se aos mais proacuteximos e disso ldquoAteacute agora podemos
recuar porque se atravessarmos a pequena ponte todas as coisas deveratildeo ser feitas
atraveacutes das armasrdquo
Cunctanti ostentum tale factum est Quidam eximia magnitudine et forma in proximo
sedens repente apparuit harundine canens ad quem audiendum cum praeter pastores
plurimi etiam ex stationibus milites concurrissent interque eos et aeneatores rapta ab
uno tuba prosilivit ad flumen et ingenti spiritu classicum exorsus pertendit ad alteram
ripam Tunc Caesar ldquoEaturrdquo inquit ldquoquo deorum ostenta et inimicorum iniquitas
vocat Iacta alea estrdquo inquit (Suet Jul 32)
Com ele ainda de tal modo titubeando foi eficaz um prodiacutegio Apareceu de repente
ali proacuteximo uma certa pessoa que estava sentada tocando com uma flauta exiacutemia em
grandeza e forma Para o ouvirem correram muitos pastores tambeacutem muitos soldados
das guarniccedilotildees entre eles alguns tocadores de trombeta Com a trombeta tomada de
um deles o muacutesico lanccedilou-se ao rio E com um imenso vigor realizou um toque
introdutoacuterio ateacute a outra margem do rio Entatildeo disse Ceacutesar ldquoVamos para onde o sinal
dos deuses e a hostilidade dos inimigos nos chamam A sorte estaacute lanccediladardquo
Como jaacute frisamos por parte do narrador de Machado natildeo haacute nenhuma referecircncia direta
desse Ceacutesar ao bioacutegrafo Suetocircnio mas vemos relaccedilotildees diretas entre o ato da desconhecida
pessoa ldquoa caminho do poderrdquo e os atos do general romano Mais uma vez o autor foi ciruacutergico
no uso da expressatildeo destacada para a qual muito provavelmente teve acesso ao excerto de
Suetocircnio cujo conteuacutedo tambeacutem faz parte do imaginaacuterio ocidental ndash a travessia ao rio Rubicatildeo
antecedida da frase ldquoA sorte estaacute lanccediladardquo Cabe lembrar que Machado jaacute usara a expressatildeo no
capiacutetulo XIII de seu romance Helena publicado em 1876 quando o personagem Estaacutecio na
tentativa de esquecer o amor pela protagonista Helena decide pedir Eugecircnia em casamento
Naquela mesma noite ouviu Eugecircnia a esperada palavra A alegria que se lhe
derramou nos olhos foi imensa e caracteriacutestica Um pouco mais de recato natildeo era
descabido em tal ocasiatildeo Natildeo houve nenhum o primeiro ato da mulher foi uma
meninice Eugecircnia ignorava tudo ateacute a dissimulaccedilatildeo do sexo Concedendo a matildeo a
Estaacutecio natildeo era uma castelatilde que entregava o precircmio mas um cavaleiro que o recebia
com alvoroccedilo e submissatildeo
Transposto o Rubicon natildeo havia mais que caminhar direito agrave cidade eterna do
matrimocircnio Estaacutecio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr Camargo pedindo-lhe
a matildeo de Eugecircnia carta seca e digna como as circunstacircncias a pediam (Machado de
Assis Helena cap XIII p 133)
Terminadas as referecircncias ao instaurador da dinastia juacutelio-claudiana faccedilamos um salto
ao capiacutetulo CXVI intitulado Filosofia das folhas velhas no qual Braacutes Cubas alega ter ficado
tatildeo triste com o capiacutetulo anterior a este4 pelo fato de sua amante Virgiacutelia ter embarcado para a
Europa No capiacutetulo CXVI vemos referecircncia a outro imperador associado ao escrito
suetoniano nesse caso trata-se do jaacute referido Domiciano
Apoacutes um governo moderado de dez anos o do seu pai Vespasiano seguido por outro
governo tambeacutem moderado de apenas dois anos o do seu irmatildeo Tito de modo contraacuterio
4 O capiacutetulo CXV intitulado O almoccedilo
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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Domiciano assume com bastante autoritarismo Durante seus quinze anos de governo o uacuteltimo
imperador flaviano cometeu assassinatos de diversos cidadatildeos importantes incluindo
senadores Essas razotildees acarretaram numa conjuraccedilatildeo para a sua morte E diferente do seu pai
e irmatildeo que foram divinizados apoacutes a morte Domiciano ldquorecebeurdquo do Senado um decreto para
a sua damnatio memoriae essa danaccedilatildeo da memoacuteria significava as retiradas de suas imagens
em bustos inscriccedilotildees etc
Esclarecidos esses pontos sobre o imperador Domiciano voltemos a Braacutes Cubas O
narrador inicia o referido capiacutetulo em questatildeo refletindo pela metalinguagem ldquoFiquei tatildeo triste
com o fim do uacuteltimo capiacutetulo que estava capaz de natildeo escrever este descansar um pouco purgar
o espiacuterito da melancolia que o empacha e continuar depois Mas natildeo natildeo quero perder tempordquo
(Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258) e continua a
reflexatildeo
A partida de Virgiacutelia deu-me uma amostra da viuvez Nos primeiros dias meti-me em
casa a fisgar moscas como Domiciano se natildeo mente o Suetocircnio mas a fisgaacute-las de
um modo particular com os olhos Fisgava-as uma a uma no fundo de uma sala
grande estirado na rede com um livro aberto entre as matildeos (Machado de Assis
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258)
O narrador-personagem machadiano Braacutes Cubas discorre sobre seu desgosto pela vida
e sobre a monotonia agrave qual estava submetido apoacutes a partida da mulher ldquoextraconjugalmenterdquo
amada Virgiacutelia Notamos que para ilustrar de modo exagerado o desacircnimo por parte de Braacutes
Cubas sendo esse abatimento comparado a uma viuvez Machado de Assis apresenta seu
defunto-autor de um modo tatildeo ocioso que fisgava as moscas apenas com os olhos Ou seja ele
eacute apresentado mais ociosamente que o imperador Domiciano que espetava moscas A fim de
captarmos essa menccedilatildeo valemo-nos do capiacutetulo 3 da biografia de Domiciano
Inter initia principatus cotidie secretum sibi horarum sumere solebat nec quicquam
amplius quam muscas captare ac stilo praeacuto configere ut cuidam interroganti
essetne quis intus cum Caesare non absurde responsum sit a Vibio Crispo ne muscam
quidem (Suet Dom 3)
Durante os iniacutecios de seu principado solitaacuterio estava ele habituado diariamente pelas
horas a colher para si nada mais que moscas e prender com um estilete pontudo Para
uma certa interrogaccedilatildeo se acaso natildeo tinha ningueacutem dentro do local com Ceacutesar de
modo adequado teria sido respondido por Viacutebio Crispo que natildeo que nem mesmo
uma mosca
Notamos entatildeo que se por um lado atraveacutes da intertextualidade Machado se volta para
o Domiciano de Suetocircnio com o intuito de descortinar o estado de alma de Braacutes Cubas por
outro Suetocircnio apresenta essa anedota das moscas para condicionar seu leitor a um juiacutezo
negativo sobre o retrato moral de Domiciano que nada fazia em prol da burocracia puacuteblica no
iniacutecio de seu principado Essa anedota sobre Domiciano com Viacutebio Crispo enquanto locutor
jamais deixaria de ser apresentada por Suetocircnio haja vista que os atos burocraacuteticos bem como
as accedilotildees militares e diplomaacuteticas faziam parte das temaacuteticas de suas biografias Somos tentados
a crer que o fato de Suetocircnio ser oriundo da ordem dos equestres e mais tarde ter assumido
algumas funccedilotildees puacuteblicas durante o principado de Trajano e de Adriano tambeacutem teria
contribuiacutedo para sua atenccedilatildeo a esses tipos de chistes
Embora Suetocircnio natildeo seja visto como um historioacutegrafo mas sim como um erudito
bioacutegrafo e natildeo tenha pertencido agrave ordem senatorial sabemos que ele enveredou pela tradiccedilatildeo
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historiograacutefica senatorial isto eacute aquela que retratava moralmente bem os imperadores
favoraacuteveis ao Senado e moralmente mal os refrataacuterios a esse corpo Isso talvez tenha se dado
graccedilas ao seu contato com o influente senador Pliacutenio o Jovem e ao participar do seu ciacuterculo
de amizades tambeacutem teve contato com os historiadores Taacutecito e Faacutebio Ruacutestico Podemos
depreender que Domiciano natildeo deixou de apresentar motivos para ser exageradamente mal
retratado pela pena suetoniana e por isso a ressalva de Braacutes Cubas que diz ldquose natildeo mente o
Suetocircniordquo
Avancemos ao capiacutetulo CLII intitulado A moeda de Vespasiano no qual encontramos a
uacuteltima menccedilatildeo feita desde seu tiacutetulo a um imperador romano retratado por Suetocircnio Em tal
capiacutetulo na volta do enterro de Lobo Neves Braacutes Cubas refletia sobre o choro mais
precisamente sobre os soluccedilos sinceros da sua amante Virgiacutelia para o marido ao qual tinha
traiacutedo com igual sinceridade
Jaacute sabemos algumas informaccedilotildees acerca do ceacutesar em questatildeo todavia vale reforccedilar que
foi ele quem saiu vitorioso do conhecido historicamente Ano dos Quatro Imperadores em 69
Apoacutes o suiciacutedio ocorrido em 68 do uacuteltimo juacutelio-claudiano ndash o polecircmico Nero ndash que natildeo havia
deixado ningueacutem para linha sucessoacuteria os generais Galba Otatildeo Viteacutelio e Vespasiano atraveacutes
de sucessivos confrontos armados guerrearam entre si ansiando o trono deixado por Nero
Com a vitoacuteria de Vespasiano eacute instaurada a dinastia flaviana Entatildeo passemos ao curto capiacutetulo
das Memoacuterias Poacutestumas em completude
Tinham ido todos soacute o meu carro esperava pelo dono Accendi um charuto afastei-
me do cemiteacuterio Natildeo podia sacudir dos olhos a cerimocircnia do enterro nem dos ouvidos
os soluccedilos de Virgiacutelia Os soluccedilos principalmente tinham o som vago e misterioso
de um problema Virgiacutelia traiacutera o marido com sinceridade e agora chorava-o com
sinceridade Eis uma combinaccedilatildeo difiacutecil que natildeo pude fazer em todo o trajecto em
casa poreacutem apeando-me do carro suspeitei que a combinaccedilatildeo era possiacutevel e ateacute
faacutecil Meiga Natura A taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave
origem e tanto se colhe do mal como do bem A moral repreenderaacute porventura a
minha cuacutemplice eacute o que te natildeo importa implacaacutevel amiga uma vez que lhe recebeste
pontualmente as laacutegrimas Meiga trecircs vezes Meiga Natura (Machado de Assis
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CLII p 294)
Percebemos que na busca pela anaacutelise do estado de alma de sua amada Virgiacutelia o narrador
Braacutes Cubas reverbera que ldquoA taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave origem
e tanto se colhe do mal como do bemrdquo Mas de onde ele teria tirado essas relaccedilotildees semacircnticas
entre o imperador Vespasiano-moeda-taxa-cheiro Pois bem Mais uma vez quem nos traz a
resposta eacute Suetocircnio
Reprehendenti filio Tito quod etiam urinae vectigal commentus esset pecuniam ex
prima pensione admovit ad nares sciscitans num odore offenderetur et illo negante
ldquoAtquin inquit e lotio estrdquo (Suet Vesp 233)
Repreendeu seu filho Tito porque ele Vespasiano teria inventado um imposto sobre
a urina que por aquele foi advertido entatildeo aproximou o dinheiro do primeiro
pagamento desse tributo do nariz de Tito E perguntando-o se acaso natildeo se sentia
incomodado com odor e Tito negando Vespasiano respondeu No entanto eacute
proveniente da urinardquo
Na curiosa anedota Vespasiano criador de um imposto sobre a urina pois muitos
comerciantes as retiravam das latrinas puacuteblicas e as utilizavam para curtir os tecidos que
vendiam repreende o primogecircnito por ter discordado inicialmente da ideia Natildeo temos duacutevidas
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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de que Machado de Assis teve acesso a essa biografia para usar com propriedade em seu
romance nessa cena em que seu narrador busca explicaccedilotildees para fatos aparentemente
contraditoacuterios
Esse excurso pelas duas obras aparentemente distantes e des-relacionadas nos deu a liccedilatildeo
de que o narrataacuterio enquanto entidade leitora fictiacutecia compreende e decodifica os aspectos
concernentes agraves personalidades em apreccedilo os princepes no entanto para o leitor ideal isso se
mostra mais obscuro Machado de Assis aproveita os questionaacuteveis retratos dos ceacutesares de
Suetocircnio para enriquecer sua obra literaacuteria
Assim contribuindo mais para a compreensatildeo do romance machadiano pela anaacutelise da
traduccedilatildeo a qual nos permitiu o estudo sobre as referecircncias agrave histoacuteria agrave cultura e agrave literatura da
Roma Antiga cristalizados pelos Claacuteudio Tito Ceacutesar Domiciano e Vespasiano suetonianos
os esforccedilos empreendidos teratildeo alcanccedilado seu objetivo nessas ressignificaccedilotildees Se as
referecircncias e os eventos atrelados a esses ceacutesares que nos foram ldquodadosrdquo pelas biografias de
Suetocircnio tiverem sido descortinados dentro das Memoacuterias Poacutestumas de Machado de Assis
podemos ficar sem ldquoideias fixasrdquo de que criamos ldquodespropoacutesitosrdquo
IacuteNDICE DE ABREVIACcedilOtildeES
Suet Cl (Suetocircnio Claacuteudio)
Suet Dom (Suetocircnio Domiciano)
Suet Jul (Suetocircnio Juacutelio Ceacutesar)
Suet Tit (Suetocircnio Tito)
Suet Ves (Suet Vespasiano)
DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL
ASSIS Joaquim Maria Machado de Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Rio de Janeiro
Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975
______ Helena Rio de Janeiro Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975
SUETONIUS Lives of the Caesars Volume I Julius Augustus Tiberius Gaius
Caligula Translated by J C Rolfe Introduction by K R Bradley Loeb Classical Library 31
Cambridge MA Harvard University Press 1914
______ Lives of the Caesars Volume II Claudius Nero Galba Otho and Vitellius
Vespasian Titus Domitian Lives of Illustrious Men Grammarians and Rhetoricians
Poets (Terence Virgil Horace Tibullus Persius Lucan) Lives of Pliny the Elder and
Passienus Crispus Translated by J C Rolfe Loeb Classical Library 38 Cambridge MA
Harvard University Press 1914
Bruno Torres dos Santos
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REFEREcircNCIAS
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CANDIDO Antonio O sistema literaacuterio consolidado In Iniciaccedilatildeo agrave literatura Brasileira
6deg ed Rio de Janeiro Ouro Sobre Azul 2010 p65-126
CITRONI Maacuterio (Dir) CITRONI MCONSOLINO FELABATE M NARDUCCI
(orgs) Literatura de Roma Antiga Co-autores da traduccedilatildeo Margarida Miranda e Isaiacuteas
Hipoacutelito Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2006
ESTEVES Anderson Martins Biografia na biografia Vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas
obras Principia ndash Revista do Departamento de Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de
Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Ano 18 nXXX p1-7
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MELLOR Ronald The roman historians New York Routledge 1999
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946511
LUCIacuteOLA E O TRAacuteGICO ESTUDO ACERCA DAS MARCAS DO HEROacuteI
TRAacuteGICO EM UM PERFIL DE MULHER ALENCARIANO
Heitor Victor
RESUMO Recorrer aos claacutessicos para entender nosso tempo natildeo eacute mesmo nenhuma novidade
Apelar para a trageacutedia grega a fim de identificar o que persiste em nossa compreensatildeo acerca
de noacutes mesmos se tornou lugar comum de investigaccedilotildees em diversas aacutereas de interesse Tal
estrateacutegia se repete em razatildeo evidentemente de uma inesgotaacutevel potecircncia alegoacuterica acerca da
existecircncia humana O que pretendo neste breve trabalho eacute uma anaacutelise em linha comparativa
das marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia de Alencar personagem que o proacuteprio autor considera
um de seus perfis de mulher Para tal dialogo com Benjamin que se apresenta como um elo de
compreensatildeo do heroacutei traacutegico figura esta que se mostrou mais longeva do que a proacutepria trageacutedia
helecircnica
PALAVRAS-CHAVE Luciacuteola Traacutegico Heroiacutena
LUCIacuteOLA AND THE TRAGIC ESSAY ABOUT THE MARKS OF THE
TRAGIC HERO IN A WOMAN PROFILE OF JOSEacute DE ALENCAR
ABSTRACT It is no novelty that a return to the classics helps to understand our own time It is
even a commonplace in many research fields that an approach to greek tragedy makes it
possible for us to better understand ourselves Such a strategy still turns out to be suitable
because there is an ongoing possibility of creating allegories of human existence My aim in
this short essay is to perform a comparative analysis of the tragical features of Luacutecia an
important character of Joseacute de Alencars prose who the author himself deems to be a crucial
example of his depictions of the feminine In order to do that I draw upon Walter Benjamins
work which provides us with a comprehensive overview of the tragic hero - who actually
proved himself to be more important than the helenic tragedy itself
KEYWORDS Luciacuteola Tragic Heroine
Introduccedilatildeo
O teatro traacutegico dos gregos natildeo pode mais retornar isso eacute um fato mas eacute marcante a sua
presenccedila ainda em nossa literatura ocidental Analisar o elemento traacutegico natildeo eacute necessariamente
uma novidade mas sempre se mostra desafiador relacionarmos o traacutegico agrave estrutura de
composiccedilatildeo da personagem do romance na literatura moderna O presente trabalho pretende
Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
E-mail heitor-victorhotmailcom
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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pois fazer uma leitura da personagem Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar pioneira da
seacuterie perfis de mulher como construiacuteda sob o signo do traacutegico uma heranccedila legada pelo teatro
grego e que perdura em nossa cultura
O desafio que salta aos olhos eacute certamente as dificuldades de se transpor para o romance
caracteriacutesticas da personagem do texto dramaacutetico ou entender nesta a capacidade de se
apresentar com a profundidade comum ao romance Eacute possiacutevel entender contudo que retiradas
as divergecircncias praacuteticas do meio de veiculaccedilatildeo das narrativas sobram elementos em comum
que residem no imaginaacuterio coletivo e soacute fazem enriquecer o repertoacuterio de leituras que nos
permite a prosa alencariana do seacuteculo XIX
Luacutecia eacute uma das heroiacutenas mais complexas de seu autor capaz de em poucas paacuteginas
fazer o leitor se questionar sobre sua verdadeira natureza ora por sua candura ora por sua ironia
aacutecida apego e desprendimento iacutempares no cenaacuterio romanesco de um tempo que vecirc transbordar
a quantidade de novas e encantadoras personagens Nossa heroiacutena permite-nos destacaacute-la
exatamente por encerrar um signo que extrapola o estilo de seu tempo por meio de grandes
dicotomias autoconsciecircncia e culpa sacrifiacutecio e desejo silecircncio e seduccedilatildeo a personagem se
nos mostra uacutenica no cenaacuterio veloz e dinacircmico dos romances de folhetim
Sublime Decaiacutedo Uma Alegoria
No intuito de criar um elemento intermediaacuterio entre o heroacutei da trageacutedia e o heroacutei traacutegico
que mostrarei estar presente no romance Luciacuteola de Joseacute de Alencar seraacute preciso recorrer agrave
descriccedilatildeo desse heroacutei feita por Walter Benjamin (2011) acerca do drama traacutegico alematildeo
Enquanto aparato cecircnico ou mesmo de criaccedilatildeo literaacuteria encontramos outro contexto e outra
realidade mas o elemento fundamental ainda estaraacute laacute presente O heroacutei traacutegico manteraacute uma
seacuterie de aspectos essenciais que o transformam no portador da anguacutestia humana sem perder o
inexoraacutevel do mito despido ainda mais do movimento de ritualizaccedilatildeo religioso Eacute o traacutegico que
permanece e esse seraacute fundamental para a construccedilatildeo de uma identidade nacional do drama
alematildeo segundo o autor o que nos mostra o potencial desse heroacutei traacutegico no processo de
aproximaccedilatildeo entre o discurso formador e o seu espectador (BENJAMIN 2011)
Um primeiro elemento identificado por Benjamin (2011) que nos interessa no heroacutei
traacutegico eacute o seu caraacuteter alegoacuterico se eacute que posso falar em alegoria do mito que jaacute o eacute em essecircncia
Certamente contudo figura nesse elemento a grande potecircncia reflexiva da personagem traacutegica
que poderaacute ser transportado para Luacutecia Ao relevarmos a ambiccedilatildeo do autor de traccedilar perfis de
mulher1 a alegoria destaca Luacutecia de Emiacutelia e Aureacutelia o que faz evidenciar naquela a tragicidade
em comparaccedilatildeo com estas Deixe-me verificar antes e em linhas mais gerais o que entende
Benjamin por alegoria no drama traacutegico
Devo dispensar em razatildeo de objetivos praacuteticos a discussatildeo do autor acerca das
concepccedilotildees de alegoacuterico e simboacutelico para o barroco e para o romantismo para ir diretamente ao
ponto o alegoacuterico eacute entendido como aquele que supera a unidade da obra e se posiciona com
transcendecircncia agrave medida que o siacutembolo se encerra em si mesmo mostra identidade e um caraacuteter
proacuteprio da obra em que se coloca Benjamin recorre a Goethe para mostrar a concepccedilatildeo
romacircntica de siacutembolo e alegoria ldquoHaacute uma grande diferenccedila entre o poeta procurar o particular
para chegar ao geral e contemplar o geral no particular No primeiro procedimento temos uma
alegoria e o particular serve apenas como exemplo como caso exemplar do geralrdquo
(BENJAMIN 2011 p 171)
1 Natildeo devemos deixar de reconhecer que essa intenccedilatildeo descritiva de construccedilatildeo de um perfil apresenta-se como
um elemento romanesco do narrador de Luciacuteola Como visto no primeiro capiacutetulo da obra quando o narrador
se justifica a G M sua pretensa correspondente ldquoEacute um perfil de mulher apenas esboccediladordquo (ALENCAR 1972
p 121) A todo momento que eu tocar nesse ponto se deve reconhecer que a nossa base reside antes de tudo
nesse caraacuteter narrativo do romance alencariano
Heitor Victor
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A despeito da valoraccedilatildeo feita por Goethe seguiremos a leitura de Benjamin para
entender Luacutecia como o caso particular representativo de um perfil maior o da mulher que
encarna o anjo caiacutedo seu nome daacute a grande indicaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo alegoacuterica mas a mesma
natildeo deixa de aparecer ao longo da obra Reconhecerei em minha anaacutelise na Luacutecia de Alencar
a alegoria da mulher sublime que decai em todo o seu caraacuteter duacutebio mas ainda assim
permanente que morre ao final do romance natildeo agrave toa mas de maneira necessaacuteria para
consolidar a aspiraccedilatildeo alegoacuterica desse perfil de mulher talvez o mais ousado de Alencar
Benjamin reconhece que
o seu (da alegoria) significado eacute aquele que o alegorista lhe atribuir Ele investe-o
desse significado e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele natildeo em sentido
psicoloacutegico mas ontoloacutegico Nas suas matildeos a coisa transforma-se em algo de diverso
atraveacutes dela ele fala de algo de diverso e ela torna-se para ele a chave que lhe daacute acesso
a um saber oculto que ele venera na coisa como seu emblema Eacute nisso que reside o
caraacuteter escritural da alegoria (BENJAMIN 2011 p 196)
Esse seraacute portanto o meu ponto de partida Para natildeo deixar qualquer duacutevida sobre essa
relaccedilatildeo devo me deter nesse tema ainda para mostrar na obra algumas marcas dessa relaccedilatildeo A
comeccedilar pelo elemento dramaacutetico de narraccedilatildeo o recado de G M ldquoao autorrdquo Apoacutes reconhecer
a grandeza da personagem e o valor da narrativa que se seguiraacute dramaticamente posta como
uma publicaccedilatildeo da mesma G M afirma ldquoNatildeo seraacute a imagem verdadeira da mulher que no
abismo da perdiccedilatildeo conserva a pureza drsquoalmardquo (ALENCAR 1972 p 120) Natildeo se pode
desaperceber que eacute usado natildeo a referecircncia definida dedicada agrave Luacutecia mas uma referecircncia geral
a todas as mulheres Eacute exatamente nesse caraacuteter geneacuterico que residiria o valor alegoacuterico de que
trato neste trabalho
Podemos tambeacutem recorrer aos eventos narrados no interior do romance para vermos
personificada a alegoria do anjo caiacutedo seja pela capacidade de transitar com primor entre um e
outro digo entre o angelical e o demoniacuteaco ou seja por encerrar em si mesma os dois
extremos Luacutecia se nos apresenta apenas pela narrativa de Paulo natildeo se pode esquecer e muito
de sua transitoriedade pode residir apenas nas impressotildees desse narrador personagem mas isso
em nada muda o seu caraacuteter alegoacuterico Um episoacutedio que expressa com clareza a ambivalecircncia
de Luacutecia eacute o de seu primeiro encontro iacutentimo com Paulo Em curto espaccedilo de tempo
cronoloacutegico e narrativo vemos uma transformaccedilatildeo que beira a ida pronta do sagrado ao
profano No momento em que avanccedila sobre Luacutecia Paulo reconhece
Quando poreacutem os meus laacutebios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as
formas encantadoras que debuxavam a seda pareceu-me que o sangue lhe refluiacutea ao
coraccedilatildeo As palpitaccedilotildees eram bruscas e precipites Estava liacutevida e mais branca do que
o alvo colarinho do seu roupatildeo Duas laacutegrimas em fio duas laacutegrimas longas e sentidas
como dizem que chora a corccedila expirando pareciam cristalizadas sobre a face de tatildeo
lentas que rolavam (ALENCAR 1972 p 134-135)
Vemos aqui com a reaccedilatildeo genuiacutena de Luacutecia somada agraves laacutegrimas sua comparaccedilatildeo ao
choro da corccedila notamos aqui o temperamento puro que nos surpreende a todos narrador e
leitor Surpresa que se justifica com a mudanccedila abrupta de Luacutecia para entregar a imagem que
nos foi construiacuteda pelos pares de Paulo de que nossa heroiacutena se tratava de uma cortesatilde das mais
haacutebeis
Era outra mulher O rosto cacircndido e diaacutefano que tanto me impressionou agrave doce
claridade da lua se transformara completamente tinha agora uns toques ardentes e
um fulgor estranho que o iluminava Os laacutebios finos e delicados pareciam tuacutemidos dos
desejos que incubavam Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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narina que tremiam com o aneacutelito do respiro curto e sibilante e tambeacutem nos fogos
surdos que incendiavam a pupila negra (ALENCAR 1972 p 136)
Nessa transformaccedilatildeo se apresenta a indistinguiacutevel transiccedilatildeo do sagrado do choro da
corccedila para a respiraccedilatildeo sibilante demoniacuteaca em lasciacutevia Seria inuacutetil continuar enumerando os
momentos em que se evidencia tal transformaccedilatildeo acredito que esses episoacutedios partem da
anteriormente citada alegoria que pode nortear nossa leitura do romance
Natildeo nos seraacute nunca possiacutevel bater o martelo sobre tal questatildeo seria Luacutecia o siacutembolo de
Goethe ou a alegoria de Benjamin Somando contudo as marcas supracitadas a ainda o
reconhecimento de outras marcas do traacutegico preferirei me manter na leitura de Benjamin de
que o alegoacuterico eacute ainda desejaacutevel mesmo no romance exatamente por seu valor transcendente
e assim poderemos entender Luacutecia e seu perfil exclusivo de mulher como tambeacutem dotado de
valor reflexivo e generalista das anguacutestias femininas
Marcas do Heroacutei Traacutegico
As laacutegrimas do episoacutedio transcrito acima servem como indicador do demais elementos
de proximidade entre o heroacutei traacutegico de Benjamin e a Luacutecia de Alencar Tal choro evidencia
uma dor suprimida mas acima de tudo encerra em si quatro aspectos sobre os quais tratarei
neste trabalho o silecircncio a culpa a consciecircncia e o sacrifiacutecio O silecircncio de quem guarda para
si o seu verdadeiro eu suas dores e reflexotildees Eacute nas laacutegrimas que temos o primeiro vislumbre
da profundidade traacutegica de Luacutecia A personagem demonstra nesse exato momento plena
consciecircncia de si de seu destino e sente a culpa que pesa sobre si as laacutegrimas expressam o
ardor do seu sacrifiacutecio pois satildeo sublimadas por sua candura Vejamos adiante o que pretendo
dizer com esses quatro aspectos e sua relaccedilatildeo com o traacutegico
Devo principiar contrariando a ordem anterior pelo sacrifiacutecio para manter a
abordagem de Benjamin O autor entende que o heroacutei traacutegico realiza sua atuaccedilatildeo maior em sua
proacutepria morte o sacrifiacutecio maior e que eacute exatamente entatildeo que o heroacutei se distingue dos demais
indiviacuteduos Benjamin afirma
A marca identificativa da trageacutedia natildeo estaacute pois num conflito de niacuteveis entre o heroacutei
e mundo circundante [] mas sim a forma uacutenica grega de tais conflitos E onde deve
ser procurada essa forma Que tendecircncia se esconde no fenocircmeno traacutegico Por que
causa morre o heroacutei A poesia traacutegica assenta na ideia do sacrifiacutecio (BENJAMIN
2011 p 108)
Luacutecia se sacrifica natildeo apenas porque morre mas se encerra em sua morte uma entrega
definitiva a Paulo e agrave sua irmatilde Ana A morte de Luacutecia eacute decisiva para a construccedilatildeo e para a
profundidade da personagem aleacutem de ser elemento fundamental para a generalidade
constitutiva da alegoria Ainda mais que o sacrifiacutecio do heroacutei traacutegico natildeo eacute um sacrifiacutecio
comum Seguindo ainda o raciociacutenio de Benjamin temos
o sacrifiacutecio traacutegico difere no seu objeto ndash o heroacutei ndash de todos os outros e eacute ao mesmo
tempo inaugural e terminal Terminal no sentido do sacrifiacutecio expiatoacuterio devido aos
deuses guardiatildees de um antigo direito e inaugural no sentido de uma accedilatildeo que em
algum lugar desse direito anuncia novos conteuacutedos da vida do povo (BENJAMIN
2011 p 108)
Ou seja o sacrifiacutecio de Luacutecia eacute terminal expiatoacuterio de sua vida de perfiacutedia Luacutecia
reconhece em seus uacuteltimos momentos para Paulo a sua importacircncia e exatamente por isso por
ele se sacrifica
Heitor Victor
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ndash Paulo Paulo Tu bem sabes que com essa palavra me farias cometer crimes se
crimes fosse necessaacuterio para te provar que eu soacute vivo da vida que me daacutes e me podes
tirar com um sopro Natildeo sou eu criatura tua natildeo renasci pela luz que derramaste em
minha alma Natildeo eacutes meu senhor meu artista meu pai e meu criador (ALENCAR
1972 p 243)
O sacrifiacutecio de Luacutecia como se evidencia natildeo estaacute apenas na morte mas na sua entrega
completa Entrega que se apresenta como sua uacutenica forma de se redimir da vida que levara O
sacrifiacutecio reconhecendo ainda tais aspectos de Benjamin eacute tambeacutem inaugural quando se
direciona a Ana sua irmatilde em quem enxerga a uacutenica continuidade possiacutevel Seja para sua
protegida ou mesmo para a continuidade da vida de Paulo possiacutevel apenas com o encerramento
da sua proacutepria vida
Outro aspecto do heroacutei traacutegico de Benjamin presente em Luciacuteola eacute o silecircncio jaacute
mencionado anteriormente ldquoO heroacutei traacutegico tem apenas uma linguagem que plenamente lhe
corresponde precisamente a do silecircncio Assim eacute desde o iniacuteciordquo (BENJAMIN 2011 p 109)
Esse silecircncio eacute identificaacutevel em diversos momentos em Luacutecia pois evoca a resiliecircncia da
heroiacutena com o seu fardo Natildeo eacute um silecircncio de conformismo ou mesmo qualquer espeacutecie de
natildeo se importar que a toma mas ldquoo testemunho de um sofrimento mudordquo (BENJAMIN 2011
p 109) Eacute com esse silecircncio que Luacutecia arrebata o leitor para o seu drama pessoal natildeo como um
perseguidor ou inquisidor mas como partiacutecipe de seu pesar de sua dor Tal silecircncio aparece
nos momentos de prazer como quando se divertia no banquete noturno na casa de Saacute ldquoLuacutecia
fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria e caiacutera no costumado abatimento e distraccedilatildeo Eu a
contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava
quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaiacutedordquo (ALENCAR 1972 p 152-
153) Ou mesmo em sua face mais sincera jaacute como Maria ldquoQuando cheguei Luacutecia estava soacute
no jardim debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujaacutes tatildeo absorvida em sua
meditaccedilatildeo que natildeo me percebeurdquo (ALENCAR 1972 p 245)
Seguindo com minha anaacutelise comparativa devo abordar o aspecto da consciecircncia
fundamental para a diferenciaccedilatildeo entre uma outra personagem qualquer e o heroacutei traacutegico Esse
aspecto em especial eacute importante para a leitura que apresento por se tratar de algo que
claramente distingue o heroacutei romacircntico convencional daquele que eacute regido pelo signo do
traacutegico O heroacutei do romance desconhece completamente o seu destino e reside precisamente
nisso suas duacutevidas e questionamentos Nossa heroiacutena traacutegica contudo ainda que tambeacutem
romacircntica ndash natildeo o desejamos negar em nenhum momento se mostra consciente do seu caminho
Para esclarecer esse sentido de consciecircncia Benjamin traz uma fala de Lukaacutecs acerca do
reconhecimento da proacutepria morte
Tambeacutem a escolha da morte pelo homem traacutegico eacute um heroiacutesmo soacute aparentemente
heroico soacute assim visto de um ponto de vista humano e psicoloacutegico os heroacuteis
moribundos da trageacutedia ndash escrevia haacute pouco tempo um jovem autor traacutegico ndash estatildeo
mortos muito tempo antes de morrerem (BENJAMIN 2011 p 117)
Apenas a cargo de exemplificaccedilatildeo que se encaixa bem na ideia de reconhecimento da
morte como marca do heroacutei traacutegico podemos citar a consciecircncia apresentada por Luacutecia antes
de sua proacutepria morte ldquondash Se eu pudesse viver haveria forccedilas que me separassem de ti Haveraacute
sacrifiacutecio que eu natildeo fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade Mas Deus natildeo
quis Sinto que a vida me fogerdquo (ALENCAR 1972 p 248)
Devo tratar por fim do quarto aspecto a que me reservei neste trabalho que eacute o da culpa
Sem duacutevidas o eixo central de todo o romance de Alencar A culpa natildeo pode ser entendida
contudo como o arrependimento de seus atos ou mesmo sujeiccedilatildeo completa ao proacuteprio erro A
culpa como elemento traacutegico traz um valor de compreensatildeo Nossa heroiacutena traacutegica natildeo apenas
se lamenta da vida que fora levada a ter mas por meio da culpa ela se reconstroacutei eacute precisamente
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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por meio da culpa que no fim em meio ao embate entre anjo e democircnio prevalece sua face
angelical e a alegoria alcanccedila a sua plenitude Recorro ainda agraves palavras de Benjamin para
clarificar essa noccedilatildeo de culpa no drama traacutegico
No decorrer da accedilatildeo traacutegica um heroacutei assume e internaliza essa culpa que segundo
as antigas normas eacute imposta aos homens a partir de fora pela desgraccedila Ao refleti-la
na sua consciecircncia de si ele furta-se agrave sua tutela demoniacuteaca [] Paradoxal como
todas as manifestaccedilotildees da culpa traacutegica ela consiste apenas numa orgulhosa
consciecircncia de culpa na qual a figura heroica se liberta da servidatildeo que na sua
lsquoinocecircnciarsquo a sujeita agrave culpa demoniacuteaca (BENJAMIN 2011 p 135)
Essa culpa talvez seja dentre os aspectos ateacute aqui elencados o que mais se mostra claro
ao longo de Luciacuteola Nos momentos de maior comoccedilatildeo compartilhamos com Luacutecia esse seu e
genuiacuteno sentimento e eacute precisamente graccedilas a ele que o lado sagrado desse anjo caiacutedo prevalece
e nos faz criar a empatia entre leitor e personagem Vejamos portanto dois casos que
expressam os dois extremos da culpa vivida por Luacutecia Ora tal sentimento se expressa pela
ironia como quando Paulo no evento da casa de Saacute tenta singularizar a sua presenccedila e nossa
heroiacutena rebate com acidez
ndash Ora Haacute tanta mulher bonita Qualquer destas vale mais do que eu acredite Demais
quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado saberaacute o senhor de
quem satildeo os laacutebios que toca Qual Eacute uma mulher Uma presa em que ceva o apetite
Que importa o nome Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe
prepararam esta ceia Conhece-os Nem por isso as iguarias lhe parecem menos
saborosas (ALENCAR 1972 p 153)
Em outro momento contudo vemos a culpa sob outra roupagem da maneira mais
sincera em um de seus momentos de maior entrega
ndash Tu podes me fazer voltar agrave treva de que me arrancaste podes estancar as fontes de
minha existecircncia que manam de tua alma e natildeo me haacutes de ouvir uma soacute queixa A
dor como a alegria seratildeo sempre benditas por que viratildeo de ti Mas Paulo a suacuteplica
do humilde natildeo ofende Deus a permite e exalccedila Natildeo me retires a graccedila e a becircnccedilatildeo
que me deste Salva-me Paulo Salva-me a ti Salva-me de mim mesma
(ALENCAR 1972 p 243)
Natildeo agrave toa seleciono esta uacuteltima fala de Luacutecia para encerrar a argumentaccedilatildeo pois
precisamente aqui a culpa se mostra como o elemento libertador e eacute aqui que Luacutecia talvez tenha
entendido e absorvido o orgulho citado por Benjamin para livraacute-la da tutela demoniacuteaca Liberta-
se finalmente da servidatildeo que a acomete por toda a obra A projeccedilatildeo em Paulo eacute certamente a
projeccedilatildeo em um amor libertador que foi capaz de transfigurar a modalidade da culpa que sentia
Eacute entatildeo que Luacutecia deixa claro que compreende que a dor e a alegria se complementam e assim
encerra o perfil da mulher que decaiu mas que no fim projeta em sua alegoria a clareza do seu
papel em sua proacutepria narrativa Essa compreensatildeo faz de Luacutecia a heroiacutena de Alencar que mais
beira a perdiccedilatildeo a mais altiva e capaz de se assemelhar agrave heroiacutena da trageacutedia e assim como laacute
melhor do que se realmente apresentam homens e mulheres
Conclusatildeo
Ao recorrer portanto agraves estrateacutegias de identificaccedilatildeo da interioridade e de posiccedilotildees
constitutivas do heroacutei traacutegico acredito que se torna possiacutevel clarificar como o teatro grego
passou a atuar sobre o mito por meio de maior variabilidade narrativa do mesmo Essa
possibilidade de apresentar uma personagem mais profunda ainda que por meio da accedilatildeo
Heitor Victor
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 43
dramaacutetica eleva o texto teatral e especificamente a trageacutedia ndash que usa a personagem miacutetica
como forma de apresentar seres mais elevados do que os indiviacuteduos da sociedade ndash ao papel de
ressignificar o mito Eacute por meio dessas personagens dramaacuteticas que a fabulaccedilatildeo estaacutetica do mito
pode apresentar novos argumentos para o meio em que estaacute inserida
Reconhecendo nas estrateacutegias de interpretaccedilatildeo da personagem dramaacutetica a ferramenta
de atualizaccedilatildeo do mito despida do elemento religioso foi possiacutevel analisar com certo grau de
convicccedilatildeo o heroacutei da trageacutedia Evidenciou-se como isso o papel desse heroacutei e sua capacidade
de conduzir efetivamente a narrativa miacutetica para novos caminhos interpretativos possibilitando
essa narrativa a se apresentar sob nova perspectiva O heroacutei visto dessa maneira ganha
destaque como formador de questionamentos e permite ao leitorespectador por meio do
elemento traacutegico estabelecer nova compreensatildeo
Esse heroacutei traacutegico permanece com o seu poder reflexivo mesmo fora do contexto miacutetico
levando-nos ao reconhecimento do traacutegico como formador efetivo de questionamentos Satildeo
estes aspectos traacutegicos que Benjamin identifica como herdeiros do teatro grego no teatro
alematildeo que eu resgato como possiacuteveis na construccedilatildeo de profundidade do heroacutei do romance eacute
precisamente sob esses aspectos que Luacutecia ndash a heroiacutena romacircntica mas dotada do elemento
traacutegico ndash eacute capaz de saltar aos olhos do leitor como dona de seu proacuteprio destino jamais apenas
sujeita ao mesmo Com isso cada traccedilo da heroiacutena de Alencar eacute capaz de se mostrar natildeo apenas
como marca de um perfil de mulher mas tambeacutem o perfil de um aspecto comum a todas as
mulheres Somente por meio da alegoria do anjo caiacutedo se poderia alcanccedilar tamanha projeccedilatildeo
dentro de um cenaacuterio em que o indiviacuteduo eacute professado como ponto central da construccedilatildeo de
uma obra de arte
REFEREcircNCIAS
ALENCAR Joseacute de Obras Imortais da Nossa Literatura Joseacute de Alencar Iracema ndash
Luciacuteola Satildeo Paulo Editora Trecircs 1972
ARISTOacuteTELES Poeacutetica In A Poeacutetica Claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 12ordf ediccedilatildeo 2005
BENJAMIN Walter Origem do Drama Traacutegico Alematildeo Belo Horizonte Autecircntica Editora
2011
CANDIDO Antonio A Personagem do Romance In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo Paulo
Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014
ELIADE Mircea Mito e Realidade Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2ordf ediccedilatildeo 1986
PRADO Deacutecio de Almeida A Personagem no Teatro In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo
Paulo Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014
44 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
DOI httpsdoiorg1012957principia201946512
CARACTERIZACcedilAtildeO SIMBOacuteLICA ATRAVEacuteS DE SIacuteMILES
ANIMAIS NA ILIacuteADA
Marco Valeacuterio Classe Colonnelli (Universidade Federal da Paraiacuteba)
RESUMO O intuito deste artigo eacute demonstrar a partir de alguns siacutemiles como Homero
produz uma caracterizaccedilatildeo concisa de seus heroacuteis A perspectiva de abordagem neste
estudo eacute comprovar a eficaacutecia do uso dos siacutemiles pelo poeta em consonacircncia com a obra
de Aristoacuteteles Investigaccedilatildeo dos Animais que nos permite aferir certo valor simboacutelico de
determinados animais ainda no seacutec IV aC Partindo de comparaccedilotildees com animais o
poeta produz siacutemiles que formam um quadro imediato e eficaz do heroacutei projetado pela
forccedila simboacutelica e analoacutegica que o animal evoca como termo comparativo na cultura grega
arcaica e claacutessica
PALAVRAS-CHAVES Caracterizaccedilatildeo Iliacuteada Homero siacutemiles eacutepica Aristoacuteteles
SYMBOLIC CHARACTERIZATION THROUGH SIMILES
ANIMALS IN THE ILIAD
ABSTRACT The purpose of this article is to demonstrate from some similes how Homer
produces a concise characterization of his heroes The prospect of approach in this study
is to prove the efficacy of the use of similes by the poet in accord with the work of
Aristotle Research of the Animals which allows us to assess certain symbolic value of
certain animals even in the 4th century BC Starting from the comparison with animals
the poet produces similes that form an immediate and effective framework of the hero
projected by the symbolic and analogue force that the animal evokes as a comparative
term in the archaic and classical Greek culture
KEYWORDS Characterization Iliad Homero Facsimiles Epic Aristotle
1 Sobre o siacutemile homeacuterico
Desde o lanccedilamento do livro de Milman Parry ldquoThe Making of Homeric Verserdquo
que revelou novas facetas para o estudo de Homero o siacutemile passou a ser estudado por
uma infinidade de autores Foacutermulas funccedilotildees oralidade sequecircncias de imagens dentre
outras caracteriacutesticas foram tatildeo sistematicamente investigadas nos siacutemiles que um resumo
sobre essas principais teorias produziria um material muito denso1
E-mail mcolonnellihotmailcom 1 Desde os estudos de Milman Parry duas principais linhas de estudos tecircm debatido calorosamente a
possibilidade de uma caracterizaccedilatildeo de personagens a despeito das foacutermulas e repositoacuterios de palavras
usados nos dois poemas eacutepicos de Homero Adam Parry filho de Milman em seu artigo ldquoLanguage and
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
46 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326
O siacutemile grosso modo eacute uma comparaccedilatildeo entre coisas Coffey que analisou os
siacutemiles na eacutepica homeacuterica encontra dois grupos um que eacute
composto de uma palavra introdutoacuteria tal como ὡς seguida por um nome que
eacute frequentemente qualificado por um adjetivo ou um particiacutepio [] e casos
nos quais uma ou mais oraccedilotildees relativas contendo uma forma infinitiva ou
verbos flexionados estatildeo ligadas a uma oraccedilatildeo anterior de comparaccedilatildeordquo
(Coffey 1957 60) e outro ldquoo siacutemile longo que consiste em uma sentenccedila
separada introduzida por ὡς ὅτε ou palavras similaresrdquo2
Aqui as duas formas de siacutemiles nos interessam jaacute que a primeira trata de uma economia
em termos de caracterizaccedilatildeo e a segunda um desenvolvimento da situaccedilatildeo da personagem
em conflitos eacuteticos e psicoloacutegicos
Um pouco mais tarde Moulton passa a estudar os siacutemiles a partir de suas
sequecircncias ultrapassando o esquema fechado dos siacutemiles e de suas correspondecircncias
sintaacuteticas para ampliaacute-los ateacute uma anaacutelise semacircntica demonstrando unidades de sentido
maiores na sequecircncia do enredo Duas tambeacutem satildeo as formas encontradas por ele siacutemiles
pares e ainda siacutemiles sucessivos ou seja respectivamente um siacutemile direto simples
menor e outro longo com unidades maiores e liames semacircnticos
Coffey ainda apresenta algumas funccedilotildees que o siacutemile homeacuterico desempenha tais
como movimentaccedilatildeo descriccedilatildeo notaccedilatildeo temporal enumeraccedilatildeo caracterizaccedilatildeo dentre
outras funccedilotildees Especificamente no tocante agrave caracterizaccedilatildeo diversos siacutemiles apresentam
como termo comparativo animais Clarke por exemplo em seu artigo ldquoEntre Homens e
Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo pontua em contraste com teoacutericos que soacute veem o
siacutemile como uma ornamentaccedilatildeo formulaica que ldquoo simbolismo envolvendo animais
selvagens e agressivos eacute muito maior que uma questatildeo de estilo e que eles desempenham
grande papel no retrato de Homero dos problemas eacuteticos e psicoloacutegicos do heroiacutesmordquo
(Clarke 2006 p 2)
Eacute desse ponto de vista entatildeo que partimos em nossa investigaccedilatildeo ou seja
examinar em suas duas formas o potencial que os siacutemiles animais possuem na Iliacuteada
como teacutecnica de caracterizaccedilatildeo3 Eacute necessaacuterio tambeacutem antes determinar para que o
quadro de comparaccedilatildeo seja efetivo o valor simboacutelico que cada animal pode atribuir ao
seu comparante dentro da estrutura do siacutemile e soacute assim procedermos com a anaacutelise de
caracterizaccedilatildeo
2 A simbologia dos animais como elemento caracterizador
Estudar a caracterizaccedilatildeo de uma personagem sem seu caraacuteter (ἦθος) manifesto
pode parecer uma empresa arriscada Entretanto eacute possiacutevel determinar este caraacutecter
atraveacutes de analogias que deixam entrever certos estados eacuteticos e psicoloacutegicos das
personagens Eacute dessa forma que entendemos com Clark que
Characterization in Homerrdquo jaacute havia contestado boa parte dos epiacutetetos formulaicos para demonstrar certa
habilidade do poeta eacutepico em sua construccedilatildeo de caracterizaccedilatildeo No tocante aos siacutemiles M Coffey em
ldquoThe function of the Homeric Similerdquo demonstra como os siacutemiles desempenham diversas funccedilotildees dentre
elas a de caracterizaccedilatildeo e ainda mais Carroll Moulton em ldquoSimiles in the Iliadrdquo e ldquoSimile Sequencesrdquo
aponta como os siacutemiles produzem caracterizaccedilatildeo e influenciam em toda narrativa posterior para aleacutem de
uma foacutermula meramente ornamental respectivamente Importante contribuiccedilatildeo tambeacutem eacute o artigo de
Michel Clark ldquoEntre Homens e Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo que aponta comportamentos eacuteticos e
psicoloacutegicos nos siacutemiles animais 2 Todas as traduccedilotildees satildeo de responsabilidade do autor Texto grego extraiacutedo das ediccedilotildees de Paul Mazon e
Balme 3 Cf Adam Parry 1972 p 1-22
Marco V C Colonnelli
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Os siacutemiles animais satildeo um excelente candidato para gerar tal tipo de sistema
eles satildeo tantos e tatildeo variados nas conexotildees que forjam que seu efeito
combinado pode natildeo apenas ampliar a narrativa mas de fato assimilar
aspectos da aparecircncia das personagens e da personalidade do guerreiro ao
animal (Clark 2006 p 4)4
Um dado relevante neste universo eacutepico eacute que ldquoos animais de Homero tecircm
igualmente o mesmo aparato emocional e cognitivo que os homensrdquo (Clark 2006 11)
Na Iliacuteada poreacutem jamais encontraremos algum tipo de eacutethos (ἦθος) aplicado ao animal
mas somente o contraacuterio disso o animal conferindo eacutethos ao homem Em Homero os
animais estatildeo encobertos por uma carga simboacutelica que os determina em certos aspectos
com traccedilos bem definidos Mas como eacute possiacutevel atribuir um eacutethos ao animal Como ver
tacitamente no animal um eacutethos humano Para entendermos melhor essa relaccedilatildeo eacute
preciso recorrermos a Aristoacuteteles
Em seu tratado Investigaccedilatildeo dos Animais o filoacutesofo faz uma afirmaccedilatildeo que parece
se coadunar com o mundo homeacuterico
Haacute pois tambeacutem em muitos desses outros animais traccedilos de caracteriacutesticas
psiacutequicas que nos homens possuem diferenccedilas mais claras Assim mansidatildeo
e ferocidade doccedilura e violecircncia coragem e covardia temor e ousadia vontade
e astuacutecia estatildeo em muitos animais semelhantes aos homens tambeacutem ateacute em
inteligecircncia
῎Ενεστι γὰρ ἐν τοῖς πλείστοις καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ἴχνη τῶν περὶ τὴν ψυχὴν
τρόπων ἅπερ ἐπὶ τῶν ἀνθρώπων ἔχει φανερωτέρας τὰς διαφοράςmiddot καὶ γὰρ
ἡμερότης καὶ ἀγριότης καὶ πραότης καὶ χαλεπότης καὶ ἀνδρία καὶ δειλία καὶ
φόβοι καὶ θάρρη καὶ θυμοὶ καὶ πανουργίαι καὶ τῆς περὶ τὴν διάνοιαν συνέσεως
ἔνεισιν ἐν πολλοῖς αὐτῶν ὁμοιότητες [] (Arist Investigaccedilotildees sobre os
animais 588 a 19-25)
Aristoacuteteles reconhece duas caracteriacutesticas psiacutequicas diferentes entre os animais e
os homens A primeira eacute de grau ou seja entre os homens uns teratildeo mais outros menos
dessas caracteriacutesticas e a mesma relaccedilatildeo entre homens e animais A segunda eacute por
analogia ou seja por certa semelhanccedila entre as caracteriacutesticas psiacutequicas dos homens
comparadas a certas manifestaccedilotildees nos animais5 Partindo dessa premissa analoacutegica
Aristoacuteteles neste tratado delineia o caraacuteter de alguns animais com base em sentimentos
humanos A analogia que faz a ponte entre essas constituiccedilotildees psiacutequicas se vale tambeacutem
do simbolismo que cada animal possuiacutea jaacute entre os gregos Este simbolismo natildeo tem um
vieacutes religioso ainda que seja necessaacuterio reconhecer essa dimensatildeo simboacutelica na cultura
grega6 mas meramente empiacuterico
Eacute nesse sentido que vamos encontrar em Aristoacuteteles a aplicaccedilatildeo do eacutethos humano
por analogia aos animais Worther tambeacutem assinala que
Aristoacuteteles define o ἦθος como uma capacidade ou potecircncia primeira e natural
possuiacuteda por todos os animais em virtude da qual eles satildeo natildeo somente capazes
4 Moulton discorda de que isso seja possiacutevel 5 Diferenccedila segundo a analogia consiste em estabelecer que a capacidade natural de um dado animal se
encontra sob uma forma diferente mas com a mesma funccedilatildeo ou uma funccedilatildeo anaacuteloga em um outro animal
Assim a arte a sabedoria ou a inteligecircncia do homem existem em outros animais mas sob a forma de
uma capacidade que natildeo faz intervir o elemento racional que pertence propriamente ao homem
(Woerther 2007 138) 6 Natildeo se nega o valor das relaccedilotildees religiosas entre homens e animais mas deve-se tambeacutem ressaltar as
relaccedilotildees sociais e poliacuteticas que esta associaccedilatildeo releva (Bodson 1994 55)
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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de ser afetados por paixotildees como tambeacutem suscetiacuteveis de desenvolver graccedilas
agraves accedilotildees repetidas disposiccedilotildees habituais da alma (Woerther 2007 p 138)
A observaccedilatildeo do filoacutesofo sobre o eacutethos animal tambeacutem eacute extraiacuteda da proacutepria obra
de Homero de quem ele muitas vezes cita passagens para justificar seus escritos
bioloacutegicos o que nos leva a crer que as observaccedilotildees homeacutericas e aristoteacutelicas formam um
todo empiacuterico de observaccedilotildees a respeito da natureza em geral Desse saber empiacuterico o
valor do eacutethos animal passa a figurar como um siacutembolo que o animal possui em si
Vejamos agora como certos valores simboacutelicos dos animais confluem para uma
caracterizaccedilatildeo taacutecita em algumas passagens da Iliacuteada
3 Siacutemiles animais como elementos caracterizadores
Muitos siacutemiles animais podem ser encontrados na Iliacuteada O leatildeo eacute de longe o
animal mais citado como imagem para os heroacuteis entretanto outros animais como o cervo
ou a cabra que satildeo presas tambeacutem abundam nas comparaccedilotildees Alguns animais satildeo
empregados especificamente em algumas passagens de modo natildeo muito usual Em uma
passagem do canto VIII da Iliacuteada Aquiles eacute comparado a um golfinho natildeo soacute pelo locus
de sua caccedila mas tambeacutem por algumas reconhecidas qualidades deste animal Vejamos o
siacutemile
Em seguida o divino Aquiles deixou sua lanccedila na ribeira
Inclinada nos arbustos e mergulhou semelhante a um deus
Portando apenas uma espada e na mente meditava maus atos
E golpeou dando giros dos feridos pela arma uma gritaria elevou-se
Indecorosa enquanto tingia a aacutegua de vermelho
Tal como quando outros peixes dos golfinhos de grande ventre
Fugindo enchem os recantos de uma baiacutea fundeada
Aterrados pois tudo aquilo que consegue apanhar devora
Assim os Troianos para as correntes do terriacutevel rio
Fugiam pelas iacutengremes ribanceiras Aquiles quando cansou
Suas matildeos de matar recolheu do rio doze jovens vivos
Paga pela morte de Paacutetroclo filho de Meneacutecio
Αὐτὰρ ὃ διογενὴς δόρυ μὲν λίπεν αὐτοῦ ἐπ ὄχθῃ
κεκλιμένον μυρίκῃσιν ὃ δ ἔσθορε δαίμονι ἶσος
φάσγανον οἶον ἔχων κακὰ δὲ φρεσὶ μήδετο ἔργα
τύπτε δ ἐπιστροφάδηνmiddot τῶν δὲ στόνος ὄρνυτ ἀεικὴς
ἄορι θεινομένων ἐρυθαίνετο δ αἵματι ὕδωρ
ὡς δ ὑπὸ δελφῖνος μεγακήτεος ἰχθύες ἄλλοι
φεύγοντες πιμπλᾶσι μυχοὺς λιμένος εὐόρμου
δειδιότεςmiddot μάλα γάρ τε κατεσθίει ὅν κε λάβῃσινmiddot
ὣς Τρῶες ποταμοῖο κατὰ δεινοῖο ῥέεθρα
πτῶσσον ὑπὸ κρημνούς ὃ δ ἐπεὶ κάμε χεῖρας ἐναίρων
ζωοὺς ἐκ ποταμοῖο δυώδεκα λέξατο κούρους
ποινὴν Πατρόκλοιο Μενοιτιάδαο θανόντοςmiddot
(Il VIII 17-28)
Em suas investigaccedilotildees Aristoacuteteles nos fornece certos traccedilos do animal que
configuram seu eacutethos Assim em 631a ele afirma que ldquodentre os animais mariacutetimos
muitos sinais de doccedilura e inteligecircncia satildeo anunciados a respeito dos golfinhos assim
como tambeacutem em relaccedilatildeo aos filhos satildeo amorosos e apaixonadosrdquo (Τῶν δὲ θαλαττίων
πλεῖστα λέγεται σημεῖα περὶ τοὺς δελφῖνας πραότητος καὶ ἡμερότητος καὶ δὴ καὶ πρὸς
παῖδας ἔρωτες καὶ ἐπιθυμίαι ndash Arist 631a 8-11) Natildeo obstante esta caracteriacutestica doacutecil
do animal a sua destreza na caccedila tambeacutem eacute exaltada Em outra passagem ele acrescenta
Marco V C Colonnelli
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Fala-se tambeacutem coisas incriacuteveis a respeito da rapidez do animal Parece pois
que dentre todos os animais tanto da aacutegua quanto da terra eacute o mais raacutepido e
tambeacutem saltam por cima dos mastros dos grandes navios Isso lhes acontece
sobretudo quando perseguem algum peixe graccedilas a sua necessidade alimentar
Neste momento pois se o peixe fugir perseguem-no ateacute o fundo do mar por
causa de sua fome [] E girando sobre si mesmos lanccedilam-se como uma
flecha desejando percorrer com velocidade uma grande extensatildeo para respirar
Λέγεται δὲ καὶ περὶ ταχυτῆτος ἄπιστα τοῦ ζῴουmiddot ἁπάντων γὰρ δοκεῖ εἶναι
ζῴων τάχιστον καὶ τῶν ἐνύδρων καὶ τῶν χερσαίων καὶ ὑπεράλλονται δὲ
πλοίων μεγάλων ἱστούς Μάλιστα δὲ τοῦτ αὐτοῖς συμβαίνει ὅταν διώκωσί
τινα ἰχθὺν τροφῆς χάρινmiddot τότε γάρ ἐὰν ἀποφεύγῃ συνακολουθοῦσιν εἰς βυθὸν
διὰ τὸ πεινῆν [] καὶ συστρέψαντες ἑαυτοὺς φέρονται ὥσπερ τόξευμα τῇ
ταχυτῆτι τὸ μῆκος διελθεῖν βουλόμενοι πρὸς τὴν ἀναπνοήν (Arist 631a 20-
27)
A caracteriacutestica do golfinho em sua caccedila parece iluminar o curto siacutemile em que
Aquiles toma as presas de guerra A rapidez do ataque do animal o mais raacutepido dentre
todos alude a proacutepria destreza do heroacutei que tambeacutem eacute raacutepido em seu ataque e efetivo em
sua conquista O ataque eacute motivado pela voracidade da fome do animal e o modo como
ele caccedila tambeacutem estaacute representado atraveacutes dos giros que facilmente o animal executa
Aquiles golpeia girando tal como o golfinho Se o amor filial eacute a caracteriacutestica do animal
natildeo se pode negar que o iacutempeto que move o heroacutei eacute a vinganccedila pela morte de Paacutetroclo
demonstrando a amizade que os unia A comparaccedilatildeo com o golfinho eacute salutar em diversos
aspectos mas sobretudo pela inteligecircncia e pela destreza que o animal evoca na passagem
Outro animal natildeo menos mencionado em siacutemiles do que o leatildeo eacute o catildeo de caccedila
Apesar de ser um animal domesticado sua ferocidade na caccedila eacute muito representada em
siacutemiles Aristoacuteteles nos informa a respeito deles que
A raccedila dos catildees de caccedila em Molosso natildeo diferem em nada das raccedilas de outras
localidades mas a raccedila que pastoreia junto aos rebanhos difere em porte e em
coragem contra animais selvagens E diferem em coragem e dedicaccedilatildeo
tambeacutem a raccedila dos catildees gerados do cruzamento entre os de Molosso e da
Lacocircnia
Τὸ δ ἐν τῇ Μολοττίᾳ γένος τῶν κυνῶν τὸ μὲν θηρευτικὸν οὐδὲν διαφέρει πρὸς
τὸ παρὰ τοῖς ἄλλοις τὸ δ ἀκόλουθον τοῖς προβάτοις τῷ μεγέθει καὶ τῇ ἀνδρείᾳ
τῇ πρὸς τὰ θηρία Διαφέρουσι δ οἱ ἐξ ἀμφοῖν ἀνδρείᾳ καὶ φιλοπονίᾳ οἵ τε ἐκ
τῶν ἐν τῇ Μολοττίᾳ γινομένων κυνῶν καὶ ἐκ τῶν Λακωνικῶν (Arist HA 608
a 27-33)
Duas caracteriacutesticas satildeo apontadas no animal a coragem contra animais selvagens
e a sua dedicaccedilatildeo na caccedila Eacute com esse eacutethos que Heitor eacute pintado no canto VIII da Iliacuteada
no momento em que Zeus o favorece na batalha contra os Aqueus
De novo nos Troianos o Oliacutempio excitou a coragem
E eles impeliram os Aqueus direto agrave profunda trincheira
Heitor entre os primeiros movia-se fero em sua forccedila
Como quando um dos catildees de javalis selvagens ou de leotildees
Toca sucessivamente perseguindo-os com patas ceacuteleres
As coxas ou naacutedegas e tem olhos fixos em quem se vira
Assim Heitor perseguia os Aqueus de longos cabelos
Matando sempre o mais recuado enquanto os outros fugiam
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
50 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326
῍Αψ δ αὖτις Τρώεσσιν ᾿Ολύμπιος ἐν μένος ὦρσενmiddot
οἳ δ ἰθὺς τάφροιο βαθείης ὦσαν ᾿Αχαιούςmiddot
῞Εκτωρ δ ἐν πρώτοισι κίε σθένεϊ βλεμεαίνων
ὡς δ ὅτε τίς τε κύων συὸς ἀγρίου ἠὲ λέοντος
ἅπτηται κατόπισθε ποσὶν ταχέεσσι διώκων
ἰσχία τε γλουτούς τε ἑλισσόμενόν τε δοκεύει
ὣς ῞Εκτωρ ὤπαζε κάρη κομόωντας ᾿Αχαιούς
αἰὲν ἀποκτείνων τὸν ὀπίστατονmiddot οἳ δὲ φέβοντο
(Il VIII 335-343)
Na passagem acima a coragem tambeacutem encontrada no ethos animal eacute insuflada por Zeus
nos Troianos O siacutemile parece de fato retomar a qualidade deste animal em colocar em debandada
animais ferozes Entretanto a diligecircncia e a dedicaccedilatildeo do animal natildeo fica para traacutes na
representaccedilatildeo jaacute que o catildeo tem os olhos fixos nos animais que lhe satildeo superiores em porte fiacutesico
natildeo descuidando daqueles que viram O siacutemile indica sobretudo o cuidado presente no eacutethos do
animal na dispersatildeo das feras reproduzindo a imagem de heroacuteis mais fracos que inspirados pelos
deuses potildeem em debandada heroacuteis mais robustos Nesse sentido apesar da coragem eacute necessaacuteria
muita cautela na perseguiccedilatildeo para que natildeo se invertam as posiccedilotildees entre caccedila e caccedilador
Retomando a relaccedilatildeo entre os animais acima tambeacutem eacute possiacutevel perceber que o
caraacuteter dessas feras natildeo como habitualmente satildeo representadas ou seja como animais
ferozes e corajosos mas como animais que algumas vezes satildeo covardes Neste caso o
leatildeo tatildeo usado em siacutemiles de batalha para denotar violecircncia ferocidade tambeacutem possui
iacutendice de covardia Aristoacuteteles nas Investigaccedilotildees sobre os Animais observa que
Haacute duas raccedilas de Leotildees haacute uma que eacute mais roliccedila juba encaracolada e covarde
outra mais larga de juba ericcedilada e mais corajosa Fogem algumas vezes
entretanto com o rabo entre as pernas como os catildees Jaacute se viu tambeacutem um leatildeo
que estava a ponto de se lanccedilar sobre um javali e como percebeu que esse se
ouriccedilava fugiu Eacute deacutebil contra golpes em sua barriga mas suporta muitos
golpes em outra parte do corpo e tem um cabeccedila forte
Γένη δ ἐστὶ λεόντων δύοmiddot τούτων δ ἐστὶ τὸ μὲν στρογγυλώτερον καὶ
οὐλοτριχώτερον δειλότερον τὸ δὲ μακρότερον καὶ εὐθύτριχον ἀνδρειότερον
Φεύγουσι δ ἐνίοτε κατατείναντες τὴν κέρκον ὥσπερ κύνες ῎Ηδη δ ὦπται
λέων καὶ ὑῒ ἐπιτίθεσθαι μέλλων καὶ ὡς εἶδεν ἀντιφρίξαντα φεύγων ῎Εστι δὲ
πρὸς τὰς πληγὰς εἰς μὲν τὰ κοῖλα ἀσθενής κατὰ δὲ τὸ ἄλλο σῶμα δέχεται
πολλὰς καὶ κεφαλὴν ἔχει ἰσχυράν
(Arist HA 629 b 33- 639 a8)
A informaccedilatildeo que Aristoacuteteles nos traz natildeo soacute ilustra o siacutemile homeacuterico anterior
como tambeacutem demonstra que o encontro entre javalis e leotildees eram decididos por acaso
jaacute que os dois animais satildeo comumente representados na Iliacuteada como animais ferozes
Assim uma passagem pode ser lida de forma interessante quando dois grandes heroacuteis
satildeo postos frente a frente no canto VII Heitor e Aacutejax
Ambos concomitantes retirando as longas lanccedilas com as matildeos
De suacutebito se encontram parecendo leotildees apreciadores de carne
Ou selvagens javalis cuja forccedila eacute inesgotaacutevel
τὼ δ ἐκσπασσαμένω δολίχ ἔγχεα χερσὶν ἅμ ἄμφω
σύν ῥ ἔπεσον λείουσιν ἐοικότες ὠμοφάγοισιν
ἢ συσὶ κάπροισιν τῶν τε σθένος οὐκ ἀλαπαδνόν
(Il VII 255-257)
Atraveacutes desse siacutemile a passagem demonstra como forccedilas equacircnimes os dois heroacuteis
representados aiacute pela forccedila descomunal do javali e pelo apreciador de carne crua o leatildeo
Marco V C Colonnelli
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 51
O choque entre os heroacuteis no resto da passagem natildeo terminaria jaacute que chegada a noite
o combate foi interrompido pelos arautos
O leatildeo em outros siacutemiles quando confrontado por caccediladores e catildees manifesta
cautela em seus ataques Aristoacuteteles descreve o comportamento do leatildeo face a essa
adversidade
Nas caccediladas sendo observado jamais foge ou se apavora mas se por uma
multidatildeo de caccediladores eacute forccedilado a se afastar retira-se passo a passo e com a
face voltada ao inimigo girando-se de pouco em pouco se ele se encontra
entre arbustos foge rapidamente ateacute chegar em uma clareira momento em que
de novo se afasta passo a passo Em campo aberto quando eacute forccedilado a fugir
para uma clareira por uma multidatildeo corre com passos raacutepidos e natildeo pula Sua
corrida eacute contiacutenua e extensa como a do catildeo
᾿Εν δὲ ταῖς θήραις ὁρώμενος μὲν οὐδέποτε φεύγει οὐδὲ πτήσσει ἀλλ ἐὰν καὶ
διὰ πλῆθος ἀναγκασθῇ τῶν θηρευόντων ὑπαγαγεῖν βάδην ὑποχωρεῖ καὶ κατὰ
σκέλος κατὰ βραχὺ ἐπιστρεφόμενοςmiddot ἐὰν μέντοι ἐπιλάβηται δασέος φεύγει
ταχέως ἕως ἂν καταστῇ εἰς φανερόνmiddot τότε δὲ πάλιν ὑπάγει βάδην ᾿Εν δὲ τοῖς
ψιλοῖς ἐάν ποτ ἀναγκασθῇ εἰς φανερὸν διὰ τὸ πλῆθος φεύγειν τρέχει
κατατείνας καὶ οὐ πηδᾷ Τὸ δὲ δρόμημα συνεχῶς ὥσπερ κυνός ἐστι
κατατεταμένονmiddot (Arist HA 629 b 12-20)
Ainda que muito forte a simbologia do leatildeo na Iliacuteada como o animal mais
intreacutepido dos que se encontram na obra eacute interessante tambeacutem notar que em alguns
siacutemiles de fuga o proacuteprio leatildeo o siacutembolo da coragem eacute usado para representar a fuga de
alguns heroacuteis No canto XI Aacutejax recua da seguinte maneira
Zeus pai de seu trono introduziu o medo em Aacutejax
E atocircnito ele estacou aos ombros laccedilou o escudo de sete camadas
E depois de ver uma multidatildeo fugiu semelhante a uma fera
Que se volta continuamente para traacutes alternando em breves passadas
Tal quando sobre um feroz leatildeo do curral
Dos bois afugentam catildees e pastores
E eles o impedem de arrebatar o melhor dos bois
Vigilantes por toda noite mas ele desejoso de carne
Avanccedila com zelo mas nada encontra pois dardos
Numerosos voam de corajosas matildeos em sua direccedilatildeo
E tochas acesas que teme ainda que sedento
E ao amanhecer retira-se com acircnimo aflito
Assim Aacutejax dos Troianos com o coraccedilatildeo inquieto
Afasta-se muito contrariado pois temia pelas naus dos Aqueus
Ζεὺς δὲ πατὴρ Αἴανθ ὑψίζυγος ἐν φόβον ὦρσεmiddot
στῆ δὲ ταφών ὄπιθεν δὲ σάκος βάλεν ἑπταβόειον
τρέσσε δὲ παπτήνας ἐφ ὁμίλου θηρὶ ἐοικὼς
ἐντροπαλιζόμενος ὀλίγον γόνυ γουνὸς ἀμείβων
ὡς δ αἴθωνα λέοντα βοῶν ἀπὸ μεσσαύλοιο
ἐσσεύαντο κύνες τε καὶ ἀνέρες ἀγροιῶται
οἵ τέ μιν οὐκ εἰῶσι βοῶν ἐκ πῖαρ ἑλέσθαι
πάννυχοι ἐγρήσσοντεςmiddot ὃ δὲ κρειῶν ἐρατίζων
ἰθύει ἀλλ οὔ τι πρήσσειmiddot θαμέες γὰρ ἄκοντες
ἀντίον ἀΐσσουσι θρασειάων ἀπὸ χειρῶν
καιόμεναί τε δεταί τάς τε τρεῖ ἐσσύμενός περmiddot
ἠῶθεν δ ἀπὸ νόσφιν ἔβη τετιηότι θυμῷmiddot
ὣς Αἴας τότ ἀπὸ Τρώων τετιημένος ἦτορ
ἤϊε πόλλ ἀέκωνmiddot περὶ γὰρ δίε νηυσὶν ᾿Αχαιῶν
(Il XI 544-557)
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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Diferente dos outros siacutemiles esse mais longo natildeo soacute caracteriza o recuo do heroacutei
em termos de movimentaccedilatildeo e comportamento mas tambeacutem em termos de iacutendices
psicoloacutegicos que abundam no siacutemile O leatildeo aqui ainda eacute visto como um animal corajoso
feroz sedento por carne em suma em sua simbologia completa Entretanto como a
situaccedilatildeo eacute de fuga e caacutelculo o comportamento animal descrito por Aristoacuteteles representa
bem a maneira como Aacutejax se encontra tanto em termos psicoloacutegicos quanto em situaccedilatildeo
Aacutejax recua foge mas sem a pressa dos covardes sua fuga eacute bem descrita pelo
comportamento do leatildeo que recua lentamente sempre se voltando para traacutes Ademais o
nuacutemero de inimigos na liccedila e os dardos em sua direccedilatildeo o forccedilam ao recuo
Quanto ao plano psicoloacutegico Aacutejax que em sua caracterizaccedilatildeo eacute visto sempre como
voluntarioso e corajoso torna-se temeroso por uma intervenccedilatildeo divina E o conflito
gerado por essas disposiccedilotildees psicoloacutegicas eacute bem expresso pelo comportamento calculado
do recuo do leatildeo Neste afastamento tanto o heroacutei quanto o leatildeo estatildeo com acircnimo aflito
e inquieto e por uacuteltimo Aacutejax deixa o campo de modo involuntaacuterio
A caracterizaccedilatildeo neste siacutemile eacute completa Ela cobre tanto a perspectiva de um
desenvolvimento da accedilatildeo quanto o conflito psicoloacutegico que ocorre com o heroacutei Natildeo se
trata aqui de um siacutemile curto em que teriacuteamos de projetar o comportamento animal para
a compreensatildeo da passagem mas de um siacutemile longo em que o desenvolvimento do
comportamento animal eacute tatildeo magistralmente descrito que podemos consideraacute-lo sem
exageros como o proacuteprio iniacutecio de toda ciecircncia empiacuterica encontrada quase quatro seacuteculos
depois em Aristoacuteteles
3 Conclusatildeo
O uso do siacutemile em Homero eacute extremamente complexo Aleacutem dos siacutemiles naturais
produzidos com as potecircncias da natureza haacute tambeacutem os siacutemiles animais que se tornam
muito impactantes sobretudo porque revelam natildeo soacute facetas de movimentaccedilatildeo mas
tambeacutem de caraacuteter que o animal comporta O mundo natural eacute usado por Homero com
maestria a ponto de produzir situaccedilotildees nos combates em que grande parte do que eacute
descrito jaacute eacute bem conhecido pela audiecircncia em contato com o mundo natural circundante
Hoje talvez para reconhecer a forccedila de seus siacutemiles nos seja preciso talvez aleacutem do
conhecimento do mundo arcaico grego um bom entendimento sobre a vida natural sem
o qual a complexidade das cenas na Iliacuteada pareceraacute meramente fantasiosas
REFEREcircNCIAS
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54 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326
DOI httpsdoiorg1012957principia201946513
OS PROFISSIONAIS DO SOBRENATURAL
MAacuteGOS GOacuteES E PHARMAKEUacuteS
Dulcileide V do Nascimento Braga (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO O presente artigo objetiva ao pressupor que as accedilotildees maacutegicas constituem
praacuteticas passiacuteveis de aprendizado apresentar a anaacutelise da estrutura vocabular dos termos
que classificam os profissionais da magia Busca-se tambeacutem a partir da tradiccedilatildeo miacutetico-
literaacuteria grega demonstrar que tais profissionais tecircm uma praacutetica registrada em diversos
periacuteodos da literatura grega e influenciaram accedilotildees que extrapolam o vieacutes temporal
PALAVRAS-CHAVE Teacutechne maacutegica Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes
THE SUPERNATURAL PROFESSIONALS
MAacuteGOS GOacuteES AND PHARMAKEUacuteS
ABSTRACT This article aims assuming that magical actions constitute practices that can
be learned to present the analysis of the vocabulary structure of the terms that classify
magic professionals It is also sought from the greek mythical-literary tradition to
demonstrate that these professionals have a practice recorded in several periods of greek
literature and influenced actions that go beyond the temporal bias
KEYWORDS Teacutechne magic Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes
Magia do grego mageiacutea segundo Tupet (1976 p X) eacute a praacutetica exercida atraveacutes
de palavras e gestos por um indiviacuteduo que deteacutem certos conhecimentos que o capacitam
a produzir resultados de toda ordem George Luck (1995 p 35) precisa essa definiccedilatildeo ao
afirmar que a magia eacute uma teacutecnica cuja crenccedila se baseia nos poderes localizados na alma
humana e no universo e que pretende impor a vontade humana sobre a natureza ou sobre
os seres humanos
Platatildeo em Leis XI 932e-933b jaacute enumera os principais procedimentos maacutegicos
no seacutec IV aC e a difiacutecil tarefa de analisar essa teacutecnica
Quanto aos malefiacutecios que uns podem causar aos outros por meio de drogas
(pharmaacutekois) jaacute tratamos dos de consequecircncias letais mas ainda natildeo falamos
dos incocircmodos provocados intencionalmente e com premeditaccedilatildeo por meio de
bebidas e alimentos ou com unguentos O difiacutecil na presente exposiccedilatildeo eacute que
haacute no gecircnero humano duas espeacutecies de envenenamento uma eacute a que acabamos
de nos referir e que consiste em causar dano ao corpo pela accedilatildeo natural de
outros corpos a outra por meio de sortileacutegios (magganeiacuteais) encantamentos
(epoidaicircs) e o que se denomina ligadura (katadeacutesesi) chega a persuadir aos
E-mail dulcinascimentobragagmailcom
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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que querem causar danos a terceiros que o conseguiratildeo com tal recurso como
tambeacutem convence a estes uacuteltimos que ningueacutem lhes pode ocasionar tanto mal
como as pessoas conhecedoras de artes maacutegicas O que possa haver de
verdadeiro em tudo isso natildeo eacute faacutecil conhecer nem depois de sabido deixar
aceitaacutevel para ningueacutem dada a desconfianccedila reinante nos espiacuteritos a respeito
de tais assuntos natildeo vale a pena procurar convencecirc-los sempre que
encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera ou em encruzilhadas ou
talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados de que natildeo devem dar a
menor importacircncia a essas praacuteticas pois acerca de tudo isto ningueacutem tecircm
opiniatildeo formada
Eacute relevante destacar que o conceito de pharmakeiacutea utilizado por Platatildeo natildeo se
restringe exclusivamente ao uso de um phaacutermakon (bebidas alimentos ou unguentos)
mas se prolonga atraveacutes de sortileacutegios encantamentos e ligaduras
Platatildeo ainda questiona a eficaacutecia dessas profissionais de magia cujas habilidades
eram difiacuteceis de se averiguar analisar ou compreender sendo a profissional julgada pela
eficiecircncia ou pelos danos causados por sua praacutetica
O fato de atribuir aos praticantes de magia um caraacuteter perigoso por conta do saber
que detinham e a necessidade de que essas praacuteticas fossem controladas por leis remetem-
nos aos diversos processos de impiedade sofridos por mulheres praticantes das teacutechnai
maacutegicas Dentre elas destacamos o nome de trecircs mulheres a hetaira Frinea de Thespis
que foi acusada pelo seu amante Euthias de utilizar lugares sagrados para a praacutetica de
atos iliacutecitos e por ter formado um thiacuteasos1 sem a autorizaccedilatildeo legal dos atenienses a
sacerdotisa Teoris de Lemos acusada de produzir phaacutermaka para curar a epilepsia e
ainda temos o processo sofrido pela sacerdotisa Ninos baseado nas mesmas acusaccedilotildees
direcionadas agraves duas mulheres citadas anteriormente
Tais atitudes eram consideradas desvios agrave ordem instituiacuteda pela poacutelis que
determinava que qualquer accedilatildeo envolvendo contato direto com uma divindade ou com os
mortos requereria a presenccedila de um sacerdote instituiacutedo pela cidade e responsaacutevel por
impedir qualquer praacutetica que pudesse contaminaacute-la de alguma maneira
Maria Regina Candido (2003 p 169) informa-nos sobre as praacuteticas dessas
mulheres
Acreditamos que Teoris de Lemos assim como Frinea de Thespis difundiam
a crenccedila na possibilidade de o homem efetuar de maneira direta a sua relaccedilatildeo
com as potecircncias sobrenaturais e controlar os processos mais complicados que
envolvem a vida como doenccedilas inimizades e maacute sorte de maneira eficaz e
segura Receitavam banhos infusotildees com ervas e oferendas agraves divindades
ctocircnicas estimulavam os praticantes a fazer incursotildees pelo mundo de seres
sobrenaturais como os mortos O mundo dos homens deixava de atender agraves
necessidades do cotidiano e a alternativa era solicitar auxiacutelio das potecircncias
sobrenaturais
Assim como Platatildeo Candido acredita que a puniccedilatildeo relacionada a estas praacuteticas e
a seus praticantes esteja baseada no resultado advindo das mesmas que nem sempre
acarretava proveito agravequele que solicitava um benefiacutecio maacutegico Portanto por temer a
extensatildeo do poder dessas praacuteticas os atenienses puniam seus praticantes na maioria dos
casos mulheres estrangeiras como uma forma de se precaverem
Tambeacutem salientamos que apesar de a praacutetica maacutegica ser em determinadas
circunstacircncias apontada como uma atividade marginal ou uma forma de corromper a
religiatildeo poliacuteade como mencionamos anteriormente os praticantes destas teacutechnai
1 Palavra utilizada para designar um grupo de pessoas que celebram um deus normalmente com festas
cantos e banquetes
Dulcileide V do Nascimento Braga
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detinham um conhecimento e um poder cuja eficaacutecia seria sustentada por uma crenccedila
coletiva e por uma dependecircncia de uma ordem moral que buscava a autoproteccedilatildeo fato
que garantia a continuidade das diversas formas de magia em todas as classes da
sociedade helecircnica como afirma o texto de Luck (1995 p 42)
Pode a magia antiga se basear em ideias ldquoprimitivasrdquo mas a forma em que nos
foi transmitida natildeo era de nenhum modo primitiva Pelo contraacuterio a magia
nesse sentido existiu somente dentro de culturas altamente desenvolvidas e
constituiu uma parte importante delas Natildeo soacute as classes baixas os ignorantes
e incultos criam nela mas ateacute o final da Antiguidade os ldquointelectuaisrdquo
estiveram convencidos de que poderosas forccedilas sobrenaturais atuavam em
torno deles podendo ser controladas por certos meios
Em grego destacamos trecircs termos para designar os detentores das artes maacutegicas
maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
O nome mais comumente utilizado para designar a feiticeira eacute maacutegos cognato de
mageiacutea magia Segundo Pierre Chantraine (1984 v maacutegos) esta palavra constitui um
empreacutestimo iraniano e no plural maacutegoi designa uma das tribos dos Medos como narra
Herocircdoto I 101 ldquoDeioces unificou a naccedilatildeo dos Medos governando-a A Meacutedia era
composta de diferentes povos os Busos Paretacenos Estrucatos Arizantos Budios e os
Magosrdquo
Segundo ainda o relato de Heroacutedoto haacute entre os maacutegoi aqueles que tecircm a funccedilatildeo
de ser ldquointeacuterpretes de sonhosrdquo Podemos verificar esta atribuiccedilatildeo dos magos em Histoacuteria
I 107 Astiacuteages apoacutes ter um sonho solicitou aos magos inteacuterpretes de sonhos que
revelassem o seu significado em I 120 Astiacuteages para decidir a sorte de Ciro mandou
chamar os mesmos magos que anteriormente tinham interpretado o seu sonho em I 128
vemos isso quando Astiacuteages manda empalar os magos inteacuterpretes dos sonhos que o
haviam convencido a deixar Ciro partir No livro VII 37 haacute uma passagem que ratifica a
funccedilatildeo de inteacuterprete dos sonhos aos magos Nela Xerxes apoacutes ver um eclipse solar
acreditando ser um mau pressaacutegio pede aos seus magos que interpretem o fenocircmeno
Segundo Graf (1994 p 30) aleacutem de serem inteacuterpretes dos sonhos os maacutegoi seriam os
responsaacuteveis pelos sacrifiacutecios reais pelos ritos funeraacuterios e pela adivinhaccedilatildeo
O termo maacutegos parece ter adquirido com o advento da filosofia conotaccedilatildeo
negativa sendo entatildeo utilizado para estigmatizar opiniotildees e comportamentos
considerados socialmente desviados a julgar por Heraacuteclito frag 14 que associa maacutegoi
aos ldquovagabundos da noite bacantes mecircnades e aos mistosrdquo e acredita serem esses homens
merecedores de morte posto que praticam accedilotildees iacutempias Graf (1994 32) discute se esta
caracterizaccedilatildeo de Heraacuteclito reproduziria a atuaccedilatildeo dos maacutegoi pois se ela corresponder agrave
realidade este termo semanticamente poderaacute ganhar a conotaccedilatildeo dos termos aguacutertes e
maacutentis pedinte e adivinho utilizados por Platatildeo na Repuacuteblica II-364b ou ser
interpretada a partir da expressatildeo utilizada no papiro de Derveni profissional dos ritos
Com base nesta definiccedilatildeo poderiacuteamos afirmar que Heraacuteclito ao utilizar a expressatildeo
ldquovagabundos da noiterdquo estaria dizendo que os maacutegoi seriam especialistas de toda uma
seacuterie de ritos privados e secretos como nos afirma o proacuteprio Graf (1994 p 33) ldquoPara um
jocircnico do fim do periacuteodo arcaico o maacutegos era semelhante aos especialistas itinerantes
dos cultos privados homens agrave margem da sociedade ridicularizados por uns e
secretamente temidos por outrosrdquo
Outro termo utilizado para nomear o praticante da magia eacute goeacutes termo cognato
do verbo goaacuteo gemer lamentar-se e que inicialmente designava um cantor que proferia
um lamento ritual pelos mortos ou seja o goeacutes eacute aquele que ldquocombina o ecircxtase com um
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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lamento ritual e a cura ritual com a adivinhaccedilatildeordquo (GRAF 1994 p 35) e que manteacutem
uma relaccedilatildeo estreita com o mundo dos mortos
Formadas a partir da mesma raiz encontramos as palavras goeteiacutea magia assim
como goeacuteteuma procedimento maacutegico fascinaccedilatildeo Heroacutedoto (II 33) ao narrar a histoacuteria
de Etearco o amocircnio aplica o termo goacuteetes para informar-nos sobre a crenccedila por parte
dos nasamones de que os habitantes de uma cidade em que entraram eram feiticeiros e
em IV 105 discorre sobre os relatos que afirmam que todos os Neuros eram goeacutetes
Encontramos ainda o termo goacutees associado a epoidos cantor aquele que canta
palavras maacutegicas para curar por exemplo em Euriacutepides As Bacantes 234-235 em que
encontramos os dois termos na fala de Penteu para fazer referecircncia ao estrangeiro que
estaacute propagando o culto a Dioniso ldquoDizem que veio um forasteiro feiticeiro cantor (goacutees
epoidoacutes) da terra da Iacutediardquo
Em Platatildeo Leis 903b quando a personagem chamada Ateniense ao mencionar
que iraacute convencer algueacutem por meio de argumentos diz ldquoMas ainda precisamos
acrescentar algumas histoacuterias a fim de imobilizaacute-lo com o encantamento (epoidocircn) que
lhes eacute proacutepriordquo E da mesma maneira eacute associado a maacutegos no Elogio agrave Helena de
Goacutergias ao evocar o poder da arte goeacutetica que encanta persuade e transforma Essas
teacutecnicas associadas agrave magia segundo o sofista seriam teacutecnicas do engano pois
desvirtuariam a alma e a opiniatildeo com falsas ilusotildees Desse modo Goacutergias defende Helena
dizendo que ela foi viacutetima da persuasatildeo maacutegica de Paacuteris contra a qual natildeo haveria defesa
O terceiro nome eacute pharmakeuacutes ou pharmakoacutes e designa um preparador de drogas
feiticeiro ou por ser cognato de pharmakeuacuteo significa simplesmente aquele que daacute um
remeacutedio ou veneno a algueacutem ou aquele que realiza uma operaccedilatildeo maacutegica Haacute ainda o
termo pharmakiacutes -idos atribuiacutedo agrave mulher que prepara poccedilotildees ou agrave feiticeira Aristoacutefanes
em As Nuvens 749 utiliza esta palavra como qualificativo para a mulher A expressatildeo
gunaicircka pharmakiacuteda encontrada em Aristoacutefanes refere-se a uma feiticeira da Tessaacutelia
que fazia a lua baixar agrave noite prendendo-a em um espelho
Cabe-nos contudo falar um pouco mais da magia das palavras ou do
encantamento Como jaacute mencionamos o termo goeacutes tem sua funccedilatildeo e significado
associado ao termo epoideacute que revela a natureza maacutegica do emprego da palavra e traz em
sua composiccedilatildeo o termo aoideacute canto que por sua vez estaacute relacionado com o termo audeacute
voz humana O grego distingue a linguagem humana audeacute do termo phoneacute que tanto
pode representar a linguagem humana como o som produzido por um animal
Pierre Chantraine (v aeidocirc) assinala que o prefixo epi- destaca o valor maacutegico do
canto assim epoideacute significa ldquocanto ou palavra maacutegicardquo
Eacute notoacuterio entretanto que o canto faz parte da cultura grega seja atraveacutes do maior
aedo de todos os tempos Homero atraveacutes do teatro da vida privada ou da puacuteblica O que
diferencia portanto essas utilizaccedilotildees da arte maacutegica das goeteacutes A diferenccedila estaacute na
estrutura destes encantamentos na tonalidade com que as palavras eram pronunciadas na
junccedilatildeo de siacutelabas estranhas apresentadas como verdadeiras foacutermulas maacutegicas bem como
aos poderes e divindades invocadas Tal estrutura eacute apresentada no seguinte fragmento
ldquoFebo o que auxilia na adivinhaccedilatildeo vem contente filho de Leto arqueiro infaliacutevel
protetor do mal venha aqui neste momento Vem Vaticinador daacute-me teus oraacuteculos
durante a noite allala allala santalala talalardquo (PGM II)
As foacutermulas maacutegicas do ponto de vista formal portanto tinham uma estrutura
preacute-estabelecida (pronunciada e realizadas de uma determinada maneira) que consistem
em uma seacuterie de instruccedilotildees que foram transmitidas atraveacutes do processo de iniciaccedilatildeo Esse
processo de aprendizado pode ser no acircmbito familiar ou em lugares considerados
sagrados
Dulcileide V do Nascimento Braga
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Temos diversos registros de foacutermulas maacutegicas algumas por exemplo
denominadas eroacuteticas objetivam a realizaccedilatildeo do desejo de um solicitante e tecircm
basicamente a mesma estrutura Como exemplo cito o PGM IV 3
Que fulana me ame a mim fulano filho de cicrano que ela natildeo tenha relaccedilotildees
sexuais nem por frente nem por traacutes nem busque prazer com outro homem
somente comigo de modo que fulana natildeo possa beber nem comer nem amar
nem sofrer nem ter sauacutede que natildeo consiga dormir sem mim arrasta a fulana
pelos cabelos as entranhas sua alma em cada momento de sua vida ateacute que
venha ateacute mim e permaneccedila inseparavelmente unida a mim
Neste encantamento se invoca o espiacuterito de um morto ou de uma divindade
normalmente Tiacutefon Selene ou Heacutecate mas quando se trata de magia eroacutetica se invoca
especialmente a deusa Afrodite e seu filho Eros Essas praacuteticas satildeo acompanhadas de um
gesto do solicitante como por exemplo um suspiro diante da mulher desejada um beijo
na lacircmina que conteacutem o pedido ou a simples repeticcedilatildeo do nome de Afrodite
Teoacutecrito no Idiacutelio 2 com 166 versos demonstra-nos como essas foacutermulas eram
utilizadas ao narrar a histoacuteria de como Simeta executa um ritual maacutegico com o intuito de
reconquistar o amor de Deacutelfis um jovem atleta que a trocou por um novo amor Eis alguns
versos do poema
Trecircs vezes faccedilo uma libaccedilatildeo e trecircs vezes Soberana
Pronuncio estas palavras quer seja mulher quer seja homem
Que com ele dorme agora que um tatildeo grande esquecimento invada
Deacutelfis como aquele que ndash ao que dizem ndash fez Teseu esquecer um
Dia Ariadne de belas tranccedilas (43-47)
Essa ldquoteacutecnicardquo das palavras tambeacutem faz parte da tradiccedilatildeo de uma literatura meacutedica
pois aleacutem de apresentar vaacuterios deuses responsaacuteveis pela cura tinha um deus especiacutefico
para a medicina Ascleacutepio e um lugar de cura Epidauro Ascleacutepio tinha um poder de cura
muito grande acreditava-se que ele inclusive podia ressuscitar os mortos O filho de
Apolo curava a uns com as doces palavras da magia (contos poemas e muacutesica) a outros
oferecia poccedilotildees eficazes ou lhes aplicava ervas em torno de seus membros ou cortava o
mal com o ferro para devolver-lhes a sauacutede
A tradiccedilatildeo meacutedica incluiacutea uma mistura de curas que podiam genuinamente ser
observadas e uma medicina popular considerada maacutegica Uma parte dos que exerciam a
medicina maacutegica eram mulheres embora a maioria delas trabalhasse como parteiras
Os templos de Ascleacutepio foram encontrados em todo o mundo mediterracircneo
Nesses templos o processo de cura consistia mais em repouso massagem e uma dieta
modificada do que aquilo que poderiacuteamos chamar de medicina Um meacutetodo de cura que
se tornou conhecido foi a ldquoincubaccedilatildeordquo em que o doente dormia confinado no templo de
Ascleacutepio na esperanccedila de receber uma revelaccedilatildeo daquele deus por meio de sonho
Aqueles que haviam sido curados faziam contribuiccedilotildees especiais para os templos que
frequentemente incluiacuteam reproduccedilotildees de gesso de quaisquer partes de seus corpos que
tivessem sido curadas Estes eram colocados em exibiccedilatildeo como testemunhos do poder de
cura do deus
Um relato que corroborou esse processo foi o de Eacutelio Aristides orador e tambeacutem
um portador de doenccedila crocircnica que no seacuteculo da nossa era em seus Hieroigrave Loacutegoi nos daacute
uma visatildeo da necessidade que as pessoas tinham pela cura bem como os meacutetodos
empregados para esse fim Depois tentar vaacuterios procedimentos meacutedicos Aristides tornou-
se um devoto de Ascleacutepio As curas prescritas para ele nos sonhos incluiacuteam accedilotildees como
banhar-se em um rio agitado durante o inverno derramar lama em si mesmo antes de se
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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assentar no paacutetio do templo andar sem sapatos todo o inverno e fazer sangria de vaacuterias
partes do seu corpo
A teacutecnica maacutegica portanto ao longo da histoacuteria foi um recurso utilizado como
tentativa de controlar o mundo natural atraveacutes de forccedilas consideradas sobrenaturais Essa
teacutecnica era ensinada somente aos iniciados e envolviam a arte da adivinhaccedilatildeo o preparo
de feiticcedilos e poccedilotildees a realizaccedilatildeo de rituais e cerimocircnias bem como a maneira correta de
se invocar deuses e espiacuteritos Quando realizados dentro dos templos tais procedimentos
eram considerados parte da religiatildeo Quando realizados fora eram classificado como
magia
A ideia de inferioridade feminina que perpassa toda a histoacuteria natildeo tem registro de
quando comeccedilou Desde a Antiguidade temos concepccedilotildees como a de Pitaacutegoras que
relacionava a mulher ao lado negativo ao dizer que ldquoHaacute um princiacutepio bom que criou a
ordem a luz e o homem e um princiacutepio mau que criou o caos as trevas e a mulherrdquo
(PITAacuteGORAS apud BEAUVOIR 1997 p 6)
Os elos que ligaram a imagem da mulher ao obscuro ao caos e ao infortuacutenio
masculino foram delineados e reforccedilados por figuras arquetiacutepicas como Pandora Lilith
e a proacutepria Eva Da mesma maneira as goeteacutes foram chamadas de charlatatildees quando natildeo
obtinham o resultado desejado ao evocarem os deuses e tentarem por teacutecnicas diversas
atender agrave solicitaccedilatildeo de algueacutem que recorria agraves praacuteticas maacutegicas para resolver problemas
particulares Essas solicitaccedilotildees normalmente envolviam uma accedilatildeo que prejudicaria
algueacutem fato que serviu para atenuar a fama negativa das goeteacutes
Ainda hoje encontramos aspectos desse tipo de comportamento maacutegico presentes
nos procedimentos considerados maacutegico-religiosos ou na proacutepria literatura ficcional que
demonstram a forccedila da seleccedilatildeo vocabular e da sonoridade provocada pela repeticcedilatildeo de
palavras e desejos com o uacutenico objetivo de concretizar desejos nem sempre passiacuteveis de
serem expressos em outras circunstacircncias Este eacute o caso da poesia citada abaixo
A VOLTA DA MULHER MORENA Vinicius de Moraes
Meus amigos meus irmatildeos cegai os olhos da mulher morena
Que os olhos da mulher morena estatildeo me envolvendo
E estatildeo me despertando de noite Meus amigos meus irmatildeos cortai os laacutebios
da mulher morena Eles satildeo maduros e uacutemidos e inquietos
E sabem tirar a voluacutepia de todos os frios
Meus amigos meus irmatildeos e voacutes que amais a poesia da minha alma
Cortai os peitos da mulher morena
Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono
E trazem cores tristes para os meus olhos
Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes
Traze-me para o contato casto de tuas vestes
Salva-me dos braccedilos da mulher morena
Eles satildeo lassos ficam estendidos imoacuteveis ao longo de mim
Satildeo como raiacutezes recendendo resina fresca
Satildeo como dois silecircncios que me paralisam
Aventureira do Rio da Vida compra o meu corpo da mulher morena
Livra-me do seu ventre como a campina matinal
Livra-me do seu dorso como a aacutegua escorrendo fria
Branca avozinha dos caminhos reza para ir embora a mulher morena
Reza para murcharem as pernas da mulher morena
Reza para a velhice roer dentro da mulher morena
Que a mulher morena estaacute encurvando os meus ombros
E estaacute trazendo tosse maacute para o meu peito
Meus amigos meus irmatildeos e voacutes todos que guardais ainda meus uacuteltimos
cantos
Dai morte cruel agrave mulher morena
Dulcileide V do Nascimento Braga
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O texto de Viniacutecius dialoga com o texto de Platatildeo citado anteriormente em que
faz menccedilatildeo agraves bonequinhas de cera utilizadas para fazer magia A finalidade dessas
bonecas conhecidas posteriormente por bonecas de vodu era gradativamente extinguir
a funcionalidade de determinados oacutergatildeos (cegar calar impedir de andar roer por dentro)
ateacute provocar a morte ldquodaiacute morte cruel agrave mulher morenardquo
O princiacutepio ldquose natildeo eacute meu natildeo seraacute de mais ningueacutemrdquo estaacute impliacutecito em inuacutemeros
encantamentos contidos nos PGM e representa natildeo soacute o desejo daquelea que foi
abandonadoa de se vingar de quem oa abandonou como tambeacutem o desejo de se livrar
daquelea que emocionalmente lhe causa mal
A voz humana eacute portanto o instrumento que potencializa a forccedila do pensamento
concretizando-os atraveacutes das palavras
Portanto a palavra quer cantada pronunciada em forma de versos ou balbuciada
em forma de encantamentos ou foacutermulas invocatoacuterias faz parte do universo sonoro grego
como forma de perpetuar segredos e manifestar um poder
Ainda hoje tentamos aprender sobre esta teacutechne que capacitava o indiviacuteduo a
concretizar desejos entretanto esbarramos nas lacunas temporais miacuteticas e religiosas
cujas entrelinhas foram desfeitas com o passar dos anos e que intencionalmente ou natildeo
desabilitaram a humanidade a obter o desejado com a mesma constacircncia com que eram
obtidas no passado
Os ritos religiosos continuam a utilizar a magia das palavras mas algumas
palavras tornaram-se impronunciaacuteveis e permanecem trancafiadas nas prisotildees silenciosas
do descaso cabe portanto a noacutes pronunciaacute-las ou natildeo reconhecendo a influecircncia que os
profissionais da magia tiveram e tecircm nas accedilotildees atemporais denominadas sobrenaturais
REFEREcircNCIAS
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946515
A AGOGEacute ESPARTANA
Luciene de Lima Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem O
desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo deviam ter
medo de nada sendo resistentes aos ferimentos odiando qualquer demonstraccedilatildeo de
covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Cada espartano tinha de ser um soldado
perfeito e sua maior gloacuteria era morrer em batalha retornar derrotado jamais Desse modo
toda a sociedade e educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases
atribuiacutedas agraves matildees espartanas era ldquoespero que meu filho volte com o seu escudo ou
deitado sobre elerdquo Assim eacute que este artigo tem por escopo discorrer a respeito da agogeacute
espartana que era um tipo de educaccedilatildeo peculiar com fins extremamente belicosos
PALAVRAS-CHAVE Esparta agogeacute guerra Licurgo
THE SPARTAN AGOGEacute
ABSTRACT In Sparta courage was part of the formation of a manrsquos character The
development of courage was a Spartan obsession Spartans should not be afraid of
anything showing themselves resistant to wounds They hated any type of cowardice and
were extremely dedicated to the poacutelis Each Spartan male had to be a perfect soldier and
the ultimate glory was to die in battle to never come back defeated Given this Spartan
society and education was focused on war One famous sentence related to Spartan
mothers was ldquoI hope my son comes back with his shield - or on itrdquo Thus this article has
as its scope the discussion of the practices of Spartan agogeacute their very peculiar
education with extremely bellicose objectives
KEYWORDS Sparta agogeacute war Lycurgus
Esparta tem de pleno direito um lugar na histoacuteria da educaccedilatildeo A
criaccedilatildeo mais caracteriacutestica de Esparta eacute o seu estado e o Estado
representa aqui pela primeira vez uma forccedila educadora no mais vasto
sentido da palavra (Werner Jaeger)
E-mail oliveira-lluolcombr
A agogeacute espartana
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Esparta tambeacutem intitulada Lacedemocircnia era a principal cidade de uma regiatildeo
denominada Lacocircnia na regiatildeo do Peloponeso A cidade localizava-se agraves margens do rio
Eurotas cercada de montanhas a nordeste
Os primeiros invasores da regiatildeo foram os aqueus esses expulsaram os povos preacute-
helecircnicos que ali habitavam e fundaram a cidade de Lacedemocircnia
A migraccedilatildeo doacuterica eacute o uacuteltimo dos movimentos de povos possivelmente
originaacuterios da Europa Central que a partir da Peniacutensula Balcacircnica entraram na Greacutecia e
se misturaram com os povos de outras raccedilas mediterracircneas ali fixadas primitivamente
constituindo assim o povo helecircnico
Os doacuterios ao se apoderarem da maior parte do Peloponeso invadiram Creta e
foram os responsaacuteveis pela colonizaccedilatildeo de algumas ilhas Ciclaacutedicas e Espoacuteradas Os
espartanos satildeo considerados descendentes dos doacuterios1 esses tinham por caracteriacutestica
peculiar a belicosidade
A cidade de Esparta era conhecida por usufruir de uma eunomiacutea ldquouma boa
legislaccedilatildeordquo De acordo com a tradiccedilatildeo Licurgo apoacutes consultar o oraacuteculo de Delfos2 teria
dado agrave Esparta leis para a vida social e econocircmica citem-se por exemplo a proibiccedilatildeo do
comeacutercio e a utilizaccedilatildeo de metais preciosos que foram substituiacutedos por moedas de ferro
instituiu uma educaccedilatildeo rigorosa as refeiccedilotildees coletivas regulamentaccedilatildeo do casamento a
maneira de viver etc
Os espartanos eram considerados xenofoacutebicos Plutarco escreve que eles natildeo
tinham permissatildeo para sair da cidade pois poderiam trazer costumes estranhos e
desordenados para dentro da cidade Os estrangeiros que residiam em Esparta foram
expulsos com exceccedilatildeo daqueles que faziam algo de uacutetil para a cidade Aleacutem do mais natildeo
comercializavam com o estrangeiro nenhum navio de fora entrava no porto para ali
comercializar (PLUTARCO Licurgo XIV LVII In Vidas Paralelas)
Ora foi o historiador Heroacutedoto o primeiro a retratar Licurgo como o idealizador
da eunomiacutea se dedicando ldquoagraves coisas relacionadas com a guerrardquo (HERODOTO Histoacuteria
I) Na Antiguidade jaacute havia duacutevidas sobre a sua eacutepoca e ateacute mesmo sua existecircncia
Os espartanos ndash ao contraacuterio de outros grupos ndash natildeo desenvolveram relaccedilotildees
culturais e comerciais externas sua crescente populaccedilatildeo soacute encontrou um meio de
expandir-se pelas armas
Xenofonte inclusive indaga como Esparta uma das cidades menos povoadas
tornou-se a mais poderosa e famosa dentre toda a Heacutelade (JENOFONTE La Republica
de los Lacedemonios I 1-2)
O vocaacutebulo que os espartanos empregavam para designar ldquoeducaccedilatildeordquo era agogeacute
que proveacutem do verbo aacutego ldquotransporto conduzordquo Os filoacutesofos Platatildeo (PLATAtildeO Leis
1 O helenista Jaeger faz a seguinte ponderaccedilatildeo a respeito dos doacuterios ldquoa raccedila doacuterica ofereceu a Piacutendaro o
seu ideal de homem loiro de alta estirpe tal como era representado natildeo soacute o Menelau de Homero como
tambeacutem o heroacutei Aquiles e de um modo geral os ldquohelenos de loira cabeleirardquo da antiguidade heroica
(JAEGER 2001 p 111) 2 Esparta pelo vieacutes poliacutetico constituiacutea uma diarquia hereditaacuteria real Acredita-se que Licurgo fora
descendente de uma das famiacutelias reais de Esparta a euripocircntida O legislador tinha um irmatildeo
rei mas apoacutes a morte daquele Licurgo subiria ao trono poreacutem o seu irmatildeo havia deixado um
descendente ainda no ventre de sua esposa Leobotas O legislador foi entatildeo tutor de seu
sobrinho Preocupado com a situaccedilatildeo de Esparta jaacute que o sobrinho era uma crianccedila Licurgo
se dirigiu a Delfos para receber conselhos diga-se leis escritas a rheacutetra em relaccedilatildeo a Esparta
(HEROacuteDOTO Histoacuteria I LXV) Sabe-se muita coisa de Licurgo por meio de Plutarco em
Vida de Licurgo
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659d) e Aristoacuteteles (ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1321) tambeacutem se referem a agogeacute como
ldquoeducaccedilatildeordquo
Entrementes Marrou emprega o termo ldquoadestramentordquo para traduzir agogeacute e
chama a atenccedilatildeo para o fato de ser ldquouma condiccedilatildeo necessaacuteria senatildeo suficiente para o
exerciacutecio dos direitos ciacutevicosrdquo (MARROU 1966 p 41) O helenista considera que a
educaccedilatildeo em Esparta possui natildeo soacute um lugar especial na histoacuteria da educaccedilatildeo como
tambeacutem na cultura grega (Op cit p 33)
Todos os cidadatildeos espartanos tinham uma participaccedilatildeo ativa na educaccedilatildeo militar
constituindo uma casta aristocraacutetica a priori lembrando a educaccedilatildeo da antiga nobreza
grega Natildeo obstante foi mais tarde estendida agravequeles que natildeo faziam parte da nobreza
Jaeger expotildee que mesmo que Licurgo tenha realmente existido e criado a rheacutetra
ldquoleis escritasrdquo que o poeta Tirteu (4W 1-10) bem a conhecia jaacute no seacuteculo VII aC natildeo
adiantaria muito saber a respeito da origem da educaccedilatildeo espartana conforme Xenofonte
a descreve (JAEGER 2001 p 114)
O pesquisador considera tambeacutem a agogeacute como ldquoo adestramento espartanordquo que
nada mais era do que o ideal do movimento educativo do seacuteculo IV aC (Op cit p 115)
O helenista destaca que a crenccedila de que a educaccedilatildeo espartana era uma preparaccedilatildeo militar
tinha sua origem na Poliacutetica de Aristoacuteteles Platatildeo igualmente jaacute havia definido essa
ideia quando relata nas suas Leis o espiacuterito do Estado de Licurgo (Op cit p 110)
As crianccedilas futuros guerreiros de Esparta eram ldquocriadasrdquo anatropheacute por seus
pais em suas casas ateacute os sete anos de idade depois essa tarefa era assumida pelo
governo sendo treinados para a obediecircncia em situaccedilotildees penosas e difiacuteceis3
Desse modo Licurgo natildeo colocou a educaccedilatildeo nas matildeos nem de mercenaacuterios nem
de servos comprados os pais natildeo poderiam educar seus filhos a seu bel prazer Quando
completavam sete anos eram divididos em grupos a fim de serem educados juntos e
brincassem entre si aprender e estudar uns com os outros Aquele que sobressaiacutesse e fosse
mais valente em combate se tornaria o liacuteder de todo o grupo os outros deveriam obedecer
as suas ordens O legislador considerava a educaccedilatildeo das crianccedilas como a coisa mais bela
que um legislador pudesse estabelecer (PLUTARCO Licurgo XXV XXXIII In Vidas
Paralelas)
Dos sete aos quinze anos eram instruiacutedos nas letras e nos caacutelculos e naturalmente
nos hinos do poeta Tirteu que ressaltavam a bravura e a coragem destemida
Na etapa final entre dezesseis e vinte anos quando denominados de eireacuten um
pouco antes de entrarem no serviccedilo da poacutelis eram treinados a manusear as armas na luta
com lanccedilas e espadas no arco e flecha Com isso a carga dos exerciacutecios e as operaccedilotildees
militares simuladas nas montanhas ao redor da poacutelis eram aumentadas
Plutarco daacute o seguinte testemunho
Quanto agraves letras aprendiam somente o necessaacuterio e em suma todo o
aprendizado consistia em bem obedecer suportar o trabalho e obter a vitoacuteria
em combate Por essa razatildeo agrave medida que avanccedilavam em idade aumentavam-
lhes tambeacutem os exerciacutecios corporais raspavam-lhes os
cabelos faziam-nos andar descalccedilos e os constrangiam a brincar juntos a maior
parte do tempo inteiramente nus depois quando chegavam agrave idade de doze
anos natildeo mais usavam saios daiacute por diante pois todos os anos lhes davam
somente uma tuacutenica simples o que era causa de andarem sempre sujos e
3 Plutarco daacute testemunho que estrangeiros se dirigiam ateacute a Lacocircnia para contratarem amas para criarem
seus filhos (PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)
A agogeacute espartana
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ensebados como aqueles que natildeo se lavavam nem se untavam senatildeo em certos
dias do ano quando os faziam gozar um pouco dessa doccedilura Deitavam e
dormiam juntos sobre enxergas que eles proacuteprios fabricavam com pontas dos
juncos e caniccedilos que cresciam no rio Eurotas os quais eles proacuteprios deviam ir
colher e quebrar somente com as matildeos sem nenhuma ferramenta mas no
inverno ajuntavam a isso e misturavam no meio o que se chama Lycophanos
porque parece que essa mateacuteria tem em si um pouco de calor (PLUTARCO
Licurgo XXIV In Vidas Paralelas)
A agogeacute propriamente dita se iniciava aos sete anos e finalizava ateacute os vinte anos
compreendendo portanto um periacuteodo de treze anos Havia a supervisatildeo de um
paidonoacutemos uma espeacutecie de magistrado especial
Marrou oferece a seguinte divisatildeo da agogeacute agrupados em trecircs ciclos (MARROU
1966 p 42)
Oitavo ano ao deacutecimo primeiro ano
a) rhobiacutedas (termo obscuro)
b) promikkizoacutemenos (meninote)
c) mikki(khi)zoacutemenos (menino)
Deacutecimo segundo ano ao deacutecimo quinto ano
a) pratopaacutempais (rapaz jaacute maduro de primeiro ano)
b) hatropaacutempais (rapaz jaacute maduro de segundo ano)
c) melleiacuteren (futuro irene)
d) melleiacuteren (irene de segundo ano)
Deacutecimo sexto ano ao vigeacutesimo ano
a) eireacuten de primeiro ano
b) eireacuten de segundo ano
c) eireacuten de terceiro ano
d) eireacuten de quarto ano
e) proteicircras (irene-chefe)
O historiador francecircs pontua que os meninos espartanos eram divididos em
unidades (iacutelai ou ageacutelai) comandadas pelos jovens maiores os proteicircrai de vinte anos
que eram os mais velhos dentre os irenes (Op cit p 43)
Plutarco lembra que os espartanos ldquonatildeo usam de muita linguagemrdquo eram
lacocircnicos ldquopessoas de poucas palavrasrdquo como resultado natildeo se expressavam com
propriedade mas nada os impedia de serem bem compreendidos pelos ouvintes O
bioacutegrafo sublinha que o proacuteprio Licurgo era breve no falar Interessante destacar que era
proibido entrar em Esparta algum retoacuterico para ensinar a arte da persuasatildeo ao povo Natildeo
obstante os espartanos eram exiacutemios compositores de belos cacircnticos em que incitavam
a coragem (PLUTARCO Licurgo XIV XL XLIV In Vidas Paralelas)
Quando estavam reunidos em Conselho os cidadatildeos espartanos natildeo poderiam
deliberar indagar seus superiores muito menos apresentar alguma opiniatildeo lhes era
permitido somente aprovar ou reprovar os informes propostos pelos reis ou senadores
(Op cit X)
O futuro guerreiro tinha de ter por haacutebitos a modeacutestia andar nas ruas com as
matildeos dentro do manto e caminhar em silecircncio sem dirigir o olhar a nenhum lugar apenas
olhando em direccedilatildeo a seus proacuteprios peacutes O historiador Xenofonte compara o jovem
Luciene de Lima Oliveira
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espartano que anda em silecircncio e de olhos baixos a uma estaacutetua de virgem
(JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)
Entre vinte e trinta anos os espartanos eram obrigados a se casar mas a vida
familiar natildeo era lhes permitida soacute depois dos trinta podiam deixar de dormir nos
acampamentos militares
A fim de dotar de coragem os seus infantes em Esparta havia a kryptiacutea um
ldquoesquadratildeo de extermiacuteniordquo que estimulava os jovens selecionados a caccedilarem sozinhos ou
em grupos os hilotas ou seja os escravos que por um acaso andassem desgarrados ou
que de alguma forma representassem pelo seu vigor fiacutesico uma ameaccedila agrave seguranccedila da
poacutelis Os hilotas quando localizados eram vitimados pela espada ou pela lanccedila armas
que o grupo de jovens sempre trazia consigo (PLUTARCO Licurgo LVIII In Vidas
Paralelas)
Os jovens espartanos estavam sempre forccedilando seus corpos ao limite cultivando
a excelecircncia da forccedila fiacutesica Aristoacuteteles destaca que de entre as cidades que mais se
preocupavam com a educaccedilatildeo infantil a maioria procurava aperfeiccediloaacute-la por meio de uma
disposiccedilatildeo atleacutetica O filoacutesofo sublinha que os espartanos davam para os futuros
guerreiros trabalhos aacuterduos como se essa atitude fosse vista como adequada para o culto
da bravura (ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1338b 10-15)
O estagirita ressalta que natildeo eacute contra a ginaacutestica mas deve-se praticaacute-la com
moderaccedilatildeo ateacute a adolescecircncia evitando exerciacutecios forccedilosos pois podem resultar em
prejuiacutezos para o corpo Daacute como exemplo que de entre os vencedores dos jogos
Oliacutempicos tem apenas dois ou trecircs espartanos vitoriosos Acredita que isso se daacute ao fato
de terem sido sujeitos desde crianccedila a treinos fiacutesicos extremos que acabaram por exaurir
suas forccedilas (Op cit II 1338b 35-40 1339a 1-5)
Aristoacuteteles sublinha que toda a organizaccedilatildeo legislativa dos espartanos tinha como
objetivo uma forma de virtude o valor guerreiro uma vez que eacute uacutetil para dominar Como
resultado disso o vigor e a forccedila dos espartanos foram preservados enquanto estiveram
em guerra mas houve um decliacutenio a partir do momento que alcanccedilaram a supremacia Na
verdade natildeo sabiam viver em paz aleacutem do mais natildeo haviam se exercitado em outra
disciplina superior agrave arte da guerra (Op cit II 1271b 1-10)
Jaeger sustenta que na vida dos espartanos por meio de uma educaccedilatildeo
diferenciada percebe-se um ideal de educaccedilatildeo anaacutelogo ao que Platatildeo propotildee na
Repuacuteblica A propoacutesito Platatildeo e outros teoacutericos da educaccedilatildeo posteriores tiveram Esparta
por paradigma em muitos aspectos (JAEGER 2001 p 112)
A necessidade de imposiccedilatildeo dos espartanos sobre a grande maioria de hilotas
(escravos que natildeo possuiacuteam direito algum) que a qualquer momento poderiam se
rebelar teve muita importacircncia na formaccedilatildeo da agogeacute espartana
Ora com as muitas conquistas espartanas havia sempre a iminecircncia de uma
revolta por parte dos povos conquistados Eacute fato que os povos conquistados constituiacuteam
em maior nuacutemero do que os conquistadores espartanos
Acredita-se que no final do seacuteculo VI aC depois da conquista da Messecircnia o
estado espartano completou sua organizaccedilatildeo transformando-se em um verdadeiro
ldquoacampamento militarrdquo permanente
Os resquiacutecios arqueoloacutegicos atestam que ateacute o seacuteculo VI aC Esparta era
dominada por uma aristocracia de grandes proprietaacuterios Devido agraves duas grandes guerras
pela conquista da Messecircnia houve um aumento consideraacutevel daqueles que poderiam
participar da funccedilatildeo guerreira e que se beneficiaram pela distribuiccedilatildeo de lotes de cleroacutei
A agogeacute espartana
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da regiatildeo conquistada Por outro lado os messecircnios foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de
hilotas A respeito da segunda guerra da Messecircnia4 Mosseacute escreve
Esparta parece ter se fechado em si mesma com a decadecircncia do artesanato e
o desaparecimento do uso da moeda de prata Diante da massa de populaccedilotildees
dependentes (hilotas da Lacocircnia e da Messecircnia periecos da Lacocircnia motacos
neodamodos etc) a classe guerreira dos homoioiacute dos semelhantes formada
pelo conjunto dos cidadatildeos espartanos passa a ser um grupo privilegiado que
vive recluso em perpeacutetuo estado de defesa Essa eacute a origem da vida austera que
tanto impressionava seus contemporacircneos e permitia a Esparta desempenhar
papel preponderante no mundo grego (MOSSEacute 2004 p 121) Com efeito
muitas disposiccedilotildees referentes agrave educaccedilatildeo e ao casamento natildeo deixam de evocar
os programas educativos elaborados por Platatildeo na Repuacuteblica e nas Leis Platatildeo
teria tomado o modelo espartano como inspiraccedilatildeo ou nos seacuteculos seguintes
esse modelo teria sido construiacutedo a partir das disposiccedilotildees imaginadas por
Platatildeo para suas cidades ideais Essa eacute uma pergunta de resposta difiacutecil O que
eacute inquestionaacutevel eacute o caraacuteter peculiar da educaccedilatildeo espartana essa agogeacute que
espantava os atenienses da eacutepoca claacutessica especialmente na medida em que
tambeacutem atingia as mulheres (Op cit p 189)
Ressalte-se que a guerra eacute um dos fenocircmenos a ser evitado mas que
frequentemente ocorre nas sociedades humanas Em O Homem Grego obra organizada
por Vernant o ensaio de Garlan denominado ldquoO Homem e a Guerrardquo eacute relevante pois
de acordo com Garlan embora o homem grego ldquonatildeo pudesse ser definido como algueacutem
que gosta da violecircncia pela violecircnciardquo isto eacute como um homo militaris muitos satildeo os
conflitos em que eles se envolveram sobretudo na eacutepoca arcaica e claacutessica Para Garlan
eacute ldquocomo se a paz fosse desde o primeiro momento considerada precaacuteria ou mesmo
concebida como uma espeacutecie de treacutegua prolongadardquo (GARLAN apud VERNANT 1994
pp 49-50)
Em uma sociedade predominantemente guerreira como a espartana a covardia de
um guerreiro era vista com repugnacircncia assim a desonra em Esparta acompanhava os
covardes sendo preferiacutevel a morte a uma vida infame e desonrosa Eacute um guerreiro que
natildeo merecia nenhuma timeacute ldquohonrardquo pois tem como aliados a atimiacutee ldquodesonrardquo e a
kakoacutetes ldquocovardiardquo Consequentemente este homem eacute algueacutem sem aidoacutes ou seja
algueacutem que natildeo eacute digno ldquode respeitordquo ldquode consideraccedilatildeordquo Haacute pois uma conexatildeo clara
entre aidoacutes ldquorespeitordquo e timeacute ldquohonrardquo na sociedade espartana
O binocircmio aidoacutes ldquorespeitordquo e aiskhryacutene ldquovergonhardquo satildeo vocaacutebulos que estatildeo
presentes no estatuto ciacutevico de Esparta como pontua Nicole Loraux (LORAUX 1989 p
82)
O desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo
poderiam ter medo de nada deveriam ser resistentes aos ferimentos odiando qualquer
4 Houve duas guerras entre Messecircnia e Esparta Na primeira os espartanos sob a lideranccedila do rei
Theopompo foram vencedores Os messecircnios eram comandados por Aristomenes Segundo Heroacutedoto
(HEROacuteDOTO Histoacuteria VIII 1312) o rei Theopompo pertencia agrave oitava geraccedilatildeo antes de Leoticidas
que governou de 491 a 469 aC Depois de cinquenta anos de opressatildeo os messecircnios se revoltaram com
a ajuda de aliados de Argos Arcaacutedia e Pisa Essa rebeliatildeo eacute conhecida como Segunda Guerra da
Messecircnia Campbell afirma que eacute difiacutecil estabelecer a cronologia das duas guerras (CAMPBELL 1967
p 169) Costuma-se contudo fixar o periacuteodo da primeira guerra em torno da segunda metade do seacuteculo
VIII aC mais precisamente entre 735 e 715 aC e a segunda guerra que teria durado aproximadamente
vinte e dois anos na segunda metade do seacuteculo VII aC por volta de 640-650 aC
Luciene de Lima Oliveira
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demonstraccedilatildeo de covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Toda a sociedade e
educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases atribuiacutedas agraves matildees
espartanas era ldquoespero que o meu filho volte com o seu escudo ou deitado sobre elerdquo
Cada espartano era formado para ser um soldado perfeito e sua maior gloacuteria era
morrer em batalha retornar derrotado jamais Digno de nota satildeo os versos tirteanos
ldquoLutemos com ardor por esta terra e pelos filhos morramos sem pouparmos nossas
vidasrdquo (10 W 13-14)
Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem A
propoacutesito Platatildeo era tambeacutem a favor da valentia de um guerreiro no campo de batalha
(PLATAtildeO Repuacuteblica 468e)
Os dois primeiros versos do fragmento 10W de Tirteu pontua dessa mentalidade
de morrer pela poacutelis ldquoeacute belo morrer caindo entre os combatentes das primeiras filas um
homem valente ao combater por sua terrardquo (10W 1-2)
A morte eacute bela quando eacute a de um heroacutei que morre pela cidade Esta ideia daacute agrave
morte o sentido de um ldquosacrifiacuteciordquo do proacuteprio cidadatildeo em prol de um bem mais alto ldquoa
morte gloriosardquo No mesmo fragmento aliaacutes o poeta contrasta a morte gloriosa no campo
de batalha com a vida desventurada e errante do homem que natildeo cumpriu na guerra seus
direitos de cidadatildeo e se viu na necessidade de deixar a cidade (10W 9-12)
A linguagem de Tirteu eacute em grande parte herdeira de tradiccedilatildeo eacutepica De um modo
geral as suas elegias demonstram um amplo conhecimento do vocabulaacuterio da Iliacuteada e da
Odisseia quando descreve a luta sangrenta e o heroiacutesmo guerreiro O ideal espartano eacute
proacuteximo da epopeia no que diz respeito agrave bravura apesar de pertencerem a tempos
literaacuterios diferentes
Jaeger destaca que os versos tirteanos eacute o primeiro testemunho do ideal poliacutetico e
guerreiro tendo mais adiante a sua realizaccedilatildeo na totalidade da educaccedilatildeo espartana ldquoos
seus poemas deixam ver claramente que a educaccedilatildeo espartana tal como as eacutepocas
seguintes a conheceram natildeo era uma coisa acabada mas estava em processo de
formaccedilatildeordquo (JAEGER 2001 p 115)
Qualquer fraqueza demonstrada era vista como pusilanimidade algo
veementemente repelido do seio daquela sociedade
Natildeo comeceis a fuga vergonhosa nem o medo
mas tornai grande e ardoroso o coraccedilatildeo no peito
natildeo ameis a vida ao combaterdes contra homens (10 W 16-18)
O modo de vida era regulamentado em funccedilatildeo das necessidades do Estado e
tinham consciecircncia de natildeo pertencerem a si proacuteprios mas agrave poacutelis
Em suma estimavam todos que natildeo tinham nascido para servirem a si mesmos
antes para servir o paiacutes e portanto se outra coisa natildeo lhes era recomendada
continuavam sempre a ir ver o que faziam os meninos e a ensinar-lhes alguma
coisa que resultasse em utilidade puacuteblica ou ainda a aprender eles proacuteprios
com os que eram mais idosos do que eles (PLUTARCO Licurgo LI In
Vidas Paralelas)
Licurgo teria imposto que os espartanos tivessem uma vida de austeridade por
exemplo diz-se que eram obrigados a fazerem as refeiccedilotildees em comum em torno de um
caldo negro (PLUTARCO Licurgo XXI In Vidas Paralelas)
Plutarco daacute testemunho dessa coletividade
A agogeacute espartana
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Em suma acostumou os cidadatildeos a natildeo quererem e natildeo poder jamais viver soacutes
antes serem por assim dizer colados e incorporados uns com os outros e a se
acharem sempre juntos como as abelhas em torno dos superiores saindo de
si mesmos quase por um arrebatamento de amor para com o paiacutes e de desejo
de honra para servir inteiramente ao bem da coisa puacuteblica (Op cit LIV In
Vidas Paralelas)
Eacute bom lembrar que Licurgo ordenou que os espartanos fizessem as mesmas
refeiccedilotildees juntos era proibido se alimentarem agrave parte e em particular em grandes
banquetes (Op cit XV In Vidas Paralelas)
Conveacutem citar Aristoacuteteles ldquoacreditamos que a amizade eacute o maior dos bens para as
cidades porquanto pode ser o melhor meio de evitar revoltasrdquo (ARISTOacuteTELES Poliacutetica
II 1262b 7-8)
O estagirita faz uma criacutetica a respeito das refeiccedilotildees comuns intituladas de phidiacutetia
Para o filoacutesofo essas refeiccedilotildees deveriam ser pagas pelo tesouro puacuteblico tal qual em Creta
Entretanto em Esparta os cidadatildeos tinham de fazer uma contribuiccedilatildeo ateacute os pobres que
tinham dificuldades de arrumar dinheiro para essas refeiccedilotildees O objetivo de Licurgo era
que essas refeiccedilotildees fossem democraacuteticas ldquoa maneira espartana tradicional de fixar o
limiar da cidadania consiste em privar de participaccedilatildeo o que natildeo pode pagar a taxa das
refeiccedilotildees comunsrdquo (Op cit II 1271a 26-30)
De acordo com o historiador Xenofonte nas accedilotildees de guerra os lacedemocircnios
(espartanos) usavam traje vermelho para que natildeo se percebessem as manchas de sangue
Se morressem em combate eram enterrados com essas tuacutenicas (JENOFONTE La
Republica de los Lacedemonios)5
Na agogeacute espartana a sophrosyacutene (temperanccedila moderaccedilatildeo autocontrole) tem um
caraacuteter social sendo um comportamento imposto regulamentado marcado pelo
comedimento que o jovem deve observar em todas as circunstacircncias comedimento em
seu andar em seu olhar em suas expressotildees comedimento diante das mulheres em face
dos mais velhos comedimento aos prazeres agrave bebida
Desse modo o futuro guerreiro era exercitado em dominar seus extintos Na
verdade a agogeacute era precisamente destinada a experimentar esse poder de domiacutenio de
si A sophrosyacutene submete assim cada indiviacuteduo em suas relaccedilotildees com o proacuteximo em
contraste com a hyacutebris a ldquodesmedidardquo a ldquotransgressatildeordquo
O ideal da sophrosyacutene era o nada em excesso haacute uma tendecircncia na qual a
sophrosyacutene e a hyacutebris se encarnam respectivamente nos velhos e nos jovens (ideia que
seraacute mais clara nos traacutegicos)
A bela morte espartana deve ter ligaccedilatildeo com a cidadania ou melhor um criteacuterio
de cidadania sendo uma manifestaccedilatildeo ciacutevica (12W 18 34) Uma das diferenccedilas mais
acentuadas entre o mundo de Tirteu e dos poemas homeacutericos estaacute nas relaccedilotildees do
indiviacuteduo com a comunidade pois os guerreiros de Homero lutam pela gloacuteria individual
enquanto os heroacuteis de Tirteu combatem pela comunidade por suas famiacutelias e
dependentes Assinale-se que haacute na Iliacuteada XV 494-9 um episoacutedio em que Heitor estaacute
claramente lutando pela sobrevivecircncia de Troia
5 Para Jaeger a Constituiccedilatildeo (Repuacuteblica) dos Lacedemocircnios de Xenofonte eacute resultado do romantismo ldquomeio
filosoacutefico meio poliacutetico do seacuteculo IV aC o qual via no Estado espartano uma espeacutecie de revelaccedilatildeo
poliacutetica primordialrdquo (JAEGER 2001 p 109)
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A cidade espartana condena o ato de bravura de um soacute combater e permanecer
corajosamente no seu lugar na falange natildeo ceder agrave vontade de fugir encorajar seu
companheiro de linha eacute um bem comum para a cidade e para todo o povo
Heroacutedoto disserta a respeito do espartano Aristodamos que estava entre os
trezentos lacedemocircnios que tinham defendido as Termoacutepilas ele foi o uacutenico sobrevivente
mas preocupado em livrar-se do oproacutebio que os espartanos infligiram a essa
sobrevivecircncia o guerreiro saiu de seu posto do seu lugar na falange e procurou e
encontrou a morte em Plateia ao realizar faccedilanhas extraordinaacuterias (HEROacuteDOTO
Histoacuteria IX 71)
Aleacutem do exemplo de Aristodamos o historiador daacute testemunho de outro episoacutedio
nas Termoacutepilas em que os combatentes saindo de seus postos lutavam de maneira furiosa
em torno do corpo de Leocircnidas Quando as espadas dos espartanos foram quebradas eles
se defenderam com as matildeos e os dentes (Op cit VII 225) em um estado de furor
belicoso que se assemelhava aos heroacuteis homeacutericos Diomedes e Aquiles Os espartanos
abandonaram a sophrosyacutene e estavam claramente em estado de lyacutessa o que a cidade natildeo
tolerava
Todavia apesar de sua valentia os espartanos natildeo lhe concederam as honras
fuacutenebres devidas aos melhores isto eacute recusaram-lhe a aristeacuteia porque violara a lei de
permanecer em seu lugar na falange Possuiacutedo pela lyacutessa por um furor guerreiro
combateu furiosamente fora de seu posto
A virtude guerreira natildeo pertence agrave ordem do thymoacutes do impulso e sim da
sophrosyacutene a temperanccedila um domiacutenio muito grande para que o guerreiro pudesse refrear
seus impulsos e natildeo perturbasse a ordem da formaccedilatildeo em falange
A eacutetica militar espartana proiacutebe o estado de furor de lyacutessa Vernant destaca que a
cidade rejeita atitudes tradicionais da aristocracia que tem por costume a exaltaccedilatildeo do
prestiacutegio do poder dos indiviacuteduos e de colocaacute-los acima do comum satildeo considerados
como um descomedimento uma hyacutebris de igual modo o furor guerreiro e a busca no
combate de uma gloacuteria particular (VERNANT 2002 p 69)
Ateacute os sessenta anos os espartanos estavam sujeitos a participar das guerras
pertenciam ao Estado ate agrave morte As moccedilas natildeo eram tratadas de modo diverso acima
da famiacutelia vinha a poacutelis
Xenofonte destaca que Licurgo ordenou que o sexo feminino exercitasse tanto
quanto o masculino A mulher espartana tambeacutem tinha uma formaccedilatildeo regulamentada
cuja muacutesica a danccedila e o canto natildeo possuiacuteam tanta importacircncia quanto a ginaacutestica e o
esporte (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios 1 4)
As espartanas estavam a serviccedilo da cidade quando solteiras praticavam
exerciacutecios que a tornavam forte e saudaacutevel a fim de que seus corpos se tornassem riacutegidos
ao se exercitarem havia exerciacutecios de correr de lutar de jogar a barra e de lanccedilar o dardo
com o objetivo de gerarem filhos igualmente robustos e para suportarem as dores do
parto (PLUTARCO Licurgo XXV In Vidas Paralelas)
Havia a ideia entre os homens de que pai e matildee fortes gerariam igualmente filhos
mais vigorosos Por isso quando casada a missatildeo da mulher era dar ao Estado filhos
fortes grandes guerreiros e bons cidadatildeos Percebe-se que haacute uma preocupaccedilatildeo de
eugenia dentro da sociedade espartana
Os receacutem-nascidos eram observados e se constatada qualquer imperfeiccedilatildeo essas
crianccedilas consideradas ldquodefeituosasrdquo que tivessem qualquer tipo de doenccedila ou
deformidade eram sumariamente assassinadas sendo atiradas de um precipiacutecio Esses
A agogeacute espartana
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receacutem-nascidos natildeo estariam prontos para defender a cidade-estado e consequentemente
natildeo seriam bons guerreiros na fase adulta6
Entrementes depois que a crianccedila nascia [] mas se lhes parecia feia
disforme ou franzina mandavam atiraacute-la num precipiacutecio a que vulgarmente se
dava o nome de Apothetes isto eacute depositoacuterios pois tinham a opiniatildeo de que
natildeo era expediente nem para a crianccedila nem para a coisa puacuteblica que ela
vivesse visto como desde o nascimento natildeo se mostrava bem constituiacuteda para
ser forte satilde e rija durante toda a vida E por esse motivo as proacuteprias mulheres
que as governavam natildeo as lavavam com aacutegua simples como se faz por toda
parte mas com uma mistura de aacutegua e vinho e por esse meio experimentavam
se a compleiccedilatildeo e a tecircmpera de seus corpos era boa ou maacute porque dizem eles
que as crianccedilas sujeitas agrave epilepsia ou entatildeo catarrosas e doentias natildeo podem
resistir nem tolerar esse banho de vinho mas definham e caem em langor e
ao contraacuterio as que tecircm sauacutede se tornam mais rijas e mais fortes
(PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)
Aristoacuteteles sublinha que Licurgo com o objetivo de fazer com que os espartanos
fossem numerosos encorajava-os a terem o maior nuacutemero possiacutevel de filhos haacute a lei de
que o pai de trecircs filhos estaacute isento do serviccedilo militar e o de quatro livre de impostos
(ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1270b 1-5)
A renomada helenista Claude Mosseacute infere que seria interessante acreditar que
Esparta passou por uma seacuterie de etapas entre a adoccedilatildeo da falange hopliacutetica seacuteculo VII
aC e o ldquofechamento da cidade em si mesmardquo iniacutecio seacuteculo IV aC Aleacutem do mais a
rheacutetra que fora atribuiacuteda a um possiacutevel legislador Licurgo pode ter sido resultado de
uma possiacutevel abertura da falange aos membros do decircmos cuja participaccedilatildeo nas tomadas
de decisatildeo era reconhecida Em relaccedilatildeo agrave partilha de terras pode ter acontecido depois
do teacutermino da segunda guerra da Messecircnia (uacuteltimo quarto do seacuteculo VII aC) e a agogeacute
e o militarismo da cidade podem ter ocorridos no princiacutepio do seacuteculo VI aC tendo por
principal objetivo a defesa da cidade-estado espartana contra os povos da Lacocircnia e
Messecircnia que foram escravizados
A Esparta do seacuteculo VII aC estaacute empenhada em um movimento que leva as
aristocracias das diversas cidades ao luxo Depois a ruptura se daacute entre o final do seacuteculo
VII aC e o iniacutecio do VI aC concentra-se em si mesma repudiando a ostentaccedilatildeo da
riqueza proibindo o uso dos metais preciosos depois a moeda de ouro e de prata (o
dinheiro era feito de um ferro de maacute qualidade que natildeo deveria ser fundido em grandes
quantidades) permanece fora das correntes intelectuais fecha-se a tudo o que eacute
intercacircmbio com o estrangeiro comeacutercio atividade artesanal voltam-se sua preocupaccedilatildeo
para a guerra em defesa da poacutelis (MOSSEacute 2004 p 189-190)
Qualquer riqueza natildeo poderia ser exposta em puacuteblico os artesatildeos natildeo
confeccionavam luxos desnecessaacuterios como tapetes e adornos mas faziam muito bem
apenas o baacutesico pois a riqueza seria a causa de muitos males Xenofonte escreve que os
espartanos natildeo se adornavam com riquezas de vestuaacuterios exceto com a boa forma fiacutesica
de seus corpos (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)
Pode-se conceituar a agogeacute como uma educaccedilatildeo estatal com fins extremamente
belicosos que se estendia da infacircncia ateacute a adolescecircncia Nessa educaccedilatildeo os futuros
6 Esse costume natildeo ocorreu soacute em Esparta a Lei das XII taacutebuas na Roma antiga autorizava os patriarcas a
matar seus filhos fraacutegeis ou deficientes
Luciene de Lima Oliveira
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combatentes aprendiam as artes militares as manobras em campos de batalha e a ser
destemidos diante do inimigo
Infere-se que o principal objetivo da agogeacute era formar poderosos guerreiros para
a defesa da poacutelis Para isso uma riacutegida educaccedilatildeo foi imposta aos jovens e uma peculiar
maneira de viver aos adultos
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WEST Martin Iambi et Elegi Graeci ante Alexandrum Cantati New York Oxford
1992
DOI httpsdoiorg1012957principia201946485
HOMEM E MULHER OS CRIOU
Isabel Arco Verde Santos (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO O presente artigo retoma os textos da criaccedilatildeo e reflete reflete especificamente
na criaccedilatildeo da mulher Os termos hebraicos que acompanham a narrativa da criaccedilatildeo e se
relacionem com a figura feminina tecircm muito a nos contar Afinal qual o papel da mulher
e seu objetivo ao ser criada frente ao homem Haveria uma clara dimensatildeo de
superioridade ou inferioridade refletidas nestes relatos Em nossa sociedade de cultura
cristatilde o texto biacuteblico tem valor imensuraacutevel na relaccedilatildeo de gecircnero que vivemos em nossa
sociedade Voltar o olhar ao texto biacuteblico e buscar nele caminhos a partir da criacutetica textual
eacute uma forma de buscar respostas para diminuir as injusticcedilas que separam homens e
mulheres
PALAVRAS-CHAVE relatos de criaccedilatildeo relaccedilatildeo homem mulher Eva e Lilith
MALE AND FEMALE CREATED HE THEM
ABSTRACT This article analyzes the Hebrew texts of creation and reflects specifically
on the creation of women The Hebrew terms that accompany the creation narrative and
relate to the female figure have much to tell us What is the function of women and their
purpose when being created Would there be a clear dimension of superiority or
inferiority between men and women reflected in these texts In our Christian culture
society the biblical text has immeasurable value in the gender relationship we live in our
society Turning to the biblical text through textual criticism is a way of seeking answers
to reduce the injustices that separate men and women
KEYWORDS creation texts men and women relationship Eva and Lilith
Nosso objetivo neste primeiro momento eacute tratar do texto da criaccedilatildeo do homem e
da mulher Este texto eacute baacutesico para qualquer discussatildeo Os textos que iremos usar
encontram-se todos no livro de Bereshit ou Gecircnesis Eacute o primeiro livro da Torah ou
Pentateuco e traz nos seus primeiros capiacutetulos o relato da criaccedilatildeo
Eacute possiacutevel identificar dois relatos diferentes para esta histoacuteria Histoacuterias de
enfoques diferentes e origens tambeacutem diferentes O primeiro encontra-se em Gecircnesis
126-31 O segundo no capiacutetulo 215 a 24 deste mesmo livro Ambos tratam da criaccedilatildeo
do ser humano homem e mulher
No primeiro texto a designaccedilatildeo hebraica usada para homem eacute zakhar1 e neqebah2
para a mulher Estes termos indicam o que eacute masculino e o que eacute feminino E-mail verdesantosuolcombr 1 Zainkafresh 2 Nunqophbeit
Homem e mulher os criou
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respectivamente O termo para masculino eacute da mesma raiz do verbo lembrar trazer a
memoacuteria O termo para feminino tem uma ideia mais ampla em sua raiz verbal mas para
o texto destaca-se a ideia de efeminar tornar feminino
Alguns autores interpretam a partir deste texto biacuteblico a criaccedilatildeo de um ser
androacutegino Adatildeo o primeiro homem seria ao mesmo tempo homem e mulher isto
porque no relato no verso 26 primeiramente acontece o termo Adam sem artigo e sem
a partiacutecula acusativa o que indicaria a criaccedilatildeo da humanidade uma coletividade o
chamado Adatildeo primordial3 Assim este verso no portuguecircs ficaria E disse Deus faccedilamos
(a) humanidade com nossa imagem e semelhanccedila
No verso 27 quando Deus abenccediloa a criaccedilatildeo desta humanidade o termo Adam
vem agora acompanhado de artigo HaAdam e da partiacutecula acusativa Aqui como haacute o
artigo antes do nome Adam entendemos que natildeo soacute o ser denominado Adatildeo estaacute sendo
abenccediloado pois em hebraico o artigo nunca ocorre antes de nome proacuteprio mas uma
indicaccedilatildeo definida daquilo que se estaacute abenccediloando Natildeo um ser humano qualquer mas o
ser humano criado
O texto pode ser traduzido entatildeo assim E abenccediloou Deus o ser humano com sua
imagem Com imagem de Deus o criou (ser humano - refere-se ao termo masculino
HaAdam) macho e fecircmea os criou A ideia androacutegina seria difiacutecil de contestar caso o
pronome que sucede o verbo criar no estivesse no plural Criou a eles e natildeo a ele
A ordem divina entende que o domiacutenio sobre a criaccedilatildeo eacute dado indiferentemente a Adatildeo
ao ser humano (bom enfatizar sem o artigo definido) subentende-se assim uma natildeo
discriminaccedilatildeo na ordem Ela eacute dada ao ser humano e natildeo exatamente a Adatildeo - o primeiro
homem - visto que a partiacutecula acusativa (Alephtaw) natildeo ocorre
Vale ainda salientar que a dimensatildeo da becircnccedilatildeo de Deus sobre Adatildeo
primeiramente e ressalvada a becircnccedilatildeo sobre macho e fecircmea sobre homemmulher se
concretiza em ser a imagem de Deus No verso 26 do capiacutetulo primeiro haacute o movimento
de criaccedilatildeo da humanidade ndash do ADAM sem artigo Este eacute criado agrave imagem e semelhanccedila
de Deus No verso 27 Deus abenccediloa Adatildeo ndash o homem especiacutefico o homem criado ndash com
sua imagem No verso 28 a becircnccedilatildeo se esclarece estendida sobre homem e mulher A ausecircncia ou presenccedila da partiacutecula de objeto direto (lsquoet ndash alephtaw) eacute de suma
importacircncia no estudo do texto isto porque ela ocorre indicando o objeto direto quando
este eacute especificado com o artigo ou quando ele por si mesmo como ocorre com qualquer
nome proacuteprio eacute especificado por natureza4
Esta questatildeo do artigo junto agrave palavra Adam merece um outro estudo e eacute preciso
atenccedilatildeo ao analisar o termo nestes primeiros capiacutetulos No capiacutetulo 3 por exemplo Adam
ainda aparece como nome plural (vide verso 17) designando um ser geral natildeo obstante
no verso 22 reaparece HaAdam indicando uma especificaccedilatildeo do termo entendendo o ser
homem Adatildeo
O texto da criaccedilatildeo do homem e mais objetivamente da mulher ocorre no capiacutetulo
seguinte em 215-24 O capiacutetulo dois retorna agrave histoacuteria da criaccedilatildeo de forma resumida
dando mais atenccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem e da mulher Na traduccedilatildeo de Almeida (A
BIacuteBLIA 1958) o verso 15 se lecirc assim Tomou pois o SENHOR Deus ao homem e o
colocou no jardim do Eacuteden para o cultivar e guardar O termo traduzido aqui por homem
3 Em primeiro lugar trecircs eram os gecircneros da humanidade natildeo dois como agora o masculino e o feminino
mas tambeacutem havia a mais um terceiro comum a estes dois do qual resta agora um nome desaparecida a
coisa androacutegino era entatildeo um gecircnero distinto tanto na forma como nome comum aos dois ao masculino
e ao feminino enquanto agora nada mais eacute que um nome posto em desonra (PLATAtildeO 1991 p 57-58) 4 Esta partiacutecula eacute muito importante na anaacutelise sintaacutetica da frase hebraica No caso do verbo transitivo direito
ela ajuda a identificar o predicado
Isabel Arco Verde Santos
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eacute HaAdam ou seja o nome aparece com o artigo o que se entende o nome do primeiro
homem ndash Adatildeo
Natildeo haacute exatamente uma sequecircncia neste segundo relato A narrativa da criaccedilatildeo tatildeo
cuidadosa e minuciosa exposta no relato anterior neste capiacutetulo jaacute natildeo mais importa No
verso 18 o comentaacuterio divino aponta para a preocupaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave solidatildeo de Adam
e a necessidade de fazer algueacutem segundo traduccedilatildeo de Almeida uma auxiliadora que lhe
seja idocircnea A aplicaccedilatildeo do artigo aqui no termo Adam parece indicar algo mais
especiacutefico tendo em vista o autor deixar claro que ele Adam estaacute soacute A vocalizaccedilatildeo
hebraica confunde porque o termo que se usa no verso 20 do capiacutetulo 2 ao dizer que natildeo
havia para Adam ndash e desta vez a vocalizaccedilatildeo sugere a inexistecircncia do artigo - quem fosse
eacutezer e neacuteged
Ocorre que neste verso 20 aparece o termo LeAdam Se a forma com artigo
acontecesse a contraccedilatildeo do artigo com a preposiccedilatildeo suporia a forma LaAdam E parece
ser a forma mais correta de se ler o texto dando continuidade a ideia que estaacute sendo
desenvolvida
HaAdam ndash Adatildeo - daacute nome aos elementos da criaccedilatildeo mas eacute Adam ndash o nome geral
a humanidade - que natildeo encontrou algueacutem para estar ao seu lado De uma forma ou de
outra o que se quer eacute justificar o relato da criaccedilatildeo da mulher Os termos usados por
Almeida auxiliadora e idocircnea traduzem o hebraico eacutezer e neacuteged respectivamente
Ora eacutezer eacute a palavra usada no conhecido Salmo 121 (Elevo os olhos para o monte
de onde me viraacute o socorro) Ressalte-se que o socorro natildeo eacute encontrado natildeo em seres
inferiores O salmista eleva os olhos busca acima de si o socorro Isto deixa claro que
natildeo haacute qualquer tipo de inferioridade na criaccedilatildeo da mulher
O outro termo neacuteged eacute uma preposiccedilatildeo que pode ser traduzida por defronte de
em frente contra diante de em oposiccedilatildeo defronte comparado com Como verbo na
forma simples paal significa ser contra ou estar defronte Na forma causativa no hiphil
o verbo significa contar revelar dizer algo ainda natildeo conhecido Estes termos vatildeo reaparecer no verso 20 quando apoacutes o homem ter dado nome a
todos os seres se conclui mais uma vez que natildeo havia nada que lhe fosse eacutezer e neacuteged O
hebraico nos aponta ideias mais fortes que a traduccedilatildeo de Almeida No portuguecircs
auxiliador tem a ideia de ajudante assistente conforme explica o Aureacutelio Idocircneo tem o
sentido de conveniente e adequado ainda segundo este mesmo dicionaacuterio
O que se procura na criaccedilatildeo para HaAdam (Adatildeo) eacute o seu oposto o seu contraacuterio
porque o objetivo eacute crescer e encher a terra Por outro lado procura-se algo que lhe venha
socorrer em sua solidatildeo O interessante poreacutem eacute que embora se entenda neacuteged como
uma possibilidade contraacuteria porque haacute a necessidade de encher a terra tanto este termo
como o termo socorro (eacutezer) natildeo vecircm em forma feminina mas masculina apesar de tanto
este quanto aquele ter uma forma hebraica similar feminina (ezrah e negdah)
Se prosseguirmos a leitura naquilo que seria o relato da criaccedilatildeo da mulher
identificamos que apoacutes cair em sono profundo Deus retirou uma costela de Adatildeo para
construir a mulher
Trecircs termos agora se encontram neste texto da criaccedilatildeo tzeacutelem a imagem de Deus
com que a humanidade foi abenccediloada eacute o termo que associa a humanidade a Deus que
ficou no capiacutetulo primeiro tzeacutelarsquo a costela retirada de Adatildeo que eacute a mateacuteria da qual eacute
feita a mulher Por uacuteltimo temos o termo lsquoeacutetzem que aparece na fala deslumbrada de
Adatildeo ao acordar de seu sono e ver a criaccedilatildeo de Deus na forma da mulher oriunda de sua
costela
O novo ser criado eacute denominado lsquoyshah Sua denominaccedilatildeo eacute da mesma raiz da
palavra lsquoysh que quer dizer homem Esta semelhanccedila dos dois nomes demonstra o
reconhecimento de si mesmo no outro ser criado HaAdam reconhece a mulher como algo
Homem e mulher os criou
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semelhante a ele - daiacute o uso dos termos tsela e tselem (costela e osso) O termo lsquoeacutetzem -
semelhanccedila ndash une em sua raiz os dois termos que identificam a mulher como parte da
humanidade HaAdam natildeo a identifica como lsquoysh pois percebe que existem diferenccedilas
entre eles ndash afinal ela eacute seu contraacuterio Este texto biacuteblico como outros textos do Gecircnesis tenta explicar criaccedilatildeo de
homem e mulher como partes da humanidade Sua preocupaccedilatildeo em desenvolver uma
narrativa que explique a criaccedilatildeo da mulher se daacute para que natildeo se incorra no erro de ignorar
que a mulher tambeacutem eacute abenccediloada com a semelhanccedila de Deus corroborada na criaccedilatildeo
que se faz da mesma mateacuteria
Natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo em inferiorizar a mulher Embora HaAdam a tenha
chamado de lsquoyshah seu nome apareceraacute somente no capiacutetulo seguinte apoacutes a expulsatildeo
do Eacuteden quando entatildeo ele a chamaraacute de Chawav ou Eva Se haacute superioridade porque ele
lhe daacute um nome esta superioridade eacute uma das consequecircncias do que se denominou pecado
e gerou a expulsatildeo do paraiacuteso
Os relatos cabaliacutesticos datildeo conta de criaccedilatildeo de uma outra mulher Esta ideia natildeo
soacute eacute desenvolvida pelos dois relatos de criaccedilatildeo mas tambeacutem pela fala de HaAdam
quando desperta de seu sono Ele diz segundo a traduccedilatildeo que fazemos aqui do hebraico
e disse o homem esta desta vez eacute osso dos meus ossos 5 Se desta vez HaAdam se
identifica com algo na criaccedilatildeo talvez teria acontecido algo antes com o qual ele natildeo teria
se adaptado ou natildeo se sentiria reconhecido
Lilith eacute a mulher que domina e seduz HaAdam que lhe aproxima de seus
institntos Chavah a segunda mulher eacute a que gera e constroacutei a histoacuteria Na religiatildeo a
primeira eacute tida como a mulher que deve ser desprezada apesar de figurar no imaginaacuterio
masculino pois retorna nos sonhos de Adatildeo Ela tambeacutem retorna aos textos biacuteblicos
principalmente nos sapiencieais mais especificamente no livro de proveacuterbios nos
capiacutetulos 1 a 9 quando se faz oposiccedilatildeo entre a sabedoria e a ignoracircncia entre a mulher
do povo e a estrangeira
Chavah vive com esta sombra - a mulher principal para a sociedade mas natildeo nos
desejos de seu marido A presenccedila de Lilith na cultura judaica natildeo eacute uacutenica Ela pode ser
encontrada no eacutepico de Gilgamesh que data de 2000 aEC na pseudoepiacutegrafe
denominada Testamento de Salomatildeo que data de 200 EC no Talmud e no Alfabeto de
Ben Sira6 do ano 800 de nossa era aproximadamente Alguns indicam haver menccedilatildeo
tambeacutem no livro biacuteblico de Isaiacuteas 3414 (a palavra Lilith vem da raiz laylah que significa
noite)
Lilith teria sido criada tatildeo bonita e interessante que logo arranjou
problemas com o primeiro o homem Ainda segundo a narrativa
miacutetica Eva foi criada para substituir Lilith Eva seria o oposto de
Lilith por sua vez reuacutene traccedilos marcantes de obediecircncia boa
imagem companheira submissa ao sacerdote ao Pai e agrave Lei e por
fim tambeacutem fonte de pecado e desobediecircncia (GOMES
ALMEIDA 2019)
Eacute importante tambeacutem observar que o capiacutetulo 2 de Gecircnesis este que se propotildee a
recontar a criaccedilatildeo focando a criaccedilatildeo do homem e da mulher eacute um texto javista-eloiacutesta
Observa-se que o capiacutetulo primeiro do gecircnesis eacute notoriamente um texto eloiacutesta Jaacute o
5 Cf capiacutetulo 2 versiacuteculo 23 do livro de Gecircnesis 6 Onde se tem o registro mais antigo sobre Lilith datado entre os seacuteculos VIII e X aC segundo Koltuv
(1986)
Isabel Arco Verde Santos
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capiacutetulo 2 refere-se a deus com o tetragrama sagrado (Yhwh) seguido da forma Elohim
O texto mistura entatildeo as duas fontes
A conclusatildeo de HaAdam natildeo necessariamente afirma a lenda mas abrem uma
possibilidade neste sentido O que se pode concluir eacute que natildeo havia nada na criaccedilatildeo com
a qual ele HaAdam se identificasse
A preocupaccedilatildeo da leitura biacuteblica e as possiacuteveis interpretaccedilotildees relacionando ao
papel da mulher na sociedade ainda precisam ser mais bem resolvidas Mesmo que se
faccedila a presenccedila de Lilith no texto como a histoacuteria omitida e natildeo contada porque precisava
ser reescrita na forma de Chawah ainda assim carece a ideia de submissatildeo e inferioridade
que culturalmente ainda se insiste afirmar
O texto Eloiacutesta que domina o capiacutetulo primeiro do Gecircnesis natildeo tem qualquer
preocupaccedilatildeo em distinguir homem e mulher O capiacutetulo segundo na comunhatildeo Javista-
Eloiacutesta tem a preocupaccedilatildeo em frisar que satildeo diferentes e ateacute mesmo contraacuterios mas que
natildeo perdem a noccedilatildeo da mesma mateacuteria e partilham da mesma becircnccedilatildeo da semelhanccedila
divina Natildeo haacute uma prioridade A confusatildeo que suscita a ideia androacutegina surge da essecircncia
comum dois elementos criados partes de uma soacute ideia a humanidade
A ordem na criaccedilatildeo tambeacutem natildeo gera conclusotildees de superioridade Se
entendecircssemos que os primeiros seriam submissos aos uacuteltimos seres criados entendendo
o homem a coroa da criaccedilatildeo o ser acima de toda a criaccedilatildeo poderiacuteamos supor que a
mulher criada depois dele lhe seria entatildeo superior Colocaccedilotildees deste tipo natildeo prosperam
na anaacutelise do texto biacuteblico porque haacute que se considerar o texto como um todo Ou entatildeo
seriam os astros celestes criados primeiros inferiores aos mares ou os animais Eacute certo
que a ordem natildeo sugere algum tipo de superioridade
Enfim o que se vecirc depois da criaccedilatildeo eacute uma luta constante da figura feminina pela
conquista de seu espaccedilo luta esta que infelizmente ainda persiste A necessidade de ser
semelhanccedila de Deus e natildeo soacute costela
REFEREcircNCIAS
A BIacuteBLIA Sagrada Trad Joatildeo Ferreira de Almeida Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do
Brasil 1958
BIacuteBLIA Hebraica Stuttgartensia 4a Ed Stuttgart Deustsche Bibelgesellschaft 1967
BEREZIN Rifka Dicionaacuterio Hebraico-Portuguecircs Satildeo Paulo EDUSP 1995
EVEN-SHOSHAN Abraham Hamilon Hechadash 3 Ed Jerusalm Qryiat-sefer
1972 3 vol
FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa
15a ed Rio de Janeiro Nova Fronteira
GOMES Antonio Maspoli de Arauacutejo ALMEIDA Vanessa Ponstinnicoff de O Mito de
Lilith e a Integraccedilatildeo do Feminino na Sociedade Contemporacircnea Revista acircncora digital
de Ciecircncias da Religiatildeo Disponiacutevel em ltwwwrevistaancoradigitalcombrgt
Homem e mulher os criou
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GOTTWALD Norman K Introduccedilatildeo socioliteraacuteria agrave Biacuteblia hebraica Traduccedilatildeo
Anacleto Alvarez revisatildeo H Dalbosco Satildeo Paulo Paulinas 1988
KOLTUV Barbara Black O Livro de Lilith psicologiamitologia Satildeo Paulo Cultrix
1986
PAIVA Vera Evas Marias e Liliths as voltas do feminino 2a Ed Rio de Janeiro
Brasiliense 1993
PLATAtildeO Diaacutelogos Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Traduccedilatildeo e
notas de Joseacute Cavalcante de Souza Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa 5 Ed Satildeo Paulo
Nova Cultural 1991 (Coleccedilatildeo Os pensadores)
DOI httpsdoiorg1012957principia201946508
AS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO E SEU IMPACTO NO
REINADO DE VALENTINIANO I
Carlos Eduardo Schmitt
RESUMO Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio (c 340-402) possui uma extensa obra da qual
chegaram agrave contemporaneidade mais de 900 cartas (epistolae) 49 informes (relationes)
e 8 discursos (orationes) Suas obras de maior destaque satildeo as Orationes I II e III
proferidas entre 369-370 e sua Relatio III escrita durante seu tempo como prefeito de
Roma em 384 Tais obras lhe renderam a fama de melhor orador de seu tempo ainda em
vida Nosso trabalho tem como objetivo expor o impacto que as Orationes I II e III
tiveram na carreira do orador e na relaccedilatildeo entre o Senado e o reinado de Valentiniano I
A partir de suas Orationes ressaltaremos a delicada missatildeo do orador enviado de Roma
agrave Treacuteveris para servir como ponte entre o Senado e o imperador
PALAVRAS-CHAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I
SYMMACHUSrsquo ORATIONES I II AND III AND ITS IMPACT IN THE
KINGDOM OF VALENTINIAN I
ABSTRACT Quintus Aurelius Symmachus Eusebius (c 340-402) has an extensive work
from which more than 900 letters (epistolae) 49 reports (relationes) and 8 discourses
(orationes) survived His most outstanding works are Orationes I II and III pronounced
between 369-370 and his Relatio III written during his time as praefectus of Rome in
384 Such works earned him the fame of the best speaker of his time being still alive Our
paper aims to expose the impact that Orationes I II and III had on the speakers career
and on the relation between the Senate and the reign of Valentinian I From his Orationes
we will highlight the delicate mission of the speaker sent from Rome to Trier to serve as
a bridge between the Senate and the emperor
KEYWORDS Symmachus Orationes Valentinian I
LAS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO Y SU IMPACTO EN EL
REINADO DE VALENTINIANO I
RESUMEN Quinto Aurelio Siacutemaco Eusebio (c 340-402) tiene una extensa obra de la
cual chegaron a la contemporaneidad maacutes de 900 cartas (epistolae) 49 informes
(relationes) e 8 discursos (orationes) Sus obras de mayor destaque son las Orationes I
Doutorando pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail carlosschmitt90gmailcom
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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II y III pronunciadas entre el 369-370 y su Relatio III escrita durante su tiempo como
prefecto de Roma en 384 Tales obras le rindieron la fama de mejor orador de su tiempo
auacuten en vida Nuestro artiacuteculo tiene como objetivo exponer el impacto que las Orationes
I II y III tuvieron en la carrera del orador y en la relacioacuten entre el Senado y el reinado de
Valentiniano I A partir de sus Orationes resaltaremos la delicada misioacuten del orador
enviado de Roma a Treacuteveris para servir como puente entre el Senado y el emperador
PALAVRAS CLAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I
INTRODUCcedilAtildeO
Joseacute Antonio Gallego (2003 p 153) esclarece que a obra mais famosa de Siacutemaco
foi seu informe terceiro apesar de que durante a Idade Meacutedia as epistolae foram suas
obras mais valorizadas sendo utilizadas como modelo para escrever uma carta Contudo
em seu proacuteprio tempo ele era famoso por ser um grande orador Eacute por isso que Gallego
(2003 p 154) pondera como injusto o que a histoacuteria fez com Siacutemaco Apenas oito de
seus discursos chegaram ateacute noacutes sendo que estes satildeo dos iniacutecios de sua carreira aleacutem de
estarem num manuscrito palimpsesto com grandes lacunas Deve-se ter presente tambeacutem
que ldquoSiacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador romano se excetuarmos os escritores cristatildeosrdquo1
(GALLEGO 2003 p 154) Em outras palavras Siacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador da
religiatildeo tradicional romana
Cristiana Sogno (2006 p viii) faz uma reconstruccedilatildeo da carreira poliacutetica de
Siacutemaco atraveacutes de uma anaacutelise minuciosa de seus escritos Ele ocupa uma posiccedilatildeo
peculiar entre os autores latinos pela quantidade de escritos que nos chegaram A autora
defende que a razatildeo pelo desconhecimento de Siacutemaco por parte dos estudantes de
Claacutessicas e de Histoacuteria Antiga eacute o fato de natildeo existir uma traduccedilatildeo completa do corpus
simaquiano em nenhuma liacutengua moderna Sogno clarifica tambeacutem que a ediccedilatildeo de Otto
Seeck do seacuteculo XIX continua sendo o modelo do texto
Sogno (2006 p 1) clarifica que a primeira fase da carreira de Siacutemaco estaacute bem
documentada em suas orationes Sua nominaccedilatildeo como embaixador senatorial em 368 foi
um marco em sua vida sendo que sua reputaccedilatildeo como orador foi estabelecida na corte de
Valentiniano I tornando-se uma ponte entre o Senado e o imperador
Apesar de que Siacutemaco tenha a fama de ser um grande orador suas orationes
desapareceram ateacute seu redescobrimento no seacuteculo XIX Sabe-se que Siacutemaco ficou
conhecido por ser um bastiatildeo em defesa da religiatildeo tradicional romana sobretudo durante
seu periacuteodo como Prefeito de Roma por volta de 384 E Sogno (2006 p 1) sem perder
a oportunidade relata uma ldquoironia do destinordquo sendo que foi um cardeal da Igreja
Catoacutelica Romana Angelo Mai quem descobriu e publicou os fragmentos de suas
orationes em 1815 Tratava-se de um palimpsesto onde por cima havia uma traduccedilatildeo
latina das atas do Conciacutelio de Calcedocircnia O cardeal destruiu o documento para que as
orationes pudessem ser recuperadas Apesar disso Sogno (2006 p 2) constata como
esses discursos de Siacutemaco satildeo ainda pouco estudados em comparaccedilatildeo com outros
escritos seus como suas epistolae Esses oito discursos satildeo apenas uma parte de toda a
produccedilatildeo simaquiana Haacute tambeacutem um panegiacuterico em honra do usurpador Maacuteximo que
por razotildees oacutebvias natildeo foi publicada
1 ldquoSiacutemaco es el uacuteltimo gran orador romano si dejamos a un lado a los escritores cristianosrdquo
Carlos Eduardo Schmitt
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ORATIONES I II E III
Foi no inverno do ano 368-369 que Siacutemaco naquele tempo um jovem senador que
iniciava sua carreira poliacutetica foi enviado de Roma agrave Treacuteveris com o objetivo de dirigir
uma laudatio uma oraccedilatildeo de louvor a Valentiniano I por motivo de seus cinco anos de
reinado (Quinquennalia) Sogno (2006 p 2) destaca que tal missatildeo natildeo significava
apenas um reconhecimento por parte do Senado de seus dotes retoacutericos mas constituiacutea
tambeacutem uma oportunidade iacutempar para crescer na carreira poliacutetica e fazer amigos na corte
Apesar de ser um momento festivo Sogno (2006 pp 1-2) esclarece que constituiacutea
uma situaccedilatildeo delicada Ateacute o momento Valentiniano I natildeo havia estado em Roma e essa
era a primeira vez que ele se encontraria com uma delegaccedilatildeo senatorial Sendo assim
Siacutemaco tinha a importante missatildeo de estabelecer boas relaccedilotildees com o imperador Havia
natildeo apenas o discurso mas tambeacutem certa quantidade de ouro (aurum oblaticium2) que os
senadores ofereciam ldquovoluntariamenterdquo ao imperador Em Roma os senadores
aguardavam ansiosos pelo regresso de Siacutemaco e por informaccedilotildees de primeira matildeo
Eacute estranho ver que um senador tatildeo jovem ndash Siacutemaco natildeo tinha ainda nem trinta
anos ndash recebesse tamanha honra e responsabilidade Sogno (2006 p 6) sem colocar em
xeque a capacidade do orador argui que isso foi possiacutevel em parte graccedilas ao Prefeito de
Roma naquele entatildeo Pretextato responsaacutevel direto pela arrecadaccedilatildeo da oferenda de ouro
ao imperador e pela escolha do ldquocorretordquo orador que a levaria Haacute de se ter presente que
das epistolae de Siacutemaco vaacuterias delas tecircm Pretextato como destinataacuterio
Siacutemaco natildeo se limitou a estreitar laccedilos de amizade apenas no Senado Buscou
tambeacutem amigos na corte imperial E um de seus principais foi Ausocircnio tutor de Graciano
filho de Valentiniano I Sabe-se que eles trocavam correspondecircncias antes mesmo de
Siacutemaco ter ido agrave Treacuteveris e que havia entre eles uma muacutetua admiraccedilatildeo (SOGNO 2006
p 6)
A prova de que o panegiacuterico (laudatio) de Siacutemaco dirigido a Valentiniano foi um
sucesso de acordo com Sogno (2006 pp 8-9) foi o fato do proacuteprio imperador ter
solicitado ao orador um segundo panegiacuterico Siacutemaco eacute consciente de sua responsabilidade
e da honra que lhe eacute aferida e expressa esses sentimentos em seu discurso Consciente de
que o objetivo primeiro de uma laudatio eacute agradar ao puacuteblico Siacutemaco expotildee que tudo o
que anuncia e proclama eacute verdadeiro baseado em fatos que vivenciou e tambeacutem naqueles
de que ouviu o testemunho
Sogno (2006 p 9) classifica o primeiro panegiacuterico de Siacutemaco a Valentiniano
como um encocircmio biograacutefico composiccedilatildeo descrita em detalhe no terceiro livro da
Institutio oratoria de Quintiliano Nele Siacutemaco reconhece e celebra publicamente o
estabelecimento da dinastia valentiniana realizando um resumo dos seus cinco primeiros
anos de reinado desde que tinha sido escolhido pelo exeacutercito O encocircmio biograacutefico
como detalha Sogno requer discorrer tambeacutem sobre os ancestrais e os descendentes da
nova dinastia
2 ldquoOs clariacutessimos ie os indiviacuteduos de categoria senatorial tinham ainda que contribuir com o aurum
oblaticium oferecido pelo Senado por ocasiatildeo dos aniversaacuterios dos imperadoresrdquo (SILVA amp MENDES
2006 p 212) Isso era parte da reforma fiscal iniciada por Diocleciano e ampliada por Constantino
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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Satildeo estrateacutegicas as alusotildees que Siacutemaco faz do lugar de nascenccedila de Valentiniano
e daqueles onde ele acompanhou seu pai em campanhas militares O futuro imperador
nasceu na fria regiatildeo da Iliacuteria e acompanhou seu pai no calor escaldante da Aacutefrica Isso
significa natildeo soacute que ele estaacute preparado para qualquer dificuldade que advir mas
sobretudo que eacute um homem que conhece seu reino muito bem porque jaacute esteve em
diversas partes dele Todas essas dificuldades unidas aos inimigos enfrentados lhe
qualifica como a melhor pessoa para reger o Impeacuterio (SOGNO 2006 p 10) Um cuidado
que Siacutemaco tem em sua laudatio eacute o de reforccedilar a legitimidade de Valentiniano sobretudo
ao dizer que ningueacutem protestou quando o elegeram dando a impressatildeo de que houve um
consenso geral no exeacutercito (SOGNO 2006 p 12)
O conteuacutedo dos panegiacutericos eacute exagerado e por isso deve-se ter cuidado ao tomaacute-
los como fonte histoacuterica No entanto nos revelam muito sobre o tempo de Siacutemaco e sobre
ele mesmo No primeiro dedicado a Valentiniano I por motivo de seu primeiro lustro no
poder vemos como Siacutemaco enaltece a vida e a obras do imperador desde sua tenra
formaccedilatildeo nas diversas partes do Impeacuterio seguindo o bom exemplo de seu pai Graciano
Com verbosidade Siacutemaco atesta que natildeo havia outra pessoa melhor para o posto de
imperador que o proacuteprio Valentiniano superior a qualquer outro liacuteder Homem valente
assentou-se na parte mais perigosa do Impeacuterio Treacuteveris e lutou contra o inimigo mais
feroz dos romanos os alamanos Aleacutem de guerreiro eacute saacutebio e prefere defender os
interesses do Estado que os seus proacuteprios Eacute por isso que deixou a seu irmatildeo Valente
cuidar sozinho da rebeliatildeo de Procoacutepio uma guerra interna enquanto ele se dedicava a
proteger o Impeacuterio dos inimigos externos Foi um imperador que preferiu o bem comum
ao de sua proacutepria famiacutelia Realizou obras incriacuteveis
O comeccedilo do segundo panegiacuterico a Valentiniano indica sua razatildeo de ser o terceiro
consulado do imperador ao lado de seu irmatildeo Valente em 370 Siacutemaco
estrategicamente revela que iraacute relatar apenas alguns acontecimentos sem exaustatildeo
Deixaraacute todos os outros feitos natildeo mencionados para que sejam cantados pelos poetas
Parabeniza ao imperador por ser sua fonte de inspiraccedilatildeo e o restaurador da liberdade de
expressatildeo Ao mesmo tempo que Siacutemaco preza ao imperador por ter dado assunto que
fosse cantado e escrito como suas grandes vitoacuterias sobre os alamanos ele tambeacutem lembra
o imperador de que sem esses oradores e poetas haacute o silecircncio e que o silecircncio eacute o pior
inimigo da grandeza (SOGNO 2006 p 12)
Siacutemaco se dedica basicamente a enaltecer o imperador por suas conquistas e
fortificaccedilotildees ao longo do Reno e de que se impressionou ao ter visto as mesmas
pessoalmente Enaltece-o por seu terceiro consulado mas sobretudo se centra em seus
avanccedilos militares Entre outras exaltaccedilotildees Siacutemaco o parabeniza por ser exemplo de
governante ideal que eacute amado e temido por seu povo Tambeacutem o parabeniza por haver
aceitado o Impeacuterio de forma relutante (SOGNO 2006 p 14) Na verdade Siacutemaco
exaltou muito mais as fortificaccedilotildees erguidas por Valentiniano do que suas batalhas contra
os baacuterbaros Sogno (2006 p 15) pensa que isso se deve principalmente pelo acontecido
com Siaacutegrio uacutenico sobrevivente de uma batalha que foi considerado um desertor pelo
imperador E isso aconteceu exatamente quando o orador se encontrava na corte
O segundo panegiacuterico dedicado tambeacutem a Valentiniano I tinha por motivo
a designaccedilatildeo do imperador para o seu terceiro consulado que ele havia recebido como
um reconhecimento por seus feitos recentes Sendo assim o panegiacuterico deveria se centrar
em suas atividades recentes as quais lhe fizeram merecedor do terceiro consulado
Siacutemaco inicia dizendo que o consulado era uma recompensa insuficiente para
Valentiniano comparado com tudo o que perpetrou no Reno Mas como natildeo haacute algo
Carlos Eduardo Schmitt
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maior que eles possam ofertar Siacutemaco solicita ao imperador que se contente com o
melhor presente e honra que o Senado lhe pode oferecer E a partir de entatildeo o orador
narra as atividades beacutelicas de Valentiniano contra os alamanos e suas construccedilotildees ao
longo do Reno Em um determinado momento Siacutemaco o elogia por haver restaurado a
liberdade de expressatildeo no Impeacuterio Termina exaltando sua sobriedade
No panegiacuterico de Siacutemaco dedicado a Graciano vecirc-se claramente como ele se
dirige ao jovem imperador como a esperanccedila de Roma Durante todo o discurso o orador
enfatiza sua juventude enaltecendo-a Sogno acredita que essa insistecircncia seja uma forma
de favorecer a aceitaccedilatildeo do imperador possivelmente criticado pela aristocracia romana
por sua pouca idade (SOGNO 2006 p 18) Como recompensa por sua performance na
corte Siacutemaco recebeu o tiacutetulo honoriacutefico de comes tertii ordinis e trecircs anos depois em
Roma recebeu o proconsulado da Aacutefrica (373-374)
O panegiacuterico ao menino Graciano talvez tenha sido o mais difiacutecil para Siacutemaco
elaborar Devido a sua pouca idade objetivamente natildeo havia feitos grandiosos do qual
ele fosse sujeito No entanto Siacutemaco surpreendeu mesmo assim Vecirc em Graciano o iniacutecio
de uma nova eacutepoca porque eacute um imperador ainda menino e sendo assim estaraacute bem
treinado em todos os campos Seu louvor se centra entatildeo na juventude do imperador e
em seu governo ao lado de seu pai Valentiniano e de seu tio Valente Aos baacuterbaros natildeo
lhes restaraacute mais do que a escravidatildeo e eles jaacute sabem disso
OS DOZE PANEGIacuteRICOS LATINOS
Tendo em vista as trecircs orationes mencionadas podemos fazer uma breve anaacutelise
dos famosos doze panegiacutericos latinos com o intuito de entender melhor as diversas
asserccedilotildees simaquianas bem como seu estilo Susanna Morton Braund (2005 pp 90-91)
descreve que de forma convencional a oratoacuteria grega foi divida em trecircs tipos discurso
forense deliberativo e epidiacutectico O primeiro tambeacutem chamado de judicial eram aqueles
proferidos nos tribunais no foacuterum os discursos deliberativos eram aqueles proferidos
diante do Senado ou de uma assembleia do povo e os discursos epidiacutecticos eram aqueles
escritos para uma comemoraccedilatildeo especial Este uacuteltimo para Braund se revestiu de
especial importacircncia durante o principado como panegiacuterico (elogio)
Uma das coisas mais importantes para um aristocrata romano era o
reconhecimento pelas pessoas ao seu redor de seu valor puacuteblico e permanente
ndash sua auctoritas e sua dignitas Idealmente isso seria celebrado em panegiacuterico
ndash isto eacute louvor escrito em prosa ou verso3 (2005 p 110)
O panegiacuterico era um elemento central na poliacutetica romana e na vida puacuteblica sob
o Principado ndash e jaacute o era haacute muito tempo De fato alguns dos nossos mais
antigos textos latinos sobreviventes os epitaacutefios aos membros da famiacutelia
Cipiatildeo que datam do terceiro e segundo seacuteculos AEC (Scipionum elogia)
satildeo os louvores (poacutestumos) dos grandes homens4 (2005 p 112)
3 ldquoOne of the most important things for a Roman aristocrat was the recognition by people around him of
his public worth and standing ndash his auctoritas and his dignitas Ideally this would be celebrated in
panegyric ndash that is praise written in prose or verserdquo 4 ldquoPanegyric was a central element in Roman politics and public life under the Principate ndash and had been
so for a long time already In fact some of our earliest surviving Latin texts the epitaphs to members of
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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Ainda sobre o panegiacuterico e sua difusatildeo durante este periacuteodo do Impeacuterio Romano
Mitchell (2015 p 19) o relaciona agrave natureza autoritaacuteria do mesmo Segundo ele a
dissidecircncia aberta natildeo era tolerada e isso se vecirc pelos extremos dos discursos que satildeo de
louvor ou vituperaccedilatildeo mas raramente se encontram num meio termo Apesar de
parecerem pouco confiaacuteveis o autor defende a utilizaccedilatildeo de panegiacutericos e poemas como
fontes histoacutericas para o periacuteodo alegando que seus exageros omissotildees e estilos retoacutericos
expressam de forma criacutetica muito daquele momento Segundo Mitchell as obras mais
significativas neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos5
As obras-chave neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos que
provavelmente foram compilados pelo orador gaulecircs Pacato e foram
prefaciados pelo longo panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem para o imperador Trajano
(I) Aleacutem do trabalho do proacuteprio Pacato de 389 em louvor a Teodoacutesio I (II)
este inclui discursos a Maximiano em 289 (X de Cl Mamertino o Velho) e
291 (XI) a Constacircncio pai de Constantino em 296 e 298 (IX) para o
casamento de Constantino e Fausta em 307 (VII) a Constantino em 310 (VI)
312 (V) 314 (XII) e 321 (IV de Nazaacuterio) e a Juliano em 362 (III de Cl
Mamertino o Jovem em sua proacutepria nomeaccedilatildeo para o consulado)6
Mitchell (2015 p 4) realccedila que conforme o Impeacuterio crescia foi se dando cada
vez mais ecircnfase agrave religiatildeo do Estado Acreditava-se que ele era mantido devido ao apoio
dos deuses e os imperadores romanos que em parte controlavam as atividades religiosas
em seus territoacuterios eram vistos como aqueles que mantinham o pacto de paz com os
deuses a pax deorum E segundo Mitchell todos os meios de propaganda estavam
imbuiacutedos desta ideologia inclusive os discursos panegiacutericos
Braund (2005 129) especifica que o cocircnsul Pliacutenio entregou seu panegiacuterico ao
imperador Trajano no iniacutecio de seu reinado Era um discurso de gratidatildeo onde ele
aproveita para contrastar a imagem do bom Trajano com a do mau Domiciano imperador
de 81 a 96 EC Para Braund (2005 p 130)
Este texto revela dois modelos contrastantes de patrono ou imperador - e afinal
de contas o imperador era apenas o patrono mais poderoso em Roma O bom
patrono ou imperador eacute marcado por sua abertura acessibilidade e atitude
amigaacutevel e tolerante O mau patrono ou imperador eacute marcado pelo abuso
tiracircnico de seus poderes para tomar decisotildees de vida e morte sobre todos ao
seu redor do menor escravo ao senador mais eminente A celebraccedilatildeo do bom
modelo e a condenaccedilatildeo do ruim encontram-se em toda a gama de textos da
literatura latina incluindo poesia eacutepica e pastoral poesia liacuterica e elegiacuteaca
saacutetira e epigrama historiografia oratoacuteria e romance Isso natildeo nos deixa
duvidar de que o modo como um homem poderoso se comportava com seus
the Scipio family dating from the third and second centuries BCE (the Scipionic elogia) are the
(posthumous) praises of great menrdquo 5 Ver tambeacutem BERRY D H Oratory In HARRISON Stephen (ed) A Companion to Latin Literature
Oxford Blackwell 2005 pp 267-268 6 ldquoKey works in this genre are the twelve Latin panegyrics which were probably compiled by the Gallic
orator Pacatus and were prefaced by the younger Plinyrsquos lengthy panegyric for the emperor Trajan (I)
Apart from Pacatusrsquo own work of 389 in praise of Theodosius I (II) this includes speeches for
Maximianus in 289 (X by the elder Cl Mamertinus) and 291 (XI) for Constantius the father of
Constantine in 296 (VIII) and 298 (IX) for the marriage of Constantine and Fausta in 307 (VII) for
Constantine in 310 (VI) 312 (V) 314 (XII) and 321 (IV by Nazarius) and for Julian in 362 (III by the
younger Cl Mamertinus on his own appointment to the consulship)rdquo
Carlos Eduardo Schmitt
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pares e seus subordinados era crucial para sua posiccedilatildeo social e reputaccedilatildeo
poliacutetica7
Bruce Gibson (2005 p 72) critica a postura deste gecircnero por natildeo se envolver
abertamente com a poliacutetica atual de seu tempo senatildeo de modo indireto e o panegiacuterico
modelo natildeo foi a exceccedilatildeo ldquoMesmo o Panegiacuterico de Pliacutenio um discurso em louvor ao
imperador Trajano dado por ocasiatildeo de seu consulado em setembro de 100 EC oferece
sua criacutetica de governo indiretamente atraveacutes da estrateacutegia de atacar o principado de
Domicianordquo8
CONSIDERACcedilOtildeES PARCIAIS
As condiccedilotildees do discurso representavam um novo momento para o Impeacuterio De
acordo com A D Lee (2013 p 1) foi por meados do seacuteculo IV que o Impeacuterio Romano
havia alcanccedilado quase tanto territoacuterio quanto durante o seacuteculo II periacuteodo conhecido pelo
auge do poder romano Foi o periacuteodo dos imperadores guerreiros que se viram forccedilados
a se retirar dos confortos de Roma para proteger suas fronteiras (LEE 2013 p 5) Roma
foi substituiacuteda como residecircncia imperial por Treacuteveris Milatildeo Sirmio e Antioquia Com a
criaccedilatildeo de Constantinopla por parte do imperador Constantino essa situaccedilatildeo soacute se
agravou De qualquer forma o tema que domina o seacuteculo e que dominou os discursos
traduzidos de Siacutemaco foi a histoacuteria militar (MITCHELL 2015 pp 11-12)
Natildeo eacute um Impeacuterio em decadecircncia mas sim um momento de transiccedilatildeo Mitchell
(2015 p 56) se daacute conta de como por exemplo Diocleciano Joviano e Valentiniano
vieram de origens semelhantes Eram todos militares de meia idade nascidos nas
proviacutencias da Iliacuteria o que plasma uma mudanccedila no eixo do poder Mitchell (2015 pp 56-
57) frisa como desde a ascensatildeo de Diocleciano em 284 ateacute a morte de Teodoacutesio I em
395 o Impeacuterio foi governado por esses imperadores guerreiros que aniquilavam inimigos
internos e externos O Estado estava centrado em guerras e batalhas Calcula-se que mais
de dois terccedilos de seu orccedilamento anual eram gastos em atividades militares atividades das
quais os imperadores participavam pessoalmente
Siacutemaco soube valer-se da situaccedilatildeo para estreitar laccedilos com a corte e obter ascensatildeo
poliacutetica Esse periacuteodo foi especial tambeacutem por sua produccedilatildeo literaacuteria e pela quantidade
de escritos que sobreviveu ao tempo Segundo OrsquoDonnel (2015 p 161) haacute mais literatura
latina que nos chegou entre 350 e 450 do que de qualquer outro periacuteodo mais ateacute mesmo
que a eacutepoca de ouro latina entre o final da Repuacuteblica e comeccedilo do Impeacuterio9
7 ldquoThis text reveals two contrasting models of patron or emperor ndash and after all the emperor was just the
most powerful patron in Rome The good patron or emperor is marked by his openness accessibility and
friendly and tolerant attitude The bad patron or emperor is marked by his tyrannical abuse of his powers
to make life and death decisions about everyone around him from the lowest slave to the most eminent
senator Celebration of the good model and condemnation of the bad model are found in the entire range
of texts of Latin literature including epic and pastoral poetry lyric and elegiac poetry satire and epigram
historiography oratory and the novel This can leave us in no doubt that how a powerful man behaved
towards his peers and his subordinates was crucial to his social standing and to his political reputationrdquo 8 ldquoEven Plinyrsquos Panegyricus a speech in praise of the emperor Trajan given on the occasion of his
consulship in September AD 100 offers its critique of rulership indirectly through the strategy of
assailing the principate of Domitianrdquo
9 ldquoWe have more surviving Latin literature from this century between 350 and 450 than for any comparable
period before that including the more famously golden age of Caesar Cicero and Vergilrdquo
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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22 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6
DOI httpsdoiorg1012957principia201946510
OS IMPERADORES SUETONIANOS EM MEMOacuteRIAS POacuteSTUMAS
DE BRAacuteS CUBAS
Bruno Torres dos Santos
RESUMO O presente trabalho busca discutir atraveacutes da anaacutelise de traduccedilotildees proacuteprias as
referecircncias aos imperadores romanos descritos e consagrados pelo bioacutegrafo Suetocircnio em Vida
dos Ceacutesares na obra Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis Aquele no
iniacutecio do seacuteculo II da era comum demonstrou os viacutecios e as virtudes dos imperadores inclusive
enfatizando os escacircndalos de suas cortes Jaacute Machado trouxe agrave tona as vaidades e as ambiccedilotildees
da burguesia brasileira do seacuteculo XIX Entatildeo analisaremos e interpretaremos o uso destes
personagens histoacutericos para a criaccedilatildeo literaacuteria no referido romance partindo do pressuposto de
que eles poderiam passar despercebidos por leitores modernos que natildeo recuperassem as
referecircncias agrave cultura agrave literatura e agrave histoacuteria da Roma Antiga
PALAVRAS-CHAVE Machado de Assis Imperadores romanos Suetocircnio
THE SUETONIAN EMPERORS IN THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF
BRAS CUBAS
ABSTRACT The present work aims through the analysis of own translations the references to
the Roman emperors described and consecrated by the biographer Suetonius in Life of the
Caesars in the novel Posthumous Memoirs of Bras Cubas by Machado de Assis Suetonius
at the beginning of the second century of the common age demonstrated the vices and virtues
of the emperors including emphasizing the scandals of their courts Machado has already
brought to light the vanities and ambitions of the Brazilian bourgeoisie of the nineteenth
century Then we will analyze and interpret the use of these historical characters for the literary
creation in the novel assuming that they could go unnoticed by modern readers who do not
recover references to the culture literature and history of Ancient Rome
KEYWORDS Machado de Assis Roman emperors Suetonius
Entre os mais diversos romancistas com que a literatura brasileira teve contato natildeo haacute
nome maior do que Machado de Assis Tal personalidade nasceu no Morro do Livramento
Eacute doutorando no PPGLC-UFRJ bolsista CAPES sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Anderson Esteves e integrante
discente do grupo de pesquisa ATRIVM ndash Espaccedilo Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (PPGLC-UFRJ) E-
mail brunots_hotmailcom
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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localizado na aacuterea central do Rio de Janeiro proacuteximo a zona portuaacuteria em junho de 1839
Oriundo de famiacutelia pobre estudou em escolas puacuteblicas mas nunca frequentou uma
universidade Dedicou-se aos mais diversos gecircneros literaacuterios escrevendo poesia crocircnica
teatro conto romance Tambeacutem foi criacutetico literaacuterio e jornalista Testemunhou a Aboliccedilatildeo da
Escravatura e as mudanccedilas poliacuteticas no Brasil quando o Impeacuterio foi entatildeo substituiacutedo pela
Repuacuteblica comentando e relatando os respectivos eventos poliacutetico-sociais Em 1897 funda a
ABL (Academia Brasileira de Letras) da qual permaneceu presidente ateacute sua morte em 1908
com 69 anos
Ao discorrer sobre a consolidaccedilatildeo do nosso sistema literaacuterio o professor Antonio
Candido opina sobre Machado afirmando que ele ldquoera dotado de raro discernimento literaacuterio e
adquiriu por esforccedilo proacuteprio uma forte cultura intelectual baseada nos claacutessicos mas aberta aos
filoacutesofos e escritores contemporacircneosrdquo (CANDIDO 2010 p 65) E ainda acrescenta
Sua obra eacute variada e tem caracteriacutestica das produccedilotildees eminentes satisfaz tanto aos
requintados quanto aos simples Ela tem sobretudo a possibilidade de ser
reinterpretada agrave medida que o tempo passa porque tendo uma dimensatildeo profunda de
universalidade funciona como se se dirigisse a cada eacutepoca que surge (CANDIDO
2010 p 65)
Eacute esse diaacutelogo entre o claacutessico e o contemporacircneo com pitada filosoacutefica que daacute
singularidade agrave sua obra fazendo com que suas produccedilotildees sejam sempre atemporais Satildeo esses
traccedilos que se mostram mais produtivos para o nosso estudo no qual pretendemos analisar e
interpretar como os imperadores romanos descritos pelo bioacutegrafo Suetocircnio em sua obra satildeo
utilizados por Machado em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas1 Para tal julgamos necessaacuterio
primeiramente contextualizar brevemente os autores em apreccedilo bem como suas obras
(Memoacuterias Poacutestumas e Vida dos Ceacutesares2) os gecircneros praticados (Romance e Biografia
Antiga) e os tipos de criacutetica social dos dois autores Depois disso analisaremos os excertos do
romance machadiano em questatildeo no qual as presenccedilas dos principes (no singular princeps
termo latino usado na Roma Antiga para se referir ao que entendemos hoje por imperador) se
mostrem mais evidentes para entatildeo coligirmos com trechos da obra suetoniana Para o trabalho
com esta obra utilizaremos a ediccedilatildeo da Loeb Classical Library (1914) mas com traduccedilotildees de
nossa proacutepria autoria para o trabalho com aquela utilizaremos a ediccedilatildeo criacutetica estabelecida
pela Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira (1975)
Como jaacute afirmado Machado praticou os mais diversos gecircneros literaacuterios E jaacute demos os
merecidos creacuteditos pelo conjunto da obra Mas devemos frisar que eacute na praacutetica sobre o gecircnero
romance que os creacuteditos se mostram mais merecidos pois eacute nele que o autor apresenta natildeo soacute
todo o seu ingenium (talento natural) mas tambeacutem toda a sua ars (habilidade teacutecnica) para
usarmos termos proacuteprios da literatura latina
Foi esse talento somado a seu espiacuterito galhofeiro que proporcionou a criaccedilatildeo de um
narrador mais que incomum em Memoacuterias Poacutestumas Sobre esse narrador Francisco Silveira
discorre que ldquoele vinha pelo menos agrave primeira vista infringir dois postulados realistas a
impessoalidade e o verismordquo (SILVEIRA 2001 p 97) Convergirmos com tal visatildeo posto que
eacute com a referida obra e seu respectivo narrador defunto-autor que o Realismo enquanto esteacutetica
literaacuteria vai ser ldquoinauguradordquo no Brasil em 1881 Natildeo menos importante eacute a visatildeo de Alfredo
Bosi
1 Nas proacuteximas remissotildees a essa obra usaremos apenas Memoacuterias Poacutestumas 2 Em liacutengua latina De uita caesarum
Bruno Torres dos Santos
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Quando o romancista assumiu naquele livro capital o foco narrativo na verdade
passou ao defunto-autor Machado-Braacutes Cubas delegaccedilatildeo para exibir com o despejo
dos que nada mais temem as peccedilas de cinismo e indiferenccedila com que via montada a
histoacuteria dos homens A revoluccedilatildeo dessa obra que parece cavar um fosso entre dois
mundos foi uma revoluccedilatildeo ideoloacutegica e formal aprofundando o desprezo agraves
idealizaccedilotildees romacircnticas e ferindo ao cerne o mito do narrador onisciente que tudo vecirc
e tudo julga deixou emergir a consciecircncia nua do indiviacuteduo fraco e incoerente O que
restou foram as memoacuterias de um homem igual a tantos outros o cauto e desfrutador
Braacutes Cubas (BOSI 2006 p 177)
Entendemos assim que o ser humano seraacute analisado sob seu cinismo e sob a
indiferenccedila por um narrador tambeacutem fraco e cheio de incoerecircncias rompendo nesse aspecto
com a esteacutetica Romacircntica Bosi ainda acrescenta
o ponto de vista um velho tema como o triacircngulo amoroso jaacute natildeo se carregaraacute do
pathos romacircntico que envolvia heroacutei-heroiacutena-o outro mas deixaraacute vir agrave tona os mil e
um interesses de posiccedilatildeo prestiacutegio e dinheiro dando a batuta agrave libido e agrave vontade de
poder que mais regem os passos do homem em sociedade Da histoacuteria vulgar do
adulteacuterio de Braacutes Cubas-Virgiacutenia-Lobo Neves agrave triste comeacutedia de equiacutevocos de
Rubiatildeo-Sofia-Palha (Quincas Borba) e desta agrave trageacutedia perfeita de Bentinho-Capitu-
Escobar (D Casmurro) soacute aparecem variantes de uma soacute e mesma lei natildeo haacute mais
heroacuteis a cumprir missotildees ou a afirmar a proacutepria vontade haacute apenas destinos destinos
sem grandeza (BOSI 2006 p 180)
Observamos o olhar aparentemente ldquodespretensiosordquo de Machado de Assis sem a
intenccedilatildeo de criar e de se defrontar com personagens heroicos mas ao lidar com homens-
personagens comuns lidaraacute tambeacutem com problemas comuns Ele analisa a psicologia do
ldquohomemrdquo com todas as suas peculiaridades inveja ganacircncia ambiccedilatildeo E eacute a atmosfera
burguesa que potencializa esses sentimentos De todo modo faz uma ldquocriacutetica socialrdquo sem querer
fazecirc-la Eacute isso que o aproxima e o distancia de Suetocircnio que analisa os retratos morais dos
imperadores romanos com todos os viacutecios e virtudes mas faz ldquocriacutetica socialrdquo e ateacute propaganda
poliacutetica de modo velado
Diferente do esforccedilo na anaacutelise da vida e obra de Machado quem se propotildee a estudar o
bioacutegrafo Caio Suetocircnio Tranquilo inicialmente se depara com algumas imprecisotildees acerca de
sua vida No tocante ao seu local de nascimento Anderson Esteves em seu artigo busca
encontrar vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas proacuteprias obras nos apontando como mais
plausiacutevel a ideia segundo a qual este teria nascido em Roma ou pelo menos se estabelecido
nessa cidade desde a infacircncia Ele nos informa sobre a origem e a condiccedilatildeo familiar de Suetocircnio
o avocirc era de uma condiccedilatildeo menos abastada visto que teria sido um liberto do imperador
Claacuteudio jaacute seu pai de uma condiccedilatildeo social mais elevada pois pertencia a ordem dos equestres
(ESTEVES 2015 p 1-7)
Eacute dado como certo que Suetocircnio teria nascido em 70 EC um ano apoacutes o conhecido ldquoAno
dos quatro imperadoresrdquo sobre o qual ainda falaremos Maacuterio Citroni esclarece-nos que em 69
EC o pai do bioacutegrafo foi combatente ao lado de Oto com o grau de tribunus militum (tribuno
militar) (CITRONI 2006 p 971) Natildeo menos importante eacute o que esclarece Ronald Mellor
segundo ele o cognomen ldquoTranquilordquo atribuiacutedo a Suetocircnio eacute decorrente do esforccedilo do seu pai
na busca pela estabilizaccedilatildeo da paz apoacutes esta terriacutevel guerra civil (MELLOR 1999 p 147)
Conforme observamos de alguma forma sua famiacutelia estava envolvida com as casas
imperiais e dada a condiccedilatildeo do seu pai Suetocircnio teve a possibilidade de ter uma boa educaccedilatildeo
na urbs dedicando-se aos estudos de gramaacutetica e de retoacuterica Nessa trajetoacuteria instrutiva o
bioacutegrafo torna-se amigo iacutentimo do renomado senador Pliacutenio o Jovem Por influecircncia dessa
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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amizade Suetocircnio consegue alguns cargos de prestiacutegio dentro das cortes imperiais Durante o
principado de Trajano ele ocupou os postos de a studiis (com a funccedilatildeo de cuidar dos interesses
e das obrigaccedilotildees culturais do imperador) e o de a bibliothecis (com a funccedilatildeo de cuidar das
bibliotecas puacuteblicas) Sob o principado de Adriano ocupou o posto de ab epistulis (com a
funccedilatildeo de redigir a correspondecircncia oficial) (MORENO 1997 p 645 CITRONI 2006 p
971)
A rede de contato iniciada por seu amigo Pliacutenio permitiu que Suetocircnio alcanccedilasse as
referidas ocupaccedilotildees e por consequecircncia o acesso direto aos arquivos imperiais muitas vezes
fundamentais para a feitura da sua obra De uita caesarum na qual discorre sobre os doze
primeiros ceacutesares de Roma desde o general Juacutelio Ceacutesar ateacute o polecircmico imperador Domiciano
Cabe considerar que ele iniciou a composiccedilatildeo desse seu opus magnum por volta dos primeiros
anos do principado de Adriano o qual se estendeu entre os anos de 117 e 138 EC
Acerca do gecircnero praticado por Suetocircnio devemos considerar que ateacute aqui muito foi
usada a terminologia moderna ldquobiografiardquo poreacutem conveacutem lembrarmos que esse gecircnero relativo
agrave escrita de uma vida na Antiguidade eacute referido por bios pelos gregos e uita pelos romanos
O termo ldquobiografiardquo como salienta Sabina Loriga soacute aparece ao longo do seacuteculo XVII
designando uma obra veriacutedica fundada numa descriccedilatildeo realista que se opotildee a outras formas
antigas de escritura idealizadoras do personagem e das circunstacircncias de sua vida tal qual o
panegiacuterico o elogio a oraccedilatildeo fuacutenebre e a hagiografia (LORIGA 2011 p 17)
A pesquisadora argumenta ainda que desde sua origem na Antiguidade a biografia eacute um
gecircnero hiacutebrido e composto que equilibrando-se entre a verdade histoacuterica e a verdade literaacuteria
sofreu ao longo do tempo profundas transformaccedilotildees sobretudo no que diz respeito agrave escolha e
agrave elaboraccedilatildeo dos fatos e do estilo de narraccedilatildeo (LORIGA 2011 p 18)
Frente a esses esclarecimentos avancemos aos excertos de Memoacuterias Poacutestumas em cujo
iniacutecio o narrador e protagonista Braacutes Cubas relata suas lembranccedilas apoacutes ter sido vitimado por
uma pneumonia Ele que pertencia a uma famiacutelia abastada do seacuteculo XIX narra sua morte e
seu enterro em que apareceram apenas onze amigos Relata diversos periacuteodos da vida infacircncia
adolescecircncia e fase adulta Ainda apresenta suas expectativas com o ldquoEmplastordquo um
medicamento por ele inventado com grande potencial de cura O narrador reconhece que esse
projeto se tornou uma ldquoideia fixardquo que entendemos como uma ideia difiacutecil de se retirar da
cabeccedila E eacute justamente no IV capiacutetulo intitulado A ideacutea fixa que o narrador machadiano faz a
primeira referecircncia a imperadores romanos e ao proacuteprio bioacutegrafo Suetocircnio
A minha ideacutea depois de tantas cabriolas constituiacutera-se ideacutea fixa Deus te livre leitor
de uma ideacutea fixa antes um argueiro antes uma trave no olho Vecirc o Cavour foi a ideacutea
fixa da unidade italiana que o matou Verdade eacute que Bismarck natildeo morreu mas
cumpre advertir que a natureza eacute uma grande caprichosa e a histoacuteria uma eterna
loureira Por exemplo Suetocircnio deu-nos um Claacuteudio que era um simploacuterio mdash ou
ldquouma aboacuteborardquo como lhe chamou Secircneca e um Tito que mereceu ser as deliacutecias de
Roma Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dous
ceacutesares o delicioso o verdadeiro delicioso foi o ldquoaboacuteborardquo de Secircneca E tu madama
Lucreacutecia flor dos Boacutergias se um poeta te pintou como a Messalina catoacutelica apareceu
um Gregorovius increacutedulo que te apagou muito essa qualidade e se natildeo vieste a liacuterio
tambeacutem natildeo ficaste pacircntano Eu deixo-me estar entre o poeta e o saacutebio (Machado de
Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap IV p 103)3
3 Para facilitar a leitura usaremos tal forma nas referecircncias a esta obra que compotildee nossa documentaccedilatildeo textual
Para as referecircncias agraves biografias de Vida dos Ceacutesares adotamos as abreviaccedilotildees do renomado The Oxford Latin
Dictionary (httpswwwoxfordscholarlyeditionscompageabbreviations acessado em 25102019)
Bruno Torres dos Santos
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Nesse discurso metalinguiacutestico dirigido diretamente ao leitor a fim de exemplificar a
proacutepria noccedilatildeo de ldquoideia fixardquo Braacutes Cubas evidencia que Suetocircnio o qual ressignificou a ldquoideiardquo
do filoacutesofo estoico Secircneca teve a sua ldquoideiardquo ressignificada por um professor moderno
Diferentemente do bioacutegrafo Suetocircnio bem como os imperadores que ele ldquonos deurdquo que foram
personagens histoacutericas o referido professor natildeo o foi
Entatildeo passemos a essas referecircncias o primeiro imperador citado eacute Tibeacuterio Claacuteudio Druso
Braacutes Cubas adjetiva o Claacuteudio de Suetocircnio como um ldquosimploacuteriordquo que eacute assim descrito na
biografia suetoniana
Infans autem relictus a patre ac per omne fere pueritiae atque adulescentiae tempus
variis et tenacibus morbis conflictatus est adeo ut animo simul et corpore hebetato ne
progressa quidem aetate ulli publico privatoque muneri habilis existimaretur (Suet
Cl 21)
No entanto era crianccedila quando foi abandonado pelo pai e por quase todo o tempo da
primeira infacircncia e adolescecircncia foi acometido por vaacuterias doenccedilas persistentes de tal
modo que estivesse ao mesmo tempo com o espiacuterito e com o corpo debilitado foi
certamente por conta de sua idade avanccedilada estimado como natildeo apto para cargo no
acircmbito puacuteblico e no acircmbito privado
Posteriormente Suetocircnio faz o seguinte relato sobre a inesperada subida ao trono apoacutes o
assassinato do sobrinho Caliacutegula
Per haec ac talia maxima aetatis parte transacta quinquagesimo anno imperium cepit
quantumvis mirabili casu Exclusus inter ceteros ab insidiatoribus Gai cum quasi
secretum eo desiderante turbam submoverent in diaetam cui nomen est Hermaeum
recesserat neque multo post rumore caedis exterritus prorepsit ad solarium proximum
interque praetenta foribus vela se abdidit Latentem discurrens forte gregarius miles
animadversis pedibus studio sciscitandi quisnam esset adgnovit extractumque et prae
metu ad genua sibi accidentem imperatorem salutavit (Suet Cl10 1-2)
Por estas e outras coisas semelhantes tendo passado muito do tempo assumiu o
impeacuterio soacute com cinquenta anos atraveacutes de um caso extremamente interessante
Excluiacutedo entre os outros pelos assassinos de Caio Caliacutegula quando sob o pretexto
de expulsarem a multidatildeo e desejando ele um lugar isolado retirou-se para um
pavilhatildeo ao qual chamam de ldquoHermeacuteurdquo E natildeo muito depois aterrorizado com a
notiacutecia da morte avanccedilou se arrastando para uma galeria solar proacutexima e se escondeu
entre as cortinas postas diante das portas Tendo os peacutes sido observados um soldado
raso correndo de uma parte a outra com uma forte curiosidade procurou saber quem
estaria escondido e reconheceu quem por ele foi retirado do esconderijo Diante do
medo Claacuteudio se prostrou aos seus peacutes o soldado o saudou como imperador
Notamos que um eventual olhar do narrador machadiano sobre a dinastia julio-claudiana
sempre lembrada no pensamento ocidental pelos excelentes generais como Juacutelio Ceacutesar e
Augusto e pelos polecircmicos Tibeacuterio Caliacutegula e Nero pode justificar a anaacutelise de Claacuteudio como
um personagem simploacuterio Isso se daacute mesmo este tendo conquistado diversas regiotildees e tido boa
aceitaccedilatildeo pelo povo romano pois como percebemos nos excertos de sua biografia Suetocircnio
fez ressoar sua fraqueza de espiacuterito inaptidatildeo para o governo e a covardia Cabe lembrar ainda
que numa leitura completa da biografia do imperador ele aparece como um joguete nas matildeos
das proacuteprias esposas Primeiramente Valeacuteria Messalina (a mesma referida no capiacutetulo em
questatildeo das Memoacuterias Poacutestumas) tentou entregar o Impeacuterio nas matildeos de um de seus amantes
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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C Siacutelio mas sem sucesso foi por Claacuteudio condenada e executada Jaacute viuacutevo ele se casa com
Agripina que trama pela sua morte para legar o trono a seu filho Nero
Justifica-se assim tambeacutem o seu retrato como uma ldquoaboacuteborardquo na obra Apocoloquintose
na qual o filoacutesofo e tragedioacutegrafo Secircneca que foi banido de Roma por Claacuteudio em 41 em
razatildeo de intrigas palacianas critica ironicamente o receacutem-assassinado imperador Horaacutecio
Rolim de Freitas explica que
O tiacutetulo inicial seria Ludus de morte Claudii O historiador Dion Caacutessio sugeriu que
o tiacutetulo tenha sido Apocolocyntosis (transformaccedilatildeo em aboacutebora) do grego
Ἀποκολοκύνθοσις Tiacutetulo curioso mas era entendido pelos leitores da eacutepoca pois
aboacutebora (ποκολοκύντἡς) era siacutembolo da estupidez (FREITAS 2010 p 13)
Para compreendermos isso devemo-nos lembrar de um aspecto cultural importante na
Roma Antiga ndash a Apoteose A cerimocircnia de deificaccedilatildeo que ocorria durante os funerais dos
iminentes ceacutesares iniciada por Otaacutevio a partir da morte de seu tio Juacutelio Ceacutesar Ou seja o
argumento da obra senequiana eacute parodiar a narraccedilatildeo agraves avessas da apoteose de Claacuteudio
relatando como o morto foi recebido nos infernos pelos deuses transformando-se no alegoacuterico
legume
O segundo imperador citado nesse IV capiacutetulo de Memoacuterias Poacutestumas foi Tito
Vespasiano Augusto Tito foi o segundo princeps da dinastia flaviana Era o filho mais velho
de Vespasiano e irmatildeo de Domiciano os quais tambeacutem seratildeo citados por Braacutes Cubas ao longo
do romance Depois da morte de seu pai Tito assume as reacutedeas do Impeacuterio atuando de modo
similar a ele com excelecircncia no campo militar e com moderaccedilatildeo no campo poliacutetico foi visto
como um bom imperador por Roma Por essa razatildeo eacute descrito por Suetocircnio logo no primeiro
capiacutetulo de sua biografia como ldquoTito tendo o cognome do pai foi o amor e as deliacutecias do
gecircnero humano Tanto de inteligecircncia de habilidade e de fortuna abundava nele que ganhava a
simpatia de todos o que eacute muito difiacutecil durante um governordquo (Titus cognomine paterno amor
ac deliciae generis humani ndash tantum illi ad promerendam omnium voluntatem vel ingenii vel
artis vel fortunae superfuit et quod difficillimum est in impeacuterio () (Suet Tit 11) Com essa
seleccedilatildeo vocabular Suetocircnio ldquonos daacuterdquo o retrato de um imperador diferente de Claacuteudio Eacute esse
retrato com vastos predicados perante a humanidade que serviu de fonte para Machado de
Assis fazer o jogo de palavras com o termo ldquodeliacuteciardquo na ldquoideia fixardquo de um professor
Para encerrar a anaacutelise do capiacutetulo conveacutem observar a segunda referecircncia a tais principes
em ldquoViva pois a histoacuteria a voluacutevel histoacuteria que daacute para tudo e tornando agrave ideacutea fixa direi que
eacute ela a que faz os varotildees fortes e os doudos a ideacutea moacutebil vaga ou furta-cor eacute a que faz os
Claacuteudios mdash formula Suetocircniordquo (Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap
IV p 103) O Bruxo do Cosme Velho brinca com o gecircnero historiograacutefico ao qual o gecircnero
biograacutefico estaacute aparentado Chamando a histoacuteria de voluacutevel ele usa novamente o verbo ldquodarrdquo
Em nossa interpretaccedilatildeo o narrador quer reforccedilar que a histoacuteria ldquodaacuterdquo na acepccedilatildeo de ldquopromoverrdquo
diversos retratos sejam eles positivos ou negativos a depender da ldquoideiardquo que cada personagem
possui Esse modus operandi da formulaccedilatildeo de Suetocircnio muito se relaciona com o de Machado
Avancemos agora ao capiacutetulo XXIII de Memoacuterias Poacutestumas intitulado Triste mas curto
Em tal capiacutetulo Cubas narra sua chegada ao Rio de Janeiro e a sensaccedilatildeo de rever os locais de
sua infacircncia a tristeza de sua famiacutelia e o sofrimento de sua progenitora Quando vecirc sua matildee
com quem natildeo tinha contato haacute nove anos acha-a paacutelida e sem soltar uma palavra sequer pega
em suas matildeos No dia seguinte ela vem a falecer sendo a primeira vez que ele teria tido contato
com a morte de perto de uma pessoa amada Neste iacutenterim ele faz referecircncia a mais um ceacutesar
descrito por Suetocircnio o proacuteprio Juacutelio Ceacutesar que embora natildeo tenha chegado a ser um
ldquoimperadorrdquo enquanto chefe de estado eacute ele quem ldquodesenhardquo o que viria a ser o Impeacuterio
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romano iniciado por seu sobrinho-neto Otaviano Por essa razatildeo tambeacutem incluiacutemos tal general
em nossas anaacutelises e eacute assim referenciado no romance
Longa foi a agonia longa e cruel de uma crueldade minuciosa fria repisada que me
encheu de dor e estupefacccedilatildeo Era a primeira vez que eu via morrer algueacutem Conhecia
a morte de outiva quando muito tinha-a visto jaacute petrificada no rosto de algum
cadaacutever que acompanhei ao cemiteacuterio ou trazia-lhe a ideacutea embrulhada nas
amplificaccedilotildees de retoacuterica dos professores de coisas antigas mdash a morte aleivosa de
Ceacutesar a austera de Soacutecrates a orgulhosa de Catatildeo (Machado de Assis Memoacuterias
Poacutestumas de Braacutes Cubas cap XXIII p 145)
Nas referidas amplificaccedilotildees retoacutericas ressoa a morte do filoacutesofo Soacutecrates a qual de fato
ficou no imaginaacuterio ocidental como uma morte ldquoausterardquo dado o fato de ele ter se mantido
firme em suas ideias ldquocorruptorasrdquo dos jovens atenienses ateacute a hora de seu oacutebito A morte de
Catatildeo o Jovem tambeacutem eacute adjetivada por Braacutes Cubas poreacutem como ldquoorgulhosardquo A respectiva
adjetivaccedilatildeo se apresenta com ecircxito dado o fato de Catatildeo ter sido um poliacutetico romano notaacutevel
por sua integridade moral Sendo ele ainda partidaacuterio da filosofia estoica descrito pelo
historiador Saluacutestio como a antiacutetese direta de Juacutelio Ceacutesar suicidou-se apoacutes a vitoacuteria deste seu
opositor na Batalha de Tapso
Concentremo-nos poreacutem na morte de Ceacutesar mesmo que natildeo haja nenhuma associaccedilatildeo
direta dele com o bioacutegrafo diferentemente dos excertos com os imperadores anteriores isso
natildeo nos impede de relacionaacute-los O narrador machadiano adjetiva tal morte como ldquoaleivosardquo
denotando a atmosfera da traiccedilatildeo pela qual Ceacutesar passou no Senado romano relatada em sua
biografia deste modo
Assidentem conspirati specie officii circumsteterunt ilicoque Cimber Tillius qui
primas partes susceperat quasi aliquid rogaturus propius accessit renuentique et gestu
in aliud tempus differenti ab utroque umero togam adprehendit deinde clamantem
ldquoIsta quidem vis estrdquo alter e Cascis aversum vulnerat paulum infra iugulum Caesar
Cascae brachium arreptum graphio traiecit conatusque prosilire alio vulnere tardatus
est utque animadvertit undique se strictis pugionibus peti toga caput obvoluit simul
sinistra manu sinum ad ima crura deduxit quo honestius caderet etiam inferiore
corporis parte velata Atque ita tribus et viginti plagis confossus est uno modo ad
primum ictum gemitu sine voce edito etsi tradiderunt quidam Marco Bruto irruenti
dixisse καὶ σὺ τέκνον (Suet Jul 82 1-2)
Os que haviam concordado com a natureza do trabalho rodeavam aquele que estava
sentado Sem demorar Ciacutember Tiacutelio que se encarregava dos primeiros papeacuteis como
se houvesse de falar algo caminhou para mais perto Ceacutesar negando atraveacutes de um
gesto contraacuterio passou-o para outro momento Por ambos os lados aquele apertou sua
toga Entatildeo Ceacutesar clamou ldquoIsso eacute verdadeiramente uma violecircnciardquo Um dos Cascas
jaacute lhe tinha ferido por traacutes um pouco abaixo da garganta Com um ponteiro furou com
um ponteiro o braccedilo arrebatado de Casca e o impulso de arremeter foi detido por uma
outra ferida Mas quando observou que seria tomado por robustos punhais por todos
os lados cobriu a cabeccedila com a toga Ao mesmo tempo com a matildeo esquerda conduziu
a dobra da veste ateacute as extremidades das pernas de modo que jaacute estando com a parte
inferior do corpo coberta caiacutesse mais honrosamente Desta maneira foi dilacerado
por vinte e trecircs golpes Ateacute a primeira ferida teria produzido apenas um gemido sem
uma palavra sequer embora alguns afirmem que com o ataque de Marco Bruto teria
dito ldquoTambeacutem tu meu filhordquo
Como reconhecemos esses escritos de Suetocircnio com grande carga dramaacutetica foram
grandes responsaacuteveis por propagar no imaginaacuterio do mundo ocidental este evento que mudou
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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os rumos da Roma Antiga Machado de Assis foi ciruacutergico ao usar a palavra aleivosa para
qualificar a morte de Ceacutesar a qual condensa toda a ideia da conjuraccedilatildeo Muito provavelmente
teve acesso a isso atraveacutes da referida biografia
Podemos avanccedilar ao capiacutetulo LXXII do romance cujo tiacutetulo eacute O bibliocircmano no qual o
defunto-autor confessa que deveria suprimir o capiacutetulo antecedente alegando haver nele um
despropoacutesito acerca do qual natildeo gostaria de receber criacuteticas Afirma que setenta anos agrave frente
este leitor que eacute por ele caracterizado e denominado ldquobibliocircmanordquo procuraria minuciosamente
o tal ldquodespropoacutesitordquo poreacutem sem ecircxito natildeo encontraria Em seguida explica que ele natildeo o
encontraria pelo simples fato de ele natildeo existir jaacute que foi suprimido Discorre ainda que isso
natildeo causaria o desinteresse do leitor sobre o livro e que pelo contraacuterio ele o adoraria por ser
um exemplar uacutenico O bibliocircmano continua sua procura mas mesmo sem sucesso se contenta
com o fato de dispor do uacutenico tomo
Jaacute prometeu a si mesmo escrever uma breve memoacuteria na qual relate o achado do livro
e a descoberta da sublimidade se a houver por baixo daquela frase obscura Ao cabo
natildeo descobre nada e contenta-se com a posse Fecha o livro mira-o remira-o chega-
se agrave janela e mostra-o ao sol
Um exemplar uacutenico Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um Ceacutesar ou um
Cromwell a caminho do poder Ele daacute de ombros fecha a janela estira-se na rede e
folheia o livro de vagar com amor aos goles Um exemplar uacutenico (Machado de
Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap LXXII p 209-210)
Neste excerto em que Braacutes Cubas manteacutem sua divagaccedilatildeo sobre o despropoacutesito da mesma
forma que fez com a noccedilatildeo de ideia fixa notamos a segunda referecircncia ao general Juacutelio Ceacutesar
A menccedilatildeo a Ceacutesar e a Cromwell visa ilustrar o modo como uma pessoa estaria transitando pela
rua ldquoa caminho do poderrdquo Oliver Cromwell foi um comandante militar e poliacutetico nascido na
nobreza rural inglesa em 1599 Em 1630 passa por uma conversatildeo religiosa e reconhecendo-
se como um Puritano acreditava que Deus era quem o guiava em suas vitoacuterias sendo muito
ativo durante a Guerra Civil Inglesa Mas quem mais nos interessa eacute o outro poliacutetico e militar ndash
Juacutelio Ceacutesar ndash e este nome associado agrave expressatildeo ldquocaminho do poderrdquo leva-nos a lembrar de
outro aspecto cultural da Roma Antiga ndash a travessia ao Rio Rubicatildeo Jaacute durante a Repuacuteblica
esse rio que dividia a proviacutencia da Gaacutelia Cisalpina (ao norte) do resto da Itaacutelia (ao sul) era de
suma importacircncia visto que a lei romana proibia que fosse transpassado por quaisquer legiotildees
do exeacutercito romano caso isso fosse feito denotaria uma ameaccedila militar interna
Resumidamente os sucessos de Ceacutesar na Gaacutelia acarretaram o aumento de seu poder de
sua popularidade e da ira de seus inimigos Estes influenciados por Catatildeo o Jovem (tambeacutem
jaacute referido no romance de Machado) tentaram promover sua ruiacutena poliacutetica Em 50 AEC o
Senado aprovou uma moccedilatildeo para que Ceacutesar fosse retirado do cargo de governador na Gaacutelia
Marco Antocircnio embasado pelo poder de tribuno do povo vetou a proposta Apoacutes isso houve
uma intensa perseguiccedilatildeo aos partidaacuterios de Juacutelio Ceacutesar Antocircnio precisou deixar Roma por
conta da alta probabilidade de ser assassinado e sem oposiccedilatildeo do Senado declarou estado de
emergecircncia delegando poderes excepcionais a Pompeu Magno Ceacutesar retrucou isso com a
famosa cruzada assim relatada por Suetocircnio
Dein post solis occasum mulis e proximo pistrino ad vehiculum iunctis occultissimum
iter modico comitatu ingressus est et cum luminibus extinctis decessisset via diu
errabundus tandem ad lucem duce reperto per angustissimos tramites pedibus evasit
Consecutusque cohortis ad Rubiconem flumen qui provinciae eius finis erat paulum
constitit ac reputans quantum moliretur conversus ad proximos ldquoEtiam nuncrdquo
inquit ldquoregredi possumus quod si ponticulum transierimus omnia armis agenda
eruntrdquo (Suet Jul 31 2)
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Em seguida apoacutes o pocircr do Sol atadas as mulas desde o moinho mais proacuteximo ateacute o
veiacuteculo mais escondido comeccedilou o caminho com uma modesta caravana Com as
luzes acabando ia-se embora pelo caminho Entatildeo durante o dia tendo aparecido um
guia com peacutes errantes evadiu pelas mais estreitas veredas E acompanhado pelas
coortes ateacute o rio Rubicatildeo que traccedila o limite de sua proviacutencia parou um pouco e
calculou o quanto se moveu virou-se aos mais proacuteximos e disso ldquoAteacute agora podemos
recuar porque se atravessarmos a pequena ponte todas as coisas deveratildeo ser feitas
atraveacutes das armasrdquo
Cunctanti ostentum tale factum est Quidam eximia magnitudine et forma in proximo
sedens repente apparuit harundine canens ad quem audiendum cum praeter pastores
plurimi etiam ex stationibus milites concurrissent interque eos et aeneatores rapta ab
uno tuba prosilivit ad flumen et ingenti spiritu classicum exorsus pertendit ad alteram
ripam Tunc Caesar ldquoEaturrdquo inquit ldquoquo deorum ostenta et inimicorum iniquitas
vocat Iacta alea estrdquo inquit (Suet Jul 32)
Com ele ainda de tal modo titubeando foi eficaz um prodiacutegio Apareceu de repente
ali proacuteximo uma certa pessoa que estava sentada tocando com uma flauta exiacutemia em
grandeza e forma Para o ouvirem correram muitos pastores tambeacutem muitos soldados
das guarniccedilotildees entre eles alguns tocadores de trombeta Com a trombeta tomada de
um deles o muacutesico lanccedilou-se ao rio E com um imenso vigor realizou um toque
introdutoacuterio ateacute a outra margem do rio Entatildeo disse Ceacutesar ldquoVamos para onde o sinal
dos deuses e a hostilidade dos inimigos nos chamam A sorte estaacute lanccediladardquo
Como jaacute frisamos por parte do narrador de Machado natildeo haacute nenhuma referecircncia direta
desse Ceacutesar ao bioacutegrafo Suetocircnio mas vemos relaccedilotildees diretas entre o ato da desconhecida
pessoa ldquoa caminho do poderrdquo e os atos do general romano Mais uma vez o autor foi ciruacutergico
no uso da expressatildeo destacada para a qual muito provavelmente teve acesso ao excerto de
Suetocircnio cujo conteuacutedo tambeacutem faz parte do imaginaacuterio ocidental ndash a travessia ao rio Rubicatildeo
antecedida da frase ldquoA sorte estaacute lanccediladardquo Cabe lembrar que Machado jaacute usara a expressatildeo no
capiacutetulo XIII de seu romance Helena publicado em 1876 quando o personagem Estaacutecio na
tentativa de esquecer o amor pela protagonista Helena decide pedir Eugecircnia em casamento
Naquela mesma noite ouviu Eugecircnia a esperada palavra A alegria que se lhe
derramou nos olhos foi imensa e caracteriacutestica Um pouco mais de recato natildeo era
descabido em tal ocasiatildeo Natildeo houve nenhum o primeiro ato da mulher foi uma
meninice Eugecircnia ignorava tudo ateacute a dissimulaccedilatildeo do sexo Concedendo a matildeo a
Estaacutecio natildeo era uma castelatilde que entregava o precircmio mas um cavaleiro que o recebia
com alvoroccedilo e submissatildeo
Transposto o Rubicon natildeo havia mais que caminhar direito agrave cidade eterna do
matrimocircnio Estaacutecio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr Camargo pedindo-lhe
a matildeo de Eugecircnia carta seca e digna como as circunstacircncias a pediam (Machado de
Assis Helena cap XIII p 133)
Terminadas as referecircncias ao instaurador da dinastia juacutelio-claudiana faccedilamos um salto
ao capiacutetulo CXVI intitulado Filosofia das folhas velhas no qual Braacutes Cubas alega ter ficado
tatildeo triste com o capiacutetulo anterior a este4 pelo fato de sua amante Virgiacutelia ter embarcado para a
Europa No capiacutetulo CXVI vemos referecircncia a outro imperador associado ao escrito
suetoniano nesse caso trata-se do jaacute referido Domiciano
Apoacutes um governo moderado de dez anos o do seu pai Vespasiano seguido por outro
governo tambeacutem moderado de apenas dois anos o do seu irmatildeo Tito de modo contraacuterio
4 O capiacutetulo CXV intitulado O almoccedilo
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Domiciano assume com bastante autoritarismo Durante seus quinze anos de governo o uacuteltimo
imperador flaviano cometeu assassinatos de diversos cidadatildeos importantes incluindo
senadores Essas razotildees acarretaram numa conjuraccedilatildeo para a sua morte E diferente do seu pai
e irmatildeo que foram divinizados apoacutes a morte Domiciano ldquorecebeurdquo do Senado um decreto para
a sua damnatio memoriae essa danaccedilatildeo da memoacuteria significava as retiradas de suas imagens
em bustos inscriccedilotildees etc
Esclarecidos esses pontos sobre o imperador Domiciano voltemos a Braacutes Cubas O
narrador inicia o referido capiacutetulo em questatildeo refletindo pela metalinguagem ldquoFiquei tatildeo triste
com o fim do uacuteltimo capiacutetulo que estava capaz de natildeo escrever este descansar um pouco purgar
o espiacuterito da melancolia que o empacha e continuar depois Mas natildeo natildeo quero perder tempordquo
(Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258) e continua a
reflexatildeo
A partida de Virgiacutelia deu-me uma amostra da viuvez Nos primeiros dias meti-me em
casa a fisgar moscas como Domiciano se natildeo mente o Suetocircnio mas a fisgaacute-las de
um modo particular com os olhos Fisgava-as uma a uma no fundo de uma sala
grande estirado na rede com um livro aberto entre as matildeos (Machado de Assis
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258)
O narrador-personagem machadiano Braacutes Cubas discorre sobre seu desgosto pela vida
e sobre a monotonia agrave qual estava submetido apoacutes a partida da mulher ldquoextraconjugalmenterdquo
amada Virgiacutelia Notamos que para ilustrar de modo exagerado o desacircnimo por parte de Braacutes
Cubas sendo esse abatimento comparado a uma viuvez Machado de Assis apresenta seu
defunto-autor de um modo tatildeo ocioso que fisgava as moscas apenas com os olhos Ou seja ele
eacute apresentado mais ociosamente que o imperador Domiciano que espetava moscas A fim de
captarmos essa menccedilatildeo valemo-nos do capiacutetulo 3 da biografia de Domiciano
Inter initia principatus cotidie secretum sibi horarum sumere solebat nec quicquam
amplius quam muscas captare ac stilo praeacuto configere ut cuidam interroganti
essetne quis intus cum Caesare non absurde responsum sit a Vibio Crispo ne muscam
quidem (Suet Dom 3)
Durante os iniacutecios de seu principado solitaacuterio estava ele habituado diariamente pelas
horas a colher para si nada mais que moscas e prender com um estilete pontudo Para
uma certa interrogaccedilatildeo se acaso natildeo tinha ningueacutem dentro do local com Ceacutesar de
modo adequado teria sido respondido por Viacutebio Crispo que natildeo que nem mesmo
uma mosca
Notamos entatildeo que se por um lado atraveacutes da intertextualidade Machado se volta para
o Domiciano de Suetocircnio com o intuito de descortinar o estado de alma de Braacutes Cubas por
outro Suetocircnio apresenta essa anedota das moscas para condicionar seu leitor a um juiacutezo
negativo sobre o retrato moral de Domiciano que nada fazia em prol da burocracia puacuteblica no
iniacutecio de seu principado Essa anedota sobre Domiciano com Viacutebio Crispo enquanto locutor
jamais deixaria de ser apresentada por Suetocircnio haja vista que os atos burocraacuteticos bem como
as accedilotildees militares e diplomaacuteticas faziam parte das temaacuteticas de suas biografias Somos tentados
a crer que o fato de Suetocircnio ser oriundo da ordem dos equestres e mais tarde ter assumido
algumas funccedilotildees puacuteblicas durante o principado de Trajano e de Adriano tambeacutem teria
contribuiacutedo para sua atenccedilatildeo a esses tipos de chistes
Embora Suetocircnio natildeo seja visto como um historioacutegrafo mas sim como um erudito
bioacutegrafo e natildeo tenha pertencido agrave ordem senatorial sabemos que ele enveredou pela tradiccedilatildeo
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historiograacutefica senatorial isto eacute aquela que retratava moralmente bem os imperadores
favoraacuteveis ao Senado e moralmente mal os refrataacuterios a esse corpo Isso talvez tenha se dado
graccedilas ao seu contato com o influente senador Pliacutenio o Jovem e ao participar do seu ciacuterculo
de amizades tambeacutem teve contato com os historiadores Taacutecito e Faacutebio Ruacutestico Podemos
depreender que Domiciano natildeo deixou de apresentar motivos para ser exageradamente mal
retratado pela pena suetoniana e por isso a ressalva de Braacutes Cubas que diz ldquose natildeo mente o
Suetocircniordquo
Avancemos ao capiacutetulo CLII intitulado A moeda de Vespasiano no qual encontramos a
uacuteltima menccedilatildeo feita desde seu tiacutetulo a um imperador romano retratado por Suetocircnio Em tal
capiacutetulo na volta do enterro de Lobo Neves Braacutes Cubas refletia sobre o choro mais
precisamente sobre os soluccedilos sinceros da sua amante Virgiacutelia para o marido ao qual tinha
traiacutedo com igual sinceridade
Jaacute sabemos algumas informaccedilotildees acerca do ceacutesar em questatildeo todavia vale reforccedilar que
foi ele quem saiu vitorioso do conhecido historicamente Ano dos Quatro Imperadores em 69
Apoacutes o suiciacutedio ocorrido em 68 do uacuteltimo juacutelio-claudiano ndash o polecircmico Nero ndash que natildeo havia
deixado ningueacutem para linha sucessoacuteria os generais Galba Otatildeo Viteacutelio e Vespasiano atraveacutes
de sucessivos confrontos armados guerrearam entre si ansiando o trono deixado por Nero
Com a vitoacuteria de Vespasiano eacute instaurada a dinastia flaviana Entatildeo passemos ao curto capiacutetulo
das Memoacuterias Poacutestumas em completude
Tinham ido todos soacute o meu carro esperava pelo dono Accendi um charuto afastei-
me do cemiteacuterio Natildeo podia sacudir dos olhos a cerimocircnia do enterro nem dos ouvidos
os soluccedilos de Virgiacutelia Os soluccedilos principalmente tinham o som vago e misterioso
de um problema Virgiacutelia traiacutera o marido com sinceridade e agora chorava-o com
sinceridade Eis uma combinaccedilatildeo difiacutecil que natildeo pude fazer em todo o trajecto em
casa poreacutem apeando-me do carro suspeitei que a combinaccedilatildeo era possiacutevel e ateacute
faacutecil Meiga Natura A taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave
origem e tanto se colhe do mal como do bem A moral repreenderaacute porventura a
minha cuacutemplice eacute o que te natildeo importa implacaacutevel amiga uma vez que lhe recebeste
pontualmente as laacutegrimas Meiga trecircs vezes Meiga Natura (Machado de Assis
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CLII p 294)
Percebemos que na busca pela anaacutelise do estado de alma de sua amada Virgiacutelia o narrador
Braacutes Cubas reverbera que ldquoA taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave origem
e tanto se colhe do mal como do bemrdquo Mas de onde ele teria tirado essas relaccedilotildees semacircnticas
entre o imperador Vespasiano-moeda-taxa-cheiro Pois bem Mais uma vez quem nos traz a
resposta eacute Suetocircnio
Reprehendenti filio Tito quod etiam urinae vectigal commentus esset pecuniam ex
prima pensione admovit ad nares sciscitans num odore offenderetur et illo negante
ldquoAtquin inquit e lotio estrdquo (Suet Vesp 233)
Repreendeu seu filho Tito porque ele Vespasiano teria inventado um imposto sobre
a urina que por aquele foi advertido entatildeo aproximou o dinheiro do primeiro
pagamento desse tributo do nariz de Tito E perguntando-o se acaso natildeo se sentia
incomodado com odor e Tito negando Vespasiano respondeu No entanto eacute
proveniente da urinardquo
Na curiosa anedota Vespasiano criador de um imposto sobre a urina pois muitos
comerciantes as retiravam das latrinas puacuteblicas e as utilizavam para curtir os tecidos que
vendiam repreende o primogecircnito por ter discordado inicialmente da ideia Natildeo temos duacutevidas
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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de que Machado de Assis teve acesso a essa biografia para usar com propriedade em seu
romance nessa cena em que seu narrador busca explicaccedilotildees para fatos aparentemente
contraditoacuterios
Esse excurso pelas duas obras aparentemente distantes e des-relacionadas nos deu a liccedilatildeo
de que o narrataacuterio enquanto entidade leitora fictiacutecia compreende e decodifica os aspectos
concernentes agraves personalidades em apreccedilo os princepes no entanto para o leitor ideal isso se
mostra mais obscuro Machado de Assis aproveita os questionaacuteveis retratos dos ceacutesares de
Suetocircnio para enriquecer sua obra literaacuteria
Assim contribuindo mais para a compreensatildeo do romance machadiano pela anaacutelise da
traduccedilatildeo a qual nos permitiu o estudo sobre as referecircncias agrave histoacuteria agrave cultura e agrave literatura da
Roma Antiga cristalizados pelos Claacuteudio Tito Ceacutesar Domiciano e Vespasiano suetonianos
os esforccedilos empreendidos teratildeo alcanccedilado seu objetivo nessas ressignificaccedilotildees Se as
referecircncias e os eventos atrelados a esses ceacutesares que nos foram ldquodadosrdquo pelas biografias de
Suetocircnio tiverem sido descortinados dentro das Memoacuterias Poacutestumas de Machado de Assis
podemos ficar sem ldquoideias fixasrdquo de que criamos ldquodespropoacutesitosrdquo
IacuteNDICE DE ABREVIACcedilOtildeES
Suet Cl (Suetocircnio Claacuteudio)
Suet Dom (Suetocircnio Domiciano)
Suet Jul (Suetocircnio Juacutelio Ceacutesar)
Suet Tit (Suetocircnio Tito)
Suet Ves (Suet Vespasiano)
DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL
ASSIS Joaquim Maria Machado de Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Rio de Janeiro
Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975
______ Helena Rio de Janeiro Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975
SUETONIUS Lives of the Caesars Volume I Julius Augustus Tiberius Gaius
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946511
LUCIacuteOLA E O TRAacuteGICO ESTUDO ACERCA DAS MARCAS DO HEROacuteI
TRAacuteGICO EM UM PERFIL DE MULHER ALENCARIANO
Heitor Victor
RESUMO Recorrer aos claacutessicos para entender nosso tempo natildeo eacute mesmo nenhuma novidade
Apelar para a trageacutedia grega a fim de identificar o que persiste em nossa compreensatildeo acerca
de noacutes mesmos se tornou lugar comum de investigaccedilotildees em diversas aacutereas de interesse Tal
estrateacutegia se repete em razatildeo evidentemente de uma inesgotaacutevel potecircncia alegoacuterica acerca da
existecircncia humana O que pretendo neste breve trabalho eacute uma anaacutelise em linha comparativa
das marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia de Alencar personagem que o proacuteprio autor considera
um de seus perfis de mulher Para tal dialogo com Benjamin que se apresenta como um elo de
compreensatildeo do heroacutei traacutegico figura esta que se mostrou mais longeva do que a proacutepria trageacutedia
helecircnica
PALAVRAS-CHAVE Luciacuteola Traacutegico Heroiacutena
LUCIacuteOLA AND THE TRAGIC ESSAY ABOUT THE MARKS OF THE
TRAGIC HERO IN A WOMAN PROFILE OF JOSEacute DE ALENCAR
ABSTRACT It is no novelty that a return to the classics helps to understand our own time It is
even a commonplace in many research fields that an approach to greek tragedy makes it
possible for us to better understand ourselves Such a strategy still turns out to be suitable
because there is an ongoing possibility of creating allegories of human existence My aim in
this short essay is to perform a comparative analysis of the tragical features of Luacutecia an
important character of Joseacute de Alencars prose who the author himself deems to be a crucial
example of his depictions of the feminine In order to do that I draw upon Walter Benjamins
work which provides us with a comprehensive overview of the tragic hero - who actually
proved himself to be more important than the helenic tragedy itself
KEYWORDS Luciacuteola Tragic Heroine
Introduccedilatildeo
O teatro traacutegico dos gregos natildeo pode mais retornar isso eacute um fato mas eacute marcante a sua
presenccedila ainda em nossa literatura ocidental Analisar o elemento traacutegico natildeo eacute necessariamente
uma novidade mas sempre se mostra desafiador relacionarmos o traacutegico agrave estrutura de
composiccedilatildeo da personagem do romance na literatura moderna O presente trabalho pretende
Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
E-mail heitor-victorhotmailcom
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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pois fazer uma leitura da personagem Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar pioneira da
seacuterie perfis de mulher como construiacuteda sob o signo do traacutegico uma heranccedila legada pelo teatro
grego e que perdura em nossa cultura
O desafio que salta aos olhos eacute certamente as dificuldades de se transpor para o romance
caracteriacutesticas da personagem do texto dramaacutetico ou entender nesta a capacidade de se
apresentar com a profundidade comum ao romance Eacute possiacutevel entender contudo que retiradas
as divergecircncias praacuteticas do meio de veiculaccedilatildeo das narrativas sobram elementos em comum
que residem no imaginaacuterio coletivo e soacute fazem enriquecer o repertoacuterio de leituras que nos
permite a prosa alencariana do seacuteculo XIX
Luacutecia eacute uma das heroiacutenas mais complexas de seu autor capaz de em poucas paacuteginas
fazer o leitor se questionar sobre sua verdadeira natureza ora por sua candura ora por sua ironia
aacutecida apego e desprendimento iacutempares no cenaacuterio romanesco de um tempo que vecirc transbordar
a quantidade de novas e encantadoras personagens Nossa heroiacutena permite-nos destacaacute-la
exatamente por encerrar um signo que extrapola o estilo de seu tempo por meio de grandes
dicotomias autoconsciecircncia e culpa sacrifiacutecio e desejo silecircncio e seduccedilatildeo a personagem se
nos mostra uacutenica no cenaacuterio veloz e dinacircmico dos romances de folhetim
Sublime Decaiacutedo Uma Alegoria
No intuito de criar um elemento intermediaacuterio entre o heroacutei da trageacutedia e o heroacutei traacutegico
que mostrarei estar presente no romance Luciacuteola de Joseacute de Alencar seraacute preciso recorrer agrave
descriccedilatildeo desse heroacutei feita por Walter Benjamin (2011) acerca do drama traacutegico alematildeo
Enquanto aparato cecircnico ou mesmo de criaccedilatildeo literaacuteria encontramos outro contexto e outra
realidade mas o elemento fundamental ainda estaraacute laacute presente O heroacutei traacutegico manteraacute uma
seacuterie de aspectos essenciais que o transformam no portador da anguacutestia humana sem perder o
inexoraacutevel do mito despido ainda mais do movimento de ritualizaccedilatildeo religioso Eacute o traacutegico que
permanece e esse seraacute fundamental para a construccedilatildeo de uma identidade nacional do drama
alematildeo segundo o autor o que nos mostra o potencial desse heroacutei traacutegico no processo de
aproximaccedilatildeo entre o discurso formador e o seu espectador (BENJAMIN 2011)
Um primeiro elemento identificado por Benjamin (2011) que nos interessa no heroacutei
traacutegico eacute o seu caraacuteter alegoacuterico se eacute que posso falar em alegoria do mito que jaacute o eacute em essecircncia
Certamente contudo figura nesse elemento a grande potecircncia reflexiva da personagem traacutegica
que poderaacute ser transportado para Luacutecia Ao relevarmos a ambiccedilatildeo do autor de traccedilar perfis de
mulher1 a alegoria destaca Luacutecia de Emiacutelia e Aureacutelia o que faz evidenciar naquela a tragicidade
em comparaccedilatildeo com estas Deixe-me verificar antes e em linhas mais gerais o que entende
Benjamin por alegoria no drama traacutegico
Devo dispensar em razatildeo de objetivos praacuteticos a discussatildeo do autor acerca das
concepccedilotildees de alegoacuterico e simboacutelico para o barroco e para o romantismo para ir diretamente ao
ponto o alegoacuterico eacute entendido como aquele que supera a unidade da obra e se posiciona com
transcendecircncia agrave medida que o siacutembolo se encerra em si mesmo mostra identidade e um caraacuteter
proacuteprio da obra em que se coloca Benjamin recorre a Goethe para mostrar a concepccedilatildeo
romacircntica de siacutembolo e alegoria ldquoHaacute uma grande diferenccedila entre o poeta procurar o particular
para chegar ao geral e contemplar o geral no particular No primeiro procedimento temos uma
alegoria e o particular serve apenas como exemplo como caso exemplar do geralrdquo
(BENJAMIN 2011 p 171)
1 Natildeo devemos deixar de reconhecer que essa intenccedilatildeo descritiva de construccedilatildeo de um perfil apresenta-se como
um elemento romanesco do narrador de Luciacuteola Como visto no primeiro capiacutetulo da obra quando o narrador
se justifica a G M sua pretensa correspondente ldquoEacute um perfil de mulher apenas esboccediladordquo (ALENCAR 1972
p 121) A todo momento que eu tocar nesse ponto se deve reconhecer que a nossa base reside antes de tudo
nesse caraacuteter narrativo do romance alencariano
Heitor Victor
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A despeito da valoraccedilatildeo feita por Goethe seguiremos a leitura de Benjamin para
entender Luacutecia como o caso particular representativo de um perfil maior o da mulher que
encarna o anjo caiacutedo seu nome daacute a grande indicaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo alegoacuterica mas a mesma
natildeo deixa de aparecer ao longo da obra Reconhecerei em minha anaacutelise na Luacutecia de Alencar
a alegoria da mulher sublime que decai em todo o seu caraacuteter duacutebio mas ainda assim
permanente que morre ao final do romance natildeo agrave toa mas de maneira necessaacuteria para
consolidar a aspiraccedilatildeo alegoacuterica desse perfil de mulher talvez o mais ousado de Alencar
Benjamin reconhece que
o seu (da alegoria) significado eacute aquele que o alegorista lhe atribuir Ele investe-o
desse significado e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele natildeo em sentido
psicoloacutegico mas ontoloacutegico Nas suas matildeos a coisa transforma-se em algo de diverso
atraveacutes dela ele fala de algo de diverso e ela torna-se para ele a chave que lhe daacute acesso
a um saber oculto que ele venera na coisa como seu emblema Eacute nisso que reside o
caraacuteter escritural da alegoria (BENJAMIN 2011 p 196)
Esse seraacute portanto o meu ponto de partida Para natildeo deixar qualquer duacutevida sobre essa
relaccedilatildeo devo me deter nesse tema ainda para mostrar na obra algumas marcas dessa relaccedilatildeo A
comeccedilar pelo elemento dramaacutetico de narraccedilatildeo o recado de G M ldquoao autorrdquo Apoacutes reconhecer
a grandeza da personagem e o valor da narrativa que se seguiraacute dramaticamente posta como
uma publicaccedilatildeo da mesma G M afirma ldquoNatildeo seraacute a imagem verdadeira da mulher que no
abismo da perdiccedilatildeo conserva a pureza drsquoalmardquo (ALENCAR 1972 p 120) Natildeo se pode
desaperceber que eacute usado natildeo a referecircncia definida dedicada agrave Luacutecia mas uma referecircncia geral
a todas as mulheres Eacute exatamente nesse caraacuteter geneacuterico que residiria o valor alegoacuterico de que
trato neste trabalho
Podemos tambeacutem recorrer aos eventos narrados no interior do romance para vermos
personificada a alegoria do anjo caiacutedo seja pela capacidade de transitar com primor entre um e
outro digo entre o angelical e o demoniacuteaco ou seja por encerrar em si mesma os dois
extremos Luacutecia se nos apresenta apenas pela narrativa de Paulo natildeo se pode esquecer e muito
de sua transitoriedade pode residir apenas nas impressotildees desse narrador personagem mas isso
em nada muda o seu caraacuteter alegoacuterico Um episoacutedio que expressa com clareza a ambivalecircncia
de Luacutecia eacute o de seu primeiro encontro iacutentimo com Paulo Em curto espaccedilo de tempo
cronoloacutegico e narrativo vemos uma transformaccedilatildeo que beira a ida pronta do sagrado ao
profano No momento em que avanccedila sobre Luacutecia Paulo reconhece
Quando poreacutem os meus laacutebios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as
formas encantadoras que debuxavam a seda pareceu-me que o sangue lhe refluiacutea ao
coraccedilatildeo As palpitaccedilotildees eram bruscas e precipites Estava liacutevida e mais branca do que
o alvo colarinho do seu roupatildeo Duas laacutegrimas em fio duas laacutegrimas longas e sentidas
como dizem que chora a corccedila expirando pareciam cristalizadas sobre a face de tatildeo
lentas que rolavam (ALENCAR 1972 p 134-135)
Vemos aqui com a reaccedilatildeo genuiacutena de Luacutecia somada agraves laacutegrimas sua comparaccedilatildeo ao
choro da corccedila notamos aqui o temperamento puro que nos surpreende a todos narrador e
leitor Surpresa que se justifica com a mudanccedila abrupta de Luacutecia para entregar a imagem que
nos foi construiacuteda pelos pares de Paulo de que nossa heroiacutena se tratava de uma cortesatilde das mais
haacutebeis
Era outra mulher O rosto cacircndido e diaacutefano que tanto me impressionou agrave doce
claridade da lua se transformara completamente tinha agora uns toques ardentes e
um fulgor estranho que o iluminava Os laacutebios finos e delicados pareciam tuacutemidos dos
desejos que incubavam Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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narina que tremiam com o aneacutelito do respiro curto e sibilante e tambeacutem nos fogos
surdos que incendiavam a pupila negra (ALENCAR 1972 p 136)
Nessa transformaccedilatildeo se apresenta a indistinguiacutevel transiccedilatildeo do sagrado do choro da
corccedila para a respiraccedilatildeo sibilante demoniacuteaca em lasciacutevia Seria inuacutetil continuar enumerando os
momentos em que se evidencia tal transformaccedilatildeo acredito que esses episoacutedios partem da
anteriormente citada alegoria que pode nortear nossa leitura do romance
Natildeo nos seraacute nunca possiacutevel bater o martelo sobre tal questatildeo seria Luacutecia o siacutembolo de
Goethe ou a alegoria de Benjamin Somando contudo as marcas supracitadas a ainda o
reconhecimento de outras marcas do traacutegico preferirei me manter na leitura de Benjamin de
que o alegoacuterico eacute ainda desejaacutevel mesmo no romance exatamente por seu valor transcendente
e assim poderemos entender Luacutecia e seu perfil exclusivo de mulher como tambeacutem dotado de
valor reflexivo e generalista das anguacutestias femininas
Marcas do Heroacutei Traacutegico
As laacutegrimas do episoacutedio transcrito acima servem como indicador do demais elementos
de proximidade entre o heroacutei traacutegico de Benjamin e a Luacutecia de Alencar Tal choro evidencia
uma dor suprimida mas acima de tudo encerra em si quatro aspectos sobre os quais tratarei
neste trabalho o silecircncio a culpa a consciecircncia e o sacrifiacutecio O silecircncio de quem guarda para
si o seu verdadeiro eu suas dores e reflexotildees Eacute nas laacutegrimas que temos o primeiro vislumbre
da profundidade traacutegica de Luacutecia A personagem demonstra nesse exato momento plena
consciecircncia de si de seu destino e sente a culpa que pesa sobre si as laacutegrimas expressam o
ardor do seu sacrifiacutecio pois satildeo sublimadas por sua candura Vejamos adiante o que pretendo
dizer com esses quatro aspectos e sua relaccedilatildeo com o traacutegico
Devo principiar contrariando a ordem anterior pelo sacrifiacutecio para manter a
abordagem de Benjamin O autor entende que o heroacutei traacutegico realiza sua atuaccedilatildeo maior em sua
proacutepria morte o sacrifiacutecio maior e que eacute exatamente entatildeo que o heroacutei se distingue dos demais
indiviacuteduos Benjamin afirma
A marca identificativa da trageacutedia natildeo estaacute pois num conflito de niacuteveis entre o heroacutei
e mundo circundante [] mas sim a forma uacutenica grega de tais conflitos E onde deve
ser procurada essa forma Que tendecircncia se esconde no fenocircmeno traacutegico Por que
causa morre o heroacutei A poesia traacutegica assenta na ideia do sacrifiacutecio (BENJAMIN
2011 p 108)
Luacutecia se sacrifica natildeo apenas porque morre mas se encerra em sua morte uma entrega
definitiva a Paulo e agrave sua irmatilde Ana A morte de Luacutecia eacute decisiva para a construccedilatildeo e para a
profundidade da personagem aleacutem de ser elemento fundamental para a generalidade
constitutiva da alegoria Ainda mais que o sacrifiacutecio do heroacutei traacutegico natildeo eacute um sacrifiacutecio
comum Seguindo ainda o raciociacutenio de Benjamin temos
o sacrifiacutecio traacutegico difere no seu objeto ndash o heroacutei ndash de todos os outros e eacute ao mesmo
tempo inaugural e terminal Terminal no sentido do sacrifiacutecio expiatoacuterio devido aos
deuses guardiatildees de um antigo direito e inaugural no sentido de uma accedilatildeo que em
algum lugar desse direito anuncia novos conteuacutedos da vida do povo (BENJAMIN
2011 p 108)
Ou seja o sacrifiacutecio de Luacutecia eacute terminal expiatoacuterio de sua vida de perfiacutedia Luacutecia
reconhece em seus uacuteltimos momentos para Paulo a sua importacircncia e exatamente por isso por
ele se sacrifica
Heitor Victor
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ndash Paulo Paulo Tu bem sabes que com essa palavra me farias cometer crimes se
crimes fosse necessaacuterio para te provar que eu soacute vivo da vida que me daacutes e me podes
tirar com um sopro Natildeo sou eu criatura tua natildeo renasci pela luz que derramaste em
minha alma Natildeo eacutes meu senhor meu artista meu pai e meu criador (ALENCAR
1972 p 243)
O sacrifiacutecio de Luacutecia como se evidencia natildeo estaacute apenas na morte mas na sua entrega
completa Entrega que se apresenta como sua uacutenica forma de se redimir da vida que levara O
sacrifiacutecio reconhecendo ainda tais aspectos de Benjamin eacute tambeacutem inaugural quando se
direciona a Ana sua irmatilde em quem enxerga a uacutenica continuidade possiacutevel Seja para sua
protegida ou mesmo para a continuidade da vida de Paulo possiacutevel apenas com o encerramento
da sua proacutepria vida
Outro aspecto do heroacutei traacutegico de Benjamin presente em Luciacuteola eacute o silecircncio jaacute
mencionado anteriormente ldquoO heroacutei traacutegico tem apenas uma linguagem que plenamente lhe
corresponde precisamente a do silecircncio Assim eacute desde o iniacuteciordquo (BENJAMIN 2011 p 109)
Esse silecircncio eacute identificaacutevel em diversos momentos em Luacutecia pois evoca a resiliecircncia da
heroiacutena com o seu fardo Natildeo eacute um silecircncio de conformismo ou mesmo qualquer espeacutecie de
natildeo se importar que a toma mas ldquoo testemunho de um sofrimento mudordquo (BENJAMIN 2011
p 109) Eacute com esse silecircncio que Luacutecia arrebata o leitor para o seu drama pessoal natildeo como um
perseguidor ou inquisidor mas como partiacutecipe de seu pesar de sua dor Tal silecircncio aparece
nos momentos de prazer como quando se divertia no banquete noturno na casa de Saacute ldquoLuacutecia
fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria e caiacutera no costumado abatimento e distraccedilatildeo Eu a
contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava
quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaiacutedordquo (ALENCAR 1972 p 152-
153) Ou mesmo em sua face mais sincera jaacute como Maria ldquoQuando cheguei Luacutecia estava soacute
no jardim debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujaacutes tatildeo absorvida em sua
meditaccedilatildeo que natildeo me percebeurdquo (ALENCAR 1972 p 245)
Seguindo com minha anaacutelise comparativa devo abordar o aspecto da consciecircncia
fundamental para a diferenciaccedilatildeo entre uma outra personagem qualquer e o heroacutei traacutegico Esse
aspecto em especial eacute importante para a leitura que apresento por se tratar de algo que
claramente distingue o heroacutei romacircntico convencional daquele que eacute regido pelo signo do
traacutegico O heroacutei do romance desconhece completamente o seu destino e reside precisamente
nisso suas duacutevidas e questionamentos Nossa heroiacutena traacutegica contudo ainda que tambeacutem
romacircntica ndash natildeo o desejamos negar em nenhum momento se mostra consciente do seu caminho
Para esclarecer esse sentido de consciecircncia Benjamin traz uma fala de Lukaacutecs acerca do
reconhecimento da proacutepria morte
Tambeacutem a escolha da morte pelo homem traacutegico eacute um heroiacutesmo soacute aparentemente
heroico soacute assim visto de um ponto de vista humano e psicoloacutegico os heroacuteis
moribundos da trageacutedia ndash escrevia haacute pouco tempo um jovem autor traacutegico ndash estatildeo
mortos muito tempo antes de morrerem (BENJAMIN 2011 p 117)
Apenas a cargo de exemplificaccedilatildeo que se encaixa bem na ideia de reconhecimento da
morte como marca do heroacutei traacutegico podemos citar a consciecircncia apresentada por Luacutecia antes
de sua proacutepria morte ldquondash Se eu pudesse viver haveria forccedilas que me separassem de ti Haveraacute
sacrifiacutecio que eu natildeo fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade Mas Deus natildeo
quis Sinto que a vida me fogerdquo (ALENCAR 1972 p 248)
Devo tratar por fim do quarto aspecto a que me reservei neste trabalho que eacute o da culpa
Sem duacutevidas o eixo central de todo o romance de Alencar A culpa natildeo pode ser entendida
contudo como o arrependimento de seus atos ou mesmo sujeiccedilatildeo completa ao proacuteprio erro A
culpa como elemento traacutegico traz um valor de compreensatildeo Nossa heroiacutena traacutegica natildeo apenas
se lamenta da vida que fora levada a ter mas por meio da culpa ela se reconstroacutei eacute precisamente
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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por meio da culpa que no fim em meio ao embate entre anjo e democircnio prevalece sua face
angelical e a alegoria alcanccedila a sua plenitude Recorro ainda agraves palavras de Benjamin para
clarificar essa noccedilatildeo de culpa no drama traacutegico
No decorrer da accedilatildeo traacutegica um heroacutei assume e internaliza essa culpa que segundo
as antigas normas eacute imposta aos homens a partir de fora pela desgraccedila Ao refleti-la
na sua consciecircncia de si ele furta-se agrave sua tutela demoniacuteaca [] Paradoxal como
todas as manifestaccedilotildees da culpa traacutegica ela consiste apenas numa orgulhosa
consciecircncia de culpa na qual a figura heroica se liberta da servidatildeo que na sua
lsquoinocecircnciarsquo a sujeita agrave culpa demoniacuteaca (BENJAMIN 2011 p 135)
Essa culpa talvez seja dentre os aspectos ateacute aqui elencados o que mais se mostra claro
ao longo de Luciacuteola Nos momentos de maior comoccedilatildeo compartilhamos com Luacutecia esse seu e
genuiacuteno sentimento e eacute precisamente graccedilas a ele que o lado sagrado desse anjo caiacutedo prevalece
e nos faz criar a empatia entre leitor e personagem Vejamos portanto dois casos que
expressam os dois extremos da culpa vivida por Luacutecia Ora tal sentimento se expressa pela
ironia como quando Paulo no evento da casa de Saacute tenta singularizar a sua presenccedila e nossa
heroiacutena rebate com acidez
ndash Ora Haacute tanta mulher bonita Qualquer destas vale mais do que eu acredite Demais
quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado saberaacute o senhor de
quem satildeo os laacutebios que toca Qual Eacute uma mulher Uma presa em que ceva o apetite
Que importa o nome Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe
prepararam esta ceia Conhece-os Nem por isso as iguarias lhe parecem menos
saborosas (ALENCAR 1972 p 153)
Em outro momento contudo vemos a culpa sob outra roupagem da maneira mais
sincera em um de seus momentos de maior entrega
ndash Tu podes me fazer voltar agrave treva de que me arrancaste podes estancar as fontes de
minha existecircncia que manam de tua alma e natildeo me haacutes de ouvir uma soacute queixa A
dor como a alegria seratildeo sempre benditas por que viratildeo de ti Mas Paulo a suacuteplica
do humilde natildeo ofende Deus a permite e exalccedila Natildeo me retires a graccedila e a becircnccedilatildeo
que me deste Salva-me Paulo Salva-me a ti Salva-me de mim mesma
(ALENCAR 1972 p 243)
Natildeo agrave toa seleciono esta uacuteltima fala de Luacutecia para encerrar a argumentaccedilatildeo pois
precisamente aqui a culpa se mostra como o elemento libertador e eacute aqui que Luacutecia talvez tenha
entendido e absorvido o orgulho citado por Benjamin para livraacute-la da tutela demoniacuteaca Liberta-
se finalmente da servidatildeo que a acomete por toda a obra A projeccedilatildeo em Paulo eacute certamente a
projeccedilatildeo em um amor libertador que foi capaz de transfigurar a modalidade da culpa que sentia
Eacute entatildeo que Luacutecia deixa claro que compreende que a dor e a alegria se complementam e assim
encerra o perfil da mulher que decaiu mas que no fim projeta em sua alegoria a clareza do seu
papel em sua proacutepria narrativa Essa compreensatildeo faz de Luacutecia a heroiacutena de Alencar que mais
beira a perdiccedilatildeo a mais altiva e capaz de se assemelhar agrave heroiacutena da trageacutedia e assim como laacute
melhor do que se realmente apresentam homens e mulheres
Conclusatildeo
Ao recorrer portanto agraves estrateacutegias de identificaccedilatildeo da interioridade e de posiccedilotildees
constitutivas do heroacutei traacutegico acredito que se torna possiacutevel clarificar como o teatro grego
passou a atuar sobre o mito por meio de maior variabilidade narrativa do mesmo Essa
possibilidade de apresentar uma personagem mais profunda ainda que por meio da accedilatildeo
Heitor Victor
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dramaacutetica eleva o texto teatral e especificamente a trageacutedia ndash que usa a personagem miacutetica
como forma de apresentar seres mais elevados do que os indiviacuteduos da sociedade ndash ao papel de
ressignificar o mito Eacute por meio dessas personagens dramaacuteticas que a fabulaccedilatildeo estaacutetica do mito
pode apresentar novos argumentos para o meio em que estaacute inserida
Reconhecendo nas estrateacutegias de interpretaccedilatildeo da personagem dramaacutetica a ferramenta
de atualizaccedilatildeo do mito despida do elemento religioso foi possiacutevel analisar com certo grau de
convicccedilatildeo o heroacutei da trageacutedia Evidenciou-se como isso o papel desse heroacutei e sua capacidade
de conduzir efetivamente a narrativa miacutetica para novos caminhos interpretativos possibilitando
essa narrativa a se apresentar sob nova perspectiva O heroacutei visto dessa maneira ganha
destaque como formador de questionamentos e permite ao leitorespectador por meio do
elemento traacutegico estabelecer nova compreensatildeo
Esse heroacutei traacutegico permanece com o seu poder reflexivo mesmo fora do contexto miacutetico
levando-nos ao reconhecimento do traacutegico como formador efetivo de questionamentos Satildeo
estes aspectos traacutegicos que Benjamin identifica como herdeiros do teatro grego no teatro
alematildeo que eu resgato como possiacuteveis na construccedilatildeo de profundidade do heroacutei do romance eacute
precisamente sob esses aspectos que Luacutecia ndash a heroiacutena romacircntica mas dotada do elemento
traacutegico ndash eacute capaz de saltar aos olhos do leitor como dona de seu proacuteprio destino jamais apenas
sujeita ao mesmo Com isso cada traccedilo da heroiacutena de Alencar eacute capaz de se mostrar natildeo apenas
como marca de um perfil de mulher mas tambeacutem o perfil de um aspecto comum a todas as
mulheres Somente por meio da alegoria do anjo caiacutedo se poderia alcanccedilar tamanha projeccedilatildeo
dentro de um cenaacuterio em que o indiviacuteduo eacute professado como ponto central da construccedilatildeo de
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Paulo Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014
44 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
DOI httpsdoiorg1012957principia201946512
CARACTERIZACcedilAtildeO SIMBOacuteLICA ATRAVEacuteS DE SIacuteMILES
ANIMAIS NA ILIacuteADA
Marco Valeacuterio Classe Colonnelli (Universidade Federal da Paraiacuteba)
RESUMO O intuito deste artigo eacute demonstrar a partir de alguns siacutemiles como Homero
produz uma caracterizaccedilatildeo concisa de seus heroacuteis A perspectiva de abordagem neste
estudo eacute comprovar a eficaacutecia do uso dos siacutemiles pelo poeta em consonacircncia com a obra
de Aristoacuteteles Investigaccedilatildeo dos Animais que nos permite aferir certo valor simboacutelico de
determinados animais ainda no seacutec IV aC Partindo de comparaccedilotildees com animais o
poeta produz siacutemiles que formam um quadro imediato e eficaz do heroacutei projetado pela
forccedila simboacutelica e analoacutegica que o animal evoca como termo comparativo na cultura grega
arcaica e claacutessica
PALAVRAS-CHAVES Caracterizaccedilatildeo Iliacuteada Homero siacutemiles eacutepica Aristoacuteteles
SYMBOLIC CHARACTERIZATION THROUGH SIMILES
ANIMALS IN THE ILIAD
ABSTRACT The purpose of this article is to demonstrate from some similes how Homer
produces a concise characterization of his heroes The prospect of approach in this study
is to prove the efficacy of the use of similes by the poet in accord with the work of
Aristotle Research of the Animals which allows us to assess certain symbolic value of
certain animals even in the 4th century BC Starting from the comparison with animals
the poet produces similes that form an immediate and effective framework of the hero
projected by the symbolic and analogue force that the animal evokes as a comparative
term in the archaic and classical Greek culture
KEYWORDS Characterization Iliad Homero Facsimiles Epic Aristotle
1 Sobre o siacutemile homeacuterico
Desde o lanccedilamento do livro de Milman Parry ldquoThe Making of Homeric Verserdquo
que revelou novas facetas para o estudo de Homero o siacutemile passou a ser estudado por
uma infinidade de autores Foacutermulas funccedilotildees oralidade sequecircncias de imagens dentre
outras caracteriacutesticas foram tatildeo sistematicamente investigadas nos siacutemiles que um resumo
sobre essas principais teorias produziria um material muito denso1
E-mail mcolonnellihotmailcom 1 Desde os estudos de Milman Parry duas principais linhas de estudos tecircm debatido calorosamente a
possibilidade de uma caracterizaccedilatildeo de personagens a despeito das foacutermulas e repositoacuterios de palavras
usados nos dois poemas eacutepicos de Homero Adam Parry filho de Milman em seu artigo ldquoLanguage and
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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O siacutemile grosso modo eacute uma comparaccedilatildeo entre coisas Coffey que analisou os
siacutemiles na eacutepica homeacuterica encontra dois grupos um que eacute
composto de uma palavra introdutoacuteria tal como ὡς seguida por um nome que
eacute frequentemente qualificado por um adjetivo ou um particiacutepio [] e casos
nos quais uma ou mais oraccedilotildees relativas contendo uma forma infinitiva ou
verbos flexionados estatildeo ligadas a uma oraccedilatildeo anterior de comparaccedilatildeordquo
(Coffey 1957 60) e outro ldquoo siacutemile longo que consiste em uma sentenccedila
separada introduzida por ὡς ὅτε ou palavras similaresrdquo2
Aqui as duas formas de siacutemiles nos interessam jaacute que a primeira trata de uma economia
em termos de caracterizaccedilatildeo e a segunda um desenvolvimento da situaccedilatildeo da personagem
em conflitos eacuteticos e psicoloacutegicos
Um pouco mais tarde Moulton passa a estudar os siacutemiles a partir de suas
sequecircncias ultrapassando o esquema fechado dos siacutemiles e de suas correspondecircncias
sintaacuteticas para ampliaacute-los ateacute uma anaacutelise semacircntica demonstrando unidades de sentido
maiores na sequecircncia do enredo Duas tambeacutem satildeo as formas encontradas por ele siacutemiles
pares e ainda siacutemiles sucessivos ou seja respectivamente um siacutemile direto simples
menor e outro longo com unidades maiores e liames semacircnticos
Coffey ainda apresenta algumas funccedilotildees que o siacutemile homeacuterico desempenha tais
como movimentaccedilatildeo descriccedilatildeo notaccedilatildeo temporal enumeraccedilatildeo caracterizaccedilatildeo dentre
outras funccedilotildees Especificamente no tocante agrave caracterizaccedilatildeo diversos siacutemiles apresentam
como termo comparativo animais Clarke por exemplo em seu artigo ldquoEntre Homens e
Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo pontua em contraste com teoacutericos que soacute veem o
siacutemile como uma ornamentaccedilatildeo formulaica que ldquoo simbolismo envolvendo animais
selvagens e agressivos eacute muito maior que uma questatildeo de estilo e que eles desempenham
grande papel no retrato de Homero dos problemas eacuteticos e psicoloacutegicos do heroiacutesmordquo
(Clarke 2006 p 2)
Eacute desse ponto de vista entatildeo que partimos em nossa investigaccedilatildeo ou seja
examinar em suas duas formas o potencial que os siacutemiles animais possuem na Iliacuteada
como teacutecnica de caracterizaccedilatildeo3 Eacute necessaacuterio tambeacutem antes determinar para que o
quadro de comparaccedilatildeo seja efetivo o valor simboacutelico que cada animal pode atribuir ao
seu comparante dentro da estrutura do siacutemile e soacute assim procedermos com a anaacutelise de
caracterizaccedilatildeo
2 A simbologia dos animais como elemento caracterizador
Estudar a caracterizaccedilatildeo de uma personagem sem seu caraacuteter (ἦθος) manifesto
pode parecer uma empresa arriscada Entretanto eacute possiacutevel determinar este caraacutecter
atraveacutes de analogias que deixam entrever certos estados eacuteticos e psicoloacutegicos das
personagens Eacute dessa forma que entendemos com Clark que
Characterization in Homerrdquo jaacute havia contestado boa parte dos epiacutetetos formulaicos para demonstrar certa
habilidade do poeta eacutepico em sua construccedilatildeo de caracterizaccedilatildeo No tocante aos siacutemiles M Coffey em
ldquoThe function of the Homeric Similerdquo demonstra como os siacutemiles desempenham diversas funccedilotildees dentre
elas a de caracterizaccedilatildeo e ainda mais Carroll Moulton em ldquoSimiles in the Iliadrdquo e ldquoSimile Sequencesrdquo
aponta como os siacutemiles produzem caracterizaccedilatildeo e influenciam em toda narrativa posterior para aleacutem de
uma foacutermula meramente ornamental respectivamente Importante contribuiccedilatildeo tambeacutem eacute o artigo de
Michel Clark ldquoEntre Homens e Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo que aponta comportamentos eacuteticos e
psicoloacutegicos nos siacutemiles animais 2 Todas as traduccedilotildees satildeo de responsabilidade do autor Texto grego extraiacutedo das ediccedilotildees de Paul Mazon e
Balme 3 Cf Adam Parry 1972 p 1-22
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Os siacutemiles animais satildeo um excelente candidato para gerar tal tipo de sistema
eles satildeo tantos e tatildeo variados nas conexotildees que forjam que seu efeito
combinado pode natildeo apenas ampliar a narrativa mas de fato assimilar
aspectos da aparecircncia das personagens e da personalidade do guerreiro ao
animal (Clark 2006 p 4)4
Um dado relevante neste universo eacutepico eacute que ldquoos animais de Homero tecircm
igualmente o mesmo aparato emocional e cognitivo que os homensrdquo (Clark 2006 11)
Na Iliacuteada poreacutem jamais encontraremos algum tipo de eacutethos (ἦθος) aplicado ao animal
mas somente o contraacuterio disso o animal conferindo eacutethos ao homem Em Homero os
animais estatildeo encobertos por uma carga simboacutelica que os determina em certos aspectos
com traccedilos bem definidos Mas como eacute possiacutevel atribuir um eacutethos ao animal Como ver
tacitamente no animal um eacutethos humano Para entendermos melhor essa relaccedilatildeo eacute
preciso recorrermos a Aristoacuteteles
Em seu tratado Investigaccedilatildeo dos Animais o filoacutesofo faz uma afirmaccedilatildeo que parece
se coadunar com o mundo homeacuterico
Haacute pois tambeacutem em muitos desses outros animais traccedilos de caracteriacutesticas
psiacutequicas que nos homens possuem diferenccedilas mais claras Assim mansidatildeo
e ferocidade doccedilura e violecircncia coragem e covardia temor e ousadia vontade
e astuacutecia estatildeo em muitos animais semelhantes aos homens tambeacutem ateacute em
inteligecircncia
῎Ενεστι γὰρ ἐν τοῖς πλείστοις καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ἴχνη τῶν περὶ τὴν ψυχὴν
τρόπων ἅπερ ἐπὶ τῶν ἀνθρώπων ἔχει φανερωτέρας τὰς διαφοράςmiddot καὶ γὰρ
ἡμερότης καὶ ἀγριότης καὶ πραότης καὶ χαλεπότης καὶ ἀνδρία καὶ δειλία καὶ
φόβοι καὶ θάρρη καὶ θυμοὶ καὶ πανουργίαι καὶ τῆς περὶ τὴν διάνοιαν συνέσεως
ἔνεισιν ἐν πολλοῖς αὐτῶν ὁμοιότητες [] (Arist Investigaccedilotildees sobre os
animais 588 a 19-25)
Aristoacuteteles reconhece duas caracteriacutesticas psiacutequicas diferentes entre os animais e
os homens A primeira eacute de grau ou seja entre os homens uns teratildeo mais outros menos
dessas caracteriacutesticas e a mesma relaccedilatildeo entre homens e animais A segunda eacute por
analogia ou seja por certa semelhanccedila entre as caracteriacutesticas psiacutequicas dos homens
comparadas a certas manifestaccedilotildees nos animais5 Partindo dessa premissa analoacutegica
Aristoacuteteles neste tratado delineia o caraacuteter de alguns animais com base em sentimentos
humanos A analogia que faz a ponte entre essas constituiccedilotildees psiacutequicas se vale tambeacutem
do simbolismo que cada animal possuiacutea jaacute entre os gregos Este simbolismo natildeo tem um
vieacutes religioso ainda que seja necessaacuterio reconhecer essa dimensatildeo simboacutelica na cultura
grega6 mas meramente empiacuterico
Eacute nesse sentido que vamos encontrar em Aristoacuteteles a aplicaccedilatildeo do eacutethos humano
por analogia aos animais Worther tambeacutem assinala que
Aristoacuteteles define o ἦθος como uma capacidade ou potecircncia primeira e natural
possuiacuteda por todos os animais em virtude da qual eles satildeo natildeo somente capazes
4 Moulton discorda de que isso seja possiacutevel 5 Diferenccedila segundo a analogia consiste em estabelecer que a capacidade natural de um dado animal se
encontra sob uma forma diferente mas com a mesma funccedilatildeo ou uma funccedilatildeo anaacuteloga em um outro animal
Assim a arte a sabedoria ou a inteligecircncia do homem existem em outros animais mas sob a forma de
uma capacidade que natildeo faz intervir o elemento racional que pertence propriamente ao homem
(Woerther 2007 138) 6 Natildeo se nega o valor das relaccedilotildees religiosas entre homens e animais mas deve-se tambeacutem ressaltar as
relaccedilotildees sociais e poliacuteticas que esta associaccedilatildeo releva (Bodson 1994 55)
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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de ser afetados por paixotildees como tambeacutem suscetiacuteveis de desenvolver graccedilas
agraves accedilotildees repetidas disposiccedilotildees habituais da alma (Woerther 2007 p 138)
A observaccedilatildeo do filoacutesofo sobre o eacutethos animal tambeacutem eacute extraiacuteda da proacutepria obra
de Homero de quem ele muitas vezes cita passagens para justificar seus escritos
bioloacutegicos o que nos leva a crer que as observaccedilotildees homeacutericas e aristoteacutelicas formam um
todo empiacuterico de observaccedilotildees a respeito da natureza em geral Desse saber empiacuterico o
valor do eacutethos animal passa a figurar como um siacutembolo que o animal possui em si
Vejamos agora como certos valores simboacutelicos dos animais confluem para uma
caracterizaccedilatildeo taacutecita em algumas passagens da Iliacuteada
3 Siacutemiles animais como elementos caracterizadores
Muitos siacutemiles animais podem ser encontrados na Iliacuteada O leatildeo eacute de longe o
animal mais citado como imagem para os heroacuteis entretanto outros animais como o cervo
ou a cabra que satildeo presas tambeacutem abundam nas comparaccedilotildees Alguns animais satildeo
empregados especificamente em algumas passagens de modo natildeo muito usual Em uma
passagem do canto VIII da Iliacuteada Aquiles eacute comparado a um golfinho natildeo soacute pelo locus
de sua caccedila mas tambeacutem por algumas reconhecidas qualidades deste animal Vejamos o
siacutemile
Em seguida o divino Aquiles deixou sua lanccedila na ribeira
Inclinada nos arbustos e mergulhou semelhante a um deus
Portando apenas uma espada e na mente meditava maus atos
E golpeou dando giros dos feridos pela arma uma gritaria elevou-se
Indecorosa enquanto tingia a aacutegua de vermelho
Tal como quando outros peixes dos golfinhos de grande ventre
Fugindo enchem os recantos de uma baiacutea fundeada
Aterrados pois tudo aquilo que consegue apanhar devora
Assim os Troianos para as correntes do terriacutevel rio
Fugiam pelas iacutengremes ribanceiras Aquiles quando cansou
Suas matildeos de matar recolheu do rio doze jovens vivos
Paga pela morte de Paacutetroclo filho de Meneacutecio
Αὐτὰρ ὃ διογενὴς δόρυ μὲν λίπεν αὐτοῦ ἐπ ὄχθῃ
κεκλιμένον μυρίκῃσιν ὃ δ ἔσθορε δαίμονι ἶσος
φάσγανον οἶον ἔχων κακὰ δὲ φρεσὶ μήδετο ἔργα
τύπτε δ ἐπιστροφάδηνmiddot τῶν δὲ στόνος ὄρνυτ ἀεικὴς
ἄορι θεινομένων ἐρυθαίνετο δ αἵματι ὕδωρ
ὡς δ ὑπὸ δελφῖνος μεγακήτεος ἰχθύες ἄλλοι
φεύγοντες πιμπλᾶσι μυχοὺς λιμένος εὐόρμου
δειδιότεςmiddot μάλα γάρ τε κατεσθίει ὅν κε λάβῃσινmiddot
ὣς Τρῶες ποταμοῖο κατὰ δεινοῖο ῥέεθρα
πτῶσσον ὑπὸ κρημνούς ὃ δ ἐπεὶ κάμε χεῖρας ἐναίρων
ζωοὺς ἐκ ποταμοῖο δυώδεκα λέξατο κούρους
ποινὴν Πατρόκλοιο Μενοιτιάδαο θανόντοςmiddot
(Il VIII 17-28)
Em suas investigaccedilotildees Aristoacuteteles nos fornece certos traccedilos do animal que
configuram seu eacutethos Assim em 631a ele afirma que ldquodentre os animais mariacutetimos
muitos sinais de doccedilura e inteligecircncia satildeo anunciados a respeito dos golfinhos assim
como tambeacutem em relaccedilatildeo aos filhos satildeo amorosos e apaixonadosrdquo (Τῶν δὲ θαλαττίων
πλεῖστα λέγεται σημεῖα περὶ τοὺς δελφῖνας πραότητος καὶ ἡμερότητος καὶ δὴ καὶ πρὸς
παῖδας ἔρωτες καὶ ἐπιθυμίαι ndash Arist 631a 8-11) Natildeo obstante esta caracteriacutestica doacutecil
do animal a sua destreza na caccedila tambeacutem eacute exaltada Em outra passagem ele acrescenta
Marco V C Colonnelli
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Fala-se tambeacutem coisas incriacuteveis a respeito da rapidez do animal Parece pois
que dentre todos os animais tanto da aacutegua quanto da terra eacute o mais raacutepido e
tambeacutem saltam por cima dos mastros dos grandes navios Isso lhes acontece
sobretudo quando perseguem algum peixe graccedilas a sua necessidade alimentar
Neste momento pois se o peixe fugir perseguem-no ateacute o fundo do mar por
causa de sua fome [] E girando sobre si mesmos lanccedilam-se como uma
flecha desejando percorrer com velocidade uma grande extensatildeo para respirar
Λέγεται δὲ καὶ περὶ ταχυτῆτος ἄπιστα τοῦ ζῴουmiddot ἁπάντων γὰρ δοκεῖ εἶναι
ζῴων τάχιστον καὶ τῶν ἐνύδρων καὶ τῶν χερσαίων καὶ ὑπεράλλονται δὲ
πλοίων μεγάλων ἱστούς Μάλιστα δὲ τοῦτ αὐτοῖς συμβαίνει ὅταν διώκωσί
τινα ἰχθὺν τροφῆς χάρινmiddot τότε γάρ ἐὰν ἀποφεύγῃ συνακολουθοῦσιν εἰς βυθὸν
διὰ τὸ πεινῆν [] καὶ συστρέψαντες ἑαυτοὺς φέρονται ὥσπερ τόξευμα τῇ
ταχυτῆτι τὸ μῆκος διελθεῖν βουλόμενοι πρὸς τὴν ἀναπνοήν (Arist 631a 20-
27)
A caracteriacutestica do golfinho em sua caccedila parece iluminar o curto siacutemile em que
Aquiles toma as presas de guerra A rapidez do ataque do animal o mais raacutepido dentre
todos alude a proacutepria destreza do heroacutei que tambeacutem eacute raacutepido em seu ataque e efetivo em
sua conquista O ataque eacute motivado pela voracidade da fome do animal e o modo como
ele caccedila tambeacutem estaacute representado atraveacutes dos giros que facilmente o animal executa
Aquiles golpeia girando tal como o golfinho Se o amor filial eacute a caracteriacutestica do animal
natildeo se pode negar que o iacutempeto que move o heroacutei eacute a vinganccedila pela morte de Paacutetroclo
demonstrando a amizade que os unia A comparaccedilatildeo com o golfinho eacute salutar em diversos
aspectos mas sobretudo pela inteligecircncia e pela destreza que o animal evoca na passagem
Outro animal natildeo menos mencionado em siacutemiles do que o leatildeo eacute o catildeo de caccedila
Apesar de ser um animal domesticado sua ferocidade na caccedila eacute muito representada em
siacutemiles Aristoacuteteles nos informa a respeito deles que
A raccedila dos catildees de caccedila em Molosso natildeo diferem em nada das raccedilas de outras
localidades mas a raccedila que pastoreia junto aos rebanhos difere em porte e em
coragem contra animais selvagens E diferem em coragem e dedicaccedilatildeo
tambeacutem a raccedila dos catildees gerados do cruzamento entre os de Molosso e da
Lacocircnia
Τὸ δ ἐν τῇ Μολοττίᾳ γένος τῶν κυνῶν τὸ μὲν θηρευτικὸν οὐδὲν διαφέρει πρὸς
τὸ παρὰ τοῖς ἄλλοις τὸ δ ἀκόλουθον τοῖς προβάτοις τῷ μεγέθει καὶ τῇ ἀνδρείᾳ
τῇ πρὸς τὰ θηρία Διαφέρουσι δ οἱ ἐξ ἀμφοῖν ἀνδρείᾳ καὶ φιλοπονίᾳ οἵ τε ἐκ
τῶν ἐν τῇ Μολοττίᾳ γινομένων κυνῶν καὶ ἐκ τῶν Λακωνικῶν (Arist HA 608
a 27-33)
Duas caracteriacutesticas satildeo apontadas no animal a coragem contra animais selvagens
e a sua dedicaccedilatildeo na caccedila Eacute com esse eacutethos que Heitor eacute pintado no canto VIII da Iliacuteada
no momento em que Zeus o favorece na batalha contra os Aqueus
De novo nos Troianos o Oliacutempio excitou a coragem
E eles impeliram os Aqueus direto agrave profunda trincheira
Heitor entre os primeiros movia-se fero em sua forccedila
Como quando um dos catildees de javalis selvagens ou de leotildees
Toca sucessivamente perseguindo-os com patas ceacuteleres
As coxas ou naacutedegas e tem olhos fixos em quem se vira
Assim Heitor perseguia os Aqueus de longos cabelos
Matando sempre o mais recuado enquanto os outros fugiam
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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῍Αψ δ αὖτις Τρώεσσιν ᾿Ολύμπιος ἐν μένος ὦρσενmiddot
οἳ δ ἰθὺς τάφροιο βαθείης ὦσαν ᾿Αχαιούςmiddot
῞Εκτωρ δ ἐν πρώτοισι κίε σθένεϊ βλεμεαίνων
ὡς δ ὅτε τίς τε κύων συὸς ἀγρίου ἠὲ λέοντος
ἅπτηται κατόπισθε ποσὶν ταχέεσσι διώκων
ἰσχία τε γλουτούς τε ἑλισσόμενόν τε δοκεύει
ὣς ῞Εκτωρ ὤπαζε κάρη κομόωντας ᾿Αχαιούς
αἰὲν ἀποκτείνων τὸν ὀπίστατονmiddot οἳ δὲ φέβοντο
(Il VIII 335-343)
Na passagem acima a coragem tambeacutem encontrada no ethos animal eacute insuflada por Zeus
nos Troianos O siacutemile parece de fato retomar a qualidade deste animal em colocar em debandada
animais ferozes Entretanto a diligecircncia e a dedicaccedilatildeo do animal natildeo fica para traacutes na
representaccedilatildeo jaacute que o catildeo tem os olhos fixos nos animais que lhe satildeo superiores em porte fiacutesico
natildeo descuidando daqueles que viram O siacutemile indica sobretudo o cuidado presente no eacutethos do
animal na dispersatildeo das feras reproduzindo a imagem de heroacuteis mais fracos que inspirados pelos
deuses potildeem em debandada heroacuteis mais robustos Nesse sentido apesar da coragem eacute necessaacuteria
muita cautela na perseguiccedilatildeo para que natildeo se invertam as posiccedilotildees entre caccedila e caccedilador
Retomando a relaccedilatildeo entre os animais acima tambeacutem eacute possiacutevel perceber que o
caraacuteter dessas feras natildeo como habitualmente satildeo representadas ou seja como animais
ferozes e corajosos mas como animais que algumas vezes satildeo covardes Neste caso o
leatildeo tatildeo usado em siacutemiles de batalha para denotar violecircncia ferocidade tambeacutem possui
iacutendice de covardia Aristoacuteteles nas Investigaccedilotildees sobre os Animais observa que
Haacute duas raccedilas de Leotildees haacute uma que eacute mais roliccedila juba encaracolada e covarde
outra mais larga de juba ericcedilada e mais corajosa Fogem algumas vezes
entretanto com o rabo entre as pernas como os catildees Jaacute se viu tambeacutem um leatildeo
que estava a ponto de se lanccedilar sobre um javali e como percebeu que esse se
ouriccedilava fugiu Eacute deacutebil contra golpes em sua barriga mas suporta muitos
golpes em outra parte do corpo e tem um cabeccedila forte
Γένη δ ἐστὶ λεόντων δύοmiddot τούτων δ ἐστὶ τὸ μὲν στρογγυλώτερον καὶ
οὐλοτριχώτερον δειλότερον τὸ δὲ μακρότερον καὶ εὐθύτριχον ἀνδρειότερον
Φεύγουσι δ ἐνίοτε κατατείναντες τὴν κέρκον ὥσπερ κύνες ῎Ηδη δ ὦπται
λέων καὶ ὑῒ ἐπιτίθεσθαι μέλλων καὶ ὡς εἶδεν ἀντιφρίξαντα φεύγων ῎Εστι δὲ
πρὸς τὰς πληγὰς εἰς μὲν τὰ κοῖλα ἀσθενής κατὰ δὲ τὸ ἄλλο σῶμα δέχεται
πολλὰς καὶ κεφαλὴν ἔχει ἰσχυράν
(Arist HA 629 b 33- 639 a8)
A informaccedilatildeo que Aristoacuteteles nos traz natildeo soacute ilustra o siacutemile homeacuterico anterior
como tambeacutem demonstra que o encontro entre javalis e leotildees eram decididos por acaso
jaacute que os dois animais satildeo comumente representados na Iliacuteada como animais ferozes
Assim uma passagem pode ser lida de forma interessante quando dois grandes heroacuteis
satildeo postos frente a frente no canto VII Heitor e Aacutejax
Ambos concomitantes retirando as longas lanccedilas com as matildeos
De suacutebito se encontram parecendo leotildees apreciadores de carne
Ou selvagens javalis cuja forccedila eacute inesgotaacutevel
τὼ δ ἐκσπασσαμένω δολίχ ἔγχεα χερσὶν ἅμ ἄμφω
σύν ῥ ἔπεσον λείουσιν ἐοικότες ὠμοφάγοισιν
ἢ συσὶ κάπροισιν τῶν τε σθένος οὐκ ἀλαπαδνόν
(Il VII 255-257)
Atraveacutes desse siacutemile a passagem demonstra como forccedilas equacircnimes os dois heroacuteis
representados aiacute pela forccedila descomunal do javali e pelo apreciador de carne crua o leatildeo
Marco V C Colonnelli
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O choque entre os heroacuteis no resto da passagem natildeo terminaria jaacute que chegada a noite
o combate foi interrompido pelos arautos
O leatildeo em outros siacutemiles quando confrontado por caccediladores e catildees manifesta
cautela em seus ataques Aristoacuteteles descreve o comportamento do leatildeo face a essa
adversidade
Nas caccediladas sendo observado jamais foge ou se apavora mas se por uma
multidatildeo de caccediladores eacute forccedilado a se afastar retira-se passo a passo e com a
face voltada ao inimigo girando-se de pouco em pouco se ele se encontra
entre arbustos foge rapidamente ateacute chegar em uma clareira momento em que
de novo se afasta passo a passo Em campo aberto quando eacute forccedilado a fugir
para uma clareira por uma multidatildeo corre com passos raacutepidos e natildeo pula Sua
corrida eacute contiacutenua e extensa como a do catildeo
᾿Εν δὲ ταῖς θήραις ὁρώμενος μὲν οὐδέποτε φεύγει οὐδὲ πτήσσει ἀλλ ἐὰν καὶ
διὰ πλῆθος ἀναγκασθῇ τῶν θηρευόντων ὑπαγαγεῖν βάδην ὑποχωρεῖ καὶ κατὰ
σκέλος κατὰ βραχὺ ἐπιστρεφόμενοςmiddot ἐὰν μέντοι ἐπιλάβηται δασέος φεύγει
ταχέως ἕως ἂν καταστῇ εἰς φανερόνmiddot τότε δὲ πάλιν ὑπάγει βάδην ᾿Εν δὲ τοῖς
ψιλοῖς ἐάν ποτ ἀναγκασθῇ εἰς φανερὸν διὰ τὸ πλῆθος φεύγειν τρέχει
κατατείνας καὶ οὐ πηδᾷ Τὸ δὲ δρόμημα συνεχῶς ὥσπερ κυνός ἐστι
κατατεταμένονmiddot (Arist HA 629 b 12-20)
Ainda que muito forte a simbologia do leatildeo na Iliacuteada como o animal mais
intreacutepido dos que se encontram na obra eacute interessante tambeacutem notar que em alguns
siacutemiles de fuga o proacuteprio leatildeo o siacutembolo da coragem eacute usado para representar a fuga de
alguns heroacuteis No canto XI Aacutejax recua da seguinte maneira
Zeus pai de seu trono introduziu o medo em Aacutejax
E atocircnito ele estacou aos ombros laccedilou o escudo de sete camadas
E depois de ver uma multidatildeo fugiu semelhante a uma fera
Que se volta continuamente para traacutes alternando em breves passadas
Tal quando sobre um feroz leatildeo do curral
Dos bois afugentam catildees e pastores
E eles o impedem de arrebatar o melhor dos bois
Vigilantes por toda noite mas ele desejoso de carne
Avanccedila com zelo mas nada encontra pois dardos
Numerosos voam de corajosas matildeos em sua direccedilatildeo
E tochas acesas que teme ainda que sedento
E ao amanhecer retira-se com acircnimo aflito
Assim Aacutejax dos Troianos com o coraccedilatildeo inquieto
Afasta-se muito contrariado pois temia pelas naus dos Aqueus
Ζεὺς δὲ πατὴρ Αἴανθ ὑψίζυγος ἐν φόβον ὦρσεmiddot
στῆ δὲ ταφών ὄπιθεν δὲ σάκος βάλεν ἑπταβόειον
τρέσσε δὲ παπτήνας ἐφ ὁμίλου θηρὶ ἐοικὼς
ἐντροπαλιζόμενος ὀλίγον γόνυ γουνὸς ἀμείβων
ὡς δ αἴθωνα λέοντα βοῶν ἀπὸ μεσσαύλοιο
ἐσσεύαντο κύνες τε καὶ ἀνέρες ἀγροιῶται
οἵ τέ μιν οὐκ εἰῶσι βοῶν ἐκ πῖαρ ἑλέσθαι
πάννυχοι ἐγρήσσοντεςmiddot ὃ δὲ κρειῶν ἐρατίζων
ἰθύει ἀλλ οὔ τι πρήσσειmiddot θαμέες γὰρ ἄκοντες
ἀντίον ἀΐσσουσι θρασειάων ἀπὸ χειρῶν
καιόμεναί τε δεταί τάς τε τρεῖ ἐσσύμενός περmiddot
ἠῶθεν δ ἀπὸ νόσφιν ἔβη τετιηότι θυμῷmiddot
ὣς Αἴας τότ ἀπὸ Τρώων τετιημένος ἦτορ
ἤϊε πόλλ ἀέκωνmiddot περὶ γὰρ δίε νηυσὶν ᾿Αχαιῶν
(Il XI 544-557)
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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Diferente dos outros siacutemiles esse mais longo natildeo soacute caracteriza o recuo do heroacutei
em termos de movimentaccedilatildeo e comportamento mas tambeacutem em termos de iacutendices
psicoloacutegicos que abundam no siacutemile O leatildeo aqui ainda eacute visto como um animal corajoso
feroz sedento por carne em suma em sua simbologia completa Entretanto como a
situaccedilatildeo eacute de fuga e caacutelculo o comportamento animal descrito por Aristoacuteteles representa
bem a maneira como Aacutejax se encontra tanto em termos psicoloacutegicos quanto em situaccedilatildeo
Aacutejax recua foge mas sem a pressa dos covardes sua fuga eacute bem descrita pelo
comportamento do leatildeo que recua lentamente sempre se voltando para traacutes Ademais o
nuacutemero de inimigos na liccedila e os dardos em sua direccedilatildeo o forccedilam ao recuo
Quanto ao plano psicoloacutegico Aacutejax que em sua caracterizaccedilatildeo eacute visto sempre como
voluntarioso e corajoso torna-se temeroso por uma intervenccedilatildeo divina E o conflito
gerado por essas disposiccedilotildees psicoloacutegicas eacute bem expresso pelo comportamento calculado
do recuo do leatildeo Neste afastamento tanto o heroacutei quanto o leatildeo estatildeo com acircnimo aflito
e inquieto e por uacuteltimo Aacutejax deixa o campo de modo involuntaacuterio
A caracterizaccedilatildeo neste siacutemile eacute completa Ela cobre tanto a perspectiva de um
desenvolvimento da accedilatildeo quanto o conflito psicoloacutegico que ocorre com o heroacutei Natildeo se
trata aqui de um siacutemile curto em que teriacuteamos de projetar o comportamento animal para
a compreensatildeo da passagem mas de um siacutemile longo em que o desenvolvimento do
comportamento animal eacute tatildeo magistralmente descrito que podemos consideraacute-lo sem
exageros como o proacuteprio iniacutecio de toda ciecircncia empiacuterica encontrada quase quatro seacuteculos
depois em Aristoacuteteles
3 Conclusatildeo
O uso do siacutemile em Homero eacute extremamente complexo Aleacutem dos siacutemiles naturais
produzidos com as potecircncias da natureza haacute tambeacutem os siacutemiles animais que se tornam
muito impactantes sobretudo porque revelam natildeo soacute facetas de movimentaccedilatildeo mas
tambeacutem de caraacuteter que o animal comporta O mundo natural eacute usado por Homero com
maestria a ponto de produzir situaccedilotildees nos combates em que grande parte do que eacute
descrito jaacute eacute bem conhecido pela audiecircncia em contato com o mundo natural circundante
Hoje talvez para reconhecer a forccedila de seus siacutemiles nos seja preciso talvez aleacutem do
conhecimento do mundo arcaico grego um bom entendimento sobre a vida natural sem
o qual a complexidade das cenas na Iliacuteada pareceraacute meramente fantasiosas
REFEREcircNCIAS
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54 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326
DOI httpsdoiorg1012957principia201946513
OS PROFISSIONAIS DO SOBRENATURAL
MAacuteGOS GOacuteES E PHARMAKEUacuteS
Dulcileide V do Nascimento Braga (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO O presente artigo objetiva ao pressupor que as accedilotildees maacutegicas constituem
praacuteticas passiacuteveis de aprendizado apresentar a anaacutelise da estrutura vocabular dos termos
que classificam os profissionais da magia Busca-se tambeacutem a partir da tradiccedilatildeo miacutetico-
literaacuteria grega demonstrar que tais profissionais tecircm uma praacutetica registrada em diversos
periacuteodos da literatura grega e influenciaram accedilotildees que extrapolam o vieacutes temporal
PALAVRAS-CHAVE Teacutechne maacutegica Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes
THE SUPERNATURAL PROFESSIONALS
MAacuteGOS GOacuteES AND PHARMAKEUacuteS
ABSTRACT This article aims assuming that magical actions constitute practices that can
be learned to present the analysis of the vocabulary structure of the terms that classify
magic professionals It is also sought from the greek mythical-literary tradition to
demonstrate that these professionals have a practice recorded in several periods of greek
literature and influenced actions that go beyond the temporal bias
KEYWORDS Teacutechne magic Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes
Magia do grego mageiacutea segundo Tupet (1976 p X) eacute a praacutetica exercida atraveacutes
de palavras e gestos por um indiviacuteduo que deteacutem certos conhecimentos que o capacitam
a produzir resultados de toda ordem George Luck (1995 p 35) precisa essa definiccedilatildeo ao
afirmar que a magia eacute uma teacutecnica cuja crenccedila se baseia nos poderes localizados na alma
humana e no universo e que pretende impor a vontade humana sobre a natureza ou sobre
os seres humanos
Platatildeo em Leis XI 932e-933b jaacute enumera os principais procedimentos maacutegicos
no seacutec IV aC e a difiacutecil tarefa de analisar essa teacutecnica
Quanto aos malefiacutecios que uns podem causar aos outros por meio de drogas
(pharmaacutekois) jaacute tratamos dos de consequecircncias letais mas ainda natildeo falamos
dos incocircmodos provocados intencionalmente e com premeditaccedilatildeo por meio de
bebidas e alimentos ou com unguentos O difiacutecil na presente exposiccedilatildeo eacute que
haacute no gecircnero humano duas espeacutecies de envenenamento uma eacute a que acabamos
de nos referir e que consiste em causar dano ao corpo pela accedilatildeo natural de
outros corpos a outra por meio de sortileacutegios (magganeiacuteais) encantamentos
(epoidaicircs) e o que se denomina ligadura (katadeacutesesi) chega a persuadir aos
E-mail dulcinascimentobragagmailcom
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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que querem causar danos a terceiros que o conseguiratildeo com tal recurso como
tambeacutem convence a estes uacuteltimos que ningueacutem lhes pode ocasionar tanto mal
como as pessoas conhecedoras de artes maacutegicas O que possa haver de
verdadeiro em tudo isso natildeo eacute faacutecil conhecer nem depois de sabido deixar
aceitaacutevel para ningueacutem dada a desconfianccedila reinante nos espiacuteritos a respeito
de tais assuntos natildeo vale a pena procurar convencecirc-los sempre que
encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera ou em encruzilhadas ou
talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados de que natildeo devem dar a
menor importacircncia a essas praacuteticas pois acerca de tudo isto ningueacutem tecircm
opiniatildeo formada
Eacute relevante destacar que o conceito de pharmakeiacutea utilizado por Platatildeo natildeo se
restringe exclusivamente ao uso de um phaacutermakon (bebidas alimentos ou unguentos)
mas se prolonga atraveacutes de sortileacutegios encantamentos e ligaduras
Platatildeo ainda questiona a eficaacutecia dessas profissionais de magia cujas habilidades
eram difiacuteceis de se averiguar analisar ou compreender sendo a profissional julgada pela
eficiecircncia ou pelos danos causados por sua praacutetica
O fato de atribuir aos praticantes de magia um caraacuteter perigoso por conta do saber
que detinham e a necessidade de que essas praacuteticas fossem controladas por leis remetem-
nos aos diversos processos de impiedade sofridos por mulheres praticantes das teacutechnai
maacutegicas Dentre elas destacamos o nome de trecircs mulheres a hetaira Frinea de Thespis
que foi acusada pelo seu amante Euthias de utilizar lugares sagrados para a praacutetica de
atos iliacutecitos e por ter formado um thiacuteasos1 sem a autorizaccedilatildeo legal dos atenienses a
sacerdotisa Teoris de Lemos acusada de produzir phaacutermaka para curar a epilepsia e
ainda temos o processo sofrido pela sacerdotisa Ninos baseado nas mesmas acusaccedilotildees
direcionadas agraves duas mulheres citadas anteriormente
Tais atitudes eram consideradas desvios agrave ordem instituiacuteda pela poacutelis que
determinava que qualquer accedilatildeo envolvendo contato direto com uma divindade ou com os
mortos requereria a presenccedila de um sacerdote instituiacutedo pela cidade e responsaacutevel por
impedir qualquer praacutetica que pudesse contaminaacute-la de alguma maneira
Maria Regina Candido (2003 p 169) informa-nos sobre as praacuteticas dessas
mulheres
Acreditamos que Teoris de Lemos assim como Frinea de Thespis difundiam
a crenccedila na possibilidade de o homem efetuar de maneira direta a sua relaccedilatildeo
com as potecircncias sobrenaturais e controlar os processos mais complicados que
envolvem a vida como doenccedilas inimizades e maacute sorte de maneira eficaz e
segura Receitavam banhos infusotildees com ervas e oferendas agraves divindades
ctocircnicas estimulavam os praticantes a fazer incursotildees pelo mundo de seres
sobrenaturais como os mortos O mundo dos homens deixava de atender agraves
necessidades do cotidiano e a alternativa era solicitar auxiacutelio das potecircncias
sobrenaturais
Assim como Platatildeo Candido acredita que a puniccedilatildeo relacionada a estas praacuteticas e
a seus praticantes esteja baseada no resultado advindo das mesmas que nem sempre
acarretava proveito agravequele que solicitava um benefiacutecio maacutegico Portanto por temer a
extensatildeo do poder dessas praacuteticas os atenienses puniam seus praticantes na maioria dos
casos mulheres estrangeiras como uma forma de se precaverem
Tambeacutem salientamos que apesar de a praacutetica maacutegica ser em determinadas
circunstacircncias apontada como uma atividade marginal ou uma forma de corromper a
religiatildeo poliacuteade como mencionamos anteriormente os praticantes destas teacutechnai
1 Palavra utilizada para designar um grupo de pessoas que celebram um deus normalmente com festas
cantos e banquetes
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detinham um conhecimento e um poder cuja eficaacutecia seria sustentada por uma crenccedila
coletiva e por uma dependecircncia de uma ordem moral que buscava a autoproteccedilatildeo fato
que garantia a continuidade das diversas formas de magia em todas as classes da
sociedade helecircnica como afirma o texto de Luck (1995 p 42)
Pode a magia antiga se basear em ideias ldquoprimitivasrdquo mas a forma em que nos
foi transmitida natildeo era de nenhum modo primitiva Pelo contraacuterio a magia
nesse sentido existiu somente dentro de culturas altamente desenvolvidas e
constituiu uma parte importante delas Natildeo soacute as classes baixas os ignorantes
e incultos criam nela mas ateacute o final da Antiguidade os ldquointelectuaisrdquo
estiveram convencidos de que poderosas forccedilas sobrenaturais atuavam em
torno deles podendo ser controladas por certos meios
Em grego destacamos trecircs termos para designar os detentores das artes maacutegicas
maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
O nome mais comumente utilizado para designar a feiticeira eacute maacutegos cognato de
mageiacutea magia Segundo Pierre Chantraine (1984 v maacutegos) esta palavra constitui um
empreacutestimo iraniano e no plural maacutegoi designa uma das tribos dos Medos como narra
Herocircdoto I 101 ldquoDeioces unificou a naccedilatildeo dos Medos governando-a A Meacutedia era
composta de diferentes povos os Busos Paretacenos Estrucatos Arizantos Budios e os
Magosrdquo
Segundo ainda o relato de Heroacutedoto haacute entre os maacutegoi aqueles que tecircm a funccedilatildeo
de ser ldquointeacuterpretes de sonhosrdquo Podemos verificar esta atribuiccedilatildeo dos magos em Histoacuteria
I 107 Astiacuteages apoacutes ter um sonho solicitou aos magos inteacuterpretes de sonhos que
revelassem o seu significado em I 120 Astiacuteages para decidir a sorte de Ciro mandou
chamar os mesmos magos que anteriormente tinham interpretado o seu sonho em I 128
vemos isso quando Astiacuteages manda empalar os magos inteacuterpretes dos sonhos que o
haviam convencido a deixar Ciro partir No livro VII 37 haacute uma passagem que ratifica a
funccedilatildeo de inteacuterprete dos sonhos aos magos Nela Xerxes apoacutes ver um eclipse solar
acreditando ser um mau pressaacutegio pede aos seus magos que interpretem o fenocircmeno
Segundo Graf (1994 p 30) aleacutem de serem inteacuterpretes dos sonhos os maacutegoi seriam os
responsaacuteveis pelos sacrifiacutecios reais pelos ritos funeraacuterios e pela adivinhaccedilatildeo
O termo maacutegos parece ter adquirido com o advento da filosofia conotaccedilatildeo
negativa sendo entatildeo utilizado para estigmatizar opiniotildees e comportamentos
considerados socialmente desviados a julgar por Heraacuteclito frag 14 que associa maacutegoi
aos ldquovagabundos da noite bacantes mecircnades e aos mistosrdquo e acredita serem esses homens
merecedores de morte posto que praticam accedilotildees iacutempias Graf (1994 32) discute se esta
caracterizaccedilatildeo de Heraacuteclito reproduziria a atuaccedilatildeo dos maacutegoi pois se ela corresponder agrave
realidade este termo semanticamente poderaacute ganhar a conotaccedilatildeo dos termos aguacutertes e
maacutentis pedinte e adivinho utilizados por Platatildeo na Repuacuteblica II-364b ou ser
interpretada a partir da expressatildeo utilizada no papiro de Derveni profissional dos ritos
Com base nesta definiccedilatildeo poderiacuteamos afirmar que Heraacuteclito ao utilizar a expressatildeo
ldquovagabundos da noiterdquo estaria dizendo que os maacutegoi seriam especialistas de toda uma
seacuterie de ritos privados e secretos como nos afirma o proacuteprio Graf (1994 p 33) ldquoPara um
jocircnico do fim do periacuteodo arcaico o maacutegos era semelhante aos especialistas itinerantes
dos cultos privados homens agrave margem da sociedade ridicularizados por uns e
secretamente temidos por outrosrdquo
Outro termo utilizado para nomear o praticante da magia eacute goeacutes termo cognato
do verbo goaacuteo gemer lamentar-se e que inicialmente designava um cantor que proferia
um lamento ritual pelos mortos ou seja o goeacutes eacute aquele que ldquocombina o ecircxtase com um
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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lamento ritual e a cura ritual com a adivinhaccedilatildeordquo (GRAF 1994 p 35) e que manteacutem
uma relaccedilatildeo estreita com o mundo dos mortos
Formadas a partir da mesma raiz encontramos as palavras goeteiacutea magia assim
como goeacuteteuma procedimento maacutegico fascinaccedilatildeo Heroacutedoto (II 33) ao narrar a histoacuteria
de Etearco o amocircnio aplica o termo goacuteetes para informar-nos sobre a crenccedila por parte
dos nasamones de que os habitantes de uma cidade em que entraram eram feiticeiros e
em IV 105 discorre sobre os relatos que afirmam que todos os Neuros eram goeacutetes
Encontramos ainda o termo goacutees associado a epoidos cantor aquele que canta
palavras maacutegicas para curar por exemplo em Euriacutepides As Bacantes 234-235 em que
encontramos os dois termos na fala de Penteu para fazer referecircncia ao estrangeiro que
estaacute propagando o culto a Dioniso ldquoDizem que veio um forasteiro feiticeiro cantor (goacutees
epoidoacutes) da terra da Iacutediardquo
Em Platatildeo Leis 903b quando a personagem chamada Ateniense ao mencionar
que iraacute convencer algueacutem por meio de argumentos diz ldquoMas ainda precisamos
acrescentar algumas histoacuterias a fim de imobilizaacute-lo com o encantamento (epoidocircn) que
lhes eacute proacutepriordquo E da mesma maneira eacute associado a maacutegos no Elogio agrave Helena de
Goacutergias ao evocar o poder da arte goeacutetica que encanta persuade e transforma Essas
teacutecnicas associadas agrave magia segundo o sofista seriam teacutecnicas do engano pois
desvirtuariam a alma e a opiniatildeo com falsas ilusotildees Desse modo Goacutergias defende Helena
dizendo que ela foi viacutetima da persuasatildeo maacutegica de Paacuteris contra a qual natildeo haveria defesa
O terceiro nome eacute pharmakeuacutes ou pharmakoacutes e designa um preparador de drogas
feiticeiro ou por ser cognato de pharmakeuacuteo significa simplesmente aquele que daacute um
remeacutedio ou veneno a algueacutem ou aquele que realiza uma operaccedilatildeo maacutegica Haacute ainda o
termo pharmakiacutes -idos atribuiacutedo agrave mulher que prepara poccedilotildees ou agrave feiticeira Aristoacutefanes
em As Nuvens 749 utiliza esta palavra como qualificativo para a mulher A expressatildeo
gunaicircka pharmakiacuteda encontrada em Aristoacutefanes refere-se a uma feiticeira da Tessaacutelia
que fazia a lua baixar agrave noite prendendo-a em um espelho
Cabe-nos contudo falar um pouco mais da magia das palavras ou do
encantamento Como jaacute mencionamos o termo goeacutes tem sua funccedilatildeo e significado
associado ao termo epoideacute que revela a natureza maacutegica do emprego da palavra e traz em
sua composiccedilatildeo o termo aoideacute canto que por sua vez estaacute relacionado com o termo audeacute
voz humana O grego distingue a linguagem humana audeacute do termo phoneacute que tanto
pode representar a linguagem humana como o som produzido por um animal
Pierre Chantraine (v aeidocirc) assinala que o prefixo epi- destaca o valor maacutegico do
canto assim epoideacute significa ldquocanto ou palavra maacutegicardquo
Eacute notoacuterio entretanto que o canto faz parte da cultura grega seja atraveacutes do maior
aedo de todos os tempos Homero atraveacutes do teatro da vida privada ou da puacuteblica O que
diferencia portanto essas utilizaccedilotildees da arte maacutegica das goeteacutes A diferenccedila estaacute na
estrutura destes encantamentos na tonalidade com que as palavras eram pronunciadas na
junccedilatildeo de siacutelabas estranhas apresentadas como verdadeiras foacutermulas maacutegicas bem como
aos poderes e divindades invocadas Tal estrutura eacute apresentada no seguinte fragmento
ldquoFebo o que auxilia na adivinhaccedilatildeo vem contente filho de Leto arqueiro infaliacutevel
protetor do mal venha aqui neste momento Vem Vaticinador daacute-me teus oraacuteculos
durante a noite allala allala santalala talalardquo (PGM II)
As foacutermulas maacutegicas do ponto de vista formal portanto tinham uma estrutura
preacute-estabelecida (pronunciada e realizadas de uma determinada maneira) que consistem
em uma seacuterie de instruccedilotildees que foram transmitidas atraveacutes do processo de iniciaccedilatildeo Esse
processo de aprendizado pode ser no acircmbito familiar ou em lugares considerados
sagrados
Dulcileide V do Nascimento Braga
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Temos diversos registros de foacutermulas maacutegicas algumas por exemplo
denominadas eroacuteticas objetivam a realizaccedilatildeo do desejo de um solicitante e tecircm
basicamente a mesma estrutura Como exemplo cito o PGM IV 3
Que fulana me ame a mim fulano filho de cicrano que ela natildeo tenha relaccedilotildees
sexuais nem por frente nem por traacutes nem busque prazer com outro homem
somente comigo de modo que fulana natildeo possa beber nem comer nem amar
nem sofrer nem ter sauacutede que natildeo consiga dormir sem mim arrasta a fulana
pelos cabelos as entranhas sua alma em cada momento de sua vida ateacute que
venha ateacute mim e permaneccedila inseparavelmente unida a mim
Neste encantamento se invoca o espiacuterito de um morto ou de uma divindade
normalmente Tiacutefon Selene ou Heacutecate mas quando se trata de magia eroacutetica se invoca
especialmente a deusa Afrodite e seu filho Eros Essas praacuteticas satildeo acompanhadas de um
gesto do solicitante como por exemplo um suspiro diante da mulher desejada um beijo
na lacircmina que conteacutem o pedido ou a simples repeticcedilatildeo do nome de Afrodite
Teoacutecrito no Idiacutelio 2 com 166 versos demonstra-nos como essas foacutermulas eram
utilizadas ao narrar a histoacuteria de como Simeta executa um ritual maacutegico com o intuito de
reconquistar o amor de Deacutelfis um jovem atleta que a trocou por um novo amor Eis alguns
versos do poema
Trecircs vezes faccedilo uma libaccedilatildeo e trecircs vezes Soberana
Pronuncio estas palavras quer seja mulher quer seja homem
Que com ele dorme agora que um tatildeo grande esquecimento invada
Deacutelfis como aquele que ndash ao que dizem ndash fez Teseu esquecer um
Dia Ariadne de belas tranccedilas (43-47)
Essa ldquoteacutecnicardquo das palavras tambeacutem faz parte da tradiccedilatildeo de uma literatura meacutedica
pois aleacutem de apresentar vaacuterios deuses responsaacuteveis pela cura tinha um deus especiacutefico
para a medicina Ascleacutepio e um lugar de cura Epidauro Ascleacutepio tinha um poder de cura
muito grande acreditava-se que ele inclusive podia ressuscitar os mortos O filho de
Apolo curava a uns com as doces palavras da magia (contos poemas e muacutesica) a outros
oferecia poccedilotildees eficazes ou lhes aplicava ervas em torno de seus membros ou cortava o
mal com o ferro para devolver-lhes a sauacutede
A tradiccedilatildeo meacutedica incluiacutea uma mistura de curas que podiam genuinamente ser
observadas e uma medicina popular considerada maacutegica Uma parte dos que exerciam a
medicina maacutegica eram mulheres embora a maioria delas trabalhasse como parteiras
Os templos de Ascleacutepio foram encontrados em todo o mundo mediterracircneo
Nesses templos o processo de cura consistia mais em repouso massagem e uma dieta
modificada do que aquilo que poderiacuteamos chamar de medicina Um meacutetodo de cura que
se tornou conhecido foi a ldquoincubaccedilatildeordquo em que o doente dormia confinado no templo de
Ascleacutepio na esperanccedila de receber uma revelaccedilatildeo daquele deus por meio de sonho
Aqueles que haviam sido curados faziam contribuiccedilotildees especiais para os templos que
frequentemente incluiacuteam reproduccedilotildees de gesso de quaisquer partes de seus corpos que
tivessem sido curadas Estes eram colocados em exibiccedilatildeo como testemunhos do poder de
cura do deus
Um relato que corroborou esse processo foi o de Eacutelio Aristides orador e tambeacutem
um portador de doenccedila crocircnica que no seacuteculo da nossa era em seus Hieroigrave Loacutegoi nos daacute
uma visatildeo da necessidade que as pessoas tinham pela cura bem como os meacutetodos
empregados para esse fim Depois tentar vaacuterios procedimentos meacutedicos Aristides tornou-
se um devoto de Ascleacutepio As curas prescritas para ele nos sonhos incluiacuteam accedilotildees como
banhar-se em um rio agitado durante o inverno derramar lama em si mesmo antes de se
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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assentar no paacutetio do templo andar sem sapatos todo o inverno e fazer sangria de vaacuterias
partes do seu corpo
A teacutecnica maacutegica portanto ao longo da histoacuteria foi um recurso utilizado como
tentativa de controlar o mundo natural atraveacutes de forccedilas consideradas sobrenaturais Essa
teacutecnica era ensinada somente aos iniciados e envolviam a arte da adivinhaccedilatildeo o preparo
de feiticcedilos e poccedilotildees a realizaccedilatildeo de rituais e cerimocircnias bem como a maneira correta de
se invocar deuses e espiacuteritos Quando realizados dentro dos templos tais procedimentos
eram considerados parte da religiatildeo Quando realizados fora eram classificado como
magia
A ideia de inferioridade feminina que perpassa toda a histoacuteria natildeo tem registro de
quando comeccedilou Desde a Antiguidade temos concepccedilotildees como a de Pitaacutegoras que
relacionava a mulher ao lado negativo ao dizer que ldquoHaacute um princiacutepio bom que criou a
ordem a luz e o homem e um princiacutepio mau que criou o caos as trevas e a mulherrdquo
(PITAacuteGORAS apud BEAUVOIR 1997 p 6)
Os elos que ligaram a imagem da mulher ao obscuro ao caos e ao infortuacutenio
masculino foram delineados e reforccedilados por figuras arquetiacutepicas como Pandora Lilith
e a proacutepria Eva Da mesma maneira as goeteacutes foram chamadas de charlatatildees quando natildeo
obtinham o resultado desejado ao evocarem os deuses e tentarem por teacutecnicas diversas
atender agrave solicitaccedilatildeo de algueacutem que recorria agraves praacuteticas maacutegicas para resolver problemas
particulares Essas solicitaccedilotildees normalmente envolviam uma accedilatildeo que prejudicaria
algueacutem fato que serviu para atenuar a fama negativa das goeteacutes
Ainda hoje encontramos aspectos desse tipo de comportamento maacutegico presentes
nos procedimentos considerados maacutegico-religiosos ou na proacutepria literatura ficcional que
demonstram a forccedila da seleccedilatildeo vocabular e da sonoridade provocada pela repeticcedilatildeo de
palavras e desejos com o uacutenico objetivo de concretizar desejos nem sempre passiacuteveis de
serem expressos em outras circunstacircncias Este eacute o caso da poesia citada abaixo
A VOLTA DA MULHER MORENA Vinicius de Moraes
Meus amigos meus irmatildeos cegai os olhos da mulher morena
Que os olhos da mulher morena estatildeo me envolvendo
E estatildeo me despertando de noite Meus amigos meus irmatildeos cortai os laacutebios
da mulher morena Eles satildeo maduros e uacutemidos e inquietos
E sabem tirar a voluacutepia de todos os frios
Meus amigos meus irmatildeos e voacutes que amais a poesia da minha alma
Cortai os peitos da mulher morena
Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono
E trazem cores tristes para os meus olhos
Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes
Traze-me para o contato casto de tuas vestes
Salva-me dos braccedilos da mulher morena
Eles satildeo lassos ficam estendidos imoacuteveis ao longo de mim
Satildeo como raiacutezes recendendo resina fresca
Satildeo como dois silecircncios que me paralisam
Aventureira do Rio da Vida compra o meu corpo da mulher morena
Livra-me do seu ventre como a campina matinal
Livra-me do seu dorso como a aacutegua escorrendo fria
Branca avozinha dos caminhos reza para ir embora a mulher morena
Reza para murcharem as pernas da mulher morena
Reza para a velhice roer dentro da mulher morena
Que a mulher morena estaacute encurvando os meus ombros
E estaacute trazendo tosse maacute para o meu peito
Meus amigos meus irmatildeos e voacutes todos que guardais ainda meus uacuteltimos
cantos
Dai morte cruel agrave mulher morena
Dulcileide V do Nascimento Braga
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O texto de Viniacutecius dialoga com o texto de Platatildeo citado anteriormente em que
faz menccedilatildeo agraves bonequinhas de cera utilizadas para fazer magia A finalidade dessas
bonecas conhecidas posteriormente por bonecas de vodu era gradativamente extinguir
a funcionalidade de determinados oacutergatildeos (cegar calar impedir de andar roer por dentro)
ateacute provocar a morte ldquodaiacute morte cruel agrave mulher morenardquo
O princiacutepio ldquose natildeo eacute meu natildeo seraacute de mais ningueacutemrdquo estaacute impliacutecito em inuacutemeros
encantamentos contidos nos PGM e representa natildeo soacute o desejo daquelea que foi
abandonadoa de se vingar de quem oa abandonou como tambeacutem o desejo de se livrar
daquelea que emocionalmente lhe causa mal
A voz humana eacute portanto o instrumento que potencializa a forccedila do pensamento
concretizando-os atraveacutes das palavras
Portanto a palavra quer cantada pronunciada em forma de versos ou balbuciada
em forma de encantamentos ou foacutermulas invocatoacuterias faz parte do universo sonoro grego
como forma de perpetuar segredos e manifestar um poder
Ainda hoje tentamos aprender sobre esta teacutechne que capacitava o indiviacuteduo a
concretizar desejos entretanto esbarramos nas lacunas temporais miacuteticas e religiosas
cujas entrelinhas foram desfeitas com o passar dos anos e que intencionalmente ou natildeo
desabilitaram a humanidade a obter o desejado com a mesma constacircncia com que eram
obtidas no passado
Os ritos religiosos continuam a utilizar a magia das palavras mas algumas
palavras tornaram-se impronunciaacuteveis e permanecem trancafiadas nas prisotildees silenciosas
do descaso cabe portanto a noacutes pronunciaacute-las ou natildeo reconhecendo a influecircncia que os
profissionais da magia tiveram e tecircm nas accedilotildees atemporais denominadas sobrenaturais
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946515
A AGOGEacute ESPARTANA
Luciene de Lima Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem O
desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo deviam ter
medo de nada sendo resistentes aos ferimentos odiando qualquer demonstraccedilatildeo de
covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Cada espartano tinha de ser um soldado
perfeito e sua maior gloacuteria era morrer em batalha retornar derrotado jamais Desse modo
toda a sociedade e educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases
atribuiacutedas agraves matildees espartanas era ldquoespero que meu filho volte com o seu escudo ou
deitado sobre elerdquo Assim eacute que este artigo tem por escopo discorrer a respeito da agogeacute
espartana que era um tipo de educaccedilatildeo peculiar com fins extremamente belicosos
PALAVRAS-CHAVE Esparta agogeacute guerra Licurgo
THE SPARTAN AGOGEacute
ABSTRACT In Sparta courage was part of the formation of a manrsquos character The
development of courage was a Spartan obsession Spartans should not be afraid of
anything showing themselves resistant to wounds They hated any type of cowardice and
were extremely dedicated to the poacutelis Each Spartan male had to be a perfect soldier and
the ultimate glory was to die in battle to never come back defeated Given this Spartan
society and education was focused on war One famous sentence related to Spartan
mothers was ldquoI hope my son comes back with his shield - or on itrdquo Thus this article has
as its scope the discussion of the practices of Spartan agogeacute their very peculiar
education with extremely bellicose objectives
KEYWORDS Sparta agogeacute war Lycurgus
Esparta tem de pleno direito um lugar na histoacuteria da educaccedilatildeo A
criaccedilatildeo mais caracteriacutestica de Esparta eacute o seu estado e o Estado
representa aqui pela primeira vez uma forccedila educadora no mais vasto
sentido da palavra (Werner Jaeger)
E-mail oliveira-lluolcombr
A agogeacute espartana
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Esparta tambeacutem intitulada Lacedemocircnia era a principal cidade de uma regiatildeo
denominada Lacocircnia na regiatildeo do Peloponeso A cidade localizava-se agraves margens do rio
Eurotas cercada de montanhas a nordeste
Os primeiros invasores da regiatildeo foram os aqueus esses expulsaram os povos preacute-
helecircnicos que ali habitavam e fundaram a cidade de Lacedemocircnia
A migraccedilatildeo doacuterica eacute o uacuteltimo dos movimentos de povos possivelmente
originaacuterios da Europa Central que a partir da Peniacutensula Balcacircnica entraram na Greacutecia e
se misturaram com os povos de outras raccedilas mediterracircneas ali fixadas primitivamente
constituindo assim o povo helecircnico
Os doacuterios ao se apoderarem da maior parte do Peloponeso invadiram Creta e
foram os responsaacuteveis pela colonizaccedilatildeo de algumas ilhas Ciclaacutedicas e Espoacuteradas Os
espartanos satildeo considerados descendentes dos doacuterios1 esses tinham por caracteriacutestica
peculiar a belicosidade
A cidade de Esparta era conhecida por usufruir de uma eunomiacutea ldquouma boa
legislaccedilatildeordquo De acordo com a tradiccedilatildeo Licurgo apoacutes consultar o oraacuteculo de Delfos2 teria
dado agrave Esparta leis para a vida social e econocircmica citem-se por exemplo a proibiccedilatildeo do
comeacutercio e a utilizaccedilatildeo de metais preciosos que foram substituiacutedos por moedas de ferro
instituiu uma educaccedilatildeo rigorosa as refeiccedilotildees coletivas regulamentaccedilatildeo do casamento a
maneira de viver etc
Os espartanos eram considerados xenofoacutebicos Plutarco escreve que eles natildeo
tinham permissatildeo para sair da cidade pois poderiam trazer costumes estranhos e
desordenados para dentro da cidade Os estrangeiros que residiam em Esparta foram
expulsos com exceccedilatildeo daqueles que faziam algo de uacutetil para a cidade Aleacutem do mais natildeo
comercializavam com o estrangeiro nenhum navio de fora entrava no porto para ali
comercializar (PLUTARCO Licurgo XIV LVII In Vidas Paralelas)
Ora foi o historiador Heroacutedoto o primeiro a retratar Licurgo como o idealizador
da eunomiacutea se dedicando ldquoagraves coisas relacionadas com a guerrardquo (HERODOTO Histoacuteria
I) Na Antiguidade jaacute havia duacutevidas sobre a sua eacutepoca e ateacute mesmo sua existecircncia
Os espartanos ndash ao contraacuterio de outros grupos ndash natildeo desenvolveram relaccedilotildees
culturais e comerciais externas sua crescente populaccedilatildeo soacute encontrou um meio de
expandir-se pelas armas
Xenofonte inclusive indaga como Esparta uma das cidades menos povoadas
tornou-se a mais poderosa e famosa dentre toda a Heacutelade (JENOFONTE La Republica
de los Lacedemonios I 1-2)
O vocaacutebulo que os espartanos empregavam para designar ldquoeducaccedilatildeordquo era agogeacute
que proveacutem do verbo aacutego ldquotransporto conduzordquo Os filoacutesofos Platatildeo (PLATAtildeO Leis
1 O helenista Jaeger faz a seguinte ponderaccedilatildeo a respeito dos doacuterios ldquoa raccedila doacuterica ofereceu a Piacutendaro o
seu ideal de homem loiro de alta estirpe tal como era representado natildeo soacute o Menelau de Homero como
tambeacutem o heroacutei Aquiles e de um modo geral os ldquohelenos de loira cabeleirardquo da antiguidade heroica
(JAEGER 2001 p 111) 2 Esparta pelo vieacutes poliacutetico constituiacutea uma diarquia hereditaacuteria real Acredita-se que Licurgo fora
descendente de uma das famiacutelias reais de Esparta a euripocircntida O legislador tinha um irmatildeo
rei mas apoacutes a morte daquele Licurgo subiria ao trono poreacutem o seu irmatildeo havia deixado um
descendente ainda no ventre de sua esposa Leobotas O legislador foi entatildeo tutor de seu
sobrinho Preocupado com a situaccedilatildeo de Esparta jaacute que o sobrinho era uma crianccedila Licurgo
se dirigiu a Delfos para receber conselhos diga-se leis escritas a rheacutetra em relaccedilatildeo a Esparta
(HEROacuteDOTO Histoacuteria I LXV) Sabe-se muita coisa de Licurgo por meio de Plutarco em
Vida de Licurgo
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659d) e Aristoacuteteles (ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1321) tambeacutem se referem a agogeacute como
ldquoeducaccedilatildeordquo
Entrementes Marrou emprega o termo ldquoadestramentordquo para traduzir agogeacute e
chama a atenccedilatildeo para o fato de ser ldquouma condiccedilatildeo necessaacuteria senatildeo suficiente para o
exerciacutecio dos direitos ciacutevicosrdquo (MARROU 1966 p 41) O helenista considera que a
educaccedilatildeo em Esparta possui natildeo soacute um lugar especial na histoacuteria da educaccedilatildeo como
tambeacutem na cultura grega (Op cit p 33)
Todos os cidadatildeos espartanos tinham uma participaccedilatildeo ativa na educaccedilatildeo militar
constituindo uma casta aristocraacutetica a priori lembrando a educaccedilatildeo da antiga nobreza
grega Natildeo obstante foi mais tarde estendida agravequeles que natildeo faziam parte da nobreza
Jaeger expotildee que mesmo que Licurgo tenha realmente existido e criado a rheacutetra
ldquoleis escritasrdquo que o poeta Tirteu (4W 1-10) bem a conhecia jaacute no seacuteculo VII aC natildeo
adiantaria muito saber a respeito da origem da educaccedilatildeo espartana conforme Xenofonte
a descreve (JAEGER 2001 p 114)
O pesquisador considera tambeacutem a agogeacute como ldquoo adestramento espartanordquo que
nada mais era do que o ideal do movimento educativo do seacuteculo IV aC (Op cit p 115)
O helenista destaca que a crenccedila de que a educaccedilatildeo espartana era uma preparaccedilatildeo militar
tinha sua origem na Poliacutetica de Aristoacuteteles Platatildeo igualmente jaacute havia definido essa
ideia quando relata nas suas Leis o espiacuterito do Estado de Licurgo (Op cit p 110)
As crianccedilas futuros guerreiros de Esparta eram ldquocriadasrdquo anatropheacute por seus
pais em suas casas ateacute os sete anos de idade depois essa tarefa era assumida pelo
governo sendo treinados para a obediecircncia em situaccedilotildees penosas e difiacuteceis3
Desse modo Licurgo natildeo colocou a educaccedilatildeo nas matildeos nem de mercenaacuterios nem
de servos comprados os pais natildeo poderiam educar seus filhos a seu bel prazer Quando
completavam sete anos eram divididos em grupos a fim de serem educados juntos e
brincassem entre si aprender e estudar uns com os outros Aquele que sobressaiacutesse e fosse
mais valente em combate se tornaria o liacuteder de todo o grupo os outros deveriam obedecer
as suas ordens O legislador considerava a educaccedilatildeo das crianccedilas como a coisa mais bela
que um legislador pudesse estabelecer (PLUTARCO Licurgo XXV XXXIII In Vidas
Paralelas)
Dos sete aos quinze anos eram instruiacutedos nas letras e nos caacutelculos e naturalmente
nos hinos do poeta Tirteu que ressaltavam a bravura e a coragem destemida
Na etapa final entre dezesseis e vinte anos quando denominados de eireacuten um
pouco antes de entrarem no serviccedilo da poacutelis eram treinados a manusear as armas na luta
com lanccedilas e espadas no arco e flecha Com isso a carga dos exerciacutecios e as operaccedilotildees
militares simuladas nas montanhas ao redor da poacutelis eram aumentadas
Plutarco daacute o seguinte testemunho
Quanto agraves letras aprendiam somente o necessaacuterio e em suma todo o
aprendizado consistia em bem obedecer suportar o trabalho e obter a vitoacuteria
em combate Por essa razatildeo agrave medida que avanccedilavam em idade aumentavam-
lhes tambeacutem os exerciacutecios corporais raspavam-lhes os
cabelos faziam-nos andar descalccedilos e os constrangiam a brincar juntos a maior
parte do tempo inteiramente nus depois quando chegavam agrave idade de doze
anos natildeo mais usavam saios daiacute por diante pois todos os anos lhes davam
somente uma tuacutenica simples o que era causa de andarem sempre sujos e
3 Plutarco daacute testemunho que estrangeiros se dirigiam ateacute a Lacocircnia para contratarem amas para criarem
seus filhos (PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)
A agogeacute espartana
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ensebados como aqueles que natildeo se lavavam nem se untavam senatildeo em certos
dias do ano quando os faziam gozar um pouco dessa doccedilura Deitavam e
dormiam juntos sobre enxergas que eles proacuteprios fabricavam com pontas dos
juncos e caniccedilos que cresciam no rio Eurotas os quais eles proacuteprios deviam ir
colher e quebrar somente com as matildeos sem nenhuma ferramenta mas no
inverno ajuntavam a isso e misturavam no meio o que se chama Lycophanos
porque parece que essa mateacuteria tem em si um pouco de calor (PLUTARCO
Licurgo XXIV In Vidas Paralelas)
A agogeacute propriamente dita se iniciava aos sete anos e finalizava ateacute os vinte anos
compreendendo portanto um periacuteodo de treze anos Havia a supervisatildeo de um
paidonoacutemos uma espeacutecie de magistrado especial
Marrou oferece a seguinte divisatildeo da agogeacute agrupados em trecircs ciclos (MARROU
1966 p 42)
Oitavo ano ao deacutecimo primeiro ano
a) rhobiacutedas (termo obscuro)
b) promikkizoacutemenos (meninote)
c) mikki(khi)zoacutemenos (menino)
Deacutecimo segundo ano ao deacutecimo quinto ano
a) pratopaacutempais (rapaz jaacute maduro de primeiro ano)
b) hatropaacutempais (rapaz jaacute maduro de segundo ano)
c) melleiacuteren (futuro irene)
d) melleiacuteren (irene de segundo ano)
Deacutecimo sexto ano ao vigeacutesimo ano
a) eireacuten de primeiro ano
b) eireacuten de segundo ano
c) eireacuten de terceiro ano
d) eireacuten de quarto ano
e) proteicircras (irene-chefe)
O historiador francecircs pontua que os meninos espartanos eram divididos em
unidades (iacutelai ou ageacutelai) comandadas pelos jovens maiores os proteicircrai de vinte anos
que eram os mais velhos dentre os irenes (Op cit p 43)
Plutarco lembra que os espartanos ldquonatildeo usam de muita linguagemrdquo eram
lacocircnicos ldquopessoas de poucas palavrasrdquo como resultado natildeo se expressavam com
propriedade mas nada os impedia de serem bem compreendidos pelos ouvintes O
bioacutegrafo sublinha que o proacuteprio Licurgo era breve no falar Interessante destacar que era
proibido entrar em Esparta algum retoacuterico para ensinar a arte da persuasatildeo ao povo Natildeo
obstante os espartanos eram exiacutemios compositores de belos cacircnticos em que incitavam
a coragem (PLUTARCO Licurgo XIV XL XLIV In Vidas Paralelas)
Quando estavam reunidos em Conselho os cidadatildeos espartanos natildeo poderiam
deliberar indagar seus superiores muito menos apresentar alguma opiniatildeo lhes era
permitido somente aprovar ou reprovar os informes propostos pelos reis ou senadores
(Op cit X)
O futuro guerreiro tinha de ter por haacutebitos a modeacutestia andar nas ruas com as
matildeos dentro do manto e caminhar em silecircncio sem dirigir o olhar a nenhum lugar apenas
olhando em direccedilatildeo a seus proacuteprios peacutes O historiador Xenofonte compara o jovem
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espartano que anda em silecircncio e de olhos baixos a uma estaacutetua de virgem
(JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)
Entre vinte e trinta anos os espartanos eram obrigados a se casar mas a vida
familiar natildeo era lhes permitida soacute depois dos trinta podiam deixar de dormir nos
acampamentos militares
A fim de dotar de coragem os seus infantes em Esparta havia a kryptiacutea um
ldquoesquadratildeo de extermiacuteniordquo que estimulava os jovens selecionados a caccedilarem sozinhos ou
em grupos os hilotas ou seja os escravos que por um acaso andassem desgarrados ou
que de alguma forma representassem pelo seu vigor fiacutesico uma ameaccedila agrave seguranccedila da
poacutelis Os hilotas quando localizados eram vitimados pela espada ou pela lanccedila armas
que o grupo de jovens sempre trazia consigo (PLUTARCO Licurgo LVIII In Vidas
Paralelas)
Os jovens espartanos estavam sempre forccedilando seus corpos ao limite cultivando
a excelecircncia da forccedila fiacutesica Aristoacuteteles destaca que de entre as cidades que mais se
preocupavam com a educaccedilatildeo infantil a maioria procurava aperfeiccediloaacute-la por meio de uma
disposiccedilatildeo atleacutetica O filoacutesofo sublinha que os espartanos davam para os futuros
guerreiros trabalhos aacuterduos como se essa atitude fosse vista como adequada para o culto
da bravura (ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1338b 10-15)
O estagirita ressalta que natildeo eacute contra a ginaacutestica mas deve-se praticaacute-la com
moderaccedilatildeo ateacute a adolescecircncia evitando exerciacutecios forccedilosos pois podem resultar em
prejuiacutezos para o corpo Daacute como exemplo que de entre os vencedores dos jogos
Oliacutempicos tem apenas dois ou trecircs espartanos vitoriosos Acredita que isso se daacute ao fato
de terem sido sujeitos desde crianccedila a treinos fiacutesicos extremos que acabaram por exaurir
suas forccedilas (Op cit II 1338b 35-40 1339a 1-5)
Aristoacuteteles sublinha que toda a organizaccedilatildeo legislativa dos espartanos tinha como
objetivo uma forma de virtude o valor guerreiro uma vez que eacute uacutetil para dominar Como
resultado disso o vigor e a forccedila dos espartanos foram preservados enquanto estiveram
em guerra mas houve um decliacutenio a partir do momento que alcanccedilaram a supremacia Na
verdade natildeo sabiam viver em paz aleacutem do mais natildeo haviam se exercitado em outra
disciplina superior agrave arte da guerra (Op cit II 1271b 1-10)
Jaeger sustenta que na vida dos espartanos por meio de uma educaccedilatildeo
diferenciada percebe-se um ideal de educaccedilatildeo anaacutelogo ao que Platatildeo propotildee na
Repuacuteblica A propoacutesito Platatildeo e outros teoacutericos da educaccedilatildeo posteriores tiveram Esparta
por paradigma em muitos aspectos (JAEGER 2001 p 112)
A necessidade de imposiccedilatildeo dos espartanos sobre a grande maioria de hilotas
(escravos que natildeo possuiacuteam direito algum) que a qualquer momento poderiam se
rebelar teve muita importacircncia na formaccedilatildeo da agogeacute espartana
Ora com as muitas conquistas espartanas havia sempre a iminecircncia de uma
revolta por parte dos povos conquistados Eacute fato que os povos conquistados constituiacuteam
em maior nuacutemero do que os conquistadores espartanos
Acredita-se que no final do seacuteculo VI aC depois da conquista da Messecircnia o
estado espartano completou sua organizaccedilatildeo transformando-se em um verdadeiro
ldquoacampamento militarrdquo permanente
Os resquiacutecios arqueoloacutegicos atestam que ateacute o seacuteculo VI aC Esparta era
dominada por uma aristocracia de grandes proprietaacuterios Devido agraves duas grandes guerras
pela conquista da Messecircnia houve um aumento consideraacutevel daqueles que poderiam
participar da funccedilatildeo guerreira e que se beneficiaram pela distribuiccedilatildeo de lotes de cleroacutei
A agogeacute espartana
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da regiatildeo conquistada Por outro lado os messecircnios foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de
hilotas A respeito da segunda guerra da Messecircnia4 Mosseacute escreve
Esparta parece ter se fechado em si mesma com a decadecircncia do artesanato e
o desaparecimento do uso da moeda de prata Diante da massa de populaccedilotildees
dependentes (hilotas da Lacocircnia e da Messecircnia periecos da Lacocircnia motacos
neodamodos etc) a classe guerreira dos homoioiacute dos semelhantes formada
pelo conjunto dos cidadatildeos espartanos passa a ser um grupo privilegiado que
vive recluso em perpeacutetuo estado de defesa Essa eacute a origem da vida austera que
tanto impressionava seus contemporacircneos e permitia a Esparta desempenhar
papel preponderante no mundo grego (MOSSEacute 2004 p 121) Com efeito
muitas disposiccedilotildees referentes agrave educaccedilatildeo e ao casamento natildeo deixam de evocar
os programas educativos elaborados por Platatildeo na Repuacuteblica e nas Leis Platatildeo
teria tomado o modelo espartano como inspiraccedilatildeo ou nos seacuteculos seguintes
esse modelo teria sido construiacutedo a partir das disposiccedilotildees imaginadas por
Platatildeo para suas cidades ideais Essa eacute uma pergunta de resposta difiacutecil O que
eacute inquestionaacutevel eacute o caraacuteter peculiar da educaccedilatildeo espartana essa agogeacute que
espantava os atenienses da eacutepoca claacutessica especialmente na medida em que
tambeacutem atingia as mulheres (Op cit p 189)
Ressalte-se que a guerra eacute um dos fenocircmenos a ser evitado mas que
frequentemente ocorre nas sociedades humanas Em O Homem Grego obra organizada
por Vernant o ensaio de Garlan denominado ldquoO Homem e a Guerrardquo eacute relevante pois
de acordo com Garlan embora o homem grego ldquonatildeo pudesse ser definido como algueacutem
que gosta da violecircncia pela violecircnciardquo isto eacute como um homo militaris muitos satildeo os
conflitos em que eles se envolveram sobretudo na eacutepoca arcaica e claacutessica Para Garlan
eacute ldquocomo se a paz fosse desde o primeiro momento considerada precaacuteria ou mesmo
concebida como uma espeacutecie de treacutegua prolongadardquo (GARLAN apud VERNANT 1994
pp 49-50)
Em uma sociedade predominantemente guerreira como a espartana a covardia de
um guerreiro era vista com repugnacircncia assim a desonra em Esparta acompanhava os
covardes sendo preferiacutevel a morte a uma vida infame e desonrosa Eacute um guerreiro que
natildeo merecia nenhuma timeacute ldquohonrardquo pois tem como aliados a atimiacutee ldquodesonrardquo e a
kakoacutetes ldquocovardiardquo Consequentemente este homem eacute algueacutem sem aidoacutes ou seja
algueacutem que natildeo eacute digno ldquode respeitordquo ldquode consideraccedilatildeordquo Haacute pois uma conexatildeo clara
entre aidoacutes ldquorespeitordquo e timeacute ldquohonrardquo na sociedade espartana
O binocircmio aidoacutes ldquorespeitordquo e aiskhryacutene ldquovergonhardquo satildeo vocaacutebulos que estatildeo
presentes no estatuto ciacutevico de Esparta como pontua Nicole Loraux (LORAUX 1989 p
82)
O desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo
poderiam ter medo de nada deveriam ser resistentes aos ferimentos odiando qualquer
4 Houve duas guerras entre Messecircnia e Esparta Na primeira os espartanos sob a lideranccedila do rei
Theopompo foram vencedores Os messecircnios eram comandados por Aristomenes Segundo Heroacutedoto
(HEROacuteDOTO Histoacuteria VIII 1312) o rei Theopompo pertencia agrave oitava geraccedilatildeo antes de Leoticidas
que governou de 491 a 469 aC Depois de cinquenta anos de opressatildeo os messecircnios se revoltaram com
a ajuda de aliados de Argos Arcaacutedia e Pisa Essa rebeliatildeo eacute conhecida como Segunda Guerra da
Messecircnia Campbell afirma que eacute difiacutecil estabelecer a cronologia das duas guerras (CAMPBELL 1967
p 169) Costuma-se contudo fixar o periacuteodo da primeira guerra em torno da segunda metade do seacuteculo
VIII aC mais precisamente entre 735 e 715 aC e a segunda guerra que teria durado aproximadamente
vinte e dois anos na segunda metade do seacuteculo VII aC por volta de 640-650 aC
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demonstraccedilatildeo de covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Toda a sociedade e
educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases atribuiacutedas agraves matildees
espartanas era ldquoespero que o meu filho volte com o seu escudo ou deitado sobre elerdquo
Cada espartano era formado para ser um soldado perfeito e sua maior gloacuteria era
morrer em batalha retornar derrotado jamais Digno de nota satildeo os versos tirteanos
ldquoLutemos com ardor por esta terra e pelos filhos morramos sem pouparmos nossas
vidasrdquo (10 W 13-14)
Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem A
propoacutesito Platatildeo era tambeacutem a favor da valentia de um guerreiro no campo de batalha
(PLATAtildeO Repuacuteblica 468e)
Os dois primeiros versos do fragmento 10W de Tirteu pontua dessa mentalidade
de morrer pela poacutelis ldquoeacute belo morrer caindo entre os combatentes das primeiras filas um
homem valente ao combater por sua terrardquo (10W 1-2)
A morte eacute bela quando eacute a de um heroacutei que morre pela cidade Esta ideia daacute agrave
morte o sentido de um ldquosacrifiacuteciordquo do proacuteprio cidadatildeo em prol de um bem mais alto ldquoa
morte gloriosardquo No mesmo fragmento aliaacutes o poeta contrasta a morte gloriosa no campo
de batalha com a vida desventurada e errante do homem que natildeo cumpriu na guerra seus
direitos de cidadatildeo e se viu na necessidade de deixar a cidade (10W 9-12)
A linguagem de Tirteu eacute em grande parte herdeira de tradiccedilatildeo eacutepica De um modo
geral as suas elegias demonstram um amplo conhecimento do vocabulaacuterio da Iliacuteada e da
Odisseia quando descreve a luta sangrenta e o heroiacutesmo guerreiro O ideal espartano eacute
proacuteximo da epopeia no que diz respeito agrave bravura apesar de pertencerem a tempos
literaacuterios diferentes
Jaeger destaca que os versos tirteanos eacute o primeiro testemunho do ideal poliacutetico e
guerreiro tendo mais adiante a sua realizaccedilatildeo na totalidade da educaccedilatildeo espartana ldquoos
seus poemas deixam ver claramente que a educaccedilatildeo espartana tal como as eacutepocas
seguintes a conheceram natildeo era uma coisa acabada mas estava em processo de
formaccedilatildeordquo (JAEGER 2001 p 115)
Qualquer fraqueza demonstrada era vista como pusilanimidade algo
veementemente repelido do seio daquela sociedade
Natildeo comeceis a fuga vergonhosa nem o medo
mas tornai grande e ardoroso o coraccedilatildeo no peito
natildeo ameis a vida ao combaterdes contra homens (10 W 16-18)
O modo de vida era regulamentado em funccedilatildeo das necessidades do Estado e
tinham consciecircncia de natildeo pertencerem a si proacuteprios mas agrave poacutelis
Em suma estimavam todos que natildeo tinham nascido para servirem a si mesmos
antes para servir o paiacutes e portanto se outra coisa natildeo lhes era recomendada
continuavam sempre a ir ver o que faziam os meninos e a ensinar-lhes alguma
coisa que resultasse em utilidade puacuteblica ou ainda a aprender eles proacuteprios
com os que eram mais idosos do que eles (PLUTARCO Licurgo LI In
Vidas Paralelas)
Licurgo teria imposto que os espartanos tivessem uma vida de austeridade por
exemplo diz-se que eram obrigados a fazerem as refeiccedilotildees em comum em torno de um
caldo negro (PLUTARCO Licurgo XXI In Vidas Paralelas)
Plutarco daacute testemunho dessa coletividade
A agogeacute espartana
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Em suma acostumou os cidadatildeos a natildeo quererem e natildeo poder jamais viver soacutes
antes serem por assim dizer colados e incorporados uns com os outros e a se
acharem sempre juntos como as abelhas em torno dos superiores saindo de
si mesmos quase por um arrebatamento de amor para com o paiacutes e de desejo
de honra para servir inteiramente ao bem da coisa puacuteblica (Op cit LIV In
Vidas Paralelas)
Eacute bom lembrar que Licurgo ordenou que os espartanos fizessem as mesmas
refeiccedilotildees juntos era proibido se alimentarem agrave parte e em particular em grandes
banquetes (Op cit XV In Vidas Paralelas)
Conveacutem citar Aristoacuteteles ldquoacreditamos que a amizade eacute o maior dos bens para as
cidades porquanto pode ser o melhor meio de evitar revoltasrdquo (ARISTOacuteTELES Poliacutetica
II 1262b 7-8)
O estagirita faz uma criacutetica a respeito das refeiccedilotildees comuns intituladas de phidiacutetia
Para o filoacutesofo essas refeiccedilotildees deveriam ser pagas pelo tesouro puacuteblico tal qual em Creta
Entretanto em Esparta os cidadatildeos tinham de fazer uma contribuiccedilatildeo ateacute os pobres que
tinham dificuldades de arrumar dinheiro para essas refeiccedilotildees O objetivo de Licurgo era
que essas refeiccedilotildees fossem democraacuteticas ldquoa maneira espartana tradicional de fixar o
limiar da cidadania consiste em privar de participaccedilatildeo o que natildeo pode pagar a taxa das
refeiccedilotildees comunsrdquo (Op cit II 1271a 26-30)
De acordo com o historiador Xenofonte nas accedilotildees de guerra os lacedemocircnios
(espartanos) usavam traje vermelho para que natildeo se percebessem as manchas de sangue
Se morressem em combate eram enterrados com essas tuacutenicas (JENOFONTE La
Republica de los Lacedemonios)5
Na agogeacute espartana a sophrosyacutene (temperanccedila moderaccedilatildeo autocontrole) tem um
caraacuteter social sendo um comportamento imposto regulamentado marcado pelo
comedimento que o jovem deve observar em todas as circunstacircncias comedimento em
seu andar em seu olhar em suas expressotildees comedimento diante das mulheres em face
dos mais velhos comedimento aos prazeres agrave bebida
Desse modo o futuro guerreiro era exercitado em dominar seus extintos Na
verdade a agogeacute era precisamente destinada a experimentar esse poder de domiacutenio de
si A sophrosyacutene submete assim cada indiviacuteduo em suas relaccedilotildees com o proacuteximo em
contraste com a hyacutebris a ldquodesmedidardquo a ldquotransgressatildeordquo
O ideal da sophrosyacutene era o nada em excesso haacute uma tendecircncia na qual a
sophrosyacutene e a hyacutebris se encarnam respectivamente nos velhos e nos jovens (ideia que
seraacute mais clara nos traacutegicos)
A bela morte espartana deve ter ligaccedilatildeo com a cidadania ou melhor um criteacuterio
de cidadania sendo uma manifestaccedilatildeo ciacutevica (12W 18 34) Uma das diferenccedilas mais
acentuadas entre o mundo de Tirteu e dos poemas homeacutericos estaacute nas relaccedilotildees do
indiviacuteduo com a comunidade pois os guerreiros de Homero lutam pela gloacuteria individual
enquanto os heroacuteis de Tirteu combatem pela comunidade por suas famiacutelias e
dependentes Assinale-se que haacute na Iliacuteada XV 494-9 um episoacutedio em que Heitor estaacute
claramente lutando pela sobrevivecircncia de Troia
5 Para Jaeger a Constituiccedilatildeo (Repuacuteblica) dos Lacedemocircnios de Xenofonte eacute resultado do romantismo ldquomeio
filosoacutefico meio poliacutetico do seacuteculo IV aC o qual via no Estado espartano uma espeacutecie de revelaccedilatildeo
poliacutetica primordialrdquo (JAEGER 2001 p 109)
Luciene de Lima Oliveira
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A cidade espartana condena o ato de bravura de um soacute combater e permanecer
corajosamente no seu lugar na falange natildeo ceder agrave vontade de fugir encorajar seu
companheiro de linha eacute um bem comum para a cidade e para todo o povo
Heroacutedoto disserta a respeito do espartano Aristodamos que estava entre os
trezentos lacedemocircnios que tinham defendido as Termoacutepilas ele foi o uacutenico sobrevivente
mas preocupado em livrar-se do oproacutebio que os espartanos infligiram a essa
sobrevivecircncia o guerreiro saiu de seu posto do seu lugar na falange e procurou e
encontrou a morte em Plateia ao realizar faccedilanhas extraordinaacuterias (HEROacuteDOTO
Histoacuteria IX 71)
Aleacutem do exemplo de Aristodamos o historiador daacute testemunho de outro episoacutedio
nas Termoacutepilas em que os combatentes saindo de seus postos lutavam de maneira furiosa
em torno do corpo de Leocircnidas Quando as espadas dos espartanos foram quebradas eles
se defenderam com as matildeos e os dentes (Op cit VII 225) em um estado de furor
belicoso que se assemelhava aos heroacuteis homeacutericos Diomedes e Aquiles Os espartanos
abandonaram a sophrosyacutene e estavam claramente em estado de lyacutessa o que a cidade natildeo
tolerava
Todavia apesar de sua valentia os espartanos natildeo lhe concederam as honras
fuacutenebres devidas aos melhores isto eacute recusaram-lhe a aristeacuteia porque violara a lei de
permanecer em seu lugar na falange Possuiacutedo pela lyacutessa por um furor guerreiro
combateu furiosamente fora de seu posto
A virtude guerreira natildeo pertence agrave ordem do thymoacutes do impulso e sim da
sophrosyacutene a temperanccedila um domiacutenio muito grande para que o guerreiro pudesse refrear
seus impulsos e natildeo perturbasse a ordem da formaccedilatildeo em falange
A eacutetica militar espartana proiacutebe o estado de furor de lyacutessa Vernant destaca que a
cidade rejeita atitudes tradicionais da aristocracia que tem por costume a exaltaccedilatildeo do
prestiacutegio do poder dos indiviacuteduos e de colocaacute-los acima do comum satildeo considerados
como um descomedimento uma hyacutebris de igual modo o furor guerreiro e a busca no
combate de uma gloacuteria particular (VERNANT 2002 p 69)
Ateacute os sessenta anos os espartanos estavam sujeitos a participar das guerras
pertenciam ao Estado ate agrave morte As moccedilas natildeo eram tratadas de modo diverso acima
da famiacutelia vinha a poacutelis
Xenofonte destaca que Licurgo ordenou que o sexo feminino exercitasse tanto
quanto o masculino A mulher espartana tambeacutem tinha uma formaccedilatildeo regulamentada
cuja muacutesica a danccedila e o canto natildeo possuiacuteam tanta importacircncia quanto a ginaacutestica e o
esporte (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios 1 4)
As espartanas estavam a serviccedilo da cidade quando solteiras praticavam
exerciacutecios que a tornavam forte e saudaacutevel a fim de que seus corpos se tornassem riacutegidos
ao se exercitarem havia exerciacutecios de correr de lutar de jogar a barra e de lanccedilar o dardo
com o objetivo de gerarem filhos igualmente robustos e para suportarem as dores do
parto (PLUTARCO Licurgo XXV In Vidas Paralelas)
Havia a ideia entre os homens de que pai e matildee fortes gerariam igualmente filhos
mais vigorosos Por isso quando casada a missatildeo da mulher era dar ao Estado filhos
fortes grandes guerreiros e bons cidadatildeos Percebe-se que haacute uma preocupaccedilatildeo de
eugenia dentro da sociedade espartana
Os receacutem-nascidos eram observados e se constatada qualquer imperfeiccedilatildeo essas
crianccedilas consideradas ldquodefeituosasrdquo que tivessem qualquer tipo de doenccedila ou
deformidade eram sumariamente assassinadas sendo atiradas de um precipiacutecio Esses
A agogeacute espartana
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receacutem-nascidos natildeo estariam prontos para defender a cidade-estado e consequentemente
natildeo seriam bons guerreiros na fase adulta6
Entrementes depois que a crianccedila nascia [] mas se lhes parecia feia
disforme ou franzina mandavam atiraacute-la num precipiacutecio a que vulgarmente se
dava o nome de Apothetes isto eacute depositoacuterios pois tinham a opiniatildeo de que
natildeo era expediente nem para a crianccedila nem para a coisa puacuteblica que ela
vivesse visto como desde o nascimento natildeo se mostrava bem constituiacuteda para
ser forte satilde e rija durante toda a vida E por esse motivo as proacuteprias mulheres
que as governavam natildeo as lavavam com aacutegua simples como se faz por toda
parte mas com uma mistura de aacutegua e vinho e por esse meio experimentavam
se a compleiccedilatildeo e a tecircmpera de seus corpos era boa ou maacute porque dizem eles
que as crianccedilas sujeitas agrave epilepsia ou entatildeo catarrosas e doentias natildeo podem
resistir nem tolerar esse banho de vinho mas definham e caem em langor e
ao contraacuterio as que tecircm sauacutede se tornam mais rijas e mais fortes
(PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)
Aristoacuteteles sublinha que Licurgo com o objetivo de fazer com que os espartanos
fossem numerosos encorajava-os a terem o maior nuacutemero possiacutevel de filhos haacute a lei de
que o pai de trecircs filhos estaacute isento do serviccedilo militar e o de quatro livre de impostos
(ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1270b 1-5)
A renomada helenista Claude Mosseacute infere que seria interessante acreditar que
Esparta passou por uma seacuterie de etapas entre a adoccedilatildeo da falange hopliacutetica seacuteculo VII
aC e o ldquofechamento da cidade em si mesmardquo iniacutecio seacuteculo IV aC Aleacutem do mais a
rheacutetra que fora atribuiacuteda a um possiacutevel legislador Licurgo pode ter sido resultado de
uma possiacutevel abertura da falange aos membros do decircmos cuja participaccedilatildeo nas tomadas
de decisatildeo era reconhecida Em relaccedilatildeo agrave partilha de terras pode ter acontecido depois
do teacutermino da segunda guerra da Messecircnia (uacuteltimo quarto do seacuteculo VII aC) e a agogeacute
e o militarismo da cidade podem ter ocorridos no princiacutepio do seacuteculo VI aC tendo por
principal objetivo a defesa da cidade-estado espartana contra os povos da Lacocircnia e
Messecircnia que foram escravizados
A Esparta do seacuteculo VII aC estaacute empenhada em um movimento que leva as
aristocracias das diversas cidades ao luxo Depois a ruptura se daacute entre o final do seacuteculo
VII aC e o iniacutecio do VI aC concentra-se em si mesma repudiando a ostentaccedilatildeo da
riqueza proibindo o uso dos metais preciosos depois a moeda de ouro e de prata (o
dinheiro era feito de um ferro de maacute qualidade que natildeo deveria ser fundido em grandes
quantidades) permanece fora das correntes intelectuais fecha-se a tudo o que eacute
intercacircmbio com o estrangeiro comeacutercio atividade artesanal voltam-se sua preocupaccedilatildeo
para a guerra em defesa da poacutelis (MOSSEacute 2004 p 189-190)
Qualquer riqueza natildeo poderia ser exposta em puacuteblico os artesatildeos natildeo
confeccionavam luxos desnecessaacuterios como tapetes e adornos mas faziam muito bem
apenas o baacutesico pois a riqueza seria a causa de muitos males Xenofonte escreve que os
espartanos natildeo se adornavam com riquezas de vestuaacuterios exceto com a boa forma fiacutesica
de seus corpos (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)
Pode-se conceituar a agogeacute como uma educaccedilatildeo estatal com fins extremamente
belicosos que se estendia da infacircncia ateacute a adolescecircncia Nessa educaccedilatildeo os futuros
6 Esse costume natildeo ocorreu soacute em Esparta a Lei das XII taacutebuas na Roma antiga autorizava os patriarcas a
matar seus filhos fraacutegeis ou deficientes
Luciene de Lima Oliveira
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combatentes aprendiam as artes militares as manobras em campos de batalha e a ser
destemidos diante do inimigo
Infere-se que o principal objetivo da agogeacute era formar poderosos guerreiros para
a defesa da poacutelis Para isso uma riacutegida educaccedilatildeo foi imposta aos jovens e uma peculiar
maneira de viver aos adultos
REFEREcircNCIAS
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Homem e mulher os criou
8 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
respectivamente O termo para masculino eacute da mesma raiz do verbo lembrar trazer a
memoacuteria O termo para feminino tem uma ideia mais ampla em sua raiz verbal mas para
o texto destaca-se a ideia de efeminar tornar feminino
Alguns autores interpretam a partir deste texto biacuteblico a criaccedilatildeo de um ser
androacutegino Adatildeo o primeiro homem seria ao mesmo tempo homem e mulher isto
porque no relato no verso 26 primeiramente acontece o termo Adam sem artigo e sem
a partiacutecula acusativa o que indicaria a criaccedilatildeo da humanidade uma coletividade o
chamado Adatildeo primordial3 Assim este verso no portuguecircs ficaria E disse Deus faccedilamos
(a) humanidade com nossa imagem e semelhanccedila
No verso 27 quando Deus abenccediloa a criaccedilatildeo desta humanidade o termo Adam
vem agora acompanhado de artigo HaAdam e da partiacutecula acusativa Aqui como haacute o
artigo antes do nome Adam entendemos que natildeo soacute o ser denominado Adatildeo estaacute sendo
abenccediloado pois em hebraico o artigo nunca ocorre antes de nome proacuteprio mas uma
indicaccedilatildeo definida daquilo que se estaacute abenccediloando Natildeo um ser humano qualquer mas o
ser humano criado
O texto pode ser traduzido entatildeo assim E abenccediloou Deus o ser humano com sua
imagem Com imagem de Deus o criou (ser humano - refere-se ao termo masculino
HaAdam) macho e fecircmea os criou A ideia androacutegina seria difiacutecil de contestar caso o
pronome que sucede o verbo criar no estivesse no plural Criou a eles e natildeo a ele
A ordem divina entende que o domiacutenio sobre a criaccedilatildeo eacute dado indiferentemente a Adatildeo
ao ser humano (bom enfatizar sem o artigo definido) subentende-se assim uma natildeo
discriminaccedilatildeo na ordem Ela eacute dada ao ser humano e natildeo exatamente a Adatildeo - o primeiro
homem - visto que a partiacutecula acusativa (Alephtaw) natildeo ocorre
Vale ainda salientar que a dimensatildeo da becircnccedilatildeo de Deus sobre Adatildeo
primeiramente e ressalvada a becircnccedilatildeo sobre macho e fecircmea sobre homemmulher se
concretiza em ser a imagem de Deus No verso 26 do capiacutetulo primeiro haacute o movimento
de criaccedilatildeo da humanidade ndash do ADAM sem artigo Este eacute criado agrave imagem e semelhanccedila
de Deus No verso 27 Deus abenccediloa Adatildeo ndash o homem especiacutefico o homem criado ndash com
sua imagem No verso 28 a becircnccedilatildeo se esclarece estendida sobre homem e mulher A ausecircncia ou presenccedila da partiacutecula de objeto direto (lsquoet ndash alephtaw) eacute de suma
importacircncia no estudo do texto isto porque ela ocorre indicando o objeto direto quando
este eacute especificado com o artigo ou quando ele por si mesmo como ocorre com qualquer
nome proacuteprio eacute especificado por natureza4
Esta questatildeo do artigo junto agrave palavra Adam merece um outro estudo e eacute preciso
atenccedilatildeo ao analisar o termo nestes primeiros capiacutetulos No capiacutetulo 3 por exemplo Adam
ainda aparece como nome plural (vide verso 17) designando um ser geral natildeo obstante
no verso 22 reaparece HaAdam indicando uma especificaccedilatildeo do termo entendendo o ser
homem Adatildeo
O texto da criaccedilatildeo do homem e mais objetivamente da mulher ocorre no capiacutetulo
seguinte em 215-24 O capiacutetulo dois retorna agrave histoacuteria da criaccedilatildeo de forma resumida
dando mais atenccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem e da mulher Na traduccedilatildeo de Almeida (A
BIacuteBLIA 1958) o verso 15 se lecirc assim Tomou pois o SENHOR Deus ao homem e o
colocou no jardim do Eacuteden para o cultivar e guardar O termo traduzido aqui por homem
3 Em primeiro lugar trecircs eram os gecircneros da humanidade natildeo dois como agora o masculino e o feminino
mas tambeacutem havia a mais um terceiro comum a estes dois do qual resta agora um nome desaparecida a
coisa androacutegino era entatildeo um gecircnero distinto tanto na forma como nome comum aos dois ao masculino
e ao feminino enquanto agora nada mais eacute que um nome posto em desonra (PLATAtildeO 1991 p 57-58) 4 Esta partiacutecula eacute muito importante na anaacutelise sintaacutetica da frase hebraica No caso do verbo transitivo direito
ela ajuda a identificar o predicado
Isabel Arco Verde Santos
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eacute HaAdam ou seja o nome aparece com o artigo o que se entende o nome do primeiro
homem ndash Adatildeo
Natildeo haacute exatamente uma sequecircncia neste segundo relato A narrativa da criaccedilatildeo tatildeo
cuidadosa e minuciosa exposta no relato anterior neste capiacutetulo jaacute natildeo mais importa No
verso 18 o comentaacuterio divino aponta para a preocupaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave solidatildeo de Adam
e a necessidade de fazer algueacutem segundo traduccedilatildeo de Almeida uma auxiliadora que lhe
seja idocircnea A aplicaccedilatildeo do artigo aqui no termo Adam parece indicar algo mais
especiacutefico tendo em vista o autor deixar claro que ele Adam estaacute soacute A vocalizaccedilatildeo
hebraica confunde porque o termo que se usa no verso 20 do capiacutetulo 2 ao dizer que natildeo
havia para Adam ndash e desta vez a vocalizaccedilatildeo sugere a inexistecircncia do artigo - quem fosse
eacutezer e neacuteged
Ocorre que neste verso 20 aparece o termo LeAdam Se a forma com artigo
acontecesse a contraccedilatildeo do artigo com a preposiccedilatildeo suporia a forma LaAdam E parece
ser a forma mais correta de se ler o texto dando continuidade a ideia que estaacute sendo
desenvolvida
HaAdam ndash Adatildeo - daacute nome aos elementos da criaccedilatildeo mas eacute Adam ndash o nome geral
a humanidade - que natildeo encontrou algueacutem para estar ao seu lado De uma forma ou de
outra o que se quer eacute justificar o relato da criaccedilatildeo da mulher Os termos usados por
Almeida auxiliadora e idocircnea traduzem o hebraico eacutezer e neacuteged respectivamente
Ora eacutezer eacute a palavra usada no conhecido Salmo 121 (Elevo os olhos para o monte
de onde me viraacute o socorro) Ressalte-se que o socorro natildeo eacute encontrado natildeo em seres
inferiores O salmista eleva os olhos busca acima de si o socorro Isto deixa claro que
natildeo haacute qualquer tipo de inferioridade na criaccedilatildeo da mulher
O outro termo neacuteged eacute uma preposiccedilatildeo que pode ser traduzida por defronte de
em frente contra diante de em oposiccedilatildeo defronte comparado com Como verbo na
forma simples paal significa ser contra ou estar defronte Na forma causativa no hiphil
o verbo significa contar revelar dizer algo ainda natildeo conhecido Estes termos vatildeo reaparecer no verso 20 quando apoacutes o homem ter dado nome a
todos os seres se conclui mais uma vez que natildeo havia nada que lhe fosse eacutezer e neacuteged O
hebraico nos aponta ideias mais fortes que a traduccedilatildeo de Almeida No portuguecircs
auxiliador tem a ideia de ajudante assistente conforme explica o Aureacutelio Idocircneo tem o
sentido de conveniente e adequado ainda segundo este mesmo dicionaacuterio
O que se procura na criaccedilatildeo para HaAdam (Adatildeo) eacute o seu oposto o seu contraacuterio
porque o objetivo eacute crescer e encher a terra Por outro lado procura-se algo que lhe venha
socorrer em sua solidatildeo O interessante poreacutem eacute que embora se entenda neacuteged como
uma possibilidade contraacuteria porque haacute a necessidade de encher a terra tanto este termo
como o termo socorro (eacutezer) natildeo vecircm em forma feminina mas masculina apesar de tanto
este quanto aquele ter uma forma hebraica similar feminina (ezrah e negdah)
Se prosseguirmos a leitura naquilo que seria o relato da criaccedilatildeo da mulher
identificamos que apoacutes cair em sono profundo Deus retirou uma costela de Adatildeo para
construir a mulher
Trecircs termos agora se encontram neste texto da criaccedilatildeo tzeacutelem a imagem de Deus
com que a humanidade foi abenccediloada eacute o termo que associa a humanidade a Deus que
ficou no capiacutetulo primeiro tzeacutelarsquo a costela retirada de Adatildeo que eacute a mateacuteria da qual eacute
feita a mulher Por uacuteltimo temos o termo lsquoeacutetzem que aparece na fala deslumbrada de
Adatildeo ao acordar de seu sono e ver a criaccedilatildeo de Deus na forma da mulher oriunda de sua
costela
O novo ser criado eacute denominado lsquoyshah Sua denominaccedilatildeo eacute da mesma raiz da
palavra lsquoysh que quer dizer homem Esta semelhanccedila dos dois nomes demonstra o
reconhecimento de si mesmo no outro ser criado HaAdam reconhece a mulher como algo
Homem e mulher os criou
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semelhante a ele - daiacute o uso dos termos tsela e tselem (costela e osso) O termo lsquoeacutetzem -
semelhanccedila ndash une em sua raiz os dois termos que identificam a mulher como parte da
humanidade HaAdam natildeo a identifica como lsquoysh pois percebe que existem diferenccedilas
entre eles ndash afinal ela eacute seu contraacuterio Este texto biacuteblico como outros textos do Gecircnesis tenta explicar criaccedilatildeo de
homem e mulher como partes da humanidade Sua preocupaccedilatildeo em desenvolver uma
narrativa que explique a criaccedilatildeo da mulher se daacute para que natildeo se incorra no erro de ignorar
que a mulher tambeacutem eacute abenccediloada com a semelhanccedila de Deus corroborada na criaccedilatildeo
que se faz da mesma mateacuteria
Natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo em inferiorizar a mulher Embora HaAdam a tenha
chamado de lsquoyshah seu nome apareceraacute somente no capiacutetulo seguinte apoacutes a expulsatildeo
do Eacuteden quando entatildeo ele a chamaraacute de Chawav ou Eva Se haacute superioridade porque ele
lhe daacute um nome esta superioridade eacute uma das consequecircncias do que se denominou pecado
e gerou a expulsatildeo do paraiacuteso
Os relatos cabaliacutesticos datildeo conta de criaccedilatildeo de uma outra mulher Esta ideia natildeo
soacute eacute desenvolvida pelos dois relatos de criaccedilatildeo mas tambeacutem pela fala de HaAdam
quando desperta de seu sono Ele diz segundo a traduccedilatildeo que fazemos aqui do hebraico
e disse o homem esta desta vez eacute osso dos meus ossos 5 Se desta vez HaAdam se
identifica com algo na criaccedilatildeo talvez teria acontecido algo antes com o qual ele natildeo teria
se adaptado ou natildeo se sentiria reconhecido
Lilith eacute a mulher que domina e seduz HaAdam que lhe aproxima de seus
institntos Chavah a segunda mulher eacute a que gera e constroacutei a histoacuteria Na religiatildeo a
primeira eacute tida como a mulher que deve ser desprezada apesar de figurar no imaginaacuterio
masculino pois retorna nos sonhos de Adatildeo Ela tambeacutem retorna aos textos biacuteblicos
principalmente nos sapiencieais mais especificamente no livro de proveacuterbios nos
capiacutetulos 1 a 9 quando se faz oposiccedilatildeo entre a sabedoria e a ignoracircncia entre a mulher
do povo e a estrangeira
Chavah vive com esta sombra - a mulher principal para a sociedade mas natildeo nos
desejos de seu marido A presenccedila de Lilith na cultura judaica natildeo eacute uacutenica Ela pode ser
encontrada no eacutepico de Gilgamesh que data de 2000 aEC na pseudoepiacutegrafe
denominada Testamento de Salomatildeo que data de 200 EC no Talmud e no Alfabeto de
Ben Sira6 do ano 800 de nossa era aproximadamente Alguns indicam haver menccedilatildeo
tambeacutem no livro biacuteblico de Isaiacuteas 3414 (a palavra Lilith vem da raiz laylah que significa
noite)
Lilith teria sido criada tatildeo bonita e interessante que logo arranjou
problemas com o primeiro o homem Ainda segundo a narrativa
miacutetica Eva foi criada para substituir Lilith Eva seria o oposto de
Lilith por sua vez reuacutene traccedilos marcantes de obediecircncia boa
imagem companheira submissa ao sacerdote ao Pai e agrave Lei e por
fim tambeacutem fonte de pecado e desobediecircncia (GOMES
ALMEIDA 2019)
Eacute importante tambeacutem observar que o capiacutetulo 2 de Gecircnesis este que se propotildee a
recontar a criaccedilatildeo focando a criaccedilatildeo do homem e da mulher eacute um texto javista-eloiacutesta
Observa-se que o capiacutetulo primeiro do gecircnesis eacute notoriamente um texto eloiacutesta Jaacute o
5 Cf capiacutetulo 2 versiacuteculo 23 do livro de Gecircnesis 6 Onde se tem o registro mais antigo sobre Lilith datado entre os seacuteculos VIII e X aC segundo Koltuv
(1986)
Isabel Arco Verde Santos
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capiacutetulo 2 refere-se a deus com o tetragrama sagrado (Yhwh) seguido da forma Elohim
O texto mistura entatildeo as duas fontes
A conclusatildeo de HaAdam natildeo necessariamente afirma a lenda mas abrem uma
possibilidade neste sentido O que se pode concluir eacute que natildeo havia nada na criaccedilatildeo com
a qual ele HaAdam se identificasse
A preocupaccedilatildeo da leitura biacuteblica e as possiacuteveis interpretaccedilotildees relacionando ao
papel da mulher na sociedade ainda precisam ser mais bem resolvidas Mesmo que se
faccedila a presenccedila de Lilith no texto como a histoacuteria omitida e natildeo contada porque precisava
ser reescrita na forma de Chawah ainda assim carece a ideia de submissatildeo e inferioridade
que culturalmente ainda se insiste afirmar
O texto Eloiacutesta que domina o capiacutetulo primeiro do Gecircnesis natildeo tem qualquer
preocupaccedilatildeo em distinguir homem e mulher O capiacutetulo segundo na comunhatildeo Javista-
Eloiacutesta tem a preocupaccedilatildeo em frisar que satildeo diferentes e ateacute mesmo contraacuterios mas que
natildeo perdem a noccedilatildeo da mesma mateacuteria e partilham da mesma becircnccedilatildeo da semelhanccedila
divina Natildeo haacute uma prioridade A confusatildeo que suscita a ideia androacutegina surge da essecircncia
comum dois elementos criados partes de uma soacute ideia a humanidade
A ordem na criaccedilatildeo tambeacutem natildeo gera conclusotildees de superioridade Se
entendecircssemos que os primeiros seriam submissos aos uacuteltimos seres criados entendendo
o homem a coroa da criaccedilatildeo o ser acima de toda a criaccedilatildeo poderiacuteamos supor que a
mulher criada depois dele lhe seria entatildeo superior Colocaccedilotildees deste tipo natildeo prosperam
na anaacutelise do texto biacuteblico porque haacute que se considerar o texto como um todo Ou entatildeo
seriam os astros celestes criados primeiros inferiores aos mares ou os animais Eacute certo
que a ordem natildeo sugere algum tipo de superioridade
Enfim o que se vecirc depois da criaccedilatildeo eacute uma luta constante da figura feminina pela
conquista de seu espaccedilo luta esta que infelizmente ainda persiste A necessidade de ser
semelhanccedila de Deus e natildeo soacute costela
REFEREcircNCIAS
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FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa
15a ed Rio de Janeiro Nova Fronteira
GOMES Antonio Maspoli de Arauacutejo ALMEIDA Vanessa Ponstinnicoff de O Mito de
Lilith e a Integraccedilatildeo do Feminino na Sociedade Contemporacircnea Revista acircncora digital
de Ciecircncias da Religiatildeo Disponiacutevel em ltwwwrevistaancoradigitalcombrgt
Homem e mulher os criou
12 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
GOTTWALD Norman K Introduccedilatildeo socioliteraacuteria agrave Biacuteblia hebraica Traduccedilatildeo
Anacleto Alvarez revisatildeo H Dalbosco Satildeo Paulo Paulinas 1988
KOLTUV Barbara Black O Livro de Lilith psicologiamitologia Satildeo Paulo Cultrix
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PAIVA Vera Evas Marias e Liliths as voltas do feminino 2a Ed Rio de Janeiro
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PLATAtildeO Diaacutelogos Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Traduccedilatildeo e
notas de Joseacute Cavalcante de Souza Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa 5 Ed Satildeo Paulo
Nova Cultural 1991 (Coleccedilatildeo Os pensadores)
DOI httpsdoiorg1012957principia201946508
AS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO E SEU IMPACTO NO
REINADO DE VALENTINIANO I
Carlos Eduardo Schmitt
RESUMO Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio (c 340-402) possui uma extensa obra da qual
chegaram agrave contemporaneidade mais de 900 cartas (epistolae) 49 informes (relationes)
e 8 discursos (orationes) Suas obras de maior destaque satildeo as Orationes I II e III
proferidas entre 369-370 e sua Relatio III escrita durante seu tempo como prefeito de
Roma em 384 Tais obras lhe renderam a fama de melhor orador de seu tempo ainda em
vida Nosso trabalho tem como objetivo expor o impacto que as Orationes I II e III
tiveram na carreira do orador e na relaccedilatildeo entre o Senado e o reinado de Valentiniano I
A partir de suas Orationes ressaltaremos a delicada missatildeo do orador enviado de Roma
agrave Treacuteveris para servir como ponte entre o Senado e o imperador
PALAVRAS-CHAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I
SYMMACHUSrsquo ORATIONES I II AND III AND ITS IMPACT IN THE
KINGDOM OF VALENTINIAN I
ABSTRACT Quintus Aurelius Symmachus Eusebius (c 340-402) has an extensive work
from which more than 900 letters (epistolae) 49 reports (relationes) and 8 discourses
(orationes) survived His most outstanding works are Orationes I II and III pronounced
between 369-370 and his Relatio III written during his time as praefectus of Rome in
384 Such works earned him the fame of the best speaker of his time being still alive Our
paper aims to expose the impact that Orationes I II and III had on the speakers career
and on the relation between the Senate and the reign of Valentinian I From his Orationes
we will highlight the delicate mission of the speaker sent from Rome to Trier to serve as
a bridge between the Senate and the emperor
KEYWORDS Symmachus Orationes Valentinian I
LAS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO Y SU IMPACTO EN EL
REINADO DE VALENTINIANO I
RESUMEN Quinto Aurelio Siacutemaco Eusebio (c 340-402) tiene una extensa obra de la
cual chegaron a la contemporaneidad maacutes de 900 cartas (epistolae) 49 informes
(relationes) e 8 discursos (orationes) Sus obras de mayor destaque son las Orationes I
Doutorando pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail carlosschmitt90gmailcom
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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II y III pronunciadas entre el 369-370 y su Relatio III escrita durante su tiempo como
prefecto de Roma en 384 Tales obras le rindieron la fama de mejor orador de su tiempo
auacuten en vida Nuestro artiacuteculo tiene como objetivo exponer el impacto que las Orationes
I II y III tuvieron en la carrera del orador y en la relacioacuten entre el Senado y el reinado de
Valentiniano I A partir de sus Orationes resaltaremos la delicada misioacuten del orador
enviado de Roma a Treacuteveris para servir como puente entre el Senado y el emperador
PALAVRAS CLAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I
INTRODUCcedilAtildeO
Joseacute Antonio Gallego (2003 p 153) esclarece que a obra mais famosa de Siacutemaco
foi seu informe terceiro apesar de que durante a Idade Meacutedia as epistolae foram suas
obras mais valorizadas sendo utilizadas como modelo para escrever uma carta Contudo
em seu proacuteprio tempo ele era famoso por ser um grande orador Eacute por isso que Gallego
(2003 p 154) pondera como injusto o que a histoacuteria fez com Siacutemaco Apenas oito de
seus discursos chegaram ateacute noacutes sendo que estes satildeo dos iniacutecios de sua carreira aleacutem de
estarem num manuscrito palimpsesto com grandes lacunas Deve-se ter presente tambeacutem
que ldquoSiacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador romano se excetuarmos os escritores cristatildeosrdquo1
(GALLEGO 2003 p 154) Em outras palavras Siacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador da
religiatildeo tradicional romana
Cristiana Sogno (2006 p viii) faz uma reconstruccedilatildeo da carreira poliacutetica de
Siacutemaco atraveacutes de uma anaacutelise minuciosa de seus escritos Ele ocupa uma posiccedilatildeo
peculiar entre os autores latinos pela quantidade de escritos que nos chegaram A autora
defende que a razatildeo pelo desconhecimento de Siacutemaco por parte dos estudantes de
Claacutessicas e de Histoacuteria Antiga eacute o fato de natildeo existir uma traduccedilatildeo completa do corpus
simaquiano em nenhuma liacutengua moderna Sogno clarifica tambeacutem que a ediccedilatildeo de Otto
Seeck do seacuteculo XIX continua sendo o modelo do texto
Sogno (2006 p 1) clarifica que a primeira fase da carreira de Siacutemaco estaacute bem
documentada em suas orationes Sua nominaccedilatildeo como embaixador senatorial em 368 foi
um marco em sua vida sendo que sua reputaccedilatildeo como orador foi estabelecida na corte de
Valentiniano I tornando-se uma ponte entre o Senado e o imperador
Apesar de que Siacutemaco tenha a fama de ser um grande orador suas orationes
desapareceram ateacute seu redescobrimento no seacuteculo XIX Sabe-se que Siacutemaco ficou
conhecido por ser um bastiatildeo em defesa da religiatildeo tradicional romana sobretudo durante
seu periacuteodo como Prefeito de Roma por volta de 384 E Sogno (2006 p 1) sem perder
a oportunidade relata uma ldquoironia do destinordquo sendo que foi um cardeal da Igreja
Catoacutelica Romana Angelo Mai quem descobriu e publicou os fragmentos de suas
orationes em 1815 Tratava-se de um palimpsesto onde por cima havia uma traduccedilatildeo
latina das atas do Conciacutelio de Calcedocircnia O cardeal destruiu o documento para que as
orationes pudessem ser recuperadas Apesar disso Sogno (2006 p 2) constata como
esses discursos de Siacutemaco satildeo ainda pouco estudados em comparaccedilatildeo com outros
escritos seus como suas epistolae Esses oito discursos satildeo apenas uma parte de toda a
produccedilatildeo simaquiana Haacute tambeacutem um panegiacuterico em honra do usurpador Maacuteximo que
por razotildees oacutebvias natildeo foi publicada
1 ldquoSiacutemaco es el uacuteltimo gran orador romano si dejamos a un lado a los escritores cristianosrdquo
Carlos Eduardo Schmitt
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ORATIONES I II E III
Foi no inverno do ano 368-369 que Siacutemaco naquele tempo um jovem senador que
iniciava sua carreira poliacutetica foi enviado de Roma agrave Treacuteveris com o objetivo de dirigir
uma laudatio uma oraccedilatildeo de louvor a Valentiniano I por motivo de seus cinco anos de
reinado (Quinquennalia) Sogno (2006 p 2) destaca que tal missatildeo natildeo significava
apenas um reconhecimento por parte do Senado de seus dotes retoacutericos mas constituiacutea
tambeacutem uma oportunidade iacutempar para crescer na carreira poliacutetica e fazer amigos na corte
Apesar de ser um momento festivo Sogno (2006 pp 1-2) esclarece que constituiacutea
uma situaccedilatildeo delicada Ateacute o momento Valentiniano I natildeo havia estado em Roma e essa
era a primeira vez que ele se encontraria com uma delegaccedilatildeo senatorial Sendo assim
Siacutemaco tinha a importante missatildeo de estabelecer boas relaccedilotildees com o imperador Havia
natildeo apenas o discurso mas tambeacutem certa quantidade de ouro (aurum oblaticium2) que os
senadores ofereciam ldquovoluntariamenterdquo ao imperador Em Roma os senadores
aguardavam ansiosos pelo regresso de Siacutemaco e por informaccedilotildees de primeira matildeo
Eacute estranho ver que um senador tatildeo jovem ndash Siacutemaco natildeo tinha ainda nem trinta
anos ndash recebesse tamanha honra e responsabilidade Sogno (2006 p 6) sem colocar em
xeque a capacidade do orador argui que isso foi possiacutevel em parte graccedilas ao Prefeito de
Roma naquele entatildeo Pretextato responsaacutevel direto pela arrecadaccedilatildeo da oferenda de ouro
ao imperador e pela escolha do ldquocorretordquo orador que a levaria Haacute de se ter presente que
das epistolae de Siacutemaco vaacuterias delas tecircm Pretextato como destinataacuterio
Siacutemaco natildeo se limitou a estreitar laccedilos de amizade apenas no Senado Buscou
tambeacutem amigos na corte imperial E um de seus principais foi Ausocircnio tutor de Graciano
filho de Valentiniano I Sabe-se que eles trocavam correspondecircncias antes mesmo de
Siacutemaco ter ido agrave Treacuteveris e que havia entre eles uma muacutetua admiraccedilatildeo (SOGNO 2006
p 6)
A prova de que o panegiacuterico (laudatio) de Siacutemaco dirigido a Valentiniano foi um
sucesso de acordo com Sogno (2006 pp 8-9) foi o fato do proacuteprio imperador ter
solicitado ao orador um segundo panegiacuterico Siacutemaco eacute consciente de sua responsabilidade
e da honra que lhe eacute aferida e expressa esses sentimentos em seu discurso Consciente de
que o objetivo primeiro de uma laudatio eacute agradar ao puacuteblico Siacutemaco expotildee que tudo o
que anuncia e proclama eacute verdadeiro baseado em fatos que vivenciou e tambeacutem naqueles
de que ouviu o testemunho
Sogno (2006 p 9) classifica o primeiro panegiacuterico de Siacutemaco a Valentiniano
como um encocircmio biograacutefico composiccedilatildeo descrita em detalhe no terceiro livro da
Institutio oratoria de Quintiliano Nele Siacutemaco reconhece e celebra publicamente o
estabelecimento da dinastia valentiniana realizando um resumo dos seus cinco primeiros
anos de reinado desde que tinha sido escolhido pelo exeacutercito O encocircmio biograacutefico
como detalha Sogno requer discorrer tambeacutem sobre os ancestrais e os descendentes da
nova dinastia
2 ldquoOs clariacutessimos ie os indiviacuteduos de categoria senatorial tinham ainda que contribuir com o aurum
oblaticium oferecido pelo Senado por ocasiatildeo dos aniversaacuterios dos imperadoresrdquo (SILVA amp MENDES
2006 p 212) Isso era parte da reforma fiscal iniciada por Diocleciano e ampliada por Constantino
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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Satildeo estrateacutegicas as alusotildees que Siacutemaco faz do lugar de nascenccedila de Valentiniano
e daqueles onde ele acompanhou seu pai em campanhas militares O futuro imperador
nasceu na fria regiatildeo da Iliacuteria e acompanhou seu pai no calor escaldante da Aacutefrica Isso
significa natildeo soacute que ele estaacute preparado para qualquer dificuldade que advir mas
sobretudo que eacute um homem que conhece seu reino muito bem porque jaacute esteve em
diversas partes dele Todas essas dificuldades unidas aos inimigos enfrentados lhe
qualifica como a melhor pessoa para reger o Impeacuterio (SOGNO 2006 p 10) Um cuidado
que Siacutemaco tem em sua laudatio eacute o de reforccedilar a legitimidade de Valentiniano sobretudo
ao dizer que ningueacutem protestou quando o elegeram dando a impressatildeo de que houve um
consenso geral no exeacutercito (SOGNO 2006 p 12)
O conteuacutedo dos panegiacutericos eacute exagerado e por isso deve-se ter cuidado ao tomaacute-
los como fonte histoacuterica No entanto nos revelam muito sobre o tempo de Siacutemaco e sobre
ele mesmo No primeiro dedicado a Valentiniano I por motivo de seu primeiro lustro no
poder vemos como Siacutemaco enaltece a vida e a obras do imperador desde sua tenra
formaccedilatildeo nas diversas partes do Impeacuterio seguindo o bom exemplo de seu pai Graciano
Com verbosidade Siacutemaco atesta que natildeo havia outra pessoa melhor para o posto de
imperador que o proacuteprio Valentiniano superior a qualquer outro liacuteder Homem valente
assentou-se na parte mais perigosa do Impeacuterio Treacuteveris e lutou contra o inimigo mais
feroz dos romanos os alamanos Aleacutem de guerreiro eacute saacutebio e prefere defender os
interesses do Estado que os seus proacuteprios Eacute por isso que deixou a seu irmatildeo Valente
cuidar sozinho da rebeliatildeo de Procoacutepio uma guerra interna enquanto ele se dedicava a
proteger o Impeacuterio dos inimigos externos Foi um imperador que preferiu o bem comum
ao de sua proacutepria famiacutelia Realizou obras incriacuteveis
O comeccedilo do segundo panegiacuterico a Valentiniano indica sua razatildeo de ser o terceiro
consulado do imperador ao lado de seu irmatildeo Valente em 370 Siacutemaco
estrategicamente revela que iraacute relatar apenas alguns acontecimentos sem exaustatildeo
Deixaraacute todos os outros feitos natildeo mencionados para que sejam cantados pelos poetas
Parabeniza ao imperador por ser sua fonte de inspiraccedilatildeo e o restaurador da liberdade de
expressatildeo Ao mesmo tempo que Siacutemaco preza ao imperador por ter dado assunto que
fosse cantado e escrito como suas grandes vitoacuterias sobre os alamanos ele tambeacutem lembra
o imperador de que sem esses oradores e poetas haacute o silecircncio e que o silecircncio eacute o pior
inimigo da grandeza (SOGNO 2006 p 12)
Siacutemaco se dedica basicamente a enaltecer o imperador por suas conquistas e
fortificaccedilotildees ao longo do Reno e de que se impressionou ao ter visto as mesmas
pessoalmente Enaltece-o por seu terceiro consulado mas sobretudo se centra em seus
avanccedilos militares Entre outras exaltaccedilotildees Siacutemaco o parabeniza por ser exemplo de
governante ideal que eacute amado e temido por seu povo Tambeacutem o parabeniza por haver
aceitado o Impeacuterio de forma relutante (SOGNO 2006 p 14) Na verdade Siacutemaco
exaltou muito mais as fortificaccedilotildees erguidas por Valentiniano do que suas batalhas contra
os baacuterbaros Sogno (2006 p 15) pensa que isso se deve principalmente pelo acontecido
com Siaacutegrio uacutenico sobrevivente de uma batalha que foi considerado um desertor pelo
imperador E isso aconteceu exatamente quando o orador se encontrava na corte
O segundo panegiacuterico dedicado tambeacutem a Valentiniano I tinha por motivo
a designaccedilatildeo do imperador para o seu terceiro consulado que ele havia recebido como
um reconhecimento por seus feitos recentes Sendo assim o panegiacuterico deveria se centrar
em suas atividades recentes as quais lhe fizeram merecedor do terceiro consulado
Siacutemaco inicia dizendo que o consulado era uma recompensa insuficiente para
Valentiniano comparado com tudo o que perpetrou no Reno Mas como natildeo haacute algo
Carlos Eduardo Schmitt
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maior que eles possam ofertar Siacutemaco solicita ao imperador que se contente com o
melhor presente e honra que o Senado lhe pode oferecer E a partir de entatildeo o orador
narra as atividades beacutelicas de Valentiniano contra os alamanos e suas construccedilotildees ao
longo do Reno Em um determinado momento Siacutemaco o elogia por haver restaurado a
liberdade de expressatildeo no Impeacuterio Termina exaltando sua sobriedade
No panegiacuterico de Siacutemaco dedicado a Graciano vecirc-se claramente como ele se
dirige ao jovem imperador como a esperanccedila de Roma Durante todo o discurso o orador
enfatiza sua juventude enaltecendo-a Sogno acredita que essa insistecircncia seja uma forma
de favorecer a aceitaccedilatildeo do imperador possivelmente criticado pela aristocracia romana
por sua pouca idade (SOGNO 2006 p 18) Como recompensa por sua performance na
corte Siacutemaco recebeu o tiacutetulo honoriacutefico de comes tertii ordinis e trecircs anos depois em
Roma recebeu o proconsulado da Aacutefrica (373-374)
O panegiacuterico ao menino Graciano talvez tenha sido o mais difiacutecil para Siacutemaco
elaborar Devido a sua pouca idade objetivamente natildeo havia feitos grandiosos do qual
ele fosse sujeito No entanto Siacutemaco surpreendeu mesmo assim Vecirc em Graciano o iniacutecio
de uma nova eacutepoca porque eacute um imperador ainda menino e sendo assim estaraacute bem
treinado em todos os campos Seu louvor se centra entatildeo na juventude do imperador e
em seu governo ao lado de seu pai Valentiniano e de seu tio Valente Aos baacuterbaros natildeo
lhes restaraacute mais do que a escravidatildeo e eles jaacute sabem disso
OS DOZE PANEGIacuteRICOS LATINOS
Tendo em vista as trecircs orationes mencionadas podemos fazer uma breve anaacutelise
dos famosos doze panegiacutericos latinos com o intuito de entender melhor as diversas
asserccedilotildees simaquianas bem como seu estilo Susanna Morton Braund (2005 pp 90-91)
descreve que de forma convencional a oratoacuteria grega foi divida em trecircs tipos discurso
forense deliberativo e epidiacutectico O primeiro tambeacutem chamado de judicial eram aqueles
proferidos nos tribunais no foacuterum os discursos deliberativos eram aqueles proferidos
diante do Senado ou de uma assembleia do povo e os discursos epidiacutecticos eram aqueles
escritos para uma comemoraccedilatildeo especial Este uacuteltimo para Braund se revestiu de
especial importacircncia durante o principado como panegiacuterico (elogio)
Uma das coisas mais importantes para um aristocrata romano era o
reconhecimento pelas pessoas ao seu redor de seu valor puacuteblico e permanente
ndash sua auctoritas e sua dignitas Idealmente isso seria celebrado em panegiacuterico
ndash isto eacute louvor escrito em prosa ou verso3 (2005 p 110)
O panegiacuterico era um elemento central na poliacutetica romana e na vida puacuteblica sob
o Principado ndash e jaacute o era haacute muito tempo De fato alguns dos nossos mais
antigos textos latinos sobreviventes os epitaacutefios aos membros da famiacutelia
Cipiatildeo que datam do terceiro e segundo seacuteculos AEC (Scipionum elogia)
satildeo os louvores (poacutestumos) dos grandes homens4 (2005 p 112)
3 ldquoOne of the most important things for a Roman aristocrat was the recognition by people around him of
his public worth and standing ndash his auctoritas and his dignitas Ideally this would be celebrated in
panegyric ndash that is praise written in prose or verserdquo 4 ldquoPanegyric was a central element in Roman politics and public life under the Principate ndash and had been
so for a long time already In fact some of our earliest surviving Latin texts the epitaphs to members of
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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Ainda sobre o panegiacuterico e sua difusatildeo durante este periacuteodo do Impeacuterio Romano
Mitchell (2015 p 19) o relaciona agrave natureza autoritaacuteria do mesmo Segundo ele a
dissidecircncia aberta natildeo era tolerada e isso se vecirc pelos extremos dos discursos que satildeo de
louvor ou vituperaccedilatildeo mas raramente se encontram num meio termo Apesar de
parecerem pouco confiaacuteveis o autor defende a utilizaccedilatildeo de panegiacutericos e poemas como
fontes histoacutericas para o periacuteodo alegando que seus exageros omissotildees e estilos retoacutericos
expressam de forma criacutetica muito daquele momento Segundo Mitchell as obras mais
significativas neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos5
As obras-chave neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos que
provavelmente foram compilados pelo orador gaulecircs Pacato e foram
prefaciados pelo longo panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem para o imperador Trajano
(I) Aleacutem do trabalho do proacuteprio Pacato de 389 em louvor a Teodoacutesio I (II)
este inclui discursos a Maximiano em 289 (X de Cl Mamertino o Velho) e
291 (XI) a Constacircncio pai de Constantino em 296 e 298 (IX) para o
casamento de Constantino e Fausta em 307 (VII) a Constantino em 310 (VI)
312 (V) 314 (XII) e 321 (IV de Nazaacuterio) e a Juliano em 362 (III de Cl
Mamertino o Jovem em sua proacutepria nomeaccedilatildeo para o consulado)6
Mitchell (2015 p 4) realccedila que conforme o Impeacuterio crescia foi se dando cada
vez mais ecircnfase agrave religiatildeo do Estado Acreditava-se que ele era mantido devido ao apoio
dos deuses e os imperadores romanos que em parte controlavam as atividades religiosas
em seus territoacuterios eram vistos como aqueles que mantinham o pacto de paz com os
deuses a pax deorum E segundo Mitchell todos os meios de propaganda estavam
imbuiacutedos desta ideologia inclusive os discursos panegiacutericos
Braund (2005 129) especifica que o cocircnsul Pliacutenio entregou seu panegiacuterico ao
imperador Trajano no iniacutecio de seu reinado Era um discurso de gratidatildeo onde ele
aproveita para contrastar a imagem do bom Trajano com a do mau Domiciano imperador
de 81 a 96 EC Para Braund (2005 p 130)
Este texto revela dois modelos contrastantes de patrono ou imperador - e afinal
de contas o imperador era apenas o patrono mais poderoso em Roma O bom
patrono ou imperador eacute marcado por sua abertura acessibilidade e atitude
amigaacutevel e tolerante O mau patrono ou imperador eacute marcado pelo abuso
tiracircnico de seus poderes para tomar decisotildees de vida e morte sobre todos ao
seu redor do menor escravo ao senador mais eminente A celebraccedilatildeo do bom
modelo e a condenaccedilatildeo do ruim encontram-se em toda a gama de textos da
literatura latina incluindo poesia eacutepica e pastoral poesia liacuterica e elegiacuteaca
saacutetira e epigrama historiografia oratoacuteria e romance Isso natildeo nos deixa
duvidar de que o modo como um homem poderoso se comportava com seus
the Scipio family dating from the third and second centuries BCE (the Scipionic elogia) are the
(posthumous) praises of great menrdquo 5 Ver tambeacutem BERRY D H Oratory In HARRISON Stephen (ed) A Companion to Latin Literature
Oxford Blackwell 2005 pp 267-268 6 ldquoKey works in this genre are the twelve Latin panegyrics which were probably compiled by the Gallic
orator Pacatus and were prefaced by the younger Plinyrsquos lengthy panegyric for the emperor Trajan (I)
Apart from Pacatusrsquo own work of 389 in praise of Theodosius I (II) this includes speeches for
Maximianus in 289 (X by the elder Cl Mamertinus) and 291 (XI) for Constantius the father of
Constantine in 296 (VIII) and 298 (IX) for the marriage of Constantine and Fausta in 307 (VII) for
Constantine in 310 (VI) 312 (V) 314 (XII) and 321 (IV by Nazarius) and for Julian in 362 (III by the
younger Cl Mamertinus on his own appointment to the consulship)rdquo
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pares e seus subordinados era crucial para sua posiccedilatildeo social e reputaccedilatildeo
poliacutetica7
Bruce Gibson (2005 p 72) critica a postura deste gecircnero por natildeo se envolver
abertamente com a poliacutetica atual de seu tempo senatildeo de modo indireto e o panegiacuterico
modelo natildeo foi a exceccedilatildeo ldquoMesmo o Panegiacuterico de Pliacutenio um discurso em louvor ao
imperador Trajano dado por ocasiatildeo de seu consulado em setembro de 100 EC oferece
sua criacutetica de governo indiretamente atraveacutes da estrateacutegia de atacar o principado de
Domicianordquo8
CONSIDERACcedilOtildeES PARCIAIS
As condiccedilotildees do discurso representavam um novo momento para o Impeacuterio De
acordo com A D Lee (2013 p 1) foi por meados do seacuteculo IV que o Impeacuterio Romano
havia alcanccedilado quase tanto territoacuterio quanto durante o seacuteculo II periacuteodo conhecido pelo
auge do poder romano Foi o periacuteodo dos imperadores guerreiros que se viram forccedilados
a se retirar dos confortos de Roma para proteger suas fronteiras (LEE 2013 p 5) Roma
foi substituiacuteda como residecircncia imperial por Treacuteveris Milatildeo Sirmio e Antioquia Com a
criaccedilatildeo de Constantinopla por parte do imperador Constantino essa situaccedilatildeo soacute se
agravou De qualquer forma o tema que domina o seacuteculo e que dominou os discursos
traduzidos de Siacutemaco foi a histoacuteria militar (MITCHELL 2015 pp 11-12)
Natildeo eacute um Impeacuterio em decadecircncia mas sim um momento de transiccedilatildeo Mitchell
(2015 p 56) se daacute conta de como por exemplo Diocleciano Joviano e Valentiniano
vieram de origens semelhantes Eram todos militares de meia idade nascidos nas
proviacutencias da Iliacuteria o que plasma uma mudanccedila no eixo do poder Mitchell (2015 pp 56-
57) frisa como desde a ascensatildeo de Diocleciano em 284 ateacute a morte de Teodoacutesio I em
395 o Impeacuterio foi governado por esses imperadores guerreiros que aniquilavam inimigos
internos e externos O Estado estava centrado em guerras e batalhas Calcula-se que mais
de dois terccedilos de seu orccedilamento anual eram gastos em atividades militares atividades das
quais os imperadores participavam pessoalmente
Siacutemaco soube valer-se da situaccedilatildeo para estreitar laccedilos com a corte e obter ascensatildeo
poliacutetica Esse periacuteodo foi especial tambeacutem por sua produccedilatildeo literaacuteria e pela quantidade
de escritos que sobreviveu ao tempo Segundo OrsquoDonnel (2015 p 161) haacute mais literatura
latina que nos chegou entre 350 e 450 do que de qualquer outro periacuteodo mais ateacute mesmo
que a eacutepoca de ouro latina entre o final da Repuacuteblica e comeccedilo do Impeacuterio9
7 ldquoThis text reveals two contrasting models of patron or emperor ndash and after all the emperor was just the
most powerful patron in Rome The good patron or emperor is marked by his openness accessibility and
friendly and tolerant attitude The bad patron or emperor is marked by his tyrannical abuse of his powers
to make life and death decisions about everyone around him from the lowest slave to the most eminent
senator Celebration of the good model and condemnation of the bad model are found in the entire range
of texts of Latin literature including epic and pastoral poetry lyric and elegiac poetry satire and epigram
historiography oratory and the novel This can leave us in no doubt that how a powerful man behaved
towards his peers and his subordinates was crucial to his social standing and to his political reputationrdquo 8 ldquoEven Plinyrsquos Panegyricus a speech in praise of the emperor Trajan given on the occasion of his
consulship in September AD 100 offers its critique of rulership indirectly through the strategy of
assailing the principate of Domitianrdquo
9 ldquoWe have more surviving Latin literature from this century between 350 and 450 than for any comparable
period before that including the more famously golden age of Caesar Cicero and Vergilrdquo
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946510
OS IMPERADORES SUETONIANOS EM MEMOacuteRIAS POacuteSTUMAS
DE BRAacuteS CUBAS
Bruno Torres dos Santos
RESUMO O presente trabalho busca discutir atraveacutes da anaacutelise de traduccedilotildees proacuteprias as
referecircncias aos imperadores romanos descritos e consagrados pelo bioacutegrafo Suetocircnio em Vida
dos Ceacutesares na obra Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis Aquele no
iniacutecio do seacuteculo II da era comum demonstrou os viacutecios e as virtudes dos imperadores inclusive
enfatizando os escacircndalos de suas cortes Jaacute Machado trouxe agrave tona as vaidades e as ambiccedilotildees
da burguesia brasileira do seacuteculo XIX Entatildeo analisaremos e interpretaremos o uso destes
personagens histoacutericos para a criaccedilatildeo literaacuteria no referido romance partindo do pressuposto de
que eles poderiam passar despercebidos por leitores modernos que natildeo recuperassem as
referecircncias agrave cultura agrave literatura e agrave histoacuteria da Roma Antiga
PALAVRAS-CHAVE Machado de Assis Imperadores romanos Suetocircnio
THE SUETONIAN EMPERORS IN THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF
BRAS CUBAS
ABSTRACT The present work aims through the analysis of own translations the references to
the Roman emperors described and consecrated by the biographer Suetonius in Life of the
Caesars in the novel Posthumous Memoirs of Bras Cubas by Machado de Assis Suetonius
at the beginning of the second century of the common age demonstrated the vices and virtues
of the emperors including emphasizing the scandals of their courts Machado has already
brought to light the vanities and ambitions of the Brazilian bourgeoisie of the nineteenth
century Then we will analyze and interpret the use of these historical characters for the literary
creation in the novel assuming that they could go unnoticed by modern readers who do not
recover references to the culture literature and history of Ancient Rome
KEYWORDS Machado de Assis Roman emperors Suetonius
Entre os mais diversos romancistas com que a literatura brasileira teve contato natildeo haacute
nome maior do que Machado de Assis Tal personalidade nasceu no Morro do Livramento
Eacute doutorando no PPGLC-UFRJ bolsista CAPES sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Anderson Esteves e integrante
discente do grupo de pesquisa ATRIVM ndash Espaccedilo Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (PPGLC-UFRJ) E-
mail brunots_hotmailcom
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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localizado na aacuterea central do Rio de Janeiro proacuteximo a zona portuaacuteria em junho de 1839
Oriundo de famiacutelia pobre estudou em escolas puacuteblicas mas nunca frequentou uma
universidade Dedicou-se aos mais diversos gecircneros literaacuterios escrevendo poesia crocircnica
teatro conto romance Tambeacutem foi criacutetico literaacuterio e jornalista Testemunhou a Aboliccedilatildeo da
Escravatura e as mudanccedilas poliacuteticas no Brasil quando o Impeacuterio foi entatildeo substituiacutedo pela
Repuacuteblica comentando e relatando os respectivos eventos poliacutetico-sociais Em 1897 funda a
ABL (Academia Brasileira de Letras) da qual permaneceu presidente ateacute sua morte em 1908
com 69 anos
Ao discorrer sobre a consolidaccedilatildeo do nosso sistema literaacuterio o professor Antonio
Candido opina sobre Machado afirmando que ele ldquoera dotado de raro discernimento literaacuterio e
adquiriu por esforccedilo proacuteprio uma forte cultura intelectual baseada nos claacutessicos mas aberta aos
filoacutesofos e escritores contemporacircneosrdquo (CANDIDO 2010 p 65) E ainda acrescenta
Sua obra eacute variada e tem caracteriacutestica das produccedilotildees eminentes satisfaz tanto aos
requintados quanto aos simples Ela tem sobretudo a possibilidade de ser
reinterpretada agrave medida que o tempo passa porque tendo uma dimensatildeo profunda de
universalidade funciona como se se dirigisse a cada eacutepoca que surge (CANDIDO
2010 p 65)
Eacute esse diaacutelogo entre o claacutessico e o contemporacircneo com pitada filosoacutefica que daacute
singularidade agrave sua obra fazendo com que suas produccedilotildees sejam sempre atemporais Satildeo esses
traccedilos que se mostram mais produtivos para o nosso estudo no qual pretendemos analisar e
interpretar como os imperadores romanos descritos pelo bioacutegrafo Suetocircnio em sua obra satildeo
utilizados por Machado em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas1 Para tal julgamos necessaacuterio
primeiramente contextualizar brevemente os autores em apreccedilo bem como suas obras
(Memoacuterias Poacutestumas e Vida dos Ceacutesares2) os gecircneros praticados (Romance e Biografia
Antiga) e os tipos de criacutetica social dos dois autores Depois disso analisaremos os excertos do
romance machadiano em questatildeo no qual as presenccedilas dos principes (no singular princeps
termo latino usado na Roma Antiga para se referir ao que entendemos hoje por imperador) se
mostrem mais evidentes para entatildeo coligirmos com trechos da obra suetoniana Para o trabalho
com esta obra utilizaremos a ediccedilatildeo da Loeb Classical Library (1914) mas com traduccedilotildees de
nossa proacutepria autoria para o trabalho com aquela utilizaremos a ediccedilatildeo criacutetica estabelecida
pela Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira (1975)
Como jaacute afirmado Machado praticou os mais diversos gecircneros literaacuterios E jaacute demos os
merecidos creacuteditos pelo conjunto da obra Mas devemos frisar que eacute na praacutetica sobre o gecircnero
romance que os creacuteditos se mostram mais merecidos pois eacute nele que o autor apresenta natildeo soacute
todo o seu ingenium (talento natural) mas tambeacutem toda a sua ars (habilidade teacutecnica) para
usarmos termos proacuteprios da literatura latina
Foi esse talento somado a seu espiacuterito galhofeiro que proporcionou a criaccedilatildeo de um
narrador mais que incomum em Memoacuterias Poacutestumas Sobre esse narrador Francisco Silveira
discorre que ldquoele vinha pelo menos agrave primeira vista infringir dois postulados realistas a
impessoalidade e o verismordquo (SILVEIRA 2001 p 97) Convergirmos com tal visatildeo posto que
eacute com a referida obra e seu respectivo narrador defunto-autor que o Realismo enquanto esteacutetica
literaacuteria vai ser ldquoinauguradordquo no Brasil em 1881 Natildeo menos importante eacute a visatildeo de Alfredo
Bosi
1 Nas proacuteximas remissotildees a essa obra usaremos apenas Memoacuterias Poacutestumas 2 Em liacutengua latina De uita caesarum
Bruno Torres dos Santos
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Quando o romancista assumiu naquele livro capital o foco narrativo na verdade
passou ao defunto-autor Machado-Braacutes Cubas delegaccedilatildeo para exibir com o despejo
dos que nada mais temem as peccedilas de cinismo e indiferenccedila com que via montada a
histoacuteria dos homens A revoluccedilatildeo dessa obra que parece cavar um fosso entre dois
mundos foi uma revoluccedilatildeo ideoloacutegica e formal aprofundando o desprezo agraves
idealizaccedilotildees romacircnticas e ferindo ao cerne o mito do narrador onisciente que tudo vecirc
e tudo julga deixou emergir a consciecircncia nua do indiviacuteduo fraco e incoerente O que
restou foram as memoacuterias de um homem igual a tantos outros o cauto e desfrutador
Braacutes Cubas (BOSI 2006 p 177)
Entendemos assim que o ser humano seraacute analisado sob seu cinismo e sob a
indiferenccedila por um narrador tambeacutem fraco e cheio de incoerecircncias rompendo nesse aspecto
com a esteacutetica Romacircntica Bosi ainda acrescenta
o ponto de vista um velho tema como o triacircngulo amoroso jaacute natildeo se carregaraacute do
pathos romacircntico que envolvia heroacutei-heroiacutena-o outro mas deixaraacute vir agrave tona os mil e
um interesses de posiccedilatildeo prestiacutegio e dinheiro dando a batuta agrave libido e agrave vontade de
poder que mais regem os passos do homem em sociedade Da histoacuteria vulgar do
adulteacuterio de Braacutes Cubas-Virgiacutenia-Lobo Neves agrave triste comeacutedia de equiacutevocos de
Rubiatildeo-Sofia-Palha (Quincas Borba) e desta agrave trageacutedia perfeita de Bentinho-Capitu-
Escobar (D Casmurro) soacute aparecem variantes de uma soacute e mesma lei natildeo haacute mais
heroacuteis a cumprir missotildees ou a afirmar a proacutepria vontade haacute apenas destinos destinos
sem grandeza (BOSI 2006 p 180)
Observamos o olhar aparentemente ldquodespretensiosordquo de Machado de Assis sem a
intenccedilatildeo de criar e de se defrontar com personagens heroicos mas ao lidar com homens-
personagens comuns lidaraacute tambeacutem com problemas comuns Ele analisa a psicologia do
ldquohomemrdquo com todas as suas peculiaridades inveja ganacircncia ambiccedilatildeo E eacute a atmosfera
burguesa que potencializa esses sentimentos De todo modo faz uma ldquocriacutetica socialrdquo sem querer
fazecirc-la Eacute isso que o aproxima e o distancia de Suetocircnio que analisa os retratos morais dos
imperadores romanos com todos os viacutecios e virtudes mas faz ldquocriacutetica socialrdquo e ateacute propaganda
poliacutetica de modo velado
Diferente do esforccedilo na anaacutelise da vida e obra de Machado quem se propotildee a estudar o
bioacutegrafo Caio Suetocircnio Tranquilo inicialmente se depara com algumas imprecisotildees acerca de
sua vida No tocante ao seu local de nascimento Anderson Esteves em seu artigo busca
encontrar vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas proacuteprias obras nos apontando como mais
plausiacutevel a ideia segundo a qual este teria nascido em Roma ou pelo menos se estabelecido
nessa cidade desde a infacircncia Ele nos informa sobre a origem e a condiccedilatildeo familiar de Suetocircnio
o avocirc era de uma condiccedilatildeo menos abastada visto que teria sido um liberto do imperador
Claacuteudio jaacute seu pai de uma condiccedilatildeo social mais elevada pois pertencia a ordem dos equestres
(ESTEVES 2015 p 1-7)
Eacute dado como certo que Suetocircnio teria nascido em 70 EC um ano apoacutes o conhecido ldquoAno
dos quatro imperadoresrdquo sobre o qual ainda falaremos Maacuterio Citroni esclarece-nos que em 69
EC o pai do bioacutegrafo foi combatente ao lado de Oto com o grau de tribunus militum (tribuno
militar) (CITRONI 2006 p 971) Natildeo menos importante eacute o que esclarece Ronald Mellor
segundo ele o cognomen ldquoTranquilordquo atribuiacutedo a Suetocircnio eacute decorrente do esforccedilo do seu pai
na busca pela estabilizaccedilatildeo da paz apoacutes esta terriacutevel guerra civil (MELLOR 1999 p 147)
Conforme observamos de alguma forma sua famiacutelia estava envolvida com as casas
imperiais e dada a condiccedilatildeo do seu pai Suetocircnio teve a possibilidade de ter uma boa educaccedilatildeo
na urbs dedicando-se aos estudos de gramaacutetica e de retoacuterica Nessa trajetoacuteria instrutiva o
bioacutegrafo torna-se amigo iacutentimo do renomado senador Pliacutenio o Jovem Por influecircncia dessa
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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amizade Suetocircnio consegue alguns cargos de prestiacutegio dentro das cortes imperiais Durante o
principado de Trajano ele ocupou os postos de a studiis (com a funccedilatildeo de cuidar dos interesses
e das obrigaccedilotildees culturais do imperador) e o de a bibliothecis (com a funccedilatildeo de cuidar das
bibliotecas puacuteblicas) Sob o principado de Adriano ocupou o posto de ab epistulis (com a
funccedilatildeo de redigir a correspondecircncia oficial) (MORENO 1997 p 645 CITRONI 2006 p
971)
A rede de contato iniciada por seu amigo Pliacutenio permitiu que Suetocircnio alcanccedilasse as
referidas ocupaccedilotildees e por consequecircncia o acesso direto aos arquivos imperiais muitas vezes
fundamentais para a feitura da sua obra De uita caesarum na qual discorre sobre os doze
primeiros ceacutesares de Roma desde o general Juacutelio Ceacutesar ateacute o polecircmico imperador Domiciano
Cabe considerar que ele iniciou a composiccedilatildeo desse seu opus magnum por volta dos primeiros
anos do principado de Adriano o qual se estendeu entre os anos de 117 e 138 EC
Acerca do gecircnero praticado por Suetocircnio devemos considerar que ateacute aqui muito foi
usada a terminologia moderna ldquobiografiardquo poreacutem conveacutem lembrarmos que esse gecircnero relativo
agrave escrita de uma vida na Antiguidade eacute referido por bios pelos gregos e uita pelos romanos
O termo ldquobiografiardquo como salienta Sabina Loriga soacute aparece ao longo do seacuteculo XVII
designando uma obra veriacutedica fundada numa descriccedilatildeo realista que se opotildee a outras formas
antigas de escritura idealizadoras do personagem e das circunstacircncias de sua vida tal qual o
panegiacuterico o elogio a oraccedilatildeo fuacutenebre e a hagiografia (LORIGA 2011 p 17)
A pesquisadora argumenta ainda que desde sua origem na Antiguidade a biografia eacute um
gecircnero hiacutebrido e composto que equilibrando-se entre a verdade histoacuterica e a verdade literaacuteria
sofreu ao longo do tempo profundas transformaccedilotildees sobretudo no que diz respeito agrave escolha e
agrave elaboraccedilatildeo dos fatos e do estilo de narraccedilatildeo (LORIGA 2011 p 18)
Frente a esses esclarecimentos avancemos aos excertos de Memoacuterias Poacutestumas em cujo
iniacutecio o narrador e protagonista Braacutes Cubas relata suas lembranccedilas apoacutes ter sido vitimado por
uma pneumonia Ele que pertencia a uma famiacutelia abastada do seacuteculo XIX narra sua morte e
seu enterro em que apareceram apenas onze amigos Relata diversos periacuteodos da vida infacircncia
adolescecircncia e fase adulta Ainda apresenta suas expectativas com o ldquoEmplastordquo um
medicamento por ele inventado com grande potencial de cura O narrador reconhece que esse
projeto se tornou uma ldquoideia fixardquo que entendemos como uma ideia difiacutecil de se retirar da
cabeccedila E eacute justamente no IV capiacutetulo intitulado A ideacutea fixa que o narrador machadiano faz a
primeira referecircncia a imperadores romanos e ao proacuteprio bioacutegrafo Suetocircnio
A minha ideacutea depois de tantas cabriolas constituiacutera-se ideacutea fixa Deus te livre leitor
de uma ideacutea fixa antes um argueiro antes uma trave no olho Vecirc o Cavour foi a ideacutea
fixa da unidade italiana que o matou Verdade eacute que Bismarck natildeo morreu mas
cumpre advertir que a natureza eacute uma grande caprichosa e a histoacuteria uma eterna
loureira Por exemplo Suetocircnio deu-nos um Claacuteudio que era um simploacuterio mdash ou
ldquouma aboacuteborardquo como lhe chamou Secircneca e um Tito que mereceu ser as deliacutecias de
Roma Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dous
ceacutesares o delicioso o verdadeiro delicioso foi o ldquoaboacuteborardquo de Secircneca E tu madama
Lucreacutecia flor dos Boacutergias se um poeta te pintou como a Messalina catoacutelica apareceu
um Gregorovius increacutedulo que te apagou muito essa qualidade e se natildeo vieste a liacuterio
tambeacutem natildeo ficaste pacircntano Eu deixo-me estar entre o poeta e o saacutebio (Machado de
Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap IV p 103)3
3 Para facilitar a leitura usaremos tal forma nas referecircncias a esta obra que compotildee nossa documentaccedilatildeo textual
Para as referecircncias agraves biografias de Vida dos Ceacutesares adotamos as abreviaccedilotildees do renomado The Oxford Latin
Dictionary (httpswwwoxfordscholarlyeditionscompageabbreviations acessado em 25102019)
Bruno Torres dos Santos
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Nesse discurso metalinguiacutestico dirigido diretamente ao leitor a fim de exemplificar a
proacutepria noccedilatildeo de ldquoideia fixardquo Braacutes Cubas evidencia que Suetocircnio o qual ressignificou a ldquoideiardquo
do filoacutesofo estoico Secircneca teve a sua ldquoideiardquo ressignificada por um professor moderno
Diferentemente do bioacutegrafo Suetocircnio bem como os imperadores que ele ldquonos deurdquo que foram
personagens histoacutericas o referido professor natildeo o foi
Entatildeo passemos a essas referecircncias o primeiro imperador citado eacute Tibeacuterio Claacuteudio Druso
Braacutes Cubas adjetiva o Claacuteudio de Suetocircnio como um ldquosimploacuteriordquo que eacute assim descrito na
biografia suetoniana
Infans autem relictus a patre ac per omne fere pueritiae atque adulescentiae tempus
variis et tenacibus morbis conflictatus est adeo ut animo simul et corpore hebetato ne
progressa quidem aetate ulli publico privatoque muneri habilis existimaretur (Suet
Cl 21)
No entanto era crianccedila quando foi abandonado pelo pai e por quase todo o tempo da
primeira infacircncia e adolescecircncia foi acometido por vaacuterias doenccedilas persistentes de tal
modo que estivesse ao mesmo tempo com o espiacuterito e com o corpo debilitado foi
certamente por conta de sua idade avanccedilada estimado como natildeo apto para cargo no
acircmbito puacuteblico e no acircmbito privado
Posteriormente Suetocircnio faz o seguinte relato sobre a inesperada subida ao trono apoacutes o
assassinato do sobrinho Caliacutegula
Per haec ac talia maxima aetatis parte transacta quinquagesimo anno imperium cepit
quantumvis mirabili casu Exclusus inter ceteros ab insidiatoribus Gai cum quasi
secretum eo desiderante turbam submoverent in diaetam cui nomen est Hermaeum
recesserat neque multo post rumore caedis exterritus prorepsit ad solarium proximum
interque praetenta foribus vela se abdidit Latentem discurrens forte gregarius miles
animadversis pedibus studio sciscitandi quisnam esset adgnovit extractumque et prae
metu ad genua sibi accidentem imperatorem salutavit (Suet Cl10 1-2)
Por estas e outras coisas semelhantes tendo passado muito do tempo assumiu o
impeacuterio soacute com cinquenta anos atraveacutes de um caso extremamente interessante
Excluiacutedo entre os outros pelos assassinos de Caio Caliacutegula quando sob o pretexto
de expulsarem a multidatildeo e desejando ele um lugar isolado retirou-se para um
pavilhatildeo ao qual chamam de ldquoHermeacuteurdquo E natildeo muito depois aterrorizado com a
notiacutecia da morte avanccedilou se arrastando para uma galeria solar proacutexima e se escondeu
entre as cortinas postas diante das portas Tendo os peacutes sido observados um soldado
raso correndo de uma parte a outra com uma forte curiosidade procurou saber quem
estaria escondido e reconheceu quem por ele foi retirado do esconderijo Diante do
medo Claacuteudio se prostrou aos seus peacutes o soldado o saudou como imperador
Notamos que um eventual olhar do narrador machadiano sobre a dinastia julio-claudiana
sempre lembrada no pensamento ocidental pelos excelentes generais como Juacutelio Ceacutesar e
Augusto e pelos polecircmicos Tibeacuterio Caliacutegula e Nero pode justificar a anaacutelise de Claacuteudio como
um personagem simploacuterio Isso se daacute mesmo este tendo conquistado diversas regiotildees e tido boa
aceitaccedilatildeo pelo povo romano pois como percebemos nos excertos de sua biografia Suetocircnio
fez ressoar sua fraqueza de espiacuterito inaptidatildeo para o governo e a covardia Cabe lembrar ainda
que numa leitura completa da biografia do imperador ele aparece como um joguete nas matildeos
das proacuteprias esposas Primeiramente Valeacuteria Messalina (a mesma referida no capiacutetulo em
questatildeo das Memoacuterias Poacutestumas) tentou entregar o Impeacuterio nas matildeos de um de seus amantes
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C Siacutelio mas sem sucesso foi por Claacuteudio condenada e executada Jaacute viuacutevo ele se casa com
Agripina que trama pela sua morte para legar o trono a seu filho Nero
Justifica-se assim tambeacutem o seu retrato como uma ldquoaboacuteborardquo na obra Apocoloquintose
na qual o filoacutesofo e tragedioacutegrafo Secircneca que foi banido de Roma por Claacuteudio em 41 em
razatildeo de intrigas palacianas critica ironicamente o receacutem-assassinado imperador Horaacutecio
Rolim de Freitas explica que
O tiacutetulo inicial seria Ludus de morte Claudii O historiador Dion Caacutessio sugeriu que
o tiacutetulo tenha sido Apocolocyntosis (transformaccedilatildeo em aboacutebora) do grego
Ἀποκολοκύνθοσις Tiacutetulo curioso mas era entendido pelos leitores da eacutepoca pois
aboacutebora (ποκολοκύντἡς) era siacutembolo da estupidez (FREITAS 2010 p 13)
Para compreendermos isso devemo-nos lembrar de um aspecto cultural importante na
Roma Antiga ndash a Apoteose A cerimocircnia de deificaccedilatildeo que ocorria durante os funerais dos
iminentes ceacutesares iniciada por Otaacutevio a partir da morte de seu tio Juacutelio Ceacutesar Ou seja o
argumento da obra senequiana eacute parodiar a narraccedilatildeo agraves avessas da apoteose de Claacuteudio
relatando como o morto foi recebido nos infernos pelos deuses transformando-se no alegoacuterico
legume
O segundo imperador citado nesse IV capiacutetulo de Memoacuterias Poacutestumas foi Tito
Vespasiano Augusto Tito foi o segundo princeps da dinastia flaviana Era o filho mais velho
de Vespasiano e irmatildeo de Domiciano os quais tambeacutem seratildeo citados por Braacutes Cubas ao longo
do romance Depois da morte de seu pai Tito assume as reacutedeas do Impeacuterio atuando de modo
similar a ele com excelecircncia no campo militar e com moderaccedilatildeo no campo poliacutetico foi visto
como um bom imperador por Roma Por essa razatildeo eacute descrito por Suetocircnio logo no primeiro
capiacutetulo de sua biografia como ldquoTito tendo o cognome do pai foi o amor e as deliacutecias do
gecircnero humano Tanto de inteligecircncia de habilidade e de fortuna abundava nele que ganhava a
simpatia de todos o que eacute muito difiacutecil durante um governordquo (Titus cognomine paterno amor
ac deliciae generis humani ndash tantum illi ad promerendam omnium voluntatem vel ingenii vel
artis vel fortunae superfuit et quod difficillimum est in impeacuterio () (Suet Tit 11) Com essa
seleccedilatildeo vocabular Suetocircnio ldquonos daacuterdquo o retrato de um imperador diferente de Claacuteudio Eacute esse
retrato com vastos predicados perante a humanidade que serviu de fonte para Machado de
Assis fazer o jogo de palavras com o termo ldquodeliacuteciardquo na ldquoideia fixardquo de um professor
Para encerrar a anaacutelise do capiacutetulo conveacutem observar a segunda referecircncia a tais principes
em ldquoViva pois a histoacuteria a voluacutevel histoacuteria que daacute para tudo e tornando agrave ideacutea fixa direi que
eacute ela a que faz os varotildees fortes e os doudos a ideacutea moacutebil vaga ou furta-cor eacute a que faz os
Claacuteudios mdash formula Suetocircniordquo (Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap
IV p 103) O Bruxo do Cosme Velho brinca com o gecircnero historiograacutefico ao qual o gecircnero
biograacutefico estaacute aparentado Chamando a histoacuteria de voluacutevel ele usa novamente o verbo ldquodarrdquo
Em nossa interpretaccedilatildeo o narrador quer reforccedilar que a histoacuteria ldquodaacuterdquo na acepccedilatildeo de ldquopromoverrdquo
diversos retratos sejam eles positivos ou negativos a depender da ldquoideiardquo que cada personagem
possui Esse modus operandi da formulaccedilatildeo de Suetocircnio muito se relaciona com o de Machado
Avancemos agora ao capiacutetulo XXIII de Memoacuterias Poacutestumas intitulado Triste mas curto
Em tal capiacutetulo Cubas narra sua chegada ao Rio de Janeiro e a sensaccedilatildeo de rever os locais de
sua infacircncia a tristeza de sua famiacutelia e o sofrimento de sua progenitora Quando vecirc sua matildee
com quem natildeo tinha contato haacute nove anos acha-a paacutelida e sem soltar uma palavra sequer pega
em suas matildeos No dia seguinte ela vem a falecer sendo a primeira vez que ele teria tido contato
com a morte de perto de uma pessoa amada Neste iacutenterim ele faz referecircncia a mais um ceacutesar
descrito por Suetocircnio o proacuteprio Juacutelio Ceacutesar que embora natildeo tenha chegado a ser um
ldquoimperadorrdquo enquanto chefe de estado eacute ele quem ldquodesenhardquo o que viria a ser o Impeacuterio
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romano iniciado por seu sobrinho-neto Otaviano Por essa razatildeo tambeacutem incluiacutemos tal general
em nossas anaacutelises e eacute assim referenciado no romance
Longa foi a agonia longa e cruel de uma crueldade minuciosa fria repisada que me
encheu de dor e estupefacccedilatildeo Era a primeira vez que eu via morrer algueacutem Conhecia
a morte de outiva quando muito tinha-a visto jaacute petrificada no rosto de algum
cadaacutever que acompanhei ao cemiteacuterio ou trazia-lhe a ideacutea embrulhada nas
amplificaccedilotildees de retoacuterica dos professores de coisas antigas mdash a morte aleivosa de
Ceacutesar a austera de Soacutecrates a orgulhosa de Catatildeo (Machado de Assis Memoacuterias
Poacutestumas de Braacutes Cubas cap XXIII p 145)
Nas referidas amplificaccedilotildees retoacutericas ressoa a morte do filoacutesofo Soacutecrates a qual de fato
ficou no imaginaacuterio ocidental como uma morte ldquoausterardquo dado o fato de ele ter se mantido
firme em suas ideias ldquocorruptorasrdquo dos jovens atenienses ateacute a hora de seu oacutebito A morte de
Catatildeo o Jovem tambeacutem eacute adjetivada por Braacutes Cubas poreacutem como ldquoorgulhosardquo A respectiva
adjetivaccedilatildeo se apresenta com ecircxito dado o fato de Catatildeo ter sido um poliacutetico romano notaacutevel
por sua integridade moral Sendo ele ainda partidaacuterio da filosofia estoica descrito pelo
historiador Saluacutestio como a antiacutetese direta de Juacutelio Ceacutesar suicidou-se apoacutes a vitoacuteria deste seu
opositor na Batalha de Tapso
Concentremo-nos poreacutem na morte de Ceacutesar mesmo que natildeo haja nenhuma associaccedilatildeo
direta dele com o bioacutegrafo diferentemente dos excertos com os imperadores anteriores isso
natildeo nos impede de relacionaacute-los O narrador machadiano adjetiva tal morte como ldquoaleivosardquo
denotando a atmosfera da traiccedilatildeo pela qual Ceacutesar passou no Senado romano relatada em sua
biografia deste modo
Assidentem conspirati specie officii circumsteterunt ilicoque Cimber Tillius qui
primas partes susceperat quasi aliquid rogaturus propius accessit renuentique et gestu
in aliud tempus differenti ab utroque umero togam adprehendit deinde clamantem
ldquoIsta quidem vis estrdquo alter e Cascis aversum vulnerat paulum infra iugulum Caesar
Cascae brachium arreptum graphio traiecit conatusque prosilire alio vulnere tardatus
est utque animadvertit undique se strictis pugionibus peti toga caput obvoluit simul
sinistra manu sinum ad ima crura deduxit quo honestius caderet etiam inferiore
corporis parte velata Atque ita tribus et viginti plagis confossus est uno modo ad
primum ictum gemitu sine voce edito etsi tradiderunt quidam Marco Bruto irruenti
dixisse καὶ σὺ τέκνον (Suet Jul 82 1-2)
Os que haviam concordado com a natureza do trabalho rodeavam aquele que estava
sentado Sem demorar Ciacutember Tiacutelio que se encarregava dos primeiros papeacuteis como
se houvesse de falar algo caminhou para mais perto Ceacutesar negando atraveacutes de um
gesto contraacuterio passou-o para outro momento Por ambos os lados aquele apertou sua
toga Entatildeo Ceacutesar clamou ldquoIsso eacute verdadeiramente uma violecircnciardquo Um dos Cascas
jaacute lhe tinha ferido por traacutes um pouco abaixo da garganta Com um ponteiro furou com
um ponteiro o braccedilo arrebatado de Casca e o impulso de arremeter foi detido por uma
outra ferida Mas quando observou que seria tomado por robustos punhais por todos
os lados cobriu a cabeccedila com a toga Ao mesmo tempo com a matildeo esquerda conduziu
a dobra da veste ateacute as extremidades das pernas de modo que jaacute estando com a parte
inferior do corpo coberta caiacutesse mais honrosamente Desta maneira foi dilacerado
por vinte e trecircs golpes Ateacute a primeira ferida teria produzido apenas um gemido sem
uma palavra sequer embora alguns afirmem que com o ataque de Marco Bruto teria
dito ldquoTambeacutem tu meu filhordquo
Como reconhecemos esses escritos de Suetocircnio com grande carga dramaacutetica foram
grandes responsaacuteveis por propagar no imaginaacuterio do mundo ocidental este evento que mudou
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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os rumos da Roma Antiga Machado de Assis foi ciruacutergico ao usar a palavra aleivosa para
qualificar a morte de Ceacutesar a qual condensa toda a ideia da conjuraccedilatildeo Muito provavelmente
teve acesso a isso atraveacutes da referida biografia
Podemos avanccedilar ao capiacutetulo LXXII do romance cujo tiacutetulo eacute O bibliocircmano no qual o
defunto-autor confessa que deveria suprimir o capiacutetulo antecedente alegando haver nele um
despropoacutesito acerca do qual natildeo gostaria de receber criacuteticas Afirma que setenta anos agrave frente
este leitor que eacute por ele caracterizado e denominado ldquobibliocircmanordquo procuraria minuciosamente
o tal ldquodespropoacutesitordquo poreacutem sem ecircxito natildeo encontraria Em seguida explica que ele natildeo o
encontraria pelo simples fato de ele natildeo existir jaacute que foi suprimido Discorre ainda que isso
natildeo causaria o desinteresse do leitor sobre o livro e que pelo contraacuterio ele o adoraria por ser
um exemplar uacutenico O bibliocircmano continua sua procura mas mesmo sem sucesso se contenta
com o fato de dispor do uacutenico tomo
Jaacute prometeu a si mesmo escrever uma breve memoacuteria na qual relate o achado do livro
e a descoberta da sublimidade se a houver por baixo daquela frase obscura Ao cabo
natildeo descobre nada e contenta-se com a posse Fecha o livro mira-o remira-o chega-
se agrave janela e mostra-o ao sol
Um exemplar uacutenico Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um Ceacutesar ou um
Cromwell a caminho do poder Ele daacute de ombros fecha a janela estira-se na rede e
folheia o livro de vagar com amor aos goles Um exemplar uacutenico (Machado de
Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap LXXII p 209-210)
Neste excerto em que Braacutes Cubas manteacutem sua divagaccedilatildeo sobre o despropoacutesito da mesma
forma que fez com a noccedilatildeo de ideia fixa notamos a segunda referecircncia ao general Juacutelio Ceacutesar
A menccedilatildeo a Ceacutesar e a Cromwell visa ilustrar o modo como uma pessoa estaria transitando pela
rua ldquoa caminho do poderrdquo Oliver Cromwell foi um comandante militar e poliacutetico nascido na
nobreza rural inglesa em 1599 Em 1630 passa por uma conversatildeo religiosa e reconhecendo-
se como um Puritano acreditava que Deus era quem o guiava em suas vitoacuterias sendo muito
ativo durante a Guerra Civil Inglesa Mas quem mais nos interessa eacute o outro poliacutetico e militar ndash
Juacutelio Ceacutesar ndash e este nome associado agrave expressatildeo ldquocaminho do poderrdquo leva-nos a lembrar de
outro aspecto cultural da Roma Antiga ndash a travessia ao Rio Rubicatildeo Jaacute durante a Repuacuteblica
esse rio que dividia a proviacutencia da Gaacutelia Cisalpina (ao norte) do resto da Itaacutelia (ao sul) era de
suma importacircncia visto que a lei romana proibia que fosse transpassado por quaisquer legiotildees
do exeacutercito romano caso isso fosse feito denotaria uma ameaccedila militar interna
Resumidamente os sucessos de Ceacutesar na Gaacutelia acarretaram o aumento de seu poder de
sua popularidade e da ira de seus inimigos Estes influenciados por Catatildeo o Jovem (tambeacutem
jaacute referido no romance de Machado) tentaram promover sua ruiacutena poliacutetica Em 50 AEC o
Senado aprovou uma moccedilatildeo para que Ceacutesar fosse retirado do cargo de governador na Gaacutelia
Marco Antocircnio embasado pelo poder de tribuno do povo vetou a proposta Apoacutes isso houve
uma intensa perseguiccedilatildeo aos partidaacuterios de Juacutelio Ceacutesar Antocircnio precisou deixar Roma por
conta da alta probabilidade de ser assassinado e sem oposiccedilatildeo do Senado declarou estado de
emergecircncia delegando poderes excepcionais a Pompeu Magno Ceacutesar retrucou isso com a
famosa cruzada assim relatada por Suetocircnio
Dein post solis occasum mulis e proximo pistrino ad vehiculum iunctis occultissimum
iter modico comitatu ingressus est et cum luminibus extinctis decessisset via diu
errabundus tandem ad lucem duce reperto per angustissimos tramites pedibus evasit
Consecutusque cohortis ad Rubiconem flumen qui provinciae eius finis erat paulum
constitit ac reputans quantum moliretur conversus ad proximos ldquoEtiam nuncrdquo
inquit ldquoregredi possumus quod si ponticulum transierimus omnia armis agenda
eruntrdquo (Suet Jul 31 2)
Bruno Torres dos Santos
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Em seguida apoacutes o pocircr do Sol atadas as mulas desde o moinho mais proacuteximo ateacute o
veiacuteculo mais escondido comeccedilou o caminho com uma modesta caravana Com as
luzes acabando ia-se embora pelo caminho Entatildeo durante o dia tendo aparecido um
guia com peacutes errantes evadiu pelas mais estreitas veredas E acompanhado pelas
coortes ateacute o rio Rubicatildeo que traccedila o limite de sua proviacutencia parou um pouco e
calculou o quanto se moveu virou-se aos mais proacuteximos e disso ldquoAteacute agora podemos
recuar porque se atravessarmos a pequena ponte todas as coisas deveratildeo ser feitas
atraveacutes das armasrdquo
Cunctanti ostentum tale factum est Quidam eximia magnitudine et forma in proximo
sedens repente apparuit harundine canens ad quem audiendum cum praeter pastores
plurimi etiam ex stationibus milites concurrissent interque eos et aeneatores rapta ab
uno tuba prosilivit ad flumen et ingenti spiritu classicum exorsus pertendit ad alteram
ripam Tunc Caesar ldquoEaturrdquo inquit ldquoquo deorum ostenta et inimicorum iniquitas
vocat Iacta alea estrdquo inquit (Suet Jul 32)
Com ele ainda de tal modo titubeando foi eficaz um prodiacutegio Apareceu de repente
ali proacuteximo uma certa pessoa que estava sentada tocando com uma flauta exiacutemia em
grandeza e forma Para o ouvirem correram muitos pastores tambeacutem muitos soldados
das guarniccedilotildees entre eles alguns tocadores de trombeta Com a trombeta tomada de
um deles o muacutesico lanccedilou-se ao rio E com um imenso vigor realizou um toque
introdutoacuterio ateacute a outra margem do rio Entatildeo disse Ceacutesar ldquoVamos para onde o sinal
dos deuses e a hostilidade dos inimigos nos chamam A sorte estaacute lanccediladardquo
Como jaacute frisamos por parte do narrador de Machado natildeo haacute nenhuma referecircncia direta
desse Ceacutesar ao bioacutegrafo Suetocircnio mas vemos relaccedilotildees diretas entre o ato da desconhecida
pessoa ldquoa caminho do poderrdquo e os atos do general romano Mais uma vez o autor foi ciruacutergico
no uso da expressatildeo destacada para a qual muito provavelmente teve acesso ao excerto de
Suetocircnio cujo conteuacutedo tambeacutem faz parte do imaginaacuterio ocidental ndash a travessia ao rio Rubicatildeo
antecedida da frase ldquoA sorte estaacute lanccediladardquo Cabe lembrar que Machado jaacute usara a expressatildeo no
capiacutetulo XIII de seu romance Helena publicado em 1876 quando o personagem Estaacutecio na
tentativa de esquecer o amor pela protagonista Helena decide pedir Eugecircnia em casamento
Naquela mesma noite ouviu Eugecircnia a esperada palavra A alegria que se lhe
derramou nos olhos foi imensa e caracteriacutestica Um pouco mais de recato natildeo era
descabido em tal ocasiatildeo Natildeo houve nenhum o primeiro ato da mulher foi uma
meninice Eugecircnia ignorava tudo ateacute a dissimulaccedilatildeo do sexo Concedendo a matildeo a
Estaacutecio natildeo era uma castelatilde que entregava o precircmio mas um cavaleiro que o recebia
com alvoroccedilo e submissatildeo
Transposto o Rubicon natildeo havia mais que caminhar direito agrave cidade eterna do
matrimocircnio Estaacutecio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr Camargo pedindo-lhe
a matildeo de Eugecircnia carta seca e digna como as circunstacircncias a pediam (Machado de
Assis Helena cap XIII p 133)
Terminadas as referecircncias ao instaurador da dinastia juacutelio-claudiana faccedilamos um salto
ao capiacutetulo CXVI intitulado Filosofia das folhas velhas no qual Braacutes Cubas alega ter ficado
tatildeo triste com o capiacutetulo anterior a este4 pelo fato de sua amante Virgiacutelia ter embarcado para a
Europa No capiacutetulo CXVI vemos referecircncia a outro imperador associado ao escrito
suetoniano nesse caso trata-se do jaacute referido Domiciano
Apoacutes um governo moderado de dez anos o do seu pai Vespasiano seguido por outro
governo tambeacutem moderado de apenas dois anos o do seu irmatildeo Tito de modo contraacuterio
4 O capiacutetulo CXV intitulado O almoccedilo
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Domiciano assume com bastante autoritarismo Durante seus quinze anos de governo o uacuteltimo
imperador flaviano cometeu assassinatos de diversos cidadatildeos importantes incluindo
senadores Essas razotildees acarretaram numa conjuraccedilatildeo para a sua morte E diferente do seu pai
e irmatildeo que foram divinizados apoacutes a morte Domiciano ldquorecebeurdquo do Senado um decreto para
a sua damnatio memoriae essa danaccedilatildeo da memoacuteria significava as retiradas de suas imagens
em bustos inscriccedilotildees etc
Esclarecidos esses pontos sobre o imperador Domiciano voltemos a Braacutes Cubas O
narrador inicia o referido capiacutetulo em questatildeo refletindo pela metalinguagem ldquoFiquei tatildeo triste
com o fim do uacuteltimo capiacutetulo que estava capaz de natildeo escrever este descansar um pouco purgar
o espiacuterito da melancolia que o empacha e continuar depois Mas natildeo natildeo quero perder tempordquo
(Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258) e continua a
reflexatildeo
A partida de Virgiacutelia deu-me uma amostra da viuvez Nos primeiros dias meti-me em
casa a fisgar moscas como Domiciano se natildeo mente o Suetocircnio mas a fisgaacute-las de
um modo particular com os olhos Fisgava-as uma a uma no fundo de uma sala
grande estirado na rede com um livro aberto entre as matildeos (Machado de Assis
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258)
O narrador-personagem machadiano Braacutes Cubas discorre sobre seu desgosto pela vida
e sobre a monotonia agrave qual estava submetido apoacutes a partida da mulher ldquoextraconjugalmenterdquo
amada Virgiacutelia Notamos que para ilustrar de modo exagerado o desacircnimo por parte de Braacutes
Cubas sendo esse abatimento comparado a uma viuvez Machado de Assis apresenta seu
defunto-autor de um modo tatildeo ocioso que fisgava as moscas apenas com os olhos Ou seja ele
eacute apresentado mais ociosamente que o imperador Domiciano que espetava moscas A fim de
captarmos essa menccedilatildeo valemo-nos do capiacutetulo 3 da biografia de Domiciano
Inter initia principatus cotidie secretum sibi horarum sumere solebat nec quicquam
amplius quam muscas captare ac stilo praeacuto configere ut cuidam interroganti
essetne quis intus cum Caesare non absurde responsum sit a Vibio Crispo ne muscam
quidem (Suet Dom 3)
Durante os iniacutecios de seu principado solitaacuterio estava ele habituado diariamente pelas
horas a colher para si nada mais que moscas e prender com um estilete pontudo Para
uma certa interrogaccedilatildeo se acaso natildeo tinha ningueacutem dentro do local com Ceacutesar de
modo adequado teria sido respondido por Viacutebio Crispo que natildeo que nem mesmo
uma mosca
Notamos entatildeo que se por um lado atraveacutes da intertextualidade Machado se volta para
o Domiciano de Suetocircnio com o intuito de descortinar o estado de alma de Braacutes Cubas por
outro Suetocircnio apresenta essa anedota das moscas para condicionar seu leitor a um juiacutezo
negativo sobre o retrato moral de Domiciano que nada fazia em prol da burocracia puacuteblica no
iniacutecio de seu principado Essa anedota sobre Domiciano com Viacutebio Crispo enquanto locutor
jamais deixaria de ser apresentada por Suetocircnio haja vista que os atos burocraacuteticos bem como
as accedilotildees militares e diplomaacuteticas faziam parte das temaacuteticas de suas biografias Somos tentados
a crer que o fato de Suetocircnio ser oriundo da ordem dos equestres e mais tarde ter assumido
algumas funccedilotildees puacuteblicas durante o principado de Trajano e de Adriano tambeacutem teria
contribuiacutedo para sua atenccedilatildeo a esses tipos de chistes
Embora Suetocircnio natildeo seja visto como um historioacutegrafo mas sim como um erudito
bioacutegrafo e natildeo tenha pertencido agrave ordem senatorial sabemos que ele enveredou pela tradiccedilatildeo
Bruno Torres dos Santos
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historiograacutefica senatorial isto eacute aquela que retratava moralmente bem os imperadores
favoraacuteveis ao Senado e moralmente mal os refrataacuterios a esse corpo Isso talvez tenha se dado
graccedilas ao seu contato com o influente senador Pliacutenio o Jovem e ao participar do seu ciacuterculo
de amizades tambeacutem teve contato com os historiadores Taacutecito e Faacutebio Ruacutestico Podemos
depreender que Domiciano natildeo deixou de apresentar motivos para ser exageradamente mal
retratado pela pena suetoniana e por isso a ressalva de Braacutes Cubas que diz ldquose natildeo mente o
Suetocircniordquo
Avancemos ao capiacutetulo CLII intitulado A moeda de Vespasiano no qual encontramos a
uacuteltima menccedilatildeo feita desde seu tiacutetulo a um imperador romano retratado por Suetocircnio Em tal
capiacutetulo na volta do enterro de Lobo Neves Braacutes Cubas refletia sobre o choro mais
precisamente sobre os soluccedilos sinceros da sua amante Virgiacutelia para o marido ao qual tinha
traiacutedo com igual sinceridade
Jaacute sabemos algumas informaccedilotildees acerca do ceacutesar em questatildeo todavia vale reforccedilar que
foi ele quem saiu vitorioso do conhecido historicamente Ano dos Quatro Imperadores em 69
Apoacutes o suiciacutedio ocorrido em 68 do uacuteltimo juacutelio-claudiano ndash o polecircmico Nero ndash que natildeo havia
deixado ningueacutem para linha sucessoacuteria os generais Galba Otatildeo Viteacutelio e Vespasiano atraveacutes
de sucessivos confrontos armados guerrearam entre si ansiando o trono deixado por Nero
Com a vitoacuteria de Vespasiano eacute instaurada a dinastia flaviana Entatildeo passemos ao curto capiacutetulo
das Memoacuterias Poacutestumas em completude
Tinham ido todos soacute o meu carro esperava pelo dono Accendi um charuto afastei-
me do cemiteacuterio Natildeo podia sacudir dos olhos a cerimocircnia do enterro nem dos ouvidos
os soluccedilos de Virgiacutelia Os soluccedilos principalmente tinham o som vago e misterioso
de um problema Virgiacutelia traiacutera o marido com sinceridade e agora chorava-o com
sinceridade Eis uma combinaccedilatildeo difiacutecil que natildeo pude fazer em todo o trajecto em
casa poreacutem apeando-me do carro suspeitei que a combinaccedilatildeo era possiacutevel e ateacute
faacutecil Meiga Natura A taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave
origem e tanto se colhe do mal como do bem A moral repreenderaacute porventura a
minha cuacutemplice eacute o que te natildeo importa implacaacutevel amiga uma vez que lhe recebeste
pontualmente as laacutegrimas Meiga trecircs vezes Meiga Natura (Machado de Assis
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CLII p 294)
Percebemos que na busca pela anaacutelise do estado de alma de sua amada Virgiacutelia o narrador
Braacutes Cubas reverbera que ldquoA taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave origem
e tanto se colhe do mal como do bemrdquo Mas de onde ele teria tirado essas relaccedilotildees semacircnticas
entre o imperador Vespasiano-moeda-taxa-cheiro Pois bem Mais uma vez quem nos traz a
resposta eacute Suetocircnio
Reprehendenti filio Tito quod etiam urinae vectigal commentus esset pecuniam ex
prima pensione admovit ad nares sciscitans num odore offenderetur et illo negante
ldquoAtquin inquit e lotio estrdquo (Suet Vesp 233)
Repreendeu seu filho Tito porque ele Vespasiano teria inventado um imposto sobre
a urina que por aquele foi advertido entatildeo aproximou o dinheiro do primeiro
pagamento desse tributo do nariz de Tito E perguntando-o se acaso natildeo se sentia
incomodado com odor e Tito negando Vespasiano respondeu No entanto eacute
proveniente da urinardquo
Na curiosa anedota Vespasiano criador de um imposto sobre a urina pois muitos
comerciantes as retiravam das latrinas puacuteblicas e as utilizavam para curtir os tecidos que
vendiam repreende o primogecircnito por ter discordado inicialmente da ideia Natildeo temos duacutevidas
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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de que Machado de Assis teve acesso a essa biografia para usar com propriedade em seu
romance nessa cena em que seu narrador busca explicaccedilotildees para fatos aparentemente
contraditoacuterios
Esse excurso pelas duas obras aparentemente distantes e des-relacionadas nos deu a liccedilatildeo
de que o narrataacuterio enquanto entidade leitora fictiacutecia compreende e decodifica os aspectos
concernentes agraves personalidades em apreccedilo os princepes no entanto para o leitor ideal isso se
mostra mais obscuro Machado de Assis aproveita os questionaacuteveis retratos dos ceacutesares de
Suetocircnio para enriquecer sua obra literaacuteria
Assim contribuindo mais para a compreensatildeo do romance machadiano pela anaacutelise da
traduccedilatildeo a qual nos permitiu o estudo sobre as referecircncias agrave histoacuteria agrave cultura e agrave literatura da
Roma Antiga cristalizados pelos Claacuteudio Tito Ceacutesar Domiciano e Vespasiano suetonianos
os esforccedilos empreendidos teratildeo alcanccedilado seu objetivo nessas ressignificaccedilotildees Se as
referecircncias e os eventos atrelados a esses ceacutesares que nos foram ldquodadosrdquo pelas biografias de
Suetocircnio tiverem sido descortinados dentro das Memoacuterias Poacutestumas de Machado de Assis
podemos ficar sem ldquoideias fixasrdquo de que criamos ldquodespropoacutesitosrdquo
IacuteNDICE DE ABREVIACcedilOtildeES
Suet Cl (Suetocircnio Claacuteudio)
Suet Dom (Suetocircnio Domiciano)
Suet Jul (Suetocircnio Juacutelio Ceacutesar)
Suet Tit (Suetocircnio Tito)
Suet Ves (Suet Vespasiano)
DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL
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Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975
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Caligula Translated by J C Rolfe Introduction by K R Bradley Loeb Classical Library 31
Cambridge MA Harvard University Press 1914
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Vespasian Titus Domitian Lives of Illustrious Men Grammarians and Rhetoricians
Poets (Terence Virgil Horace Tibullus Persius Lucan) Lives of Pliny the Elder and
Passienus Crispus Translated by J C Rolfe Loeb Classical Library 38 Cambridge MA
Harvard University Press 1914
Bruno Torres dos Santos
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946511
LUCIacuteOLA E O TRAacuteGICO ESTUDO ACERCA DAS MARCAS DO HEROacuteI
TRAacuteGICO EM UM PERFIL DE MULHER ALENCARIANO
Heitor Victor
RESUMO Recorrer aos claacutessicos para entender nosso tempo natildeo eacute mesmo nenhuma novidade
Apelar para a trageacutedia grega a fim de identificar o que persiste em nossa compreensatildeo acerca
de noacutes mesmos se tornou lugar comum de investigaccedilotildees em diversas aacutereas de interesse Tal
estrateacutegia se repete em razatildeo evidentemente de uma inesgotaacutevel potecircncia alegoacuterica acerca da
existecircncia humana O que pretendo neste breve trabalho eacute uma anaacutelise em linha comparativa
das marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia de Alencar personagem que o proacuteprio autor considera
um de seus perfis de mulher Para tal dialogo com Benjamin que se apresenta como um elo de
compreensatildeo do heroacutei traacutegico figura esta que se mostrou mais longeva do que a proacutepria trageacutedia
helecircnica
PALAVRAS-CHAVE Luciacuteola Traacutegico Heroiacutena
LUCIacuteOLA AND THE TRAGIC ESSAY ABOUT THE MARKS OF THE
TRAGIC HERO IN A WOMAN PROFILE OF JOSEacute DE ALENCAR
ABSTRACT It is no novelty that a return to the classics helps to understand our own time It is
even a commonplace in many research fields that an approach to greek tragedy makes it
possible for us to better understand ourselves Such a strategy still turns out to be suitable
because there is an ongoing possibility of creating allegories of human existence My aim in
this short essay is to perform a comparative analysis of the tragical features of Luacutecia an
important character of Joseacute de Alencars prose who the author himself deems to be a crucial
example of his depictions of the feminine In order to do that I draw upon Walter Benjamins
work which provides us with a comprehensive overview of the tragic hero - who actually
proved himself to be more important than the helenic tragedy itself
KEYWORDS Luciacuteola Tragic Heroine
Introduccedilatildeo
O teatro traacutegico dos gregos natildeo pode mais retornar isso eacute um fato mas eacute marcante a sua
presenccedila ainda em nossa literatura ocidental Analisar o elemento traacutegico natildeo eacute necessariamente
uma novidade mas sempre se mostra desafiador relacionarmos o traacutegico agrave estrutura de
composiccedilatildeo da personagem do romance na literatura moderna O presente trabalho pretende
Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
E-mail heitor-victorhotmailcom
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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pois fazer uma leitura da personagem Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar pioneira da
seacuterie perfis de mulher como construiacuteda sob o signo do traacutegico uma heranccedila legada pelo teatro
grego e que perdura em nossa cultura
O desafio que salta aos olhos eacute certamente as dificuldades de se transpor para o romance
caracteriacutesticas da personagem do texto dramaacutetico ou entender nesta a capacidade de se
apresentar com a profundidade comum ao romance Eacute possiacutevel entender contudo que retiradas
as divergecircncias praacuteticas do meio de veiculaccedilatildeo das narrativas sobram elementos em comum
que residem no imaginaacuterio coletivo e soacute fazem enriquecer o repertoacuterio de leituras que nos
permite a prosa alencariana do seacuteculo XIX
Luacutecia eacute uma das heroiacutenas mais complexas de seu autor capaz de em poucas paacuteginas
fazer o leitor se questionar sobre sua verdadeira natureza ora por sua candura ora por sua ironia
aacutecida apego e desprendimento iacutempares no cenaacuterio romanesco de um tempo que vecirc transbordar
a quantidade de novas e encantadoras personagens Nossa heroiacutena permite-nos destacaacute-la
exatamente por encerrar um signo que extrapola o estilo de seu tempo por meio de grandes
dicotomias autoconsciecircncia e culpa sacrifiacutecio e desejo silecircncio e seduccedilatildeo a personagem se
nos mostra uacutenica no cenaacuterio veloz e dinacircmico dos romances de folhetim
Sublime Decaiacutedo Uma Alegoria
No intuito de criar um elemento intermediaacuterio entre o heroacutei da trageacutedia e o heroacutei traacutegico
que mostrarei estar presente no romance Luciacuteola de Joseacute de Alencar seraacute preciso recorrer agrave
descriccedilatildeo desse heroacutei feita por Walter Benjamin (2011) acerca do drama traacutegico alematildeo
Enquanto aparato cecircnico ou mesmo de criaccedilatildeo literaacuteria encontramos outro contexto e outra
realidade mas o elemento fundamental ainda estaraacute laacute presente O heroacutei traacutegico manteraacute uma
seacuterie de aspectos essenciais que o transformam no portador da anguacutestia humana sem perder o
inexoraacutevel do mito despido ainda mais do movimento de ritualizaccedilatildeo religioso Eacute o traacutegico que
permanece e esse seraacute fundamental para a construccedilatildeo de uma identidade nacional do drama
alematildeo segundo o autor o que nos mostra o potencial desse heroacutei traacutegico no processo de
aproximaccedilatildeo entre o discurso formador e o seu espectador (BENJAMIN 2011)
Um primeiro elemento identificado por Benjamin (2011) que nos interessa no heroacutei
traacutegico eacute o seu caraacuteter alegoacuterico se eacute que posso falar em alegoria do mito que jaacute o eacute em essecircncia
Certamente contudo figura nesse elemento a grande potecircncia reflexiva da personagem traacutegica
que poderaacute ser transportado para Luacutecia Ao relevarmos a ambiccedilatildeo do autor de traccedilar perfis de
mulher1 a alegoria destaca Luacutecia de Emiacutelia e Aureacutelia o que faz evidenciar naquela a tragicidade
em comparaccedilatildeo com estas Deixe-me verificar antes e em linhas mais gerais o que entende
Benjamin por alegoria no drama traacutegico
Devo dispensar em razatildeo de objetivos praacuteticos a discussatildeo do autor acerca das
concepccedilotildees de alegoacuterico e simboacutelico para o barroco e para o romantismo para ir diretamente ao
ponto o alegoacuterico eacute entendido como aquele que supera a unidade da obra e se posiciona com
transcendecircncia agrave medida que o siacutembolo se encerra em si mesmo mostra identidade e um caraacuteter
proacuteprio da obra em que se coloca Benjamin recorre a Goethe para mostrar a concepccedilatildeo
romacircntica de siacutembolo e alegoria ldquoHaacute uma grande diferenccedila entre o poeta procurar o particular
para chegar ao geral e contemplar o geral no particular No primeiro procedimento temos uma
alegoria e o particular serve apenas como exemplo como caso exemplar do geralrdquo
(BENJAMIN 2011 p 171)
1 Natildeo devemos deixar de reconhecer que essa intenccedilatildeo descritiva de construccedilatildeo de um perfil apresenta-se como
um elemento romanesco do narrador de Luciacuteola Como visto no primeiro capiacutetulo da obra quando o narrador
se justifica a G M sua pretensa correspondente ldquoEacute um perfil de mulher apenas esboccediladordquo (ALENCAR 1972
p 121) A todo momento que eu tocar nesse ponto se deve reconhecer que a nossa base reside antes de tudo
nesse caraacuteter narrativo do romance alencariano
Heitor Victor
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 39
A despeito da valoraccedilatildeo feita por Goethe seguiremos a leitura de Benjamin para
entender Luacutecia como o caso particular representativo de um perfil maior o da mulher que
encarna o anjo caiacutedo seu nome daacute a grande indicaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo alegoacuterica mas a mesma
natildeo deixa de aparecer ao longo da obra Reconhecerei em minha anaacutelise na Luacutecia de Alencar
a alegoria da mulher sublime que decai em todo o seu caraacuteter duacutebio mas ainda assim
permanente que morre ao final do romance natildeo agrave toa mas de maneira necessaacuteria para
consolidar a aspiraccedilatildeo alegoacuterica desse perfil de mulher talvez o mais ousado de Alencar
Benjamin reconhece que
o seu (da alegoria) significado eacute aquele que o alegorista lhe atribuir Ele investe-o
desse significado e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele natildeo em sentido
psicoloacutegico mas ontoloacutegico Nas suas matildeos a coisa transforma-se em algo de diverso
atraveacutes dela ele fala de algo de diverso e ela torna-se para ele a chave que lhe daacute acesso
a um saber oculto que ele venera na coisa como seu emblema Eacute nisso que reside o
caraacuteter escritural da alegoria (BENJAMIN 2011 p 196)
Esse seraacute portanto o meu ponto de partida Para natildeo deixar qualquer duacutevida sobre essa
relaccedilatildeo devo me deter nesse tema ainda para mostrar na obra algumas marcas dessa relaccedilatildeo A
comeccedilar pelo elemento dramaacutetico de narraccedilatildeo o recado de G M ldquoao autorrdquo Apoacutes reconhecer
a grandeza da personagem e o valor da narrativa que se seguiraacute dramaticamente posta como
uma publicaccedilatildeo da mesma G M afirma ldquoNatildeo seraacute a imagem verdadeira da mulher que no
abismo da perdiccedilatildeo conserva a pureza drsquoalmardquo (ALENCAR 1972 p 120) Natildeo se pode
desaperceber que eacute usado natildeo a referecircncia definida dedicada agrave Luacutecia mas uma referecircncia geral
a todas as mulheres Eacute exatamente nesse caraacuteter geneacuterico que residiria o valor alegoacuterico de que
trato neste trabalho
Podemos tambeacutem recorrer aos eventos narrados no interior do romance para vermos
personificada a alegoria do anjo caiacutedo seja pela capacidade de transitar com primor entre um e
outro digo entre o angelical e o demoniacuteaco ou seja por encerrar em si mesma os dois
extremos Luacutecia se nos apresenta apenas pela narrativa de Paulo natildeo se pode esquecer e muito
de sua transitoriedade pode residir apenas nas impressotildees desse narrador personagem mas isso
em nada muda o seu caraacuteter alegoacuterico Um episoacutedio que expressa com clareza a ambivalecircncia
de Luacutecia eacute o de seu primeiro encontro iacutentimo com Paulo Em curto espaccedilo de tempo
cronoloacutegico e narrativo vemos uma transformaccedilatildeo que beira a ida pronta do sagrado ao
profano No momento em que avanccedila sobre Luacutecia Paulo reconhece
Quando poreacutem os meus laacutebios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as
formas encantadoras que debuxavam a seda pareceu-me que o sangue lhe refluiacutea ao
coraccedilatildeo As palpitaccedilotildees eram bruscas e precipites Estava liacutevida e mais branca do que
o alvo colarinho do seu roupatildeo Duas laacutegrimas em fio duas laacutegrimas longas e sentidas
como dizem que chora a corccedila expirando pareciam cristalizadas sobre a face de tatildeo
lentas que rolavam (ALENCAR 1972 p 134-135)
Vemos aqui com a reaccedilatildeo genuiacutena de Luacutecia somada agraves laacutegrimas sua comparaccedilatildeo ao
choro da corccedila notamos aqui o temperamento puro que nos surpreende a todos narrador e
leitor Surpresa que se justifica com a mudanccedila abrupta de Luacutecia para entregar a imagem que
nos foi construiacuteda pelos pares de Paulo de que nossa heroiacutena se tratava de uma cortesatilde das mais
haacutebeis
Era outra mulher O rosto cacircndido e diaacutefano que tanto me impressionou agrave doce
claridade da lua se transformara completamente tinha agora uns toques ardentes e
um fulgor estranho que o iluminava Os laacutebios finos e delicados pareciam tuacutemidos dos
desejos que incubavam Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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narina que tremiam com o aneacutelito do respiro curto e sibilante e tambeacutem nos fogos
surdos que incendiavam a pupila negra (ALENCAR 1972 p 136)
Nessa transformaccedilatildeo se apresenta a indistinguiacutevel transiccedilatildeo do sagrado do choro da
corccedila para a respiraccedilatildeo sibilante demoniacuteaca em lasciacutevia Seria inuacutetil continuar enumerando os
momentos em que se evidencia tal transformaccedilatildeo acredito que esses episoacutedios partem da
anteriormente citada alegoria que pode nortear nossa leitura do romance
Natildeo nos seraacute nunca possiacutevel bater o martelo sobre tal questatildeo seria Luacutecia o siacutembolo de
Goethe ou a alegoria de Benjamin Somando contudo as marcas supracitadas a ainda o
reconhecimento de outras marcas do traacutegico preferirei me manter na leitura de Benjamin de
que o alegoacuterico eacute ainda desejaacutevel mesmo no romance exatamente por seu valor transcendente
e assim poderemos entender Luacutecia e seu perfil exclusivo de mulher como tambeacutem dotado de
valor reflexivo e generalista das anguacutestias femininas
Marcas do Heroacutei Traacutegico
As laacutegrimas do episoacutedio transcrito acima servem como indicador do demais elementos
de proximidade entre o heroacutei traacutegico de Benjamin e a Luacutecia de Alencar Tal choro evidencia
uma dor suprimida mas acima de tudo encerra em si quatro aspectos sobre os quais tratarei
neste trabalho o silecircncio a culpa a consciecircncia e o sacrifiacutecio O silecircncio de quem guarda para
si o seu verdadeiro eu suas dores e reflexotildees Eacute nas laacutegrimas que temos o primeiro vislumbre
da profundidade traacutegica de Luacutecia A personagem demonstra nesse exato momento plena
consciecircncia de si de seu destino e sente a culpa que pesa sobre si as laacutegrimas expressam o
ardor do seu sacrifiacutecio pois satildeo sublimadas por sua candura Vejamos adiante o que pretendo
dizer com esses quatro aspectos e sua relaccedilatildeo com o traacutegico
Devo principiar contrariando a ordem anterior pelo sacrifiacutecio para manter a
abordagem de Benjamin O autor entende que o heroacutei traacutegico realiza sua atuaccedilatildeo maior em sua
proacutepria morte o sacrifiacutecio maior e que eacute exatamente entatildeo que o heroacutei se distingue dos demais
indiviacuteduos Benjamin afirma
A marca identificativa da trageacutedia natildeo estaacute pois num conflito de niacuteveis entre o heroacutei
e mundo circundante [] mas sim a forma uacutenica grega de tais conflitos E onde deve
ser procurada essa forma Que tendecircncia se esconde no fenocircmeno traacutegico Por que
causa morre o heroacutei A poesia traacutegica assenta na ideia do sacrifiacutecio (BENJAMIN
2011 p 108)
Luacutecia se sacrifica natildeo apenas porque morre mas se encerra em sua morte uma entrega
definitiva a Paulo e agrave sua irmatilde Ana A morte de Luacutecia eacute decisiva para a construccedilatildeo e para a
profundidade da personagem aleacutem de ser elemento fundamental para a generalidade
constitutiva da alegoria Ainda mais que o sacrifiacutecio do heroacutei traacutegico natildeo eacute um sacrifiacutecio
comum Seguindo ainda o raciociacutenio de Benjamin temos
o sacrifiacutecio traacutegico difere no seu objeto ndash o heroacutei ndash de todos os outros e eacute ao mesmo
tempo inaugural e terminal Terminal no sentido do sacrifiacutecio expiatoacuterio devido aos
deuses guardiatildees de um antigo direito e inaugural no sentido de uma accedilatildeo que em
algum lugar desse direito anuncia novos conteuacutedos da vida do povo (BENJAMIN
2011 p 108)
Ou seja o sacrifiacutecio de Luacutecia eacute terminal expiatoacuterio de sua vida de perfiacutedia Luacutecia
reconhece em seus uacuteltimos momentos para Paulo a sua importacircncia e exatamente por isso por
ele se sacrifica
Heitor Victor
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ndash Paulo Paulo Tu bem sabes que com essa palavra me farias cometer crimes se
crimes fosse necessaacuterio para te provar que eu soacute vivo da vida que me daacutes e me podes
tirar com um sopro Natildeo sou eu criatura tua natildeo renasci pela luz que derramaste em
minha alma Natildeo eacutes meu senhor meu artista meu pai e meu criador (ALENCAR
1972 p 243)
O sacrifiacutecio de Luacutecia como se evidencia natildeo estaacute apenas na morte mas na sua entrega
completa Entrega que se apresenta como sua uacutenica forma de se redimir da vida que levara O
sacrifiacutecio reconhecendo ainda tais aspectos de Benjamin eacute tambeacutem inaugural quando se
direciona a Ana sua irmatilde em quem enxerga a uacutenica continuidade possiacutevel Seja para sua
protegida ou mesmo para a continuidade da vida de Paulo possiacutevel apenas com o encerramento
da sua proacutepria vida
Outro aspecto do heroacutei traacutegico de Benjamin presente em Luciacuteola eacute o silecircncio jaacute
mencionado anteriormente ldquoO heroacutei traacutegico tem apenas uma linguagem que plenamente lhe
corresponde precisamente a do silecircncio Assim eacute desde o iniacuteciordquo (BENJAMIN 2011 p 109)
Esse silecircncio eacute identificaacutevel em diversos momentos em Luacutecia pois evoca a resiliecircncia da
heroiacutena com o seu fardo Natildeo eacute um silecircncio de conformismo ou mesmo qualquer espeacutecie de
natildeo se importar que a toma mas ldquoo testemunho de um sofrimento mudordquo (BENJAMIN 2011
p 109) Eacute com esse silecircncio que Luacutecia arrebata o leitor para o seu drama pessoal natildeo como um
perseguidor ou inquisidor mas como partiacutecipe de seu pesar de sua dor Tal silecircncio aparece
nos momentos de prazer como quando se divertia no banquete noturno na casa de Saacute ldquoLuacutecia
fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria e caiacutera no costumado abatimento e distraccedilatildeo Eu a
contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava
quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaiacutedordquo (ALENCAR 1972 p 152-
153) Ou mesmo em sua face mais sincera jaacute como Maria ldquoQuando cheguei Luacutecia estava soacute
no jardim debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujaacutes tatildeo absorvida em sua
meditaccedilatildeo que natildeo me percebeurdquo (ALENCAR 1972 p 245)
Seguindo com minha anaacutelise comparativa devo abordar o aspecto da consciecircncia
fundamental para a diferenciaccedilatildeo entre uma outra personagem qualquer e o heroacutei traacutegico Esse
aspecto em especial eacute importante para a leitura que apresento por se tratar de algo que
claramente distingue o heroacutei romacircntico convencional daquele que eacute regido pelo signo do
traacutegico O heroacutei do romance desconhece completamente o seu destino e reside precisamente
nisso suas duacutevidas e questionamentos Nossa heroiacutena traacutegica contudo ainda que tambeacutem
romacircntica ndash natildeo o desejamos negar em nenhum momento se mostra consciente do seu caminho
Para esclarecer esse sentido de consciecircncia Benjamin traz uma fala de Lukaacutecs acerca do
reconhecimento da proacutepria morte
Tambeacutem a escolha da morte pelo homem traacutegico eacute um heroiacutesmo soacute aparentemente
heroico soacute assim visto de um ponto de vista humano e psicoloacutegico os heroacuteis
moribundos da trageacutedia ndash escrevia haacute pouco tempo um jovem autor traacutegico ndash estatildeo
mortos muito tempo antes de morrerem (BENJAMIN 2011 p 117)
Apenas a cargo de exemplificaccedilatildeo que se encaixa bem na ideia de reconhecimento da
morte como marca do heroacutei traacutegico podemos citar a consciecircncia apresentada por Luacutecia antes
de sua proacutepria morte ldquondash Se eu pudesse viver haveria forccedilas que me separassem de ti Haveraacute
sacrifiacutecio que eu natildeo fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade Mas Deus natildeo
quis Sinto que a vida me fogerdquo (ALENCAR 1972 p 248)
Devo tratar por fim do quarto aspecto a que me reservei neste trabalho que eacute o da culpa
Sem duacutevidas o eixo central de todo o romance de Alencar A culpa natildeo pode ser entendida
contudo como o arrependimento de seus atos ou mesmo sujeiccedilatildeo completa ao proacuteprio erro A
culpa como elemento traacutegico traz um valor de compreensatildeo Nossa heroiacutena traacutegica natildeo apenas
se lamenta da vida que fora levada a ter mas por meio da culpa ela se reconstroacutei eacute precisamente
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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por meio da culpa que no fim em meio ao embate entre anjo e democircnio prevalece sua face
angelical e a alegoria alcanccedila a sua plenitude Recorro ainda agraves palavras de Benjamin para
clarificar essa noccedilatildeo de culpa no drama traacutegico
No decorrer da accedilatildeo traacutegica um heroacutei assume e internaliza essa culpa que segundo
as antigas normas eacute imposta aos homens a partir de fora pela desgraccedila Ao refleti-la
na sua consciecircncia de si ele furta-se agrave sua tutela demoniacuteaca [] Paradoxal como
todas as manifestaccedilotildees da culpa traacutegica ela consiste apenas numa orgulhosa
consciecircncia de culpa na qual a figura heroica se liberta da servidatildeo que na sua
lsquoinocecircnciarsquo a sujeita agrave culpa demoniacuteaca (BENJAMIN 2011 p 135)
Essa culpa talvez seja dentre os aspectos ateacute aqui elencados o que mais se mostra claro
ao longo de Luciacuteola Nos momentos de maior comoccedilatildeo compartilhamos com Luacutecia esse seu e
genuiacuteno sentimento e eacute precisamente graccedilas a ele que o lado sagrado desse anjo caiacutedo prevalece
e nos faz criar a empatia entre leitor e personagem Vejamos portanto dois casos que
expressam os dois extremos da culpa vivida por Luacutecia Ora tal sentimento se expressa pela
ironia como quando Paulo no evento da casa de Saacute tenta singularizar a sua presenccedila e nossa
heroiacutena rebate com acidez
ndash Ora Haacute tanta mulher bonita Qualquer destas vale mais do que eu acredite Demais
quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado saberaacute o senhor de
quem satildeo os laacutebios que toca Qual Eacute uma mulher Uma presa em que ceva o apetite
Que importa o nome Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe
prepararam esta ceia Conhece-os Nem por isso as iguarias lhe parecem menos
saborosas (ALENCAR 1972 p 153)
Em outro momento contudo vemos a culpa sob outra roupagem da maneira mais
sincera em um de seus momentos de maior entrega
ndash Tu podes me fazer voltar agrave treva de que me arrancaste podes estancar as fontes de
minha existecircncia que manam de tua alma e natildeo me haacutes de ouvir uma soacute queixa A
dor como a alegria seratildeo sempre benditas por que viratildeo de ti Mas Paulo a suacuteplica
do humilde natildeo ofende Deus a permite e exalccedila Natildeo me retires a graccedila e a becircnccedilatildeo
que me deste Salva-me Paulo Salva-me a ti Salva-me de mim mesma
(ALENCAR 1972 p 243)
Natildeo agrave toa seleciono esta uacuteltima fala de Luacutecia para encerrar a argumentaccedilatildeo pois
precisamente aqui a culpa se mostra como o elemento libertador e eacute aqui que Luacutecia talvez tenha
entendido e absorvido o orgulho citado por Benjamin para livraacute-la da tutela demoniacuteaca Liberta-
se finalmente da servidatildeo que a acomete por toda a obra A projeccedilatildeo em Paulo eacute certamente a
projeccedilatildeo em um amor libertador que foi capaz de transfigurar a modalidade da culpa que sentia
Eacute entatildeo que Luacutecia deixa claro que compreende que a dor e a alegria se complementam e assim
encerra o perfil da mulher que decaiu mas que no fim projeta em sua alegoria a clareza do seu
papel em sua proacutepria narrativa Essa compreensatildeo faz de Luacutecia a heroiacutena de Alencar que mais
beira a perdiccedilatildeo a mais altiva e capaz de se assemelhar agrave heroiacutena da trageacutedia e assim como laacute
melhor do que se realmente apresentam homens e mulheres
Conclusatildeo
Ao recorrer portanto agraves estrateacutegias de identificaccedilatildeo da interioridade e de posiccedilotildees
constitutivas do heroacutei traacutegico acredito que se torna possiacutevel clarificar como o teatro grego
passou a atuar sobre o mito por meio de maior variabilidade narrativa do mesmo Essa
possibilidade de apresentar uma personagem mais profunda ainda que por meio da accedilatildeo
Heitor Victor
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dramaacutetica eleva o texto teatral e especificamente a trageacutedia ndash que usa a personagem miacutetica
como forma de apresentar seres mais elevados do que os indiviacuteduos da sociedade ndash ao papel de
ressignificar o mito Eacute por meio dessas personagens dramaacuteticas que a fabulaccedilatildeo estaacutetica do mito
pode apresentar novos argumentos para o meio em que estaacute inserida
Reconhecendo nas estrateacutegias de interpretaccedilatildeo da personagem dramaacutetica a ferramenta
de atualizaccedilatildeo do mito despida do elemento religioso foi possiacutevel analisar com certo grau de
convicccedilatildeo o heroacutei da trageacutedia Evidenciou-se como isso o papel desse heroacutei e sua capacidade
de conduzir efetivamente a narrativa miacutetica para novos caminhos interpretativos possibilitando
essa narrativa a se apresentar sob nova perspectiva O heroacutei visto dessa maneira ganha
destaque como formador de questionamentos e permite ao leitorespectador por meio do
elemento traacutegico estabelecer nova compreensatildeo
Esse heroacutei traacutegico permanece com o seu poder reflexivo mesmo fora do contexto miacutetico
levando-nos ao reconhecimento do traacutegico como formador efetivo de questionamentos Satildeo
estes aspectos traacutegicos que Benjamin identifica como herdeiros do teatro grego no teatro
alematildeo que eu resgato como possiacuteveis na construccedilatildeo de profundidade do heroacutei do romance eacute
precisamente sob esses aspectos que Luacutecia ndash a heroiacutena romacircntica mas dotada do elemento
traacutegico ndash eacute capaz de saltar aos olhos do leitor como dona de seu proacuteprio destino jamais apenas
sujeita ao mesmo Com isso cada traccedilo da heroiacutena de Alencar eacute capaz de se mostrar natildeo apenas
como marca de um perfil de mulher mas tambeacutem o perfil de um aspecto comum a todas as
mulheres Somente por meio da alegoria do anjo caiacutedo se poderia alcanccedilar tamanha projeccedilatildeo
dentro de um cenaacuterio em que o indiviacuteduo eacute professado como ponto central da construccedilatildeo de
uma obra de arte
REFEREcircNCIAS
ALENCAR Joseacute de Obras Imortais da Nossa Literatura Joseacute de Alencar Iracema ndash
Luciacuteola Satildeo Paulo Editora Trecircs 1972
ARISTOacuteTELES Poeacutetica In A Poeacutetica Claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 12ordf ediccedilatildeo 2005
BENJAMIN Walter Origem do Drama Traacutegico Alematildeo Belo Horizonte Autecircntica Editora
2011
CANDIDO Antonio A Personagem do Romance In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo Paulo
Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014
ELIADE Mircea Mito e Realidade Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2ordf ediccedilatildeo 1986
PRADO Deacutecio de Almeida A Personagem no Teatro In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo
Paulo Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946512
CARACTERIZACcedilAtildeO SIMBOacuteLICA ATRAVEacuteS DE SIacuteMILES
ANIMAIS NA ILIacuteADA
Marco Valeacuterio Classe Colonnelli (Universidade Federal da Paraiacuteba)
RESUMO O intuito deste artigo eacute demonstrar a partir de alguns siacutemiles como Homero
produz uma caracterizaccedilatildeo concisa de seus heroacuteis A perspectiva de abordagem neste
estudo eacute comprovar a eficaacutecia do uso dos siacutemiles pelo poeta em consonacircncia com a obra
de Aristoacuteteles Investigaccedilatildeo dos Animais que nos permite aferir certo valor simboacutelico de
determinados animais ainda no seacutec IV aC Partindo de comparaccedilotildees com animais o
poeta produz siacutemiles que formam um quadro imediato e eficaz do heroacutei projetado pela
forccedila simboacutelica e analoacutegica que o animal evoca como termo comparativo na cultura grega
arcaica e claacutessica
PALAVRAS-CHAVES Caracterizaccedilatildeo Iliacuteada Homero siacutemiles eacutepica Aristoacuteteles
SYMBOLIC CHARACTERIZATION THROUGH SIMILES
ANIMALS IN THE ILIAD
ABSTRACT The purpose of this article is to demonstrate from some similes how Homer
produces a concise characterization of his heroes The prospect of approach in this study
is to prove the efficacy of the use of similes by the poet in accord with the work of
Aristotle Research of the Animals which allows us to assess certain symbolic value of
certain animals even in the 4th century BC Starting from the comparison with animals
the poet produces similes that form an immediate and effective framework of the hero
projected by the symbolic and analogue force that the animal evokes as a comparative
term in the archaic and classical Greek culture
KEYWORDS Characterization Iliad Homero Facsimiles Epic Aristotle
1 Sobre o siacutemile homeacuterico
Desde o lanccedilamento do livro de Milman Parry ldquoThe Making of Homeric Verserdquo
que revelou novas facetas para o estudo de Homero o siacutemile passou a ser estudado por
uma infinidade de autores Foacutermulas funccedilotildees oralidade sequecircncias de imagens dentre
outras caracteriacutesticas foram tatildeo sistematicamente investigadas nos siacutemiles que um resumo
sobre essas principais teorias produziria um material muito denso1
E-mail mcolonnellihotmailcom 1 Desde os estudos de Milman Parry duas principais linhas de estudos tecircm debatido calorosamente a
possibilidade de uma caracterizaccedilatildeo de personagens a despeito das foacutermulas e repositoacuterios de palavras
usados nos dois poemas eacutepicos de Homero Adam Parry filho de Milman em seu artigo ldquoLanguage and
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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O siacutemile grosso modo eacute uma comparaccedilatildeo entre coisas Coffey que analisou os
siacutemiles na eacutepica homeacuterica encontra dois grupos um que eacute
composto de uma palavra introdutoacuteria tal como ὡς seguida por um nome que
eacute frequentemente qualificado por um adjetivo ou um particiacutepio [] e casos
nos quais uma ou mais oraccedilotildees relativas contendo uma forma infinitiva ou
verbos flexionados estatildeo ligadas a uma oraccedilatildeo anterior de comparaccedilatildeordquo
(Coffey 1957 60) e outro ldquoo siacutemile longo que consiste em uma sentenccedila
separada introduzida por ὡς ὅτε ou palavras similaresrdquo2
Aqui as duas formas de siacutemiles nos interessam jaacute que a primeira trata de uma economia
em termos de caracterizaccedilatildeo e a segunda um desenvolvimento da situaccedilatildeo da personagem
em conflitos eacuteticos e psicoloacutegicos
Um pouco mais tarde Moulton passa a estudar os siacutemiles a partir de suas
sequecircncias ultrapassando o esquema fechado dos siacutemiles e de suas correspondecircncias
sintaacuteticas para ampliaacute-los ateacute uma anaacutelise semacircntica demonstrando unidades de sentido
maiores na sequecircncia do enredo Duas tambeacutem satildeo as formas encontradas por ele siacutemiles
pares e ainda siacutemiles sucessivos ou seja respectivamente um siacutemile direto simples
menor e outro longo com unidades maiores e liames semacircnticos
Coffey ainda apresenta algumas funccedilotildees que o siacutemile homeacuterico desempenha tais
como movimentaccedilatildeo descriccedilatildeo notaccedilatildeo temporal enumeraccedilatildeo caracterizaccedilatildeo dentre
outras funccedilotildees Especificamente no tocante agrave caracterizaccedilatildeo diversos siacutemiles apresentam
como termo comparativo animais Clarke por exemplo em seu artigo ldquoEntre Homens e
Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo pontua em contraste com teoacutericos que soacute veem o
siacutemile como uma ornamentaccedilatildeo formulaica que ldquoo simbolismo envolvendo animais
selvagens e agressivos eacute muito maior que uma questatildeo de estilo e que eles desempenham
grande papel no retrato de Homero dos problemas eacuteticos e psicoloacutegicos do heroiacutesmordquo
(Clarke 2006 p 2)
Eacute desse ponto de vista entatildeo que partimos em nossa investigaccedilatildeo ou seja
examinar em suas duas formas o potencial que os siacutemiles animais possuem na Iliacuteada
como teacutecnica de caracterizaccedilatildeo3 Eacute necessaacuterio tambeacutem antes determinar para que o
quadro de comparaccedilatildeo seja efetivo o valor simboacutelico que cada animal pode atribuir ao
seu comparante dentro da estrutura do siacutemile e soacute assim procedermos com a anaacutelise de
caracterizaccedilatildeo
2 A simbologia dos animais como elemento caracterizador
Estudar a caracterizaccedilatildeo de uma personagem sem seu caraacuteter (ἦθος) manifesto
pode parecer uma empresa arriscada Entretanto eacute possiacutevel determinar este caraacutecter
atraveacutes de analogias que deixam entrever certos estados eacuteticos e psicoloacutegicos das
personagens Eacute dessa forma que entendemos com Clark que
Characterization in Homerrdquo jaacute havia contestado boa parte dos epiacutetetos formulaicos para demonstrar certa
habilidade do poeta eacutepico em sua construccedilatildeo de caracterizaccedilatildeo No tocante aos siacutemiles M Coffey em
ldquoThe function of the Homeric Similerdquo demonstra como os siacutemiles desempenham diversas funccedilotildees dentre
elas a de caracterizaccedilatildeo e ainda mais Carroll Moulton em ldquoSimiles in the Iliadrdquo e ldquoSimile Sequencesrdquo
aponta como os siacutemiles produzem caracterizaccedilatildeo e influenciam em toda narrativa posterior para aleacutem de
uma foacutermula meramente ornamental respectivamente Importante contribuiccedilatildeo tambeacutem eacute o artigo de
Michel Clark ldquoEntre Homens e Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo que aponta comportamentos eacuteticos e
psicoloacutegicos nos siacutemiles animais 2 Todas as traduccedilotildees satildeo de responsabilidade do autor Texto grego extraiacutedo das ediccedilotildees de Paul Mazon e
Balme 3 Cf Adam Parry 1972 p 1-22
Marco V C Colonnelli
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Os siacutemiles animais satildeo um excelente candidato para gerar tal tipo de sistema
eles satildeo tantos e tatildeo variados nas conexotildees que forjam que seu efeito
combinado pode natildeo apenas ampliar a narrativa mas de fato assimilar
aspectos da aparecircncia das personagens e da personalidade do guerreiro ao
animal (Clark 2006 p 4)4
Um dado relevante neste universo eacutepico eacute que ldquoos animais de Homero tecircm
igualmente o mesmo aparato emocional e cognitivo que os homensrdquo (Clark 2006 11)
Na Iliacuteada poreacutem jamais encontraremos algum tipo de eacutethos (ἦθος) aplicado ao animal
mas somente o contraacuterio disso o animal conferindo eacutethos ao homem Em Homero os
animais estatildeo encobertos por uma carga simboacutelica que os determina em certos aspectos
com traccedilos bem definidos Mas como eacute possiacutevel atribuir um eacutethos ao animal Como ver
tacitamente no animal um eacutethos humano Para entendermos melhor essa relaccedilatildeo eacute
preciso recorrermos a Aristoacuteteles
Em seu tratado Investigaccedilatildeo dos Animais o filoacutesofo faz uma afirmaccedilatildeo que parece
se coadunar com o mundo homeacuterico
Haacute pois tambeacutem em muitos desses outros animais traccedilos de caracteriacutesticas
psiacutequicas que nos homens possuem diferenccedilas mais claras Assim mansidatildeo
e ferocidade doccedilura e violecircncia coragem e covardia temor e ousadia vontade
e astuacutecia estatildeo em muitos animais semelhantes aos homens tambeacutem ateacute em
inteligecircncia
῎Ενεστι γὰρ ἐν τοῖς πλείστοις καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ἴχνη τῶν περὶ τὴν ψυχὴν
τρόπων ἅπερ ἐπὶ τῶν ἀνθρώπων ἔχει φανερωτέρας τὰς διαφοράςmiddot καὶ γὰρ
ἡμερότης καὶ ἀγριότης καὶ πραότης καὶ χαλεπότης καὶ ἀνδρία καὶ δειλία καὶ
φόβοι καὶ θάρρη καὶ θυμοὶ καὶ πανουργίαι καὶ τῆς περὶ τὴν διάνοιαν συνέσεως
ἔνεισιν ἐν πολλοῖς αὐτῶν ὁμοιότητες [] (Arist Investigaccedilotildees sobre os
animais 588 a 19-25)
Aristoacuteteles reconhece duas caracteriacutesticas psiacutequicas diferentes entre os animais e
os homens A primeira eacute de grau ou seja entre os homens uns teratildeo mais outros menos
dessas caracteriacutesticas e a mesma relaccedilatildeo entre homens e animais A segunda eacute por
analogia ou seja por certa semelhanccedila entre as caracteriacutesticas psiacutequicas dos homens
comparadas a certas manifestaccedilotildees nos animais5 Partindo dessa premissa analoacutegica
Aristoacuteteles neste tratado delineia o caraacuteter de alguns animais com base em sentimentos
humanos A analogia que faz a ponte entre essas constituiccedilotildees psiacutequicas se vale tambeacutem
do simbolismo que cada animal possuiacutea jaacute entre os gregos Este simbolismo natildeo tem um
vieacutes religioso ainda que seja necessaacuterio reconhecer essa dimensatildeo simboacutelica na cultura
grega6 mas meramente empiacuterico
Eacute nesse sentido que vamos encontrar em Aristoacuteteles a aplicaccedilatildeo do eacutethos humano
por analogia aos animais Worther tambeacutem assinala que
Aristoacuteteles define o ἦθος como uma capacidade ou potecircncia primeira e natural
possuiacuteda por todos os animais em virtude da qual eles satildeo natildeo somente capazes
4 Moulton discorda de que isso seja possiacutevel 5 Diferenccedila segundo a analogia consiste em estabelecer que a capacidade natural de um dado animal se
encontra sob uma forma diferente mas com a mesma funccedilatildeo ou uma funccedilatildeo anaacuteloga em um outro animal
Assim a arte a sabedoria ou a inteligecircncia do homem existem em outros animais mas sob a forma de
uma capacidade que natildeo faz intervir o elemento racional que pertence propriamente ao homem
(Woerther 2007 138) 6 Natildeo se nega o valor das relaccedilotildees religiosas entre homens e animais mas deve-se tambeacutem ressaltar as
relaccedilotildees sociais e poliacuteticas que esta associaccedilatildeo releva (Bodson 1994 55)
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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de ser afetados por paixotildees como tambeacutem suscetiacuteveis de desenvolver graccedilas
agraves accedilotildees repetidas disposiccedilotildees habituais da alma (Woerther 2007 p 138)
A observaccedilatildeo do filoacutesofo sobre o eacutethos animal tambeacutem eacute extraiacuteda da proacutepria obra
de Homero de quem ele muitas vezes cita passagens para justificar seus escritos
bioloacutegicos o que nos leva a crer que as observaccedilotildees homeacutericas e aristoteacutelicas formam um
todo empiacuterico de observaccedilotildees a respeito da natureza em geral Desse saber empiacuterico o
valor do eacutethos animal passa a figurar como um siacutembolo que o animal possui em si
Vejamos agora como certos valores simboacutelicos dos animais confluem para uma
caracterizaccedilatildeo taacutecita em algumas passagens da Iliacuteada
3 Siacutemiles animais como elementos caracterizadores
Muitos siacutemiles animais podem ser encontrados na Iliacuteada O leatildeo eacute de longe o
animal mais citado como imagem para os heroacuteis entretanto outros animais como o cervo
ou a cabra que satildeo presas tambeacutem abundam nas comparaccedilotildees Alguns animais satildeo
empregados especificamente em algumas passagens de modo natildeo muito usual Em uma
passagem do canto VIII da Iliacuteada Aquiles eacute comparado a um golfinho natildeo soacute pelo locus
de sua caccedila mas tambeacutem por algumas reconhecidas qualidades deste animal Vejamos o
siacutemile
Em seguida o divino Aquiles deixou sua lanccedila na ribeira
Inclinada nos arbustos e mergulhou semelhante a um deus
Portando apenas uma espada e na mente meditava maus atos
E golpeou dando giros dos feridos pela arma uma gritaria elevou-se
Indecorosa enquanto tingia a aacutegua de vermelho
Tal como quando outros peixes dos golfinhos de grande ventre
Fugindo enchem os recantos de uma baiacutea fundeada
Aterrados pois tudo aquilo que consegue apanhar devora
Assim os Troianos para as correntes do terriacutevel rio
Fugiam pelas iacutengremes ribanceiras Aquiles quando cansou
Suas matildeos de matar recolheu do rio doze jovens vivos
Paga pela morte de Paacutetroclo filho de Meneacutecio
Αὐτὰρ ὃ διογενὴς δόρυ μὲν λίπεν αὐτοῦ ἐπ ὄχθῃ
κεκλιμένον μυρίκῃσιν ὃ δ ἔσθορε δαίμονι ἶσος
φάσγανον οἶον ἔχων κακὰ δὲ φρεσὶ μήδετο ἔργα
τύπτε δ ἐπιστροφάδηνmiddot τῶν δὲ στόνος ὄρνυτ ἀεικὴς
ἄορι θεινομένων ἐρυθαίνετο δ αἵματι ὕδωρ
ὡς δ ὑπὸ δελφῖνος μεγακήτεος ἰχθύες ἄλλοι
φεύγοντες πιμπλᾶσι μυχοὺς λιμένος εὐόρμου
δειδιότεςmiddot μάλα γάρ τε κατεσθίει ὅν κε λάβῃσινmiddot
ὣς Τρῶες ποταμοῖο κατὰ δεινοῖο ῥέεθρα
πτῶσσον ὑπὸ κρημνούς ὃ δ ἐπεὶ κάμε χεῖρας ἐναίρων
ζωοὺς ἐκ ποταμοῖο δυώδεκα λέξατο κούρους
ποινὴν Πατρόκλοιο Μενοιτιάδαο θανόντοςmiddot
(Il VIII 17-28)
Em suas investigaccedilotildees Aristoacuteteles nos fornece certos traccedilos do animal que
configuram seu eacutethos Assim em 631a ele afirma que ldquodentre os animais mariacutetimos
muitos sinais de doccedilura e inteligecircncia satildeo anunciados a respeito dos golfinhos assim
como tambeacutem em relaccedilatildeo aos filhos satildeo amorosos e apaixonadosrdquo (Τῶν δὲ θαλαττίων
πλεῖστα λέγεται σημεῖα περὶ τοὺς δελφῖνας πραότητος καὶ ἡμερότητος καὶ δὴ καὶ πρὸς
παῖδας ἔρωτες καὶ ἐπιθυμίαι ndash Arist 631a 8-11) Natildeo obstante esta caracteriacutestica doacutecil
do animal a sua destreza na caccedila tambeacutem eacute exaltada Em outra passagem ele acrescenta
Marco V C Colonnelli
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Fala-se tambeacutem coisas incriacuteveis a respeito da rapidez do animal Parece pois
que dentre todos os animais tanto da aacutegua quanto da terra eacute o mais raacutepido e
tambeacutem saltam por cima dos mastros dos grandes navios Isso lhes acontece
sobretudo quando perseguem algum peixe graccedilas a sua necessidade alimentar
Neste momento pois se o peixe fugir perseguem-no ateacute o fundo do mar por
causa de sua fome [] E girando sobre si mesmos lanccedilam-se como uma
flecha desejando percorrer com velocidade uma grande extensatildeo para respirar
Λέγεται δὲ καὶ περὶ ταχυτῆτος ἄπιστα τοῦ ζῴουmiddot ἁπάντων γὰρ δοκεῖ εἶναι
ζῴων τάχιστον καὶ τῶν ἐνύδρων καὶ τῶν χερσαίων καὶ ὑπεράλλονται δὲ
πλοίων μεγάλων ἱστούς Μάλιστα δὲ τοῦτ αὐτοῖς συμβαίνει ὅταν διώκωσί
τινα ἰχθὺν τροφῆς χάρινmiddot τότε γάρ ἐὰν ἀποφεύγῃ συνακολουθοῦσιν εἰς βυθὸν
διὰ τὸ πεινῆν [] καὶ συστρέψαντες ἑαυτοὺς φέρονται ὥσπερ τόξευμα τῇ
ταχυτῆτι τὸ μῆκος διελθεῖν βουλόμενοι πρὸς τὴν ἀναπνοήν (Arist 631a 20-
27)
A caracteriacutestica do golfinho em sua caccedila parece iluminar o curto siacutemile em que
Aquiles toma as presas de guerra A rapidez do ataque do animal o mais raacutepido dentre
todos alude a proacutepria destreza do heroacutei que tambeacutem eacute raacutepido em seu ataque e efetivo em
sua conquista O ataque eacute motivado pela voracidade da fome do animal e o modo como
ele caccedila tambeacutem estaacute representado atraveacutes dos giros que facilmente o animal executa
Aquiles golpeia girando tal como o golfinho Se o amor filial eacute a caracteriacutestica do animal
natildeo se pode negar que o iacutempeto que move o heroacutei eacute a vinganccedila pela morte de Paacutetroclo
demonstrando a amizade que os unia A comparaccedilatildeo com o golfinho eacute salutar em diversos
aspectos mas sobretudo pela inteligecircncia e pela destreza que o animal evoca na passagem
Outro animal natildeo menos mencionado em siacutemiles do que o leatildeo eacute o catildeo de caccedila
Apesar de ser um animal domesticado sua ferocidade na caccedila eacute muito representada em
siacutemiles Aristoacuteteles nos informa a respeito deles que
A raccedila dos catildees de caccedila em Molosso natildeo diferem em nada das raccedilas de outras
localidades mas a raccedila que pastoreia junto aos rebanhos difere em porte e em
coragem contra animais selvagens E diferem em coragem e dedicaccedilatildeo
tambeacutem a raccedila dos catildees gerados do cruzamento entre os de Molosso e da
Lacocircnia
Τὸ δ ἐν τῇ Μολοττίᾳ γένος τῶν κυνῶν τὸ μὲν θηρευτικὸν οὐδὲν διαφέρει πρὸς
τὸ παρὰ τοῖς ἄλλοις τὸ δ ἀκόλουθον τοῖς προβάτοις τῷ μεγέθει καὶ τῇ ἀνδρείᾳ
τῇ πρὸς τὰ θηρία Διαφέρουσι δ οἱ ἐξ ἀμφοῖν ἀνδρείᾳ καὶ φιλοπονίᾳ οἵ τε ἐκ
τῶν ἐν τῇ Μολοττίᾳ γινομένων κυνῶν καὶ ἐκ τῶν Λακωνικῶν (Arist HA 608
a 27-33)
Duas caracteriacutesticas satildeo apontadas no animal a coragem contra animais selvagens
e a sua dedicaccedilatildeo na caccedila Eacute com esse eacutethos que Heitor eacute pintado no canto VIII da Iliacuteada
no momento em que Zeus o favorece na batalha contra os Aqueus
De novo nos Troianos o Oliacutempio excitou a coragem
E eles impeliram os Aqueus direto agrave profunda trincheira
Heitor entre os primeiros movia-se fero em sua forccedila
Como quando um dos catildees de javalis selvagens ou de leotildees
Toca sucessivamente perseguindo-os com patas ceacuteleres
As coxas ou naacutedegas e tem olhos fixos em quem se vira
Assim Heitor perseguia os Aqueus de longos cabelos
Matando sempre o mais recuado enquanto os outros fugiam
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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῍Αψ δ αὖτις Τρώεσσιν ᾿Ολύμπιος ἐν μένος ὦρσενmiddot
οἳ δ ἰθὺς τάφροιο βαθείης ὦσαν ᾿Αχαιούςmiddot
῞Εκτωρ δ ἐν πρώτοισι κίε σθένεϊ βλεμεαίνων
ὡς δ ὅτε τίς τε κύων συὸς ἀγρίου ἠὲ λέοντος
ἅπτηται κατόπισθε ποσὶν ταχέεσσι διώκων
ἰσχία τε γλουτούς τε ἑλισσόμενόν τε δοκεύει
ὣς ῞Εκτωρ ὤπαζε κάρη κομόωντας ᾿Αχαιούς
αἰὲν ἀποκτείνων τὸν ὀπίστατονmiddot οἳ δὲ φέβοντο
(Il VIII 335-343)
Na passagem acima a coragem tambeacutem encontrada no ethos animal eacute insuflada por Zeus
nos Troianos O siacutemile parece de fato retomar a qualidade deste animal em colocar em debandada
animais ferozes Entretanto a diligecircncia e a dedicaccedilatildeo do animal natildeo fica para traacutes na
representaccedilatildeo jaacute que o catildeo tem os olhos fixos nos animais que lhe satildeo superiores em porte fiacutesico
natildeo descuidando daqueles que viram O siacutemile indica sobretudo o cuidado presente no eacutethos do
animal na dispersatildeo das feras reproduzindo a imagem de heroacuteis mais fracos que inspirados pelos
deuses potildeem em debandada heroacuteis mais robustos Nesse sentido apesar da coragem eacute necessaacuteria
muita cautela na perseguiccedilatildeo para que natildeo se invertam as posiccedilotildees entre caccedila e caccedilador
Retomando a relaccedilatildeo entre os animais acima tambeacutem eacute possiacutevel perceber que o
caraacuteter dessas feras natildeo como habitualmente satildeo representadas ou seja como animais
ferozes e corajosos mas como animais que algumas vezes satildeo covardes Neste caso o
leatildeo tatildeo usado em siacutemiles de batalha para denotar violecircncia ferocidade tambeacutem possui
iacutendice de covardia Aristoacuteteles nas Investigaccedilotildees sobre os Animais observa que
Haacute duas raccedilas de Leotildees haacute uma que eacute mais roliccedila juba encaracolada e covarde
outra mais larga de juba ericcedilada e mais corajosa Fogem algumas vezes
entretanto com o rabo entre as pernas como os catildees Jaacute se viu tambeacutem um leatildeo
que estava a ponto de se lanccedilar sobre um javali e como percebeu que esse se
ouriccedilava fugiu Eacute deacutebil contra golpes em sua barriga mas suporta muitos
golpes em outra parte do corpo e tem um cabeccedila forte
Γένη δ ἐστὶ λεόντων δύοmiddot τούτων δ ἐστὶ τὸ μὲν στρογγυλώτερον καὶ
οὐλοτριχώτερον δειλότερον τὸ δὲ μακρότερον καὶ εὐθύτριχον ἀνδρειότερον
Φεύγουσι δ ἐνίοτε κατατείναντες τὴν κέρκον ὥσπερ κύνες ῎Ηδη δ ὦπται
λέων καὶ ὑῒ ἐπιτίθεσθαι μέλλων καὶ ὡς εἶδεν ἀντιφρίξαντα φεύγων ῎Εστι δὲ
πρὸς τὰς πληγὰς εἰς μὲν τὰ κοῖλα ἀσθενής κατὰ δὲ τὸ ἄλλο σῶμα δέχεται
πολλὰς καὶ κεφαλὴν ἔχει ἰσχυράν
(Arist HA 629 b 33- 639 a8)
A informaccedilatildeo que Aristoacuteteles nos traz natildeo soacute ilustra o siacutemile homeacuterico anterior
como tambeacutem demonstra que o encontro entre javalis e leotildees eram decididos por acaso
jaacute que os dois animais satildeo comumente representados na Iliacuteada como animais ferozes
Assim uma passagem pode ser lida de forma interessante quando dois grandes heroacuteis
satildeo postos frente a frente no canto VII Heitor e Aacutejax
Ambos concomitantes retirando as longas lanccedilas com as matildeos
De suacutebito se encontram parecendo leotildees apreciadores de carne
Ou selvagens javalis cuja forccedila eacute inesgotaacutevel
τὼ δ ἐκσπασσαμένω δολίχ ἔγχεα χερσὶν ἅμ ἄμφω
σύν ῥ ἔπεσον λείουσιν ἐοικότες ὠμοφάγοισιν
ἢ συσὶ κάπροισιν τῶν τε σθένος οὐκ ἀλαπαδνόν
(Il VII 255-257)
Atraveacutes desse siacutemile a passagem demonstra como forccedilas equacircnimes os dois heroacuteis
representados aiacute pela forccedila descomunal do javali e pelo apreciador de carne crua o leatildeo
Marco V C Colonnelli
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O choque entre os heroacuteis no resto da passagem natildeo terminaria jaacute que chegada a noite
o combate foi interrompido pelos arautos
O leatildeo em outros siacutemiles quando confrontado por caccediladores e catildees manifesta
cautela em seus ataques Aristoacuteteles descreve o comportamento do leatildeo face a essa
adversidade
Nas caccediladas sendo observado jamais foge ou se apavora mas se por uma
multidatildeo de caccediladores eacute forccedilado a se afastar retira-se passo a passo e com a
face voltada ao inimigo girando-se de pouco em pouco se ele se encontra
entre arbustos foge rapidamente ateacute chegar em uma clareira momento em que
de novo se afasta passo a passo Em campo aberto quando eacute forccedilado a fugir
para uma clareira por uma multidatildeo corre com passos raacutepidos e natildeo pula Sua
corrida eacute contiacutenua e extensa como a do catildeo
᾿Εν δὲ ταῖς θήραις ὁρώμενος μὲν οὐδέποτε φεύγει οὐδὲ πτήσσει ἀλλ ἐὰν καὶ
διὰ πλῆθος ἀναγκασθῇ τῶν θηρευόντων ὑπαγαγεῖν βάδην ὑποχωρεῖ καὶ κατὰ
σκέλος κατὰ βραχὺ ἐπιστρεφόμενοςmiddot ἐὰν μέντοι ἐπιλάβηται δασέος φεύγει
ταχέως ἕως ἂν καταστῇ εἰς φανερόνmiddot τότε δὲ πάλιν ὑπάγει βάδην ᾿Εν δὲ τοῖς
ψιλοῖς ἐάν ποτ ἀναγκασθῇ εἰς φανερὸν διὰ τὸ πλῆθος φεύγειν τρέχει
κατατείνας καὶ οὐ πηδᾷ Τὸ δὲ δρόμημα συνεχῶς ὥσπερ κυνός ἐστι
κατατεταμένονmiddot (Arist HA 629 b 12-20)
Ainda que muito forte a simbologia do leatildeo na Iliacuteada como o animal mais
intreacutepido dos que se encontram na obra eacute interessante tambeacutem notar que em alguns
siacutemiles de fuga o proacuteprio leatildeo o siacutembolo da coragem eacute usado para representar a fuga de
alguns heroacuteis No canto XI Aacutejax recua da seguinte maneira
Zeus pai de seu trono introduziu o medo em Aacutejax
E atocircnito ele estacou aos ombros laccedilou o escudo de sete camadas
E depois de ver uma multidatildeo fugiu semelhante a uma fera
Que se volta continuamente para traacutes alternando em breves passadas
Tal quando sobre um feroz leatildeo do curral
Dos bois afugentam catildees e pastores
E eles o impedem de arrebatar o melhor dos bois
Vigilantes por toda noite mas ele desejoso de carne
Avanccedila com zelo mas nada encontra pois dardos
Numerosos voam de corajosas matildeos em sua direccedilatildeo
E tochas acesas que teme ainda que sedento
E ao amanhecer retira-se com acircnimo aflito
Assim Aacutejax dos Troianos com o coraccedilatildeo inquieto
Afasta-se muito contrariado pois temia pelas naus dos Aqueus
Ζεὺς δὲ πατὴρ Αἴανθ ὑψίζυγος ἐν φόβον ὦρσεmiddot
στῆ δὲ ταφών ὄπιθεν δὲ σάκος βάλεν ἑπταβόειον
τρέσσε δὲ παπτήνας ἐφ ὁμίλου θηρὶ ἐοικὼς
ἐντροπαλιζόμενος ὀλίγον γόνυ γουνὸς ἀμείβων
ὡς δ αἴθωνα λέοντα βοῶν ἀπὸ μεσσαύλοιο
ἐσσεύαντο κύνες τε καὶ ἀνέρες ἀγροιῶται
οἵ τέ μιν οὐκ εἰῶσι βοῶν ἐκ πῖαρ ἑλέσθαι
πάννυχοι ἐγρήσσοντεςmiddot ὃ δὲ κρειῶν ἐρατίζων
ἰθύει ἀλλ οὔ τι πρήσσειmiddot θαμέες γὰρ ἄκοντες
ἀντίον ἀΐσσουσι θρασειάων ἀπὸ χειρῶν
καιόμεναί τε δεταί τάς τε τρεῖ ἐσσύμενός περmiddot
ἠῶθεν δ ἀπὸ νόσφιν ἔβη τετιηότι θυμῷmiddot
ὣς Αἴας τότ ἀπὸ Τρώων τετιημένος ἦτορ
ἤϊε πόλλ ἀέκωνmiddot περὶ γὰρ δίε νηυσὶν ᾿Αχαιῶν
(Il XI 544-557)
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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Diferente dos outros siacutemiles esse mais longo natildeo soacute caracteriza o recuo do heroacutei
em termos de movimentaccedilatildeo e comportamento mas tambeacutem em termos de iacutendices
psicoloacutegicos que abundam no siacutemile O leatildeo aqui ainda eacute visto como um animal corajoso
feroz sedento por carne em suma em sua simbologia completa Entretanto como a
situaccedilatildeo eacute de fuga e caacutelculo o comportamento animal descrito por Aristoacuteteles representa
bem a maneira como Aacutejax se encontra tanto em termos psicoloacutegicos quanto em situaccedilatildeo
Aacutejax recua foge mas sem a pressa dos covardes sua fuga eacute bem descrita pelo
comportamento do leatildeo que recua lentamente sempre se voltando para traacutes Ademais o
nuacutemero de inimigos na liccedila e os dardos em sua direccedilatildeo o forccedilam ao recuo
Quanto ao plano psicoloacutegico Aacutejax que em sua caracterizaccedilatildeo eacute visto sempre como
voluntarioso e corajoso torna-se temeroso por uma intervenccedilatildeo divina E o conflito
gerado por essas disposiccedilotildees psicoloacutegicas eacute bem expresso pelo comportamento calculado
do recuo do leatildeo Neste afastamento tanto o heroacutei quanto o leatildeo estatildeo com acircnimo aflito
e inquieto e por uacuteltimo Aacutejax deixa o campo de modo involuntaacuterio
A caracterizaccedilatildeo neste siacutemile eacute completa Ela cobre tanto a perspectiva de um
desenvolvimento da accedilatildeo quanto o conflito psicoloacutegico que ocorre com o heroacutei Natildeo se
trata aqui de um siacutemile curto em que teriacuteamos de projetar o comportamento animal para
a compreensatildeo da passagem mas de um siacutemile longo em que o desenvolvimento do
comportamento animal eacute tatildeo magistralmente descrito que podemos consideraacute-lo sem
exageros como o proacuteprio iniacutecio de toda ciecircncia empiacuterica encontrada quase quatro seacuteculos
depois em Aristoacuteteles
3 Conclusatildeo
O uso do siacutemile em Homero eacute extremamente complexo Aleacutem dos siacutemiles naturais
produzidos com as potecircncias da natureza haacute tambeacutem os siacutemiles animais que se tornam
muito impactantes sobretudo porque revelam natildeo soacute facetas de movimentaccedilatildeo mas
tambeacutem de caraacuteter que o animal comporta O mundo natural eacute usado por Homero com
maestria a ponto de produzir situaccedilotildees nos combates em que grande parte do que eacute
descrito jaacute eacute bem conhecido pela audiecircncia em contato com o mundo natural circundante
Hoje talvez para reconhecer a forccedila de seus siacutemiles nos seja preciso talvez aleacutem do
conhecimento do mundo arcaico grego um bom entendimento sobre a vida natural sem
o qual a complexidade das cenas na Iliacuteada pareceraacute meramente fantasiosas
REFEREcircNCIAS
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54 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326
DOI httpsdoiorg1012957principia201946513
OS PROFISSIONAIS DO SOBRENATURAL
MAacuteGOS GOacuteES E PHARMAKEUacuteS
Dulcileide V do Nascimento Braga (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO O presente artigo objetiva ao pressupor que as accedilotildees maacutegicas constituem
praacuteticas passiacuteveis de aprendizado apresentar a anaacutelise da estrutura vocabular dos termos
que classificam os profissionais da magia Busca-se tambeacutem a partir da tradiccedilatildeo miacutetico-
literaacuteria grega demonstrar que tais profissionais tecircm uma praacutetica registrada em diversos
periacuteodos da literatura grega e influenciaram accedilotildees que extrapolam o vieacutes temporal
PALAVRAS-CHAVE Teacutechne maacutegica Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes
THE SUPERNATURAL PROFESSIONALS
MAacuteGOS GOacuteES AND PHARMAKEUacuteS
ABSTRACT This article aims assuming that magical actions constitute practices that can
be learned to present the analysis of the vocabulary structure of the terms that classify
magic professionals It is also sought from the greek mythical-literary tradition to
demonstrate that these professionals have a practice recorded in several periods of greek
literature and influenced actions that go beyond the temporal bias
KEYWORDS Teacutechne magic Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes
Magia do grego mageiacutea segundo Tupet (1976 p X) eacute a praacutetica exercida atraveacutes
de palavras e gestos por um indiviacuteduo que deteacutem certos conhecimentos que o capacitam
a produzir resultados de toda ordem George Luck (1995 p 35) precisa essa definiccedilatildeo ao
afirmar que a magia eacute uma teacutecnica cuja crenccedila se baseia nos poderes localizados na alma
humana e no universo e que pretende impor a vontade humana sobre a natureza ou sobre
os seres humanos
Platatildeo em Leis XI 932e-933b jaacute enumera os principais procedimentos maacutegicos
no seacutec IV aC e a difiacutecil tarefa de analisar essa teacutecnica
Quanto aos malefiacutecios que uns podem causar aos outros por meio de drogas
(pharmaacutekois) jaacute tratamos dos de consequecircncias letais mas ainda natildeo falamos
dos incocircmodos provocados intencionalmente e com premeditaccedilatildeo por meio de
bebidas e alimentos ou com unguentos O difiacutecil na presente exposiccedilatildeo eacute que
haacute no gecircnero humano duas espeacutecies de envenenamento uma eacute a que acabamos
de nos referir e que consiste em causar dano ao corpo pela accedilatildeo natural de
outros corpos a outra por meio de sortileacutegios (magganeiacuteais) encantamentos
(epoidaicircs) e o que se denomina ligadura (katadeacutesesi) chega a persuadir aos
E-mail dulcinascimentobragagmailcom
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
56 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
que querem causar danos a terceiros que o conseguiratildeo com tal recurso como
tambeacutem convence a estes uacuteltimos que ningueacutem lhes pode ocasionar tanto mal
como as pessoas conhecedoras de artes maacutegicas O que possa haver de
verdadeiro em tudo isso natildeo eacute faacutecil conhecer nem depois de sabido deixar
aceitaacutevel para ningueacutem dada a desconfianccedila reinante nos espiacuteritos a respeito
de tais assuntos natildeo vale a pena procurar convencecirc-los sempre que
encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera ou em encruzilhadas ou
talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados de que natildeo devem dar a
menor importacircncia a essas praacuteticas pois acerca de tudo isto ningueacutem tecircm
opiniatildeo formada
Eacute relevante destacar que o conceito de pharmakeiacutea utilizado por Platatildeo natildeo se
restringe exclusivamente ao uso de um phaacutermakon (bebidas alimentos ou unguentos)
mas se prolonga atraveacutes de sortileacutegios encantamentos e ligaduras
Platatildeo ainda questiona a eficaacutecia dessas profissionais de magia cujas habilidades
eram difiacuteceis de se averiguar analisar ou compreender sendo a profissional julgada pela
eficiecircncia ou pelos danos causados por sua praacutetica
O fato de atribuir aos praticantes de magia um caraacuteter perigoso por conta do saber
que detinham e a necessidade de que essas praacuteticas fossem controladas por leis remetem-
nos aos diversos processos de impiedade sofridos por mulheres praticantes das teacutechnai
maacutegicas Dentre elas destacamos o nome de trecircs mulheres a hetaira Frinea de Thespis
que foi acusada pelo seu amante Euthias de utilizar lugares sagrados para a praacutetica de
atos iliacutecitos e por ter formado um thiacuteasos1 sem a autorizaccedilatildeo legal dos atenienses a
sacerdotisa Teoris de Lemos acusada de produzir phaacutermaka para curar a epilepsia e
ainda temos o processo sofrido pela sacerdotisa Ninos baseado nas mesmas acusaccedilotildees
direcionadas agraves duas mulheres citadas anteriormente
Tais atitudes eram consideradas desvios agrave ordem instituiacuteda pela poacutelis que
determinava que qualquer accedilatildeo envolvendo contato direto com uma divindade ou com os
mortos requereria a presenccedila de um sacerdote instituiacutedo pela cidade e responsaacutevel por
impedir qualquer praacutetica que pudesse contaminaacute-la de alguma maneira
Maria Regina Candido (2003 p 169) informa-nos sobre as praacuteticas dessas
mulheres
Acreditamos que Teoris de Lemos assim como Frinea de Thespis difundiam
a crenccedila na possibilidade de o homem efetuar de maneira direta a sua relaccedilatildeo
com as potecircncias sobrenaturais e controlar os processos mais complicados que
envolvem a vida como doenccedilas inimizades e maacute sorte de maneira eficaz e
segura Receitavam banhos infusotildees com ervas e oferendas agraves divindades
ctocircnicas estimulavam os praticantes a fazer incursotildees pelo mundo de seres
sobrenaturais como os mortos O mundo dos homens deixava de atender agraves
necessidades do cotidiano e a alternativa era solicitar auxiacutelio das potecircncias
sobrenaturais
Assim como Platatildeo Candido acredita que a puniccedilatildeo relacionada a estas praacuteticas e
a seus praticantes esteja baseada no resultado advindo das mesmas que nem sempre
acarretava proveito agravequele que solicitava um benefiacutecio maacutegico Portanto por temer a
extensatildeo do poder dessas praacuteticas os atenienses puniam seus praticantes na maioria dos
casos mulheres estrangeiras como uma forma de se precaverem
Tambeacutem salientamos que apesar de a praacutetica maacutegica ser em determinadas
circunstacircncias apontada como uma atividade marginal ou uma forma de corromper a
religiatildeo poliacuteade como mencionamos anteriormente os praticantes destas teacutechnai
1 Palavra utilizada para designar um grupo de pessoas que celebram um deus normalmente com festas
cantos e banquetes
Dulcileide V do Nascimento Braga
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 57
detinham um conhecimento e um poder cuja eficaacutecia seria sustentada por uma crenccedila
coletiva e por uma dependecircncia de uma ordem moral que buscava a autoproteccedilatildeo fato
que garantia a continuidade das diversas formas de magia em todas as classes da
sociedade helecircnica como afirma o texto de Luck (1995 p 42)
Pode a magia antiga se basear em ideias ldquoprimitivasrdquo mas a forma em que nos
foi transmitida natildeo era de nenhum modo primitiva Pelo contraacuterio a magia
nesse sentido existiu somente dentro de culturas altamente desenvolvidas e
constituiu uma parte importante delas Natildeo soacute as classes baixas os ignorantes
e incultos criam nela mas ateacute o final da Antiguidade os ldquointelectuaisrdquo
estiveram convencidos de que poderosas forccedilas sobrenaturais atuavam em
torno deles podendo ser controladas por certos meios
Em grego destacamos trecircs termos para designar os detentores das artes maacutegicas
maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
O nome mais comumente utilizado para designar a feiticeira eacute maacutegos cognato de
mageiacutea magia Segundo Pierre Chantraine (1984 v maacutegos) esta palavra constitui um
empreacutestimo iraniano e no plural maacutegoi designa uma das tribos dos Medos como narra
Herocircdoto I 101 ldquoDeioces unificou a naccedilatildeo dos Medos governando-a A Meacutedia era
composta de diferentes povos os Busos Paretacenos Estrucatos Arizantos Budios e os
Magosrdquo
Segundo ainda o relato de Heroacutedoto haacute entre os maacutegoi aqueles que tecircm a funccedilatildeo
de ser ldquointeacuterpretes de sonhosrdquo Podemos verificar esta atribuiccedilatildeo dos magos em Histoacuteria
I 107 Astiacuteages apoacutes ter um sonho solicitou aos magos inteacuterpretes de sonhos que
revelassem o seu significado em I 120 Astiacuteages para decidir a sorte de Ciro mandou
chamar os mesmos magos que anteriormente tinham interpretado o seu sonho em I 128
vemos isso quando Astiacuteages manda empalar os magos inteacuterpretes dos sonhos que o
haviam convencido a deixar Ciro partir No livro VII 37 haacute uma passagem que ratifica a
funccedilatildeo de inteacuterprete dos sonhos aos magos Nela Xerxes apoacutes ver um eclipse solar
acreditando ser um mau pressaacutegio pede aos seus magos que interpretem o fenocircmeno
Segundo Graf (1994 p 30) aleacutem de serem inteacuterpretes dos sonhos os maacutegoi seriam os
responsaacuteveis pelos sacrifiacutecios reais pelos ritos funeraacuterios e pela adivinhaccedilatildeo
O termo maacutegos parece ter adquirido com o advento da filosofia conotaccedilatildeo
negativa sendo entatildeo utilizado para estigmatizar opiniotildees e comportamentos
considerados socialmente desviados a julgar por Heraacuteclito frag 14 que associa maacutegoi
aos ldquovagabundos da noite bacantes mecircnades e aos mistosrdquo e acredita serem esses homens
merecedores de morte posto que praticam accedilotildees iacutempias Graf (1994 32) discute se esta
caracterizaccedilatildeo de Heraacuteclito reproduziria a atuaccedilatildeo dos maacutegoi pois se ela corresponder agrave
realidade este termo semanticamente poderaacute ganhar a conotaccedilatildeo dos termos aguacutertes e
maacutentis pedinte e adivinho utilizados por Platatildeo na Repuacuteblica II-364b ou ser
interpretada a partir da expressatildeo utilizada no papiro de Derveni profissional dos ritos
Com base nesta definiccedilatildeo poderiacuteamos afirmar que Heraacuteclito ao utilizar a expressatildeo
ldquovagabundos da noiterdquo estaria dizendo que os maacutegoi seriam especialistas de toda uma
seacuterie de ritos privados e secretos como nos afirma o proacuteprio Graf (1994 p 33) ldquoPara um
jocircnico do fim do periacuteodo arcaico o maacutegos era semelhante aos especialistas itinerantes
dos cultos privados homens agrave margem da sociedade ridicularizados por uns e
secretamente temidos por outrosrdquo
Outro termo utilizado para nomear o praticante da magia eacute goeacutes termo cognato
do verbo goaacuteo gemer lamentar-se e que inicialmente designava um cantor que proferia
um lamento ritual pelos mortos ou seja o goeacutes eacute aquele que ldquocombina o ecircxtase com um
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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lamento ritual e a cura ritual com a adivinhaccedilatildeordquo (GRAF 1994 p 35) e que manteacutem
uma relaccedilatildeo estreita com o mundo dos mortos
Formadas a partir da mesma raiz encontramos as palavras goeteiacutea magia assim
como goeacuteteuma procedimento maacutegico fascinaccedilatildeo Heroacutedoto (II 33) ao narrar a histoacuteria
de Etearco o amocircnio aplica o termo goacuteetes para informar-nos sobre a crenccedila por parte
dos nasamones de que os habitantes de uma cidade em que entraram eram feiticeiros e
em IV 105 discorre sobre os relatos que afirmam que todos os Neuros eram goeacutetes
Encontramos ainda o termo goacutees associado a epoidos cantor aquele que canta
palavras maacutegicas para curar por exemplo em Euriacutepides As Bacantes 234-235 em que
encontramos os dois termos na fala de Penteu para fazer referecircncia ao estrangeiro que
estaacute propagando o culto a Dioniso ldquoDizem que veio um forasteiro feiticeiro cantor (goacutees
epoidoacutes) da terra da Iacutediardquo
Em Platatildeo Leis 903b quando a personagem chamada Ateniense ao mencionar
que iraacute convencer algueacutem por meio de argumentos diz ldquoMas ainda precisamos
acrescentar algumas histoacuterias a fim de imobilizaacute-lo com o encantamento (epoidocircn) que
lhes eacute proacutepriordquo E da mesma maneira eacute associado a maacutegos no Elogio agrave Helena de
Goacutergias ao evocar o poder da arte goeacutetica que encanta persuade e transforma Essas
teacutecnicas associadas agrave magia segundo o sofista seriam teacutecnicas do engano pois
desvirtuariam a alma e a opiniatildeo com falsas ilusotildees Desse modo Goacutergias defende Helena
dizendo que ela foi viacutetima da persuasatildeo maacutegica de Paacuteris contra a qual natildeo haveria defesa
O terceiro nome eacute pharmakeuacutes ou pharmakoacutes e designa um preparador de drogas
feiticeiro ou por ser cognato de pharmakeuacuteo significa simplesmente aquele que daacute um
remeacutedio ou veneno a algueacutem ou aquele que realiza uma operaccedilatildeo maacutegica Haacute ainda o
termo pharmakiacutes -idos atribuiacutedo agrave mulher que prepara poccedilotildees ou agrave feiticeira Aristoacutefanes
em As Nuvens 749 utiliza esta palavra como qualificativo para a mulher A expressatildeo
gunaicircka pharmakiacuteda encontrada em Aristoacutefanes refere-se a uma feiticeira da Tessaacutelia
que fazia a lua baixar agrave noite prendendo-a em um espelho
Cabe-nos contudo falar um pouco mais da magia das palavras ou do
encantamento Como jaacute mencionamos o termo goeacutes tem sua funccedilatildeo e significado
associado ao termo epoideacute que revela a natureza maacutegica do emprego da palavra e traz em
sua composiccedilatildeo o termo aoideacute canto que por sua vez estaacute relacionado com o termo audeacute
voz humana O grego distingue a linguagem humana audeacute do termo phoneacute que tanto
pode representar a linguagem humana como o som produzido por um animal
Pierre Chantraine (v aeidocirc) assinala que o prefixo epi- destaca o valor maacutegico do
canto assim epoideacute significa ldquocanto ou palavra maacutegicardquo
Eacute notoacuterio entretanto que o canto faz parte da cultura grega seja atraveacutes do maior
aedo de todos os tempos Homero atraveacutes do teatro da vida privada ou da puacuteblica O que
diferencia portanto essas utilizaccedilotildees da arte maacutegica das goeteacutes A diferenccedila estaacute na
estrutura destes encantamentos na tonalidade com que as palavras eram pronunciadas na
junccedilatildeo de siacutelabas estranhas apresentadas como verdadeiras foacutermulas maacutegicas bem como
aos poderes e divindades invocadas Tal estrutura eacute apresentada no seguinte fragmento
ldquoFebo o que auxilia na adivinhaccedilatildeo vem contente filho de Leto arqueiro infaliacutevel
protetor do mal venha aqui neste momento Vem Vaticinador daacute-me teus oraacuteculos
durante a noite allala allala santalala talalardquo (PGM II)
As foacutermulas maacutegicas do ponto de vista formal portanto tinham uma estrutura
preacute-estabelecida (pronunciada e realizadas de uma determinada maneira) que consistem
em uma seacuterie de instruccedilotildees que foram transmitidas atraveacutes do processo de iniciaccedilatildeo Esse
processo de aprendizado pode ser no acircmbito familiar ou em lugares considerados
sagrados
Dulcileide V do Nascimento Braga
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Temos diversos registros de foacutermulas maacutegicas algumas por exemplo
denominadas eroacuteticas objetivam a realizaccedilatildeo do desejo de um solicitante e tecircm
basicamente a mesma estrutura Como exemplo cito o PGM IV 3
Que fulana me ame a mim fulano filho de cicrano que ela natildeo tenha relaccedilotildees
sexuais nem por frente nem por traacutes nem busque prazer com outro homem
somente comigo de modo que fulana natildeo possa beber nem comer nem amar
nem sofrer nem ter sauacutede que natildeo consiga dormir sem mim arrasta a fulana
pelos cabelos as entranhas sua alma em cada momento de sua vida ateacute que
venha ateacute mim e permaneccedila inseparavelmente unida a mim
Neste encantamento se invoca o espiacuterito de um morto ou de uma divindade
normalmente Tiacutefon Selene ou Heacutecate mas quando se trata de magia eroacutetica se invoca
especialmente a deusa Afrodite e seu filho Eros Essas praacuteticas satildeo acompanhadas de um
gesto do solicitante como por exemplo um suspiro diante da mulher desejada um beijo
na lacircmina que conteacutem o pedido ou a simples repeticcedilatildeo do nome de Afrodite
Teoacutecrito no Idiacutelio 2 com 166 versos demonstra-nos como essas foacutermulas eram
utilizadas ao narrar a histoacuteria de como Simeta executa um ritual maacutegico com o intuito de
reconquistar o amor de Deacutelfis um jovem atleta que a trocou por um novo amor Eis alguns
versos do poema
Trecircs vezes faccedilo uma libaccedilatildeo e trecircs vezes Soberana
Pronuncio estas palavras quer seja mulher quer seja homem
Que com ele dorme agora que um tatildeo grande esquecimento invada
Deacutelfis como aquele que ndash ao que dizem ndash fez Teseu esquecer um
Dia Ariadne de belas tranccedilas (43-47)
Essa ldquoteacutecnicardquo das palavras tambeacutem faz parte da tradiccedilatildeo de uma literatura meacutedica
pois aleacutem de apresentar vaacuterios deuses responsaacuteveis pela cura tinha um deus especiacutefico
para a medicina Ascleacutepio e um lugar de cura Epidauro Ascleacutepio tinha um poder de cura
muito grande acreditava-se que ele inclusive podia ressuscitar os mortos O filho de
Apolo curava a uns com as doces palavras da magia (contos poemas e muacutesica) a outros
oferecia poccedilotildees eficazes ou lhes aplicava ervas em torno de seus membros ou cortava o
mal com o ferro para devolver-lhes a sauacutede
A tradiccedilatildeo meacutedica incluiacutea uma mistura de curas que podiam genuinamente ser
observadas e uma medicina popular considerada maacutegica Uma parte dos que exerciam a
medicina maacutegica eram mulheres embora a maioria delas trabalhasse como parteiras
Os templos de Ascleacutepio foram encontrados em todo o mundo mediterracircneo
Nesses templos o processo de cura consistia mais em repouso massagem e uma dieta
modificada do que aquilo que poderiacuteamos chamar de medicina Um meacutetodo de cura que
se tornou conhecido foi a ldquoincubaccedilatildeordquo em que o doente dormia confinado no templo de
Ascleacutepio na esperanccedila de receber uma revelaccedilatildeo daquele deus por meio de sonho
Aqueles que haviam sido curados faziam contribuiccedilotildees especiais para os templos que
frequentemente incluiacuteam reproduccedilotildees de gesso de quaisquer partes de seus corpos que
tivessem sido curadas Estes eram colocados em exibiccedilatildeo como testemunhos do poder de
cura do deus
Um relato que corroborou esse processo foi o de Eacutelio Aristides orador e tambeacutem
um portador de doenccedila crocircnica que no seacuteculo da nossa era em seus Hieroigrave Loacutegoi nos daacute
uma visatildeo da necessidade que as pessoas tinham pela cura bem como os meacutetodos
empregados para esse fim Depois tentar vaacuterios procedimentos meacutedicos Aristides tornou-
se um devoto de Ascleacutepio As curas prescritas para ele nos sonhos incluiacuteam accedilotildees como
banhar-se em um rio agitado durante o inverno derramar lama em si mesmo antes de se
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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assentar no paacutetio do templo andar sem sapatos todo o inverno e fazer sangria de vaacuterias
partes do seu corpo
A teacutecnica maacutegica portanto ao longo da histoacuteria foi um recurso utilizado como
tentativa de controlar o mundo natural atraveacutes de forccedilas consideradas sobrenaturais Essa
teacutecnica era ensinada somente aos iniciados e envolviam a arte da adivinhaccedilatildeo o preparo
de feiticcedilos e poccedilotildees a realizaccedilatildeo de rituais e cerimocircnias bem como a maneira correta de
se invocar deuses e espiacuteritos Quando realizados dentro dos templos tais procedimentos
eram considerados parte da religiatildeo Quando realizados fora eram classificado como
magia
A ideia de inferioridade feminina que perpassa toda a histoacuteria natildeo tem registro de
quando comeccedilou Desde a Antiguidade temos concepccedilotildees como a de Pitaacutegoras que
relacionava a mulher ao lado negativo ao dizer que ldquoHaacute um princiacutepio bom que criou a
ordem a luz e o homem e um princiacutepio mau que criou o caos as trevas e a mulherrdquo
(PITAacuteGORAS apud BEAUVOIR 1997 p 6)
Os elos que ligaram a imagem da mulher ao obscuro ao caos e ao infortuacutenio
masculino foram delineados e reforccedilados por figuras arquetiacutepicas como Pandora Lilith
e a proacutepria Eva Da mesma maneira as goeteacutes foram chamadas de charlatatildees quando natildeo
obtinham o resultado desejado ao evocarem os deuses e tentarem por teacutecnicas diversas
atender agrave solicitaccedilatildeo de algueacutem que recorria agraves praacuteticas maacutegicas para resolver problemas
particulares Essas solicitaccedilotildees normalmente envolviam uma accedilatildeo que prejudicaria
algueacutem fato que serviu para atenuar a fama negativa das goeteacutes
Ainda hoje encontramos aspectos desse tipo de comportamento maacutegico presentes
nos procedimentos considerados maacutegico-religiosos ou na proacutepria literatura ficcional que
demonstram a forccedila da seleccedilatildeo vocabular e da sonoridade provocada pela repeticcedilatildeo de
palavras e desejos com o uacutenico objetivo de concretizar desejos nem sempre passiacuteveis de
serem expressos em outras circunstacircncias Este eacute o caso da poesia citada abaixo
A VOLTA DA MULHER MORENA Vinicius de Moraes
Meus amigos meus irmatildeos cegai os olhos da mulher morena
Que os olhos da mulher morena estatildeo me envolvendo
E estatildeo me despertando de noite Meus amigos meus irmatildeos cortai os laacutebios
da mulher morena Eles satildeo maduros e uacutemidos e inquietos
E sabem tirar a voluacutepia de todos os frios
Meus amigos meus irmatildeos e voacutes que amais a poesia da minha alma
Cortai os peitos da mulher morena
Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono
E trazem cores tristes para os meus olhos
Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes
Traze-me para o contato casto de tuas vestes
Salva-me dos braccedilos da mulher morena
Eles satildeo lassos ficam estendidos imoacuteveis ao longo de mim
Satildeo como raiacutezes recendendo resina fresca
Satildeo como dois silecircncios que me paralisam
Aventureira do Rio da Vida compra o meu corpo da mulher morena
Livra-me do seu ventre como a campina matinal
Livra-me do seu dorso como a aacutegua escorrendo fria
Branca avozinha dos caminhos reza para ir embora a mulher morena
Reza para murcharem as pernas da mulher morena
Reza para a velhice roer dentro da mulher morena
Que a mulher morena estaacute encurvando os meus ombros
E estaacute trazendo tosse maacute para o meu peito
Meus amigos meus irmatildeos e voacutes todos que guardais ainda meus uacuteltimos
cantos
Dai morte cruel agrave mulher morena
Dulcileide V do Nascimento Braga
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O texto de Viniacutecius dialoga com o texto de Platatildeo citado anteriormente em que
faz menccedilatildeo agraves bonequinhas de cera utilizadas para fazer magia A finalidade dessas
bonecas conhecidas posteriormente por bonecas de vodu era gradativamente extinguir
a funcionalidade de determinados oacutergatildeos (cegar calar impedir de andar roer por dentro)
ateacute provocar a morte ldquodaiacute morte cruel agrave mulher morenardquo
O princiacutepio ldquose natildeo eacute meu natildeo seraacute de mais ningueacutemrdquo estaacute impliacutecito em inuacutemeros
encantamentos contidos nos PGM e representa natildeo soacute o desejo daquelea que foi
abandonadoa de se vingar de quem oa abandonou como tambeacutem o desejo de se livrar
daquelea que emocionalmente lhe causa mal
A voz humana eacute portanto o instrumento que potencializa a forccedila do pensamento
concretizando-os atraveacutes das palavras
Portanto a palavra quer cantada pronunciada em forma de versos ou balbuciada
em forma de encantamentos ou foacutermulas invocatoacuterias faz parte do universo sonoro grego
como forma de perpetuar segredos e manifestar um poder
Ainda hoje tentamos aprender sobre esta teacutechne que capacitava o indiviacuteduo a
concretizar desejos entretanto esbarramos nas lacunas temporais miacuteticas e religiosas
cujas entrelinhas foram desfeitas com o passar dos anos e que intencionalmente ou natildeo
desabilitaram a humanidade a obter o desejado com a mesma constacircncia com que eram
obtidas no passado
Os ritos religiosos continuam a utilizar a magia das palavras mas algumas
palavras tornaram-se impronunciaacuteveis e permanecem trancafiadas nas prisotildees silenciosas
do descaso cabe portanto a noacutes pronunciaacute-las ou natildeo reconhecendo a influecircncia que os
profissionais da magia tiveram e tecircm nas accedilotildees atemporais denominadas sobrenaturais
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946515
A AGOGEacute ESPARTANA
Luciene de Lima Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem O
desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo deviam ter
medo de nada sendo resistentes aos ferimentos odiando qualquer demonstraccedilatildeo de
covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Cada espartano tinha de ser um soldado
perfeito e sua maior gloacuteria era morrer em batalha retornar derrotado jamais Desse modo
toda a sociedade e educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases
atribuiacutedas agraves matildees espartanas era ldquoespero que meu filho volte com o seu escudo ou
deitado sobre elerdquo Assim eacute que este artigo tem por escopo discorrer a respeito da agogeacute
espartana que era um tipo de educaccedilatildeo peculiar com fins extremamente belicosos
PALAVRAS-CHAVE Esparta agogeacute guerra Licurgo
THE SPARTAN AGOGEacute
ABSTRACT In Sparta courage was part of the formation of a manrsquos character The
development of courage was a Spartan obsession Spartans should not be afraid of
anything showing themselves resistant to wounds They hated any type of cowardice and
were extremely dedicated to the poacutelis Each Spartan male had to be a perfect soldier and
the ultimate glory was to die in battle to never come back defeated Given this Spartan
society and education was focused on war One famous sentence related to Spartan
mothers was ldquoI hope my son comes back with his shield - or on itrdquo Thus this article has
as its scope the discussion of the practices of Spartan agogeacute their very peculiar
education with extremely bellicose objectives
KEYWORDS Sparta agogeacute war Lycurgus
Esparta tem de pleno direito um lugar na histoacuteria da educaccedilatildeo A
criaccedilatildeo mais caracteriacutestica de Esparta eacute o seu estado e o Estado
representa aqui pela primeira vez uma forccedila educadora no mais vasto
sentido da palavra (Werner Jaeger)
E-mail oliveira-lluolcombr
A agogeacute espartana
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Esparta tambeacutem intitulada Lacedemocircnia era a principal cidade de uma regiatildeo
denominada Lacocircnia na regiatildeo do Peloponeso A cidade localizava-se agraves margens do rio
Eurotas cercada de montanhas a nordeste
Os primeiros invasores da regiatildeo foram os aqueus esses expulsaram os povos preacute-
helecircnicos que ali habitavam e fundaram a cidade de Lacedemocircnia
A migraccedilatildeo doacuterica eacute o uacuteltimo dos movimentos de povos possivelmente
originaacuterios da Europa Central que a partir da Peniacutensula Balcacircnica entraram na Greacutecia e
se misturaram com os povos de outras raccedilas mediterracircneas ali fixadas primitivamente
constituindo assim o povo helecircnico
Os doacuterios ao se apoderarem da maior parte do Peloponeso invadiram Creta e
foram os responsaacuteveis pela colonizaccedilatildeo de algumas ilhas Ciclaacutedicas e Espoacuteradas Os
espartanos satildeo considerados descendentes dos doacuterios1 esses tinham por caracteriacutestica
peculiar a belicosidade
A cidade de Esparta era conhecida por usufruir de uma eunomiacutea ldquouma boa
legislaccedilatildeordquo De acordo com a tradiccedilatildeo Licurgo apoacutes consultar o oraacuteculo de Delfos2 teria
dado agrave Esparta leis para a vida social e econocircmica citem-se por exemplo a proibiccedilatildeo do
comeacutercio e a utilizaccedilatildeo de metais preciosos que foram substituiacutedos por moedas de ferro
instituiu uma educaccedilatildeo rigorosa as refeiccedilotildees coletivas regulamentaccedilatildeo do casamento a
maneira de viver etc
Os espartanos eram considerados xenofoacutebicos Plutarco escreve que eles natildeo
tinham permissatildeo para sair da cidade pois poderiam trazer costumes estranhos e
desordenados para dentro da cidade Os estrangeiros que residiam em Esparta foram
expulsos com exceccedilatildeo daqueles que faziam algo de uacutetil para a cidade Aleacutem do mais natildeo
comercializavam com o estrangeiro nenhum navio de fora entrava no porto para ali
comercializar (PLUTARCO Licurgo XIV LVII In Vidas Paralelas)
Ora foi o historiador Heroacutedoto o primeiro a retratar Licurgo como o idealizador
da eunomiacutea se dedicando ldquoagraves coisas relacionadas com a guerrardquo (HERODOTO Histoacuteria
I) Na Antiguidade jaacute havia duacutevidas sobre a sua eacutepoca e ateacute mesmo sua existecircncia
Os espartanos ndash ao contraacuterio de outros grupos ndash natildeo desenvolveram relaccedilotildees
culturais e comerciais externas sua crescente populaccedilatildeo soacute encontrou um meio de
expandir-se pelas armas
Xenofonte inclusive indaga como Esparta uma das cidades menos povoadas
tornou-se a mais poderosa e famosa dentre toda a Heacutelade (JENOFONTE La Republica
de los Lacedemonios I 1-2)
O vocaacutebulo que os espartanos empregavam para designar ldquoeducaccedilatildeordquo era agogeacute
que proveacutem do verbo aacutego ldquotransporto conduzordquo Os filoacutesofos Platatildeo (PLATAtildeO Leis
1 O helenista Jaeger faz a seguinte ponderaccedilatildeo a respeito dos doacuterios ldquoa raccedila doacuterica ofereceu a Piacutendaro o
seu ideal de homem loiro de alta estirpe tal como era representado natildeo soacute o Menelau de Homero como
tambeacutem o heroacutei Aquiles e de um modo geral os ldquohelenos de loira cabeleirardquo da antiguidade heroica
(JAEGER 2001 p 111) 2 Esparta pelo vieacutes poliacutetico constituiacutea uma diarquia hereditaacuteria real Acredita-se que Licurgo fora
descendente de uma das famiacutelias reais de Esparta a euripocircntida O legislador tinha um irmatildeo
rei mas apoacutes a morte daquele Licurgo subiria ao trono poreacutem o seu irmatildeo havia deixado um
descendente ainda no ventre de sua esposa Leobotas O legislador foi entatildeo tutor de seu
sobrinho Preocupado com a situaccedilatildeo de Esparta jaacute que o sobrinho era uma crianccedila Licurgo
se dirigiu a Delfos para receber conselhos diga-se leis escritas a rheacutetra em relaccedilatildeo a Esparta
(HEROacuteDOTO Histoacuteria I LXV) Sabe-se muita coisa de Licurgo por meio de Plutarco em
Vida de Licurgo
Luciene de Lima Oliveira
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659d) e Aristoacuteteles (ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1321) tambeacutem se referem a agogeacute como
ldquoeducaccedilatildeordquo
Entrementes Marrou emprega o termo ldquoadestramentordquo para traduzir agogeacute e
chama a atenccedilatildeo para o fato de ser ldquouma condiccedilatildeo necessaacuteria senatildeo suficiente para o
exerciacutecio dos direitos ciacutevicosrdquo (MARROU 1966 p 41) O helenista considera que a
educaccedilatildeo em Esparta possui natildeo soacute um lugar especial na histoacuteria da educaccedilatildeo como
tambeacutem na cultura grega (Op cit p 33)
Todos os cidadatildeos espartanos tinham uma participaccedilatildeo ativa na educaccedilatildeo militar
constituindo uma casta aristocraacutetica a priori lembrando a educaccedilatildeo da antiga nobreza
grega Natildeo obstante foi mais tarde estendida agravequeles que natildeo faziam parte da nobreza
Jaeger expotildee que mesmo que Licurgo tenha realmente existido e criado a rheacutetra
ldquoleis escritasrdquo que o poeta Tirteu (4W 1-10) bem a conhecia jaacute no seacuteculo VII aC natildeo
adiantaria muito saber a respeito da origem da educaccedilatildeo espartana conforme Xenofonte
a descreve (JAEGER 2001 p 114)
O pesquisador considera tambeacutem a agogeacute como ldquoo adestramento espartanordquo que
nada mais era do que o ideal do movimento educativo do seacuteculo IV aC (Op cit p 115)
O helenista destaca que a crenccedila de que a educaccedilatildeo espartana era uma preparaccedilatildeo militar
tinha sua origem na Poliacutetica de Aristoacuteteles Platatildeo igualmente jaacute havia definido essa
ideia quando relata nas suas Leis o espiacuterito do Estado de Licurgo (Op cit p 110)
As crianccedilas futuros guerreiros de Esparta eram ldquocriadasrdquo anatropheacute por seus
pais em suas casas ateacute os sete anos de idade depois essa tarefa era assumida pelo
governo sendo treinados para a obediecircncia em situaccedilotildees penosas e difiacuteceis3
Desse modo Licurgo natildeo colocou a educaccedilatildeo nas matildeos nem de mercenaacuterios nem
de servos comprados os pais natildeo poderiam educar seus filhos a seu bel prazer Quando
completavam sete anos eram divididos em grupos a fim de serem educados juntos e
brincassem entre si aprender e estudar uns com os outros Aquele que sobressaiacutesse e fosse
mais valente em combate se tornaria o liacuteder de todo o grupo os outros deveriam obedecer
as suas ordens O legislador considerava a educaccedilatildeo das crianccedilas como a coisa mais bela
que um legislador pudesse estabelecer (PLUTARCO Licurgo XXV XXXIII In Vidas
Paralelas)
Dos sete aos quinze anos eram instruiacutedos nas letras e nos caacutelculos e naturalmente
nos hinos do poeta Tirteu que ressaltavam a bravura e a coragem destemida
Na etapa final entre dezesseis e vinte anos quando denominados de eireacuten um
pouco antes de entrarem no serviccedilo da poacutelis eram treinados a manusear as armas na luta
com lanccedilas e espadas no arco e flecha Com isso a carga dos exerciacutecios e as operaccedilotildees
militares simuladas nas montanhas ao redor da poacutelis eram aumentadas
Plutarco daacute o seguinte testemunho
Quanto agraves letras aprendiam somente o necessaacuterio e em suma todo o
aprendizado consistia em bem obedecer suportar o trabalho e obter a vitoacuteria
em combate Por essa razatildeo agrave medida que avanccedilavam em idade aumentavam-
lhes tambeacutem os exerciacutecios corporais raspavam-lhes os
cabelos faziam-nos andar descalccedilos e os constrangiam a brincar juntos a maior
parte do tempo inteiramente nus depois quando chegavam agrave idade de doze
anos natildeo mais usavam saios daiacute por diante pois todos os anos lhes davam
somente uma tuacutenica simples o que era causa de andarem sempre sujos e
3 Plutarco daacute testemunho que estrangeiros se dirigiam ateacute a Lacocircnia para contratarem amas para criarem
seus filhos (PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)
A agogeacute espartana
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ensebados como aqueles que natildeo se lavavam nem se untavam senatildeo em certos
dias do ano quando os faziam gozar um pouco dessa doccedilura Deitavam e
dormiam juntos sobre enxergas que eles proacuteprios fabricavam com pontas dos
juncos e caniccedilos que cresciam no rio Eurotas os quais eles proacuteprios deviam ir
colher e quebrar somente com as matildeos sem nenhuma ferramenta mas no
inverno ajuntavam a isso e misturavam no meio o que se chama Lycophanos
porque parece que essa mateacuteria tem em si um pouco de calor (PLUTARCO
Licurgo XXIV In Vidas Paralelas)
A agogeacute propriamente dita se iniciava aos sete anos e finalizava ateacute os vinte anos
compreendendo portanto um periacuteodo de treze anos Havia a supervisatildeo de um
paidonoacutemos uma espeacutecie de magistrado especial
Marrou oferece a seguinte divisatildeo da agogeacute agrupados em trecircs ciclos (MARROU
1966 p 42)
Oitavo ano ao deacutecimo primeiro ano
a) rhobiacutedas (termo obscuro)
b) promikkizoacutemenos (meninote)
c) mikki(khi)zoacutemenos (menino)
Deacutecimo segundo ano ao deacutecimo quinto ano
a) pratopaacutempais (rapaz jaacute maduro de primeiro ano)
b) hatropaacutempais (rapaz jaacute maduro de segundo ano)
c) melleiacuteren (futuro irene)
d) melleiacuteren (irene de segundo ano)
Deacutecimo sexto ano ao vigeacutesimo ano
a) eireacuten de primeiro ano
b) eireacuten de segundo ano
c) eireacuten de terceiro ano
d) eireacuten de quarto ano
e) proteicircras (irene-chefe)
O historiador francecircs pontua que os meninos espartanos eram divididos em
unidades (iacutelai ou ageacutelai) comandadas pelos jovens maiores os proteicircrai de vinte anos
que eram os mais velhos dentre os irenes (Op cit p 43)
Plutarco lembra que os espartanos ldquonatildeo usam de muita linguagemrdquo eram
lacocircnicos ldquopessoas de poucas palavrasrdquo como resultado natildeo se expressavam com
propriedade mas nada os impedia de serem bem compreendidos pelos ouvintes O
bioacutegrafo sublinha que o proacuteprio Licurgo era breve no falar Interessante destacar que era
proibido entrar em Esparta algum retoacuterico para ensinar a arte da persuasatildeo ao povo Natildeo
obstante os espartanos eram exiacutemios compositores de belos cacircnticos em que incitavam
a coragem (PLUTARCO Licurgo XIV XL XLIV In Vidas Paralelas)
Quando estavam reunidos em Conselho os cidadatildeos espartanos natildeo poderiam
deliberar indagar seus superiores muito menos apresentar alguma opiniatildeo lhes era
permitido somente aprovar ou reprovar os informes propostos pelos reis ou senadores
(Op cit X)
O futuro guerreiro tinha de ter por haacutebitos a modeacutestia andar nas ruas com as
matildeos dentro do manto e caminhar em silecircncio sem dirigir o olhar a nenhum lugar apenas
olhando em direccedilatildeo a seus proacuteprios peacutes O historiador Xenofonte compara o jovem
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espartano que anda em silecircncio e de olhos baixos a uma estaacutetua de virgem
(JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)
Entre vinte e trinta anos os espartanos eram obrigados a se casar mas a vida
familiar natildeo era lhes permitida soacute depois dos trinta podiam deixar de dormir nos
acampamentos militares
A fim de dotar de coragem os seus infantes em Esparta havia a kryptiacutea um
ldquoesquadratildeo de extermiacuteniordquo que estimulava os jovens selecionados a caccedilarem sozinhos ou
em grupos os hilotas ou seja os escravos que por um acaso andassem desgarrados ou
que de alguma forma representassem pelo seu vigor fiacutesico uma ameaccedila agrave seguranccedila da
poacutelis Os hilotas quando localizados eram vitimados pela espada ou pela lanccedila armas
que o grupo de jovens sempre trazia consigo (PLUTARCO Licurgo LVIII In Vidas
Paralelas)
Os jovens espartanos estavam sempre forccedilando seus corpos ao limite cultivando
a excelecircncia da forccedila fiacutesica Aristoacuteteles destaca que de entre as cidades que mais se
preocupavam com a educaccedilatildeo infantil a maioria procurava aperfeiccediloaacute-la por meio de uma
disposiccedilatildeo atleacutetica O filoacutesofo sublinha que os espartanos davam para os futuros
guerreiros trabalhos aacuterduos como se essa atitude fosse vista como adequada para o culto
da bravura (ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1338b 10-15)
O estagirita ressalta que natildeo eacute contra a ginaacutestica mas deve-se praticaacute-la com
moderaccedilatildeo ateacute a adolescecircncia evitando exerciacutecios forccedilosos pois podem resultar em
prejuiacutezos para o corpo Daacute como exemplo que de entre os vencedores dos jogos
Oliacutempicos tem apenas dois ou trecircs espartanos vitoriosos Acredita que isso se daacute ao fato
de terem sido sujeitos desde crianccedila a treinos fiacutesicos extremos que acabaram por exaurir
suas forccedilas (Op cit II 1338b 35-40 1339a 1-5)
Aristoacuteteles sublinha que toda a organizaccedilatildeo legislativa dos espartanos tinha como
objetivo uma forma de virtude o valor guerreiro uma vez que eacute uacutetil para dominar Como
resultado disso o vigor e a forccedila dos espartanos foram preservados enquanto estiveram
em guerra mas houve um decliacutenio a partir do momento que alcanccedilaram a supremacia Na
verdade natildeo sabiam viver em paz aleacutem do mais natildeo haviam se exercitado em outra
disciplina superior agrave arte da guerra (Op cit II 1271b 1-10)
Jaeger sustenta que na vida dos espartanos por meio de uma educaccedilatildeo
diferenciada percebe-se um ideal de educaccedilatildeo anaacutelogo ao que Platatildeo propotildee na
Repuacuteblica A propoacutesito Platatildeo e outros teoacutericos da educaccedilatildeo posteriores tiveram Esparta
por paradigma em muitos aspectos (JAEGER 2001 p 112)
A necessidade de imposiccedilatildeo dos espartanos sobre a grande maioria de hilotas
(escravos que natildeo possuiacuteam direito algum) que a qualquer momento poderiam se
rebelar teve muita importacircncia na formaccedilatildeo da agogeacute espartana
Ora com as muitas conquistas espartanas havia sempre a iminecircncia de uma
revolta por parte dos povos conquistados Eacute fato que os povos conquistados constituiacuteam
em maior nuacutemero do que os conquistadores espartanos
Acredita-se que no final do seacuteculo VI aC depois da conquista da Messecircnia o
estado espartano completou sua organizaccedilatildeo transformando-se em um verdadeiro
ldquoacampamento militarrdquo permanente
Os resquiacutecios arqueoloacutegicos atestam que ateacute o seacuteculo VI aC Esparta era
dominada por uma aristocracia de grandes proprietaacuterios Devido agraves duas grandes guerras
pela conquista da Messecircnia houve um aumento consideraacutevel daqueles que poderiam
participar da funccedilatildeo guerreira e que se beneficiaram pela distribuiccedilatildeo de lotes de cleroacutei
A agogeacute espartana
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da regiatildeo conquistada Por outro lado os messecircnios foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de
hilotas A respeito da segunda guerra da Messecircnia4 Mosseacute escreve
Esparta parece ter se fechado em si mesma com a decadecircncia do artesanato e
o desaparecimento do uso da moeda de prata Diante da massa de populaccedilotildees
dependentes (hilotas da Lacocircnia e da Messecircnia periecos da Lacocircnia motacos
neodamodos etc) a classe guerreira dos homoioiacute dos semelhantes formada
pelo conjunto dos cidadatildeos espartanos passa a ser um grupo privilegiado que
vive recluso em perpeacutetuo estado de defesa Essa eacute a origem da vida austera que
tanto impressionava seus contemporacircneos e permitia a Esparta desempenhar
papel preponderante no mundo grego (MOSSEacute 2004 p 121) Com efeito
muitas disposiccedilotildees referentes agrave educaccedilatildeo e ao casamento natildeo deixam de evocar
os programas educativos elaborados por Platatildeo na Repuacuteblica e nas Leis Platatildeo
teria tomado o modelo espartano como inspiraccedilatildeo ou nos seacuteculos seguintes
esse modelo teria sido construiacutedo a partir das disposiccedilotildees imaginadas por
Platatildeo para suas cidades ideais Essa eacute uma pergunta de resposta difiacutecil O que
eacute inquestionaacutevel eacute o caraacuteter peculiar da educaccedilatildeo espartana essa agogeacute que
espantava os atenienses da eacutepoca claacutessica especialmente na medida em que
tambeacutem atingia as mulheres (Op cit p 189)
Ressalte-se que a guerra eacute um dos fenocircmenos a ser evitado mas que
frequentemente ocorre nas sociedades humanas Em O Homem Grego obra organizada
por Vernant o ensaio de Garlan denominado ldquoO Homem e a Guerrardquo eacute relevante pois
de acordo com Garlan embora o homem grego ldquonatildeo pudesse ser definido como algueacutem
que gosta da violecircncia pela violecircnciardquo isto eacute como um homo militaris muitos satildeo os
conflitos em que eles se envolveram sobretudo na eacutepoca arcaica e claacutessica Para Garlan
eacute ldquocomo se a paz fosse desde o primeiro momento considerada precaacuteria ou mesmo
concebida como uma espeacutecie de treacutegua prolongadardquo (GARLAN apud VERNANT 1994
pp 49-50)
Em uma sociedade predominantemente guerreira como a espartana a covardia de
um guerreiro era vista com repugnacircncia assim a desonra em Esparta acompanhava os
covardes sendo preferiacutevel a morte a uma vida infame e desonrosa Eacute um guerreiro que
natildeo merecia nenhuma timeacute ldquohonrardquo pois tem como aliados a atimiacutee ldquodesonrardquo e a
kakoacutetes ldquocovardiardquo Consequentemente este homem eacute algueacutem sem aidoacutes ou seja
algueacutem que natildeo eacute digno ldquode respeitordquo ldquode consideraccedilatildeordquo Haacute pois uma conexatildeo clara
entre aidoacutes ldquorespeitordquo e timeacute ldquohonrardquo na sociedade espartana
O binocircmio aidoacutes ldquorespeitordquo e aiskhryacutene ldquovergonhardquo satildeo vocaacutebulos que estatildeo
presentes no estatuto ciacutevico de Esparta como pontua Nicole Loraux (LORAUX 1989 p
82)
O desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo
poderiam ter medo de nada deveriam ser resistentes aos ferimentos odiando qualquer
4 Houve duas guerras entre Messecircnia e Esparta Na primeira os espartanos sob a lideranccedila do rei
Theopompo foram vencedores Os messecircnios eram comandados por Aristomenes Segundo Heroacutedoto
(HEROacuteDOTO Histoacuteria VIII 1312) o rei Theopompo pertencia agrave oitava geraccedilatildeo antes de Leoticidas
que governou de 491 a 469 aC Depois de cinquenta anos de opressatildeo os messecircnios se revoltaram com
a ajuda de aliados de Argos Arcaacutedia e Pisa Essa rebeliatildeo eacute conhecida como Segunda Guerra da
Messecircnia Campbell afirma que eacute difiacutecil estabelecer a cronologia das duas guerras (CAMPBELL 1967
p 169) Costuma-se contudo fixar o periacuteodo da primeira guerra em torno da segunda metade do seacuteculo
VIII aC mais precisamente entre 735 e 715 aC e a segunda guerra que teria durado aproximadamente
vinte e dois anos na segunda metade do seacuteculo VII aC por volta de 640-650 aC
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demonstraccedilatildeo de covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Toda a sociedade e
educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases atribuiacutedas agraves matildees
espartanas era ldquoespero que o meu filho volte com o seu escudo ou deitado sobre elerdquo
Cada espartano era formado para ser um soldado perfeito e sua maior gloacuteria era
morrer em batalha retornar derrotado jamais Digno de nota satildeo os versos tirteanos
ldquoLutemos com ardor por esta terra e pelos filhos morramos sem pouparmos nossas
vidasrdquo (10 W 13-14)
Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem A
propoacutesito Platatildeo era tambeacutem a favor da valentia de um guerreiro no campo de batalha
(PLATAtildeO Repuacuteblica 468e)
Os dois primeiros versos do fragmento 10W de Tirteu pontua dessa mentalidade
de morrer pela poacutelis ldquoeacute belo morrer caindo entre os combatentes das primeiras filas um
homem valente ao combater por sua terrardquo (10W 1-2)
A morte eacute bela quando eacute a de um heroacutei que morre pela cidade Esta ideia daacute agrave
morte o sentido de um ldquosacrifiacuteciordquo do proacuteprio cidadatildeo em prol de um bem mais alto ldquoa
morte gloriosardquo No mesmo fragmento aliaacutes o poeta contrasta a morte gloriosa no campo
de batalha com a vida desventurada e errante do homem que natildeo cumpriu na guerra seus
direitos de cidadatildeo e se viu na necessidade de deixar a cidade (10W 9-12)
A linguagem de Tirteu eacute em grande parte herdeira de tradiccedilatildeo eacutepica De um modo
geral as suas elegias demonstram um amplo conhecimento do vocabulaacuterio da Iliacuteada e da
Odisseia quando descreve a luta sangrenta e o heroiacutesmo guerreiro O ideal espartano eacute
proacuteximo da epopeia no que diz respeito agrave bravura apesar de pertencerem a tempos
literaacuterios diferentes
Jaeger destaca que os versos tirteanos eacute o primeiro testemunho do ideal poliacutetico e
guerreiro tendo mais adiante a sua realizaccedilatildeo na totalidade da educaccedilatildeo espartana ldquoos
seus poemas deixam ver claramente que a educaccedilatildeo espartana tal como as eacutepocas
seguintes a conheceram natildeo era uma coisa acabada mas estava em processo de
formaccedilatildeordquo (JAEGER 2001 p 115)
Qualquer fraqueza demonstrada era vista como pusilanimidade algo
veementemente repelido do seio daquela sociedade
Natildeo comeceis a fuga vergonhosa nem o medo
mas tornai grande e ardoroso o coraccedilatildeo no peito
natildeo ameis a vida ao combaterdes contra homens (10 W 16-18)
O modo de vida era regulamentado em funccedilatildeo das necessidades do Estado e
tinham consciecircncia de natildeo pertencerem a si proacuteprios mas agrave poacutelis
Em suma estimavam todos que natildeo tinham nascido para servirem a si mesmos
antes para servir o paiacutes e portanto se outra coisa natildeo lhes era recomendada
continuavam sempre a ir ver o que faziam os meninos e a ensinar-lhes alguma
coisa que resultasse em utilidade puacuteblica ou ainda a aprender eles proacuteprios
com os que eram mais idosos do que eles (PLUTARCO Licurgo LI In
Vidas Paralelas)
Licurgo teria imposto que os espartanos tivessem uma vida de austeridade por
exemplo diz-se que eram obrigados a fazerem as refeiccedilotildees em comum em torno de um
caldo negro (PLUTARCO Licurgo XXI In Vidas Paralelas)
Plutarco daacute testemunho dessa coletividade
A agogeacute espartana
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Em suma acostumou os cidadatildeos a natildeo quererem e natildeo poder jamais viver soacutes
antes serem por assim dizer colados e incorporados uns com os outros e a se
acharem sempre juntos como as abelhas em torno dos superiores saindo de
si mesmos quase por um arrebatamento de amor para com o paiacutes e de desejo
de honra para servir inteiramente ao bem da coisa puacuteblica (Op cit LIV In
Vidas Paralelas)
Eacute bom lembrar que Licurgo ordenou que os espartanos fizessem as mesmas
refeiccedilotildees juntos era proibido se alimentarem agrave parte e em particular em grandes
banquetes (Op cit XV In Vidas Paralelas)
Conveacutem citar Aristoacuteteles ldquoacreditamos que a amizade eacute o maior dos bens para as
cidades porquanto pode ser o melhor meio de evitar revoltasrdquo (ARISTOacuteTELES Poliacutetica
II 1262b 7-8)
O estagirita faz uma criacutetica a respeito das refeiccedilotildees comuns intituladas de phidiacutetia
Para o filoacutesofo essas refeiccedilotildees deveriam ser pagas pelo tesouro puacuteblico tal qual em Creta
Entretanto em Esparta os cidadatildeos tinham de fazer uma contribuiccedilatildeo ateacute os pobres que
tinham dificuldades de arrumar dinheiro para essas refeiccedilotildees O objetivo de Licurgo era
que essas refeiccedilotildees fossem democraacuteticas ldquoa maneira espartana tradicional de fixar o
limiar da cidadania consiste em privar de participaccedilatildeo o que natildeo pode pagar a taxa das
refeiccedilotildees comunsrdquo (Op cit II 1271a 26-30)
De acordo com o historiador Xenofonte nas accedilotildees de guerra os lacedemocircnios
(espartanos) usavam traje vermelho para que natildeo se percebessem as manchas de sangue
Se morressem em combate eram enterrados com essas tuacutenicas (JENOFONTE La
Republica de los Lacedemonios)5
Na agogeacute espartana a sophrosyacutene (temperanccedila moderaccedilatildeo autocontrole) tem um
caraacuteter social sendo um comportamento imposto regulamentado marcado pelo
comedimento que o jovem deve observar em todas as circunstacircncias comedimento em
seu andar em seu olhar em suas expressotildees comedimento diante das mulheres em face
dos mais velhos comedimento aos prazeres agrave bebida
Desse modo o futuro guerreiro era exercitado em dominar seus extintos Na
verdade a agogeacute era precisamente destinada a experimentar esse poder de domiacutenio de
si A sophrosyacutene submete assim cada indiviacuteduo em suas relaccedilotildees com o proacuteximo em
contraste com a hyacutebris a ldquodesmedidardquo a ldquotransgressatildeordquo
O ideal da sophrosyacutene era o nada em excesso haacute uma tendecircncia na qual a
sophrosyacutene e a hyacutebris se encarnam respectivamente nos velhos e nos jovens (ideia que
seraacute mais clara nos traacutegicos)
A bela morte espartana deve ter ligaccedilatildeo com a cidadania ou melhor um criteacuterio
de cidadania sendo uma manifestaccedilatildeo ciacutevica (12W 18 34) Uma das diferenccedilas mais
acentuadas entre o mundo de Tirteu e dos poemas homeacutericos estaacute nas relaccedilotildees do
indiviacuteduo com a comunidade pois os guerreiros de Homero lutam pela gloacuteria individual
enquanto os heroacuteis de Tirteu combatem pela comunidade por suas famiacutelias e
dependentes Assinale-se que haacute na Iliacuteada XV 494-9 um episoacutedio em que Heitor estaacute
claramente lutando pela sobrevivecircncia de Troia
5 Para Jaeger a Constituiccedilatildeo (Repuacuteblica) dos Lacedemocircnios de Xenofonte eacute resultado do romantismo ldquomeio
filosoacutefico meio poliacutetico do seacuteculo IV aC o qual via no Estado espartano uma espeacutecie de revelaccedilatildeo
poliacutetica primordialrdquo (JAEGER 2001 p 109)
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A cidade espartana condena o ato de bravura de um soacute combater e permanecer
corajosamente no seu lugar na falange natildeo ceder agrave vontade de fugir encorajar seu
companheiro de linha eacute um bem comum para a cidade e para todo o povo
Heroacutedoto disserta a respeito do espartano Aristodamos que estava entre os
trezentos lacedemocircnios que tinham defendido as Termoacutepilas ele foi o uacutenico sobrevivente
mas preocupado em livrar-se do oproacutebio que os espartanos infligiram a essa
sobrevivecircncia o guerreiro saiu de seu posto do seu lugar na falange e procurou e
encontrou a morte em Plateia ao realizar faccedilanhas extraordinaacuterias (HEROacuteDOTO
Histoacuteria IX 71)
Aleacutem do exemplo de Aristodamos o historiador daacute testemunho de outro episoacutedio
nas Termoacutepilas em que os combatentes saindo de seus postos lutavam de maneira furiosa
em torno do corpo de Leocircnidas Quando as espadas dos espartanos foram quebradas eles
se defenderam com as matildeos e os dentes (Op cit VII 225) em um estado de furor
belicoso que se assemelhava aos heroacuteis homeacutericos Diomedes e Aquiles Os espartanos
abandonaram a sophrosyacutene e estavam claramente em estado de lyacutessa o que a cidade natildeo
tolerava
Todavia apesar de sua valentia os espartanos natildeo lhe concederam as honras
fuacutenebres devidas aos melhores isto eacute recusaram-lhe a aristeacuteia porque violara a lei de
permanecer em seu lugar na falange Possuiacutedo pela lyacutessa por um furor guerreiro
combateu furiosamente fora de seu posto
A virtude guerreira natildeo pertence agrave ordem do thymoacutes do impulso e sim da
sophrosyacutene a temperanccedila um domiacutenio muito grande para que o guerreiro pudesse refrear
seus impulsos e natildeo perturbasse a ordem da formaccedilatildeo em falange
A eacutetica militar espartana proiacutebe o estado de furor de lyacutessa Vernant destaca que a
cidade rejeita atitudes tradicionais da aristocracia que tem por costume a exaltaccedilatildeo do
prestiacutegio do poder dos indiviacuteduos e de colocaacute-los acima do comum satildeo considerados
como um descomedimento uma hyacutebris de igual modo o furor guerreiro e a busca no
combate de uma gloacuteria particular (VERNANT 2002 p 69)
Ateacute os sessenta anos os espartanos estavam sujeitos a participar das guerras
pertenciam ao Estado ate agrave morte As moccedilas natildeo eram tratadas de modo diverso acima
da famiacutelia vinha a poacutelis
Xenofonte destaca que Licurgo ordenou que o sexo feminino exercitasse tanto
quanto o masculino A mulher espartana tambeacutem tinha uma formaccedilatildeo regulamentada
cuja muacutesica a danccedila e o canto natildeo possuiacuteam tanta importacircncia quanto a ginaacutestica e o
esporte (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios 1 4)
As espartanas estavam a serviccedilo da cidade quando solteiras praticavam
exerciacutecios que a tornavam forte e saudaacutevel a fim de que seus corpos se tornassem riacutegidos
ao se exercitarem havia exerciacutecios de correr de lutar de jogar a barra e de lanccedilar o dardo
com o objetivo de gerarem filhos igualmente robustos e para suportarem as dores do
parto (PLUTARCO Licurgo XXV In Vidas Paralelas)
Havia a ideia entre os homens de que pai e matildee fortes gerariam igualmente filhos
mais vigorosos Por isso quando casada a missatildeo da mulher era dar ao Estado filhos
fortes grandes guerreiros e bons cidadatildeos Percebe-se que haacute uma preocupaccedilatildeo de
eugenia dentro da sociedade espartana
Os receacutem-nascidos eram observados e se constatada qualquer imperfeiccedilatildeo essas
crianccedilas consideradas ldquodefeituosasrdquo que tivessem qualquer tipo de doenccedila ou
deformidade eram sumariamente assassinadas sendo atiradas de um precipiacutecio Esses
A agogeacute espartana
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receacutem-nascidos natildeo estariam prontos para defender a cidade-estado e consequentemente
natildeo seriam bons guerreiros na fase adulta6
Entrementes depois que a crianccedila nascia [] mas se lhes parecia feia
disforme ou franzina mandavam atiraacute-la num precipiacutecio a que vulgarmente se
dava o nome de Apothetes isto eacute depositoacuterios pois tinham a opiniatildeo de que
natildeo era expediente nem para a crianccedila nem para a coisa puacuteblica que ela
vivesse visto como desde o nascimento natildeo se mostrava bem constituiacuteda para
ser forte satilde e rija durante toda a vida E por esse motivo as proacuteprias mulheres
que as governavam natildeo as lavavam com aacutegua simples como se faz por toda
parte mas com uma mistura de aacutegua e vinho e por esse meio experimentavam
se a compleiccedilatildeo e a tecircmpera de seus corpos era boa ou maacute porque dizem eles
que as crianccedilas sujeitas agrave epilepsia ou entatildeo catarrosas e doentias natildeo podem
resistir nem tolerar esse banho de vinho mas definham e caem em langor e
ao contraacuterio as que tecircm sauacutede se tornam mais rijas e mais fortes
(PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)
Aristoacuteteles sublinha que Licurgo com o objetivo de fazer com que os espartanos
fossem numerosos encorajava-os a terem o maior nuacutemero possiacutevel de filhos haacute a lei de
que o pai de trecircs filhos estaacute isento do serviccedilo militar e o de quatro livre de impostos
(ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1270b 1-5)
A renomada helenista Claude Mosseacute infere que seria interessante acreditar que
Esparta passou por uma seacuterie de etapas entre a adoccedilatildeo da falange hopliacutetica seacuteculo VII
aC e o ldquofechamento da cidade em si mesmardquo iniacutecio seacuteculo IV aC Aleacutem do mais a
rheacutetra que fora atribuiacuteda a um possiacutevel legislador Licurgo pode ter sido resultado de
uma possiacutevel abertura da falange aos membros do decircmos cuja participaccedilatildeo nas tomadas
de decisatildeo era reconhecida Em relaccedilatildeo agrave partilha de terras pode ter acontecido depois
do teacutermino da segunda guerra da Messecircnia (uacuteltimo quarto do seacuteculo VII aC) e a agogeacute
e o militarismo da cidade podem ter ocorridos no princiacutepio do seacuteculo VI aC tendo por
principal objetivo a defesa da cidade-estado espartana contra os povos da Lacocircnia e
Messecircnia que foram escravizados
A Esparta do seacuteculo VII aC estaacute empenhada em um movimento que leva as
aristocracias das diversas cidades ao luxo Depois a ruptura se daacute entre o final do seacuteculo
VII aC e o iniacutecio do VI aC concentra-se em si mesma repudiando a ostentaccedilatildeo da
riqueza proibindo o uso dos metais preciosos depois a moeda de ouro e de prata (o
dinheiro era feito de um ferro de maacute qualidade que natildeo deveria ser fundido em grandes
quantidades) permanece fora das correntes intelectuais fecha-se a tudo o que eacute
intercacircmbio com o estrangeiro comeacutercio atividade artesanal voltam-se sua preocupaccedilatildeo
para a guerra em defesa da poacutelis (MOSSEacute 2004 p 189-190)
Qualquer riqueza natildeo poderia ser exposta em puacuteblico os artesatildeos natildeo
confeccionavam luxos desnecessaacuterios como tapetes e adornos mas faziam muito bem
apenas o baacutesico pois a riqueza seria a causa de muitos males Xenofonte escreve que os
espartanos natildeo se adornavam com riquezas de vestuaacuterios exceto com a boa forma fiacutesica
de seus corpos (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)
Pode-se conceituar a agogeacute como uma educaccedilatildeo estatal com fins extremamente
belicosos que se estendia da infacircncia ateacute a adolescecircncia Nessa educaccedilatildeo os futuros
6 Esse costume natildeo ocorreu soacute em Esparta a Lei das XII taacutebuas na Roma antiga autorizava os patriarcas a
matar seus filhos fraacutegeis ou deficientes
Luciene de Lima Oliveira
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combatentes aprendiam as artes militares as manobras em campos de batalha e a ser
destemidos diante do inimigo
Infere-se que o principal objetivo da agogeacute era formar poderosos guerreiros para
a defesa da poacutelis Para isso uma riacutegida educaccedilatildeo foi imposta aos jovens e uma peculiar
maneira de viver aos adultos
REFEREcircNCIAS
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Isabel Arco Verde Santos
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 9
eacute HaAdam ou seja o nome aparece com o artigo o que se entende o nome do primeiro
homem ndash Adatildeo
Natildeo haacute exatamente uma sequecircncia neste segundo relato A narrativa da criaccedilatildeo tatildeo
cuidadosa e minuciosa exposta no relato anterior neste capiacutetulo jaacute natildeo mais importa No
verso 18 o comentaacuterio divino aponta para a preocupaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave solidatildeo de Adam
e a necessidade de fazer algueacutem segundo traduccedilatildeo de Almeida uma auxiliadora que lhe
seja idocircnea A aplicaccedilatildeo do artigo aqui no termo Adam parece indicar algo mais
especiacutefico tendo em vista o autor deixar claro que ele Adam estaacute soacute A vocalizaccedilatildeo
hebraica confunde porque o termo que se usa no verso 20 do capiacutetulo 2 ao dizer que natildeo
havia para Adam ndash e desta vez a vocalizaccedilatildeo sugere a inexistecircncia do artigo - quem fosse
eacutezer e neacuteged
Ocorre que neste verso 20 aparece o termo LeAdam Se a forma com artigo
acontecesse a contraccedilatildeo do artigo com a preposiccedilatildeo suporia a forma LaAdam E parece
ser a forma mais correta de se ler o texto dando continuidade a ideia que estaacute sendo
desenvolvida
HaAdam ndash Adatildeo - daacute nome aos elementos da criaccedilatildeo mas eacute Adam ndash o nome geral
a humanidade - que natildeo encontrou algueacutem para estar ao seu lado De uma forma ou de
outra o que se quer eacute justificar o relato da criaccedilatildeo da mulher Os termos usados por
Almeida auxiliadora e idocircnea traduzem o hebraico eacutezer e neacuteged respectivamente
Ora eacutezer eacute a palavra usada no conhecido Salmo 121 (Elevo os olhos para o monte
de onde me viraacute o socorro) Ressalte-se que o socorro natildeo eacute encontrado natildeo em seres
inferiores O salmista eleva os olhos busca acima de si o socorro Isto deixa claro que
natildeo haacute qualquer tipo de inferioridade na criaccedilatildeo da mulher
O outro termo neacuteged eacute uma preposiccedilatildeo que pode ser traduzida por defronte de
em frente contra diante de em oposiccedilatildeo defronte comparado com Como verbo na
forma simples paal significa ser contra ou estar defronte Na forma causativa no hiphil
o verbo significa contar revelar dizer algo ainda natildeo conhecido Estes termos vatildeo reaparecer no verso 20 quando apoacutes o homem ter dado nome a
todos os seres se conclui mais uma vez que natildeo havia nada que lhe fosse eacutezer e neacuteged O
hebraico nos aponta ideias mais fortes que a traduccedilatildeo de Almeida No portuguecircs
auxiliador tem a ideia de ajudante assistente conforme explica o Aureacutelio Idocircneo tem o
sentido de conveniente e adequado ainda segundo este mesmo dicionaacuterio
O que se procura na criaccedilatildeo para HaAdam (Adatildeo) eacute o seu oposto o seu contraacuterio
porque o objetivo eacute crescer e encher a terra Por outro lado procura-se algo que lhe venha
socorrer em sua solidatildeo O interessante poreacutem eacute que embora se entenda neacuteged como
uma possibilidade contraacuteria porque haacute a necessidade de encher a terra tanto este termo
como o termo socorro (eacutezer) natildeo vecircm em forma feminina mas masculina apesar de tanto
este quanto aquele ter uma forma hebraica similar feminina (ezrah e negdah)
Se prosseguirmos a leitura naquilo que seria o relato da criaccedilatildeo da mulher
identificamos que apoacutes cair em sono profundo Deus retirou uma costela de Adatildeo para
construir a mulher
Trecircs termos agora se encontram neste texto da criaccedilatildeo tzeacutelem a imagem de Deus
com que a humanidade foi abenccediloada eacute o termo que associa a humanidade a Deus que
ficou no capiacutetulo primeiro tzeacutelarsquo a costela retirada de Adatildeo que eacute a mateacuteria da qual eacute
feita a mulher Por uacuteltimo temos o termo lsquoeacutetzem que aparece na fala deslumbrada de
Adatildeo ao acordar de seu sono e ver a criaccedilatildeo de Deus na forma da mulher oriunda de sua
costela
O novo ser criado eacute denominado lsquoyshah Sua denominaccedilatildeo eacute da mesma raiz da
palavra lsquoysh que quer dizer homem Esta semelhanccedila dos dois nomes demonstra o
reconhecimento de si mesmo no outro ser criado HaAdam reconhece a mulher como algo
Homem e mulher os criou
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semelhante a ele - daiacute o uso dos termos tsela e tselem (costela e osso) O termo lsquoeacutetzem -
semelhanccedila ndash une em sua raiz os dois termos que identificam a mulher como parte da
humanidade HaAdam natildeo a identifica como lsquoysh pois percebe que existem diferenccedilas
entre eles ndash afinal ela eacute seu contraacuterio Este texto biacuteblico como outros textos do Gecircnesis tenta explicar criaccedilatildeo de
homem e mulher como partes da humanidade Sua preocupaccedilatildeo em desenvolver uma
narrativa que explique a criaccedilatildeo da mulher se daacute para que natildeo se incorra no erro de ignorar
que a mulher tambeacutem eacute abenccediloada com a semelhanccedila de Deus corroborada na criaccedilatildeo
que se faz da mesma mateacuteria
Natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo em inferiorizar a mulher Embora HaAdam a tenha
chamado de lsquoyshah seu nome apareceraacute somente no capiacutetulo seguinte apoacutes a expulsatildeo
do Eacuteden quando entatildeo ele a chamaraacute de Chawav ou Eva Se haacute superioridade porque ele
lhe daacute um nome esta superioridade eacute uma das consequecircncias do que se denominou pecado
e gerou a expulsatildeo do paraiacuteso
Os relatos cabaliacutesticos datildeo conta de criaccedilatildeo de uma outra mulher Esta ideia natildeo
soacute eacute desenvolvida pelos dois relatos de criaccedilatildeo mas tambeacutem pela fala de HaAdam
quando desperta de seu sono Ele diz segundo a traduccedilatildeo que fazemos aqui do hebraico
e disse o homem esta desta vez eacute osso dos meus ossos 5 Se desta vez HaAdam se
identifica com algo na criaccedilatildeo talvez teria acontecido algo antes com o qual ele natildeo teria
se adaptado ou natildeo se sentiria reconhecido
Lilith eacute a mulher que domina e seduz HaAdam que lhe aproxima de seus
institntos Chavah a segunda mulher eacute a que gera e constroacutei a histoacuteria Na religiatildeo a
primeira eacute tida como a mulher que deve ser desprezada apesar de figurar no imaginaacuterio
masculino pois retorna nos sonhos de Adatildeo Ela tambeacutem retorna aos textos biacuteblicos
principalmente nos sapiencieais mais especificamente no livro de proveacuterbios nos
capiacutetulos 1 a 9 quando se faz oposiccedilatildeo entre a sabedoria e a ignoracircncia entre a mulher
do povo e a estrangeira
Chavah vive com esta sombra - a mulher principal para a sociedade mas natildeo nos
desejos de seu marido A presenccedila de Lilith na cultura judaica natildeo eacute uacutenica Ela pode ser
encontrada no eacutepico de Gilgamesh que data de 2000 aEC na pseudoepiacutegrafe
denominada Testamento de Salomatildeo que data de 200 EC no Talmud e no Alfabeto de
Ben Sira6 do ano 800 de nossa era aproximadamente Alguns indicam haver menccedilatildeo
tambeacutem no livro biacuteblico de Isaiacuteas 3414 (a palavra Lilith vem da raiz laylah que significa
noite)
Lilith teria sido criada tatildeo bonita e interessante que logo arranjou
problemas com o primeiro o homem Ainda segundo a narrativa
miacutetica Eva foi criada para substituir Lilith Eva seria o oposto de
Lilith por sua vez reuacutene traccedilos marcantes de obediecircncia boa
imagem companheira submissa ao sacerdote ao Pai e agrave Lei e por
fim tambeacutem fonte de pecado e desobediecircncia (GOMES
ALMEIDA 2019)
Eacute importante tambeacutem observar que o capiacutetulo 2 de Gecircnesis este que se propotildee a
recontar a criaccedilatildeo focando a criaccedilatildeo do homem e da mulher eacute um texto javista-eloiacutesta
Observa-se que o capiacutetulo primeiro do gecircnesis eacute notoriamente um texto eloiacutesta Jaacute o
5 Cf capiacutetulo 2 versiacuteculo 23 do livro de Gecircnesis 6 Onde se tem o registro mais antigo sobre Lilith datado entre os seacuteculos VIII e X aC segundo Koltuv
(1986)
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capiacutetulo 2 refere-se a deus com o tetragrama sagrado (Yhwh) seguido da forma Elohim
O texto mistura entatildeo as duas fontes
A conclusatildeo de HaAdam natildeo necessariamente afirma a lenda mas abrem uma
possibilidade neste sentido O que se pode concluir eacute que natildeo havia nada na criaccedilatildeo com
a qual ele HaAdam se identificasse
A preocupaccedilatildeo da leitura biacuteblica e as possiacuteveis interpretaccedilotildees relacionando ao
papel da mulher na sociedade ainda precisam ser mais bem resolvidas Mesmo que se
faccedila a presenccedila de Lilith no texto como a histoacuteria omitida e natildeo contada porque precisava
ser reescrita na forma de Chawah ainda assim carece a ideia de submissatildeo e inferioridade
que culturalmente ainda se insiste afirmar
O texto Eloiacutesta que domina o capiacutetulo primeiro do Gecircnesis natildeo tem qualquer
preocupaccedilatildeo em distinguir homem e mulher O capiacutetulo segundo na comunhatildeo Javista-
Eloiacutesta tem a preocupaccedilatildeo em frisar que satildeo diferentes e ateacute mesmo contraacuterios mas que
natildeo perdem a noccedilatildeo da mesma mateacuteria e partilham da mesma becircnccedilatildeo da semelhanccedila
divina Natildeo haacute uma prioridade A confusatildeo que suscita a ideia androacutegina surge da essecircncia
comum dois elementos criados partes de uma soacute ideia a humanidade
A ordem na criaccedilatildeo tambeacutem natildeo gera conclusotildees de superioridade Se
entendecircssemos que os primeiros seriam submissos aos uacuteltimos seres criados entendendo
o homem a coroa da criaccedilatildeo o ser acima de toda a criaccedilatildeo poderiacuteamos supor que a
mulher criada depois dele lhe seria entatildeo superior Colocaccedilotildees deste tipo natildeo prosperam
na anaacutelise do texto biacuteblico porque haacute que se considerar o texto como um todo Ou entatildeo
seriam os astros celestes criados primeiros inferiores aos mares ou os animais Eacute certo
que a ordem natildeo sugere algum tipo de superioridade
Enfim o que se vecirc depois da criaccedilatildeo eacute uma luta constante da figura feminina pela
conquista de seu espaccedilo luta esta que infelizmente ainda persiste A necessidade de ser
semelhanccedila de Deus e natildeo soacute costela
REFEREcircNCIAS
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Homem e mulher os criou
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946508
AS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO E SEU IMPACTO NO
REINADO DE VALENTINIANO I
Carlos Eduardo Schmitt
RESUMO Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio (c 340-402) possui uma extensa obra da qual
chegaram agrave contemporaneidade mais de 900 cartas (epistolae) 49 informes (relationes)
e 8 discursos (orationes) Suas obras de maior destaque satildeo as Orationes I II e III
proferidas entre 369-370 e sua Relatio III escrita durante seu tempo como prefeito de
Roma em 384 Tais obras lhe renderam a fama de melhor orador de seu tempo ainda em
vida Nosso trabalho tem como objetivo expor o impacto que as Orationes I II e III
tiveram na carreira do orador e na relaccedilatildeo entre o Senado e o reinado de Valentiniano I
A partir de suas Orationes ressaltaremos a delicada missatildeo do orador enviado de Roma
agrave Treacuteveris para servir como ponte entre o Senado e o imperador
PALAVRAS-CHAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I
SYMMACHUSrsquo ORATIONES I II AND III AND ITS IMPACT IN THE
KINGDOM OF VALENTINIAN I
ABSTRACT Quintus Aurelius Symmachus Eusebius (c 340-402) has an extensive work
from which more than 900 letters (epistolae) 49 reports (relationes) and 8 discourses
(orationes) survived His most outstanding works are Orationes I II and III pronounced
between 369-370 and his Relatio III written during his time as praefectus of Rome in
384 Such works earned him the fame of the best speaker of his time being still alive Our
paper aims to expose the impact that Orationes I II and III had on the speakers career
and on the relation between the Senate and the reign of Valentinian I From his Orationes
we will highlight the delicate mission of the speaker sent from Rome to Trier to serve as
a bridge between the Senate and the emperor
KEYWORDS Symmachus Orationes Valentinian I
LAS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO Y SU IMPACTO EN EL
REINADO DE VALENTINIANO I
RESUMEN Quinto Aurelio Siacutemaco Eusebio (c 340-402) tiene una extensa obra de la
cual chegaron a la contemporaneidad maacutes de 900 cartas (epistolae) 49 informes
(relationes) e 8 discursos (orationes) Sus obras de mayor destaque son las Orationes I
Doutorando pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail carlosschmitt90gmailcom
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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II y III pronunciadas entre el 369-370 y su Relatio III escrita durante su tiempo como
prefecto de Roma en 384 Tales obras le rindieron la fama de mejor orador de su tiempo
auacuten en vida Nuestro artiacuteculo tiene como objetivo exponer el impacto que las Orationes
I II y III tuvieron en la carrera del orador y en la relacioacuten entre el Senado y el reinado de
Valentiniano I A partir de sus Orationes resaltaremos la delicada misioacuten del orador
enviado de Roma a Treacuteveris para servir como puente entre el Senado y el emperador
PALAVRAS CLAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I
INTRODUCcedilAtildeO
Joseacute Antonio Gallego (2003 p 153) esclarece que a obra mais famosa de Siacutemaco
foi seu informe terceiro apesar de que durante a Idade Meacutedia as epistolae foram suas
obras mais valorizadas sendo utilizadas como modelo para escrever uma carta Contudo
em seu proacuteprio tempo ele era famoso por ser um grande orador Eacute por isso que Gallego
(2003 p 154) pondera como injusto o que a histoacuteria fez com Siacutemaco Apenas oito de
seus discursos chegaram ateacute noacutes sendo que estes satildeo dos iniacutecios de sua carreira aleacutem de
estarem num manuscrito palimpsesto com grandes lacunas Deve-se ter presente tambeacutem
que ldquoSiacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador romano se excetuarmos os escritores cristatildeosrdquo1
(GALLEGO 2003 p 154) Em outras palavras Siacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador da
religiatildeo tradicional romana
Cristiana Sogno (2006 p viii) faz uma reconstruccedilatildeo da carreira poliacutetica de
Siacutemaco atraveacutes de uma anaacutelise minuciosa de seus escritos Ele ocupa uma posiccedilatildeo
peculiar entre os autores latinos pela quantidade de escritos que nos chegaram A autora
defende que a razatildeo pelo desconhecimento de Siacutemaco por parte dos estudantes de
Claacutessicas e de Histoacuteria Antiga eacute o fato de natildeo existir uma traduccedilatildeo completa do corpus
simaquiano em nenhuma liacutengua moderna Sogno clarifica tambeacutem que a ediccedilatildeo de Otto
Seeck do seacuteculo XIX continua sendo o modelo do texto
Sogno (2006 p 1) clarifica que a primeira fase da carreira de Siacutemaco estaacute bem
documentada em suas orationes Sua nominaccedilatildeo como embaixador senatorial em 368 foi
um marco em sua vida sendo que sua reputaccedilatildeo como orador foi estabelecida na corte de
Valentiniano I tornando-se uma ponte entre o Senado e o imperador
Apesar de que Siacutemaco tenha a fama de ser um grande orador suas orationes
desapareceram ateacute seu redescobrimento no seacuteculo XIX Sabe-se que Siacutemaco ficou
conhecido por ser um bastiatildeo em defesa da religiatildeo tradicional romana sobretudo durante
seu periacuteodo como Prefeito de Roma por volta de 384 E Sogno (2006 p 1) sem perder
a oportunidade relata uma ldquoironia do destinordquo sendo que foi um cardeal da Igreja
Catoacutelica Romana Angelo Mai quem descobriu e publicou os fragmentos de suas
orationes em 1815 Tratava-se de um palimpsesto onde por cima havia uma traduccedilatildeo
latina das atas do Conciacutelio de Calcedocircnia O cardeal destruiu o documento para que as
orationes pudessem ser recuperadas Apesar disso Sogno (2006 p 2) constata como
esses discursos de Siacutemaco satildeo ainda pouco estudados em comparaccedilatildeo com outros
escritos seus como suas epistolae Esses oito discursos satildeo apenas uma parte de toda a
produccedilatildeo simaquiana Haacute tambeacutem um panegiacuterico em honra do usurpador Maacuteximo que
por razotildees oacutebvias natildeo foi publicada
1 ldquoSiacutemaco es el uacuteltimo gran orador romano si dejamos a un lado a los escritores cristianosrdquo
Carlos Eduardo Schmitt
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ORATIONES I II E III
Foi no inverno do ano 368-369 que Siacutemaco naquele tempo um jovem senador que
iniciava sua carreira poliacutetica foi enviado de Roma agrave Treacuteveris com o objetivo de dirigir
uma laudatio uma oraccedilatildeo de louvor a Valentiniano I por motivo de seus cinco anos de
reinado (Quinquennalia) Sogno (2006 p 2) destaca que tal missatildeo natildeo significava
apenas um reconhecimento por parte do Senado de seus dotes retoacutericos mas constituiacutea
tambeacutem uma oportunidade iacutempar para crescer na carreira poliacutetica e fazer amigos na corte
Apesar de ser um momento festivo Sogno (2006 pp 1-2) esclarece que constituiacutea
uma situaccedilatildeo delicada Ateacute o momento Valentiniano I natildeo havia estado em Roma e essa
era a primeira vez que ele se encontraria com uma delegaccedilatildeo senatorial Sendo assim
Siacutemaco tinha a importante missatildeo de estabelecer boas relaccedilotildees com o imperador Havia
natildeo apenas o discurso mas tambeacutem certa quantidade de ouro (aurum oblaticium2) que os
senadores ofereciam ldquovoluntariamenterdquo ao imperador Em Roma os senadores
aguardavam ansiosos pelo regresso de Siacutemaco e por informaccedilotildees de primeira matildeo
Eacute estranho ver que um senador tatildeo jovem ndash Siacutemaco natildeo tinha ainda nem trinta
anos ndash recebesse tamanha honra e responsabilidade Sogno (2006 p 6) sem colocar em
xeque a capacidade do orador argui que isso foi possiacutevel em parte graccedilas ao Prefeito de
Roma naquele entatildeo Pretextato responsaacutevel direto pela arrecadaccedilatildeo da oferenda de ouro
ao imperador e pela escolha do ldquocorretordquo orador que a levaria Haacute de se ter presente que
das epistolae de Siacutemaco vaacuterias delas tecircm Pretextato como destinataacuterio
Siacutemaco natildeo se limitou a estreitar laccedilos de amizade apenas no Senado Buscou
tambeacutem amigos na corte imperial E um de seus principais foi Ausocircnio tutor de Graciano
filho de Valentiniano I Sabe-se que eles trocavam correspondecircncias antes mesmo de
Siacutemaco ter ido agrave Treacuteveris e que havia entre eles uma muacutetua admiraccedilatildeo (SOGNO 2006
p 6)
A prova de que o panegiacuterico (laudatio) de Siacutemaco dirigido a Valentiniano foi um
sucesso de acordo com Sogno (2006 pp 8-9) foi o fato do proacuteprio imperador ter
solicitado ao orador um segundo panegiacuterico Siacutemaco eacute consciente de sua responsabilidade
e da honra que lhe eacute aferida e expressa esses sentimentos em seu discurso Consciente de
que o objetivo primeiro de uma laudatio eacute agradar ao puacuteblico Siacutemaco expotildee que tudo o
que anuncia e proclama eacute verdadeiro baseado em fatos que vivenciou e tambeacutem naqueles
de que ouviu o testemunho
Sogno (2006 p 9) classifica o primeiro panegiacuterico de Siacutemaco a Valentiniano
como um encocircmio biograacutefico composiccedilatildeo descrita em detalhe no terceiro livro da
Institutio oratoria de Quintiliano Nele Siacutemaco reconhece e celebra publicamente o
estabelecimento da dinastia valentiniana realizando um resumo dos seus cinco primeiros
anos de reinado desde que tinha sido escolhido pelo exeacutercito O encocircmio biograacutefico
como detalha Sogno requer discorrer tambeacutem sobre os ancestrais e os descendentes da
nova dinastia
2 ldquoOs clariacutessimos ie os indiviacuteduos de categoria senatorial tinham ainda que contribuir com o aurum
oblaticium oferecido pelo Senado por ocasiatildeo dos aniversaacuterios dos imperadoresrdquo (SILVA amp MENDES
2006 p 212) Isso era parte da reforma fiscal iniciada por Diocleciano e ampliada por Constantino
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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Satildeo estrateacutegicas as alusotildees que Siacutemaco faz do lugar de nascenccedila de Valentiniano
e daqueles onde ele acompanhou seu pai em campanhas militares O futuro imperador
nasceu na fria regiatildeo da Iliacuteria e acompanhou seu pai no calor escaldante da Aacutefrica Isso
significa natildeo soacute que ele estaacute preparado para qualquer dificuldade que advir mas
sobretudo que eacute um homem que conhece seu reino muito bem porque jaacute esteve em
diversas partes dele Todas essas dificuldades unidas aos inimigos enfrentados lhe
qualifica como a melhor pessoa para reger o Impeacuterio (SOGNO 2006 p 10) Um cuidado
que Siacutemaco tem em sua laudatio eacute o de reforccedilar a legitimidade de Valentiniano sobretudo
ao dizer que ningueacutem protestou quando o elegeram dando a impressatildeo de que houve um
consenso geral no exeacutercito (SOGNO 2006 p 12)
O conteuacutedo dos panegiacutericos eacute exagerado e por isso deve-se ter cuidado ao tomaacute-
los como fonte histoacuterica No entanto nos revelam muito sobre o tempo de Siacutemaco e sobre
ele mesmo No primeiro dedicado a Valentiniano I por motivo de seu primeiro lustro no
poder vemos como Siacutemaco enaltece a vida e a obras do imperador desde sua tenra
formaccedilatildeo nas diversas partes do Impeacuterio seguindo o bom exemplo de seu pai Graciano
Com verbosidade Siacutemaco atesta que natildeo havia outra pessoa melhor para o posto de
imperador que o proacuteprio Valentiniano superior a qualquer outro liacuteder Homem valente
assentou-se na parte mais perigosa do Impeacuterio Treacuteveris e lutou contra o inimigo mais
feroz dos romanos os alamanos Aleacutem de guerreiro eacute saacutebio e prefere defender os
interesses do Estado que os seus proacuteprios Eacute por isso que deixou a seu irmatildeo Valente
cuidar sozinho da rebeliatildeo de Procoacutepio uma guerra interna enquanto ele se dedicava a
proteger o Impeacuterio dos inimigos externos Foi um imperador que preferiu o bem comum
ao de sua proacutepria famiacutelia Realizou obras incriacuteveis
O comeccedilo do segundo panegiacuterico a Valentiniano indica sua razatildeo de ser o terceiro
consulado do imperador ao lado de seu irmatildeo Valente em 370 Siacutemaco
estrategicamente revela que iraacute relatar apenas alguns acontecimentos sem exaustatildeo
Deixaraacute todos os outros feitos natildeo mencionados para que sejam cantados pelos poetas
Parabeniza ao imperador por ser sua fonte de inspiraccedilatildeo e o restaurador da liberdade de
expressatildeo Ao mesmo tempo que Siacutemaco preza ao imperador por ter dado assunto que
fosse cantado e escrito como suas grandes vitoacuterias sobre os alamanos ele tambeacutem lembra
o imperador de que sem esses oradores e poetas haacute o silecircncio e que o silecircncio eacute o pior
inimigo da grandeza (SOGNO 2006 p 12)
Siacutemaco se dedica basicamente a enaltecer o imperador por suas conquistas e
fortificaccedilotildees ao longo do Reno e de que se impressionou ao ter visto as mesmas
pessoalmente Enaltece-o por seu terceiro consulado mas sobretudo se centra em seus
avanccedilos militares Entre outras exaltaccedilotildees Siacutemaco o parabeniza por ser exemplo de
governante ideal que eacute amado e temido por seu povo Tambeacutem o parabeniza por haver
aceitado o Impeacuterio de forma relutante (SOGNO 2006 p 14) Na verdade Siacutemaco
exaltou muito mais as fortificaccedilotildees erguidas por Valentiniano do que suas batalhas contra
os baacuterbaros Sogno (2006 p 15) pensa que isso se deve principalmente pelo acontecido
com Siaacutegrio uacutenico sobrevivente de uma batalha que foi considerado um desertor pelo
imperador E isso aconteceu exatamente quando o orador se encontrava na corte
O segundo panegiacuterico dedicado tambeacutem a Valentiniano I tinha por motivo
a designaccedilatildeo do imperador para o seu terceiro consulado que ele havia recebido como
um reconhecimento por seus feitos recentes Sendo assim o panegiacuterico deveria se centrar
em suas atividades recentes as quais lhe fizeram merecedor do terceiro consulado
Siacutemaco inicia dizendo que o consulado era uma recompensa insuficiente para
Valentiniano comparado com tudo o que perpetrou no Reno Mas como natildeo haacute algo
Carlos Eduardo Schmitt
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6 17
maior que eles possam ofertar Siacutemaco solicita ao imperador que se contente com o
melhor presente e honra que o Senado lhe pode oferecer E a partir de entatildeo o orador
narra as atividades beacutelicas de Valentiniano contra os alamanos e suas construccedilotildees ao
longo do Reno Em um determinado momento Siacutemaco o elogia por haver restaurado a
liberdade de expressatildeo no Impeacuterio Termina exaltando sua sobriedade
No panegiacuterico de Siacutemaco dedicado a Graciano vecirc-se claramente como ele se
dirige ao jovem imperador como a esperanccedila de Roma Durante todo o discurso o orador
enfatiza sua juventude enaltecendo-a Sogno acredita que essa insistecircncia seja uma forma
de favorecer a aceitaccedilatildeo do imperador possivelmente criticado pela aristocracia romana
por sua pouca idade (SOGNO 2006 p 18) Como recompensa por sua performance na
corte Siacutemaco recebeu o tiacutetulo honoriacutefico de comes tertii ordinis e trecircs anos depois em
Roma recebeu o proconsulado da Aacutefrica (373-374)
O panegiacuterico ao menino Graciano talvez tenha sido o mais difiacutecil para Siacutemaco
elaborar Devido a sua pouca idade objetivamente natildeo havia feitos grandiosos do qual
ele fosse sujeito No entanto Siacutemaco surpreendeu mesmo assim Vecirc em Graciano o iniacutecio
de uma nova eacutepoca porque eacute um imperador ainda menino e sendo assim estaraacute bem
treinado em todos os campos Seu louvor se centra entatildeo na juventude do imperador e
em seu governo ao lado de seu pai Valentiniano e de seu tio Valente Aos baacuterbaros natildeo
lhes restaraacute mais do que a escravidatildeo e eles jaacute sabem disso
OS DOZE PANEGIacuteRICOS LATINOS
Tendo em vista as trecircs orationes mencionadas podemos fazer uma breve anaacutelise
dos famosos doze panegiacutericos latinos com o intuito de entender melhor as diversas
asserccedilotildees simaquianas bem como seu estilo Susanna Morton Braund (2005 pp 90-91)
descreve que de forma convencional a oratoacuteria grega foi divida em trecircs tipos discurso
forense deliberativo e epidiacutectico O primeiro tambeacutem chamado de judicial eram aqueles
proferidos nos tribunais no foacuterum os discursos deliberativos eram aqueles proferidos
diante do Senado ou de uma assembleia do povo e os discursos epidiacutecticos eram aqueles
escritos para uma comemoraccedilatildeo especial Este uacuteltimo para Braund se revestiu de
especial importacircncia durante o principado como panegiacuterico (elogio)
Uma das coisas mais importantes para um aristocrata romano era o
reconhecimento pelas pessoas ao seu redor de seu valor puacuteblico e permanente
ndash sua auctoritas e sua dignitas Idealmente isso seria celebrado em panegiacuterico
ndash isto eacute louvor escrito em prosa ou verso3 (2005 p 110)
O panegiacuterico era um elemento central na poliacutetica romana e na vida puacuteblica sob
o Principado ndash e jaacute o era haacute muito tempo De fato alguns dos nossos mais
antigos textos latinos sobreviventes os epitaacutefios aos membros da famiacutelia
Cipiatildeo que datam do terceiro e segundo seacuteculos AEC (Scipionum elogia)
satildeo os louvores (poacutestumos) dos grandes homens4 (2005 p 112)
3 ldquoOne of the most important things for a Roman aristocrat was the recognition by people around him of
his public worth and standing ndash his auctoritas and his dignitas Ideally this would be celebrated in
panegyric ndash that is praise written in prose or verserdquo 4 ldquoPanegyric was a central element in Roman politics and public life under the Principate ndash and had been
so for a long time already In fact some of our earliest surviving Latin texts the epitaphs to members of
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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Ainda sobre o panegiacuterico e sua difusatildeo durante este periacuteodo do Impeacuterio Romano
Mitchell (2015 p 19) o relaciona agrave natureza autoritaacuteria do mesmo Segundo ele a
dissidecircncia aberta natildeo era tolerada e isso se vecirc pelos extremos dos discursos que satildeo de
louvor ou vituperaccedilatildeo mas raramente se encontram num meio termo Apesar de
parecerem pouco confiaacuteveis o autor defende a utilizaccedilatildeo de panegiacutericos e poemas como
fontes histoacutericas para o periacuteodo alegando que seus exageros omissotildees e estilos retoacutericos
expressam de forma criacutetica muito daquele momento Segundo Mitchell as obras mais
significativas neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos5
As obras-chave neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos que
provavelmente foram compilados pelo orador gaulecircs Pacato e foram
prefaciados pelo longo panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem para o imperador Trajano
(I) Aleacutem do trabalho do proacuteprio Pacato de 389 em louvor a Teodoacutesio I (II)
este inclui discursos a Maximiano em 289 (X de Cl Mamertino o Velho) e
291 (XI) a Constacircncio pai de Constantino em 296 e 298 (IX) para o
casamento de Constantino e Fausta em 307 (VII) a Constantino em 310 (VI)
312 (V) 314 (XII) e 321 (IV de Nazaacuterio) e a Juliano em 362 (III de Cl
Mamertino o Jovem em sua proacutepria nomeaccedilatildeo para o consulado)6
Mitchell (2015 p 4) realccedila que conforme o Impeacuterio crescia foi se dando cada
vez mais ecircnfase agrave religiatildeo do Estado Acreditava-se que ele era mantido devido ao apoio
dos deuses e os imperadores romanos que em parte controlavam as atividades religiosas
em seus territoacuterios eram vistos como aqueles que mantinham o pacto de paz com os
deuses a pax deorum E segundo Mitchell todos os meios de propaganda estavam
imbuiacutedos desta ideologia inclusive os discursos panegiacutericos
Braund (2005 129) especifica que o cocircnsul Pliacutenio entregou seu panegiacuterico ao
imperador Trajano no iniacutecio de seu reinado Era um discurso de gratidatildeo onde ele
aproveita para contrastar a imagem do bom Trajano com a do mau Domiciano imperador
de 81 a 96 EC Para Braund (2005 p 130)
Este texto revela dois modelos contrastantes de patrono ou imperador - e afinal
de contas o imperador era apenas o patrono mais poderoso em Roma O bom
patrono ou imperador eacute marcado por sua abertura acessibilidade e atitude
amigaacutevel e tolerante O mau patrono ou imperador eacute marcado pelo abuso
tiracircnico de seus poderes para tomar decisotildees de vida e morte sobre todos ao
seu redor do menor escravo ao senador mais eminente A celebraccedilatildeo do bom
modelo e a condenaccedilatildeo do ruim encontram-se em toda a gama de textos da
literatura latina incluindo poesia eacutepica e pastoral poesia liacuterica e elegiacuteaca
saacutetira e epigrama historiografia oratoacuteria e romance Isso natildeo nos deixa
duvidar de que o modo como um homem poderoso se comportava com seus
the Scipio family dating from the third and second centuries BCE (the Scipionic elogia) are the
(posthumous) praises of great menrdquo 5 Ver tambeacutem BERRY D H Oratory In HARRISON Stephen (ed) A Companion to Latin Literature
Oxford Blackwell 2005 pp 267-268 6 ldquoKey works in this genre are the twelve Latin panegyrics which were probably compiled by the Gallic
orator Pacatus and were prefaced by the younger Plinyrsquos lengthy panegyric for the emperor Trajan (I)
Apart from Pacatusrsquo own work of 389 in praise of Theodosius I (II) this includes speeches for
Maximianus in 289 (X by the elder Cl Mamertinus) and 291 (XI) for Constantius the father of
Constantine in 296 (VIII) and 298 (IX) for the marriage of Constantine and Fausta in 307 (VII) for
Constantine in 310 (VI) 312 (V) 314 (XII) and 321 (IV by Nazarius) and for Julian in 362 (III by the
younger Cl Mamertinus on his own appointment to the consulship)rdquo
Carlos Eduardo Schmitt
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pares e seus subordinados era crucial para sua posiccedilatildeo social e reputaccedilatildeo
poliacutetica7
Bruce Gibson (2005 p 72) critica a postura deste gecircnero por natildeo se envolver
abertamente com a poliacutetica atual de seu tempo senatildeo de modo indireto e o panegiacuterico
modelo natildeo foi a exceccedilatildeo ldquoMesmo o Panegiacuterico de Pliacutenio um discurso em louvor ao
imperador Trajano dado por ocasiatildeo de seu consulado em setembro de 100 EC oferece
sua criacutetica de governo indiretamente atraveacutes da estrateacutegia de atacar o principado de
Domicianordquo8
CONSIDERACcedilOtildeES PARCIAIS
As condiccedilotildees do discurso representavam um novo momento para o Impeacuterio De
acordo com A D Lee (2013 p 1) foi por meados do seacuteculo IV que o Impeacuterio Romano
havia alcanccedilado quase tanto territoacuterio quanto durante o seacuteculo II periacuteodo conhecido pelo
auge do poder romano Foi o periacuteodo dos imperadores guerreiros que se viram forccedilados
a se retirar dos confortos de Roma para proteger suas fronteiras (LEE 2013 p 5) Roma
foi substituiacuteda como residecircncia imperial por Treacuteveris Milatildeo Sirmio e Antioquia Com a
criaccedilatildeo de Constantinopla por parte do imperador Constantino essa situaccedilatildeo soacute se
agravou De qualquer forma o tema que domina o seacuteculo e que dominou os discursos
traduzidos de Siacutemaco foi a histoacuteria militar (MITCHELL 2015 pp 11-12)
Natildeo eacute um Impeacuterio em decadecircncia mas sim um momento de transiccedilatildeo Mitchell
(2015 p 56) se daacute conta de como por exemplo Diocleciano Joviano e Valentiniano
vieram de origens semelhantes Eram todos militares de meia idade nascidos nas
proviacutencias da Iliacuteria o que plasma uma mudanccedila no eixo do poder Mitchell (2015 pp 56-
57) frisa como desde a ascensatildeo de Diocleciano em 284 ateacute a morte de Teodoacutesio I em
395 o Impeacuterio foi governado por esses imperadores guerreiros que aniquilavam inimigos
internos e externos O Estado estava centrado em guerras e batalhas Calcula-se que mais
de dois terccedilos de seu orccedilamento anual eram gastos em atividades militares atividades das
quais os imperadores participavam pessoalmente
Siacutemaco soube valer-se da situaccedilatildeo para estreitar laccedilos com a corte e obter ascensatildeo
poliacutetica Esse periacuteodo foi especial tambeacutem por sua produccedilatildeo literaacuteria e pela quantidade
de escritos que sobreviveu ao tempo Segundo OrsquoDonnel (2015 p 161) haacute mais literatura
latina que nos chegou entre 350 e 450 do que de qualquer outro periacuteodo mais ateacute mesmo
que a eacutepoca de ouro latina entre o final da Repuacuteblica e comeccedilo do Impeacuterio9
7 ldquoThis text reveals two contrasting models of patron or emperor ndash and after all the emperor was just the
most powerful patron in Rome The good patron or emperor is marked by his openness accessibility and
friendly and tolerant attitude The bad patron or emperor is marked by his tyrannical abuse of his powers
to make life and death decisions about everyone around him from the lowest slave to the most eminent
senator Celebration of the good model and condemnation of the bad model are found in the entire range
of texts of Latin literature including epic and pastoral poetry lyric and elegiac poetry satire and epigram
historiography oratory and the novel This can leave us in no doubt that how a powerful man behaved
towards his peers and his subordinates was crucial to his social standing and to his political reputationrdquo 8 ldquoEven Plinyrsquos Panegyricus a speech in praise of the emperor Trajan given on the occasion of his
consulship in September AD 100 offers its critique of rulership indirectly through the strategy of
assailing the principate of Domitianrdquo
9 ldquoWe have more surviving Latin literature from this century between 350 and 450 than for any comparable
period before that including the more famously golden age of Caesar Cicero and Vergilrdquo
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946510
OS IMPERADORES SUETONIANOS EM MEMOacuteRIAS POacuteSTUMAS
DE BRAacuteS CUBAS
Bruno Torres dos Santos
RESUMO O presente trabalho busca discutir atraveacutes da anaacutelise de traduccedilotildees proacuteprias as
referecircncias aos imperadores romanos descritos e consagrados pelo bioacutegrafo Suetocircnio em Vida
dos Ceacutesares na obra Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis Aquele no
iniacutecio do seacuteculo II da era comum demonstrou os viacutecios e as virtudes dos imperadores inclusive
enfatizando os escacircndalos de suas cortes Jaacute Machado trouxe agrave tona as vaidades e as ambiccedilotildees
da burguesia brasileira do seacuteculo XIX Entatildeo analisaremos e interpretaremos o uso destes
personagens histoacutericos para a criaccedilatildeo literaacuteria no referido romance partindo do pressuposto de
que eles poderiam passar despercebidos por leitores modernos que natildeo recuperassem as
referecircncias agrave cultura agrave literatura e agrave histoacuteria da Roma Antiga
PALAVRAS-CHAVE Machado de Assis Imperadores romanos Suetocircnio
THE SUETONIAN EMPERORS IN THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF
BRAS CUBAS
ABSTRACT The present work aims through the analysis of own translations the references to
the Roman emperors described and consecrated by the biographer Suetonius in Life of the
Caesars in the novel Posthumous Memoirs of Bras Cubas by Machado de Assis Suetonius
at the beginning of the second century of the common age demonstrated the vices and virtues
of the emperors including emphasizing the scandals of their courts Machado has already
brought to light the vanities and ambitions of the Brazilian bourgeoisie of the nineteenth
century Then we will analyze and interpret the use of these historical characters for the literary
creation in the novel assuming that they could go unnoticed by modern readers who do not
recover references to the culture literature and history of Ancient Rome
KEYWORDS Machado de Assis Roman emperors Suetonius
Entre os mais diversos romancistas com que a literatura brasileira teve contato natildeo haacute
nome maior do que Machado de Assis Tal personalidade nasceu no Morro do Livramento
Eacute doutorando no PPGLC-UFRJ bolsista CAPES sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Anderson Esteves e integrante
discente do grupo de pesquisa ATRIVM ndash Espaccedilo Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (PPGLC-UFRJ) E-
mail brunots_hotmailcom
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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localizado na aacuterea central do Rio de Janeiro proacuteximo a zona portuaacuteria em junho de 1839
Oriundo de famiacutelia pobre estudou em escolas puacuteblicas mas nunca frequentou uma
universidade Dedicou-se aos mais diversos gecircneros literaacuterios escrevendo poesia crocircnica
teatro conto romance Tambeacutem foi criacutetico literaacuterio e jornalista Testemunhou a Aboliccedilatildeo da
Escravatura e as mudanccedilas poliacuteticas no Brasil quando o Impeacuterio foi entatildeo substituiacutedo pela
Repuacuteblica comentando e relatando os respectivos eventos poliacutetico-sociais Em 1897 funda a
ABL (Academia Brasileira de Letras) da qual permaneceu presidente ateacute sua morte em 1908
com 69 anos
Ao discorrer sobre a consolidaccedilatildeo do nosso sistema literaacuterio o professor Antonio
Candido opina sobre Machado afirmando que ele ldquoera dotado de raro discernimento literaacuterio e
adquiriu por esforccedilo proacuteprio uma forte cultura intelectual baseada nos claacutessicos mas aberta aos
filoacutesofos e escritores contemporacircneosrdquo (CANDIDO 2010 p 65) E ainda acrescenta
Sua obra eacute variada e tem caracteriacutestica das produccedilotildees eminentes satisfaz tanto aos
requintados quanto aos simples Ela tem sobretudo a possibilidade de ser
reinterpretada agrave medida que o tempo passa porque tendo uma dimensatildeo profunda de
universalidade funciona como se se dirigisse a cada eacutepoca que surge (CANDIDO
2010 p 65)
Eacute esse diaacutelogo entre o claacutessico e o contemporacircneo com pitada filosoacutefica que daacute
singularidade agrave sua obra fazendo com que suas produccedilotildees sejam sempre atemporais Satildeo esses
traccedilos que se mostram mais produtivos para o nosso estudo no qual pretendemos analisar e
interpretar como os imperadores romanos descritos pelo bioacutegrafo Suetocircnio em sua obra satildeo
utilizados por Machado em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas1 Para tal julgamos necessaacuterio
primeiramente contextualizar brevemente os autores em apreccedilo bem como suas obras
(Memoacuterias Poacutestumas e Vida dos Ceacutesares2) os gecircneros praticados (Romance e Biografia
Antiga) e os tipos de criacutetica social dos dois autores Depois disso analisaremos os excertos do
romance machadiano em questatildeo no qual as presenccedilas dos principes (no singular princeps
termo latino usado na Roma Antiga para se referir ao que entendemos hoje por imperador) se
mostrem mais evidentes para entatildeo coligirmos com trechos da obra suetoniana Para o trabalho
com esta obra utilizaremos a ediccedilatildeo da Loeb Classical Library (1914) mas com traduccedilotildees de
nossa proacutepria autoria para o trabalho com aquela utilizaremos a ediccedilatildeo criacutetica estabelecida
pela Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira (1975)
Como jaacute afirmado Machado praticou os mais diversos gecircneros literaacuterios E jaacute demos os
merecidos creacuteditos pelo conjunto da obra Mas devemos frisar que eacute na praacutetica sobre o gecircnero
romance que os creacuteditos se mostram mais merecidos pois eacute nele que o autor apresenta natildeo soacute
todo o seu ingenium (talento natural) mas tambeacutem toda a sua ars (habilidade teacutecnica) para
usarmos termos proacuteprios da literatura latina
Foi esse talento somado a seu espiacuterito galhofeiro que proporcionou a criaccedilatildeo de um
narrador mais que incomum em Memoacuterias Poacutestumas Sobre esse narrador Francisco Silveira
discorre que ldquoele vinha pelo menos agrave primeira vista infringir dois postulados realistas a
impessoalidade e o verismordquo (SILVEIRA 2001 p 97) Convergirmos com tal visatildeo posto que
eacute com a referida obra e seu respectivo narrador defunto-autor que o Realismo enquanto esteacutetica
literaacuteria vai ser ldquoinauguradordquo no Brasil em 1881 Natildeo menos importante eacute a visatildeo de Alfredo
Bosi
1 Nas proacuteximas remissotildees a essa obra usaremos apenas Memoacuterias Poacutestumas 2 Em liacutengua latina De uita caesarum
Bruno Torres dos Santos
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 25
Quando o romancista assumiu naquele livro capital o foco narrativo na verdade
passou ao defunto-autor Machado-Braacutes Cubas delegaccedilatildeo para exibir com o despejo
dos que nada mais temem as peccedilas de cinismo e indiferenccedila com que via montada a
histoacuteria dos homens A revoluccedilatildeo dessa obra que parece cavar um fosso entre dois
mundos foi uma revoluccedilatildeo ideoloacutegica e formal aprofundando o desprezo agraves
idealizaccedilotildees romacircnticas e ferindo ao cerne o mito do narrador onisciente que tudo vecirc
e tudo julga deixou emergir a consciecircncia nua do indiviacuteduo fraco e incoerente O que
restou foram as memoacuterias de um homem igual a tantos outros o cauto e desfrutador
Braacutes Cubas (BOSI 2006 p 177)
Entendemos assim que o ser humano seraacute analisado sob seu cinismo e sob a
indiferenccedila por um narrador tambeacutem fraco e cheio de incoerecircncias rompendo nesse aspecto
com a esteacutetica Romacircntica Bosi ainda acrescenta
o ponto de vista um velho tema como o triacircngulo amoroso jaacute natildeo se carregaraacute do
pathos romacircntico que envolvia heroacutei-heroiacutena-o outro mas deixaraacute vir agrave tona os mil e
um interesses de posiccedilatildeo prestiacutegio e dinheiro dando a batuta agrave libido e agrave vontade de
poder que mais regem os passos do homem em sociedade Da histoacuteria vulgar do
adulteacuterio de Braacutes Cubas-Virgiacutenia-Lobo Neves agrave triste comeacutedia de equiacutevocos de
Rubiatildeo-Sofia-Palha (Quincas Borba) e desta agrave trageacutedia perfeita de Bentinho-Capitu-
Escobar (D Casmurro) soacute aparecem variantes de uma soacute e mesma lei natildeo haacute mais
heroacuteis a cumprir missotildees ou a afirmar a proacutepria vontade haacute apenas destinos destinos
sem grandeza (BOSI 2006 p 180)
Observamos o olhar aparentemente ldquodespretensiosordquo de Machado de Assis sem a
intenccedilatildeo de criar e de se defrontar com personagens heroicos mas ao lidar com homens-
personagens comuns lidaraacute tambeacutem com problemas comuns Ele analisa a psicologia do
ldquohomemrdquo com todas as suas peculiaridades inveja ganacircncia ambiccedilatildeo E eacute a atmosfera
burguesa que potencializa esses sentimentos De todo modo faz uma ldquocriacutetica socialrdquo sem querer
fazecirc-la Eacute isso que o aproxima e o distancia de Suetocircnio que analisa os retratos morais dos
imperadores romanos com todos os viacutecios e virtudes mas faz ldquocriacutetica socialrdquo e ateacute propaganda
poliacutetica de modo velado
Diferente do esforccedilo na anaacutelise da vida e obra de Machado quem se propotildee a estudar o
bioacutegrafo Caio Suetocircnio Tranquilo inicialmente se depara com algumas imprecisotildees acerca de
sua vida No tocante ao seu local de nascimento Anderson Esteves em seu artigo busca
encontrar vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas proacuteprias obras nos apontando como mais
plausiacutevel a ideia segundo a qual este teria nascido em Roma ou pelo menos se estabelecido
nessa cidade desde a infacircncia Ele nos informa sobre a origem e a condiccedilatildeo familiar de Suetocircnio
o avocirc era de uma condiccedilatildeo menos abastada visto que teria sido um liberto do imperador
Claacuteudio jaacute seu pai de uma condiccedilatildeo social mais elevada pois pertencia a ordem dos equestres
(ESTEVES 2015 p 1-7)
Eacute dado como certo que Suetocircnio teria nascido em 70 EC um ano apoacutes o conhecido ldquoAno
dos quatro imperadoresrdquo sobre o qual ainda falaremos Maacuterio Citroni esclarece-nos que em 69
EC o pai do bioacutegrafo foi combatente ao lado de Oto com o grau de tribunus militum (tribuno
militar) (CITRONI 2006 p 971) Natildeo menos importante eacute o que esclarece Ronald Mellor
segundo ele o cognomen ldquoTranquilordquo atribuiacutedo a Suetocircnio eacute decorrente do esforccedilo do seu pai
na busca pela estabilizaccedilatildeo da paz apoacutes esta terriacutevel guerra civil (MELLOR 1999 p 147)
Conforme observamos de alguma forma sua famiacutelia estava envolvida com as casas
imperiais e dada a condiccedilatildeo do seu pai Suetocircnio teve a possibilidade de ter uma boa educaccedilatildeo
na urbs dedicando-se aos estudos de gramaacutetica e de retoacuterica Nessa trajetoacuteria instrutiva o
bioacutegrafo torna-se amigo iacutentimo do renomado senador Pliacutenio o Jovem Por influecircncia dessa
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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amizade Suetocircnio consegue alguns cargos de prestiacutegio dentro das cortes imperiais Durante o
principado de Trajano ele ocupou os postos de a studiis (com a funccedilatildeo de cuidar dos interesses
e das obrigaccedilotildees culturais do imperador) e o de a bibliothecis (com a funccedilatildeo de cuidar das
bibliotecas puacuteblicas) Sob o principado de Adriano ocupou o posto de ab epistulis (com a
funccedilatildeo de redigir a correspondecircncia oficial) (MORENO 1997 p 645 CITRONI 2006 p
971)
A rede de contato iniciada por seu amigo Pliacutenio permitiu que Suetocircnio alcanccedilasse as
referidas ocupaccedilotildees e por consequecircncia o acesso direto aos arquivos imperiais muitas vezes
fundamentais para a feitura da sua obra De uita caesarum na qual discorre sobre os doze
primeiros ceacutesares de Roma desde o general Juacutelio Ceacutesar ateacute o polecircmico imperador Domiciano
Cabe considerar que ele iniciou a composiccedilatildeo desse seu opus magnum por volta dos primeiros
anos do principado de Adriano o qual se estendeu entre os anos de 117 e 138 EC
Acerca do gecircnero praticado por Suetocircnio devemos considerar que ateacute aqui muito foi
usada a terminologia moderna ldquobiografiardquo poreacutem conveacutem lembrarmos que esse gecircnero relativo
agrave escrita de uma vida na Antiguidade eacute referido por bios pelos gregos e uita pelos romanos
O termo ldquobiografiardquo como salienta Sabina Loriga soacute aparece ao longo do seacuteculo XVII
designando uma obra veriacutedica fundada numa descriccedilatildeo realista que se opotildee a outras formas
antigas de escritura idealizadoras do personagem e das circunstacircncias de sua vida tal qual o
panegiacuterico o elogio a oraccedilatildeo fuacutenebre e a hagiografia (LORIGA 2011 p 17)
A pesquisadora argumenta ainda que desde sua origem na Antiguidade a biografia eacute um
gecircnero hiacutebrido e composto que equilibrando-se entre a verdade histoacuterica e a verdade literaacuteria
sofreu ao longo do tempo profundas transformaccedilotildees sobretudo no que diz respeito agrave escolha e
agrave elaboraccedilatildeo dos fatos e do estilo de narraccedilatildeo (LORIGA 2011 p 18)
Frente a esses esclarecimentos avancemos aos excertos de Memoacuterias Poacutestumas em cujo
iniacutecio o narrador e protagonista Braacutes Cubas relata suas lembranccedilas apoacutes ter sido vitimado por
uma pneumonia Ele que pertencia a uma famiacutelia abastada do seacuteculo XIX narra sua morte e
seu enterro em que apareceram apenas onze amigos Relata diversos periacuteodos da vida infacircncia
adolescecircncia e fase adulta Ainda apresenta suas expectativas com o ldquoEmplastordquo um
medicamento por ele inventado com grande potencial de cura O narrador reconhece que esse
projeto se tornou uma ldquoideia fixardquo que entendemos como uma ideia difiacutecil de se retirar da
cabeccedila E eacute justamente no IV capiacutetulo intitulado A ideacutea fixa que o narrador machadiano faz a
primeira referecircncia a imperadores romanos e ao proacuteprio bioacutegrafo Suetocircnio
A minha ideacutea depois de tantas cabriolas constituiacutera-se ideacutea fixa Deus te livre leitor
de uma ideacutea fixa antes um argueiro antes uma trave no olho Vecirc o Cavour foi a ideacutea
fixa da unidade italiana que o matou Verdade eacute que Bismarck natildeo morreu mas
cumpre advertir que a natureza eacute uma grande caprichosa e a histoacuteria uma eterna
loureira Por exemplo Suetocircnio deu-nos um Claacuteudio que era um simploacuterio mdash ou
ldquouma aboacuteborardquo como lhe chamou Secircneca e um Tito que mereceu ser as deliacutecias de
Roma Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dous
ceacutesares o delicioso o verdadeiro delicioso foi o ldquoaboacuteborardquo de Secircneca E tu madama
Lucreacutecia flor dos Boacutergias se um poeta te pintou como a Messalina catoacutelica apareceu
um Gregorovius increacutedulo que te apagou muito essa qualidade e se natildeo vieste a liacuterio
tambeacutem natildeo ficaste pacircntano Eu deixo-me estar entre o poeta e o saacutebio (Machado de
Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap IV p 103)3
3 Para facilitar a leitura usaremos tal forma nas referecircncias a esta obra que compotildee nossa documentaccedilatildeo textual
Para as referecircncias agraves biografias de Vida dos Ceacutesares adotamos as abreviaccedilotildees do renomado The Oxford Latin
Dictionary (httpswwwoxfordscholarlyeditionscompageabbreviations acessado em 25102019)
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Nesse discurso metalinguiacutestico dirigido diretamente ao leitor a fim de exemplificar a
proacutepria noccedilatildeo de ldquoideia fixardquo Braacutes Cubas evidencia que Suetocircnio o qual ressignificou a ldquoideiardquo
do filoacutesofo estoico Secircneca teve a sua ldquoideiardquo ressignificada por um professor moderno
Diferentemente do bioacutegrafo Suetocircnio bem como os imperadores que ele ldquonos deurdquo que foram
personagens histoacutericas o referido professor natildeo o foi
Entatildeo passemos a essas referecircncias o primeiro imperador citado eacute Tibeacuterio Claacuteudio Druso
Braacutes Cubas adjetiva o Claacuteudio de Suetocircnio como um ldquosimploacuteriordquo que eacute assim descrito na
biografia suetoniana
Infans autem relictus a patre ac per omne fere pueritiae atque adulescentiae tempus
variis et tenacibus morbis conflictatus est adeo ut animo simul et corpore hebetato ne
progressa quidem aetate ulli publico privatoque muneri habilis existimaretur (Suet
Cl 21)
No entanto era crianccedila quando foi abandonado pelo pai e por quase todo o tempo da
primeira infacircncia e adolescecircncia foi acometido por vaacuterias doenccedilas persistentes de tal
modo que estivesse ao mesmo tempo com o espiacuterito e com o corpo debilitado foi
certamente por conta de sua idade avanccedilada estimado como natildeo apto para cargo no
acircmbito puacuteblico e no acircmbito privado
Posteriormente Suetocircnio faz o seguinte relato sobre a inesperada subida ao trono apoacutes o
assassinato do sobrinho Caliacutegula
Per haec ac talia maxima aetatis parte transacta quinquagesimo anno imperium cepit
quantumvis mirabili casu Exclusus inter ceteros ab insidiatoribus Gai cum quasi
secretum eo desiderante turbam submoverent in diaetam cui nomen est Hermaeum
recesserat neque multo post rumore caedis exterritus prorepsit ad solarium proximum
interque praetenta foribus vela se abdidit Latentem discurrens forte gregarius miles
animadversis pedibus studio sciscitandi quisnam esset adgnovit extractumque et prae
metu ad genua sibi accidentem imperatorem salutavit (Suet Cl10 1-2)
Por estas e outras coisas semelhantes tendo passado muito do tempo assumiu o
impeacuterio soacute com cinquenta anos atraveacutes de um caso extremamente interessante
Excluiacutedo entre os outros pelos assassinos de Caio Caliacutegula quando sob o pretexto
de expulsarem a multidatildeo e desejando ele um lugar isolado retirou-se para um
pavilhatildeo ao qual chamam de ldquoHermeacuteurdquo E natildeo muito depois aterrorizado com a
notiacutecia da morte avanccedilou se arrastando para uma galeria solar proacutexima e se escondeu
entre as cortinas postas diante das portas Tendo os peacutes sido observados um soldado
raso correndo de uma parte a outra com uma forte curiosidade procurou saber quem
estaria escondido e reconheceu quem por ele foi retirado do esconderijo Diante do
medo Claacuteudio se prostrou aos seus peacutes o soldado o saudou como imperador
Notamos que um eventual olhar do narrador machadiano sobre a dinastia julio-claudiana
sempre lembrada no pensamento ocidental pelos excelentes generais como Juacutelio Ceacutesar e
Augusto e pelos polecircmicos Tibeacuterio Caliacutegula e Nero pode justificar a anaacutelise de Claacuteudio como
um personagem simploacuterio Isso se daacute mesmo este tendo conquistado diversas regiotildees e tido boa
aceitaccedilatildeo pelo povo romano pois como percebemos nos excertos de sua biografia Suetocircnio
fez ressoar sua fraqueza de espiacuterito inaptidatildeo para o governo e a covardia Cabe lembrar ainda
que numa leitura completa da biografia do imperador ele aparece como um joguete nas matildeos
das proacuteprias esposas Primeiramente Valeacuteria Messalina (a mesma referida no capiacutetulo em
questatildeo das Memoacuterias Poacutestumas) tentou entregar o Impeacuterio nas matildeos de um de seus amantes
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C Siacutelio mas sem sucesso foi por Claacuteudio condenada e executada Jaacute viuacutevo ele se casa com
Agripina que trama pela sua morte para legar o trono a seu filho Nero
Justifica-se assim tambeacutem o seu retrato como uma ldquoaboacuteborardquo na obra Apocoloquintose
na qual o filoacutesofo e tragedioacutegrafo Secircneca que foi banido de Roma por Claacuteudio em 41 em
razatildeo de intrigas palacianas critica ironicamente o receacutem-assassinado imperador Horaacutecio
Rolim de Freitas explica que
O tiacutetulo inicial seria Ludus de morte Claudii O historiador Dion Caacutessio sugeriu que
o tiacutetulo tenha sido Apocolocyntosis (transformaccedilatildeo em aboacutebora) do grego
Ἀποκολοκύνθοσις Tiacutetulo curioso mas era entendido pelos leitores da eacutepoca pois
aboacutebora (ποκολοκύντἡς) era siacutembolo da estupidez (FREITAS 2010 p 13)
Para compreendermos isso devemo-nos lembrar de um aspecto cultural importante na
Roma Antiga ndash a Apoteose A cerimocircnia de deificaccedilatildeo que ocorria durante os funerais dos
iminentes ceacutesares iniciada por Otaacutevio a partir da morte de seu tio Juacutelio Ceacutesar Ou seja o
argumento da obra senequiana eacute parodiar a narraccedilatildeo agraves avessas da apoteose de Claacuteudio
relatando como o morto foi recebido nos infernos pelos deuses transformando-se no alegoacuterico
legume
O segundo imperador citado nesse IV capiacutetulo de Memoacuterias Poacutestumas foi Tito
Vespasiano Augusto Tito foi o segundo princeps da dinastia flaviana Era o filho mais velho
de Vespasiano e irmatildeo de Domiciano os quais tambeacutem seratildeo citados por Braacutes Cubas ao longo
do romance Depois da morte de seu pai Tito assume as reacutedeas do Impeacuterio atuando de modo
similar a ele com excelecircncia no campo militar e com moderaccedilatildeo no campo poliacutetico foi visto
como um bom imperador por Roma Por essa razatildeo eacute descrito por Suetocircnio logo no primeiro
capiacutetulo de sua biografia como ldquoTito tendo o cognome do pai foi o amor e as deliacutecias do
gecircnero humano Tanto de inteligecircncia de habilidade e de fortuna abundava nele que ganhava a
simpatia de todos o que eacute muito difiacutecil durante um governordquo (Titus cognomine paterno amor
ac deliciae generis humani ndash tantum illi ad promerendam omnium voluntatem vel ingenii vel
artis vel fortunae superfuit et quod difficillimum est in impeacuterio () (Suet Tit 11) Com essa
seleccedilatildeo vocabular Suetocircnio ldquonos daacuterdquo o retrato de um imperador diferente de Claacuteudio Eacute esse
retrato com vastos predicados perante a humanidade que serviu de fonte para Machado de
Assis fazer o jogo de palavras com o termo ldquodeliacuteciardquo na ldquoideia fixardquo de um professor
Para encerrar a anaacutelise do capiacutetulo conveacutem observar a segunda referecircncia a tais principes
em ldquoViva pois a histoacuteria a voluacutevel histoacuteria que daacute para tudo e tornando agrave ideacutea fixa direi que
eacute ela a que faz os varotildees fortes e os doudos a ideacutea moacutebil vaga ou furta-cor eacute a que faz os
Claacuteudios mdash formula Suetocircniordquo (Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap
IV p 103) O Bruxo do Cosme Velho brinca com o gecircnero historiograacutefico ao qual o gecircnero
biograacutefico estaacute aparentado Chamando a histoacuteria de voluacutevel ele usa novamente o verbo ldquodarrdquo
Em nossa interpretaccedilatildeo o narrador quer reforccedilar que a histoacuteria ldquodaacuterdquo na acepccedilatildeo de ldquopromoverrdquo
diversos retratos sejam eles positivos ou negativos a depender da ldquoideiardquo que cada personagem
possui Esse modus operandi da formulaccedilatildeo de Suetocircnio muito se relaciona com o de Machado
Avancemos agora ao capiacutetulo XXIII de Memoacuterias Poacutestumas intitulado Triste mas curto
Em tal capiacutetulo Cubas narra sua chegada ao Rio de Janeiro e a sensaccedilatildeo de rever os locais de
sua infacircncia a tristeza de sua famiacutelia e o sofrimento de sua progenitora Quando vecirc sua matildee
com quem natildeo tinha contato haacute nove anos acha-a paacutelida e sem soltar uma palavra sequer pega
em suas matildeos No dia seguinte ela vem a falecer sendo a primeira vez que ele teria tido contato
com a morte de perto de uma pessoa amada Neste iacutenterim ele faz referecircncia a mais um ceacutesar
descrito por Suetocircnio o proacuteprio Juacutelio Ceacutesar que embora natildeo tenha chegado a ser um
ldquoimperadorrdquo enquanto chefe de estado eacute ele quem ldquodesenhardquo o que viria a ser o Impeacuterio
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romano iniciado por seu sobrinho-neto Otaviano Por essa razatildeo tambeacutem incluiacutemos tal general
em nossas anaacutelises e eacute assim referenciado no romance
Longa foi a agonia longa e cruel de uma crueldade minuciosa fria repisada que me
encheu de dor e estupefacccedilatildeo Era a primeira vez que eu via morrer algueacutem Conhecia
a morte de outiva quando muito tinha-a visto jaacute petrificada no rosto de algum
cadaacutever que acompanhei ao cemiteacuterio ou trazia-lhe a ideacutea embrulhada nas
amplificaccedilotildees de retoacuterica dos professores de coisas antigas mdash a morte aleivosa de
Ceacutesar a austera de Soacutecrates a orgulhosa de Catatildeo (Machado de Assis Memoacuterias
Poacutestumas de Braacutes Cubas cap XXIII p 145)
Nas referidas amplificaccedilotildees retoacutericas ressoa a morte do filoacutesofo Soacutecrates a qual de fato
ficou no imaginaacuterio ocidental como uma morte ldquoausterardquo dado o fato de ele ter se mantido
firme em suas ideias ldquocorruptorasrdquo dos jovens atenienses ateacute a hora de seu oacutebito A morte de
Catatildeo o Jovem tambeacutem eacute adjetivada por Braacutes Cubas poreacutem como ldquoorgulhosardquo A respectiva
adjetivaccedilatildeo se apresenta com ecircxito dado o fato de Catatildeo ter sido um poliacutetico romano notaacutevel
por sua integridade moral Sendo ele ainda partidaacuterio da filosofia estoica descrito pelo
historiador Saluacutestio como a antiacutetese direta de Juacutelio Ceacutesar suicidou-se apoacutes a vitoacuteria deste seu
opositor na Batalha de Tapso
Concentremo-nos poreacutem na morte de Ceacutesar mesmo que natildeo haja nenhuma associaccedilatildeo
direta dele com o bioacutegrafo diferentemente dos excertos com os imperadores anteriores isso
natildeo nos impede de relacionaacute-los O narrador machadiano adjetiva tal morte como ldquoaleivosardquo
denotando a atmosfera da traiccedilatildeo pela qual Ceacutesar passou no Senado romano relatada em sua
biografia deste modo
Assidentem conspirati specie officii circumsteterunt ilicoque Cimber Tillius qui
primas partes susceperat quasi aliquid rogaturus propius accessit renuentique et gestu
in aliud tempus differenti ab utroque umero togam adprehendit deinde clamantem
ldquoIsta quidem vis estrdquo alter e Cascis aversum vulnerat paulum infra iugulum Caesar
Cascae brachium arreptum graphio traiecit conatusque prosilire alio vulnere tardatus
est utque animadvertit undique se strictis pugionibus peti toga caput obvoluit simul
sinistra manu sinum ad ima crura deduxit quo honestius caderet etiam inferiore
corporis parte velata Atque ita tribus et viginti plagis confossus est uno modo ad
primum ictum gemitu sine voce edito etsi tradiderunt quidam Marco Bruto irruenti
dixisse καὶ σὺ τέκνον (Suet Jul 82 1-2)
Os que haviam concordado com a natureza do trabalho rodeavam aquele que estava
sentado Sem demorar Ciacutember Tiacutelio que se encarregava dos primeiros papeacuteis como
se houvesse de falar algo caminhou para mais perto Ceacutesar negando atraveacutes de um
gesto contraacuterio passou-o para outro momento Por ambos os lados aquele apertou sua
toga Entatildeo Ceacutesar clamou ldquoIsso eacute verdadeiramente uma violecircnciardquo Um dos Cascas
jaacute lhe tinha ferido por traacutes um pouco abaixo da garganta Com um ponteiro furou com
um ponteiro o braccedilo arrebatado de Casca e o impulso de arremeter foi detido por uma
outra ferida Mas quando observou que seria tomado por robustos punhais por todos
os lados cobriu a cabeccedila com a toga Ao mesmo tempo com a matildeo esquerda conduziu
a dobra da veste ateacute as extremidades das pernas de modo que jaacute estando com a parte
inferior do corpo coberta caiacutesse mais honrosamente Desta maneira foi dilacerado
por vinte e trecircs golpes Ateacute a primeira ferida teria produzido apenas um gemido sem
uma palavra sequer embora alguns afirmem que com o ataque de Marco Bruto teria
dito ldquoTambeacutem tu meu filhordquo
Como reconhecemos esses escritos de Suetocircnio com grande carga dramaacutetica foram
grandes responsaacuteveis por propagar no imaginaacuterio do mundo ocidental este evento que mudou
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os rumos da Roma Antiga Machado de Assis foi ciruacutergico ao usar a palavra aleivosa para
qualificar a morte de Ceacutesar a qual condensa toda a ideia da conjuraccedilatildeo Muito provavelmente
teve acesso a isso atraveacutes da referida biografia
Podemos avanccedilar ao capiacutetulo LXXII do romance cujo tiacutetulo eacute O bibliocircmano no qual o
defunto-autor confessa que deveria suprimir o capiacutetulo antecedente alegando haver nele um
despropoacutesito acerca do qual natildeo gostaria de receber criacuteticas Afirma que setenta anos agrave frente
este leitor que eacute por ele caracterizado e denominado ldquobibliocircmanordquo procuraria minuciosamente
o tal ldquodespropoacutesitordquo poreacutem sem ecircxito natildeo encontraria Em seguida explica que ele natildeo o
encontraria pelo simples fato de ele natildeo existir jaacute que foi suprimido Discorre ainda que isso
natildeo causaria o desinteresse do leitor sobre o livro e que pelo contraacuterio ele o adoraria por ser
um exemplar uacutenico O bibliocircmano continua sua procura mas mesmo sem sucesso se contenta
com o fato de dispor do uacutenico tomo
Jaacute prometeu a si mesmo escrever uma breve memoacuteria na qual relate o achado do livro
e a descoberta da sublimidade se a houver por baixo daquela frase obscura Ao cabo
natildeo descobre nada e contenta-se com a posse Fecha o livro mira-o remira-o chega-
se agrave janela e mostra-o ao sol
Um exemplar uacutenico Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um Ceacutesar ou um
Cromwell a caminho do poder Ele daacute de ombros fecha a janela estira-se na rede e
folheia o livro de vagar com amor aos goles Um exemplar uacutenico (Machado de
Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap LXXII p 209-210)
Neste excerto em que Braacutes Cubas manteacutem sua divagaccedilatildeo sobre o despropoacutesito da mesma
forma que fez com a noccedilatildeo de ideia fixa notamos a segunda referecircncia ao general Juacutelio Ceacutesar
A menccedilatildeo a Ceacutesar e a Cromwell visa ilustrar o modo como uma pessoa estaria transitando pela
rua ldquoa caminho do poderrdquo Oliver Cromwell foi um comandante militar e poliacutetico nascido na
nobreza rural inglesa em 1599 Em 1630 passa por uma conversatildeo religiosa e reconhecendo-
se como um Puritano acreditava que Deus era quem o guiava em suas vitoacuterias sendo muito
ativo durante a Guerra Civil Inglesa Mas quem mais nos interessa eacute o outro poliacutetico e militar ndash
Juacutelio Ceacutesar ndash e este nome associado agrave expressatildeo ldquocaminho do poderrdquo leva-nos a lembrar de
outro aspecto cultural da Roma Antiga ndash a travessia ao Rio Rubicatildeo Jaacute durante a Repuacuteblica
esse rio que dividia a proviacutencia da Gaacutelia Cisalpina (ao norte) do resto da Itaacutelia (ao sul) era de
suma importacircncia visto que a lei romana proibia que fosse transpassado por quaisquer legiotildees
do exeacutercito romano caso isso fosse feito denotaria uma ameaccedila militar interna
Resumidamente os sucessos de Ceacutesar na Gaacutelia acarretaram o aumento de seu poder de
sua popularidade e da ira de seus inimigos Estes influenciados por Catatildeo o Jovem (tambeacutem
jaacute referido no romance de Machado) tentaram promover sua ruiacutena poliacutetica Em 50 AEC o
Senado aprovou uma moccedilatildeo para que Ceacutesar fosse retirado do cargo de governador na Gaacutelia
Marco Antocircnio embasado pelo poder de tribuno do povo vetou a proposta Apoacutes isso houve
uma intensa perseguiccedilatildeo aos partidaacuterios de Juacutelio Ceacutesar Antocircnio precisou deixar Roma por
conta da alta probabilidade de ser assassinado e sem oposiccedilatildeo do Senado declarou estado de
emergecircncia delegando poderes excepcionais a Pompeu Magno Ceacutesar retrucou isso com a
famosa cruzada assim relatada por Suetocircnio
Dein post solis occasum mulis e proximo pistrino ad vehiculum iunctis occultissimum
iter modico comitatu ingressus est et cum luminibus extinctis decessisset via diu
errabundus tandem ad lucem duce reperto per angustissimos tramites pedibus evasit
Consecutusque cohortis ad Rubiconem flumen qui provinciae eius finis erat paulum
constitit ac reputans quantum moliretur conversus ad proximos ldquoEtiam nuncrdquo
inquit ldquoregredi possumus quod si ponticulum transierimus omnia armis agenda
eruntrdquo (Suet Jul 31 2)
Bruno Torres dos Santos
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Em seguida apoacutes o pocircr do Sol atadas as mulas desde o moinho mais proacuteximo ateacute o
veiacuteculo mais escondido comeccedilou o caminho com uma modesta caravana Com as
luzes acabando ia-se embora pelo caminho Entatildeo durante o dia tendo aparecido um
guia com peacutes errantes evadiu pelas mais estreitas veredas E acompanhado pelas
coortes ateacute o rio Rubicatildeo que traccedila o limite de sua proviacutencia parou um pouco e
calculou o quanto se moveu virou-se aos mais proacuteximos e disso ldquoAteacute agora podemos
recuar porque se atravessarmos a pequena ponte todas as coisas deveratildeo ser feitas
atraveacutes das armasrdquo
Cunctanti ostentum tale factum est Quidam eximia magnitudine et forma in proximo
sedens repente apparuit harundine canens ad quem audiendum cum praeter pastores
plurimi etiam ex stationibus milites concurrissent interque eos et aeneatores rapta ab
uno tuba prosilivit ad flumen et ingenti spiritu classicum exorsus pertendit ad alteram
ripam Tunc Caesar ldquoEaturrdquo inquit ldquoquo deorum ostenta et inimicorum iniquitas
vocat Iacta alea estrdquo inquit (Suet Jul 32)
Com ele ainda de tal modo titubeando foi eficaz um prodiacutegio Apareceu de repente
ali proacuteximo uma certa pessoa que estava sentada tocando com uma flauta exiacutemia em
grandeza e forma Para o ouvirem correram muitos pastores tambeacutem muitos soldados
das guarniccedilotildees entre eles alguns tocadores de trombeta Com a trombeta tomada de
um deles o muacutesico lanccedilou-se ao rio E com um imenso vigor realizou um toque
introdutoacuterio ateacute a outra margem do rio Entatildeo disse Ceacutesar ldquoVamos para onde o sinal
dos deuses e a hostilidade dos inimigos nos chamam A sorte estaacute lanccediladardquo
Como jaacute frisamos por parte do narrador de Machado natildeo haacute nenhuma referecircncia direta
desse Ceacutesar ao bioacutegrafo Suetocircnio mas vemos relaccedilotildees diretas entre o ato da desconhecida
pessoa ldquoa caminho do poderrdquo e os atos do general romano Mais uma vez o autor foi ciruacutergico
no uso da expressatildeo destacada para a qual muito provavelmente teve acesso ao excerto de
Suetocircnio cujo conteuacutedo tambeacutem faz parte do imaginaacuterio ocidental ndash a travessia ao rio Rubicatildeo
antecedida da frase ldquoA sorte estaacute lanccediladardquo Cabe lembrar que Machado jaacute usara a expressatildeo no
capiacutetulo XIII de seu romance Helena publicado em 1876 quando o personagem Estaacutecio na
tentativa de esquecer o amor pela protagonista Helena decide pedir Eugecircnia em casamento
Naquela mesma noite ouviu Eugecircnia a esperada palavra A alegria que se lhe
derramou nos olhos foi imensa e caracteriacutestica Um pouco mais de recato natildeo era
descabido em tal ocasiatildeo Natildeo houve nenhum o primeiro ato da mulher foi uma
meninice Eugecircnia ignorava tudo ateacute a dissimulaccedilatildeo do sexo Concedendo a matildeo a
Estaacutecio natildeo era uma castelatilde que entregava o precircmio mas um cavaleiro que o recebia
com alvoroccedilo e submissatildeo
Transposto o Rubicon natildeo havia mais que caminhar direito agrave cidade eterna do
matrimocircnio Estaacutecio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr Camargo pedindo-lhe
a matildeo de Eugecircnia carta seca e digna como as circunstacircncias a pediam (Machado de
Assis Helena cap XIII p 133)
Terminadas as referecircncias ao instaurador da dinastia juacutelio-claudiana faccedilamos um salto
ao capiacutetulo CXVI intitulado Filosofia das folhas velhas no qual Braacutes Cubas alega ter ficado
tatildeo triste com o capiacutetulo anterior a este4 pelo fato de sua amante Virgiacutelia ter embarcado para a
Europa No capiacutetulo CXVI vemos referecircncia a outro imperador associado ao escrito
suetoniano nesse caso trata-se do jaacute referido Domiciano
Apoacutes um governo moderado de dez anos o do seu pai Vespasiano seguido por outro
governo tambeacutem moderado de apenas dois anos o do seu irmatildeo Tito de modo contraacuterio
4 O capiacutetulo CXV intitulado O almoccedilo
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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Domiciano assume com bastante autoritarismo Durante seus quinze anos de governo o uacuteltimo
imperador flaviano cometeu assassinatos de diversos cidadatildeos importantes incluindo
senadores Essas razotildees acarretaram numa conjuraccedilatildeo para a sua morte E diferente do seu pai
e irmatildeo que foram divinizados apoacutes a morte Domiciano ldquorecebeurdquo do Senado um decreto para
a sua damnatio memoriae essa danaccedilatildeo da memoacuteria significava as retiradas de suas imagens
em bustos inscriccedilotildees etc
Esclarecidos esses pontos sobre o imperador Domiciano voltemos a Braacutes Cubas O
narrador inicia o referido capiacutetulo em questatildeo refletindo pela metalinguagem ldquoFiquei tatildeo triste
com o fim do uacuteltimo capiacutetulo que estava capaz de natildeo escrever este descansar um pouco purgar
o espiacuterito da melancolia que o empacha e continuar depois Mas natildeo natildeo quero perder tempordquo
(Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258) e continua a
reflexatildeo
A partida de Virgiacutelia deu-me uma amostra da viuvez Nos primeiros dias meti-me em
casa a fisgar moscas como Domiciano se natildeo mente o Suetocircnio mas a fisgaacute-las de
um modo particular com os olhos Fisgava-as uma a uma no fundo de uma sala
grande estirado na rede com um livro aberto entre as matildeos (Machado de Assis
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258)
O narrador-personagem machadiano Braacutes Cubas discorre sobre seu desgosto pela vida
e sobre a monotonia agrave qual estava submetido apoacutes a partida da mulher ldquoextraconjugalmenterdquo
amada Virgiacutelia Notamos que para ilustrar de modo exagerado o desacircnimo por parte de Braacutes
Cubas sendo esse abatimento comparado a uma viuvez Machado de Assis apresenta seu
defunto-autor de um modo tatildeo ocioso que fisgava as moscas apenas com os olhos Ou seja ele
eacute apresentado mais ociosamente que o imperador Domiciano que espetava moscas A fim de
captarmos essa menccedilatildeo valemo-nos do capiacutetulo 3 da biografia de Domiciano
Inter initia principatus cotidie secretum sibi horarum sumere solebat nec quicquam
amplius quam muscas captare ac stilo praeacuto configere ut cuidam interroganti
essetne quis intus cum Caesare non absurde responsum sit a Vibio Crispo ne muscam
quidem (Suet Dom 3)
Durante os iniacutecios de seu principado solitaacuterio estava ele habituado diariamente pelas
horas a colher para si nada mais que moscas e prender com um estilete pontudo Para
uma certa interrogaccedilatildeo se acaso natildeo tinha ningueacutem dentro do local com Ceacutesar de
modo adequado teria sido respondido por Viacutebio Crispo que natildeo que nem mesmo
uma mosca
Notamos entatildeo que se por um lado atraveacutes da intertextualidade Machado se volta para
o Domiciano de Suetocircnio com o intuito de descortinar o estado de alma de Braacutes Cubas por
outro Suetocircnio apresenta essa anedota das moscas para condicionar seu leitor a um juiacutezo
negativo sobre o retrato moral de Domiciano que nada fazia em prol da burocracia puacuteblica no
iniacutecio de seu principado Essa anedota sobre Domiciano com Viacutebio Crispo enquanto locutor
jamais deixaria de ser apresentada por Suetocircnio haja vista que os atos burocraacuteticos bem como
as accedilotildees militares e diplomaacuteticas faziam parte das temaacuteticas de suas biografias Somos tentados
a crer que o fato de Suetocircnio ser oriundo da ordem dos equestres e mais tarde ter assumido
algumas funccedilotildees puacuteblicas durante o principado de Trajano e de Adriano tambeacutem teria
contribuiacutedo para sua atenccedilatildeo a esses tipos de chistes
Embora Suetocircnio natildeo seja visto como um historioacutegrafo mas sim como um erudito
bioacutegrafo e natildeo tenha pertencido agrave ordem senatorial sabemos que ele enveredou pela tradiccedilatildeo
Bruno Torres dos Santos
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historiograacutefica senatorial isto eacute aquela que retratava moralmente bem os imperadores
favoraacuteveis ao Senado e moralmente mal os refrataacuterios a esse corpo Isso talvez tenha se dado
graccedilas ao seu contato com o influente senador Pliacutenio o Jovem e ao participar do seu ciacuterculo
de amizades tambeacutem teve contato com os historiadores Taacutecito e Faacutebio Ruacutestico Podemos
depreender que Domiciano natildeo deixou de apresentar motivos para ser exageradamente mal
retratado pela pena suetoniana e por isso a ressalva de Braacutes Cubas que diz ldquose natildeo mente o
Suetocircniordquo
Avancemos ao capiacutetulo CLII intitulado A moeda de Vespasiano no qual encontramos a
uacuteltima menccedilatildeo feita desde seu tiacutetulo a um imperador romano retratado por Suetocircnio Em tal
capiacutetulo na volta do enterro de Lobo Neves Braacutes Cubas refletia sobre o choro mais
precisamente sobre os soluccedilos sinceros da sua amante Virgiacutelia para o marido ao qual tinha
traiacutedo com igual sinceridade
Jaacute sabemos algumas informaccedilotildees acerca do ceacutesar em questatildeo todavia vale reforccedilar que
foi ele quem saiu vitorioso do conhecido historicamente Ano dos Quatro Imperadores em 69
Apoacutes o suiciacutedio ocorrido em 68 do uacuteltimo juacutelio-claudiano ndash o polecircmico Nero ndash que natildeo havia
deixado ningueacutem para linha sucessoacuteria os generais Galba Otatildeo Viteacutelio e Vespasiano atraveacutes
de sucessivos confrontos armados guerrearam entre si ansiando o trono deixado por Nero
Com a vitoacuteria de Vespasiano eacute instaurada a dinastia flaviana Entatildeo passemos ao curto capiacutetulo
das Memoacuterias Poacutestumas em completude
Tinham ido todos soacute o meu carro esperava pelo dono Accendi um charuto afastei-
me do cemiteacuterio Natildeo podia sacudir dos olhos a cerimocircnia do enterro nem dos ouvidos
os soluccedilos de Virgiacutelia Os soluccedilos principalmente tinham o som vago e misterioso
de um problema Virgiacutelia traiacutera o marido com sinceridade e agora chorava-o com
sinceridade Eis uma combinaccedilatildeo difiacutecil que natildeo pude fazer em todo o trajecto em
casa poreacutem apeando-me do carro suspeitei que a combinaccedilatildeo era possiacutevel e ateacute
faacutecil Meiga Natura A taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave
origem e tanto se colhe do mal como do bem A moral repreenderaacute porventura a
minha cuacutemplice eacute o que te natildeo importa implacaacutevel amiga uma vez que lhe recebeste
pontualmente as laacutegrimas Meiga trecircs vezes Meiga Natura (Machado de Assis
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CLII p 294)
Percebemos que na busca pela anaacutelise do estado de alma de sua amada Virgiacutelia o narrador
Braacutes Cubas reverbera que ldquoA taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave origem
e tanto se colhe do mal como do bemrdquo Mas de onde ele teria tirado essas relaccedilotildees semacircnticas
entre o imperador Vespasiano-moeda-taxa-cheiro Pois bem Mais uma vez quem nos traz a
resposta eacute Suetocircnio
Reprehendenti filio Tito quod etiam urinae vectigal commentus esset pecuniam ex
prima pensione admovit ad nares sciscitans num odore offenderetur et illo negante
ldquoAtquin inquit e lotio estrdquo (Suet Vesp 233)
Repreendeu seu filho Tito porque ele Vespasiano teria inventado um imposto sobre
a urina que por aquele foi advertido entatildeo aproximou o dinheiro do primeiro
pagamento desse tributo do nariz de Tito E perguntando-o se acaso natildeo se sentia
incomodado com odor e Tito negando Vespasiano respondeu No entanto eacute
proveniente da urinardquo
Na curiosa anedota Vespasiano criador de um imposto sobre a urina pois muitos
comerciantes as retiravam das latrinas puacuteblicas e as utilizavam para curtir os tecidos que
vendiam repreende o primogecircnito por ter discordado inicialmente da ideia Natildeo temos duacutevidas
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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de que Machado de Assis teve acesso a essa biografia para usar com propriedade em seu
romance nessa cena em que seu narrador busca explicaccedilotildees para fatos aparentemente
contraditoacuterios
Esse excurso pelas duas obras aparentemente distantes e des-relacionadas nos deu a liccedilatildeo
de que o narrataacuterio enquanto entidade leitora fictiacutecia compreende e decodifica os aspectos
concernentes agraves personalidades em apreccedilo os princepes no entanto para o leitor ideal isso se
mostra mais obscuro Machado de Assis aproveita os questionaacuteveis retratos dos ceacutesares de
Suetocircnio para enriquecer sua obra literaacuteria
Assim contribuindo mais para a compreensatildeo do romance machadiano pela anaacutelise da
traduccedilatildeo a qual nos permitiu o estudo sobre as referecircncias agrave histoacuteria agrave cultura e agrave literatura da
Roma Antiga cristalizados pelos Claacuteudio Tito Ceacutesar Domiciano e Vespasiano suetonianos
os esforccedilos empreendidos teratildeo alcanccedilado seu objetivo nessas ressignificaccedilotildees Se as
referecircncias e os eventos atrelados a esses ceacutesares que nos foram ldquodadosrdquo pelas biografias de
Suetocircnio tiverem sido descortinados dentro das Memoacuterias Poacutestumas de Machado de Assis
podemos ficar sem ldquoideias fixasrdquo de que criamos ldquodespropoacutesitosrdquo
IacuteNDICE DE ABREVIACcedilOtildeES
Suet Cl (Suetocircnio Claacuteudio)
Suet Dom (Suetocircnio Domiciano)
Suet Jul (Suetocircnio Juacutelio Ceacutesar)
Suet Tit (Suetocircnio Tito)
Suet Ves (Suet Vespasiano)
DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL
ASSIS Joaquim Maria Machado de Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Rio de Janeiro
Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975
______ Helena Rio de Janeiro Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975
SUETONIUS Lives of the Caesars Volume I Julius Augustus Tiberius Gaius
Caligula Translated by J C Rolfe Introduction by K R Bradley Loeb Classical Library 31
Cambridge MA Harvard University Press 1914
______ Lives of the Caesars Volume II Claudius Nero Galba Otho and Vitellius
Vespasian Titus Domitian Lives of Illustrious Men Grammarians and Rhetoricians
Poets (Terence Virgil Horace Tibullus Persius Lucan) Lives of Pliny the Elder and
Passienus Crispus Translated by J C Rolfe Loeb Classical Library 38 Cambridge MA
Harvard University Press 1914
Bruno Torres dos Santos
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 35
REFEREcircNCIAS
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CANDIDO Antonio O sistema literaacuterio consolidado In Iniciaccedilatildeo agrave literatura Brasileira
6deg ed Rio de Janeiro Ouro Sobre Azul 2010 p65-126
CITRONI Maacuterio (Dir) CITRONI MCONSOLINO FELABATE M NARDUCCI
(orgs) Literatura de Roma Antiga Co-autores da traduccedilatildeo Margarida Miranda e Isaiacuteas
Hipoacutelito Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2006
ESTEVES Anderson Martins Biografia na biografia Vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas
obras Principia ndash Revista do Departamento de Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de
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LORIGA Sabina O limiar biograacutefico In O pequeno x da biografia agrave histoacuteria Traduccedilatildeo
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946511
LUCIacuteOLA E O TRAacuteGICO ESTUDO ACERCA DAS MARCAS DO HEROacuteI
TRAacuteGICO EM UM PERFIL DE MULHER ALENCARIANO
Heitor Victor
RESUMO Recorrer aos claacutessicos para entender nosso tempo natildeo eacute mesmo nenhuma novidade
Apelar para a trageacutedia grega a fim de identificar o que persiste em nossa compreensatildeo acerca
de noacutes mesmos se tornou lugar comum de investigaccedilotildees em diversas aacutereas de interesse Tal
estrateacutegia se repete em razatildeo evidentemente de uma inesgotaacutevel potecircncia alegoacuterica acerca da
existecircncia humana O que pretendo neste breve trabalho eacute uma anaacutelise em linha comparativa
das marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia de Alencar personagem que o proacuteprio autor considera
um de seus perfis de mulher Para tal dialogo com Benjamin que se apresenta como um elo de
compreensatildeo do heroacutei traacutegico figura esta que se mostrou mais longeva do que a proacutepria trageacutedia
helecircnica
PALAVRAS-CHAVE Luciacuteola Traacutegico Heroiacutena
LUCIacuteOLA AND THE TRAGIC ESSAY ABOUT THE MARKS OF THE
TRAGIC HERO IN A WOMAN PROFILE OF JOSEacute DE ALENCAR
ABSTRACT It is no novelty that a return to the classics helps to understand our own time It is
even a commonplace in many research fields that an approach to greek tragedy makes it
possible for us to better understand ourselves Such a strategy still turns out to be suitable
because there is an ongoing possibility of creating allegories of human existence My aim in
this short essay is to perform a comparative analysis of the tragical features of Luacutecia an
important character of Joseacute de Alencars prose who the author himself deems to be a crucial
example of his depictions of the feminine In order to do that I draw upon Walter Benjamins
work which provides us with a comprehensive overview of the tragic hero - who actually
proved himself to be more important than the helenic tragedy itself
KEYWORDS Luciacuteola Tragic Heroine
Introduccedilatildeo
O teatro traacutegico dos gregos natildeo pode mais retornar isso eacute um fato mas eacute marcante a sua
presenccedila ainda em nossa literatura ocidental Analisar o elemento traacutegico natildeo eacute necessariamente
uma novidade mas sempre se mostra desafiador relacionarmos o traacutegico agrave estrutura de
composiccedilatildeo da personagem do romance na literatura moderna O presente trabalho pretende
Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
E-mail heitor-victorhotmailcom
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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pois fazer uma leitura da personagem Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar pioneira da
seacuterie perfis de mulher como construiacuteda sob o signo do traacutegico uma heranccedila legada pelo teatro
grego e que perdura em nossa cultura
O desafio que salta aos olhos eacute certamente as dificuldades de se transpor para o romance
caracteriacutesticas da personagem do texto dramaacutetico ou entender nesta a capacidade de se
apresentar com a profundidade comum ao romance Eacute possiacutevel entender contudo que retiradas
as divergecircncias praacuteticas do meio de veiculaccedilatildeo das narrativas sobram elementos em comum
que residem no imaginaacuterio coletivo e soacute fazem enriquecer o repertoacuterio de leituras que nos
permite a prosa alencariana do seacuteculo XIX
Luacutecia eacute uma das heroiacutenas mais complexas de seu autor capaz de em poucas paacuteginas
fazer o leitor se questionar sobre sua verdadeira natureza ora por sua candura ora por sua ironia
aacutecida apego e desprendimento iacutempares no cenaacuterio romanesco de um tempo que vecirc transbordar
a quantidade de novas e encantadoras personagens Nossa heroiacutena permite-nos destacaacute-la
exatamente por encerrar um signo que extrapola o estilo de seu tempo por meio de grandes
dicotomias autoconsciecircncia e culpa sacrifiacutecio e desejo silecircncio e seduccedilatildeo a personagem se
nos mostra uacutenica no cenaacuterio veloz e dinacircmico dos romances de folhetim
Sublime Decaiacutedo Uma Alegoria
No intuito de criar um elemento intermediaacuterio entre o heroacutei da trageacutedia e o heroacutei traacutegico
que mostrarei estar presente no romance Luciacuteola de Joseacute de Alencar seraacute preciso recorrer agrave
descriccedilatildeo desse heroacutei feita por Walter Benjamin (2011) acerca do drama traacutegico alematildeo
Enquanto aparato cecircnico ou mesmo de criaccedilatildeo literaacuteria encontramos outro contexto e outra
realidade mas o elemento fundamental ainda estaraacute laacute presente O heroacutei traacutegico manteraacute uma
seacuterie de aspectos essenciais que o transformam no portador da anguacutestia humana sem perder o
inexoraacutevel do mito despido ainda mais do movimento de ritualizaccedilatildeo religioso Eacute o traacutegico que
permanece e esse seraacute fundamental para a construccedilatildeo de uma identidade nacional do drama
alematildeo segundo o autor o que nos mostra o potencial desse heroacutei traacutegico no processo de
aproximaccedilatildeo entre o discurso formador e o seu espectador (BENJAMIN 2011)
Um primeiro elemento identificado por Benjamin (2011) que nos interessa no heroacutei
traacutegico eacute o seu caraacuteter alegoacuterico se eacute que posso falar em alegoria do mito que jaacute o eacute em essecircncia
Certamente contudo figura nesse elemento a grande potecircncia reflexiva da personagem traacutegica
que poderaacute ser transportado para Luacutecia Ao relevarmos a ambiccedilatildeo do autor de traccedilar perfis de
mulher1 a alegoria destaca Luacutecia de Emiacutelia e Aureacutelia o que faz evidenciar naquela a tragicidade
em comparaccedilatildeo com estas Deixe-me verificar antes e em linhas mais gerais o que entende
Benjamin por alegoria no drama traacutegico
Devo dispensar em razatildeo de objetivos praacuteticos a discussatildeo do autor acerca das
concepccedilotildees de alegoacuterico e simboacutelico para o barroco e para o romantismo para ir diretamente ao
ponto o alegoacuterico eacute entendido como aquele que supera a unidade da obra e se posiciona com
transcendecircncia agrave medida que o siacutembolo se encerra em si mesmo mostra identidade e um caraacuteter
proacuteprio da obra em que se coloca Benjamin recorre a Goethe para mostrar a concepccedilatildeo
romacircntica de siacutembolo e alegoria ldquoHaacute uma grande diferenccedila entre o poeta procurar o particular
para chegar ao geral e contemplar o geral no particular No primeiro procedimento temos uma
alegoria e o particular serve apenas como exemplo como caso exemplar do geralrdquo
(BENJAMIN 2011 p 171)
1 Natildeo devemos deixar de reconhecer que essa intenccedilatildeo descritiva de construccedilatildeo de um perfil apresenta-se como
um elemento romanesco do narrador de Luciacuteola Como visto no primeiro capiacutetulo da obra quando o narrador
se justifica a G M sua pretensa correspondente ldquoEacute um perfil de mulher apenas esboccediladordquo (ALENCAR 1972
p 121) A todo momento que eu tocar nesse ponto se deve reconhecer que a nossa base reside antes de tudo
nesse caraacuteter narrativo do romance alencariano
Heitor Victor
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A despeito da valoraccedilatildeo feita por Goethe seguiremos a leitura de Benjamin para
entender Luacutecia como o caso particular representativo de um perfil maior o da mulher que
encarna o anjo caiacutedo seu nome daacute a grande indicaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo alegoacuterica mas a mesma
natildeo deixa de aparecer ao longo da obra Reconhecerei em minha anaacutelise na Luacutecia de Alencar
a alegoria da mulher sublime que decai em todo o seu caraacuteter duacutebio mas ainda assim
permanente que morre ao final do romance natildeo agrave toa mas de maneira necessaacuteria para
consolidar a aspiraccedilatildeo alegoacuterica desse perfil de mulher talvez o mais ousado de Alencar
Benjamin reconhece que
o seu (da alegoria) significado eacute aquele que o alegorista lhe atribuir Ele investe-o
desse significado e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele natildeo em sentido
psicoloacutegico mas ontoloacutegico Nas suas matildeos a coisa transforma-se em algo de diverso
atraveacutes dela ele fala de algo de diverso e ela torna-se para ele a chave que lhe daacute acesso
a um saber oculto que ele venera na coisa como seu emblema Eacute nisso que reside o
caraacuteter escritural da alegoria (BENJAMIN 2011 p 196)
Esse seraacute portanto o meu ponto de partida Para natildeo deixar qualquer duacutevida sobre essa
relaccedilatildeo devo me deter nesse tema ainda para mostrar na obra algumas marcas dessa relaccedilatildeo A
comeccedilar pelo elemento dramaacutetico de narraccedilatildeo o recado de G M ldquoao autorrdquo Apoacutes reconhecer
a grandeza da personagem e o valor da narrativa que se seguiraacute dramaticamente posta como
uma publicaccedilatildeo da mesma G M afirma ldquoNatildeo seraacute a imagem verdadeira da mulher que no
abismo da perdiccedilatildeo conserva a pureza drsquoalmardquo (ALENCAR 1972 p 120) Natildeo se pode
desaperceber que eacute usado natildeo a referecircncia definida dedicada agrave Luacutecia mas uma referecircncia geral
a todas as mulheres Eacute exatamente nesse caraacuteter geneacuterico que residiria o valor alegoacuterico de que
trato neste trabalho
Podemos tambeacutem recorrer aos eventos narrados no interior do romance para vermos
personificada a alegoria do anjo caiacutedo seja pela capacidade de transitar com primor entre um e
outro digo entre o angelical e o demoniacuteaco ou seja por encerrar em si mesma os dois
extremos Luacutecia se nos apresenta apenas pela narrativa de Paulo natildeo se pode esquecer e muito
de sua transitoriedade pode residir apenas nas impressotildees desse narrador personagem mas isso
em nada muda o seu caraacuteter alegoacuterico Um episoacutedio que expressa com clareza a ambivalecircncia
de Luacutecia eacute o de seu primeiro encontro iacutentimo com Paulo Em curto espaccedilo de tempo
cronoloacutegico e narrativo vemos uma transformaccedilatildeo que beira a ida pronta do sagrado ao
profano No momento em que avanccedila sobre Luacutecia Paulo reconhece
Quando poreacutem os meus laacutebios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as
formas encantadoras que debuxavam a seda pareceu-me que o sangue lhe refluiacutea ao
coraccedilatildeo As palpitaccedilotildees eram bruscas e precipites Estava liacutevida e mais branca do que
o alvo colarinho do seu roupatildeo Duas laacutegrimas em fio duas laacutegrimas longas e sentidas
como dizem que chora a corccedila expirando pareciam cristalizadas sobre a face de tatildeo
lentas que rolavam (ALENCAR 1972 p 134-135)
Vemos aqui com a reaccedilatildeo genuiacutena de Luacutecia somada agraves laacutegrimas sua comparaccedilatildeo ao
choro da corccedila notamos aqui o temperamento puro que nos surpreende a todos narrador e
leitor Surpresa que se justifica com a mudanccedila abrupta de Luacutecia para entregar a imagem que
nos foi construiacuteda pelos pares de Paulo de que nossa heroiacutena se tratava de uma cortesatilde das mais
haacutebeis
Era outra mulher O rosto cacircndido e diaacutefano que tanto me impressionou agrave doce
claridade da lua se transformara completamente tinha agora uns toques ardentes e
um fulgor estranho que o iluminava Os laacutebios finos e delicados pareciam tuacutemidos dos
desejos que incubavam Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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narina que tremiam com o aneacutelito do respiro curto e sibilante e tambeacutem nos fogos
surdos que incendiavam a pupila negra (ALENCAR 1972 p 136)
Nessa transformaccedilatildeo se apresenta a indistinguiacutevel transiccedilatildeo do sagrado do choro da
corccedila para a respiraccedilatildeo sibilante demoniacuteaca em lasciacutevia Seria inuacutetil continuar enumerando os
momentos em que se evidencia tal transformaccedilatildeo acredito que esses episoacutedios partem da
anteriormente citada alegoria que pode nortear nossa leitura do romance
Natildeo nos seraacute nunca possiacutevel bater o martelo sobre tal questatildeo seria Luacutecia o siacutembolo de
Goethe ou a alegoria de Benjamin Somando contudo as marcas supracitadas a ainda o
reconhecimento de outras marcas do traacutegico preferirei me manter na leitura de Benjamin de
que o alegoacuterico eacute ainda desejaacutevel mesmo no romance exatamente por seu valor transcendente
e assim poderemos entender Luacutecia e seu perfil exclusivo de mulher como tambeacutem dotado de
valor reflexivo e generalista das anguacutestias femininas
Marcas do Heroacutei Traacutegico
As laacutegrimas do episoacutedio transcrito acima servem como indicador do demais elementos
de proximidade entre o heroacutei traacutegico de Benjamin e a Luacutecia de Alencar Tal choro evidencia
uma dor suprimida mas acima de tudo encerra em si quatro aspectos sobre os quais tratarei
neste trabalho o silecircncio a culpa a consciecircncia e o sacrifiacutecio O silecircncio de quem guarda para
si o seu verdadeiro eu suas dores e reflexotildees Eacute nas laacutegrimas que temos o primeiro vislumbre
da profundidade traacutegica de Luacutecia A personagem demonstra nesse exato momento plena
consciecircncia de si de seu destino e sente a culpa que pesa sobre si as laacutegrimas expressam o
ardor do seu sacrifiacutecio pois satildeo sublimadas por sua candura Vejamos adiante o que pretendo
dizer com esses quatro aspectos e sua relaccedilatildeo com o traacutegico
Devo principiar contrariando a ordem anterior pelo sacrifiacutecio para manter a
abordagem de Benjamin O autor entende que o heroacutei traacutegico realiza sua atuaccedilatildeo maior em sua
proacutepria morte o sacrifiacutecio maior e que eacute exatamente entatildeo que o heroacutei se distingue dos demais
indiviacuteduos Benjamin afirma
A marca identificativa da trageacutedia natildeo estaacute pois num conflito de niacuteveis entre o heroacutei
e mundo circundante [] mas sim a forma uacutenica grega de tais conflitos E onde deve
ser procurada essa forma Que tendecircncia se esconde no fenocircmeno traacutegico Por que
causa morre o heroacutei A poesia traacutegica assenta na ideia do sacrifiacutecio (BENJAMIN
2011 p 108)
Luacutecia se sacrifica natildeo apenas porque morre mas se encerra em sua morte uma entrega
definitiva a Paulo e agrave sua irmatilde Ana A morte de Luacutecia eacute decisiva para a construccedilatildeo e para a
profundidade da personagem aleacutem de ser elemento fundamental para a generalidade
constitutiva da alegoria Ainda mais que o sacrifiacutecio do heroacutei traacutegico natildeo eacute um sacrifiacutecio
comum Seguindo ainda o raciociacutenio de Benjamin temos
o sacrifiacutecio traacutegico difere no seu objeto ndash o heroacutei ndash de todos os outros e eacute ao mesmo
tempo inaugural e terminal Terminal no sentido do sacrifiacutecio expiatoacuterio devido aos
deuses guardiatildees de um antigo direito e inaugural no sentido de uma accedilatildeo que em
algum lugar desse direito anuncia novos conteuacutedos da vida do povo (BENJAMIN
2011 p 108)
Ou seja o sacrifiacutecio de Luacutecia eacute terminal expiatoacuterio de sua vida de perfiacutedia Luacutecia
reconhece em seus uacuteltimos momentos para Paulo a sua importacircncia e exatamente por isso por
ele se sacrifica
Heitor Victor
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ndash Paulo Paulo Tu bem sabes que com essa palavra me farias cometer crimes se
crimes fosse necessaacuterio para te provar que eu soacute vivo da vida que me daacutes e me podes
tirar com um sopro Natildeo sou eu criatura tua natildeo renasci pela luz que derramaste em
minha alma Natildeo eacutes meu senhor meu artista meu pai e meu criador (ALENCAR
1972 p 243)
O sacrifiacutecio de Luacutecia como se evidencia natildeo estaacute apenas na morte mas na sua entrega
completa Entrega que se apresenta como sua uacutenica forma de se redimir da vida que levara O
sacrifiacutecio reconhecendo ainda tais aspectos de Benjamin eacute tambeacutem inaugural quando se
direciona a Ana sua irmatilde em quem enxerga a uacutenica continuidade possiacutevel Seja para sua
protegida ou mesmo para a continuidade da vida de Paulo possiacutevel apenas com o encerramento
da sua proacutepria vida
Outro aspecto do heroacutei traacutegico de Benjamin presente em Luciacuteola eacute o silecircncio jaacute
mencionado anteriormente ldquoO heroacutei traacutegico tem apenas uma linguagem que plenamente lhe
corresponde precisamente a do silecircncio Assim eacute desde o iniacuteciordquo (BENJAMIN 2011 p 109)
Esse silecircncio eacute identificaacutevel em diversos momentos em Luacutecia pois evoca a resiliecircncia da
heroiacutena com o seu fardo Natildeo eacute um silecircncio de conformismo ou mesmo qualquer espeacutecie de
natildeo se importar que a toma mas ldquoo testemunho de um sofrimento mudordquo (BENJAMIN 2011
p 109) Eacute com esse silecircncio que Luacutecia arrebata o leitor para o seu drama pessoal natildeo como um
perseguidor ou inquisidor mas como partiacutecipe de seu pesar de sua dor Tal silecircncio aparece
nos momentos de prazer como quando se divertia no banquete noturno na casa de Saacute ldquoLuacutecia
fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria e caiacutera no costumado abatimento e distraccedilatildeo Eu a
contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava
quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaiacutedordquo (ALENCAR 1972 p 152-
153) Ou mesmo em sua face mais sincera jaacute como Maria ldquoQuando cheguei Luacutecia estava soacute
no jardim debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujaacutes tatildeo absorvida em sua
meditaccedilatildeo que natildeo me percebeurdquo (ALENCAR 1972 p 245)
Seguindo com minha anaacutelise comparativa devo abordar o aspecto da consciecircncia
fundamental para a diferenciaccedilatildeo entre uma outra personagem qualquer e o heroacutei traacutegico Esse
aspecto em especial eacute importante para a leitura que apresento por se tratar de algo que
claramente distingue o heroacutei romacircntico convencional daquele que eacute regido pelo signo do
traacutegico O heroacutei do romance desconhece completamente o seu destino e reside precisamente
nisso suas duacutevidas e questionamentos Nossa heroiacutena traacutegica contudo ainda que tambeacutem
romacircntica ndash natildeo o desejamos negar em nenhum momento se mostra consciente do seu caminho
Para esclarecer esse sentido de consciecircncia Benjamin traz uma fala de Lukaacutecs acerca do
reconhecimento da proacutepria morte
Tambeacutem a escolha da morte pelo homem traacutegico eacute um heroiacutesmo soacute aparentemente
heroico soacute assim visto de um ponto de vista humano e psicoloacutegico os heroacuteis
moribundos da trageacutedia ndash escrevia haacute pouco tempo um jovem autor traacutegico ndash estatildeo
mortos muito tempo antes de morrerem (BENJAMIN 2011 p 117)
Apenas a cargo de exemplificaccedilatildeo que se encaixa bem na ideia de reconhecimento da
morte como marca do heroacutei traacutegico podemos citar a consciecircncia apresentada por Luacutecia antes
de sua proacutepria morte ldquondash Se eu pudesse viver haveria forccedilas que me separassem de ti Haveraacute
sacrifiacutecio que eu natildeo fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade Mas Deus natildeo
quis Sinto que a vida me fogerdquo (ALENCAR 1972 p 248)
Devo tratar por fim do quarto aspecto a que me reservei neste trabalho que eacute o da culpa
Sem duacutevidas o eixo central de todo o romance de Alencar A culpa natildeo pode ser entendida
contudo como o arrependimento de seus atos ou mesmo sujeiccedilatildeo completa ao proacuteprio erro A
culpa como elemento traacutegico traz um valor de compreensatildeo Nossa heroiacutena traacutegica natildeo apenas
se lamenta da vida que fora levada a ter mas por meio da culpa ela se reconstroacutei eacute precisamente
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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por meio da culpa que no fim em meio ao embate entre anjo e democircnio prevalece sua face
angelical e a alegoria alcanccedila a sua plenitude Recorro ainda agraves palavras de Benjamin para
clarificar essa noccedilatildeo de culpa no drama traacutegico
No decorrer da accedilatildeo traacutegica um heroacutei assume e internaliza essa culpa que segundo
as antigas normas eacute imposta aos homens a partir de fora pela desgraccedila Ao refleti-la
na sua consciecircncia de si ele furta-se agrave sua tutela demoniacuteaca [] Paradoxal como
todas as manifestaccedilotildees da culpa traacutegica ela consiste apenas numa orgulhosa
consciecircncia de culpa na qual a figura heroica se liberta da servidatildeo que na sua
lsquoinocecircnciarsquo a sujeita agrave culpa demoniacuteaca (BENJAMIN 2011 p 135)
Essa culpa talvez seja dentre os aspectos ateacute aqui elencados o que mais se mostra claro
ao longo de Luciacuteola Nos momentos de maior comoccedilatildeo compartilhamos com Luacutecia esse seu e
genuiacuteno sentimento e eacute precisamente graccedilas a ele que o lado sagrado desse anjo caiacutedo prevalece
e nos faz criar a empatia entre leitor e personagem Vejamos portanto dois casos que
expressam os dois extremos da culpa vivida por Luacutecia Ora tal sentimento se expressa pela
ironia como quando Paulo no evento da casa de Saacute tenta singularizar a sua presenccedila e nossa
heroiacutena rebate com acidez
ndash Ora Haacute tanta mulher bonita Qualquer destas vale mais do que eu acredite Demais
quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado saberaacute o senhor de
quem satildeo os laacutebios que toca Qual Eacute uma mulher Uma presa em que ceva o apetite
Que importa o nome Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe
prepararam esta ceia Conhece-os Nem por isso as iguarias lhe parecem menos
saborosas (ALENCAR 1972 p 153)
Em outro momento contudo vemos a culpa sob outra roupagem da maneira mais
sincera em um de seus momentos de maior entrega
ndash Tu podes me fazer voltar agrave treva de que me arrancaste podes estancar as fontes de
minha existecircncia que manam de tua alma e natildeo me haacutes de ouvir uma soacute queixa A
dor como a alegria seratildeo sempre benditas por que viratildeo de ti Mas Paulo a suacuteplica
do humilde natildeo ofende Deus a permite e exalccedila Natildeo me retires a graccedila e a becircnccedilatildeo
que me deste Salva-me Paulo Salva-me a ti Salva-me de mim mesma
(ALENCAR 1972 p 243)
Natildeo agrave toa seleciono esta uacuteltima fala de Luacutecia para encerrar a argumentaccedilatildeo pois
precisamente aqui a culpa se mostra como o elemento libertador e eacute aqui que Luacutecia talvez tenha
entendido e absorvido o orgulho citado por Benjamin para livraacute-la da tutela demoniacuteaca Liberta-
se finalmente da servidatildeo que a acomete por toda a obra A projeccedilatildeo em Paulo eacute certamente a
projeccedilatildeo em um amor libertador que foi capaz de transfigurar a modalidade da culpa que sentia
Eacute entatildeo que Luacutecia deixa claro que compreende que a dor e a alegria se complementam e assim
encerra o perfil da mulher que decaiu mas que no fim projeta em sua alegoria a clareza do seu
papel em sua proacutepria narrativa Essa compreensatildeo faz de Luacutecia a heroiacutena de Alencar que mais
beira a perdiccedilatildeo a mais altiva e capaz de se assemelhar agrave heroiacutena da trageacutedia e assim como laacute
melhor do que se realmente apresentam homens e mulheres
Conclusatildeo
Ao recorrer portanto agraves estrateacutegias de identificaccedilatildeo da interioridade e de posiccedilotildees
constitutivas do heroacutei traacutegico acredito que se torna possiacutevel clarificar como o teatro grego
passou a atuar sobre o mito por meio de maior variabilidade narrativa do mesmo Essa
possibilidade de apresentar uma personagem mais profunda ainda que por meio da accedilatildeo
Heitor Victor
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dramaacutetica eleva o texto teatral e especificamente a trageacutedia ndash que usa a personagem miacutetica
como forma de apresentar seres mais elevados do que os indiviacuteduos da sociedade ndash ao papel de
ressignificar o mito Eacute por meio dessas personagens dramaacuteticas que a fabulaccedilatildeo estaacutetica do mito
pode apresentar novos argumentos para o meio em que estaacute inserida
Reconhecendo nas estrateacutegias de interpretaccedilatildeo da personagem dramaacutetica a ferramenta
de atualizaccedilatildeo do mito despida do elemento religioso foi possiacutevel analisar com certo grau de
convicccedilatildeo o heroacutei da trageacutedia Evidenciou-se como isso o papel desse heroacutei e sua capacidade
de conduzir efetivamente a narrativa miacutetica para novos caminhos interpretativos possibilitando
essa narrativa a se apresentar sob nova perspectiva O heroacutei visto dessa maneira ganha
destaque como formador de questionamentos e permite ao leitorespectador por meio do
elemento traacutegico estabelecer nova compreensatildeo
Esse heroacutei traacutegico permanece com o seu poder reflexivo mesmo fora do contexto miacutetico
levando-nos ao reconhecimento do traacutegico como formador efetivo de questionamentos Satildeo
estes aspectos traacutegicos que Benjamin identifica como herdeiros do teatro grego no teatro
alematildeo que eu resgato como possiacuteveis na construccedilatildeo de profundidade do heroacutei do romance eacute
precisamente sob esses aspectos que Luacutecia ndash a heroiacutena romacircntica mas dotada do elemento
traacutegico ndash eacute capaz de saltar aos olhos do leitor como dona de seu proacuteprio destino jamais apenas
sujeita ao mesmo Com isso cada traccedilo da heroiacutena de Alencar eacute capaz de se mostrar natildeo apenas
como marca de um perfil de mulher mas tambeacutem o perfil de um aspecto comum a todas as
mulheres Somente por meio da alegoria do anjo caiacutedo se poderia alcanccedilar tamanha projeccedilatildeo
dentro de um cenaacuterio em que o indiviacuteduo eacute professado como ponto central da construccedilatildeo de
uma obra de arte
REFEREcircNCIAS
ALENCAR Joseacute de Obras Imortais da Nossa Literatura Joseacute de Alencar Iracema ndash
Luciacuteola Satildeo Paulo Editora Trecircs 1972
ARISTOacuteTELES Poeacutetica In A Poeacutetica Claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 12ordf ediccedilatildeo 2005
BENJAMIN Walter Origem do Drama Traacutegico Alematildeo Belo Horizonte Autecircntica Editora
2011
CANDIDO Antonio A Personagem do Romance In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo Paulo
Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014
ELIADE Mircea Mito e Realidade Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2ordf ediccedilatildeo 1986
PRADO Deacutecio de Almeida A Personagem no Teatro In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo
Paulo Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946512
CARACTERIZACcedilAtildeO SIMBOacuteLICA ATRAVEacuteS DE SIacuteMILES
ANIMAIS NA ILIacuteADA
Marco Valeacuterio Classe Colonnelli (Universidade Federal da Paraiacuteba)
RESUMO O intuito deste artigo eacute demonstrar a partir de alguns siacutemiles como Homero
produz uma caracterizaccedilatildeo concisa de seus heroacuteis A perspectiva de abordagem neste
estudo eacute comprovar a eficaacutecia do uso dos siacutemiles pelo poeta em consonacircncia com a obra
de Aristoacuteteles Investigaccedilatildeo dos Animais que nos permite aferir certo valor simboacutelico de
determinados animais ainda no seacutec IV aC Partindo de comparaccedilotildees com animais o
poeta produz siacutemiles que formam um quadro imediato e eficaz do heroacutei projetado pela
forccedila simboacutelica e analoacutegica que o animal evoca como termo comparativo na cultura grega
arcaica e claacutessica
PALAVRAS-CHAVES Caracterizaccedilatildeo Iliacuteada Homero siacutemiles eacutepica Aristoacuteteles
SYMBOLIC CHARACTERIZATION THROUGH SIMILES
ANIMALS IN THE ILIAD
ABSTRACT The purpose of this article is to demonstrate from some similes how Homer
produces a concise characterization of his heroes The prospect of approach in this study
is to prove the efficacy of the use of similes by the poet in accord with the work of
Aristotle Research of the Animals which allows us to assess certain symbolic value of
certain animals even in the 4th century BC Starting from the comparison with animals
the poet produces similes that form an immediate and effective framework of the hero
projected by the symbolic and analogue force that the animal evokes as a comparative
term in the archaic and classical Greek culture
KEYWORDS Characterization Iliad Homero Facsimiles Epic Aristotle
1 Sobre o siacutemile homeacuterico
Desde o lanccedilamento do livro de Milman Parry ldquoThe Making of Homeric Verserdquo
que revelou novas facetas para o estudo de Homero o siacutemile passou a ser estudado por
uma infinidade de autores Foacutermulas funccedilotildees oralidade sequecircncias de imagens dentre
outras caracteriacutesticas foram tatildeo sistematicamente investigadas nos siacutemiles que um resumo
sobre essas principais teorias produziria um material muito denso1
E-mail mcolonnellihotmailcom 1 Desde os estudos de Milman Parry duas principais linhas de estudos tecircm debatido calorosamente a
possibilidade de uma caracterizaccedilatildeo de personagens a despeito das foacutermulas e repositoacuterios de palavras
usados nos dois poemas eacutepicos de Homero Adam Parry filho de Milman em seu artigo ldquoLanguage and
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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O siacutemile grosso modo eacute uma comparaccedilatildeo entre coisas Coffey que analisou os
siacutemiles na eacutepica homeacuterica encontra dois grupos um que eacute
composto de uma palavra introdutoacuteria tal como ὡς seguida por um nome que
eacute frequentemente qualificado por um adjetivo ou um particiacutepio [] e casos
nos quais uma ou mais oraccedilotildees relativas contendo uma forma infinitiva ou
verbos flexionados estatildeo ligadas a uma oraccedilatildeo anterior de comparaccedilatildeordquo
(Coffey 1957 60) e outro ldquoo siacutemile longo que consiste em uma sentenccedila
separada introduzida por ὡς ὅτε ou palavras similaresrdquo2
Aqui as duas formas de siacutemiles nos interessam jaacute que a primeira trata de uma economia
em termos de caracterizaccedilatildeo e a segunda um desenvolvimento da situaccedilatildeo da personagem
em conflitos eacuteticos e psicoloacutegicos
Um pouco mais tarde Moulton passa a estudar os siacutemiles a partir de suas
sequecircncias ultrapassando o esquema fechado dos siacutemiles e de suas correspondecircncias
sintaacuteticas para ampliaacute-los ateacute uma anaacutelise semacircntica demonstrando unidades de sentido
maiores na sequecircncia do enredo Duas tambeacutem satildeo as formas encontradas por ele siacutemiles
pares e ainda siacutemiles sucessivos ou seja respectivamente um siacutemile direto simples
menor e outro longo com unidades maiores e liames semacircnticos
Coffey ainda apresenta algumas funccedilotildees que o siacutemile homeacuterico desempenha tais
como movimentaccedilatildeo descriccedilatildeo notaccedilatildeo temporal enumeraccedilatildeo caracterizaccedilatildeo dentre
outras funccedilotildees Especificamente no tocante agrave caracterizaccedilatildeo diversos siacutemiles apresentam
como termo comparativo animais Clarke por exemplo em seu artigo ldquoEntre Homens e
Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo pontua em contraste com teoacutericos que soacute veem o
siacutemile como uma ornamentaccedilatildeo formulaica que ldquoo simbolismo envolvendo animais
selvagens e agressivos eacute muito maior que uma questatildeo de estilo e que eles desempenham
grande papel no retrato de Homero dos problemas eacuteticos e psicoloacutegicos do heroiacutesmordquo
(Clarke 2006 p 2)
Eacute desse ponto de vista entatildeo que partimos em nossa investigaccedilatildeo ou seja
examinar em suas duas formas o potencial que os siacutemiles animais possuem na Iliacuteada
como teacutecnica de caracterizaccedilatildeo3 Eacute necessaacuterio tambeacutem antes determinar para que o
quadro de comparaccedilatildeo seja efetivo o valor simboacutelico que cada animal pode atribuir ao
seu comparante dentro da estrutura do siacutemile e soacute assim procedermos com a anaacutelise de
caracterizaccedilatildeo
2 A simbologia dos animais como elemento caracterizador
Estudar a caracterizaccedilatildeo de uma personagem sem seu caraacuteter (ἦθος) manifesto
pode parecer uma empresa arriscada Entretanto eacute possiacutevel determinar este caraacutecter
atraveacutes de analogias que deixam entrever certos estados eacuteticos e psicoloacutegicos das
personagens Eacute dessa forma que entendemos com Clark que
Characterization in Homerrdquo jaacute havia contestado boa parte dos epiacutetetos formulaicos para demonstrar certa
habilidade do poeta eacutepico em sua construccedilatildeo de caracterizaccedilatildeo No tocante aos siacutemiles M Coffey em
ldquoThe function of the Homeric Similerdquo demonstra como os siacutemiles desempenham diversas funccedilotildees dentre
elas a de caracterizaccedilatildeo e ainda mais Carroll Moulton em ldquoSimiles in the Iliadrdquo e ldquoSimile Sequencesrdquo
aponta como os siacutemiles produzem caracterizaccedilatildeo e influenciam em toda narrativa posterior para aleacutem de
uma foacutermula meramente ornamental respectivamente Importante contribuiccedilatildeo tambeacutem eacute o artigo de
Michel Clark ldquoEntre Homens e Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo que aponta comportamentos eacuteticos e
psicoloacutegicos nos siacutemiles animais 2 Todas as traduccedilotildees satildeo de responsabilidade do autor Texto grego extraiacutedo das ediccedilotildees de Paul Mazon e
Balme 3 Cf Adam Parry 1972 p 1-22
Marco V C Colonnelli
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Os siacutemiles animais satildeo um excelente candidato para gerar tal tipo de sistema
eles satildeo tantos e tatildeo variados nas conexotildees que forjam que seu efeito
combinado pode natildeo apenas ampliar a narrativa mas de fato assimilar
aspectos da aparecircncia das personagens e da personalidade do guerreiro ao
animal (Clark 2006 p 4)4
Um dado relevante neste universo eacutepico eacute que ldquoos animais de Homero tecircm
igualmente o mesmo aparato emocional e cognitivo que os homensrdquo (Clark 2006 11)
Na Iliacuteada poreacutem jamais encontraremos algum tipo de eacutethos (ἦθος) aplicado ao animal
mas somente o contraacuterio disso o animal conferindo eacutethos ao homem Em Homero os
animais estatildeo encobertos por uma carga simboacutelica que os determina em certos aspectos
com traccedilos bem definidos Mas como eacute possiacutevel atribuir um eacutethos ao animal Como ver
tacitamente no animal um eacutethos humano Para entendermos melhor essa relaccedilatildeo eacute
preciso recorrermos a Aristoacuteteles
Em seu tratado Investigaccedilatildeo dos Animais o filoacutesofo faz uma afirmaccedilatildeo que parece
se coadunar com o mundo homeacuterico
Haacute pois tambeacutem em muitos desses outros animais traccedilos de caracteriacutesticas
psiacutequicas que nos homens possuem diferenccedilas mais claras Assim mansidatildeo
e ferocidade doccedilura e violecircncia coragem e covardia temor e ousadia vontade
e astuacutecia estatildeo em muitos animais semelhantes aos homens tambeacutem ateacute em
inteligecircncia
῎Ενεστι γὰρ ἐν τοῖς πλείστοις καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ἴχνη τῶν περὶ τὴν ψυχὴν
τρόπων ἅπερ ἐπὶ τῶν ἀνθρώπων ἔχει φανερωτέρας τὰς διαφοράςmiddot καὶ γὰρ
ἡμερότης καὶ ἀγριότης καὶ πραότης καὶ χαλεπότης καὶ ἀνδρία καὶ δειλία καὶ
φόβοι καὶ θάρρη καὶ θυμοὶ καὶ πανουργίαι καὶ τῆς περὶ τὴν διάνοιαν συνέσεως
ἔνεισιν ἐν πολλοῖς αὐτῶν ὁμοιότητες [] (Arist Investigaccedilotildees sobre os
animais 588 a 19-25)
Aristoacuteteles reconhece duas caracteriacutesticas psiacutequicas diferentes entre os animais e
os homens A primeira eacute de grau ou seja entre os homens uns teratildeo mais outros menos
dessas caracteriacutesticas e a mesma relaccedilatildeo entre homens e animais A segunda eacute por
analogia ou seja por certa semelhanccedila entre as caracteriacutesticas psiacutequicas dos homens
comparadas a certas manifestaccedilotildees nos animais5 Partindo dessa premissa analoacutegica
Aristoacuteteles neste tratado delineia o caraacuteter de alguns animais com base em sentimentos
humanos A analogia que faz a ponte entre essas constituiccedilotildees psiacutequicas se vale tambeacutem
do simbolismo que cada animal possuiacutea jaacute entre os gregos Este simbolismo natildeo tem um
vieacutes religioso ainda que seja necessaacuterio reconhecer essa dimensatildeo simboacutelica na cultura
grega6 mas meramente empiacuterico
Eacute nesse sentido que vamos encontrar em Aristoacuteteles a aplicaccedilatildeo do eacutethos humano
por analogia aos animais Worther tambeacutem assinala que
Aristoacuteteles define o ἦθος como uma capacidade ou potecircncia primeira e natural
possuiacuteda por todos os animais em virtude da qual eles satildeo natildeo somente capazes
4 Moulton discorda de que isso seja possiacutevel 5 Diferenccedila segundo a analogia consiste em estabelecer que a capacidade natural de um dado animal se
encontra sob uma forma diferente mas com a mesma funccedilatildeo ou uma funccedilatildeo anaacuteloga em um outro animal
Assim a arte a sabedoria ou a inteligecircncia do homem existem em outros animais mas sob a forma de
uma capacidade que natildeo faz intervir o elemento racional que pertence propriamente ao homem
(Woerther 2007 138) 6 Natildeo se nega o valor das relaccedilotildees religiosas entre homens e animais mas deve-se tambeacutem ressaltar as
relaccedilotildees sociais e poliacuteticas que esta associaccedilatildeo releva (Bodson 1994 55)
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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de ser afetados por paixotildees como tambeacutem suscetiacuteveis de desenvolver graccedilas
agraves accedilotildees repetidas disposiccedilotildees habituais da alma (Woerther 2007 p 138)
A observaccedilatildeo do filoacutesofo sobre o eacutethos animal tambeacutem eacute extraiacuteda da proacutepria obra
de Homero de quem ele muitas vezes cita passagens para justificar seus escritos
bioloacutegicos o que nos leva a crer que as observaccedilotildees homeacutericas e aristoteacutelicas formam um
todo empiacuterico de observaccedilotildees a respeito da natureza em geral Desse saber empiacuterico o
valor do eacutethos animal passa a figurar como um siacutembolo que o animal possui em si
Vejamos agora como certos valores simboacutelicos dos animais confluem para uma
caracterizaccedilatildeo taacutecita em algumas passagens da Iliacuteada
3 Siacutemiles animais como elementos caracterizadores
Muitos siacutemiles animais podem ser encontrados na Iliacuteada O leatildeo eacute de longe o
animal mais citado como imagem para os heroacuteis entretanto outros animais como o cervo
ou a cabra que satildeo presas tambeacutem abundam nas comparaccedilotildees Alguns animais satildeo
empregados especificamente em algumas passagens de modo natildeo muito usual Em uma
passagem do canto VIII da Iliacuteada Aquiles eacute comparado a um golfinho natildeo soacute pelo locus
de sua caccedila mas tambeacutem por algumas reconhecidas qualidades deste animal Vejamos o
siacutemile
Em seguida o divino Aquiles deixou sua lanccedila na ribeira
Inclinada nos arbustos e mergulhou semelhante a um deus
Portando apenas uma espada e na mente meditava maus atos
E golpeou dando giros dos feridos pela arma uma gritaria elevou-se
Indecorosa enquanto tingia a aacutegua de vermelho
Tal como quando outros peixes dos golfinhos de grande ventre
Fugindo enchem os recantos de uma baiacutea fundeada
Aterrados pois tudo aquilo que consegue apanhar devora
Assim os Troianos para as correntes do terriacutevel rio
Fugiam pelas iacutengremes ribanceiras Aquiles quando cansou
Suas matildeos de matar recolheu do rio doze jovens vivos
Paga pela morte de Paacutetroclo filho de Meneacutecio
Αὐτὰρ ὃ διογενὴς δόρυ μὲν λίπεν αὐτοῦ ἐπ ὄχθῃ
κεκλιμένον μυρίκῃσιν ὃ δ ἔσθορε δαίμονι ἶσος
φάσγανον οἶον ἔχων κακὰ δὲ φρεσὶ μήδετο ἔργα
τύπτε δ ἐπιστροφάδηνmiddot τῶν δὲ στόνος ὄρνυτ ἀεικὴς
ἄορι θεινομένων ἐρυθαίνετο δ αἵματι ὕδωρ
ὡς δ ὑπὸ δελφῖνος μεγακήτεος ἰχθύες ἄλλοι
φεύγοντες πιμπλᾶσι μυχοὺς λιμένος εὐόρμου
δειδιότεςmiddot μάλα γάρ τε κατεσθίει ὅν κε λάβῃσινmiddot
ὣς Τρῶες ποταμοῖο κατὰ δεινοῖο ῥέεθρα
πτῶσσον ὑπὸ κρημνούς ὃ δ ἐπεὶ κάμε χεῖρας ἐναίρων
ζωοὺς ἐκ ποταμοῖο δυώδεκα λέξατο κούρους
ποινὴν Πατρόκλοιο Μενοιτιάδαο θανόντοςmiddot
(Il VIII 17-28)
Em suas investigaccedilotildees Aristoacuteteles nos fornece certos traccedilos do animal que
configuram seu eacutethos Assim em 631a ele afirma que ldquodentre os animais mariacutetimos
muitos sinais de doccedilura e inteligecircncia satildeo anunciados a respeito dos golfinhos assim
como tambeacutem em relaccedilatildeo aos filhos satildeo amorosos e apaixonadosrdquo (Τῶν δὲ θαλαττίων
πλεῖστα λέγεται σημεῖα περὶ τοὺς δελφῖνας πραότητος καὶ ἡμερότητος καὶ δὴ καὶ πρὸς
παῖδας ἔρωτες καὶ ἐπιθυμίαι ndash Arist 631a 8-11) Natildeo obstante esta caracteriacutestica doacutecil
do animal a sua destreza na caccedila tambeacutem eacute exaltada Em outra passagem ele acrescenta
Marco V C Colonnelli
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Fala-se tambeacutem coisas incriacuteveis a respeito da rapidez do animal Parece pois
que dentre todos os animais tanto da aacutegua quanto da terra eacute o mais raacutepido e
tambeacutem saltam por cima dos mastros dos grandes navios Isso lhes acontece
sobretudo quando perseguem algum peixe graccedilas a sua necessidade alimentar
Neste momento pois se o peixe fugir perseguem-no ateacute o fundo do mar por
causa de sua fome [] E girando sobre si mesmos lanccedilam-se como uma
flecha desejando percorrer com velocidade uma grande extensatildeo para respirar
Λέγεται δὲ καὶ περὶ ταχυτῆτος ἄπιστα τοῦ ζῴουmiddot ἁπάντων γὰρ δοκεῖ εἶναι
ζῴων τάχιστον καὶ τῶν ἐνύδρων καὶ τῶν χερσαίων καὶ ὑπεράλλονται δὲ
πλοίων μεγάλων ἱστούς Μάλιστα δὲ τοῦτ αὐτοῖς συμβαίνει ὅταν διώκωσί
τινα ἰχθὺν τροφῆς χάρινmiddot τότε γάρ ἐὰν ἀποφεύγῃ συνακολουθοῦσιν εἰς βυθὸν
διὰ τὸ πεινῆν [] καὶ συστρέψαντες ἑαυτοὺς φέρονται ὥσπερ τόξευμα τῇ
ταχυτῆτι τὸ μῆκος διελθεῖν βουλόμενοι πρὸς τὴν ἀναπνοήν (Arist 631a 20-
27)
A caracteriacutestica do golfinho em sua caccedila parece iluminar o curto siacutemile em que
Aquiles toma as presas de guerra A rapidez do ataque do animal o mais raacutepido dentre
todos alude a proacutepria destreza do heroacutei que tambeacutem eacute raacutepido em seu ataque e efetivo em
sua conquista O ataque eacute motivado pela voracidade da fome do animal e o modo como
ele caccedila tambeacutem estaacute representado atraveacutes dos giros que facilmente o animal executa
Aquiles golpeia girando tal como o golfinho Se o amor filial eacute a caracteriacutestica do animal
natildeo se pode negar que o iacutempeto que move o heroacutei eacute a vinganccedila pela morte de Paacutetroclo
demonstrando a amizade que os unia A comparaccedilatildeo com o golfinho eacute salutar em diversos
aspectos mas sobretudo pela inteligecircncia e pela destreza que o animal evoca na passagem
Outro animal natildeo menos mencionado em siacutemiles do que o leatildeo eacute o catildeo de caccedila
Apesar de ser um animal domesticado sua ferocidade na caccedila eacute muito representada em
siacutemiles Aristoacuteteles nos informa a respeito deles que
A raccedila dos catildees de caccedila em Molosso natildeo diferem em nada das raccedilas de outras
localidades mas a raccedila que pastoreia junto aos rebanhos difere em porte e em
coragem contra animais selvagens E diferem em coragem e dedicaccedilatildeo
tambeacutem a raccedila dos catildees gerados do cruzamento entre os de Molosso e da
Lacocircnia
Τὸ δ ἐν τῇ Μολοττίᾳ γένος τῶν κυνῶν τὸ μὲν θηρευτικὸν οὐδὲν διαφέρει πρὸς
τὸ παρὰ τοῖς ἄλλοις τὸ δ ἀκόλουθον τοῖς προβάτοις τῷ μεγέθει καὶ τῇ ἀνδρείᾳ
τῇ πρὸς τὰ θηρία Διαφέρουσι δ οἱ ἐξ ἀμφοῖν ἀνδρείᾳ καὶ φιλοπονίᾳ οἵ τε ἐκ
τῶν ἐν τῇ Μολοττίᾳ γινομένων κυνῶν καὶ ἐκ τῶν Λακωνικῶν (Arist HA 608
a 27-33)
Duas caracteriacutesticas satildeo apontadas no animal a coragem contra animais selvagens
e a sua dedicaccedilatildeo na caccedila Eacute com esse eacutethos que Heitor eacute pintado no canto VIII da Iliacuteada
no momento em que Zeus o favorece na batalha contra os Aqueus
De novo nos Troianos o Oliacutempio excitou a coragem
E eles impeliram os Aqueus direto agrave profunda trincheira
Heitor entre os primeiros movia-se fero em sua forccedila
Como quando um dos catildees de javalis selvagens ou de leotildees
Toca sucessivamente perseguindo-os com patas ceacuteleres
As coxas ou naacutedegas e tem olhos fixos em quem se vira
Assim Heitor perseguia os Aqueus de longos cabelos
Matando sempre o mais recuado enquanto os outros fugiam
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
50 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326
῍Αψ δ αὖτις Τρώεσσιν ᾿Ολύμπιος ἐν μένος ὦρσενmiddot
οἳ δ ἰθὺς τάφροιο βαθείης ὦσαν ᾿Αχαιούςmiddot
῞Εκτωρ δ ἐν πρώτοισι κίε σθένεϊ βλεμεαίνων
ὡς δ ὅτε τίς τε κύων συὸς ἀγρίου ἠὲ λέοντος
ἅπτηται κατόπισθε ποσὶν ταχέεσσι διώκων
ἰσχία τε γλουτούς τε ἑλισσόμενόν τε δοκεύει
ὣς ῞Εκτωρ ὤπαζε κάρη κομόωντας ᾿Αχαιούς
αἰὲν ἀποκτείνων τὸν ὀπίστατονmiddot οἳ δὲ φέβοντο
(Il VIII 335-343)
Na passagem acima a coragem tambeacutem encontrada no ethos animal eacute insuflada por Zeus
nos Troianos O siacutemile parece de fato retomar a qualidade deste animal em colocar em debandada
animais ferozes Entretanto a diligecircncia e a dedicaccedilatildeo do animal natildeo fica para traacutes na
representaccedilatildeo jaacute que o catildeo tem os olhos fixos nos animais que lhe satildeo superiores em porte fiacutesico
natildeo descuidando daqueles que viram O siacutemile indica sobretudo o cuidado presente no eacutethos do
animal na dispersatildeo das feras reproduzindo a imagem de heroacuteis mais fracos que inspirados pelos
deuses potildeem em debandada heroacuteis mais robustos Nesse sentido apesar da coragem eacute necessaacuteria
muita cautela na perseguiccedilatildeo para que natildeo se invertam as posiccedilotildees entre caccedila e caccedilador
Retomando a relaccedilatildeo entre os animais acima tambeacutem eacute possiacutevel perceber que o
caraacuteter dessas feras natildeo como habitualmente satildeo representadas ou seja como animais
ferozes e corajosos mas como animais que algumas vezes satildeo covardes Neste caso o
leatildeo tatildeo usado em siacutemiles de batalha para denotar violecircncia ferocidade tambeacutem possui
iacutendice de covardia Aristoacuteteles nas Investigaccedilotildees sobre os Animais observa que
Haacute duas raccedilas de Leotildees haacute uma que eacute mais roliccedila juba encaracolada e covarde
outra mais larga de juba ericcedilada e mais corajosa Fogem algumas vezes
entretanto com o rabo entre as pernas como os catildees Jaacute se viu tambeacutem um leatildeo
que estava a ponto de se lanccedilar sobre um javali e como percebeu que esse se
ouriccedilava fugiu Eacute deacutebil contra golpes em sua barriga mas suporta muitos
golpes em outra parte do corpo e tem um cabeccedila forte
Γένη δ ἐστὶ λεόντων δύοmiddot τούτων δ ἐστὶ τὸ μὲν στρογγυλώτερον καὶ
οὐλοτριχώτερον δειλότερον τὸ δὲ μακρότερον καὶ εὐθύτριχον ἀνδρειότερον
Φεύγουσι δ ἐνίοτε κατατείναντες τὴν κέρκον ὥσπερ κύνες ῎Ηδη δ ὦπται
λέων καὶ ὑῒ ἐπιτίθεσθαι μέλλων καὶ ὡς εἶδεν ἀντιφρίξαντα φεύγων ῎Εστι δὲ
πρὸς τὰς πληγὰς εἰς μὲν τὰ κοῖλα ἀσθενής κατὰ δὲ τὸ ἄλλο σῶμα δέχεται
πολλὰς καὶ κεφαλὴν ἔχει ἰσχυράν
(Arist HA 629 b 33- 639 a8)
A informaccedilatildeo que Aristoacuteteles nos traz natildeo soacute ilustra o siacutemile homeacuterico anterior
como tambeacutem demonstra que o encontro entre javalis e leotildees eram decididos por acaso
jaacute que os dois animais satildeo comumente representados na Iliacuteada como animais ferozes
Assim uma passagem pode ser lida de forma interessante quando dois grandes heroacuteis
satildeo postos frente a frente no canto VII Heitor e Aacutejax
Ambos concomitantes retirando as longas lanccedilas com as matildeos
De suacutebito se encontram parecendo leotildees apreciadores de carne
Ou selvagens javalis cuja forccedila eacute inesgotaacutevel
τὼ δ ἐκσπασσαμένω δολίχ ἔγχεα χερσὶν ἅμ ἄμφω
σύν ῥ ἔπεσον λείουσιν ἐοικότες ὠμοφάγοισιν
ἢ συσὶ κάπροισιν τῶν τε σθένος οὐκ ἀλαπαδνόν
(Il VII 255-257)
Atraveacutes desse siacutemile a passagem demonstra como forccedilas equacircnimes os dois heroacuteis
representados aiacute pela forccedila descomunal do javali e pelo apreciador de carne crua o leatildeo
Marco V C Colonnelli
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 51
O choque entre os heroacuteis no resto da passagem natildeo terminaria jaacute que chegada a noite
o combate foi interrompido pelos arautos
O leatildeo em outros siacutemiles quando confrontado por caccediladores e catildees manifesta
cautela em seus ataques Aristoacuteteles descreve o comportamento do leatildeo face a essa
adversidade
Nas caccediladas sendo observado jamais foge ou se apavora mas se por uma
multidatildeo de caccediladores eacute forccedilado a se afastar retira-se passo a passo e com a
face voltada ao inimigo girando-se de pouco em pouco se ele se encontra
entre arbustos foge rapidamente ateacute chegar em uma clareira momento em que
de novo se afasta passo a passo Em campo aberto quando eacute forccedilado a fugir
para uma clareira por uma multidatildeo corre com passos raacutepidos e natildeo pula Sua
corrida eacute contiacutenua e extensa como a do catildeo
᾿Εν δὲ ταῖς θήραις ὁρώμενος μὲν οὐδέποτε φεύγει οὐδὲ πτήσσει ἀλλ ἐὰν καὶ
διὰ πλῆθος ἀναγκασθῇ τῶν θηρευόντων ὑπαγαγεῖν βάδην ὑποχωρεῖ καὶ κατὰ
σκέλος κατὰ βραχὺ ἐπιστρεφόμενοςmiddot ἐὰν μέντοι ἐπιλάβηται δασέος φεύγει
ταχέως ἕως ἂν καταστῇ εἰς φανερόνmiddot τότε δὲ πάλιν ὑπάγει βάδην ᾿Εν δὲ τοῖς
ψιλοῖς ἐάν ποτ ἀναγκασθῇ εἰς φανερὸν διὰ τὸ πλῆθος φεύγειν τρέχει
κατατείνας καὶ οὐ πηδᾷ Τὸ δὲ δρόμημα συνεχῶς ὥσπερ κυνός ἐστι
κατατεταμένονmiddot (Arist HA 629 b 12-20)
Ainda que muito forte a simbologia do leatildeo na Iliacuteada como o animal mais
intreacutepido dos que se encontram na obra eacute interessante tambeacutem notar que em alguns
siacutemiles de fuga o proacuteprio leatildeo o siacutembolo da coragem eacute usado para representar a fuga de
alguns heroacuteis No canto XI Aacutejax recua da seguinte maneira
Zeus pai de seu trono introduziu o medo em Aacutejax
E atocircnito ele estacou aos ombros laccedilou o escudo de sete camadas
E depois de ver uma multidatildeo fugiu semelhante a uma fera
Que se volta continuamente para traacutes alternando em breves passadas
Tal quando sobre um feroz leatildeo do curral
Dos bois afugentam catildees e pastores
E eles o impedem de arrebatar o melhor dos bois
Vigilantes por toda noite mas ele desejoso de carne
Avanccedila com zelo mas nada encontra pois dardos
Numerosos voam de corajosas matildeos em sua direccedilatildeo
E tochas acesas que teme ainda que sedento
E ao amanhecer retira-se com acircnimo aflito
Assim Aacutejax dos Troianos com o coraccedilatildeo inquieto
Afasta-se muito contrariado pois temia pelas naus dos Aqueus
Ζεὺς δὲ πατὴρ Αἴανθ ὑψίζυγος ἐν φόβον ὦρσεmiddot
στῆ δὲ ταφών ὄπιθεν δὲ σάκος βάλεν ἑπταβόειον
τρέσσε δὲ παπτήνας ἐφ ὁμίλου θηρὶ ἐοικὼς
ἐντροπαλιζόμενος ὀλίγον γόνυ γουνὸς ἀμείβων
ὡς δ αἴθωνα λέοντα βοῶν ἀπὸ μεσσαύλοιο
ἐσσεύαντο κύνες τε καὶ ἀνέρες ἀγροιῶται
οἵ τέ μιν οὐκ εἰῶσι βοῶν ἐκ πῖαρ ἑλέσθαι
πάννυχοι ἐγρήσσοντεςmiddot ὃ δὲ κρειῶν ἐρατίζων
ἰθύει ἀλλ οὔ τι πρήσσειmiddot θαμέες γὰρ ἄκοντες
ἀντίον ἀΐσσουσι θρασειάων ἀπὸ χειρῶν
καιόμεναί τε δεταί τάς τε τρεῖ ἐσσύμενός περmiddot
ἠῶθεν δ ἀπὸ νόσφιν ἔβη τετιηότι θυμῷmiddot
ὣς Αἴας τότ ἀπὸ Τρώων τετιημένος ἦτορ
ἤϊε πόλλ ἀέκωνmiddot περὶ γὰρ δίε νηυσὶν ᾿Αχαιῶν
(Il XI 544-557)
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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Diferente dos outros siacutemiles esse mais longo natildeo soacute caracteriza o recuo do heroacutei
em termos de movimentaccedilatildeo e comportamento mas tambeacutem em termos de iacutendices
psicoloacutegicos que abundam no siacutemile O leatildeo aqui ainda eacute visto como um animal corajoso
feroz sedento por carne em suma em sua simbologia completa Entretanto como a
situaccedilatildeo eacute de fuga e caacutelculo o comportamento animal descrito por Aristoacuteteles representa
bem a maneira como Aacutejax se encontra tanto em termos psicoloacutegicos quanto em situaccedilatildeo
Aacutejax recua foge mas sem a pressa dos covardes sua fuga eacute bem descrita pelo
comportamento do leatildeo que recua lentamente sempre se voltando para traacutes Ademais o
nuacutemero de inimigos na liccedila e os dardos em sua direccedilatildeo o forccedilam ao recuo
Quanto ao plano psicoloacutegico Aacutejax que em sua caracterizaccedilatildeo eacute visto sempre como
voluntarioso e corajoso torna-se temeroso por uma intervenccedilatildeo divina E o conflito
gerado por essas disposiccedilotildees psicoloacutegicas eacute bem expresso pelo comportamento calculado
do recuo do leatildeo Neste afastamento tanto o heroacutei quanto o leatildeo estatildeo com acircnimo aflito
e inquieto e por uacuteltimo Aacutejax deixa o campo de modo involuntaacuterio
A caracterizaccedilatildeo neste siacutemile eacute completa Ela cobre tanto a perspectiva de um
desenvolvimento da accedilatildeo quanto o conflito psicoloacutegico que ocorre com o heroacutei Natildeo se
trata aqui de um siacutemile curto em que teriacuteamos de projetar o comportamento animal para
a compreensatildeo da passagem mas de um siacutemile longo em que o desenvolvimento do
comportamento animal eacute tatildeo magistralmente descrito que podemos consideraacute-lo sem
exageros como o proacuteprio iniacutecio de toda ciecircncia empiacuterica encontrada quase quatro seacuteculos
depois em Aristoacuteteles
3 Conclusatildeo
O uso do siacutemile em Homero eacute extremamente complexo Aleacutem dos siacutemiles naturais
produzidos com as potecircncias da natureza haacute tambeacutem os siacutemiles animais que se tornam
muito impactantes sobretudo porque revelam natildeo soacute facetas de movimentaccedilatildeo mas
tambeacutem de caraacuteter que o animal comporta O mundo natural eacute usado por Homero com
maestria a ponto de produzir situaccedilotildees nos combates em que grande parte do que eacute
descrito jaacute eacute bem conhecido pela audiecircncia em contato com o mundo natural circundante
Hoje talvez para reconhecer a forccedila de seus siacutemiles nos seja preciso talvez aleacutem do
conhecimento do mundo arcaico grego um bom entendimento sobre a vida natural sem
o qual a complexidade das cenas na Iliacuteada pareceraacute meramente fantasiosas
REFEREcircNCIAS
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54 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326
DOI httpsdoiorg1012957principia201946513
OS PROFISSIONAIS DO SOBRENATURAL
MAacuteGOS GOacuteES E PHARMAKEUacuteS
Dulcileide V do Nascimento Braga (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO O presente artigo objetiva ao pressupor que as accedilotildees maacutegicas constituem
praacuteticas passiacuteveis de aprendizado apresentar a anaacutelise da estrutura vocabular dos termos
que classificam os profissionais da magia Busca-se tambeacutem a partir da tradiccedilatildeo miacutetico-
literaacuteria grega demonstrar que tais profissionais tecircm uma praacutetica registrada em diversos
periacuteodos da literatura grega e influenciaram accedilotildees que extrapolam o vieacutes temporal
PALAVRAS-CHAVE Teacutechne maacutegica Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes
THE SUPERNATURAL PROFESSIONALS
MAacuteGOS GOacuteES AND PHARMAKEUacuteS
ABSTRACT This article aims assuming that magical actions constitute practices that can
be learned to present the analysis of the vocabulary structure of the terms that classify
magic professionals It is also sought from the greek mythical-literary tradition to
demonstrate that these professionals have a practice recorded in several periods of greek
literature and influenced actions that go beyond the temporal bias
KEYWORDS Teacutechne magic Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes
Magia do grego mageiacutea segundo Tupet (1976 p X) eacute a praacutetica exercida atraveacutes
de palavras e gestos por um indiviacuteduo que deteacutem certos conhecimentos que o capacitam
a produzir resultados de toda ordem George Luck (1995 p 35) precisa essa definiccedilatildeo ao
afirmar que a magia eacute uma teacutecnica cuja crenccedila se baseia nos poderes localizados na alma
humana e no universo e que pretende impor a vontade humana sobre a natureza ou sobre
os seres humanos
Platatildeo em Leis XI 932e-933b jaacute enumera os principais procedimentos maacutegicos
no seacutec IV aC e a difiacutecil tarefa de analisar essa teacutecnica
Quanto aos malefiacutecios que uns podem causar aos outros por meio de drogas
(pharmaacutekois) jaacute tratamos dos de consequecircncias letais mas ainda natildeo falamos
dos incocircmodos provocados intencionalmente e com premeditaccedilatildeo por meio de
bebidas e alimentos ou com unguentos O difiacutecil na presente exposiccedilatildeo eacute que
haacute no gecircnero humano duas espeacutecies de envenenamento uma eacute a que acabamos
de nos referir e que consiste em causar dano ao corpo pela accedilatildeo natural de
outros corpos a outra por meio de sortileacutegios (magganeiacuteais) encantamentos
(epoidaicircs) e o que se denomina ligadura (katadeacutesesi) chega a persuadir aos
E-mail dulcinascimentobragagmailcom
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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que querem causar danos a terceiros que o conseguiratildeo com tal recurso como
tambeacutem convence a estes uacuteltimos que ningueacutem lhes pode ocasionar tanto mal
como as pessoas conhecedoras de artes maacutegicas O que possa haver de
verdadeiro em tudo isso natildeo eacute faacutecil conhecer nem depois de sabido deixar
aceitaacutevel para ningueacutem dada a desconfianccedila reinante nos espiacuteritos a respeito
de tais assuntos natildeo vale a pena procurar convencecirc-los sempre que
encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera ou em encruzilhadas ou
talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados de que natildeo devem dar a
menor importacircncia a essas praacuteticas pois acerca de tudo isto ningueacutem tecircm
opiniatildeo formada
Eacute relevante destacar que o conceito de pharmakeiacutea utilizado por Platatildeo natildeo se
restringe exclusivamente ao uso de um phaacutermakon (bebidas alimentos ou unguentos)
mas se prolonga atraveacutes de sortileacutegios encantamentos e ligaduras
Platatildeo ainda questiona a eficaacutecia dessas profissionais de magia cujas habilidades
eram difiacuteceis de se averiguar analisar ou compreender sendo a profissional julgada pela
eficiecircncia ou pelos danos causados por sua praacutetica
O fato de atribuir aos praticantes de magia um caraacuteter perigoso por conta do saber
que detinham e a necessidade de que essas praacuteticas fossem controladas por leis remetem-
nos aos diversos processos de impiedade sofridos por mulheres praticantes das teacutechnai
maacutegicas Dentre elas destacamos o nome de trecircs mulheres a hetaira Frinea de Thespis
que foi acusada pelo seu amante Euthias de utilizar lugares sagrados para a praacutetica de
atos iliacutecitos e por ter formado um thiacuteasos1 sem a autorizaccedilatildeo legal dos atenienses a
sacerdotisa Teoris de Lemos acusada de produzir phaacutermaka para curar a epilepsia e
ainda temos o processo sofrido pela sacerdotisa Ninos baseado nas mesmas acusaccedilotildees
direcionadas agraves duas mulheres citadas anteriormente
Tais atitudes eram consideradas desvios agrave ordem instituiacuteda pela poacutelis que
determinava que qualquer accedilatildeo envolvendo contato direto com uma divindade ou com os
mortos requereria a presenccedila de um sacerdote instituiacutedo pela cidade e responsaacutevel por
impedir qualquer praacutetica que pudesse contaminaacute-la de alguma maneira
Maria Regina Candido (2003 p 169) informa-nos sobre as praacuteticas dessas
mulheres
Acreditamos que Teoris de Lemos assim como Frinea de Thespis difundiam
a crenccedila na possibilidade de o homem efetuar de maneira direta a sua relaccedilatildeo
com as potecircncias sobrenaturais e controlar os processos mais complicados que
envolvem a vida como doenccedilas inimizades e maacute sorte de maneira eficaz e
segura Receitavam banhos infusotildees com ervas e oferendas agraves divindades
ctocircnicas estimulavam os praticantes a fazer incursotildees pelo mundo de seres
sobrenaturais como os mortos O mundo dos homens deixava de atender agraves
necessidades do cotidiano e a alternativa era solicitar auxiacutelio das potecircncias
sobrenaturais
Assim como Platatildeo Candido acredita que a puniccedilatildeo relacionada a estas praacuteticas e
a seus praticantes esteja baseada no resultado advindo das mesmas que nem sempre
acarretava proveito agravequele que solicitava um benefiacutecio maacutegico Portanto por temer a
extensatildeo do poder dessas praacuteticas os atenienses puniam seus praticantes na maioria dos
casos mulheres estrangeiras como uma forma de se precaverem
Tambeacutem salientamos que apesar de a praacutetica maacutegica ser em determinadas
circunstacircncias apontada como uma atividade marginal ou uma forma de corromper a
religiatildeo poliacuteade como mencionamos anteriormente os praticantes destas teacutechnai
1 Palavra utilizada para designar um grupo de pessoas que celebram um deus normalmente com festas
cantos e banquetes
Dulcileide V do Nascimento Braga
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detinham um conhecimento e um poder cuja eficaacutecia seria sustentada por uma crenccedila
coletiva e por uma dependecircncia de uma ordem moral que buscava a autoproteccedilatildeo fato
que garantia a continuidade das diversas formas de magia em todas as classes da
sociedade helecircnica como afirma o texto de Luck (1995 p 42)
Pode a magia antiga se basear em ideias ldquoprimitivasrdquo mas a forma em que nos
foi transmitida natildeo era de nenhum modo primitiva Pelo contraacuterio a magia
nesse sentido existiu somente dentro de culturas altamente desenvolvidas e
constituiu uma parte importante delas Natildeo soacute as classes baixas os ignorantes
e incultos criam nela mas ateacute o final da Antiguidade os ldquointelectuaisrdquo
estiveram convencidos de que poderosas forccedilas sobrenaturais atuavam em
torno deles podendo ser controladas por certos meios
Em grego destacamos trecircs termos para designar os detentores das artes maacutegicas
maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
O nome mais comumente utilizado para designar a feiticeira eacute maacutegos cognato de
mageiacutea magia Segundo Pierre Chantraine (1984 v maacutegos) esta palavra constitui um
empreacutestimo iraniano e no plural maacutegoi designa uma das tribos dos Medos como narra
Herocircdoto I 101 ldquoDeioces unificou a naccedilatildeo dos Medos governando-a A Meacutedia era
composta de diferentes povos os Busos Paretacenos Estrucatos Arizantos Budios e os
Magosrdquo
Segundo ainda o relato de Heroacutedoto haacute entre os maacutegoi aqueles que tecircm a funccedilatildeo
de ser ldquointeacuterpretes de sonhosrdquo Podemos verificar esta atribuiccedilatildeo dos magos em Histoacuteria
I 107 Astiacuteages apoacutes ter um sonho solicitou aos magos inteacuterpretes de sonhos que
revelassem o seu significado em I 120 Astiacuteages para decidir a sorte de Ciro mandou
chamar os mesmos magos que anteriormente tinham interpretado o seu sonho em I 128
vemos isso quando Astiacuteages manda empalar os magos inteacuterpretes dos sonhos que o
haviam convencido a deixar Ciro partir No livro VII 37 haacute uma passagem que ratifica a
funccedilatildeo de inteacuterprete dos sonhos aos magos Nela Xerxes apoacutes ver um eclipse solar
acreditando ser um mau pressaacutegio pede aos seus magos que interpretem o fenocircmeno
Segundo Graf (1994 p 30) aleacutem de serem inteacuterpretes dos sonhos os maacutegoi seriam os
responsaacuteveis pelos sacrifiacutecios reais pelos ritos funeraacuterios e pela adivinhaccedilatildeo
O termo maacutegos parece ter adquirido com o advento da filosofia conotaccedilatildeo
negativa sendo entatildeo utilizado para estigmatizar opiniotildees e comportamentos
considerados socialmente desviados a julgar por Heraacuteclito frag 14 que associa maacutegoi
aos ldquovagabundos da noite bacantes mecircnades e aos mistosrdquo e acredita serem esses homens
merecedores de morte posto que praticam accedilotildees iacutempias Graf (1994 32) discute se esta
caracterizaccedilatildeo de Heraacuteclito reproduziria a atuaccedilatildeo dos maacutegoi pois se ela corresponder agrave
realidade este termo semanticamente poderaacute ganhar a conotaccedilatildeo dos termos aguacutertes e
maacutentis pedinte e adivinho utilizados por Platatildeo na Repuacuteblica II-364b ou ser
interpretada a partir da expressatildeo utilizada no papiro de Derveni profissional dos ritos
Com base nesta definiccedilatildeo poderiacuteamos afirmar que Heraacuteclito ao utilizar a expressatildeo
ldquovagabundos da noiterdquo estaria dizendo que os maacutegoi seriam especialistas de toda uma
seacuterie de ritos privados e secretos como nos afirma o proacuteprio Graf (1994 p 33) ldquoPara um
jocircnico do fim do periacuteodo arcaico o maacutegos era semelhante aos especialistas itinerantes
dos cultos privados homens agrave margem da sociedade ridicularizados por uns e
secretamente temidos por outrosrdquo
Outro termo utilizado para nomear o praticante da magia eacute goeacutes termo cognato
do verbo goaacuteo gemer lamentar-se e que inicialmente designava um cantor que proferia
um lamento ritual pelos mortos ou seja o goeacutes eacute aquele que ldquocombina o ecircxtase com um
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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lamento ritual e a cura ritual com a adivinhaccedilatildeordquo (GRAF 1994 p 35) e que manteacutem
uma relaccedilatildeo estreita com o mundo dos mortos
Formadas a partir da mesma raiz encontramos as palavras goeteiacutea magia assim
como goeacuteteuma procedimento maacutegico fascinaccedilatildeo Heroacutedoto (II 33) ao narrar a histoacuteria
de Etearco o amocircnio aplica o termo goacuteetes para informar-nos sobre a crenccedila por parte
dos nasamones de que os habitantes de uma cidade em que entraram eram feiticeiros e
em IV 105 discorre sobre os relatos que afirmam que todos os Neuros eram goeacutetes
Encontramos ainda o termo goacutees associado a epoidos cantor aquele que canta
palavras maacutegicas para curar por exemplo em Euriacutepides As Bacantes 234-235 em que
encontramos os dois termos na fala de Penteu para fazer referecircncia ao estrangeiro que
estaacute propagando o culto a Dioniso ldquoDizem que veio um forasteiro feiticeiro cantor (goacutees
epoidoacutes) da terra da Iacutediardquo
Em Platatildeo Leis 903b quando a personagem chamada Ateniense ao mencionar
que iraacute convencer algueacutem por meio de argumentos diz ldquoMas ainda precisamos
acrescentar algumas histoacuterias a fim de imobilizaacute-lo com o encantamento (epoidocircn) que
lhes eacute proacutepriordquo E da mesma maneira eacute associado a maacutegos no Elogio agrave Helena de
Goacutergias ao evocar o poder da arte goeacutetica que encanta persuade e transforma Essas
teacutecnicas associadas agrave magia segundo o sofista seriam teacutecnicas do engano pois
desvirtuariam a alma e a opiniatildeo com falsas ilusotildees Desse modo Goacutergias defende Helena
dizendo que ela foi viacutetima da persuasatildeo maacutegica de Paacuteris contra a qual natildeo haveria defesa
O terceiro nome eacute pharmakeuacutes ou pharmakoacutes e designa um preparador de drogas
feiticeiro ou por ser cognato de pharmakeuacuteo significa simplesmente aquele que daacute um
remeacutedio ou veneno a algueacutem ou aquele que realiza uma operaccedilatildeo maacutegica Haacute ainda o
termo pharmakiacutes -idos atribuiacutedo agrave mulher que prepara poccedilotildees ou agrave feiticeira Aristoacutefanes
em As Nuvens 749 utiliza esta palavra como qualificativo para a mulher A expressatildeo
gunaicircka pharmakiacuteda encontrada em Aristoacutefanes refere-se a uma feiticeira da Tessaacutelia
que fazia a lua baixar agrave noite prendendo-a em um espelho
Cabe-nos contudo falar um pouco mais da magia das palavras ou do
encantamento Como jaacute mencionamos o termo goeacutes tem sua funccedilatildeo e significado
associado ao termo epoideacute que revela a natureza maacutegica do emprego da palavra e traz em
sua composiccedilatildeo o termo aoideacute canto que por sua vez estaacute relacionado com o termo audeacute
voz humana O grego distingue a linguagem humana audeacute do termo phoneacute que tanto
pode representar a linguagem humana como o som produzido por um animal
Pierre Chantraine (v aeidocirc) assinala que o prefixo epi- destaca o valor maacutegico do
canto assim epoideacute significa ldquocanto ou palavra maacutegicardquo
Eacute notoacuterio entretanto que o canto faz parte da cultura grega seja atraveacutes do maior
aedo de todos os tempos Homero atraveacutes do teatro da vida privada ou da puacuteblica O que
diferencia portanto essas utilizaccedilotildees da arte maacutegica das goeteacutes A diferenccedila estaacute na
estrutura destes encantamentos na tonalidade com que as palavras eram pronunciadas na
junccedilatildeo de siacutelabas estranhas apresentadas como verdadeiras foacutermulas maacutegicas bem como
aos poderes e divindades invocadas Tal estrutura eacute apresentada no seguinte fragmento
ldquoFebo o que auxilia na adivinhaccedilatildeo vem contente filho de Leto arqueiro infaliacutevel
protetor do mal venha aqui neste momento Vem Vaticinador daacute-me teus oraacuteculos
durante a noite allala allala santalala talalardquo (PGM II)
As foacutermulas maacutegicas do ponto de vista formal portanto tinham uma estrutura
preacute-estabelecida (pronunciada e realizadas de uma determinada maneira) que consistem
em uma seacuterie de instruccedilotildees que foram transmitidas atraveacutes do processo de iniciaccedilatildeo Esse
processo de aprendizado pode ser no acircmbito familiar ou em lugares considerados
sagrados
Dulcileide V do Nascimento Braga
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Temos diversos registros de foacutermulas maacutegicas algumas por exemplo
denominadas eroacuteticas objetivam a realizaccedilatildeo do desejo de um solicitante e tecircm
basicamente a mesma estrutura Como exemplo cito o PGM IV 3
Que fulana me ame a mim fulano filho de cicrano que ela natildeo tenha relaccedilotildees
sexuais nem por frente nem por traacutes nem busque prazer com outro homem
somente comigo de modo que fulana natildeo possa beber nem comer nem amar
nem sofrer nem ter sauacutede que natildeo consiga dormir sem mim arrasta a fulana
pelos cabelos as entranhas sua alma em cada momento de sua vida ateacute que
venha ateacute mim e permaneccedila inseparavelmente unida a mim
Neste encantamento se invoca o espiacuterito de um morto ou de uma divindade
normalmente Tiacutefon Selene ou Heacutecate mas quando se trata de magia eroacutetica se invoca
especialmente a deusa Afrodite e seu filho Eros Essas praacuteticas satildeo acompanhadas de um
gesto do solicitante como por exemplo um suspiro diante da mulher desejada um beijo
na lacircmina que conteacutem o pedido ou a simples repeticcedilatildeo do nome de Afrodite
Teoacutecrito no Idiacutelio 2 com 166 versos demonstra-nos como essas foacutermulas eram
utilizadas ao narrar a histoacuteria de como Simeta executa um ritual maacutegico com o intuito de
reconquistar o amor de Deacutelfis um jovem atleta que a trocou por um novo amor Eis alguns
versos do poema
Trecircs vezes faccedilo uma libaccedilatildeo e trecircs vezes Soberana
Pronuncio estas palavras quer seja mulher quer seja homem
Que com ele dorme agora que um tatildeo grande esquecimento invada
Deacutelfis como aquele que ndash ao que dizem ndash fez Teseu esquecer um
Dia Ariadne de belas tranccedilas (43-47)
Essa ldquoteacutecnicardquo das palavras tambeacutem faz parte da tradiccedilatildeo de uma literatura meacutedica
pois aleacutem de apresentar vaacuterios deuses responsaacuteveis pela cura tinha um deus especiacutefico
para a medicina Ascleacutepio e um lugar de cura Epidauro Ascleacutepio tinha um poder de cura
muito grande acreditava-se que ele inclusive podia ressuscitar os mortos O filho de
Apolo curava a uns com as doces palavras da magia (contos poemas e muacutesica) a outros
oferecia poccedilotildees eficazes ou lhes aplicava ervas em torno de seus membros ou cortava o
mal com o ferro para devolver-lhes a sauacutede
A tradiccedilatildeo meacutedica incluiacutea uma mistura de curas que podiam genuinamente ser
observadas e uma medicina popular considerada maacutegica Uma parte dos que exerciam a
medicina maacutegica eram mulheres embora a maioria delas trabalhasse como parteiras
Os templos de Ascleacutepio foram encontrados em todo o mundo mediterracircneo
Nesses templos o processo de cura consistia mais em repouso massagem e uma dieta
modificada do que aquilo que poderiacuteamos chamar de medicina Um meacutetodo de cura que
se tornou conhecido foi a ldquoincubaccedilatildeordquo em que o doente dormia confinado no templo de
Ascleacutepio na esperanccedila de receber uma revelaccedilatildeo daquele deus por meio de sonho
Aqueles que haviam sido curados faziam contribuiccedilotildees especiais para os templos que
frequentemente incluiacuteam reproduccedilotildees de gesso de quaisquer partes de seus corpos que
tivessem sido curadas Estes eram colocados em exibiccedilatildeo como testemunhos do poder de
cura do deus
Um relato que corroborou esse processo foi o de Eacutelio Aristides orador e tambeacutem
um portador de doenccedila crocircnica que no seacuteculo da nossa era em seus Hieroigrave Loacutegoi nos daacute
uma visatildeo da necessidade que as pessoas tinham pela cura bem como os meacutetodos
empregados para esse fim Depois tentar vaacuterios procedimentos meacutedicos Aristides tornou-
se um devoto de Ascleacutepio As curas prescritas para ele nos sonhos incluiacuteam accedilotildees como
banhar-se em um rio agitado durante o inverno derramar lama em si mesmo antes de se
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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assentar no paacutetio do templo andar sem sapatos todo o inverno e fazer sangria de vaacuterias
partes do seu corpo
A teacutecnica maacutegica portanto ao longo da histoacuteria foi um recurso utilizado como
tentativa de controlar o mundo natural atraveacutes de forccedilas consideradas sobrenaturais Essa
teacutecnica era ensinada somente aos iniciados e envolviam a arte da adivinhaccedilatildeo o preparo
de feiticcedilos e poccedilotildees a realizaccedilatildeo de rituais e cerimocircnias bem como a maneira correta de
se invocar deuses e espiacuteritos Quando realizados dentro dos templos tais procedimentos
eram considerados parte da religiatildeo Quando realizados fora eram classificado como
magia
A ideia de inferioridade feminina que perpassa toda a histoacuteria natildeo tem registro de
quando comeccedilou Desde a Antiguidade temos concepccedilotildees como a de Pitaacutegoras que
relacionava a mulher ao lado negativo ao dizer que ldquoHaacute um princiacutepio bom que criou a
ordem a luz e o homem e um princiacutepio mau que criou o caos as trevas e a mulherrdquo
(PITAacuteGORAS apud BEAUVOIR 1997 p 6)
Os elos que ligaram a imagem da mulher ao obscuro ao caos e ao infortuacutenio
masculino foram delineados e reforccedilados por figuras arquetiacutepicas como Pandora Lilith
e a proacutepria Eva Da mesma maneira as goeteacutes foram chamadas de charlatatildees quando natildeo
obtinham o resultado desejado ao evocarem os deuses e tentarem por teacutecnicas diversas
atender agrave solicitaccedilatildeo de algueacutem que recorria agraves praacuteticas maacutegicas para resolver problemas
particulares Essas solicitaccedilotildees normalmente envolviam uma accedilatildeo que prejudicaria
algueacutem fato que serviu para atenuar a fama negativa das goeteacutes
Ainda hoje encontramos aspectos desse tipo de comportamento maacutegico presentes
nos procedimentos considerados maacutegico-religiosos ou na proacutepria literatura ficcional que
demonstram a forccedila da seleccedilatildeo vocabular e da sonoridade provocada pela repeticcedilatildeo de
palavras e desejos com o uacutenico objetivo de concretizar desejos nem sempre passiacuteveis de
serem expressos em outras circunstacircncias Este eacute o caso da poesia citada abaixo
A VOLTA DA MULHER MORENA Vinicius de Moraes
Meus amigos meus irmatildeos cegai os olhos da mulher morena
Que os olhos da mulher morena estatildeo me envolvendo
E estatildeo me despertando de noite Meus amigos meus irmatildeos cortai os laacutebios
da mulher morena Eles satildeo maduros e uacutemidos e inquietos
E sabem tirar a voluacutepia de todos os frios
Meus amigos meus irmatildeos e voacutes que amais a poesia da minha alma
Cortai os peitos da mulher morena
Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono
E trazem cores tristes para os meus olhos
Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes
Traze-me para o contato casto de tuas vestes
Salva-me dos braccedilos da mulher morena
Eles satildeo lassos ficam estendidos imoacuteveis ao longo de mim
Satildeo como raiacutezes recendendo resina fresca
Satildeo como dois silecircncios que me paralisam
Aventureira do Rio da Vida compra o meu corpo da mulher morena
Livra-me do seu ventre como a campina matinal
Livra-me do seu dorso como a aacutegua escorrendo fria
Branca avozinha dos caminhos reza para ir embora a mulher morena
Reza para murcharem as pernas da mulher morena
Reza para a velhice roer dentro da mulher morena
Que a mulher morena estaacute encurvando os meus ombros
E estaacute trazendo tosse maacute para o meu peito
Meus amigos meus irmatildeos e voacutes todos que guardais ainda meus uacuteltimos
cantos
Dai morte cruel agrave mulher morena
Dulcileide V do Nascimento Braga
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O texto de Viniacutecius dialoga com o texto de Platatildeo citado anteriormente em que
faz menccedilatildeo agraves bonequinhas de cera utilizadas para fazer magia A finalidade dessas
bonecas conhecidas posteriormente por bonecas de vodu era gradativamente extinguir
a funcionalidade de determinados oacutergatildeos (cegar calar impedir de andar roer por dentro)
ateacute provocar a morte ldquodaiacute morte cruel agrave mulher morenardquo
O princiacutepio ldquose natildeo eacute meu natildeo seraacute de mais ningueacutemrdquo estaacute impliacutecito em inuacutemeros
encantamentos contidos nos PGM e representa natildeo soacute o desejo daquelea que foi
abandonadoa de se vingar de quem oa abandonou como tambeacutem o desejo de se livrar
daquelea que emocionalmente lhe causa mal
A voz humana eacute portanto o instrumento que potencializa a forccedila do pensamento
concretizando-os atraveacutes das palavras
Portanto a palavra quer cantada pronunciada em forma de versos ou balbuciada
em forma de encantamentos ou foacutermulas invocatoacuterias faz parte do universo sonoro grego
como forma de perpetuar segredos e manifestar um poder
Ainda hoje tentamos aprender sobre esta teacutechne que capacitava o indiviacuteduo a
concretizar desejos entretanto esbarramos nas lacunas temporais miacuteticas e religiosas
cujas entrelinhas foram desfeitas com o passar dos anos e que intencionalmente ou natildeo
desabilitaram a humanidade a obter o desejado com a mesma constacircncia com que eram
obtidas no passado
Os ritos religiosos continuam a utilizar a magia das palavras mas algumas
palavras tornaram-se impronunciaacuteveis e permanecem trancafiadas nas prisotildees silenciosas
do descaso cabe portanto a noacutes pronunciaacute-las ou natildeo reconhecendo a influecircncia que os
profissionais da magia tiveram e tecircm nas accedilotildees atemporais denominadas sobrenaturais
REFEREcircNCIAS
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946515
A AGOGEacute ESPARTANA
Luciene de Lima Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem O
desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo deviam ter
medo de nada sendo resistentes aos ferimentos odiando qualquer demonstraccedilatildeo de
covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Cada espartano tinha de ser um soldado
perfeito e sua maior gloacuteria era morrer em batalha retornar derrotado jamais Desse modo
toda a sociedade e educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases
atribuiacutedas agraves matildees espartanas era ldquoespero que meu filho volte com o seu escudo ou
deitado sobre elerdquo Assim eacute que este artigo tem por escopo discorrer a respeito da agogeacute
espartana que era um tipo de educaccedilatildeo peculiar com fins extremamente belicosos
PALAVRAS-CHAVE Esparta agogeacute guerra Licurgo
THE SPARTAN AGOGEacute
ABSTRACT In Sparta courage was part of the formation of a manrsquos character The
development of courage was a Spartan obsession Spartans should not be afraid of
anything showing themselves resistant to wounds They hated any type of cowardice and
were extremely dedicated to the poacutelis Each Spartan male had to be a perfect soldier and
the ultimate glory was to die in battle to never come back defeated Given this Spartan
society and education was focused on war One famous sentence related to Spartan
mothers was ldquoI hope my son comes back with his shield - or on itrdquo Thus this article has
as its scope the discussion of the practices of Spartan agogeacute their very peculiar
education with extremely bellicose objectives
KEYWORDS Sparta agogeacute war Lycurgus
Esparta tem de pleno direito um lugar na histoacuteria da educaccedilatildeo A
criaccedilatildeo mais caracteriacutestica de Esparta eacute o seu estado e o Estado
representa aqui pela primeira vez uma forccedila educadora no mais vasto
sentido da palavra (Werner Jaeger)
E-mail oliveira-lluolcombr
A agogeacute espartana
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Esparta tambeacutem intitulada Lacedemocircnia era a principal cidade de uma regiatildeo
denominada Lacocircnia na regiatildeo do Peloponeso A cidade localizava-se agraves margens do rio
Eurotas cercada de montanhas a nordeste
Os primeiros invasores da regiatildeo foram os aqueus esses expulsaram os povos preacute-
helecircnicos que ali habitavam e fundaram a cidade de Lacedemocircnia
A migraccedilatildeo doacuterica eacute o uacuteltimo dos movimentos de povos possivelmente
originaacuterios da Europa Central que a partir da Peniacutensula Balcacircnica entraram na Greacutecia e
se misturaram com os povos de outras raccedilas mediterracircneas ali fixadas primitivamente
constituindo assim o povo helecircnico
Os doacuterios ao se apoderarem da maior parte do Peloponeso invadiram Creta e
foram os responsaacuteveis pela colonizaccedilatildeo de algumas ilhas Ciclaacutedicas e Espoacuteradas Os
espartanos satildeo considerados descendentes dos doacuterios1 esses tinham por caracteriacutestica
peculiar a belicosidade
A cidade de Esparta era conhecida por usufruir de uma eunomiacutea ldquouma boa
legislaccedilatildeordquo De acordo com a tradiccedilatildeo Licurgo apoacutes consultar o oraacuteculo de Delfos2 teria
dado agrave Esparta leis para a vida social e econocircmica citem-se por exemplo a proibiccedilatildeo do
comeacutercio e a utilizaccedilatildeo de metais preciosos que foram substituiacutedos por moedas de ferro
instituiu uma educaccedilatildeo rigorosa as refeiccedilotildees coletivas regulamentaccedilatildeo do casamento a
maneira de viver etc
Os espartanos eram considerados xenofoacutebicos Plutarco escreve que eles natildeo
tinham permissatildeo para sair da cidade pois poderiam trazer costumes estranhos e
desordenados para dentro da cidade Os estrangeiros que residiam em Esparta foram
expulsos com exceccedilatildeo daqueles que faziam algo de uacutetil para a cidade Aleacutem do mais natildeo
comercializavam com o estrangeiro nenhum navio de fora entrava no porto para ali
comercializar (PLUTARCO Licurgo XIV LVII In Vidas Paralelas)
Ora foi o historiador Heroacutedoto o primeiro a retratar Licurgo como o idealizador
da eunomiacutea se dedicando ldquoagraves coisas relacionadas com a guerrardquo (HERODOTO Histoacuteria
I) Na Antiguidade jaacute havia duacutevidas sobre a sua eacutepoca e ateacute mesmo sua existecircncia
Os espartanos ndash ao contraacuterio de outros grupos ndash natildeo desenvolveram relaccedilotildees
culturais e comerciais externas sua crescente populaccedilatildeo soacute encontrou um meio de
expandir-se pelas armas
Xenofonte inclusive indaga como Esparta uma das cidades menos povoadas
tornou-se a mais poderosa e famosa dentre toda a Heacutelade (JENOFONTE La Republica
de los Lacedemonios I 1-2)
O vocaacutebulo que os espartanos empregavam para designar ldquoeducaccedilatildeordquo era agogeacute
que proveacutem do verbo aacutego ldquotransporto conduzordquo Os filoacutesofos Platatildeo (PLATAtildeO Leis
1 O helenista Jaeger faz a seguinte ponderaccedilatildeo a respeito dos doacuterios ldquoa raccedila doacuterica ofereceu a Piacutendaro o
seu ideal de homem loiro de alta estirpe tal como era representado natildeo soacute o Menelau de Homero como
tambeacutem o heroacutei Aquiles e de um modo geral os ldquohelenos de loira cabeleirardquo da antiguidade heroica
(JAEGER 2001 p 111) 2 Esparta pelo vieacutes poliacutetico constituiacutea uma diarquia hereditaacuteria real Acredita-se que Licurgo fora
descendente de uma das famiacutelias reais de Esparta a euripocircntida O legislador tinha um irmatildeo
rei mas apoacutes a morte daquele Licurgo subiria ao trono poreacutem o seu irmatildeo havia deixado um
descendente ainda no ventre de sua esposa Leobotas O legislador foi entatildeo tutor de seu
sobrinho Preocupado com a situaccedilatildeo de Esparta jaacute que o sobrinho era uma crianccedila Licurgo
se dirigiu a Delfos para receber conselhos diga-se leis escritas a rheacutetra em relaccedilatildeo a Esparta
(HEROacuteDOTO Histoacuteria I LXV) Sabe-se muita coisa de Licurgo por meio de Plutarco em
Vida de Licurgo
Luciene de Lima Oliveira
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659d) e Aristoacuteteles (ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1321) tambeacutem se referem a agogeacute como
ldquoeducaccedilatildeordquo
Entrementes Marrou emprega o termo ldquoadestramentordquo para traduzir agogeacute e
chama a atenccedilatildeo para o fato de ser ldquouma condiccedilatildeo necessaacuteria senatildeo suficiente para o
exerciacutecio dos direitos ciacutevicosrdquo (MARROU 1966 p 41) O helenista considera que a
educaccedilatildeo em Esparta possui natildeo soacute um lugar especial na histoacuteria da educaccedilatildeo como
tambeacutem na cultura grega (Op cit p 33)
Todos os cidadatildeos espartanos tinham uma participaccedilatildeo ativa na educaccedilatildeo militar
constituindo uma casta aristocraacutetica a priori lembrando a educaccedilatildeo da antiga nobreza
grega Natildeo obstante foi mais tarde estendida agravequeles que natildeo faziam parte da nobreza
Jaeger expotildee que mesmo que Licurgo tenha realmente existido e criado a rheacutetra
ldquoleis escritasrdquo que o poeta Tirteu (4W 1-10) bem a conhecia jaacute no seacuteculo VII aC natildeo
adiantaria muito saber a respeito da origem da educaccedilatildeo espartana conforme Xenofonte
a descreve (JAEGER 2001 p 114)
O pesquisador considera tambeacutem a agogeacute como ldquoo adestramento espartanordquo que
nada mais era do que o ideal do movimento educativo do seacuteculo IV aC (Op cit p 115)
O helenista destaca que a crenccedila de que a educaccedilatildeo espartana era uma preparaccedilatildeo militar
tinha sua origem na Poliacutetica de Aristoacuteteles Platatildeo igualmente jaacute havia definido essa
ideia quando relata nas suas Leis o espiacuterito do Estado de Licurgo (Op cit p 110)
As crianccedilas futuros guerreiros de Esparta eram ldquocriadasrdquo anatropheacute por seus
pais em suas casas ateacute os sete anos de idade depois essa tarefa era assumida pelo
governo sendo treinados para a obediecircncia em situaccedilotildees penosas e difiacuteceis3
Desse modo Licurgo natildeo colocou a educaccedilatildeo nas matildeos nem de mercenaacuterios nem
de servos comprados os pais natildeo poderiam educar seus filhos a seu bel prazer Quando
completavam sete anos eram divididos em grupos a fim de serem educados juntos e
brincassem entre si aprender e estudar uns com os outros Aquele que sobressaiacutesse e fosse
mais valente em combate se tornaria o liacuteder de todo o grupo os outros deveriam obedecer
as suas ordens O legislador considerava a educaccedilatildeo das crianccedilas como a coisa mais bela
que um legislador pudesse estabelecer (PLUTARCO Licurgo XXV XXXIII In Vidas
Paralelas)
Dos sete aos quinze anos eram instruiacutedos nas letras e nos caacutelculos e naturalmente
nos hinos do poeta Tirteu que ressaltavam a bravura e a coragem destemida
Na etapa final entre dezesseis e vinte anos quando denominados de eireacuten um
pouco antes de entrarem no serviccedilo da poacutelis eram treinados a manusear as armas na luta
com lanccedilas e espadas no arco e flecha Com isso a carga dos exerciacutecios e as operaccedilotildees
militares simuladas nas montanhas ao redor da poacutelis eram aumentadas
Plutarco daacute o seguinte testemunho
Quanto agraves letras aprendiam somente o necessaacuterio e em suma todo o
aprendizado consistia em bem obedecer suportar o trabalho e obter a vitoacuteria
em combate Por essa razatildeo agrave medida que avanccedilavam em idade aumentavam-
lhes tambeacutem os exerciacutecios corporais raspavam-lhes os
cabelos faziam-nos andar descalccedilos e os constrangiam a brincar juntos a maior
parte do tempo inteiramente nus depois quando chegavam agrave idade de doze
anos natildeo mais usavam saios daiacute por diante pois todos os anos lhes davam
somente uma tuacutenica simples o que era causa de andarem sempre sujos e
3 Plutarco daacute testemunho que estrangeiros se dirigiam ateacute a Lacocircnia para contratarem amas para criarem
seus filhos (PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)
A agogeacute espartana
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ensebados como aqueles que natildeo se lavavam nem se untavam senatildeo em certos
dias do ano quando os faziam gozar um pouco dessa doccedilura Deitavam e
dormiam juntos sobre enxergas que eles proacuteprios fabricavam com pontas dos
juncos e caniccedilos que cresciam no rio Eurotas os quais eles proacuteprios deviam ir
colher e quebrar somente com as matildeos sem nenhuma ferramenta mas no
inverno ajuntavam a isso e misturavam no meio o que se chama Lycophanos
porque parece que essa mateacuteria tem em si um pouco de calor (PLUTARCO
Licurgo XXIV In Vidas Paralelas)
A agogeacute propriamente dita se iniciava aos sete anos e finalizava ateacute os vinte anos
compreendendo portanto um periacuteodo de treze anos Havia a supervisatildeo de um
paidonoacutemos uma espeacutecie de magistrado especial
Marrou oferece a seguinte divisatildeo da agogeacute agrupados em trecircs ciclos (MARROU
1966 p 42)
Oitavo ano ao deacutecimo primeiro ano
a) rhobiacutedas (termo obscuro)
b) promikkizoacutemenos (meninote)
c) mikki(khi)zoacutemenos (menino)
Deacutecimo segundo ano ao deacutecimo quinto ano
a) pratopaacutempais (rapaz jaacute maduro de primeiro ano)
b) hatropaacutempais (rapaz jaacute maduro de segundo ano)
c) melleiacuteren (futuro irene)
d) melleiacuteren (irene de segundo ano)
Deacutecimo sexto ano ao vigeacutesimo ano
a) eireacuten de primeiro ano
b) eireacuten de segundo ano
c) eireacuten de terceiro ano
d) eireacuten de quarto ano
e) proteicircras (irene-chefe)
O historiador francecircs pontua que os meninos espartanos eram divididos em
unidades (iacutelai ou ageacutelai) comandadas pelos jovens maiores os proteicircrai de vinte anos
que eram os mais velhos dentre os irenes (Op cit p 43)
Plutarco lembra que os espartanos ldquonatildeo usam de muita linguagemrdquo eram
lacocircnicos ldquopessoas de poucas palavrasrdquo como resultado natildeo se expressavam com
propriedade mas nada os impedia de serem bem compreendidos pelos ouvintes O
bioacutegrafo sublinha que o proacuteprio Licurgo era breve no falar Interessante destacar que era
proibido entrar em Esparta algum retoacuterico para ensinar a arte da persuasatildeo ao povo Natildeo
obstante os espartanos eram exiacutemios compositores de belos cacircnticos em que incitavam
a coragem (PLUTARCO Licurgo XIV XL XLIV In Vidas Paralelas)
Quando estavam reunidos em Conselho os cidadatildeos espartanos natildeo poderiam
deliberar indagar seus superiores muito menos apresentar alguma opiniatildeo lhes era
permitido somente aprovar ou reprovar os informes propostos pelos reis ou senadores
(Op cit X)
O futuro guerreiro tinha de ter por haacutebitos a modeacutestia andar nas ruas com as
matildeos dentro do manto e caminhar em silecircncio sem dirigir o olhar a nenhum lugar apenas
olhando em direccedilatildeo a seus proacuteprios peacutes O historiador Xenofonte compara o jovem
Luciene de Lima Oliveira
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espartano que anda em silecircncio e de olhos baixos a uma estaacutetua de virgem
(JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)
Entre vinte e trinta anos os espartanos eram obrigados a se casar mas a vida
familiar natildeo era lhes permitida soacute depois dos trinta podiam deixar de dormir nos
acampamentos militares
A fim de dotar de coragem os seus infantes em Esparta havia a kryptiacutea um
ldquoesquadratildeo de extermiacuteniordquo que estimulava os jovens selecionados a caccedilarem sozinhos ou
em grupos os hilotas ou seja os escravos que por um acaso andassem desgarrados ou
que de alguma forma representassem pelo seu vigor fiacutesico uma ameaccedila agrave seguranccedila da
poacutelis Os hilotas quando localizados eram vitimados pela espada ou pela lanccedila armas
que o grupo de jovens sempre trazia consigo (PLUTARCO Licurgo LVIII In Vidas
Paralelas)
Os jovens espartanos estavam sempre forccedilando seus corpos ao limite cultivando
a excelecircncia da forccedila fiacutesica Aristoacuteteles destaca que de entre as cidades que mais se
preocupavam com a educaccedilatildeo infantil a maioria procurava aperfeiccediloaacute-la por meio de uma
disposiccedilatildeo atleacutetica O filoacutesofo sublinha que os espartanos davam para os futuros
guerreiros trabalhos aacuterduos como se essa atitude fosse vista como adequada para o culto
da bravura (ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1338b 10-15)
O estagirita ressalta que natildeo eacute contra a ginaacutestica mas deve-se praticaacute-la com
moderaccedilatildeo ateacute a adolescecircncia evitando exerciacutecios forccedilosos pois podem resultar em
prejuiacutezos para o corpo Daacute como exemplo que de entre os vencedores dos jogos
Oliacutempicos tem apenas dois ou trecircs espartanos vitoriosos Acredita que isso se daacute ao fato
de terem sido sujeitos desde crianccedila a treinos fiacutesicos extremos que acabaram por exaurir
suas forccedilas (Op cit II 1338b 35-40 1339a 1-5)
Aristoacuteteles sublinha que toda a organizaccedilatildeo legislativa dos espartanos tinha como
objetivo uma forma de virtude o valor guerreiro uma vez que eacute uacutetil para dominar Como
resultado disso o vigor e a forccedila dos espartanos foram preservados enquanto estiveram
em guerra mas houve um decliacutenio a partir do momento que alcanccedilaram a supremacia Na
verdade natildeo sabiam viver em paz aleacutem do mais natildeo haviam se exercitado em outra
disciplina superior agrave arte da guerra (Op cit II 1271b 1-10)
Jaeger sustenta que na vida dos espartanos por meio de uma educaccedilatildeo
diferenciada percebe-se um ideal de educaccedilatildeo anaacutelogo ao que Platatildeo propotildee na
Repuacuteblica A propoacutesito Platatildeo e outros teoacutericos da educaccedilatildeo posteriores tiveram Esparta
por paradigma em muitos aspectos (JAEGER 2001 p 112)
A necessidade de imposiccedilatildeo dos espartanos sobre a grande maioria de hilotas
(escravos que natildeo possuiacuteam direito algum) que a qualquer momento poderiam se
rebelar teve muita importacircncia na formaccedilatildeo da agogeacute espartana
Ora com as muitas conquistas espartanas havia sempre a iminecircncia de uma
revolta por parte dos povos conquistados Eacute fato que os povos conquistados constituiacuteam
em maior nuacutemero do que os conquistadores espartanos
Acredita-se que no final do seacuteculo VI aC depois da conquista da Messecircnia o
estado espartano completou sua organizaccedilatildeo transformando-se em um verdadeiro
ldquoacampamento militarrdquo permanente
Os resquiacutecios arqueoloacutegicos atestam que ateacute o seacuteculo VI aC Esparta era
dominada por uma aristocracia de grandes proprietaacuterios Devido agraves duas grandes guerras
pela conquista da Messecircnia houve um aumento consideraacutevel daqueles que poderiam
participar da funccedilatildeo guerreira e que se beneficiaram pela distribuiccedilatildeo de lotes de cleroacutei
A agogeacute espartana
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da regiatildeo conquistada Por outro lado os messecircnios foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de
hilotas A respeito da segunda guerra da Messecircnia4 Mosseacute escreve
Esparta parece ter se fechado em si mesma com a decadecircncia do artesanato e
o desaparecimento do uso da moeda de prata Diante da massa de populaccedilotildees
dependentes (hilotas da Lacocircnia e da Messecircnia periecos da Lacocircnia motacos
neodamodos etc) a classe guerreira dos homoioiacute dos semelhantes formada
pelo conjunto dos cidadatildeos espartanos passa a ser um grupo privilegiado que
vive recluso em perpeacutetuo estado de defesa Essa eacute a origem da vida austera que
tanto impressionava seus contemporacircneos e permitia a Esparta desempenhar
papel preponderante no mundo grego (MOSSEacute 2004 p 121) Com efeito
muitas disposiccedilotildees referentes agrave educaccedilatildeo e ao casamento natildeo deixam de evocar
os programas educativos elaborados por Platatildeo na Repuacuteblica e nas Leis Platatildeo
teria tomado o modelo espartano como inspiraccedilatildeo ou nos seacuteculos seguintes
esse modelo teria sido construiacutedo a partir das disposiccedilotildees imaginadas por
Platatildeo para suas cidades ideais Essa eacute uma pergunta de resposta difiacutecil O que
eacute inquestionaacutevel eacute o caraacuteter peculiar da educaccedilatildeo espartana essa agogeacute que
espantava os atenienses da eacutepoca claacutessica especialmente na medida em que
tambeacutem atingia as mulheres (Op cit p 189)
Ressalte-se que a guerra eacute um dos fenocircmenos a ser evitado mas que
frequentemente ocorre nas sociedades humanas Em O Homem Grego obra organizada
por Vernant o ensaio de Garlan denominado ldquoO Homem e a Guerrardquo eacute relevante pois
de acordo com Garlan embora o homem grego ldquonatildeo pudesse ser definido como algueacutem
que gosta da violecircncia pela violecircnciardquo isto eacute como um homo militaris muitos satildeo os
conflitos em que eles se envolveram sobretudo na eacutepoca arcaica e claacutessica Para Garlan
eacute ldquocomo se a paz fosse desde o primeiro momento considerada precaacuteria ou mesmo
concebida como uma espeacutecie de treacutegua prolongadardquo (GARLAN apud VERNANT 1994
pp 49-50)
Em uma sociedade predominantemente guerreira como a espartana a covardia de
um guerreiro era vista com repugnacircncia assim a desonra em Esparta acompanhava os
covardes sendo preferiacutevel a morte a uma vida infame e desonrosa Eacute um guerreiro que
natildeo merecia nenhuma timeacute ldquohonrardquo pois tem como aliados a atimiacutee ldquodesonrardquo e a
kakoacutetes ldquocovardiardquo Consequentemente este homem eacute algueacutem sem aidoacutes ou seja
algueacutem que natildeo eacute digno ldquode respeitordquo ldquode consideraccedilatildeordquo Haacute pois uma conexatildeo clara
entre aidoacutes ldquorespeitordquo e timeacute ldquohonrardquo na sociedade espartana
O binocircmio aidoacutes ldquorespeitordquo e aiskhryacutene ldquovergonhardquo satildeo vocaacutebulos que estatildeo
presentes no estatuto ciacutevico de Esparta como pontua Nicole Loraux (LORAUX 1989 p
82)
O desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo
poderiam ter medo de nada deveriam ser resistentes aos ferimentos odiando qualquer
4 Houve duas guerras entre Messecircnia e Esparta Na primeira os espartanos sob a lideranccedila do rei
Theopompo foram vencedores Os messecircnios eram comandados por Aristomenes Segundo Heroacutedoto
(HEROacuteDOTO Histoacuteria VIII 1312) o rei Theopompo pertencia agrave oitava geraccedilatildeo antes de Leoticidas
que governou de 491 a 469 aC Depois de cinquenta anos de opressatildeo os messecircnios se revoltaram com
a ajuda de aliados de Argos Arcaacutedia e Pisa Essa rebeliatildeo eacute conhecida como Segunda Guerra da
Messecircnia Campbell afirma que eacute difiacutecil estabelecer a cronologia das duas guerras (CAMPBELL 1967
p 169) Costuma-se contudo fixar o periacuteodo da primeira guerra em torno da segunda metade do seacuteculo
VIII aC mais precisamente entre 735 e 715 aC e a segunda guerra que teria durado aproximadamente
vinte e dois anos na segunda metade do seacuteculo VII aC por volta de 640-650 aC
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demonstraccedilatildeo de covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Toda a sociedade e
educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases atribuiacutedas agraves matildees
espartanas era ldquoespero que o meu filho volte com o seu escudo ou deitado sobre elerdquo
Cada espartano era formado para ser um soldado perfeito e sua maior gloacuteria era
morrer em batalha retornar derrotado jamais Digno de nota satildeo os versos tirteanos
ldquoLutemos com ardor por esta terra e pelos filhos morramos sem pouparmos nossas
vidasrdquo (10 W 13-14)
Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem A
propoacutesito Platatildeo era tambeacutem a favor da valentia de um guerreiro no campo de batalha
(PLATAtildeO Repuacuteblica 468e)
Os dois primeiros versos do fragmento 10W de Tirteu pontua dessa mentalidade
de morrer pela poacutelis ldquoeacute belo morrer caindo entre os combatentes das primeiras filas um
homem valente ao combater por sua terrardquo (10W 1-2)
A morte eacute bela quando eacute a de um heroacutei que morre pela cidade Esta ideia daacute agrave
morte o sentido de um ldquosacrifiacuteciordquo do proacuteprio cidadatildeo em prol de um bem mais alto ldquoa
morte gloriosardquo No mesmo fragmento aliaacutes o poeta contrasta a morte gloriosa no campo
de batalha com a vida desventurada e errante do homem que natildeo cumpriu na guerra seus
direitos de cidadatildeo e se viu na necessidade de deixar a cidade (10W 9-12)
A linguagem de Tirteu eacute em grande parte herdeira de tradiccedilatildeo eacutepica De um modo
geral as suas elegias demonstram um amplo conhecimento do vocabulaacuterio da Iliacuteada e da
Odisseia quando descreve a luta sangrenta e o heroiacutesmo guerreiro O ideal espartano eacute
proacuteximo da epopeia no que diz respeito agrave bravura apesar de pertencerem a tempos
literaacuterios diferentes
Jaeger destaca que os versos tirteanos eacute o primeiro testemunho do ideal poliacutetico e
guerreiro tendo mais adiante a sua realizaccedilatildeo na totalidade da educaccedilatildeo espartana ldquoos
seus poemas deixam ver claramente que a educaccedilatildeo espartana tal como as eacutepocas
seguintes a conheceram natildeo era uma coisa acabada mas estava em processo de
formaccedilatildeordquo (JAEGER 2001 p 115)
Qualquer fraqueza demonstrada era vista como pusilanimidade algo
veementemente repelido do seio daquela sociedade
Natildeo comeceis a fuga vergonhosa nem o medo
mas tornai grande e ardoroso o coraccedilatildeo no peito
natildeo ameis a vida ao combaterdes contra homens (10 W 16-18)
O modo de vida era regulamentado em funccedilatildeo das necessidades do Estado e
tinham consciecircncia de natildeo pertencerem a si proacuteprios mas agrave poacutelis
Em suma estimavam todos que natildeo tinham nascido para servirem a si mesmos
antes para servir o paiacutes e portanto se outra coisa natildeo lhes era recomendada
continuavam sempre a ir ver o que faziam os meninos e a ensinar-lhes alguma
coisa que resultasse em utilidade puacuteblica ou ainda a aprender eles proacuteprios
com os que eram mais idosos do que eles (PLUTARCO Licurgo LI In
Vidas Paralelas)
Licurgo teria imposto que os espartanos tivessem uma vida de austeridade por
exemplo diz-se que eram obrigados a fazerem as refeiccedilotildees em comum em torno de um
caldo negro (PLUTARCO Licurgo XXI In Vidas Paralelas)
Plutarco daacute testemunho dessa coletividade
A agogeacute espartana
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Em suma acostumou os cidadatildeos a natildeo quererem e natildeo poder jamais viver soacutes
antes serem por assim dizer colados e incorporados uns com os outros e a se
acharem sempre juntos como as abelhas em torno dos superiores saindo de
si mesmos quase por um arrebatamento de amor para com o paiacutes e de desejo
de honra para servir inteiramente ao bem da coisa puacuteblica (Op cit LIV In
Vidas Paralelas)
Eacute bom lembrar que Licurgo ordenou que os espartanos fizessem as mesmas
refeiccedilotildees juntos era proibido se alimentarem agrave parte e em particular em grandes
banquetes (Op cit XV In Vidas Paralelas)
Conveacutem citar Aristoacuteteles ldquoacreditamos que a amizade eacute o maior dos bens para as
cidades porquanto pode ser o melhor meio de evitar revoltasrdquo (ARISTOacuteTELES Poliacutetica
II 1262b 7-8)
O estagirita faz uma criacutetica a respeito das refeiccedilotildees comuns intituladas de phidiacutetia
Para o filoacutesofo essas refeiccedilotildees deveriam ser pagas pelo tesouro puacuteblico tal qual em Creta
Entretanto em Esparta os cidadatildeos tinham de fazer uma contribuiccedilatildeo ateacute os pobres que
tinham dificuldades de arrumar dinheiro para essas refeiccedilotildees O objetivo de Licurgo era
que essas refeiccedilotildees fossem democraacuteticas ldquoa maneira espartana tradicional de fixar o
limiar da cidadania consiste em privar de participaccedilatildeo o que natildeo pode pagar a taxa das
refeiccedilotildees comunsrdquo (Op cit II 1271a 26-30)
De acordo com o historiador Xenofonte nas accedilotildees de guerra os lacedemocircnios
(espartanos) usavam traje vermelho para que natildeo se percebessem as manchas de sangue
Se morressem em combate eram enterrados com essas tuacutenicas (JENOFONTE La
Republica de los Lacedemonios)5
Na agogeacute espartana a sophrosyacutene (temperanccedila moderaccedilatildeo autocontrole) tem um
caraacuteter social sendo um comportamento imposto regulamentado marcado pelo
comedimento que o jovem deve observar em todas as circunstacircncias comedimento em
seu andar em seu olhar em suas expressotildees comedimento diante das mulheres em face
dos mais velhos comedimento aos prazeres agrave bebida
Desse modo o futuro guerreiro era exercitado em dominar seus extintos Na
verdade a agogeacute era precisamente destinada a experimentar esse poder de domiacutenio de
si A sophrosyacutene submete assim cada indiviacuteduo em suas relaccedilotildees com o proacuteximo em
contraste com a hyacutebris a ldquodesmedidardquo a ldquotransgressatildeordquo
O ideal da sophrosyacutene era o nada em excesso haacute uma tendecircncia na qual a
sophrosyacutene e a hyacutebris se encarnam respectivamente nos velhos e nos jovens (ideia que
seraacute mais clara nos traacutegicos)
A bela morte espartana deve ter ligaccedilatildeo com a cidadania ou melhor um criteacuterio
de cidadania sendo uma manifestaccedilatildeo ciacutevica (12W 18 34) Uma das diferenccedilas mais
acentuadas entre o mundo de Tirteu e dos poemas homeacutericos estaacute nas relaccedilotildees do
indiviacuteduo com a comunidade pois os guerreiros de Homero lutam pela gloacuteria individual
enquanto os heroacuteis de Tirteu combatem pela comunidade por suas famiacutelias e
dependentes Assinale-se que haacute na Iliacuteada XV 494-9 um episoacutedio em que Heitor estaacute
claramente lutando pela sobrevivecircncia de Troia
5 Para Jaeger a Constituiccedilatildeo (Repuacuteblica) dos Lacedemocircnios de Xenofonte eacute resultado do romantismo ldquomeio
filosoacutefico meio poliacutetico do seacuteculo IV aC o qual via no Estado espartano uma espeacutecie de revelaccedilatildeo
poliacutetica primordialrdquo (JAEGER 2001 p 109)
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A cidade espartana condena o ato de bravura de um soacute combater e permanecer
corajosamente no seu lugar na falange natildeo ceder agrave vontade de fugir encorajar seu
companheiro de linha eacute um bem comum para a cidade e para todo o povo
Heroacutedoto disserta a respeito do espartano Aristodamos que estava entre os
trezentos lacedemocircnios que tinham defendido as Termoacutepilas ele foi o uacutenico sobrevivente
mas preocupado em livrar-se do oproacutebio que os espartanos infligiram a essa
sobrevivecircncia o guerreiro saiu de seu posto do seu lugar na falange e procurou e
encontrou a morte em Plateia ao realizar faccedilanhas extraordinaacuterias (HEROacuteDOTO
Histoacuteria IX 71)
Aleacutem do exemplo de Aristodamos o historiador daacute testemunho de outro episoacutedio
nas Termoacutepilas em que os combatentes saindo de seus postos lutavam de maneira furiosa
em torno do corpo de Leocircnidas Quando as espadas dos espartanos foram quebradas eles
se defenderam com as matildeos e os dentes (Op cit VII 225) em um estado de furor
belicoso que se assemelhava aos heroacuteis homeacutericos Diomedes e Aquiles Os espartanos
abandonaram a sophrosyacutene e estavam claramente em estado de lyacutessa o que a cidade natildeo
tolerava
Todavia apesar de sua valentia os espartanos natildeo lhe concederam as honras
fuacutenebres devidas aos melhores isto eacute recusaram-lhe a aristeacuteia porque violara a lei de
permanecer em seu lugar na falange Possuiacutedo pela lyacutessa por um furor guerreiro
combateu furiosamente fora de seu posto
A virtude guerreira natildeo pertence agrave ordem do thymoacutes do impulso e sim da
sophrosyacutene a temperanccedila um domiacutenio muito grande para que o guerreiro pudesse refrear
seus impulsos e natildeo perturbasse a ordem da formaccedilatildeo em falange
A eacutetica militar espartana proiacutebe o estado de furor de lyacutessa Vernant destaca que a
cidade rejeita atitudes tradicionais da aristocracia que tem por costume a exaltaccedilatildeo do
prestiacutegio do poder dos indiviacuteduos e de colocaacute-los acima do comum satildeo considerados
como um descomedimento uma hyacutebris de igual modo o furor guerreiro e a busca no
combate de uma gloacuteria particular (VERNANT 2002 p 69)
Ateacute os sessenta anos os espartanos estavam sujeitos a participar das guerras
pertenciam ao Estado ate agrave morte As moccedilas natildeo eram tratadas de modo diverso acima
da famiacutelia vinha a poacutelis
Xenofonte destaca que Licurgo ordenou que o sexo feminino exercitasse tanto
quanto o masculino A mulher espartana tambeacutem tinha uma formaccedilatildeo regulamentada
cuja muacutesica a danccedila e o canto natildeo possuiacuteam tanta importacircncia quanto a ginaacutestica e o
esporte (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios 1 4)
As espartanas estavam a serviccedilo da cidade quando solteiras praticavam
exerciacutecios que a tornavam forte e saudaacutevel a fim de que seus corpos se tornassem riacutegidos
ao se exercitarem havia exerciacutecios de correr de lutar de jogar a barra e de lanccedilar o dardo
com o objetivo de gerarem filhos igualmente robustos e para suportarem as dores do
parto (PLUTARCO Licurgo XXV In Vidas Paralelas)
Havia a ideia entre os homens de que pai e matildee fortes gerariam igualmente filhos
mais vigorosos Por isso quando casada a missatildeo da mulher era dar ao Estado filhos
fortes grandes guerreiros e bons cidadatildeos Percebe-se que haacute uma preocupaccedilatildeo de
eugenia dentro da sociedade espartana
Os receacutem-nascidos eram observados e se constatada qualquer imperfeiccedilatildeo essas
crianccedilas consideradas ldquodefeituosasrdquo que tivessem qualquer tipo de doenccedila ou
deformidade eram sumariamente assassinadas sendo atiradas de um precipiacutecio Esses
A agogeacute espartana
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receacutem-nascidos natildeo estariam prontos para defender a cidade-estado e consequentemente
natildeo seriam bons guerreiros na fase adulta6
Entrementes depois que a crianccedila nascia [] mas se lhes parecia feia
disforme ou franzina mandavam atiraacute-la num precipiacutecio a que vulgarmente se
dava o nome de Apothetes isto eacute depositoacuterios pois tinham a opiniatildeo de que
natildeo era expediente nem para a crianccedila nem para a coisa puacuteblica que ela
vivesse visto como desde o nascimento natildeo se mostrava bem constituiacuteda para
ser forte satilde e rija durante toda a vida E por esse motivo as proacuteprias mulheres
que as governavam natildeo as lavavam com aacutegua simples como se faz por toda
parte mas com uma mistura de aacutegua e vinho e por esse meio experimentavam
se a compleiccedilatildeo e a tecircmpera de seus corpos era boa ou maacute porque dizem eles
que as crianccedilas sujeitas agrave epilepsia ou entatildeo catarrosas e doentias natildeo podem
resistir nem tolerar esse banho de vinho mas definham e caem em langor e
ao contraacuterio as que tecircm sauacutede se tornam mais rijas e mais fortes
(PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)
Aristoacuteteles sublinha que Licurgo com o objetivo de fazer com que os espartanos
fossem numerosos encorajava-os a terem o maior nuacutemero possiacutevel de filhos haacute a lei de
que o pai de trecircs filhos estaacute isento do serviccedilo militar e o de quatro livre de impostos
(ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1270b 1-5)
A renomada helenista Claude Mosseacute infere que seria interessante acreditar que
Esparta passou por uma seacuterie de etapas entre a adoccedilatildeo da falange hopliacutetica seacuteculo VII
aC e o ldquofechamento da cidade em si mesmardquo iniacutecio seacuteculo IV aC Aleacutem do mais a
rheacutetra que fora atribuiacuteda a um possiacutevel legislador Licurgo pode ter sido resultado de
uma possiacutevel abertura da falange aos membros do decircmos cuja participaccedilatildeo nas tomadas
de decisatildeo era reconhecida Em relaccedilatildeo agrave partilha de terras pode ter acontecido depois
do teacutermino da segunda guerra da Messecircnia (uacuteltimo quarto do seacuteculo VII aC) e a agogeacute
e o militarismo da cidade podem ter ocorridos no princiacutepio do seacuteculo VI aC tendo por
principal objetivo a defesa da cidade-estado espartana contra os povos da Lacocircnia e
Messecircnia que foram escravizados
A Esparta do seacuteculo VII aC estaacute empenhada em um movimento que leva as
aristocracias das diversas cidades ao luxo Depois a ruptura se daacute entre o final do seacuteculo
VII aC e o iniacutecio do VI aC concentra-se em si mesma repudiando a ostentaccedilatildeo da
riqueza proibindo o uso dos metais preciosos depois a moeda de ouro e de prata (o
dinheiro era feito de um ferro de maacute qualidade que natildeo deveria ser fundido em grandes
quantidades) permanece fora das correntes intelectuais fecha-se a tudo o que eacute
intercacircmbio com o estrangeiro comeacutercio atividade artesanal voltam-se sua preocupaccedilatildeo
para a guerra em defesa da poacutelis (MOSSEacute 2004 p 189-190)
Qualquer riqueza natildeo poderia ser exposta em puacuteblico os artesatildeos natildeo
confeccionavam luxos desnecessaacuterios como tapetes e adornos mas faziam muito bem
apenas o baacutesico pois a riqueza seria a causa de muitos males Xenofonte escreve que os
espartanos natildeo se adornavam com riquezas de vestuaacuterios exceto com a boa forma fiacutesica
de seus corpos (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)
Pode-se conceituar a agogeacute como uma educaccedilatildeo estatal com fins extremamente
belicosos que se estendia da infacircncia ateacute a adolescecircncia Nessa educaccedilatildeo os futuros
6 Esse costume natildeo ocorreu soacute em Esparta a Lei das XII taacutebuas na Roma antiga autorizava os patriarcas a
matar seus filhos fraacutegeis ou deficientes
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combatentes aprendiam as artes militares as manobras em campos de batalha e a ser
destemidos diante do inimigo
Infere-se que o principal objetivo da agogeacute era formar poderosos guerreiros para
a defesa da poacutelis Para isso uma riacutegida educaccedilatildeo foi imposta aos jovens e uma peculiar
maneira de viver aos adultos
REFEREcircNCIAS
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Homem e mulher os criou
10 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
semelhante a ele - daiacute o uso dos termos tsela e tselem (costela e osso) O termo lsquoeacutetzem -
semelhanccedila ndash une em sua raiz os dois termos que identificam a mulher como parte da
humanidade HaAdam natildeo a identifica como lsquoysh pois percebe que existem diferenccedilas
entre eles ndash afinal ela eacute seu contraacuterio Este texto biacuteblico como outros textos do Gecircnesis tenta explicar criaccedilatildeo de
homem e mulher como partes da humanidade Sua preocupaccedilatildeo em desenvolver uma
narrativa que explique a criaccedilatildeo da mulher se daacute para que natildeo se incorra no erro de ignorar
que a mulher tambeacutem eacute abenccediloada com a semelhanccedila de Deus corroborada na criaccedilatildeo
que se faz da mesma mateacuteria
Natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo em inferiorizar a mulher Embora HaAdam a tenha
chamado de lsquoyshah seu nome apareceraacute somente no capiacutetulo seguinte apoacutes a expulsatildeo
do Eacuteden quando entatildeo ele a chamaraacute de Chawav ou Eva Se haacute superioridade porque ele
lhe daacute um nome esta superioridade eacute uma das consequecircncias do que se denominou pecado
e gerou a expulsatildeo do paraiacuteso
Os relatos cabaliacutesticos datildeo conta de criaccedilatildeo de uma outra mulher Esta ideia natildeo
soacute eacute desenvolvida pelos dois relatos de criaccedilatildeo mas tambeacutem pela fala de HaAdam
quando desperta de seu sono Ele diz segundo a traduccedilatildeo que fazemos aqui do hebraico
e disse o homem esta desta vez eacute osso dos meus ossos 5 Se desta vez HaAdam se
identifica com algo na criaccedilatildeo talvez teria acontecido algo antes com o qual ele natildeo teria
se adaptado ou natildeo se sentiria reconhecido
Lilith eacute a mulher que domina e seduz HaAdam que lhe aproxima de seus
institntos Chavah a segunda mulher eacute a que gera e constroacutei a histoacuteria Na religiatildeo a
primeira eacute tida como a mulher que deve ser desprezada apesar de figurar no imaginaacuterio
masculino pois retorna nos sonhos de Adatildeo Ela tambeacutem retorna aos textos biacuteblicos
principalmente nos sapiencieais mais especificamente no livro de proveacuterbios nos
capiacutetulos 1 a 9 quando se faz oposiccedilatildeo entre a sabedoria e a ignoracircncia entre a mulher
do povo e a estrangeira
Chavah vive com esta sombra - a mulher principal para a sociedade mas natildeo nos
desejos de seu marido A presenccedila de Lilith na cultura judaica natildeo eacute uacutenica Ela pode ser
encontrada no eacutepico de Gilgamesh que data de 2000 aEC na pseudoepiacutegrafe
denominada Testamento de Salomatildeo que data de 200 EC no Talmud e no Alfabeto de
Ben Sira6 do ano 800 de nossa era aproximadamente Alguns indicam haver menccedilatildeo
tambeacutem no livro biacuteblico de Isaiacuteas 3414 (a palavra Lilith vem da raiz laylah que significa
noite)
Lilith teria sido criada tatildeo bonita e interessante que logo arranjou
problemas com o primeiro o homem Ainda segundo a narrativa
miacutetica Eva foi criada para substituir Lilith Eva seria o oposto de
Lilith por sua vez reuacutene traccedilos marcantes de obediecircncia boa
imagem companheira submissa ao sacerdote ao Pai e agrave Lei e por
fim tambeacutem fonte de pecado e desobediecircncia (GOMES
ALMEIDA 2019)
Eacute importante tambeacutem observar que o capiacutetulo 2 de Gecircnesis este que se propotildee a
recontar a criaccedilatildeo focando a criaccedilatildeo do homem e da mulher eacute um texto javista-eloiacutesta
Observa-se que o capiacutetulo primeiro do gecircnesis eacute notoriamente um texto eloiacutesta Jaacute o
5 Cf capiacutetulo 2 versiacuteculo 23 do livro de Gecircnesis 6 Onde se tem o registro mais antigo sobre Lilith datado entre os seacuteculos VIII e X aC segundo Koltuv
(1986)
Isabel Arco Verde Santos
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capiacutetulo 2 refere-se a deus com o tetragrama sagrado (Yhwh) seguido da forma Elohim
O texto mistura entatildeo as duas fontes
A conclusatildeo de HaAdam natildeo necessariamente afirma a lenda mas abrem uma
possibilidade neste sentido O que se pode concluir eacute que natildeo havia nada na criaccedilatildeo com
a qual ele HaAdam se identificasse
A preocupaccedilatildeo da leitura biacuteblica e as possiacuteveis interpretaccedilotildees relacionando ao
papel da mulher na sociedade ainda precisam ser mais bem resolvidas Mesmo que se
faccedila a presenccedila de Lilith no texto como a histoacuteria omitida e natildeo contada porque precisava
ser reescrita na forma de Chawah ainda assim carece a ideia de submissatildeo e inferioridade
que culturalmente ainda se insiste afirmar
O texto Eloiacutesta que domina o capiacutetulo primeiro do Gecircnesis natildeo tem qualquer
preocupaccedilatildeo em distinguir homem e mulher O capiacutetulo segundo na comunhatildeo Javista-
Eloiacutesta tem a preocupaccedilatildeo em frisar que satildeo diferentes e ateacute mesmo contraacuterios mas que
natildeo perdem a noccedilatildeo da mesma mateacuteria e partilham da mesma becircnccedilatildeo da semelhanccedila
divina Natildeo haacute uma prioridade A confusatildeo que suscita a ideia androacutegina surge da essecircncia
comum dois elementos criados partes de uma soacute ideia a humanidade
A ordem na criaccedilatildeo tambeacutem natildeo gera conclusotildees de superioridade Se
entendecircssemos que os primeiros seriam submissos aos uacuteltimos seres criados entendendo
o homem a coroa da criaccedilatildeo o ser acima de toda a criaccedilatildeo poderiacuteamos supor que a
mulher criada depois dele lhe seria entatildeo superior Colocaccedilotildees deste tipo natildeo prosperam
na anaacutelise do texto biacuteblico porque haacute que se considerar o texto como um todo Ou entatildeo
seriam os astros celestes criados primeiros inferiores aos mares ou os animais Eacute certo
que a ordem natildeo sugere algum tipo de superioridade
Enfim o que se vecirc depois da criaccedilatildeo eacute uma luta constante da figura feminina pela
conquista de seu espaccedilo luta esta que infelizmente ainda persiste A necessidade de ser
semelhanccedila de Deus e natildeo soacute costela
REFEREcircNCIAS
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FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa
15a ed Rio de Janeiro Nova Fronteira
GOMES Antonio Maspoli de Arauacutejo ALMEIDA Vanessa Ponstinnicoff de O Mito de
Lilith e a Integraccedilatildeo do Feminino na Sociedade Contemporacircnea Revista acircncora digital
de Ciecircncias da Religiatildeo Disponiacutevel em ltwwwrevistaancoradigitalcombrgt
Homem e mulher os criou
12 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
GOTTWALD Norman K Introduccedilatildeo socioliteraacuteria agrave Biacuteblia hebraica Traduccedilatildeo
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946508
AS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO E SEU IMPACTO NO
REINADO DE VALENTINIANO I
Carlos Eduardo Schmitt
RESUMO Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio (c 340-402) possui uma extensa obra da qual
chegaram agrave contemporaneidade mais de 900 cartas (epistolae) 49 informes (relationes)
e 8 discursos (orationes) Suas obras de maior destaque satildeo as Orationes I II e III
proferidas entre 369-370 e sua Relatio III escrita durante seu tempo como prefeito de
Roma em 384 Tais obras lhe renderam a fama de melhor orador de seu tempo ainda em
vida Nosso trabalho tem como objetivo expor o impacto que as Orationes I II e III
tiveram na carreira do orador e na relaccedilatildeo entre o Senado e o reinado de Valentiniano I
A partir de suas Orationes ressaltaremos a delicada missatildeo do orador enviado de Roma
agrave Treacuteveris para servir como ponte entre o Senado e o imperador
PALAVRAS-CHAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I
SYMMACHUSrsquo ORATIONES I II AND III AND ITS IMPACT IN THE
KINGDOM OF VALENTINIAN I
ABSTRACT Quintus Aurelius Symmachus Eusebius (c 340-402) has an extensive work
from which more than 900 letters (epistolae) 49 reports (relationes) and 8 discourses
(orationes) survived His most outstanding works are Orationes I II and III pronounced
between 369-370 and his Relatio III written during his time as praefectus of Rome in
384 Such works earned him the fame of the best speaker of his time being still alive Our
paper aims to expose the impact that Orationes I II and III had on the speakers career
and on the relation between the Senate and the reign of Valentinian I From his Orationes
we will highlight the delicate mission of the speaker sent from Rome to Trier to serve as
a bridge between the Senate and the emperor
KEYWORDS Symmachus Orationes Valentinian I
LAS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO Y SU IMPACTO EN EL
REINADO DE VALENTINIANO I
RESUMEN Quinto Aurelio Siacutemaco Eusebio (c 340-402) tiene una extensa obra de la
cual chegaron a la contemporaneidad maacutes de 900 cartas (epistolae) 49 informes
(relationes) e 8 discursos (orationes) Sus obras de mayor destaque son las Orationes I
Doutorando pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail carlosschmitt90gmailcom
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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II y III pronunciadas entre el 369-370 y su Relatio III escrita durante su tiempo como
prefecto de Roma en 384 Tales obras le rindieron la fama de mejor orador de su tiempo
auacuten en vida Nuestro artiacuteculo tiene como objetivo exponer el impacto que las Orationes
I II y III tuvieron en la carrera del orador y en la relacioacuten entre el Senado y el reinado de
Valentiniano I A partir de sus Orationes resaltaremos la delicada misioacuten del orador
enviado de Roma a Treacuteveris para servir como puente entre el Senado y el emperador
PALAVRAS CLAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I
INTRODUCcedilAtildeO
Joseacute Antonio Gallego (2003 p 153) esclarece que a obra mais famosa de Siacutemaco
foi seu informe terceiro apesar de que durante a Idade Meacutedia as epistolae foram suas
obras mais valorizadas sendo utilizadas como modelo para escrever uma carta Contudo
em seu proacuteprio tempo ele era famoso por ser um grande orador Eacute por isso que Gallego
(2003 p 154) pondera como injusto o que a histoacuteria fez com Siacutemaco Apenas oito de
seus discursos chegaram ateacute noacutes sendo que estes satildeo dos iniacutecios de sua carreira aleacutem de
estarem num manuscrito palimpsesto com grandes lacunas Deve-se ter presente tambeacutem
que ldquoSiacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador romano se excetuarmos os escritores cristatildeosrdquo1
(GALLEGO 2003 p 154) Em outras palavras Siacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador da
religiatildeo tradicional romana
Cristiana Sogno (2006 p viii) faz uma reconstruccedilatildeo da carreira poliacutetica de
Siacutemaco atraveacutes de uma anaacutelise minuciosa de seus escritos Ele ocupa uma posiccedilatildeo
peculiar entre os autores latinos pela quantidade de escritos que nos chegaram A autora
defende que a razatildeo pelo desconhecimento de Siacutemaco por parte dos estudantes de
Claacutessicas e de Histoacuteria Antiga eacute o fato de natildeo existir uma traduccedilatildeo completa do corpus
simaquiano em nenhuma liacutengua moderna Sogno clarifica tambeacutem que a ediccedilatildeo de Otto
Seeck do seacuteculo XIX continua sendo o modelo do texto
Sogno (2006 p 1) clarifica que a primeira fase da carreira de Siacutemaco estaacute bem
documentada em suas orationes Sua nominaccedilatildeo como embaixador senatorial em 368 foi
um marco em sua vida sendo que sua reputaccedilatildeo como orador foi estabelecida na corte de
Valentiniano I tornando-se uma ponte entre o Senado e o imperador
Apesar de que Siacutemaco tenha a fama de ser um grande orador suas orationes
desapareceram ateacute seu redescobrimento no seacuteculo XIX Sabe-se que Siacutemaco ficou
conhecido por ser um bastiatildeo em defesa da religiatildeo tradicional romana sobretudo durante
seu periacuteodo como Prefeito de Roma por volta de 384 E Sogno (2006 p 1) sem perder
a oportunidade relata uma ldquoironia do destinordquo sendo que foi um cardeal da Igreja
Catoacutelica Romana Angelo Mai quem descobriu e publicou os fragmentos de suas
orationes em 1815 Tratava-se de um palimpsesto onde por cima havia uma traduccedilatildeo
latina das atas do Conciacutelio de Calcedocircnia O cardeal destruiu o documento para que as
orationes pudessem ser recuperadas Apesar disso Sogno (2006 p 2) constata como
esses discursos de Siacutemaco satildeo ainda pouco estudados em comparaccedilatildeo com outros
escritos seus como suas epistolae Esses oito discursos satildeo apenas uma parte de toda a
produccedilatildeo simaquiana Haacute tambeacutem um panegiacuterico em honra do usurpador Maacuteximo que
por razotildees oacutebvias natildeo foi publicada
1 ldquoSiacutemaco es el uacuteltimo gran orador romano si dejamos a un lado a los escritores cristianosrdquo
Carlos Eduardo Schmitt
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ORATIONES I II E III
Foi no inverno do ano 368-369 que Siacutemaco naquele tempo um jovem senador que
iniciava sua carreira poliacutetica foi enviado de Roma agrave Treacuteveris com o objetivo de dirigir
uma laudatio uma oraccedilatildeo de louvor a Valentiniano I por motivo de seus cinco anos de
reinado (Quinquennalia) Sogno (2006 p 2) destaca que tal missatildeo natildeo significava
apenas um reconhecimento por parte do Senado de seus dotes retoacutericos mas constituiacutea
tambeacutem uma oportunidade iacutempar para crescer na carreira poliacutetica e fazer amigos na corte
Apesar de ser um momento festivo Sogno (2006 pp 1-2) esclarece que constituiacutea
uma situaccedilatildeo delicada Ateacute o momento Valentiniano I natildeo havia estado em Roma e essa
era a primeira vez que ele se encontraria com uma delegaccedilatildeo senatorial Sendo assim
Siacutemaco tinha a importante missatildeo de estabelecer boas relaccedilotildees com o imperador Havia
natildeo apenas o discurso mas tambeacutem certa quantidade de ouro (aurum oblaticium2) que os
senadores ofereciam ldquovoluntariamenterdquo ao imperador Em Roma os senadores
aguardavam ansiosos pelo regresso de Siacutemaco e por informaccedilotildees de primeira matildeo
Eacute estranho ver que um senador tatildeo jovem ndash Siacutemaco natildeo tinha ainda nem trinta
anos ndash recebesse tamanha honra e responsabilidade Sogno (2006 p 6) sem colocar em
xeque a capacidade do orador argui que isso foi possiacutevel em parte graccedilas ao Prefeito de
Roma naquele entatildeo Pretextato responsaacutevel direto pela arrecadaccedilatildeo da oferenda de ouro
ao imperador e pela escolha do ldquocorretordquo orador que a levaria Haacute de se ter presente que
das epistolae de Siacutemaco vaacuterias delas tecircm Pretextato como destinataacuterio
Siacutemaco natildeo se limitou a estreitar laccedilos de amizade apenas no Senado Buscou
tambeacutem amigos na corte imperial E um de seus principais foi Ausocircnio tutor de Graciano
filho de Valentiniano I Sabe-se que eles trocavam correspondecircncias antes mesmo de
Siacutemaco ter ido agrave Treacuteveris e que havia entre eles uma muacutetua admiraccedilatildeo (SOGNO 2006
p 6)
A prova de que o panegiacuterico (laudatio) de Siacutemaco dirigido a Valentiniano foi um
sucesso de acordo com Sogno (2006 pp 8-9) foi o fato do proacuteprio imperador ter
solicitado ao orador um segundo panegiacuterico Siacutemaco eacute consciente de sua responsabilidade
e da honra que lhe eacute aferida e expressa esses sentimentos em seu discurso Consciente de
que o objetivo primeiro de uma laudatio eacute agradar ao puacuteblico Siacutemaco expotildee que tudo o
que anuncia e proclama eacute verdadeiro baseado em fatos que vivenciou e tambeacutem naqueles
de que ouviu o testemunho
Sogno (2006 p 9) classifica o primeiro panegiacuterico de Siacutemaco a Valentiniano
como um encocircmio biograacutefico composiccedilatildeo descrita em detalhe no terceiro livro da
Institutio oratoria de Quintiliano Nele Siacutemaco reconhece e celebra publicamente o
estabelecimento da dinastia valentiniana realizando um resumo dos seus cinco primeiros
anos de reinado desde que tinha sido escolhido pelo exeacutercito O encocircmio biograacutefico
como detalha Sogno requer discorrer tambeacutem sobre os ancestrais e os descendentes da
nova dinastia
2 ldquoOs clariacutessimos ie os indiviacuteduos de categoria senatorial tinham ainda que contribuir com o aurum
oblaticium oferecido pelo Senado por ocasiatildeo dos aniversaacuterios dos imperadoresrdquo (SILVA amp MENDES
2006 p 212) Isso era parte da reforma fiscal iniciada por Diocleciano e ampliada por Constantino
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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Satildeo estrateacutegicas as alusotildees que Siacutemaco faz do lugar de nascenccedila de Valentiniano
e daqueles onde ele acompanhou seu pai em campanhas militares O futuro imperador
nasceu na fria regiatildeo da Iliacuteria e acompanhou seu pai no calor escaldante da Aacutefrica Isso
significa natildeo soacute que ele estaacute preparado para qualquer dificuldade que advir mas
sobretudo que eacute um homem que conhece seu reino muito bem porque jaacute esteve em
diversas partes dele Todas essas dificuldades unidas aos inimigos enfrentados lhe
qualifica como a melhor pessoa para reger o Impeacuterio (SOGNO 2006 p 10) Um cuidado
que Siacutemaco tem em sua laudatio eacute o de reforccedilar a legitimidade de Valentiniano sobretudo
ao dizer que ningueacutem protestou quando o elegeram dando a impressatildeo de que houve um
consenso geral no exeacutercito (SOGNO 2006 p 12)
O conteuacutedo dos panegiacutericos eacute exagerado e por isso deve-se ter cuidado ao tomaacute-
los como fonte histoacuterica No entanto nos revelam muito sobre o tempo de Siacutemaco e sobre
ele mesmo No primeiro dedicado a Valentiniano I por motivo de seu primeiro lustro no
poder vemos como Siacutemaco enaltece a vida e a obras do imperador desde sua tenra
formaccedilatildeo nas diversas partes do Impeacuterio seguindo o bom exemplo de seu pai Graciano
Com verbosidade Siacutemaco atesta que natildeo havia outra pessoa melhor para o posto de
imperador que o proacuteprio Valentiniano superior a qualquer outro liacuteder Homem valente
assentou-se na parte mais perigosa do Impeacuterio Treacuteveris e lutou contra o inimigo mais
feroz dos romanos os alamanos Aleacutem de guerreiro eacute saacutebio e prefere defender os
interesses do Estado que os seus proacuteprios Eacute por isso que deixou a seu irmatildeo Valente
cuidar sozinho da rebeliatildeo de Procoacutepio uma guerra interna enquanto ele se dedicava a
proteger o Impeacuterio dos inimigos externos Foi um imperador que preferiu o bem comum
ao de sua proacutepria famiacutelia Realizou obras incriacuteveis
O comeccedilo do segundo panegiacuterico a Valentiniano indica sua razatildeo de ser o terceiro
consulado do imperador ao lado de seu irmatildeo Valente em 370 Siacutemaco
estrategicamente revela que iraacute relatar apenas alguns acontecimentos sem exaustatildeo
Deixaraacute todos os outros feitos natildeo mencionados para que sejam cantados pelos poetas
Parabeniza ao imperador por ser sua fonte de inspiraccedilatildeo e o restaurador da liberdade de
expressatildeo Ao mesmo tempo que Siacutemaco preza ao imperador por ter dado assunto que
fosse cantado e escrito como suas grandes vitoacuterias sobre os alamanos ele tambeacutem lembra
o imperador de que sem esses oradores e poetas haacute o silecircncio e que o silecircncio eacute o pior
inimigo da grandeza (SOGNO 2006 p 12)
Siacutemaco se dedica basicamente a enaltecer o imperador por suas conquistas e
fortificaccedilotildees ao longo do Reno e de que se impressionou ao ter visto as mesmas
pessoalmente Enaltece-o por seu terceiro consulado mas sobretudo se centra em seus
avanccedilos militares Entre outras exaltaccedilotildees Siacutemaco o parabeniza por ser exemplo de
governante ideal que eacute amado e temido por seu povo Tambeacutem o parabeniza por haver
aceitado o Impeacuterio de forma relutante (SOGNO 2006 p 14) Na verdade Siacutemaco
exaltou muito mais as fortificaccedilotildees erguidas por Valentiniano do que suas batalhas contra
os baacuterbaros Sogno (2006 p 15) pensa que isso se deve principalmente pelo acontecido
com Siaacutegrio uacutenico sobrevivente de uma batalha que foi considerado um desertor pelo
imperador E isso aconteceu exatamente quando o orador se encontrava na corte
O segundo panegiacuterico dedicado tambeacutem a Valentiniano I tinha por motivo
a designaccedilatildeo do imperador para o seu terceiro consulado que ele havia recebido como
um reconhecimento por seus feitos recentes Sendo assim o panegiacuterico deveria se centrar
em suas atividades recentes as quais lhe fizeram merecedor do terceiro consulado
Siacutemaco inicia dizendo que o consulado era uma recompensa insuficiente para
Valentiniano comparado com tudo o que perpetrou no Reno Mas como natildeo haacute algo
Carlos Eduardo Schmitt
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maior que eles possam ofertar Siacutemaco solicita ao imperador que se contente com o
melhor presente e honra que o Senado lhe pode oferecer E a partir de entatildeo o orador
narra as atividades beacutelicas de Valentiniano contra os alamanos e suas construccedilotildees ao
longo do Reno Em um determinado momento Siacutemaco o elogia por haver restaurado a
liberdade de expressatildeo no Impeacuterio Termina exaltando sua sobriedade
No panegiacuterico de Siacutemaco dedicado a Graciano vecirc-se claramente como ele se
dirige ao jovem imperador como a esperanccedila de Roma Durante todo o discurso o orador
enfatiza sua juventude enaltecendo-a Sogno acredita que essa insistecircncia seja uma forma
de favorecer a aceitaccedilatildeo do imperador possivelmente criticado pela aristocracia romana
por sua pouca idade (SOGNO 2006 p 18) Como recompensa por sua performance na
corte Siacutemaco recebeu o tiacutetulo honoriacutefico de comes tertii ordinis e trecircs anos depois em
Roma recebeu o proconsulado da Aacutefrica (373-374)
O panegiacuterico ao menino Graciano talvez tenha sido o mais difiacutecil para Siacutemaco
elaborar Devido a sua pouca idade objetivamente natildeo havia feitos grandiosos do qual
ele fosse sujeito No entanto Siacutemaco surpreendeu mesmo assim Vecirc em Graciano o iniacutecio
de uma nova eacutepoca porque eacute um imperador ainda menino e sendo assim estaraacute bem
treinado em todos os campos Seu louvor se centra entatildeo na juventude do imperador e
em seu governo ao lado de seu pai Valentiniano e de seu tio Valente Aos baacuterbaros natildeo
lhes restaraacute mais do que a escravidatildeo e eles jaacute sabem disso
OS DOZE PANEGIacuteRICOS LATINOS
Tendo em vista as trecircs orationes mencionadas podemos fazer uma breve anaacutelise
dos famosos doze panegiacutericos latinos com o intuito de entender melhor as diversas
asserccedilotildees simaquianas bem como seu estilo Susanna Morton Braund (2005 pp 90-91)
descreve que de forma convencional a oratoacuteria grega foi divida em trecircs tipos discurso
forense deliberativo e epidiacutectico O primeiro tambeacutem chamado de judicial eram aqueles
proferidos nos tribunais no foacuterum os discursos deliberativos eram aqueles proferidos
diante do Senado ou de uma assembleia do povo e os discursos epidiacutecticos eram aqueles
escritos para uma comemoraccedilatildeo especial Este uacuteltimo para Braund se revestiu de
especial importacircncia durante o principado como panegiacuterico (elogio)
Uma das coisas mais importantes para um aristocrata romano era o
reconhecimento pelas pessoas ao seu redor de seu valor puacuteblico e permanente
ndash sua auctoritas e sua dignitas Idealmente isso seria celebrado em panegiacuterico
ndash isto eacute louvor escrito em prosa ou verso3 (2005 p 110)
O panegiacuterico era um elemento central na poliacutetica romana e na vida puacuteblica sob
o Principado ndash e jaacute o era haacute muito tempo De fato alguns dos nossos mais
antigos textos latinos sobreviventes os epitaacutefios aos membros da famiacutelia
Cipiatildeo que datam do terceiro e segundo seacuteculos AEC (Scipionum elogia)
satildeo os louvores (poacutestumos) dos grandes homens4 (2005 p 112)
3 ldquoOne of the most important things for a Roman aristocrat was the recognition by people around him of
his public worth and standing ndash his auctoritas and his dignitas Ideally this would be celebrated in
panegyric ndash that is praise written in prose or verserdquo 4 ldquoPanegyric was a central element in Roman politics and public life under the Principate ndash and had been
so for a long time already In fact some of our earliest surviving Latin texts the epitaphs to members of
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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Ainda sobre o panegiacuterico e sua difusatildeo durante este periacuteodo do Impeacuterio Romano
Mitchell (2015 p 19) o relaciona agrave natureza autoritaacuteria do mesmo Segundo ele a
dissidecircncia aberta natildeo era tolerada e isso se vecirc pelos extremos dos discursos que satildeo de
louvor ou vituperaccedilatildeo mas raramente se encontram num meio termo Apesar de
parecerem pouco confiaacuteveis o autor defende a utilizaccedilatildeo de panegiacutericos e poemas como
fontes histoacutericas para o periacuteodo alegando que seus exageros omissotildees e estilos retoacutericos
expressam de forma criacutetica muito daquele momento Segundo Mitchell as obras mais
significativas neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos5
As obras-chave neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos que
provavelmente foram compilados pelo orador gaulecircs Pacato e foram
prefaciados pelo longo panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem para o imperador Trajano
(I) Aleacutem do trabalho do proacuteprio Pacato de 389 em louvor a Teodoacutesio I (II)
este inclui discursos a Maximiano em 289 (X de Cl Mamertino o Velho) e
291 (XI) a Constacircncio pai de Constantino em 296 e 298 (IX) para o
casamento de Constantino e Fausta em 307 (VII) a Constantino em 310 (VI)
312 (V) 314 (XII) e 321 (IV de Nazaacuterio) e a Juliano em 362 (III de Cl
Mamertino o Jovem em sua proacutepria nomeaccedilatildeo para o consulado)6
Mitchell (2015 p 4) realccedila que conforme o Impeacuterio crescia foi se dando cada
vez mais ecircnfase agrave religiatildeo do Estado Acreditava-se que ele era mantido devido ao apoio
dos deuses e os imperadores romanos que em parte controlavam as atividades religiosas
em seus territoacuterios eram vistos como aqueles que mantinham o pacto de paz com os
deuses a pax deorum E segundo Mitchell todos os meios de propaganda estavam
imbuiacutedos desta ideologia inclusive os discursos panegiacutericos
Braund (2005 129) especifica que o cocircnsul Pliacutenio entregou seu panegiacuterico ao
imperador Trajano no iniacutecio de seu reinado Era um discurso de gratidatildeo onde ele
aproveita para contrastar a imagem do bom Trajano com a do mau Domiciano imperador
de 81 a 96 EC Para Braund (2005 p 130)
Este texto revela dois modelos contrastantes de patrono ou imperador - e afinal
de contas o imperador era apenas o patrono mais poderoso em Roma O bom
patrono ou imperador eacute marcado por sua abertura acessibilidade e atitude
amigaacutevel e tolerante O mau patrono ou imperador eacute marcado pelo abuso
tiracircnico de seus poderes para tomar decisotildees de vida e morte sobre todos ao
seu redor do menor escravo ao senador mais eminente A celebraccedilatildeo do bom
modelo e a condenaccedilatildeo do ruim encontram-se em toda a gama de textos da
literatura latina incluindo poesia eacutepica e pastoral poesia liacuterica e elegiacuteaca
saacutetira e epigrama historiografia oratoacuteria e romance Isso natildeo nos deixa
duvidar de que o modo como um homem poderoso se comportava com seus
the Scipio family dating from the third and second centuries BCE (the Scipionic elogia) are the
(posthumous) praises of great menrdquo 5 Ver tambeacutem BERRY D H Oratory In HARRISON Stephen (ed) A Companion to Latin Literature
Oxford Blackwell 2005 pp 267-268 6 ldquoKey works in this genre are the twelve Latin panegyrics which were probably compiled by the Gallic
orator Pacatus and were prefaced by the younger Plinyrsquos lengthy panegyric for the emperor Trajan (I)
Apart from Pacatusrsquo own work of 389 in praise of Theodosius I (II) this includes speeches for
Maximianus in 289 (X by the elder Cl Mamertinus) and 291 (XI) for Constantius the father of
Constantine in 296 (VIII) and 298 (IX) for the marriage of Constantine and Fausta in 307 (VII) for
Constantine in 310 (VI) 312 (V) 314 (XII) and 321 (IV by Nazarius) and for Julian in 362 (III by the
younger Cl Mamertinus on his own appointment to the consulship)rdquo
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pares e seus subordinados era crucial para sua posiccedilatildeo social e reputaccedilatildeo
poliacutetica7
Bruce Gibson (2005 p 72) critica a postura deste gecircnero por natildeo se envolver
abertamente com a poliacutetica atual de seu tempo senatildeo de modo indireto e o panegiacuterico
modelo natildeo foi a exceccedilatildeo ldquoMesmo o Panegiacuterico de Pliacutenio um discurso em louvor ao
imperador Trajano dado por ocasiatildeo de seu consulado em setembro de 100 EC oferece
sua criacutetica de governo indiretamente atraveacutes da estrateacutegia de atacar o principado de
Domicianordquo8
CONSIDERACcedilOtildeES PARCIAIS
As condiccedilotildees do discurso representavam um novo momento para o Impeacuterio De
acordo com A D Lee (2013 p 1) foi por meados do seacuteculo IV que o Impeacuterio Romano
havia alcanccedilado quase tanto territoacuterio quanto durante o seacuteculo II periacuteodo conhecido pelo
auge do poder romano Foi o periacuteodo dos imperadores guerreiros que se viram forccedilados
a se retirar dos confortos de Roma para proteger suas fronteiras (LEE 2013 p 5) Roma
foi substituiacuteda como residecircncia imperial por Treacuteveris Milatildeo Sirmio e Antioquia Com a
criaccedilatildeo de Constantinopla por parte do imperador Constantino essa situaccedilatildeo soacute se
agravou De qualquer forma o tema que domina o seacuteculo e que dominou os discursos
traduzidos de Siacutemaco foi a histoacuteria militar (MITCHELL 2015 pp 11-12)
Natildeo eacute um Impeacuterio em decadecircncia mas sim um momento de transiccedilatildeo Mitchell
(2015 p 56) se daacute conta de como por exemplo Diocleciano Joviano e Valentiniano
vieram de origens semelhantes Eram todos militares de meia idade nascidos nas
proviacutencias da Iliacuteria o que plasma uma mudanccedila no eixo do poder Mitchell (2015 pp 56-
57) frisa como desde a ascensatildeo de Diocleciano em 284 ateacute a morte de Teodoacutesio I em
395 o Impeacuterio foi governado por esses imperadores guerreiros que aniquilavam inimigos
internos e externos O Estado estava centrado em guerras e batalhas Calcula-se que mais
de dois terccedilos de seu orccedilamento anual eram gastos em atividades militares atividades das
quais os imperadores participavam pessoalmente
Siacutemaco soube valer-se da situaccedilatildeo para estreitar laccedilos com a corte e obter ascensatildeo
poliacutetica Esse periacuteodo foi especial tambeacutem por sua produccedilatildeo literaacuteria e pela quantidade
de escritos que sobreviveu ao tempo Segundo OrsquoDonnel (2015 p 161) haacute mais literatura
latina que nos chegou entre 350 e 450 do que de qualquer outro periacuteodo mais ateacute mesmo
que a eacutepoca de ouro latina entre o final da Repuacuteblica e comeccedilo do Impeacuterio9
7 ldquoThis text reveals two contrasting models of patron or emperor ndash and after all the emperor was just the
most powerful patron in Rome The good patron or emperor is marked by his openness accessibility and
friendly and tolerant attitude The bad patron or emperor is marked by his tyrannical abuse of his powers
to make life and death decisions about everyone around him from the lowest slave to the most eminent
senator Celebration of the good model and condemnation of the bad model are found in the entire range
of texts of Latin literature including epic and pastoral poetry lyric and elegiac poetry satire and epigram
historiography oratory and the novel This can leave us in no doubt that how a powerful man behaved
towards his peers and his subordinates was crucial to his social standing and to his political reputationrdquo 8 ldquoEven Plinyrsquos Panegyricus a speech in praise of the emperor Trajan given on the occasion of his
consulship in September AD 100 offers its critique of rulership indirectly through the strategy of
assailing the principate of Domitianrdquo
9 ldquoWe have more surviving Latin literature from this century between 350 and 450 than for any comparable
period before that including the more famously golden age of Caesar Cicero and Vergilrdquo
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946510
OS IMPERADORES SUETONIANOS EM MEMOacuteRIAS POacuteSTUMAS
DE BRAacuteS CUBAS
Bruno Torres dos Santos
RESUMO O presente trabalho busca discutir atraveacutes da anaacutelise de traduccedilotildees proacuteprias as
referecircncias aos imperadores romanos descritos e consagrados pelo bioacutegrafo Suetocircnio em Vida
dos Ceacutesares na obra Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis Aquele no
iniacutecio do seacuteculo II da era comum demonstrou os viacutecios e as virtudes dos imperadores inclusive
enfatizando os escacircndalos de suas cortes Jaacute Machado trouxe agrave tona as vaidades e as ambiccedilotildees
da burguesia brasileira do seacuteculo XIX Entatildeo analisaremos e interpretaremos o uso destes
personagens histoacutericos para a criaccedilatildeo literaacuteria no referido romance partindo do pressuposto de
que eles poderiam passar despercebidos por leitores modernos que natildeo recuperassem as
referecircncias agrave cultura agrave literatura e agrave histoacuteria da Roma Antiga
PALAVRAS-CHAVE Machado de Assis Imperadores romanos Suetocircnio
THE SUETONIAN EMPERORS IN THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF
BRAS CUBAS
ABSTRACT The present work aims through the analysis of own translations the references to
the Roman emperors described and consecrated by the biographer Suetonius in Life of the
Caesars in the novel Posthumous Memoirs of Bras Cubas by Machado de Assis Suetonius
at the beginning of the second century of the common age demonstrated the vices and virtues
of the emperors including emphasizing the scandals of their courts Machado has already
brought to light the vanities and ambitions of the Brazilian bourgeoisie of the nineteenth
century Then we will analyze and interpret the use of these historical characters for the literary
creation in the novel assuming that they could go unnoticed by modern readers who do not
recover references to the culture literature and history of Ancient Rome
KEYWORDS Machado de Assis Roman emperors Suetonius
Entre os mais diversos romancistas com que a literatura brasileira teve contato natildeo haacute
nome maior do que Machado de Assis Tal personalidade nasceu no Morro do Livramento
Eacute doutorando no PPGLC-UFRJ bolsista CAPES sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Anderson Esteves e integrante
discente do grupo de pesquisa ATRIVM ndash Espaccedilo Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (PPGLC-UFRJ) E-
mail brunots_hotmailcom
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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localizado na aacuterea central do Rio de Janeiro proacuteximo a zona portuaacuteria em junho de 1839
Oriundo de famiacutelia pobre estudou em escolas puacuteblicas mas nunca frequentou uma
universidade Dedicou-se aos mais diversos gecircneros literaacuterios escrevendo poesia crocircnica
teatro conto romance Tambeacutem foi criacutetico literaacuterio e jornalista Testemunhou a Aboliccedilatildeo da
Escravatura e as mudanccedilas poliacuteticas no Brasil quando o Impeacuterio foi entatildeo substituiacutedo pela
Repuacuteblica comentando e relatando os respectivos eventos poliacutetico-sociais Em 1897 funda a
ABL (Academia Brasileira de Letras) da qual permaneceu presidente ateacute sua morte em 1908
com 69 anos
Ao discorrer sobre a consolidaccedilatildeo do nosso sistema literaacuterio o professor Antonio
Candido opina sobre Machado afirmando que ele ldquoera dotado de raro discernimento literaacuterio e
adquiriu por esforccedilo proacuteprio uma forte cultura intelectual baseada nos claacutessicos mas aberta aos
filoacutesofos e escritores contemporacircneosrdquo (CANDIDO 2010 p 65) E ainda acrescenta
Sua obra eacute variada e tem caracteriacutestica das produccedilotildees eminentes satisfaz tanto aos
requintados quanto aos simples Ela tem sobretudo a possibilidade de ser
reinterpretada agrave medida que o tempo passa porque tendo uma dimensatildeo profunda de
universalidade funciona como se se dirigisse a cada eacutepoca que surge (CANDIDO
2010 p 65)
Eacute esse diaacutelogo entre o claacutessico e o contemporacircneo com pitada filosoacutefica que daacute
singularidade agrave sua obra fazendo com que suas produccedilotildees sejam sempre atemporais Satildeo esses
traccedilos que se mostram mais produtivos para o nosso estudo no qual pretendemos analisar e
interpretar como os imperadores romanos descritos pelo bioacutegrafo Suetocircnio em sua obra satildeo
utilizados por Machado em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas1 Para tal julgamos necessaacuterio
primeiramente contextualizar brevemente os autores em apreccedilo bem como suas obras
(Memoacuterias Poacutestumas e Vida dos Ceacutesares2) os gecircneros praticados (Romance e Biografia
Antiga) e os tipos de criacutetica social dos dois autores Depois disso analisaremos os excertos do
romance machadiano em questatildeo no qual as presenccedilas dos principes (no singular princeps
termo latino usado na Roma Antiga para se referir ao que entendemos hoje por imperador) se
mostrem mais evidentes para entatildeo coligirmos com trechos da obra suetoniana Para o trabalho
com esta obra utilizaremos a ediccedilatildeo da Loeb Classical Library (1914) mas com traduccedilotildees de
nossa proacutepria autoria para o trabalho com aquela utilizaremos a ediccedilatildeo criacutetica estabelecida
pela Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira (1975)
Como jaacute afirmado Machado praticou os mais diversos gecircneros literaacuterios E jaacute demos os
merecidos creacuteditos pelo conjunto da obra Mas devemos frisar que eacute na praacutetica sobre o gecircnero
romance que os creacuteditos se mostram mais merecidos pois eacute nele que o autor apresenta natildeo soacute
todo o seu ingenium (talento natural) mas tambeacutem toda a sua ars (habilidade teacutecnica) para
usarmos termos proacuteprios da literatura latina
Foi esse talento somado a seu espiacuterito galhofeiro que proporcionou a criaccedilatildeo de um
narrador mais que incomum em Memoacuterias Poacutestumas Sobre esse narrador Francisco Silveira
discorre que ldquoele vinha pelo menos agrave primeira vista infringir dois postulados realistas a
impessoalidade e o verismordquo (SILVEIRA 2001 p 97) Convergirmos com tal visatildeo posto que
eacute com a referida obra e seu respectivo narrador defunto-autor que o Realismo enquanto esteacutetica
literaacuteria vai ser ldquoinauguradordquo no Brasil em 1881 Natildeo menos importante eacute a visatildeo de Alfredo
Bosi
1 Nas proacuteximas remissotildees a essa obra usaremos apenas Memoacuterias Poacutestumas 2 Em liacutengua latina De uita caesarum
Bruno Torres dos Santos
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Quando o romancista assumiu naquele livro capital o foco narrativo na verdade
passou ao defunto-autor Machado-Braacutes Cubas delegaccedilatildeo para exibir com o despejo
dos que nada mais temem as peccedilas de cinismo e indiferenccedila com que via montada a
histoacuteria dos homens A revoluccedilatildeo dessa obra que parece cavar um fosso entre dois
mundos foi uma revoluccedilatildeo ideoloacutegica e formal aprofundando o desprezo agraves
idealizaccedilotildees romacircnticas e ferindo ao cerne o mito do narrador onisciente que tudo vecirc
e tudo julga deixou emergir a consciecircncia nua do indiviacuteduo fraco e incoerente O que
restou foram as memoacuterias de um homem igual a tantos outros o cauto e desfrutador
Braacutes Cubas (BOSI 2006 p 177)
Entendemos assim que o ser humano seraacute analisado sob seu cinismo e sob a
indiferenccedila por um narrador tambeacutem fraco e cheio de incoerecircncias rompendo nesse aspecto
com a esteacutetica Romacircntica Bosi ainda acrescenta
o ponto de vista um velho tema como o triacircngulo amoroso jaacute natildeo se carregaraacute do
pathos romacircntico que envolvia heroacutei-heroiacutena-o outro mas deixaraacute vir agrave tona os mil e
um interesses de posiccedilatildeo prestiacutegio e dinheiro dando a batuta agrave libido e agrave vontade de
poder que mais regem os passos do homem em sociedade Da histoacuteria vulgar do
adulteacuterio de Braacutes Cubas-Virgiacutenia-Lobo Neves agrave triste comeacutedia de equiacutevocos de
Rubiatildeo-Sofia-Palha (Quincas Borba) e desta agrave trageacutedia perfeita de Bentinho-Capitu-
Escobar (D Casmurro) soacute aparecem variantes de uma soacute e mesma lei natildeo haacute mais
heroacuteis a cumprir missotildees ou a afirmar a proacutepria vontade haacute apenas destinos destinos
sem grandeza (BOSI 2006 p 180)
Observamos o olhar aparentemente ldquodespretensiosordquo de Machado de Assis sem a
intenccedilatildeo de criar e de se defrontar com personagens heroicos mas ao lidar com homens-
personagens comuns lidaraacute tambeacutem com problemas comuns Ele analisa a psicologia do
ldquohomemrdquo com todas as suas peculiaridades inveja ganacircncia ambiccedilatildeo E eacute a atmosfera
burguesa que potencializa esses sentimentos De todo modo faz uma ldquocriacutetica socialrdquo sem querer
fazecirc-la Eacute isso que o aproxima e o distancia de Suetocircnio que analisa os retratos morais dos
imperadores romanos com todos os viacutecios e virtudes mas faz ldquocriacutetica socialrdquo e ateacute propaganda
poliacutetica de modo velado
Diferente do esforccedilo na anaacutelise da vida e obra de Machado quem se propotildee a estudar o
bioacutegrafo Caio Suetocircnio Tranquilo inicialmente se depara com algumas imprecisotildees acerca de
sua vida No tocante ao seu local de nascimento Anderson Esteves em seu artigo busca
encontrar vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas proacuteprias obras nos apontando como mais
plausiacutevel a ideia segundo a qual este teria nascido em Roma ou pelo menos se estabelecido
nessa cidade desde a infacircncia Ele nos informa sobre a origem e a condiccedilatildeo familiar de Suetocircnio
o avocirc era de uma condiccedilatildeo menos abastada visto que teria sido um liberto do imperador
Claacuteudio jaacute seu pai de uma condiccedilatildeo social mais elevada pois pertencia a ordem dos equestres
(ESTEVES 2015 p 1-7)
Eacute dado como certo que Suetocircnio teria nascido em 70 EC um ano apoacutes o conhecido ldquoAno
dos quatro imperadoresrdquo sobre o qual ainda falaremos Maacuterio Citroni esclarece-nos que em 69
EC o pai do bioacutegrafo foi combatente ao lado de Oto com o grau de tribunus militum (tribuno
militar) (CITRONI 2006 p 971) Natildeo menos importante eacute o que esclarece Ronald Mellor
segundo ele o cognomen ldquoTranquilordquo atribuiacutedo a Suetocircnio eacute decorrente do esforccedilo do seu pai
na busca pela estabilizaccedilatildeo da paz apoacutes esta terriacutevel guerra civil (MELLOR 1999 p 147)
Conforme observamos de alguma forma sua famiacutelia estava envolvida com as casas
imperiais e dada a condiccedilatildeo do seu pai Suetocircnio teve a possibilidade de ter uma boa educaccedilatildeo
na urbs dedicando-se aos estudos de gramaacutetica e de retoacuterica Nessa trajetoacuteria instrutiva o
bioacutegrafo torna-se amigo iacutentimo do renomado senador Pliacutenio o Jovem Por influecircncia dessa
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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amizade Suetocircnio consegue alguns cargos de prestiacutegio dentro das cortes imperiais Durante o
principado de Trajano ele ocupou os postos de a studiis (com a funccedilatildeo de cuidar dos interesses
e das obrigaccedilotildees culturais do imperador) e o de a bibliothecis (com a funccedilatildeo de cuidar das
bibliotecas puacuteblicas) Sob o principado de Adriano ocupou o posto de ab epistulis (com a
funccedilatildeo de redigir a correspondecircncia oficial) (MORENO 1997 p 645 CITRONI 2006 p
971)
A rede de contato iniciada por seu amigo Pliacutenio permitiu que Suetocircnio alcanccedilasse as
referidas ocupaccedilotildees e por consequecircncia o acesso direto aos arquivos imperiais muitas vezes
fundamentais para a feitura da sua obra De uita caesarum na qual discorre sobre os doze
primeiros ceacutesares de Roma desde o general Juacutelio Ceacutesar ateacute o polecircmico imperador Domiciano
Cabe considerar que ele iniciou a composiccedilatildeo desse seu opus magnum por volta dos primeiros
anos do principado de Adriano o qual se estendeu entre os anos de 117 e 138 EC
Acerca do gecircnero praticado por Suetocircnio devemos considerar que ateacute aqui muito foi
usada a terminologia moderna ldquobiografiardquo poreacutem conveacutem lembrarmos que esse gecircnero relativo
agrave escrita de uma vida na Antiguidade eacute referido por bios pelos gregos e uita pelos romanos
O termo ldquobiografiardquo como salienta Sabina Loriga soacute aparece ao longo do seacuteculo XVII
designando uma obra veriacutedica fundada numa descriccedilatildeo realista que se opotildee a outras formas
antigas de escritura idealizadoras do personagem e das circunstacircncias de sua vida tal qual o
panegiacuterico o elogio a oraccedilatildeo fuacutenebre e a hagiografia (LORIGA 2011 p 17)
A pesquisadora argumenta ainda que desde sua origem na Antiguidade a biografia eacute um
gecircnero hiacutebrido e composto que equilibrando-se entre a verdade histoacuterica e a verdade literaacuteria
sofreu ao longo do tempo profundas transformaccedilotildees sobretudo no que diz respeito agrave escolha e
agrave elaboraccedilatildeo dos fatos e do estilo de narraccedilatildeo (LORIGA 2011 p 18)
Frente a esses esclarecimentos avancemos aos excertos de Memoacuterias Poacutestumas em cujo
iniacutecio o narrador e protagonista Braacutes Cubas relata suas lembranccedilas apoacutes ter sido vitimado por
uma pneumonia Ele que pertencia a uma famiacutelia abastada do seacuteculo XIX narra sua morte e
seu enterro em que apareceram apenas onze amigos Relata diversos periacuteodos da vida infacircncia
adolescecircncia e fase adulta Ainda apresenta suas expectativas com o ldquoEmplastordquo um
medicamento por ele inventado com grande potencial de cura O narrador reconhece que esse
projeto se tornou uma ldquoideia fixardquo que entendemos como uma ideia difiacutecil de se retirar da
cabeccedila E eacute justamente no IV capiacutetulo intitulado A ideacutea fixa que o narrador machadiano faz a
primeira referecircncia a imperadores romanos e ao proacuteprio bioacutegrafo Suetocircnio
A minha ideacutea depois de tantas cabriolas constituiacutera-se ideacutea fixa Deus te livre leitor
de uma ideacutea fixa antes um argueiro antes uma trave no olho Vecirc o Cavour foi a ideacutea
fixa da unidade italiana que o matou Verdade eacute que Bismarck natildeo morreu mas
cumpre advertir que a natureza eacute uma grande caprichosa e a histoacuteria uma eterna
loureira Por exemplo Suetocircnio deu-nos um Claacuteudio que era um simploacuterio mdash ou
ldquouma aboacuteborardquo como lhe chamou Secircneca e um Tito que mereceu ser as deliacutecias de
Roma Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dous
ceacutesares o delicioso o verdadeiro delicioso foi o ldquoaboacuteborardquo de Secircneca E tu madama
Lucreacutecia flor dos Boacutergias se um poeta te pintou como a Messalina catoacutelica apareceu
um Gregorovius increacutedulo que te apagou muito essa qualidade e se natildeo vieste a liacuterio
tambeacutem natildeo ficaste pacircntano Eu deixo-me estar entre o poeta e o saacutebio (Machado de
Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap IV p 103)3
3 Para facilitar a leitura usaremos tal forma nas referecircncias a esta obra que compotildee nossa documentaccedilatildeo textual
Para as referecircncias agraves biografias de Vida dos Ceacutesares adotamos as abreviaccedilotildees do renomado The Oxford Latin
Dictionary (httpswwwoxfordscholarlyeditionscompageabbreviations acessado em 25102019)
Bruno Torres dos Santos
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Nesse discurso metalinguiacutestico dirigido diretamente ao leitor a fim de exemplificar a
proacutepria noccedilatildeo de ldquoideia fixardquo Braacutes Cubas evidencia que Suetocircnio o qual ressignificou a ldquoideiardquo
do filoacutesofo estoico Secircneca teve a sua ldquoideiardquo ressignificada por um professor moderno
Diferentemente do bioacutegrafo Suetocircnio bem como os imperadores que ele ldquonos deurdquo que foram
personagens histoacutericas o referido professor natildeo o foi
Entatildeo passemos a essas referecircncias o primeiro imperador citado eacute Tibeacuterio Claacuteudio Druso
Braacutes Cubas adjetiva o Claacuteudio de Suetocircnio como um ldquosimploacuteriordquo que eacute assim descrito na
biografia suetoniana
Infans autem relictus a patre ac per omne fere pueritiae atque adulescentiae tempus
variis et tenacibus morbis conflictatus est adeo ut animo simul et corpore hebetato ne
progressa quidem aetate ulli publico privatoque muneri habilis existimaretur (Suet
Cl 21)
No entanto era crianccedila quando foi abandonado pelo pai e por quase todo o tempo da
primeira infacircncia e adolescecircncia foi acometido por vaacuterias doenccedilas persistentes de tal
modo que estivesse ao mesmo tempo com o espiacuterito e com o corpo debilitado foi
certamente por conta de sua idade avanccedilada estimado como natildeo apto para cargo no
acircmbito puacuteblico e no acircmbito privado
Posteriormente Suetocircnio faz o seguinte relato sobre a inesperada subida ao trono apoacutes o
assassinato do sobrinho Caliacutegula
Per haec ac talia maxima aetatis parte transacta quinquagesimo anno imperium cepit
quantumvis mirabili casu Exclusus inter ceteros ab insidiatoribus Gai cum quasi
secretum eo desiderante turbam submoverent in diaetam cui nomen est Hermaeum
recesserat neque multo post rumore caedis exterritus prorepsit ad solarium proximum
interque praetenta foribus vela se abdidit Latentem discurrens forte gregarius miles
animadversis pedibus studio sciscitandi quisnam esset adgnovit extractumque et prae
metu ad genua sibi accidentem imperatorem salutavit (Suet Cl10 1-2)
Por estas e outras coisas semelhantes tendo passado muito do tempo assumiu o
impeacuterio soacute com cinquenta anos atraveacutes de um caso extremamente interessante
Excluiacutedo entre os outros pelos assassinos de Caio Caliacutegula quando sob o pretexto
de expulsarem a multidatildeo e desejando ele um lugar isolado retirou-se para um
pavilhatildeo ao qual chamam de ldquoHermeacuteurdquo E natildeo muito depois aterrorizado com a
notiacutecia da morte avanccedilou se arrastando para uma galeria solar proacutexima e se escondeu
entre as cortinas postas diante das portas Tendo os peacutes sido observados um soldado
raso correndo de uma parte a outra com uma forte curiosidade procurou saber quem
estaria escondido e reconheceu quem por ele foi retirado do esconderijo Diante do
medo Claacuteudio se prostrou aos seus peacutes o soldado o saudou como imperador
Notamos que um eventual olhar do narrador machadiano sobre a dinastia julio-claudiana
sempre lembrada no pensamento ocidental pelos excelentes generais como Juacutelio Ceacutesar e
Augusto e pelos polecircmicos Tibeacuterio Caliacutegula e Nero pode justificar a anaacutelise de Claacuteudio como
um personagem simploacuterio Isso se daacute mesmo este tendo conquistado diversas regiotildees e tido boa
aceitaccedilatildeo pelo povo romano pois como percebemos nos excertos de sua biografia Suetocircnio
fez ressoar sua fraqueza de espiacuterito inaptidatildeo para o governo e a covardia Cabe lembrar ainda
que numa leitura completa da biografia do imperador ele aparece como um joguete nas matildeos
das proacuteprias esposas Primeiramente Valeacuteria Messalina (a mesma referida no capiacutetulo em
questatildeo das Memoacuterias Poacutestumas) tentou entregar o Impeacuterio nas matildeos de um de seus amantes
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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C Siacutelio mas sem sucesso foi por Claacuteudio condenada e executada Jaacute viuacutevo ele se casa com
Agripina que trama pela sua morte para legar o trono a seu filho Nero
Justifica-se assim tambeacutem o seu retrato como uma ldquoaboacuteborardquo na obra Apocoloquintose
na qual o filoacutesofo e tragedioacutegrafo Secircneca que foi banido de Roma por Claacuteudio em 41 em
razatildeo de intrigas palacianas critica ironicamente o receacutem-assassinado imperador Horaacutecio
Rolim de Freitas explica que
O tiacutetulo inicial seria Ludus de morte Claudii O historiador Dion Caacutessio sugeriu que
o tiacutetulo tenha sido Apocolocyntosis (transformaccedilatildeo em aboacutebora) do grego
Ἀποκολοκύνθοσις Tiacutetulo curioso mas era entendido pelos leitores da eacutepoca pois
aboacutebora (ποκολοκύντἡς) era siacutembolo da estupidez (FREITAS 2010 p 13)
Para compreendermos isso devemo-nos lembrar de um aspecto cultural importante na
Roma Antiga ndash a Apoteose A cerimocircnia de deificaccedilatildeo que ocorria durante os funerais dos
iminentes ceacutesares iniciada por Otaacutevio a partir da morte de seu tio Juacutelio Ceacutesar Ou seja o
argumento da obra senequiana eacute parodiar a narraccedilatildeo agraves avessas da apoteose de Claacuteudio
relatando como o morto foi recebido nos infernos pelos deuses transformando-se no alegoacuterico
legume
O segundo imperador citado nesse IV capiacutetulo de Memoacuterias Poacutestumas foi Tito
Vespasiano Augusto Tito foi o segundo princeps da dinastia flaviana Era o filho mais velho
de Vespasiano e irmatildeo de Domiciano os quais tambeacutem seratildeo citados por Braacutes Cubas ao longo
do romance Depois da morte de seu pai Tito assume as reacutedeas do Impeacuterio atuando de modo
similar a ele com excelecircncia no campo militar e com moderaccedilatildeo no campo poliacutetico foi visto
como um bom imperador por Roma Por essa razatildeo eacute descrito por Suetocircnio logo no primeiro
capiacutetulo de sua biografia como ldquoTito tendo o cognome do pai foi o amor e as deliacutecias do
gecircnero humano Tanto de inteligecircncia de habilidade e de fortuna abundava nele que ganhava a
simpatia de todos o que eacute muito difiacutecil durante um governordquo (Titus cognomine paterno amor
ac deliciae generis humani ndash tantum illi ad promerendam omnium voluntatem vel ingenii vel
artis vel fortunae superfuit et quod difficillimum est in impeacuterio () (Suet Tit 11) Com essa
seleccedilatildeo vocabular Suetocircnio ldquonos daacuterdquo o retrato de um imperador diferente de Claacuteudio Eacute esse
retrato com vastos predicados perante a humanidade que serviu de fonte para Machado de
Assis fazer o jogo de palavras com o termo ldquodeliacuteciardquo na ldquoideia fixardquo de um professor
Para encerrar a anaacutelise do capiacutetulo conveacutem observar a segunda referecircncia a tais principes
em ldquoViva pois a histoacuteria a voluacutevel histoacuteria que daacute para tudo e tornando agrave ideacutea fixa direi que
eacute ela a que faz os varotildees fortes e os doudos a ideacutea moacutebil vaga ou furta-cor eacute a que faz os
Claacuteudios mdash formula Suetocircniordquo (Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap
IV p 103) O Bruxo do Cosme Velho brinca com o gecircnero historiograacutefico ao qual o gecircnero
biograacutefico estaacute aparentado Chamando a histoacuteria de voluacutevel ele usa novamente o verbo ldquodarrdquo
Em nossa interpretaccedilatildeo o narrador quer reforccedilar que a histoacuteria ldquodaacuterdquo na acepccedilatildeo de ldquopromoverrdquo
diversos retratos sejam eles positivos ou negativos a depender da ldquoideiardquo que cada personagem
possui Esse modus operandi da formulaccedilatildeo de Suetocircnio muito se relaciona com o de Machado
Avancemos agora ao capiacutetulo XXIII de Memoacuterias Poacutestumas intitulado Triste mas curto
Em tal capiacutetulo Cubas narra sua chegada ao Rio de Janeiro e a sensaccedilatildeo de rever os locais de
sua infacircncia a tristeza de sua famiacutelia e o sofrimento de sua progenitora Quando vecirc sua matildee
com quem natildeo tinha contato haacute nove anos acha-a paacutelida e sem soltar uma palavra sequer pega
em suas matildeos No dia seguinte ela vem a falecer sendo a primeira vez que ele teria tido contato
com a morte de perto de uma pessoa amada Neste iacutenterim ele faz referecircncia a mais um ceacutesar
descrito por Suetocircnio o proacuteprio Juacutelio Ceacutesar que embora natildeo tenha chegado a ser um
ldquoimperadorrdquo enquanto chefe de estado eacute ele quem ldquodesenhardquo o que viria a ser o Impeacuterio
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romano iniciado por seu sobrinho-neto Otaviano Por essa razatildeo tambeacutem incluiacutemos tal general
em nossas anaacutelises e eacute assim referenciado no romance
Longa foi a agonia longa e cruel de uma crueldade minuciosa fria repisada que me
encheu de dor e estupefacccedilatildeo Era a primeira vez que eu via morrer algueacutem Conhecia
a morte de outiva quando muito tinha-a visto jaacute petrificada no rosto de algum
cadaacutever que acompanhei ao cemiteacuterio ou trazia-lhe a ideacutea embrulhada nas
amplificaccedilotildees de retoacuterica dos professores de coisas antigas mdash a morte aleivosa de
Ceacutesar a austera de Soacutecrates a orgulhosa de Catatildeo (Machado de Assis Memoacuterias
Poacutestumas de Braacutes Cubas cap XXIII p 145)
Nas referidas amplificaccedilotildees retoacutericas ressoa a morte do filoacutesofo Soacutecrates a qual de fato
ficou no imaginaacuterio ocidental como uma morte ldquoausterardquo dado o fato de ele ter se mantido
firme em suas ideias ldquocorruptorasrdquo dos jovens atenienses ateacute a hora de seu oacutebito A morte de
Catatildeo o Jovem tambeacutem eacute adjetivada por Braacutes Cubas poreacutem como ldquoorgulhosardquo A respectiva
adjetivaccedilatildeo se apresenta com ecircxito dado o fato de Catatildeo ter sido um poliacutetico romano notaacutevel
por sua integridade moral Sendo ele ainda partidaacuterio da filosofia estoica descrito pelo
historiador Saluacutestio como a antiacutetese direta de Juacutelio Ceacutesar suicidou-se apoacutes a vitoacuteria deste seu
opositor na Batalha de Tapso
Concentremo-nos poreacutem na morte de Ceacutesar mesmo que natildeo haja nenhuma associaccedilatildeo
direta dele com o bioacutegrafo diferentemente dos excertos com os imperadores anteriores isso
natildeo nos impede de relacionaacute-los O narrador machadiano adjetiva tal morte como ldquoaleivosardquo
denotando a atmosfera da traiccedilatildeo pela qual Ceacutesar passou no Senado romano relatada em sua
biografia deste modo
Assidentem conspirati specie officii circumsteterunt ilicoque Cimber Tillius qui
primas partes susceperat quasi aliquid rogaturus propius accessit renuentique et gestu
in aliud tempus differenti ab utroque umero togam adprehendit deinde clamantem
ldquoIsta quidem vis estrdquo alter e Cascis aversum vulnerat paulum infra iugulum Caesar
Cascae brachium arreptum graphio traiecit conatusque prosilire alio vulnere tardatus
est utque animadvertit undique se strictis pugionibus peti toga caput obvoluit simul
sinistra manu sinum ad ima crura deduxit quo honestius caderet etiam inferiore
corporis parte velata Atque ita tribus et viginti plagis confossus est uno modo ad
primum ictum gemitu sine voce edito etsi tradiderunt quidam Marco Bruto irruenti
dixisse καὶ σὺ τέκνον (Suet Jul 82 1-2)
Os que haviam concordado com a natureza do trabalho rodeavam aquele que estava
sentado Sem demorar Ciacutember Tiacutelio que se encarregava dos primeiros papeacuteis como
se houvesse de falar algo caminhou para mais perto Ceacutesar negando atraveacutes de um
gesto contraacuterio passou-o para outro momento Por ambos os lados aquele apertou sua
toga Entatildeo Ceacutesar clamou ldquoIsso eacute verdadeiramente uma violecircnciardquo Um dos Cascas
jaacute lhe tinha ferido por traacutes um pouco abaixo da garganta Com um ponteiro furou com
um ponteiro o braccedilo arrebatado de Casca e o impulso de arremeter foi detido por uma
outra ferida Mas quando observou que seria tomado por robustos punhais por todos
os lados cobriu a cabeccedila com a toga Ao mesmo tempo com a matildeo esquerda conduziu
a dobra da veste ateacute as extremidades das pernas de modo que jaacute estando com a parte
inferior do corpo coberta caiacutesse mais honrosamente Desta maneira foi dilacerado
por vinte e trecircs golpes Ateacute a primeira ferida teria produzido apenas um gemido sem
uma palavra sequer embora alguns afirmem que com o ataque de Marco Bruto teria
dito ldquoTambeacutem tu meu filhordquo
Como reconhecemos esses escritos de Suetocircnio com grande carga dramaacutetica foram
grandes responsaacuteveis por propagar no imaginaacuterio do mundo ocidental este evento que mudou
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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os rumos da Roma Antiga Machado de Assis foi ciruacutergico ao usar a palavra aleivosa para
qualificar a morte de Ceacutesar a qual condensa toda a ideia da conjuraccedilatildeo Muito provavelmente
teve acesso a isso atraveacutes da referida biografia
Podemos avanccedilar ao capiacutetulo LXXII do romance cujo tiacutetulo eacute O bibliocircmano no qual o
defunto-autor confessa que deveria suprimir o capiacutetulo antecedente alegando haver nele um
despropoacutesito acerca do qual natildeo gostaria de receber criacuteticas Afirma que setenta anos agrave frente
este leitor que eacute por ele caracterizado e denominado ldquobibliocircmanordquo procuraria minuciosamente
o tal ldquodespropoacutesitordquo poreacutem sem ecircxito natildeo encontraria Em seguida explica que ele natildeo o
encontraria pelo simples fato de ele natildeo existir jaacute que foi suprimido Discorre ainda que isso
natildeo causaria o desinteresse do leitor sobre o livro e que pelo contraacuterio ele o adoraria por ser
um exemplar uacutenico O bibliocircmano continua sua procura mas mesmo sem sucesso se contenta
com o fato de dispor do uacutenico tomo
Jaacute prometeu a si mesmo escrever uma breve memoacuteria na qual relate o achado do livro
e a descoberta da sublimidade se a houver por baixo daquela frase obscura Ao cabo
natildeo descobre nada e contenta-se com a posse Fecha o livro mira-o remira-o chega-
se agrave janela e mostra-o ao sol
Um exemplar uacutenico Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um Ceacutesar ou um
Cromwell a caminho do poder Ele daacute de ombros fecha a janela estira-se na rede e
folheia o livro de vagar com amor aos goles Um exemplar uacutenico (Machado de
Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap LXXII p 209-210)
Neste excerto em que Braacutes Cubas manteacutem sua divagaccedilatildeo sobre o despropoacutesito da mesma
forma que fez com a noccedilatildeo de ideia fixa notamos a segunda referecircncia ao general Juacutelio Ceacutesar
A menccedilatildeo a Ceacutesar e a Cromwell visa ilustrar o modo como uma pessoa estaria transitando pela
rua ldquoa caminho do poderrdquo Oliver Cromwell foi um comandante militar e poliacutetico nascido na
nobreza rural inglesa em 1599 Em 1630 passa por uma conversatildeo religiosa e reconhecendo-
se como um Puritano acreditava que Deus era quem o guiava em suas vitoacuterias sendo muito
ativo durante a Guerra Civil Inglesa Mas quem mais nos interessa eacute o outro poliacutetico e militar ndash
Juacutelio Ceacutesar ndash e este nome associado agrave expressatildeo ldquocaminho do poderrdquo leva-nos a lembrar de
outro aspecto cultural da Roma Antiga ndash a travessia ao Rio Rubicatildeo Jaacute durante a Repuacuteblica
esse rio que dividia a proviacutencia da Gaacutelia Cisalpina (ao norte) do resto da Itaacutelia (ao sul) era de
suma importacircncia visto que a lei romana proibia que fosse transpassado por quaisquer legiotildees
do exeacutercito romano caso isso fosse feito denotaria uma ameaccedila militar interna
Resumidamente os sucessos de Ceacutesar na Gaacutelia acarretaram o aumento de seu poder de
sua popularidade e da ira de seus inimigos Estes influenciados por Catatildeo o Jovem (tambeacutem
jaacute referido no romance de Machado) tentaram promover sua ruiacutena poliacutetica Em 50 AEC o
Senado aprovou uma moccedilatildeo para que Ceacutesar fosse retirado do cargo de governador na Gaacutelia
Marco Antocircnio embasado pelo poder de tribuno do povo vetou a proposta Apoacutes isso houve
uma intensa perseguiccedilatildeo aos partidaacuterios de Juacutelio Ceacutesar Antocircnio precisou deixar Roma por
conta da alta probabilidade de ser assassinado e sem oposiccedilatildeo do Senado declarou estado de
emergecircncia delegando poderes excepcionais a Pompeu Magno Ceacutesar retrucou isso com a
famosa cruzada assim relatada por Suetocircnio
Dein post solis occasum mulis e proximo pistrino ad vehiculum iunctis occultissimum
iter modico comitatu ingressus est et cum luminibus extinctis decessisset via diu
errabundus tandem ad lucem duce reperto per angustissimos tramites pedibus evasit
Consecutusque cohortis ad Rubiconem flumen qui provinciae eius finis erat paulum
constitit ac reputans quantum moliretur conversus ad proximos ldquoEtiam nuncrdquo
inquit ldquoregredi possumus quod si ponticulum transierimus omnia armis agenda
eruntrdquo (Suet Jul 31 2)
Bruno Torres dos Santos
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Em seguida apoacutes o pocircr do Sol atadas as mulas desde o moinho mais proacuteximo ateacute o
veiacuteculo mais escondido comeccedilou o caminho com uma modesta caravana Com as
luzes acabando ia-se embora pelo caminho Entatildeo durante o dia tendo aparecido um
guia com peacutes errantes evadiu pelas mais estreitas veredas E acompanhado pelas
coortes ateacute o rio Rubicatildeo que traccedila o limite de sua proviacutencia parou um pouco e
calculou o quanto se moveu virou-se aos mais proacuteximos e disso ldquoAteacute agora podemos
recuar porque se atravessarmos a pequena ponte todas as coisas deveratildeo ser feitas
atraveacutes das armasrdquo
Cunctanti ostentum tale factum est Quidam eximia magnitudine et forma in proximo
sedens repente apparuit harundine canens ad quem audiendum cum praeter pastores
plurimi etiam ex stationibus milites concurrissent interque eos et aeneatores rapta ab
uno tuba prosilivit ad flumen et ingenti spiritu classicum exorsus pertendit ad alteram
ripam Tunc Caesar ldquoEaturrdquo inquit ldquoquo deorum ostenta et inimicorum iniquitas
vocat Iacta alea estrdquo inquit (Suet Jul 32)
Com ele ainda de tal modo titubeando foi eficaz um prodiacutegio Apareceu de repente
ali proacuteximo uma certa pessoa que estava sentada tocando com uma flauta exiacutemia em
grandeza e forma Para o ouvirem correram muitos pastores tambeacutem muitos soldados
das guarniccedilotildees entre eles alguns tocadores de trombeta Com a trombeta tomada de
um deles o muacutesico lanccedilou-se ao rio E com um imenso vigor realizou um toque
introdutoacuterio ateacute a outra margem do rio Entatildeo disse Ceacutesar ldquoVamos para onde o sinal
dos deuses e a hostilidade dos inimigos nos chamam A sorte estaacute lanccediladardquo
Como jaacute frisamos por parte do narrador de Machado natildeo haacute nenhuma referecircncia direta
desse Ceacutesar ao bioacutegrafo Suetocircnio mas vemos relaccedilotildees diretas entre o ato da desconhecida
pessoa ldquoa caminho do poderrdquo e os atos do general romano Mais uma vez o autor foi ciruacutergico
no uso da expressatildeo destacada para a qual muito provavelmente teve acesso ao excerto de
Suetocircnio cujo conteuacutedo tambeacutem faz parte do imaginaacuterio ocidental ndash a travessia ao rio Rubicatildeo
antecedida da frase ldquoA sorte estaacute lanccediladardquo Cabe lembrar que Machado jaacute usara a expressatildeo no
capiacutetulo XIII de seu romance Helena publicado em 1876 quando o personagem Estaacutecio na
tentativa de esquecer o amor pela protagonista Helena decide pedir Eugecircnia em casamento
Naquela mesma noite ouviu Eugecircnia a esperada palavra A alegria que se lhe
derramou nos olhos foi imensa e caracteriacutestica Um pouco mais de recato natildeo era
descabido em tal ocasiatildeo Natildeo houve nenhum o primeiro ato da mulher foi uma
meninice Eugecircnia ignorava tudo ateacute a dissimulaccedilatildeo do sexo Concedendo a matildeo a
Estaacutecio natildeo era uma castelatilde que entregava o precircmio mas um cavaleiro que o recebia
com alvoroccedilo e submissatildeo
Transposto o Rubicon natildeo havia mais que caminhar direito agrave cidade eterna do
matrimocircnio Estaacutecio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr Camargo pedindo-lhe
a matildeo de Eugecircnia carta seca e digna como as circunstacircncias a pediam (Machado de
Assis Helena cap XIII p 133)
Terminadas as referecircncias ao instaurador da dinastia juacutelio-claudiana faccedilamos um salto
ao capiacutetulo CXVI intitulado Filosofia das folhas velhas no qual Braacutes Cubas alega ter ficado
tatildeo triste com o capiacutetulo anterior a este4 pelo fato de sua amante Virgiacutelia ter embarcado para a
Europa No capiacutetulo CXVI vemos referecircncia a outro imperador associado ao escrito
suetoniano nesse caso trata-se do jaacute referido Domiciano
Apoacutes um governo moderado de dez anos o do seu pai Vespasiano seguido por outro
governo tambeacutem moderado de apenas dois anos o do seu irmatildeo Tito de modo contraacuterio
4 O capiacutetulo CXV intitulado O almoccedilo
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Domiciano assume com bastante autoritarismo Durante seus quinze anos de governo o uacuteltimo
imperador flaviano cometeu assassinatos de diversos cidadatildeos importantes incluindo
senadores Essas razotildees acarretaram numa conjuraccedilatildeo para a sua morte E diferente do seu pai
e irmatildeo que foram divinizados apoacutes a morte Domiciano ldquorecebeurdquo do Senado um decreto para
a sua damnatio memoriae essa danaccedilatildeo da memoacuteria significava as retiradas de suas imagens
em bustos inscriccedilotildees etc
Esclarecidos esses pontos sobre o imperador Domiciano voltemos a Braacutes Cubas O
narrador inicia o referido capiacutetulo em questatildeo refletindo pela metalinguagem ldquoFiquei tatildeo triste
com o fim do uacuteltimo capiacutetulo que estava capaz de natildeo escrever este descansar um pouco purgar
o espiacuterito da melancolia que o empacha e continuar depois Mas natildeo natildeo quero perder tempordquo
(Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258) e continua a
reflexatildeo
A partida de Virgiacutelia deu-me uma amostra da viuvez Nos primeiros dias meti-me em
casa a fisgar moscas como Domiciano se natildeo mente o Suetocircnio mas a fisgaacute-las de
um modo particular com os olhos Fisgava-as uma a uma no fundo de uma sala
grande estirado na rede com um livro aberto entre as matildeos (Machado de Assis
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258)
O narrador-personagem machadiano Braacutes Cubas discorre sobre seu desgosto pela vida
e sobre a monotonia agrave qual estava submetido apoacutes a partida da mulher ldquoextraconjugalmenterdquo
amada Virgiacutelia Notamos que para ilustrar de modo exagerado o desacircnimo por parte de Braacutes
Cubas sendo esse abatimento comparado a uma viuvez Machado de Assis apresenta seu
defunto-autor de um modo tatildeo ocioso que fisgava as moscas apenas com os olhos Ou seja ele
eacute apresentado mais ociosamente que o imperador Domiciano que espetava moscas A fim de
captarmos essa menccedilatildeo valemo-nos do capiacutetulo 3 da biografia de Domiciano
Inter initia principatus cotidie secretum sibi horarum sumere solebat nec quicquam
amplius quam muscas captare ac stilo praeacuto configere ut cuidam interroganti
essetne quis intus cum Caesare non absurde responsum sit a Vibio Crispo ne muscam
quidem (Suet Dom 3)
Durante os iniacutecios de seu principado solitaacuterio estava ele habituado diariamente pelas
horas a colher para si nada mais que moscas e prender com um estilete pontudo Para
uma certa interrogaccedilatildeo se acaso natildeo tinha ningueacutem dentro do local com Ceacutesar de
modo adequado teria sido respondido por Viacutebio Crispo que natildeo que nem mesmo
uma mosca
Notamos entatildeo que se por um lado atraveacutes da intertextualidade Machado se volta para
o Domiciano de Suetocircnio com o intuito de descortinar o estado de alma de Braacutes Cubas por
outro Suetocircnio apresenta essa anedota das moscas para condicionar seu leitor a um juiacutezo
negativo sobre o retrato moral de Domiciano que nada fazia em prol da burocracia puacuteblica no
iniacutecio de seu principado Essa anedota sobre Domiciano com Viacutebio Crispo enquanto locutor
jamais deixaria de ser apresentada por Suetocircnio haja vista que os atos burocraacuteticos bem como
as accedilotildees militares e diplomaacuteticas faziam parte das temaacuteticas de suas biografias Somos tentados
a crer que o fato de Suetocircnio ser oriundo da ordem dos equestres e mais tarde ter assumido
algumas funccedilotildees puacuteblicas durante o principado de Trajano e de Adriano tambeacutem teria
contribuiacutedo para sua atenccedilatildeo a esses tipos de chistes
Embora Suetocircnio natildeo seja visto como um historioacutegrafo mas sim como um erudito
bioacutegrafo e natildeo tenha pertencido agrave ordem senatorial sabemos que ele enveredou pela tradiccedilatildeo
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historiograacutefica senatorial isto eacute aquela que retratava moralmente bem os imperadores
favoraacuteveis ao Senado e moralmente mal os refrataacuterios a esse corpo Isso talvez tenha se dado
graccedilas ao seu contato com o influente senador Pliacutenio o Jovem e ao participar do seu ciacuterculo
de amizades tambeacutem teve contato com os historiadores Taacutecito e Faacutebio Ruacutestico Podemos
depreender que Domiciano natildeo deixou de apresentar motivos para ser exageradamente mal
retratado pela pena suetoniana e por isso a ressalva de Braacutes Cubas que diz ldquose natildeo mente o
Suetocircniordquo
Avancemos ao capiacutetulo CLII intitulado A moeda de Vespasiano no qual encontramos a
uacuteltima menccedilatildeo feita desde seu tiacutetulo a um imperador romano retratado por Suetocircnio Em tal
capiacutetulo na volta do enterro de Lobo Neves Braacutes Cubas refletia sobre o choro mais
precisamente sobre os soluccedilos sinceros da sua amante Virgiacutelia para o marido ao qual tinha
traiacutedo com igual sinceridade
Jaacute sabemos algumas informaccedilotildees acerca do ceacutesar em questatildeo todavia vale reforccedilar que
foi ele quem saiu vitorioso do conhecido historicamente Ano dos Quatro Imperadores em 69
Apoacutes o suiciacutedio ocorrido em 68 do uacuteltimo juacutelio-claudiano ndash o polecircmico Nero ndash que natildeo havia
deixado ningueacutem para linha sucessoacuteria os generais Galba Otatildeo Viteacutelio e Vespasiano atraveacutes
de sucessivos confrontos armados guerrearam entre si ansiando o trono deixado por Nero
Com a vitoacuteria de Vespasiano eacute instaurada a dinastia flaviana Entatildeo passemos ao curto capiacutetulo
das Memoacuterias Poacutestumas em completude
Tinham ido todos soacute o meu carro esperava pelo dono Accendi um charuto afastei-
me do cemiteacuterio Natildeo podia sacudir dos olhos a cerimocircnia do enterro nem dos ouvidos
os soluccedilos de Virgiacutelia Os soluccedilos principalmente tinham o som vago e misterioso
de um problema Virgiacutelia traiacutera o marido com sinceridade e agora chorava-o com
sinceridade Eis uma combinaccedilatildeo difiacutecil que natildeo pude fazer em todo o trajecto em
casa poreacutem apeando-me do carro suspeitei que a combinaccedilatildeo era possiacutevel e ateacute
faacutecil Meiga Natura A taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave
origem e tanto se colhe do mal como do bem A moral repreenderaacute porventura a
minha cuacutemplice eacute o que te natildeo importa implacaacutevel amiga uma vez que lhe recebeste
pontualmente as laacutegrimas Meiga trecircs vezes Meiga Natura (Machado de Assis
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CLII p 294)
Percebemos que na busca pela anaacutelise do estado de alma de sua amada Virgiacutelia o narrador
Braacutes Cubas reverbera que ldquoA taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave origem
e tanto se colhe do mal como do bemrdquo Mas de onde ele teria tirado essas relaccedilotildees semacircnticas
entre o imperador Vespasiano-moeda-taxa-cheiro Pois bem Mais uma vez quem nos traz a
resposta eacute Suetocircnio
Reprehendenti filio Tito quod etiam urinae vectigal commentus esset pecuniam ex
prima pensione admovit ad nares sciscitans num odore offenderetur et illo negante
ldquoAtquin inquit e lotio estrdquo (Suet Vesp 233)
Repreendeu seu filho Tito porque ele Vespasiano teria inventado um imposto sobre
a urina que por aquele foi advertido entatildeo aproximou o dinheiro do primeiro
pagamento desse tributo do nariz de Tito E perguntando-o se acaso natildeo se sentia
incomodado com odor e Tito negando Vespasiano respondeu No entanto eacute
proveniente da urinardquo
Na curiosa anedota Vespasiano criador de um imposto sobre a urina pois muitos
comerciantes as retiravam das latrinas puacuteblicas e as utilizavam para curtir os tecidos que
vendiam repreende o primogecircnito por ter discordado inicialmente da ideia Natildeo temos duacutevidas
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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de que Machado de Assis teve acesso a essa biografia para usar com propriedade em seu
romance nessa cena em que seu narrador busca explicaccedilotildees para fatos aparentemente
contraditoacuterios
Esse excurso pelas duas obras aparentemente distantes e des-relacionadas nos deu a liccedilatildeo
de que o narrataacuterio enquanto entidade leitora fictiacutecia compreende e decodifica os aspectos
concernentes agraves personalidades em apreccedilo os princepes no entanto para o leitor ideal isso se
mostra mais obscuro Machado de Assis aproveita os questionaacuteveis retratos dos ceacutesares de
Suetocircnio para enriquecer sua obra literaacuteria
Assim contribuindo mais para a compreensatildeo do romance machadiano pela anaacutelise da
traduccedilatildeo a qual nos permitiu o estudo sobre as referecircncias agrave histoacuteria agrave cultura e agrave literatura da
Roma Antiga cristalizados pelos Claacuteudio Tito Ceacutesar Domiciano e Vespasiano suetonianos
os esforccedilos empreendidos teratildeo alcanccedilado seu objetivo nessas ressignificaccedilotildees Se as
referecircncias e os eventos atrelados a esses ceacutesares que nos foram ldquodadosrdquo pelas biografias de
Suetocircnio tiverem sido descortinados dentro das Memoacuterias Poacutestumas de Machado de Assis
podemos ficar sem ldquoideias fixasrdquo de que criamos ldquodespropoacutesitosrdquo
IacuteNDICE DE ABREVIACcedilOtildeES
Suet Cl (Suetocircnio Claacuteudio)
Suet Dom (Suetocircnio Domiciano)
Suet Jul (Suetocircnio Juacutelio Ceacutesar)
Suet Tit (Suetocircnio Tito)
Suet Ves (Suet Vespasiano)
DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL
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Caligula Translated by J C Rolfe Introduction by K R Bradley Loeb Classical Library 31
Cambridge MA Harvard University Press 1914
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Vespasian Titus Domitian Lives of Illustrious Men Grammarians and Rhetoricians
Poets (Terence Virgil Horace Tibullus Persius Lucan) Lives of Pliny the Elder and
Passienus Crispus Translated by J C Rolfe Loeb Classical Library 38 Cambridge MA
Harvard University Press 1914
Bruno Torres dos Santos
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36 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
DOI httpsdoiorg1012957principia201946511
LUCIacuteOLA E O TRAacuteGICO ESTUDO ACERCA DAS MARCAS DO HEROacuteI
TRAacuteGICO EM UM PERFIL DE MULHER ALENCARIANO
Heitor Victor
RESUMO Recorrer aos claacutessicos para entender nosso tempo natildeo eacute mesmo nenhuma novidade
Apelar para a trageacutedia grega a fim de identificar o que persiste em nossa compreensatildeo acerca
de noacutes mesmos se tornou lugar comum de investigaccedilotildees em diversas aacutereas de interesse Tal
estrateacutegia se repete em razatildeo evidentemente de uma inesgotaacutevel potecircncia alegoacuterica acerca da
existecircncia humana O que pretendo neste breve trabalho eacute uma anaacutelise em linha comparativa
das marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia de Alencar personagem que o proacuteprio autor considera
um de seus perfis de mulher Para tal dialogo com Benjamin que se apresenta como um elo de
compreensatildeo do heroacutei traacutegico figura esta que se mostrou mais longeva do que a proacutepria trageacutedia
helecircnica
PALAVRAS-CHAVE Luciacuteola Traacutegico Heroiacutena
LUCIacuteOLA AND THE TRAGIC ESSAY ABOUT THE MARKS OF THE
TRAGIC HERO IN A WOMAN PROFILE OF JOSEacute DE ALENCAR
ABSTRACT It is no novelty that a return to the classics helps to understand our own time It is
even a commonplace in many research fields that an approach to greek tragedy makes it
possible for us to better understand ourselves Such a strategy still turns out to be suitable
because there is an ongoing possibility of creating allegories of human existence My aim in
this short essay is to perform a comparative analysis of the tragical features of Luacutecia an
important character of Joseacute de Alencars prose who the author himself deems to be a crucial
example of his depictions of the feminine In order to do that I draw upon Walter Benjamins
work which provides us with a comprehensive overview of the tragic hero - who actually
proved himself to be more important than the helenic tragedy itself
KEYWORDS Luciacuteola Tragic Heroine
Introduccedilatildeo
O teatro traacutegico dos gregos natildeo pode mais retornar isso eacute um fato mas eacute marcante a sua
presenccedila ainda em nossa literatura ocidental Analisar o elemento traacutegico natildeo eacute necessariamente
uma novidade mas sempre se mostra desafiador relacionarmos o traacutegico agrave estrutura de
composiccedilatildeo da personagem do romance na literatura moderna O presente trabalho pretende
Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
E-mail heitor-victorhotmailcom
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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pois fazer uma leitura da personagem Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar pioneira da
seacuterie perfis de mulher como construiacuteda sob o signo do traacutegico uma heranccedila legada pelo teatro
grego e que perdura em nossa cultura
O desafio que salta aos olhos eacute certamente as dificuldades de se transpor para o romance
caracteriacutesticas da personagem do texto dramaacutetico ou entender nesta a capacidade de se
apresentar com a profundidade comum ao romance Eacute possiacutevel entender contudo que retiradas
as divergecircncias praacuteticas do meio de veiculaccedilatildeo das narrativas sobram elementos em comum
que residem no imaginaacuterio coletivo e soacute fazem enriquecer o repertoacuterio de leituras que nos
permite a prosa alencariana do seacuteculo XIX
Luacutecia eacute uma das heroiacutenas mais complexas de seu autor capaz de em poucas paacuteginas
fazer o leitor se questionar sobre sua verdadeira natureza ora por sua candura ora por sua ironia
aacutecida apego e desprendimento iacutempares no cenaacuterio romanesco de um tempo que vecirc transbordar
a quantidade de novas e encantadoras personagens Nossa heroiacutena permite-nos destacaacute-la
exatamente por encerrar um signo que extrapola o estilo de seu tempo por meio de grandes
dicotomias autoconsciecircncia e culpa sacrifiacutecio e desejo silecircncio e seduccedilatildeo a personagem se
nos mostra uacutenica no cenaacuterio veloz e dinacircmico dos romances de folhetim
Sublime Decaiacutedo Uma Alegoria
No intuito de criar um elemento intermediaacuterio entre o heroacutei da trageacutedia e o heroacutei traacutegico
que mostrarei estar presente no romance Luciacuteola de Joseacute de Alencar seraacute preciso recorrer agrave
descriccedilatildeo desse heroacutei feita por Walter Benjamin (2011) acerca do drama traacutegico alematildeo
Enquanto aparato cecircnico ou mesmo de criaccedilatildeo literaacuteria encontramos outro contexto e outra
realidade mas o elemento fundamental ainda estaraacute laacute presente O heroacutei traacutegico manteraacute uma
seacuterie de aspectos essenciais que o transformam no portador da anguacutestia humana sem perder o
inexoraacutevel do mito despido ainda mais do movimento de ritualizaccedilatildeo religioso Eacute o traacutegico que
permanece e esse seraacute fundamental para a construccedilatildeo de uma identidade nacional do drama
alematildeo segundo o autor o que nos mostra o potencial desse heroacutei traacutegico no processo de
aproximaccedilatildeo entre o discurso formador e o seu espectador (BENJAMIN 2011)
Um primeiro elemento identificado por Benjamin (2011) que nos interessa no heroacutei
traacutegico eacute o seu caraacuteter alegoacuterico se eacute que posso falar em alegoria do mito que jaacute o eacute em essecircncia
Certamente contudo figura nesse elemento a grande potecircncia reflexiva da personagem traacutegica
que poderaacute ser transportado para Luacutecia Ao relevarmos a ambiccedilatildeo do autor de traccedilar perfis de
mulher1 a alegoria destaca Luacutecia de Emiacutelia e Aureacutelia o que faz evidenciar naquela a tragicidade
em comparaccedilatildeo com estas Deixe-me verificar antes e em linhas mais gerais o que entende
Benjamin por alegoria no drama traacutegico
Devo dispensar em razatildeo de objetivos praacuteticos a discussatildeo do autor acerca das
concepccedilotildees de alegoacuterico e simboacutelico para o barroco e para o romantismo para ir diretamente ao
ponto o alegoacuterico eacute entendido como aquele que supera a unidade da obra e se posiciona com
transcendecircncia agrave medida que o siacutembolo se encerra em si mesmo mostra identidade e um caraacuteter
proacuteprio da obra em que se coloca Benjamin recorre a Goethe para mostrar a concepccedilatildeo
romacircntica de siacutembolo e alegoria ldquoHaacute uma grande diferenccedila entre o poeta procurar o particular
para chegar ao geral e contemplar o geral no particular No primeiro procedimento temos uma
alegoria e o particular serve apenas como exemplo como caso exemplar do geralrdquo
(BENJAMIN 2011 p 171)
1 Natildeo devemos deixar de reconhecer que essa intenccedilatildeo descritiva de construccedilatildeo de um perfil apresenta-se como
um elemento romanesco do narrador de Luciacuteola Como visto no primeiro capiacutetulo da obra quando o narrador
se justifica a G M sua pretensa correspondente ldquoEacute um perfil de mulher apenas esboccediladordquo (ALENCAR 1972
p 121) A todo momento que eu tocar nesse ponto se deve reconhecer que a nossa base reside antes de tudo
nesse caraacuteter narrativo do romance alencariano
Heitor Victor
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 39
A despeito da valoraccedilatildeo feita por Goethe seguiremos a leitura de Benjamin para
entender Luacutecia como o caso particular representativo de um perfil maior o da mulher que
encarna o anjo caiacutedo seu nome daacute a grande indicaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo alegoacuterica mas a mesma
natildeo deixa de aparecer ao longo da obra Reconhecerei em minha anaacutelise na Luacutecia de Alencar
a alegoria da mulher sublime que decai em todo o seu caraacuteter duacutebio mas ainda assim
permanente que morre ao final do romance natildeo agrave toa mas de maneira necessaacuteria para
consolidar a aspiraccedilatildeo alegoacuterica desse perfil de mulher talvez o mais ousado de Alencar
Benjamin reconhece que
o seu (da alegoria) significado eacute aquele que o alegorista lhe atribuir Ele investe-o
desse significado e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele natildeo em sentido
psicoloacutegico mas ontoloacutegico Nas suas matildeos a coisa transforma-se em algo de diverso
atraveacutes dela ele fala de algo de diverso e ela torna-se para ele a chave que lhe daacute acesso
a um saber oculto que ele venera na coisa como seu emblema Eacute nisso que reside o
caraacuteter escritural da alegoria (BENJAMIN 2011 p 196)
Esse seraacute portanto o meu ponto de partida Para natildeo deixar qualquer duacutevida sobre essa
relaccedilatildeo devo me deter nesse tema ainda para mostrar na obra algumas marcas dessa relaccedilatildeo A
comeccedilar pelo elemento dramaacutetico de narraccedilatildeo o recado de G M ldquoao autorrdquo Apoacutes reconhecer
a grandeza da personagem e o valor da narrativa que se seguiraacute dramaticamente posta como
uma publicaccedilatildeo da mesma G M afirma ldquoNatildeo seraacute a imagem verdadeira da mulher que no
abismo da perdiccedilatildeo conserva a pureza drsquoalmardquo (ALENCAR 1972 p 120) Natildeo se pode
desaperceber que eacute usado natildeo a referecircncia definida dedicada agrave Luacutecia mas uma referecircncia geral
a todas as mulheres Eacute exatamente nesse caraacuteter geneacuterico que residiria o valor alegoacuterico de que
trato neste trabalho
Podemos tambeacutem recorrer aos eventos narrados no interior do romance para vermos
personificada a alegoria do anjo caiacutedo seja pela capacidade de transitar com primor entre um e
outro digo entre o angelical e o demoniacuteaco ou seja por encerrar em si mesma os dois
extremos Luacutecia se nos apresenta apenas pela narrativa de Paulo natildeo se pode esquecer e muito
de sua transitoriedade pode residir apenas nas impressotildees desse narrador personagem mas isso
em nada muda o seu caraacuteter alegoacuterico Um episoacutedio que expressa com clareza a ambivalecircncia
de Luacutecia eacute o de seu primeiro encontro iacutentimo com Paulo Em curto espaccedilo de tempo
cronoloacutegico e narrativo vemos uma transformaccedilatildeo que beira a ida pronta do sagrado ao
profano No momento em que avanccedila sobre Luacutecia Paulo reconhece
Quando poreacutem os meus laacutebios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as
formas encantadoras que debuxavam a seda pareceu-me que o sangue lhe refluiacutea ao
coraccedilatildeo As palpitaccedilotildees eram bruscas e precipites Estava liacutevida e mais branca do que
o alvo colarinho do seu roupatildeo Duas laacutegrimas em fio duas laacutegrimas longas e sentidas
como dizem que chora a corccedila expirando pareciam cristalizadas sobre a face de tatildeo
lentas que rolavam (ALENCAR 1972 p 134-135)
Vemos aqui com a reaccedilatildeo genuiacutena de Luacutecia somada agraves laacutegrimas sua comparaccedilatildeo ao
choro da corccedila notamos aqui o temperamento puro que nos surpreende a todos narrador e
leitor Surpresa que se justifica com a mudanccedila abrupta de Luacutecia para entregar a imagem que
nos foi construiacuteda pelos pares de Paulo de que nossa heroiacutena se tratava de uma cortesatilde das mais
haacutebeis
Era outra mulher O rosto cacircndido e diaacutefano que tanto me impressionou agrave doce
claridade da lua se transformara completamente tinha agora uns toques ardentes e
um fulgor estranho que o iluminava Os laacutebios finos e delicados pareciam tuacutemidos dos
desejos que incubavam Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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narina que tremiam com o aneacutelito do respiro curto e sibilante e tambeacutem nos fogos
surdos que incendiavam a pupila negra (ALENCAR 1972 p 136)
Nessa transformaccedilatildeo se apresenta a indistinguiacutevel transiccedilatildeo do sagrado do choro da
corccedila para a respiraccedilatildeo sibilante demoniacuteaca em lasciacutevia Seria inuacutetil continuar enumerando os
momentos em que se evidencia tal transformaccedilatildeo acredito que esses episoacutedios partem da
anteriormente citada alegoria que pode nortear nossa leitura do romance
Natildeo nos seraacute nunca possiacutevel bater o martelo sobre tal questatildeo seria Luacutecia o siacutembolo de
Goethe ou a alegoria de Benjamin Somando contudo as marcas supracitadas a ainda o
reconhecimento de outras marcas do traacutegico preferirei me manter na leitura de Benjamin de
que o alegoacuterico eacute ainda desejaacutevel mesmo no romance exatamente por seu valor transcendente
e assim poderemos entender Luacutecia e seu perfil exclusivo de mulher como tambeacutem dotado de
valor reflexivo e generalista das anguacutestias femininas
Marcas do Heroacutei Traacutegico
As laacutegrimas do episoacutedio transcrito acima servem como indicador do demais elementos
de proximidade entre o heroacutei traacutegico de Benjamin e a Luacutecia de Alencar Tal choro evidencia
uma dor suprimida mas acima de tudo encerra em si quatro aspectos sobre os quais tratarei
neste trabalho o silecircncio a culpa a consciecircncia e o sacrifiacutecio O silecircncio de quem guarda para
si o seu verdadeiro eu suas dores e reflexotildees Eacute nas laacutegrimas que temos o primeiro vislumbre
da profundidade traacutegica de Luacutecia A personagem demonstra nesse exato momento plena
consciecircncia de si de seu destino e sente a culpa que pesa sobre si as laacutegrimas expressam o
ardor do seu sacrifiacutecio pois satildeo sublimadas por sua candura Vejamos adiante o que pretendo
dizer com esses quatro aspectos e sua relaccedilatildeo com o traacutegico
Devo principiar contrariando a ordem anterior pelo sacrifiacutecio para manter a
abordagem de Benjamin O autor entende que o heroacutei traacutegico realiza sua atuaccedilatildeo maior em sua
proacutepria morte o sacrifiacutecio maior e que eacute exatamente entatildeo que o heroacutei se distingue dos demais
indiviacuteduos Benjamin afirma
A marca identificativa da trageacutedia natildeo estaacute pois num conflito de niacuteveis entre o heroacutei
e mundo circundante [] mas sim a forma uacutenica grega de tais conflitos E onde deve
ser procurada essa forma Que tendecircncia se esconde no fenocircmeno traacutegico Por que
causa morre o heroacutei A poesia traacutegica assenta na ideia do sacrifiacutecio (BENJAMIN
2011 p 108)
Luacutecia se sacrifica natildeo apenas porque morre mas se encerra em sua morte uma entrega
definitiva a Paulo e agrave sua irmatilde Ana A morte de Luacutecia eacute decisiva para a construccedilatildeo e para a
profundidade da personagem aleacutem de ser elemento fundamental para a generalidade
constitutiva da alegoria Ainda mais que o sacrifiacutecio do heroacutei traacutegico natildeo eacute um sacrifiacutecio
comum Seguindo ainda o raciociacutenio de Benjamin temos
o sacrifiacutecio traacutegico difere no seu objeto ndash o heroacutei ndash de todos os outros e eacute ao mesmo
tempo inaugural e terminal Terminal no sentido do sacrifiacutecio expiatoacuterio devido aos
deuses guardiatildees de um antigo direito e inaugural no sentido de uma accedilatildeo que em
algum lugar desse direito anuncia novos conteuacutedos da vida do povo (BENJAMIN
2011 p 108)
Ou seja o sacrifiacutecio de Luacutecia eacute terminal expiatoacuterio de sua vida de perfiacutedia Luacutecia
reconhece em seus uacuteltimos momentos para Paulo a sua importacircncia e exatamente por isso por
ele se sacrifica
Heitor Victor
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ndash Paulo Paulo Tu bem sabes que com essa palavra me farias cometer crimes se
crimes fosse necessaacuterio para te provar que eu soacute vivo da vida que me daacutes e me podes
tirar com um sopro Natildeo sou eu criatura tua natildeo renasci pela luz que derramaste em
minha alma Natildeo eacutes meu senhor meu artista meu pai e meu criador (ALENCAR
1972 p 243)
O sacrifiacutecio de Luacutecia como se evidencia natildeo estaacute apenas na morte mas na sua entrega
completa Entrega que se apresenta como sua uacutenica forma de se redimir da vida que levara O
sacrifiacutecio reconhecendo ainda tais aspectos de Benjamin eacute tambeacutem inaugural quando se
direciona a Ana sua irmatilde em quem enxerga a uacutenica continuidade possiacutevel Seja para sua
protegida ou mesmo para a continuidade da vida de Paulo possiacutevel apenas com o encerramento
da sua proacutepria vida
Outro aspecto do heroacutei traacutegico de Benjamin presente em Luciacuteola eacute o silecircncio jaacute
mencionado anteriormente ldquoO heroacutei traacutegico tem apenas uma linguagem que plenamente lhe
corresponde precisamente a do silecircncio Assim eacute desde o iniacuteciordquo (BENJAMIN 2011 p 109)
Esse silecircncio eacute identificaacutevel em diversos momentos em Luacutecia pois evoca a resiliecircncia da
heroiacutena com o seu fardo Natildeo eacute um silecircncio de conformismo ou mesmo qualquer espeacutecie de
natildeo se importar que a toma mas ldquoo testemunho de um sofrimento mudordquo (BENJAMIN 2011
p 109) Eacute com esse silecircncio que Luacutecia arrebata o leitor para o seu drama pessoal natildeo como um
perseguidor ou inquisidor mas como partiacutecipe de seu pesar de sua dor Tal silecircncio aparece
nos momentos de prazer como quando se divertia no banquete noturno na casa de Saacute ldquoLuacutecia
fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria e caiacutera no costumado abatimento e distraccedilatildeo Eu a
contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava
quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaiacutedordquo (ALENCAR 1972 p 152-
153) Ou mesmo em sua face mais sincera jaacute como Maria ldquoQuando cheguei Luacutecia estava soacute
no jardim debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujaacutes tatildeo absorvida em sua
meditaccedilatildeo que natildeo me percebeurdquo (ALENCAR 1972 p 245)
Seguindo com minha anaacutelise comparativa devo abordar o aspecto da consciecircncia
fundamental para a diferenciaccedilatildeo entre uma outra personagem qualquer e o heroacutei traacutegico Esse
aspecto em especial eacute importante para a leitura que apresento por se tratar de algo que
claramente distingue o heroacutei romacircntico convencional daquele que eacute regido pelo signo do
traacutegico O heroacutei do romance desconhece completamente o seu destino e reside precisamente
nisso suas duacutevidas e questionamentos Nossa heroiacutena traacutegica contudo ainda que tambeacutem
romacircntica ndash natildeo o desejamos negar em nenhum momento se mostra consciente do seu caminho
Para esclarecer esse sentido de consciecircncia Benjamin traz uma fala de Lukaacutecs acerca do
reconhecimento da proacutepria morte
Tambeacutem a escolha da morte pelo homem traacutegico eacute um heroiacutesmo soacute aparentemente
heroico soacute assim visto de um ponto de vista humano e psicoloacutegico os heroacuteis
moribundos da trageacutedia ndash escrevia haacute pouco tempo um jovem autor traacutegico ndash estatildeo
mortos muito tempo antes de morrerem (BENJAMIN 2011 p 117)
Apenas a cargo de exemplificaccedilatildeo que se encaixa bem na ideia de reconhecimento da
morte como marca do heroacutei traacutegico podemos citar a consciecircncia apresentada por Luacutecia antes
de sua proacutepria morte ldquondash Se eu pudesse viver haveria forccedilas que me separassem de ti Haveraacute
sacrifiacutecio que eu natildeo fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade Mas Deus natildeo
quis Sinto que a vida me fogerdquo (ALENCAR 1972 p 248)
Devo tratar por fim do quarto aspecto a que me reservei neste trabalho que eacute o da culpa
Sem duacutevidas o eixo central de todo o romance de Alencar A culpa natildeo pode ser entendida
contudo como o arrependimento de seus atos ou mesmo sujeiccedilatildeo completa ao proacuteprio erro A
culpa como elemento traacutegico traz um valor de compreensatildeo Nossa heroiacutena traacutegica natildeo apenas
se lamenta da vida que fora levada a ter mas por meio da culpa ela se reconstroacutei eacute precisamente
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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por meio da culpa que no fim em meio ao embate entre anjo e democircnio prevalece sua face
angelical e a alegoria alcanccedila a sua plenitude Recorro ainda agraves palavras de Benjamin para
clarificar essa noccedilatildeo de culpa no drama traacutegico
No decorrer da accedilatildeo traacutegica um heroacutei assume e internaliza essa culpa que segundo
as antigas normas eacute imposta aos homens a partir de fora pela desgraccedila Ao refleti-la
na sua consciecircncia de si ele furta-se agrave sua tutela demoniacuteaca [] Paradoxal como
todas as manifestaccedilotildees da culpa traacutegica ela consiste apenas numa orgulhosa
consciecircncia de culpa na qual a figura heroica se liberta da servidatildeo que na sua
lsquoinocecircnciarsquo a sujeita agrave culpa demoniacuteaca (BENJAMIN 2011 p 135)
Essa culpa talvez seja dentre os aspectos ateacute aqui elencados o que mais se mostra claro
ao longo de Luciacuteola Nos momentos de maior comoccedilatildeo compartilhamos com Luacutecia esse seu e
genuiacuteno sentimento e eacute precisamente graccedilas a ele que o lado sagrado desse anjo caiacutedo prevalece
e nos faz criar a empatia entre leitor e personagem Vejamos portanto dois casos que
expressam os dois extremos da culpa vivida por Luacutecia Ora tal sentimento se expressa pela
ironia como quando Paulo no evento da casa de Saacute tenta singularizar a sua presenccedila e nossa
heroiacutena rebate com acidez
ndash Ora Haacute tanta mulher bonita Qualquer destas vale mais do que eu acredite Demais
quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado saberaacute o senhor de
quem satildeo os laacutebios que toca Qual Eacute uma mulher Uma presa em que ceva o apetite
Que importa o nome Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe
prepararam esta ceia Conhece-os Nem por isso as iguarias lhe parecem menos
saborosas (ALENCAR 1972 p 153)
Em outro momento contudo vemos a culpa sob outra roupagem da maneira mais
sincera em um de seus momentos de maior entrega
ndash Tu podes me fazer voltar agrave treva de que me arrancaste podes estancar as fontes de
minha existecircncia que manam de tua alma e natildeo me haacutes de ouvir uma soacute queixa A
dor como a alegria seratildeo sempre benditas por que viratildeo de ti Mas Paulo a suacuteplica
do humilde natildeo ofende Deus a permite e exalccedila Natildeo me retires a graccedila e a becircnccedilatildeo
que me deste Salva-me Paulo Salva-me a ti Salva-me de mim mesma
(ALENCAR 1972 p 243)
Natildeo agrave toa seleciono esta uacuteltima fala de Luacutecia para encerrar a argumentaccedilatildeo pois
precisamente aqui a culpa se mostra como o elemento libertador e eacute aqui que Luacutecia talvez tenha
entendido e absorvido o orgulho citado por Benjamin para livraacute-la da tutela demoniacuteaca Liberta-
se finalmente da servidatildeo que a acomete por toda a obra A projeccedilatildeo em Paulo eacute certamente a
projeccedilatildeo em um amor libertador que foi capaz de transfigurar a modalidade da culpa que sentia
Eacute entatildeo que Luacutecia deixa claro que compreende que a dor e a alegria se complementam e assim
encerra o perfil da mulher que decaiu mas que no fim projeta em sua alegoria a clareza do seu
papel em sua proacutepria narrativa Essa compreensatildeo faz de Luacutecia a heroiacutena de Alencar que mais
beira a perdiccedilatildeo a mais altiva e capaz de se assemelhar agrave heroiacutena da trageacutedia e assim como laacute
melhor do que se realmente apresentam homens e mulheres
Conclusatildeo
Ao recorrer portanto agraves estrateacutegias de identificaccedilatildeo da interioridade e de posiccedilotildees
constitutivas do heroacutei traacutegico acredito que se torna possiacutevel clarificar como o teatro grego
passou a atuar sobre o mito por meio de maior variabilidade narrativa do mesmo Essa
possibilidade de apresentar uma personagem mais profunda ainda que por meio da accedilatildeo
Heitor Victor
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dramaacutetica eleva o texto teatral e especificamente a trageacutedia ndash que usa a personagem miacutetica
como forma de apresentar seres mais elevados do que os indiviacuteduos da sociedade ndash ao papel de
ressignificar o mito Eacute por meio dessas personagens dramaacuteticas que a fabulaccedilatildeo estaacutetica do mito
pode apresentar novos argumentos para o meio em que estaacute inserida
Reconhecendo nas estrateacutegias de interpretaccedilatildeo da personagem dramaacutetica a ferramenta
de atualizaccedilatildeo do mito despida do elemento religioso foi possiacutevel analisar com certo grau de
convicccedilatildeo o heroacutei da trageacutedia Evidenciou-se como isso o papel desse heroacutei e sua capacidade
de conduzir efetivamente a narrativa miacutetica para novos caminhos interpretativos possibilitando
essa narrativa a se apresentar sob nova perspectiva O heroacutei visto dessa maneira ganha
destaque como formador de questionamentos e permite ao leitorespectador por meio do
elemento traacutegico estabelecer nova compreensatildeo
Esse heroacutei traacutegico permanece com o seu poder reflexivo mesmo fora do contexto miacutetico
levando-nos ao reconhecimento do traacutegico como formador efetivo de questionamentos Satildeo
estes aspectos traacutegicos que Benjamin identifica como herdeiros do teatro grego no teatro
alematildeo que eu resgato como possiacuteveis na construccedilatildeo de profundidade do heroacutei do romance eacute
precisamente sob esses aspectos que Luacutecia ndash a heroiacutena romacircntica mas dotada do elemento
traacutegico ndash eacute capaz de saltar aos olhos do leitor como dona de seu proacuteprio destino jamais apenas
sujeita ao mesmo Com isso cada traccedilo da heroiacutena de Alencar eacute capaz de se mostrar natildeo apenas
como marca de um perfil de mulher mas tambeacutem o perfil de um aspecto comum a todas as
mulheres Somente por meio da alegoria do anjo caiacutedo se poderia alcanccedilar tamanha projeccedilatildeo
dentro de um cenaacuterio em que o indiviacuteduo eacute professado como ponto central da construccedilatildeo de
uma obra de arte
REFEREcircNCIAS
ALENCAR Joseacute de Obras Imortais da Nossa Literatura Joseacute de Alencar Iracema ndash
Luciacuteola Satildeo Paulo Editora Trecircs 1972
ARISTOacuteTELES Poeacutetica In A Poeacutetica Claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 12ordf ediccedilatildeo 2005
BENJAMIN Walter Origem do Drama Traacutegico Alematildeo Belo Horizonte Autecircntica Editora
2011
CANDIDO Antonio A Personagem do Romance In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo Paulo
Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014
ELIADE Mircea Mito e Realidade Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2ordf ediccedilatildeo 1986
PRADO Deacutecio de Almeida A Personagem no Teatro In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo
Paulo Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946512
CARACTERIZACcedilAtildeO SIMBOacuteLICA ATRAVEacuteS DE SIacuteMILES
ANIMAIS NA ILIacuteADA
Marco Valeacuterio Classe Colonnelli (Universidade Federal da Paraiacuteba)
RESUMO O intuito deste artigo eacute demonstrar a partir de alguns siacutemiles como Homero
produz uma caracterizaccedilatildeo concisa de seus heroacuteis A perspectiva de abordagem neste
estudo eacute comprovar a eficaacutecia do uso dos siacutemiles pelo poeta em consonacircncia com a obra
de Aristoacuteteles Investigaccedilatildeo dos Animais que nos permite aferir certo valor simboacutelico de
determinados animais ainda no seacutec IV aC Partindo de comparaccedilotildees com animais o
poeta produz siacutemiles que formam um quadro imediato e eficaz do heroacutei projetado pela
forccedila simboacutelica e analoacutegica que o animal evoca como termo comparativo na cultura grega
arcaica e claacutessica
PALAVRAS-CHAVES Caracterizaccedilatildeo Iliacuteada Homero siacutemiles eacutepica Aristoacuteteles
SYMBOLIC CHARACTERIZATION THROUGH SIMILES
ANIMALS IN THE ILIAD
ABSTRACT The purpose of this article is to demonstrate from some similes how Homer
produces a concise characterization of his heroes The prospect of approach in this study
is to prove the efficacy of the use of similes by the poet in accord with the work of
Aristotle Research of the Animals which allows us to assess certain symbolic value of
certain animals even in the 4th century BC Starting from the comparison with animals
the poet produces similes that form an immediate and effective framework of the hero
projected by the symbolic and analogue force that the animal evokes as a comparative
term in the archaic and classical Greek culture
KEYWORDS Characterization Iliad Homero Facsimiles Epic Aristotle
1 Sobre o siacutemile homeacuterico
Desde o lanccedilamento do livro de Milman Parry ldquoThe Making of Homeric Verserdquo
que revelou novas facetas para o estudo de Homero o siacutemile passou a ser estudado por
uma infinidade de autores Foacutermulas funccedilotildees oralidade sequecircncias de imagens dentre
outras caracteriacutesticas foram tatildeo sistematicamente investigadas nos siacutemiles que um resumo
sobre essas principais teorias produziria um material muito denso1
E-mail mcolonnellihotmailcom 1 Desde os estudos de Milman Parry duas principais linhas de estudos tecircm debatido calorosamente a
possibilidade de uma caracterizaccedilatildeo de personagens a despeito das foacutermulas e repositoacuterios de palavras
usados nos dois poemas eacutepicos de Homero Adam Parry filho de Milman em seu artigo ldquoLanguage and
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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O siacutemile grosso modo eacute uma comparaccedilatildeo entre coisas Coffey que analisou os
siacutemiles na eacutepica homeacuterica encontra dois grupos um que eacute
composto de uma palavra introdutoacuteria tal como ὡς seguida por um nome que
eacute frequentemente qualificado por um adjetivo ou um particiacutepio [] e casos
nos quais uma ou mais oraccedilotildees relativas contendo uma forma infinitiva ou
verbos flexionados estatildeo ligadas a uma oraccedilatildeo anterior de comparaccedilatildeordquo
(Coffey 1957 60) e outro ldquoo siacutemile longo que consiste em uma sentenccedila
separada introduzida por ὡς ὅτε ou palavras similaresrdquo2
Aqui as duas formas de siacutemiles nos interessam jaacute que a primeira trata de uma economia
em termos de caracterizaccedilatildeo e a segunda um desenvolvimento da situaccedilatildeo da personagem
em conflitos eacuteticos e psicoloacutegicos
Um pouco mais tarde Moulton passa a estudar os siacutemiles a partir de suas
sequecircncias ultrapassando o esquema fechado dos siacutemiles e de suas correspondecircncias
sintaacuteticas para ampliaacute-los ateacute uma anaacutelise semacircntica demonstrando unidades de sentido
maiores na sequecircncia do enredo Duas tambeacutem satildeo as formas encontradas por ele siacutemiles
pares e ainda siacutemiles sucessivos ou seja respectivamente um siacutemile direto simples
menor e outro longo com unidades maiores e liames semacircnticos
Coffey ainda apresenta algumas funccedilotildees que o siacutemile homeacuterico desempenha tais
como movimentaccedilatildeo descriccedilatildeo notaccedilatildeo temporal enumeraccedilatildeo caracterizaccedilatildeo dentre
outras funccedilotildees Especificamente no tocante agrave caracterizaccedilatildeo diversos siacutemiles apresentam
como termo comparativo animais Clarke por exemplo em seu artigo ldquoEntre Homens e
Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo pontua em contraste com teoacutericos que soacute veem o
siacutemile como uma ornamentaccedilatildeo formulaica que ldquoo simbolismo envolvendo animais
selvagens e agressivos eacute muito maior que uma questatildeo de estilo e que eles desempenham
grande papel no retrato de Homero dos problemas eacuteticos e psicoloacutegicos do heroiacutesmordquo
(Clarke 2006 p 2)
Eacute desse ponto de vista entatildeo que partimos em nossa investigaccedilatildeo ou seja
examinar em suas duas formas o potencial que os siacutemiles animais possuem na Iliacuteada
como teacutecnica de caracterizaccedilatildeo3 Eacute necessaacuterio tambeacutem antes determinar para que o
quadro de comparaccedilatildeo seja efetivo o valor simboacutelico que cada animal pode atribuir ao
seu comparante dentro da estrutura do siacutemile e soacute assim procedermos com a anaacutelise de
caracterizaccedilatildeo
2 A simbologia dos animais como elemento caracterizador
Estudar a caracterizaccedilatildeo de uma personagem sem seu caraacuteter (ἦθος) manifesto
pode parecer uma empresa arriscada Entretanto eacute possiacutevel determinar este caraacutecter
atraveacutes de analogias que deixam entrever certos estados eacuteticos e psicoloacutegicos das
personagens Eacute dessa forma que entendemos com Clark que
Characterization in Homerrdquo jaacute havia contestado boa parte dos epiacutetetos formulaicos para demonstrar certa
habilidade do poeta eacutepico em sua construccedilatildeo de caracterizaccedilatildeo No tocante aos siacutemiles M Coffey em
ldquoThe function of the Homeric Similerdquo demonstra como os siacutemiles desempenham diversas funccedilotildees dentre
elas a de caracterizaccedilatildeo e ainda mais Carroll Moulton em ldquoSimiles in the Iliadrdquo e ldquoSimile Sequencesrdquo
aponta como os siacutemiles produzem caracterizaccedilatildeo e influenciam em toda narrativa posterior para aleacutem de
uma foacutermula meramente ornamental respectivamente Importante contribuiccedilatildeo tambeacutem eacute o artigo de
Michel Clark ldquoEntre Homens e Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo que aponta comportamentos eacuteticos e
psicoloacutegicos nos siacutemiles animais 2 Todas as traduccedilotildees satildeo de responsabilidade do autor Texto grego extraiacutedo das ediccedilotildees de Paul Mazon e
Balme 3 Cf Adam Parry 1972 p 1-22
Marco V C Colonnelli
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Os siacutemiles animais satildeo um excelente candidato para gerar tal tipo de sistema
eles satildeo tantos e tatildeo variados nas conexotildees que forjam que seu efeito
combinado pode natildeo apenas ampliar a narrativa mas de fato assimilar
aspectos da aparecircncia das personagens e da personalidade do guerreiro ao
animal (Clark 2006 p 4)4
Um dado relevante neste universo eacutepico eacute que ldquoos animais de Homero tecircm
igualmente o mesmo aparato emocional e cognitivo que os homensrdquo (Clark 2006 11)
Na Iliacuteada poreacutem jamais encontraremos algum tipo de eacutethos (ἦθος) aplicado ao animal
mas somente o contraacuterio disso o animal conferindo eacutethos ao homem Em Homero os
animais estatildeo encobertos por uma carga simboacutelica que os determina em certos aspectos
com traccedilos bem definidos Mas como eacute possiacutevel atribuir um eacutethos ao animal Como ver
tacitamente no animal um eacutethos humano Para entendermos melhor essa relaccedilatildeo eacute
preciso recorrermos a Aristoacuteteles
Em seu tratado Investigaccedilatildeo dos Animais o filoacutesofo faz uma afirmaccedilatildeo que parece
se coadunar com o mundo homeacuterico
Haacute pois tambeacutem em muitos desses outros animais traccedilos de caracteriacutesticas
psiacutequicas que nos homens possuem diferenccedilas mais claras Assim mansidatildeo
e ferocidade doccedilura e violecircncia coragem e covardia temor e ousadia vontade
e astuacutecia estatildeo em muitos animais semelhantes aos homens tambeacutem ateacute em
inteligecircncia
῎Ενεστι γὰρ ἐν τοῖς πλείστοις καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ἴχνη τῶν περὶ τὴν ψυχὴν
τρόπων ἅπερ ἐπὶ τῶν ἀνθρώπων ἔχει φανερωτέρας τὰς διαφοράςmiddot καὶ γὰρ
ἡμερότης καὶ ἀγριότης καὶ πραότης καὶ χαλεπότης καὶ ἀνδρία καὶ δειλία καὶ
φόβοι καὶ θάρρη καὶ θυμοὶ καὶ πανουργίαι καὶ τῆς περὶ τὴν διάνοιαν συνέσεως
ἔνεισιν ἐν πολλοῖς αὐτῶν ὁμοιότητες [] (Arist Investigaccedilotildees sobre os
animais 588 a 19-25)
Aristoacuteteles reconhece duas caracteriacutesticas psiacutequicas diferentes entre os animais e
os homens A primeira eacute de grau ou seja entre os homens uns teratildeo mais outros menos
dessas caracteriacutesticas e a mesma relaccedilatildeo entre homens e animais A segunda eacute por
analogia ou seja por certa semelhanccedila entre as caracteriacutesticas psiacutequicas dos homens
comparadas a certas manifestaccedilotildees nos animais5 Partindo dessa premissa analoacutegica
Aristoacuteteles neste tratado delineia o caraacuteter de alguns animais com base em sentimentos
humanos A analogia que faz a ponte entre essas constituiccedilotildees psiacutequicas se vale tambeacutem
do simbolismo que cada animal possuiacutea jaacute entre os gregos Este simbolismo natildeo tem um
vieacutes religioso ainda que seja necessaacuterio reconhecer essa dimensatildeo simboacutelica na cultura
grega6 mas meramente empiacuterico
Eacute nesse sentido que vamos encontrar em Aristoacuteteles a aplicaccedilatildeo do eacutethos humano
por analogia aos animais Worther tambeacutem assinala que
Aristoacuteteles define o ἦθος como uma capacidade ou potecircncia primeira e natural
possuiacuteda por todos os animais em virtude da qual eles satildeo natildeo somente capazes
4 Moulton discorda de que isso seja possiacutevel 5 Diferenccedila segundo a analogia consiste em estabelecer que a capacidade natural de um dado animal se
encontra sob uma forma diferente mas com a mesma funccedilatildeo ou uma funccedilatildeo anaacuteloga em um outro animal
Assim a arte a sabedoria ou a inteligecircncia do homem existem em outros animais mas sob a forma de
uma capacidade que natildeo faz intervir o elemento racional que pertence propriamente ao homem
(Woerther 2007 138) 6 Natildeo se nega o valor das relaccedilotildees religiosas entre homens e animais mas deve-se tambeacutem ressaltar as
relaccedilotildees sociais e poliacuteticas que esta associaccedilatildeo releva (Bodson 1994 55)
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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de ser afetados por paixotildees como tambeacutem suscetiacuteveis de desenvolver graccedilas
agraves accedilotildees repetidas disposiccedilotildees habituais da alma (Woerther 2007 p 138)
A observaccedilatildeo do filoacutesofo sobre o eacutethos animal tambeacutem eacute extraiacuteda da proacutepria obra
de Homero de quem ele muitas vezes cita passagens para justificar seus escritos
bioloacutegicos o que nos leva a crer que as observaccedilotildees homeacutericas e aristoteacutelicas formam um
todo empiacuterico de observaccedilotildees a respeito da natureza em geral Desse saber empiacuterico o
valor do eacutethos animal passa a figurar como um siacutembolo que o animal possui em si
Vejamos agora como certos valores simboacutelicos dos animais confluem para uma
caracterizaccedilatildeo taacutecita em algumas passagens da Iliacuteada
3 Siacutemiles animais como elementos caracterizadores
Muitos siacutemiles animais podem ser encontrados na Iliacuteada O leatildeo eacute de longe o
animal mais citado como imagem para os heroacuteis entretanto outros animais como o cervo
ou a cabra que satildeo presas tambeacutem abundam nas comparaccedilotildees Alguns animais satildeo
empregados especificamente em algumas passagens de modo natildeo muito usual Em uma
passagem do canto VIII da Iliacuteada Aquiles eacute comparado a um golfinho natildeo soacute pelo locus
de sua caccedila mas tambeacutem por algumas reconhecidas qualidades deste animal Vejamos o
siacutemile
Em seguida o divino Aquiles deixou sua lanccedila na ribeira
Inclinada nos arbustos e mergulhou semelhante a um deus
Portando apenas uma espada e na mente meditava maus atos
E golpeou dando giros dos feridos pela arma uma gritaria elevou-se
Indecorosa enquanto tingia a aacutegua de vermelho
Tal como quando outros peixes dos golfinhos de grande ventre
Fugindo enchem os recantos de uma baiacutea fundeada
Aterrados pois tudo aquilo que consegue apanhar devora
Assim os Troianos para as correntes do terriacutevel rio
Fugiam pelas iacutengremes ribanceiras Aquiles quando cansou
Suas matildeos de matar recolheu do rio doze jovens vivos
Paga pela morte de Paacutetroclo filho de Meneacutecio
Αὐτὰρ ὃ διογενὴς δόρυ μὲν λίπεν αὐτοῦ ἐπ ὄχθῃ
κεκλιμένον μυρίκῃσιν ὃ δ ἔσθορε δαίμονι ἶσος
φάσγανον οἶον ἔχων κακὰ δὲ φρεσὶ μήδετο ἔργα
τύπτε δ ἐπιστροφάδηνmiddot τῶν δὲ στόνος ὄρνυτ ἀεικὴς
ἄορι θεινομένων ἐρυθαίνετο δ αἵματι ὕδωρ
ὡς δ ὑπὸ δελφῖνος μεγακήτεος ἰχθύες ἄλλοι
φεύγοντες πιμπλᾶσι μυχοὺς λιμένος εὐόρμου
δειδιότεςmiddot μάλα γάρ τε κατεσθίει ὅν κε λάβῃσινmiddot
ὣς Τρῶες ποταμοῖο κατὰ δεινοῖο ῥέεθρα
πτῶσσον ὑπὸ κρημνούς ὃ δ ἐπεὶ κάμε χεῖρας ἐναίρων
ζωοὺς ἐκ ποταμοῖο δυώδεκα λέξατο κούρους
ποινὴν Πατρόκλοιο Μενοιτιάδαο θανόντοςmiddot
(Il VIII 17-28)
Em suas investigaccedilotildees Aristoacuteteles nos fornece certos traccedilos do animal que
configuram seu eacutethos Assim em 631a ele afirma que ldquodentre os animais mariacutetimos
muitos sinais de doccedilura e inteligecircncia satildeo anunciados a respeito dos golfinhos assim
como tambeacutem em relaccedilatildeo aos filhos satildeo amorosos e apaixonadosrdquo (Τῶν δὲ θαλαττίων
πλεῖστα λέγεται σημεῖα περὶ τοὺς δελφῖνας πραότητος καὶ ἡμερότητος καὶ δὴ καὶ πρὸς
παῖδας ἔρωτες καὶ ἐπιθυμίαι ndash Arist 631a 8-11) Natildeo obstante esta caracteriacutestica doacutecil
do animal a sua destreza na caccedila tambeacutem eacute exaltada Em outra passagem ele acrescenta
Marco V C Colonnelli
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Fala-se tambeacutem coisas incriacuteveis a respeito da rapidez do animal Parece pois
que dentre todos os animais tanto da aacutegua quanto da terra eacute o mais raacutepido e
tambeacutem saltam por cima dos mastros dos grandes navios Isso lhes acontece
sobretudo quando perseguem algum peixe graccedilas a sua necessidade alimentar
Neste momento pois se o peixe fugir perseguem-no ateacute o fundo do mar por
causa de sua fome [] E girando sobre si mesmos lanccedilam-se como uma
flecha desejando percorrer com velocidade uma grande extensatildeo para respirar
Λέγεται δὲ καὶ περὶ ταχυτῆτος ἄπιστα τοῦ ζῴουmiddot ἁπάντων γὰρ δοκεῖ εἶναι
ζῴων τάχιστον καὶ τῶν ἐνύδρων καὶ τῶν χερσαίων καὶ ὑπεράλλονται δὲ
πλοίων μεγάλων ἱστούς Μάλιστα δὲ τοῦτ αὐτοῖς συμβαίνει ὅταν διώκωσί
τινα ἰχθὺν τροφῆς χάρινmiddot τότε γάρ ἐὰν ἀποφεύγῃ συνακολουθοῦσιν εἰς βυθὸν
διὰ τὸ πεινῆν [] καὶ συστρέψαντες ἑαυτοὺς φέρονται ὥσπερ τόξευμα τῇ
ταχυτῆτι τὸ μῆκος διελθεῖν βουλόμενοι πρὸς τὴν ἀναπνοήν (Arist 631a 20-
27)
A caracteriacutestica do golfinho em sua caccedila parece iluminar o curto siacutemile em que
Aquiles toma as presas de guerra A rapidez do ataque do animal o mais raacutepido dentre
todos alude a proacutepria destreza do heroacutei que tambeacutem eacute raacutepido em seu ataque e efetivo em
sua conquista O ataque eacute motivado pela voracidade da fome do animal e o modo como
ele caccedila tambeacutem estaacute representado atraveacutes dos giros que facilmente o animal executa
Aquiles golpeia girando tal como o golfinho Se o amor filial eacute a caracteriacutestica do animal
natildeo se pode negar que o iacutempeto que move o heroacutei eacute a vinganccedila pela morte de Paacutetroclo
demonstrando a amizade que os unia A comparaccedilatildeo com o golfinho eacute salutar em diversos
aspectos mas sobretudo pela inteligecircncia e pela destreza que o animal evoca na passagem
Outro animal natildeo menos mencionado em siacutemiles do que o leatildeo eacute o catildeo de caccedila
Apesar de ser um animal domesticado sua ferocidade na caccedila eacute muito representada em
siacutemiles Aristoacuteteles nos informa a respeito deles que
A raccedila dos catildees de caccedila em Molosso natildeo diferem em nada das raccedilas de outras
localidades mas a raccedila que pastoreia junto aos rebanhos difere em porte e em
coragem contra animais selvagens E diferem em coragem e dedicaccedilatildeo
tambeacutem a raccedila dos catildees gerados do cruzamento entre os de Molosso e da
Lacocircnia
Τὸ δ ἐν τῇ Μολοττίᾳ γένος τῶν κυνῶν τὸ μὲν θηρευτικὸν οὐδὲν διαφέρει πρὸς
τὸ παρὰ τοῖς ἄλλοις τὸ δ ἀκόλουθον τοῖς προβάτοις τῷ μεγέθει καὶ τῇ ἀνδρείᾳ
τῇ πρὸς τὰ θηρία Διαφέρουσι δ οἱ ἐξ ἀμφοῖν ἀνδρείᾳ καὶ φιλοπονίᾳ οἵ τε ἐκ
τῶν ἐν τῇ Μολοττίᾳ γινομένων κυνῶν καὶ ἐκ τῶν Λακωνικῶν (Arist HA 608
a 27-33)
Duas caracteriacutesticas satildeo apontadas no animal a coragem contra animais selvagens
e a sua dedicaccedilatildeo na caccedila Eacute com esse eacutethos que Heitor eacute pintado no canto VIII da Iliacuteada
no momento em que Zeus o favorece na batalha contra os Aqueus
De novo nos Troianos o Oliacutempio excitou a coragem
E eles impeliram os Aqueus direto agrave profunda trincheira
Heitor entre os primeiros movia-se fero em sua forccedila
Como quando um dos catildees de javalis selvagens ou de leotildees
Toca sucessivamente perseguindo-os com patas ceacuteleres
As coxas ou naacutedegas e tem olhos fixos em quem se vira
Assim Heitor perseguia os Aqueus de longos cabelos
Matando sempre o mais recuado enquanto os outros fugiam
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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῍Αψ δ αὖτις Τρώεσσιν ᾿Ολύμπιος ἐν μένος ὦρσενmiddot
οἳ δ ἰθὺς τάφροιο βαθείης ὦσαν ᾿Αχαιούςmiddot
῞Εκτωρ δ ἐν πρώτοισι κίε σθένεϊ βλεμεαίνων
ὡς δ ὅτε τίς τε κύων συὸς ἀγρίου ἠὲ λέοντος
ἅπτηται κατόπισθε ποσὶν ταχέεσσι διώκων
ἰσχία τε γλουτούς τε ἑλισσόμενόν τε δοκεύει
ὣς ῞Εκτωρ ὤπαζε κάρη κομόωντας ᾿Αχαιούς
αἰὲν ἀποκτείνων τὸν ὀπίστατονmiddot οἳ δὲ φέβοντο
(Il VIII 335-343)
Na passagem acima a coragem tambeacutem encontrada no ethos animal eacute insuflada por Zeus
nos Troianos O siacutemile parece de fato retomar a qualidade deste animal em colocar em debandada
animais ferozes Entretanto a diligecircncia e a dedicaccedilatildeo do animal natildeo fica para traacutes na
representaccedilatildeo jaacute que o catildeo tem os olhos fixos nos animais que lhe satildeo superiores em porte fiacutesico
natildeo descuidando daqueles que viram O siacutemile indica sobretudo o cuidado presente no eacutethos do
animal na dispersatildeo das feras reproduzindo a imagem de heroacuteis mais fracos que inspirados pelos
deuses potildeem em debandada heroacuteis mais robustos Nesse sentido apesar da coragem eacute necessaacuteria
muita cautela na perseguiccedilatildeo para que natildeo se invertam as posiccedilotildees entre caccedila e caccedilador
Retomando a relaccedilatildeo entre os animais acima tambeacutem eacute possiacutevel perceber que o
caraacuteter dessas feras natildeo como habitualmente satildeo representadas ou seja como animais
ferozes e corajosos mas como animais que algumas vezes satildeo covardes Neste caso o
leatildeo tatildeo usado em siacutemiles de batalha para denotar violecircncia ferocidade tambeacutem possui
iacutendice de covardia Aristoacuteteles nas Investigaccedilotildees sobre os Animais observa que
Haacute duas raccedilas de Leotildees haacute uma que eacute mais roliccedila juba encaracolada e covarde
outra mais larga de juba ericcedilada e mais corajosa Fogem algumas vezes
entretanto com o rabo entre as pernas como os catildees Jaacute se viu tambeacutem um leatildeo
que estava a ponto de se lanccedilar sobre um javali e como percebeu que esse se
ouriccedilava fugiu Eacute deacutebil contra golpes em sua barriga mas suporta muitos
golpes em outra parte do corpo e tem um cabeccedila forte
Γένη δ ἐστὶ λεόντων δύοmiddot τούτων δ ἐστὶ τὸ μὲν στρογγυλώτερον καὶ
οὐλοτριχώτερον δειλότερον τὸ δὲ μακρότερον καὶ εὐθύτριχον ἀνδρειότερον
Φεύγουσι δ ἐνίοτε κατατείναντες τὴν κέρκον ὥσπερ κύνες ῎Ηδη δ ὦπται
λέων καὶ ὑῒ ἐπιτίθεσθαι μέλλων καὶ ὡς εἶδεν ἀντιφρίξαντα φεύγων ῎Εστι δὲ
πρὸς τὰς πληγὰς εἰς μὲν τὰ κοῖλα ἀσθενής κατὰ δὲ τὸ ἄλλο σῶμα δέχεται
πολλὰς καὶ κεφαλὴν ἔχει ἰσχυράν
(Arist HA 629 b 33- 639 a8)
A informaccedilatildeo que Aristoacuteteles nos traz natildeo soacute ilustra o siacutemile homeacuterico anterior
como tambeacutem demonstra que o encontro entre javalis e leotildees eram decididos por acaso
jaacute que os dois animais satildeo comumente representados na Iliacuteada como animais ferozes
Assim uma passagem pode ser lida de forma interessante quando dois grandes heroacuteis
satildeo postos frente a frente no canto VII Heitor e Aacutejax
Ambos concomitantes retirando as longas lanccedilas com as matildeos
De suacutebito se encontram parecendo leotildees apreciadores de carne
Ou selvagens javalis cuja forccedila eacute inesgotaacutevel
τὼ δ ἐκσπασσαμένω δολίχ ἔγχεα χερσὶν ἅμ ἄμφω
σύν ῥ ἔπεσον λείουσιν ἐοικότες ὠμοφάγοισιν
ἢ συσὶ κάπροισιν τῶν τε σθένος οὐκ ἀλαπαδνόν
(Il VII 255-257)
Atraveacutes desse siacutemile a passagem demonstra como forccedilas equacircnimes os dois heroacuteis
representados aiacute pela forccedila descomunal do javali e pelo apreciador de carne crua o leatildeo
Marco V C Colonnelli
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 51
O choque entre os heroacuteis no resto da passagem natildeo terminaria jaacute que chegada a noite
o combate foi interrompido pelos arautos
O leatildeo em outros siacutemiles quando confrontado por caccediladores e catildees manifesta
cautela em seus ataques Aristoacuteteles descreve o comportamento do leatildeo face a essa
adversidade
Nas caccediladas sendo observado jamais foge ou se apavora mas se por uma
multidatildeo de caccediladores eacute forccedilado a se afastar retira-se passo a passo e com a
face voltada ao inimigo girando-se de pouco em pouco se ele se encontra
entre arbustos foge rapidamente ateacute chegar em uma clareira momento em que
de novo se afasta passo a passo Em campo aberto quando eacute forccedilado a fugir
para uma clareira por uma multidatildeo corre com passos raacutepidos e natildeo pula Sua
corrida eacute contiacutenua e extensa como a do catildeo
᾿Εν δὲ ταῖς θήραις ὁρώμενος μὲν οὐδέποτε φεύγει οὐδὲ πτήσσει ἀλλ ἐὰν καὶ
διὰ πλῆθος ἀναγκασθῇ τῶν θηρευόντων ὑπαγαγεῖν βάδην ὑποχωρεῖ καὶ κατὰ
σκέλος κατὰ βραχὺ ἐπιστρεφόμενοςmiddot ἐὰν μέντοι ἐπιλάβηται δασέος φεύγει
ταχέως ἕως ἂν καταστῇ εἰς φανερόνmiddot τότε δὲ πάλιν ὑπάγει βάδην ᾿Εν δὲ τοῖς
ψιλοῖς ἐάν ποτ ἀναγκασθῇ εἰς φανερὸν διὰ τὸ πλῆθος φεύγειν τρέχει
κατατείνας καὶ οὐ πηδᾷ Τὸ δὲ δρόμημα συνεχῶς ὥσπερ κυνός ἐστι
κατατεταμένονmiddot (Arist HA 629 b 12-20)
Ainda que muito forte a simbologia do leatildeo na Iliacuteada como o animal mais
intreacutepido dos que se encontram na obra eacute interessante tambeacutem notar que em alguns
siacutemiles de fuga o proacuteprio leatildeo o siacutembolo da coragem eacute usado para representar a fuga de
alguns heroacuteis No canto XI Aacutejax recua da seguinte maneira
Zeus pai de seu trono introduziu o medo em Aacutejax
E atocircnito ele estacou aos ombros laccedilou o escudo de sete camadas
E depois de ver uma multidatildeo fugiu semelhante a uma fera
Que se volta continuamente para traacutes alternando em breves passadas
Tal quando sobre um feroz leatildeo do curral
Dos bois afugentam catildees e pastores
E eles o impedem de arrebatar o melhor dos bois
Vigilantes por toda noite mas ele desejoso de carne
Avanccedila com zelo mas nada encontra pois dardos
Numerosos voam de corajosas matildeos em sua direccedilatildeo
E tochas acesas que teme ainda que sedento
E ao amanhecer retira-se com acircnimo aflito
Assim Aacutejax dos Troianos com o coraccedilatildeo inquieto
Afasta-se muito contrariado pois temia pelas naus dos Aqueus
Ζεὺς δὲ πατὴρ Αἴανθ ὑψίζυγος ἐν φόβον ὦρσεmiddot
στῆ δὲ ταφών ὄπιθεν δὲ σάκος βάλεν ἑπταβόειον
τρέσσε δὲ παπτήνας ἐφ ὁμίλου θηρὶ ἐοικὼς
ἐντροπαλιζόμενος ὀλίγον γόνυ γουνὸς ἀμείβων
ὡς δ αἴθωνα λέοντα βοῶν ἀπὸ μεσσαύλοιο
ἐσσεύαντο κύνες τε καὶ ἀνέρες ἀγροιῶται
οἵ τέ μιν οὐκ εἰῶσι βοῶν ἐκ πῖαρ ἑλέσθαι
πάννυχοι ἐγρήσσοντεςmiddot ὃ δὲ κρειῶν ἐρατίζων
ἰθύει ἀλλ οὔ τι πρήσσειmiddot θαμέες γὰρ ἄκοντες
ἀντίον ἀΐσσουσι θρασειάων ἀπὸ χειρῶν
καιόμεναί τε δεταί τάς τε τρεῖ ἐσσύμενός περmiddot
ἠῶθεν δ ἀπὸ νόσφιν ἔβη τετιηότι θυμῷmiddot
ὣς Αἴας τότ ἀπὸ Τρώων τετιημένος ἦτορ
ἤϊε πόλλ ἀέκωνmiddot περὶ γὰρ δίε νηυσὶν ᾿Αχαιῶν
(Il XI 544-557)
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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Diferente dos outros siacutemiles esse mais longo natildeo soacute caracteriza o recuo do heroacutei
em termos de movimentaccedilatildeo e comportamento mas tambeacutem em termos de iacutendices
psicoloacutegicos que abundam no siacutemile O leatildeo aqui ainda eacute visto como um animal corajoso
feroz sedento por carne em suma em sua simbologia completa Entretanto como a
situaccedilatildeo eacute de fuga e caacutelculo o comportamento animal descrito por Aristoacuteteles representa
bem a maneira como Aacutejax se encontra tanto em termos psicoloacutegicos quanto em situaccedilatildeo
Aacutejax recua foge mas sem a pressa dos covardes sua fuga eacute bem descrita pelo
comportamento do leatildeo que recua lentamente sempre se voltando para traacutes Ademais o
nuacutemero de inimigos na liccedila e os dardos em sua direccedilatildeo o forccedilam ao recuo
Quanto ao plano psicoloacutegico Aacutejax que em sua caracterizaccedilatildeo eacute visto sempre como
voluntarioso e corajoso torna-se temeroso por uma intervenccedilatildeo divina E o conflito
gerado por essas disposiccedilotildees psicoloacutegicas eacute bem expresso pelo comportamento calculado
do recuo do leatildeo Neste afastamento tanto o heroacutei quanto o leatildeo estatildeo com acircnimo aflito
e inquieto e por uacuteltimo Aacutejax deixa o campo de modo involuntaacuterio
A caracterizaccedilatildeo neste siacutemile eacute completa Ela cobre tanto a perspectiva de um
desenvolvimento da accedilatildeo quanto o conflito psicoloacutegico que ocorre com o heroacutei Natildeo se
trata aqui de um siacutemile curto em que teriacuteamos de projetar o comportamento animal para
a compreensatildeo da passagem mas de um siacutemile longo em que o desenvolvimento do
comportamento animal eacute tatildeo magistralmente descrito que podemos consideraacute-lo sem
exageros como o proacuteprio iniacutecio de toda ciecircncia empiacuterica encontrada quase quatro seacuteculos
depois em Aristoacuteteles
3 Conclusatildeo
O uso do siacutemile em Homero eacute extremamente complexo Aleacutem dos siacutemiles naturais
produzidos com as potecircncias da natureza haacute tambeacutem os siacutemiles animais que se tornam
muito impactantes sobretudo porque revelam natildeo soacute facetas de movimentaccedilatildeo mas
tambeacutem de caraacuteter que o animal comporta O mundo natural eacute usado por Homero com
maestria a ponto de produzir situaccedilotildees nos combates em que grande parte do que eacute
descrito jaacute eacute bem conhecido pela audiecircncia em contato com o mundo natural circundante
Hoje talvez para reconhecer a forccedila de seus siacutemiles nos seja preciso talvez aleacutem do
conhecimento do mundo arcaico grego um bom entendimento sobre a vida natural sem
o qual a complexidade das cenas na Iliacuteada pareceraacute meramente fantasiosas
REFEREcircNCIAS
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54 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326
DOI httpsdoiorg1012957principia201946513
OS PROFISSIONAIS DO SOBRENATURAL
MAacuteGOS GOacuteES E PHARMAKEUacuteS
Dulcileide V do Nascimento Braga (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO O presente artigo objetiva ao pressupor que as accedilotildees maacutegicas constituem
praacuteticas passiacuteveis de aprendizado apresentar a anaacutelise da estrutura vocabular dos termos
que classificam os profissionais da magia Busca-se tambeacutem a partir da tradiccedilatildeo miacutetico-
literaacuteria grega demonstrar que tais profissionais tecircm uma praacutetica registrada em diversos
periacuteodos da literatura grega e influenciaram accedilotildees que extrapolam o vieacutes temporal
PALAVRAS-CHAVE Teacutechne maacutegica Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes
THE SUPERNATURAL PROFESSIONALS
MAacuteGOS GOacuteES AND PHARMAKEUacuteS
ABSTRACT This article aims assuming that magical actions constitute practices that can
be learned to present the analysis of the vocabulary structure of the terms that classify
magic professionals It is also sought from the greek mythical-literary tradition to
demonstrate that these professionals have a practice recorded in several periods of greek
literature and influenced actions that go beyond the temporal bias
KEYWORDS Teacutechne magic Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes
Magia do grego mageiacutea segundo Tupet (1976 p X) eacute a praacutetica exercida atraveacutes
de palavras e gestos por um indiviacuteduo que deteacutem certos conhecimentos que o capacitam
a produzir resultados de toda ordem George Luck (1995 p 35) precisa essa definiccedilatildeo ao
afirmar que a magia eacute uma teacutecnica cuja crenccedila se baseia nos poderes localizados na alma
humana e no universo e que pretende impor a vontade humana sobre a natureza ou sobre
os seres humanos
Platatildeo em Leis XI 932e-933b jaacute enumera os principais procedimentos maacutegicos
no seacutec IV aC e a difiacutecil tarefa de analisar essa teacutecnica
Quanto aos malefiacutecios que uns podem causar aos outros por meio de drogas
(pharmaacutekois) jaacute tratamos dos de consequecircncias letais mas ainda natildeo falamos
dos incocircmodos provocados intencionalmente e com premeditaccedilatildeo por meio de
bebidas e alimentos ou com unguentos O difiacutecil na presente exposiccedilatildeo eacute que
haacute no gecircnero humano duas espeacutecies de envenenamento uma eacute a que acabamos
de nos referir e que consiste em causar dano ao corpo pela accedilatildeo natural de
outros corpos a outra por meio de sortileacutegios (magganeiacuteais) encantamentos
(epoidaicircs) e o que se denomina ligadura (katadeacutesesi) chega a persuadir aos
E-mail dulcinascimentobragagmailcom
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
56 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
que querem causar danos a terceiros que o conseguiratildeo com tal recurso como
tambeacutem convence a estes uacuteltimos que ningueacutem lhes pode ocasionar tanto mal
como as pessoas conhecedoras de artes maacutegicas O que possa haver de
verdadeiro em tudo isso natildeo eacute faacutecil conhecer nem depois de sabido deixar
aceitaacutevel para ningueacutem dada a desconfianccedila reinante nos espiacuteritos a respeito
de tais assuntos natildeo vale a pena procurar convencecirc-los sempre que
encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera ou em encruzilhadas ou
talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados de que natildeo devem dar a
menor importacircncia a essas praacuteticas pois acerca de tudo isto ningueacutem tecircm
opiniatildeo formada
Eacute relevante destacar que o conceito de pharmakeiacutea utilizado por Platatildeo natildeo se
restringe exclusivamente ao uso de um phaacutermakon (bebidas alimentos ou unguentos)
mas se prolonga atraveacutes de sortileacutegios encantamentos e ligaduras
Platatildeo ainda questiona a eficaacutecia dessas profissionais de magia cujas habilidades
eram difiacuteceis de se averiguar analisar ou compreender sendo a profissional julgada pela
eficiecircncia ou pelos danos causados por sua praacutetica
O fato de atribuir aos praticantes de magia um caraacuteter perigoso por conta do saber
que detinham e a necessidade de que essas praacuteticas fossem controladas por leis remetem-
nos aos diversos processos de impiedade sofridos por mulheres praticantes das teacutechnai
maacutegicas Dentre elas destacamos o nome de trecircs mulheres a hetaira Frinea de Thespis
que foi acusada pelo seu amante Euthias de utilizar lugares sagrados para a praacutetica de
atos iliacutecitos e por ter formado um thiacuteasos1 sem a autorizaccedilatildeo legal dos atenienses a
sacerdotisa Teoris de Lemos acusada de produzir phaacutermaka para curar a epilepsia e
ainda temos o processo sofrido pela sacerdotisa Ninos baseado nas mesmas acusaccedilotildees
direcionadas agraves duas mulheres citadas anteriormente
Tais atitudes eram consideradas desvios agrave ordem instituiacuteda pela poacutelis que
determinava que qualquer accedilatildeo envolvendo contato direto com uma divindade ou com os
mortos requereria a presenccedila de um sacerdote instituiacutedo pela cidade e responsaacutevel por
impedir qualquer praacutetica que pudesse contaminaacute-la de alguma maneira
Maria Regina Candido (2003 p 169) informa-nos sobre as praacuteticas dessas
mulheres
Acreditamos que Teoris de Lemos assim como Frinea de Thespis difundiam
a crenccedila na possibilidade de o homem efetuar de maneira direta a sua relaccedilatildeo
com as potecircncias sobrenaturais e controlar os processos mais complicados que
envolvem a vida como doenccedilas inimizades e maacute sorte de maneira eficaz e
segura Receitavam banhos infusotildees com ervas e oferendas agraves divindades
ctocircnicas estimulavam os praticantes a fazer incursotildees pelo mundo de seres
sobrenaturais como os mortos O mundo dos homens deixava de atender agraves
necessidades do cotidiano e a alternativa era solicitar auxiacutelio das potecircncias
sobrenaturais
Assim como Platatildeo Candido acredita que a puniccedilatildeo relacionada a estas praacuteticas e
a seus praticantes esteja baseada no resultado advindo das mesmas que nem sempre
acarretava proveito agravequele que solicitava um benefiacutecio maacutegico Portanto por temer a
extensatildeo do poder dessas praacuteticas os atenienses puniam seus praticantes na maioria dos
casos mulheres estrangeiras como uma forma de se precaverem
Tambeacutem salientamos que apesar de a praacutetica maacutegica ser em determinadas
circunstacircncias apontada como uma atividade marginal ou uma forma de corromper a
religiatildeo poliacuteade como mencionamos anteriormente os praticantes destas teacutechnai
1 Palavra utilizada para designar um grupo de pessoas que celebram um deus normalmente com festas
cantos e banquetes
Dulcileide V do Nascimento Braga
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 57
detinham um conhecimento e um poder cuja eficaacutecia seria sustentada por uma crenccedila
coletiva e por uma dependecircncia de uma ordem moral que buscava a autoproteccedilatildeo fato
que garantia a continuidade das diversas formas de magia em todas as classes da
sociedade helecircnica como afirma o texto de Luck (1995 p 42)
Pode a magia antiga se basear em ideias ldquoprimitivasrdquo mas a forma em que nos
foi transmitida natildeo era de nenhum modo primitiva Pelo contraacuterio a magia
nesse sentido existiu somente dentro de culturas altamente desenvolvidas e
constituiu uma parte importante delas Natildeo soacute as classes baixas os ignorantes
e incultos criam nela mas ateacute o final da Antiguidade os ldquointelectuaisrdquo
estiveram convencidos de que poderosas forccedilas sobrenaturais atuavam em
torno deles podendo ser controladas por certos meios
Em grego destacamos trecircs termos para designar os detentores das artes maacutegicas
maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
O nome mais comumente utilizado para designar a feiticeira eacute maacutegos cognato de
mageiacutea magia Segundo Pierre Chantraine (1984 v maacutegos) esta palavra constitui um
empreacutestimo iraniano e no plural maacutegoi designa uma das tribos dos Medos como narra
Herocircdoto I 101 ldquoDeioces unificou a naccedilatildeo dos Medos governando-a A Meacutedia era
composta de diferentes povos os Busos Paretacenos Estrucatos Arizantos Budios e os
Magosrdquo
Segundo ainda o relato de Heroacutedoto haacute entre os maacutegoi aqueles que tecircm a funccedilatildeo
de ser ldquointeacuterpretes de sonhosrdquo Podemos verificar esta atribuiccedilatildeo dos magos em Histoacuteria
I 107 Astiacuteages apoacutes ter um sonho solicitou aos magos inteacuterpretes de sonhos que
revelassem o seu significado em I 120 Astiacuteages para decidir a sorte de Ciro mandou
chamar os mesmos magos que anteriormente tinham interpretado o seu sonho em I 128
vemos isso quando Astiacuteages manda empalar os magos inteacuterpretes dos sonhos que o
haviam convencido a deixar Ciro partir No livro VII 37 haacute uma passagem que ratifica a
funccedilatildeo de inteacuterprete dos sonhos aos magos Nela Xerxes apoacutes ver um eclipse solar
acreditando ser um mau pressaacutegio pede aos seus magos que interpretem o fenocircmeno
Segundo Graf (1994 p 30) aleacutem de serem inteacuterpretes dos sonhos os maacutegoi seriam os
responsaacuteveis pelos sacrifiacutecios reais pelos ritos funeraacuterios e pela adivinhaccedilatildeo
O termo maacutegos parece ter adquirido com o advento da filosofia conotaccedilatildeo
negativa sendo entatildeo utilizado para estigmatizar opiniotildees e comportamentos
considerados socialmente desviados a julgar por Heraacuteclito frag 14 que associa maacutegoi
aos ldquovagabundos da noite bacantes mecircnades e aos mistosrdquo e acredita serem esses homens
merecedores de morte posto que praticam accedilotildees iacutempias Graf (1994 32) discute se esta
caracterizaccedilatildeo de Heraacuteclito reproduziria a atuaccedilatildeo dos maacutegoi pois se ela corresponder agrave
realidade este termo semanticamente poderaacute ganhar a conotaccedilatildeo dos termos aguacutertes e
maacutentis pedinte e adivinho utilizados por Platatildeo na Repuacuteblica II-364b ou ser
interpretada a partir da expressatildeo utilizada no papiro de Derveni profissional dos ritos
Com base nesta definiccedilatildeo poderiacuteamos afirmar que Heraacuteclito ao utilizar a expressatildeo
ldquovagabundos da noiterdquo estaria dizendo que os maacutegoi seriam especialistas de toda uma
seacuterie de ritos privados e secretos como nos afirma o proacuteprio Graf (1994 p 33) ldquoPara um
jocircnico do fim do periacuteodo arcaico o maacutegos era semelhante aos especialistas itinerantes
dos cultos privados homens agrave margem da sociedade ridicularizados por uns e
secretamente temidos por outrosrdquo
Outro termo utilizado para nomear o praticante da magia eacute goeacutes termo cognato
do verbo goaacuteo gemer lamentar-se e que inicialmente designava um cantor que proferia
um lamento ritual pelos mortos ou seja o goeacutes eacute aquele que ldquocombina o ecircxtase com um
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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lamento ritual e a cura ritual com a adivinhaccedilatildeordquo (GRAF 1994 p 35) e que manteacutem
uma relaccedilatildeo estreita com o mundo dos mortos
Formadas a partir da mesma raiz encontramos as palavras goeteiacutea magia assim
como goeacuteteuma procedimento maacutegico fascinaccedilatildeo Heroacutedoto (II 33) ao narrar a histoacuteria
de Etearco o amocircnio aplica o termo goacuteetes para informar-nos sobre a crenccedila por parte
dos nasamones de que os habitantes de uma cidade em que entraram eram feiticeiros e
em IV 105 discorre sobre os relatos que afirmam que todos os Neuros eram goeacutetes
Encontramos ainda o termo goacutees associado a epoidos cantor aquele que canta
palavras maacutegicas para curar por exemplo em Euriacutepides As Bacantes 234-235 em que
encontramos os dois termos na fala de Penteu para fazer referecircncia ao estrangeiro que
estaacute propagando o culto a Dioniso ldquoDizem que veio um forasteiro feiticeiro cantor (goacutees
epoidoacutes) da terra da Iacutediardquo
Em Platatildeo Leis 903b quando a personagem chamada Ateniense ao mencionar
que iraacute convencer algueacutem por meio de argumentos diz ldquoMas ainda precisamos
acrescentar algumas histoacuterias a fim de imobilizaacute-lo com o encantamento (epoidocircn) que
lhes eacute proacutepriordquo E da mesma maneira eacute associado a maacutegos no Elogio agrave Helena de
Goacutergias ao evocar o poder da arte goeacutetica que encanta persuade e transforma Essas
teacutecnicas associadas agrave magia segundo o sofista seriam teacutecnicas do engano pois
desvirtuariam a alma e a opiniatildeo com falsas ilusotildees Desse modo Goacutergias defende Helena
dizendo que ela foi viacutetima da persuasatildeo maacutegica de Paacuteris contra a qual natildeo haveria defesa
O terceiro nome eacute pharmakeuacutes ou pharmakoacutes e designa um preparador de drogas
feiticeiro ou por ser cognato de pharmakeuacuteo significa simplesmente aquele que daacute um
remeacutedio ou veneno a algueacutem ou aquele que realiza uma operaccedilatildeo maacutegica Haacute ainda o
termo pharmakiacutes -idos atribuiacutedo agrave mulher que prepara poccedilotildees ou agrave feiticeira Aristoacutefanes
em As Nuvens 749 utiliza esta palavra como qualificativo para a mulher A expressatildeo
gunaicircka pharmakiacuteda encontrada em Aristoacutefanes refere-se a uma feiticeira da Tessaacutelia
que fazia a lua baixar agrave noite prendendo-a em um espelho
Cabe-nos contudo falar um pouco mais da magia das palavras ou do
encantamento Como jaacute mencionamos o termo goeacutes tem sua funccedilatildeo e significado
associado ao termo epoideacute que revela a natureza maacutegica do emprego da palavra e traz em
sua composiccedilatildeo o termo aoideacute canto que por sua vez estaacute relacionado com o termo audeacute
voz humana O grego distingue a linguagem humana audeacute do termo phoneacute que tanto
pode representar a linguagem humana como o som produzido por um animal
Pierre Chantraine (v aeidocirc) assinala que o prefixo epi- destaca o valor maacutegico do
canto assim epoideacute significa ldquocanto ou palavra maacutegicardquo
Eacute notoacuterio entretanto que o canto faz parte da cultura grega seja atraveacutes do maior
aedo de todos os tempos Homero atraveacutes do teatro da vida privada ou da puacuteblica O que
diferencia portanto essas utilizaccedilotildees da arte maacutegica das goeteacutes A diferenccedila estaacute na
estrutura destes encantamentos na tonalidade com que as palavras eram pronunciadas na
junccedilatildeo de siacutelabas estranhas apresentadas como verdadeiras foacutermulas maacutegicas bem como
aos poderes e divindades invocadas Tal estrutura eacute apresentada no seguinte fragmento
ldquoFebo o que auxilia na adivinhaccedilatildeo vem contente filho de Leto arqueiro infaliacutevel
protetor do mal venha aqui neste momento Vem Vaticinador daacute-me teus oraacuteculos
durante a noite allala allala santalala talalardquo (PGM II)
As foacutermulas maacutegicas do ponto de vista formal portanto tinham uma estrutura
preacute-estabelecida (pronunciada e realizadas de uma determinada maneira) que consistem
em uma seacuterie de instruccedilotildees que foram transmitidas atraveacutes do processo de iniciaccedilatildeo Esse
processo de aprendizado pode ser no acircmbito familiar ou em lugares considerados
sagrados
Dulcileide V do Nascimento Braga
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Temos diversos registros de foacutermulas maacutegicas algumas por exemplo
denominadas eroacuteticas objetivam a realizaccedilatildeo do desejo de um solicitante e tecircm
basicamente a mesma estrutura Como exemplo cito o PGM IV 3
Que fulana me ame a mim fulano filho de cicrano que ela natildeo tenha relaccedilotildees
sexuais nem por frente nem por traacutes nem busque prazer com outro homem
somente comigo de modo que fulana natildeo possa beber nem comer nem amar
nem sofrer nem ter sauacutede que natildeo consiga dormir sem mim arrasta a fulana
pelos cabelos as entranhas sua alma em cada momento de sua vida ateacute que
venha ateacute mim e permaneccedila inseparavelmente unida a mim
Neste encantamento se invoca o espiacuterito de um morto ou de uma divindade
normalmente Tiacutefon Selene ou Heacutecate mas quando se trata de magia eroacutetica se invoca
especialmente a deusa Afrodite e seu filho Eros Essas praacuteticas satildeo acompanhadas de um
gesto do solicitante como por exemplo um suspiro diante da mulher desejada um beijo
na lacircmina que conteacutem o pedido ou a simples repeticcedilatildeo do nome de Afrodite
Teoacutecrito no Idiacutelio 2 com 166 versos demonstra-nos como essas foacutermulas eram
utilizadas ao narrar a histoacuteria de como Simeta executa um ritual maacutegico com o intuito de
reconquistar o amor de Deacutelfis um jovem atleta que a trocou por um novo amor Eis alguns
versos do poema
Trecircs vezes faccedilo uma libaccedilatildeo e trecircs vezes Soberana
Pronuncio estas palavras quer seja mulher quer seja homem
Que com ele dorme agora que um tatildeo grande esquecimento invada
Deacutelfis como aquele que ndash ao que dizem ndash fez Teseu esquecer um
Dia Ariadne de belas tranccedilas (43-47)
Essa ldquoteacutecnicardquo das palavras tambeacutem faz parte da tradiccedilatildeo de uma literatura meacutedica
pois aleacutem de apresentar vaacuterios deuses responsaacuteveis pela cura tinha um deus especiacutefico
para a medicina Ascleacutepio e um lugar de cura Epidauro Ascleacutepio tinha um poder de cura
muito grande acreditava-se que ele inclusive podia ressuscitar os mortos O filho de
Apolo curava a uns com as doces palavras da magia (contos poemas e muacutesica) a outros
oferecia poccedilotildees eficazes ou lhes aplicava ervas em torno de seus membros ou cortava o
mal com o ferro para devolver-lhes a sauacutede
A tradiccedilatildeo meacutedica incluiacutea uma mistura de curas que podiam genuinamente ser
observadas e uma medicina popular considerada maacutegica Uma parte dos que exerciam a
medicina maacutegica eram mulheres embora a maioria delas trabalhasse como parteiras
Os templos de Ascleacutepio foram encontrados em todo o mundo mediterracircneo
Nesses templos o processo de cura consistia mais em repouso massagem e uma dieta
modificada do que aquilo que poderiacuteamos chamar de medicina Um meacutetodo de cura que
se tornou conhecido foi a ldquoincubaccedilatildeordquo em que o doente dormia confinado no templo de
Ascleacutepio na esperanccedila de receber uma revelaccedilatildeo daquele deus por meio de sonho
Aqueles que haviam sido curados faziam contribuiccedilotildees especiais para os templos que
frequentemente incluiacuteam reproduccedilotildees de gesso de quaisquer partes de seus corpos que
tivessem sido curadas Estes eram colocados em exibiccedilatildeo como testemunhos do poder de
cura do deus
Um relato que corroborou esse processo foi o de Eacutelio Aristides orador e tambeacutem
um portador de doenccedila crocircnica que no seacuteculo da nossa era em seus Hieroigrave Loacutegoi nos daacute
uma visatildeo da necessidade que as pessoas tinham pela cura bem como os meacutetodos
empregados para esse fim Depois tentar vaacuterios procedimentos meacutedicos Aristides tornou-
se um devoto de Ascleacutepio As curas prescritas para ele nos sonhos incluiacuteam accedilotildees como
banhar-se em um rio agitado durante o inverno derramar lama em si mesmo antes de se
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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assentar no paacutetio do templo andar sem sapatos todo o inverno e fazer sangria de vaacuterias
partes do seu corpo
A teacutecnica maacutegica portanto ao longo da histoacuteria foi um recurso utilizado como
tentativa de controlar o mundo natural atraveacutes de forccedilas consideradas sobrenaturais Essa
teacutecnica era ensinada somente aos iniciados e envolviam a arte da adivinhaccedilatildeo o preparo
de feiticcedilos e poccedilotildees a realizaccedilatildeo de rituais e cerimocircnias bem como a maneira correta de
se invocar deuses e espiacuteritos Quando realizados dentro dos templos tais procedimentos
eram considerados parte da religiatildeo Quando realizados fora eram classificado como
magia
A ideia de inferioridade feminina que perpassa toda a histoacuteria natildeo tem registro de
quando comeccedilou Desde a Antiguidade temos concepccedilotildees como a de Pitaacutegoras que
relacionava a mulher ao lado negativo ao dizer que ldquoHaacute um princiacutepio bom que criou a
ordem a luz e o homem e um princiacutepio mau que criou o caos as trevas e a mulherrdquo
(PITAacuteGORAS apud BEAUVOIR 1997 p 6)
Os elos que ligaram a imagem da mulher ao obscuro ao caos e ao infortuacutenio
masculino foram delineados e reforccedilados por figuras arquetiacutepicas como Pandora Lilith
e a proacutepria Eva Da mesma maneira as goeteacutes foram chamadas de charlatatildees quando natildeo
obtinham o resultado desejado ao evocarem os deuses e tentarem por teacutecnicas diversas
atender agrave solicitaccedilatildeo de algueacutem que recorria agraves praacuteticas maacutegicas para resolver problemas
particulares Essas solicitaccedilotildees normalmente envolviam uma accedilatildeo que prejudicaria
algueacutem fato que serviu para atenuar a fama negativa das goeteacutes
Ainda hoje encontramos aspectos desse tipo de comportamento maacutegico presentes
nos procedimentos considerados maacutegico-religiosos ou na proacutepria literatura ficcional que
demonstram a forccedila da seleccedilatildeo vocabular e da sonoridade provocada pela repeticcedilatildeo de
palavras e desejos com o uacutenico objetivo de concretizar desejos nem sempre passiacuteveis de
serem expressos em outras circunstacircncias Este eacute o caso da poesia citada abaixo
A VOLTA DA MULHER MORENA Vinicius de Moraes
Meus amigos meus irmatildeos cegai os olhos da mulher morena
Que os olhos da mulher morena estatildeo me envolvendo
E estatildeo me despertando de noite Meus amigos meus irmatildeos cortai os laacutebios
da mulher morena Eles satildeo maduros e uacutemidos e inquietos
E sabem tirar a voluacutepia de todos os frios
Meus amigos meus irmatildeos e voacutes que amais a poesia da minha alma
Cortai os peitos da mulher morena
Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono
E trazem cores tristes para os meus olhos
Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes
Traze-me para o contato casto de tuas vestes
Salva-me dos braccedilos da mulher morena
Eles satildeo lassos ficam estendidos imoacuteveis ao longo de mim
Satildeo como raiacutezes recendendo resina fresca
Satildeo como dois silecircncios que me paralisam
Aventureira do Rio da Vida compra o meu corpo da mulher morena
Livra-me do seu ventre como a campina matinal
Livra-me do seu dorso como a aacutegua escorrendo fria
Branca avozinha dos caminhos reza para ir embora a mulher morena
Reza para murcharem as pernas da mulher morena
Reza para a velhice roer dentro da mulher morena
Que a mulher morena estaacute encurvando os meus ombros
E estaacute trazendo tosse maacute para o meu peito
Meus amigos meus irmatildeos e voacutes todos que guardais ainda meus uacuteltimos
cantos
Dai morte cruel agrave mulher morena
Dulcileide V do Nascimento Braga
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O texto de Viniacutecius dialoga com o texto de Platatildeo citado anteriormente em que
faz menccedilatildeo agraves bonequinhas de cera utilizadas para fazer magia A finalidade dessas
bonecas conhecidas posteriormente por bonecas de vodu era gradativamente extinguir
a funcionalidade de determinados oacutergatildeos (cegar calar impedir de andar roer por dentro)
ateacute provocar a morte ldquodaiacute morte cruel agrave mulher morenardquo
O princiacutepio ldquose natildeo eacute meu natildeo seraacute de mais ningueacutemrdquo estaacute impliacutecito em inuacutemeros
encantamentos contidos nos PGM e representa natildeo soacute o desejo daquelea que foi
abandonadoa de se vingar de quem oa abandonou como tambeacutem o desejo de se livrar
daquelea que emocionalmente lhe causa mal
A voz humana eacute portanto o instrumento que potencializa a forccedila do pensamento
concretizando-os atraveacutes das palavras
Portanto a palavra quer cantada pronunciada em forma de versos ou balbuciada
em forma de encantamentos ou foacutermulas invocatoacuterias faz parte do universo sonoro grego
como forma de perpetuar segredos e manifestar um poder
Ainda hoje tentamos aprender sobre esta teacutechne que capacitava o indiviacuteduo a
concretizar desejos entretanto esbarramos nas lacunas temporais miacuteticas e religiosas
cujas entrelinhas foram desfeitas com o passar dos anos e que intencionalmente ou natildeo
desabilitaram a humanidade a obter o desejado com a mesma constacircncia com que eram
obtidas no passado
Os ritos religiosos continuam a utilizar a magia das palavras mas algumas
palavras tornaram-se impronunciaacuteveis e permanecem trancafiadas nas prisotildees silenciosas
do descaso cabe portanto a noacutes pronunciaacute-las ou natildeo reconhecendo a influecircncia que os
profissionais da magia tiveram e tecircm nas accedilotildees atemporais denominadas sobrenaturais
REFEREcircNCIAS
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946515
A AGOGEacute ESPARTANA
Luciene de Lima Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem O
desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo deviam ter
medo de nada sendo resistentes aos ferimentos odiando qualquer demonstraccedilatildeo de
covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Cada espartano tinha de ser um soldado
perfeito e sua maior gloacuteria era morrer em batalha retornar derrotado jamais Desse modo
toda a sociedade e educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases
atribuiacutedas agraves matildees espartanas era ldquoespero que meu filho volte com o seu escudo ou
deitado sobre elerdquo Assim eacute que este artigo tem por escopo discorrer a respeito da agogeacute
espartana que era um tipo de educaccedilatildeo peculiar com fins extremamente belicosos
PALAVRAS-CHAVE Esparta agogeacute guerra Licurgo
THE SPARTAN AGOGEacute
ABSTRACT In Sparta courage was part of the formation of a manrsquos character The
development of courage was a Spartan obsession Spartans should not be afraid of
anything showing themselves resistant to wounds They hated any type of cowardice and
were extremely dedicated to the poacutelis Each Spartan male had to be a perfect soldier and
the ultimate glory was to die in battle to never come back defeated Given this Spartan
society and education was focused on war One famous sentence related to Spartan
mothers was ldquoI hope my son comes back with his shield - or on itrdquo Thus this article has
as its scope the discussion of the practices of Spartan agogeacute their very peculiar
education with extremely bellicose objectives
KEYWORDS Sparta agogeacute war Lycurgus
Esparta tem de pleno direito um lugar na histoacuteria da educaccedilatildeo A
criaccedilatildeo mais caracteriacutestica de Esparta eacute o seu estado e o Estado
representa aqui pela primeira vez uma forccedila educadora no mais vasto
sentido da palavra (Werner Jaeger)
E-mail oliveira-lluolcombr
A agogeacute espartana
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Esparta tambeacutem intitulada Lacedemocircnia era a principal cidade de uma regiatildeo
denominada Lacocircnia na regiatildeo do Peloponeso A cidade localizava-se agraves margens do rio
Eurotas cercada de montanhas a nordeste
Os primeiros invasores da regiatildeo foram os aqueus esses expulsaram os povos preacute-
helecircnicos que ali habitavam e fundaram a cidade de Lacedemocircnia
A migraccedilatildeo doacuterica eacute o uacuteltimo dos movimentos de povos possivelmente
originaacuterios da Europa Central que a partir da Peniacutensula Balcacircnica entraram na Greacutecia e
se misturaram com os povos de outras raccedilas mediterracircneas ali fixadas primitivamente
constituindo assim o povo helecircnico
Os doacuterios ao se apoderarem da maior parte do Peloponeso invadiram Creta e
foram os responsaacuteveis pela colonizaccedilatildeo de algumas ilhas Ciclaacutedicas e Espoacuteradas Os
espartanos satildeo considerados descendentes dos doacuterios1 esses tinham por caracteriacutestica
peculiar a belicosidade
A cidade de Esparta era conhecida por usufruir de uma eunomiacutea ldquouma boa
legislaccedilatildeordquo De acordo com a tradiccedilatildeo Licurgo apoacutes consultar o oraacuteculo de Delfos2 teria
dado agrave Esparta leis para a vida social e econocircmica citem-se por exemplo a proibiccedilatildeo do
comeacutercio e a utilizaccedilatildeo de metais preciosos que foram substituiacutedos por moedas de ferro
instituiu uma educaccedilatildeo rigorosa as refeiccedilotildees coletivas regulamentaccedilatildeo do casamento a
maneira de viver etc
Os espartanos eram considerados xenofoacutebicos Plutarco escreve que eles natildeo
tinham permissatildeo para sair da cidade pois poderiam trazer costumes estranhos e
desordenados para dentro da cidade Os estrangeiros que residiam em Esparta foram
expulsos com exceccedilatildeo daqueles que faziam algo de uacutetil para a cidade Aleacutem do mais natildeo
comercializavam com o estrangeiro nenhum navio de fora entrava no porto para ali
comercializar (PLUTARCO Licurgo XIV LVII In Vidas Paralelas)
Ora foi o historiador Heroacutedoto o primeiro a retratar Licurgo como o idealizador
da eunomiacutea se dedicando ldquoagraves coisas relacionadas com a guerrardquo (HERODOTO Histoacuteria
I) Na Antiguidade jaacute havia duacutevidas sobre a sua eacutepoca e ateacute mesmo sua existecircncia
Os espartanos ndash ao contraacuterio de outros grupos ndash natildeo desenvolveram relaccedilotildees
culturais e comerciais externas sua crescente populaccedilatildeo soacute encontrou um meio de
expandir-se pelas armas
Xenofonte inclusive indaga como Esparta uma das cidades menos povoadas
tornou-se a mais poderosa e famosa dentre toda a Heacutelade (JENOFONTE La Republica
de los Lacedemonios I 1-2)
O vocaacutebulo que os espartanos empregavam para designar ldquoeducaccedilatildeordquo era agogeacute
que proveacutem do verbo aacutego ldquotransporto conduzordquo Os filoacutesofos Platatildeo (PLATAtildeO Leis
1 O helenista Jaeger faz a seguinte ponderaccedilatildeo a respeito dos doacuterios ldquoa raccedila doacuterica ofereceu a Piacutendaro o
seu ideal de homem loiro de alta estirpe tal como era representado natildeo soacute o Menelau de Homero como
tambeacutem o heroacutei Aquiles e de um modo geral os ldquohelenos de loira cabeleirardquo da antiguidade heroica
(JAEGER 2001 p 111) 2 Esparta pelo vieacutes poliacutetico constituiacutea uma diarquia hereditaacuteria real Acredita-se que Licurgo fora
descendente de uma das famiacutelias reais de Esparta a euripocircntida O legislador tinha um irmatildeo
rei mas apoacutes a morte daquele Licurgo subiria ao trono poreacutem o seu irmatildeo havia deixado um
descendente ainda no ventre de sua esposa Leobotas O legislador foi entatildeo tutor de seu
sobrinho Preocupado com a situaccedilatildeo de Esparta jaacute que o sobrinho era uma crianccedila Licurgo
se dirigiu a Delfos para receber conselhos diga-se leis escritas a rheacutetra em relaccedilatildeo a Esparta
(HEROacuteDOTO Histoacuteria I LXV) Sabe-se muita coisa de Licurgo por meio de Plutarco em
Vida de Licurgo
Luciene de Lima Oliveira
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659d) e Aristoacuteteles (ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1321) tambeacutem se referem a agogeacute como
ldquoeducaccedilatildeordquo
Entrementes Marrou emprega o termo ldquoadestramentordquo para traduzir agogeacute e
chama a atenccedilatildeo para o fato de ser ldquouma condiccedilatildeo necessaacuteria senatildeo suficiente para o
exerciacutecio dos direitos ciacutevicosrdquo (MARROU 1966 p 41) O helenista considera que a
educaccedilatildeo em Esparta possui natildeo soacute um lugar especial na histoacuteria da educaccedilatildeo como
tambeacutem na cultura grega (Op cit p 33)
Todos os cidadatildeos espartanos tinham uma participaccedilatildeo ativa na educaccedilatildeo militar
constituindo uma casta aristocraacutetica a priori lembrando a educaccedilatildeo da antiga nobreza
grega Natildeo obstante foi mais tarde estendida agravequeles que natildeo faziam parte da nobreza
Jaeger expotildee que mesmo que Licurgo tenha realmente existido e criado a rheacutetra
ldquoleis escritasrdquo que o poeta Tirteu (4W 1-10) bem a conhecia jaacute no seacuteculo VII aC natildeo
adiantaria muito saber a respeito da origem da educaccedilatildeo espartana conforme Xenofonte
a descreve (JAEGER 2001 p 114)
O pesquisador considera tambeacutem a agogeacute como ldquoo adestramento espartanordquo que
nada mais era do que o ideal do movimento educativo do seacuteculo IV aC (Op cit p 115)
O helenista destaca que a crenccedila de que a educaccedilatildeo espartana era uma preparaccedilatildeo militar
tinha sua origem na Poliacutetica de Aristoacuteteles Platatildeo igualmente jaacute havia definido essa
ideia quando relata nas suas Leis o espiacuterito do Estado de Licurgo (Op cit p 110)
As crianccedilas futuros guerreiros de Esparta eram ldquocriadasrdquo anatropheacute por seus
pais em suas casas ateacute os sete anos de idade depois essa tarefa era assumida pelo
governo sendo treinados para a obediecircncia em situaccedilotildees penosas e difiacuteceis3
Desse modo Licurgo natildeo colocou a educaccedilatildeo nas matildeos nem de mercenaacuterios nem
de servos comprados os pais natildeo poderiam educar seus filhos a seu bel prazer Quando
completavam sete anos eram divididos em grupos a fim de serem educados juntos e
brincassem entre si aprender e estudar uns com os outros Aquele que sobressaiacutesse e fosse
mais valente em combate se tornaria o liacuteder de todo o grupo os outros deveriam obedecer
as suas ordens O legislador considerava a educaccedilatildeo das crianccedilas como a coisa mais bela
que um legislador pudesse estabelecer (PLUTARCO Licurgo XXV XXXIII In Vidas
Paralelas)
Dos sete aos quinze anos eram instruiacutedos nas letras e nos caacutelculos e naturalmente
nos hinos do poeta Tirteu que ressaltavam a bravura e a coragem destemida
Na etapa final entre dezesseis e vinte anos quando denominados de eireacuten um
pouco antes de entrarem no serviccedilo da poacutelis eram treinados a manusear as armas na luta
com lanccedilas e espadas no arco e flecha Com isso a carga dos exerciacutecios e as operaccedilotildees
militares simuladas nas montanhas ao redor da poacutelis eram aumentadas
Plutarco daacute o seguinte testemunho
Quanto agraves letras aprendiam somente o necessaacuterio e em suma todo o
aprendizado consistia em bem obedecer suportar o trabalho e obter a vitoacuteria
em combate Por essa razatildeo agrave medida que avanccedilavam em idade aumentavam-
lhes tambeacutem os exerciacutecios corporais raspavam-lhes os
cabelos faziam-nos andar descalccedilos e os constrangiam a brincar juntos a maior
parte do tempo inteiramente nus depois quando chegavam agrave idade de doze
anos natildeo mais usavam saios daiacute por diante pois todos os anos lhes davam
somente uma tuacutenica simples o que era causa de andarem sempre sujos e
3 Plutarco daacute testemunho que estrangeiros se dirigiam ateacute a Lacocircnia para contratarem amas para criarem
seus filhos (PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)
A agogeacute espartana
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ensebados como aqueles que natildeo se lavavam nem se untavam senatildeo em certos
dias do ano quando os faziam gozar um pouco dessa doccedilura Deitavam e
dormiam juntos sobre enxergas que eles proacuteprios fabricavam com pontas dos
juncos e caniccedilos que cresciam no rio Eurotas os quais eles proacuteprios deviam ir
colher e quebrar somente com as matildeos sem nenhuma ferramenta mas no
inverno ajuntavam a isso e misturavam no meio o que se chama Lycophanos
porque parece que essa mateacuteria tem em si um pouco de calor (PLUTARCO
Licurgo XXIV In Vidas Paralelas)
A agogeacute propriamente dita se iniciava aos sete anos e finalizava ateacute os vinte anos
compreendendo portanto um periacuteodo de treze anos Havia a supervisatildeo de um
paidonoacutemos uma espeacutecie de magistrado especial
Marrou oferece a seguinte divisatildeo da agogeacute agrupados em trecircs ciclos (MARROU
1966 p 42)
Oitavo ano ao deacutecimo primeiro ano
a) rhobiacutedas (termo obscuro)
b) promikkizoacutemenos (meninote)
c) mikki(khi)zoacutemenos (menino)
Deacutecimo segundo ano ao deacutecimo quinto ano
a) pratopaacutempais (rapaz jaacute maduro de primeiro ano)
b) hatropaacutempais (rapaz jaacute maduro de segundo ano)
c) melleiacuteren (futuro irene)
d) melleiacuteren (irene de segundo ano)
Deacutecimo sexto ano ao vigeacutesimo ano
a) eireacuten de primeiro ano
b) eireacuten de segundo ano
c) eireacuten de terceiro ano
d) eireacuten de quarto ano
e) proteicircras (irene-chefe)
O historiador francecircs pontua que os meninos espartanos eram divididos em
unidades (iacutelai ou ageacutelai) comandadas pelos jovens maiores os proteicircrai de vinte anos
que eram os mais velhos dentre os irenes (Op cit p 43)
Plutarco lembra que os espartanos ldquonatildeo usam de muita linguagemrdquo eram
lacocircnicos ldquopessoas de poucas palavrasrdquo como resultado natildeo se expressavam com
propriedade mas nada os impedia de serem bem compreendidos pelos ouvintes O
bioacutegrafo sublinha que o proacuteprio Licurgo era breve no falar Interessante destacar que era
proibido entrar em Esparta algum retoacuterico para ensinar a arte da persuasatildeo ao povo Natildeo
obstante os espartanos eram exiacutemios compositores de belos cacircnticos em que incitavam
a coragem (PLUTARCO Licurgo XIV XL XLIV In Vidas Paralelas)
Quando estavam reunidos em Conselho os cidadatildeos espartanos natildeo poderiam
deliberar indagar seus superiores muito menos apresentar alguma opiniatildeo lhes era
permitido somente aprovar ou reprovar os informes propostos pelos reis ou senadores
(Op cit X)
O futuro guerreiro tinha de ter por haacutebitos a modeacutestia andar nas ruas com as
matildeos dentro do manto e caminhar em silecircncio sem dirigir o olhar a nenhum lugar apenas
olhando em direccedilatildeo a seus proacuteprios peacutes O historiador Xenofonte compara o jovem
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espartano que anda em silecircncio e de olhos baixos a uma estaacutetua de virgem
(JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)
Entre vinte e trinta anos os espartanos eram obrigados a se casar mas a vida
familiar natildeo era lhes permitida soacute depois dos trinta podiam deixar de dormir nos
acampamentos militares
A fim de dotar de coragem os seus infantes em Esparta havia a kryptiacutea um
ldquoesquadratildeo de extermiacuteniordquo que estimulava os jovens selecionados a caccedilarem sozinhos ou
em grupos os hilotas ou seja os escravos que por um acaso andassem desgarrados ou
que de alguma forma representassem pelo seu vigor fiacutesico uma ameaccedila agrave seguranccedila da
poacutelis Os hilotas quando localizados eram vitimados pela espada ou pela lanccedila armas
que o grupo de jovens sempre trazia consigo (PLUTARCO Licurgo LVIII In Vidas
Paralelas)
Os jovens espartanos estavam sempre forccedilando seus corpos ao limite cultivando
a excelecircncia da forccedila fiacutesica Aristoacuteteles destaca que de entre as cidades que mais se
preocupavam com a educaccedilatildeo infantil a maioria procurava aperfeiccediloaacute-la por meio de uma
disposiccedilatildeo atleacutetica O filoacutesofo sublinha que os espartanos davam para os futuros
guerreiros trabalhos aacuterduos como se essa atitude fosse vista como adequada para o culto
da bravura (ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1338b 10-15)
O estagirita ressalta que natildeo eacute contra a ginaacutestica mas deve-se praticaacute-la com
moderaccedilatildeo ateacute a adolescecircncia evitando exerciacutecios forccedilosos pois podem resultar em
prejuiacutezos para o corpo Daacute como exemplo que de entre os vencedores dos jogos
Oliacutempicos tem apenas dois ou trecircs espartanos vitoriosos Acredita que isso se daacute ao fato
de terem sido sujeitos desde crianccedila a treinos fiacutesicos extremos que acabaram por exaurir
suas forccedilas (Op cit II 1338b 35-40 1339a 1-5)
Aristoacuteteles sublinha que toda a organizaccedilatildeo legislativa dos espartanos tinha como
objetivo uma forma de virtude o valor guerreiro uma vez que eacute uacutetil para dominar Como
resultado disso o vigor e a forccedila dos espartanos foram preservados enquanto estiveram
em guerra mas houve um decliacutenio a partir do momento que alcanccedilaram a supremacia Na
verdade natildeo sabiam viver em paz aleacutem do mais natildeo haviam se exercitado em outra
disciplina superior agrave arte da guerra (Op cit II 1271b 1-10)
Jaeger sustenta que na vida dos espartanos por meio de uma educaccedilatildeo
diferenciada percebe-se um ideal de educaccedilatildeo anaacutelogo ao que Platatildeo propotildee na
Repuacuteblica A propoacutesito Platatildeo e outros teoacutericos da educaccedilatildeo posteriores tiveram Esparta
por paradigma em muitos aspectos (JAEGER 2001 p 112)
A necessidade de imposiccedilatildeo dos espartanos sobre a grande maioria de hilotas
(escravos que natildeo possuiacuteam direito algum) que a qualquer momento poderiam se
rebelar teve muita importacircncia na formaccedilatildeo da agogeacute espartana
Ora com as muitas conquistas espartanas havia sempre a iminecircncia de uma
revolta por parte dos povos conquistados Eacute fato que os povos conquistados constituiacuteam
em maior nuacutemero do que os conquistadores espartanos
Acredita-se que no final do seacuteculo VI aC depois da conquista da Messecircnia o
estado espartano completou sua organizaccedilatildeo transformando-se em um verdadeiro
ldquoacampamento militarrdquo permanente
Os resquiacutecios arqueoloacutegicos atestam que ateacute o seacuteculo VI aC Esparta era
dominada por uma aristocracia de grandes proprietaacuterios Devido agraves duas grandes guerras
pela conquista da Messecircnia houve um aumento consideraacutevel daqueles que poderiam
participar da funccedilatildeo guerreira e que se beneficiaram pela distribuiccedilatildeo de lotes de cleroacutei
A agogeacute espartana
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da regiatildeo conquistada Por outro lado os messecircnios foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de
hilotas A respeito da segunda guerra da Messecircnia4 Mosseacute escreve
Esparta parece ter se fechado em si mesma com a decadecircncia do artesanato e
o desaparecimento do uso da moeda de prata Diante da massa de populaccedilotildees
dependentes (hilotas da Lacocircnia e da Messecircnia periecos da Lacocircnia motacos
neodamodos etc) a classe guerreira dos homoioiacute dos semelhantes formada
pelo conjunto dos cidadatildeos espartanos passa a ser um grupo privilegiado que
vive recluso em perpeacutetuo estado de defesa Essa eacute a origem da vida austera que
tanto impressionava seus contemporacircneos e permitia a Esparta desempenhar
papel preponderante no mundo grego (MOSSEacute 2004 p 121) Com efeito
muitas disposiccedilotildees referentes agrave educaccedilatildeo e ao casamento natildeo deixam de evocar
os programas educativos elaborados por Platatildeo na Repuacuteblica e nas Leis Platatildeo
teria tomado o modelo espartano como inspiraccedilatildeo ou nos seacuteculos seguintes
esse modelo teria sido construiacutedo a partir das disposiccedilotildees imaginadas por
Platatildeo para suas cidades ideais Essa eacute uma pergunta de resposta difiacutecil O que
eacute inquestionaacutevel eacute o caraacuteter peculiar da educaccedilatildeo espartana essa agogeacute que
espantava os atenienses da eacutepoca claacutessica especialmente na medida em que
tambeacutem atingia as mulheres (Op cit p 189)
Ressalte-se que a guerra eacute um dos fenocircmenos a ser evitado mas que
frequentemente ocorre nas sociedades humanas Em O Homem Grego obra organizada
por Vernant o ensaio de Garlan denominado ldquoO Homem e a Guerrardquo eacute relevante pois
de acordo com Garlan embora o homem grego ldquonatildeo pudesse ser definido como algueacutem
que gosta da violecircncia pela violecircnciardquo isto eacute como um homo militaris muitos satildeo os
conflitos em que eles se envolveram sobretudo na eacutepoca arcaica e claacutessica Para Garlan
eacute ldquocomo se a paz fosse desde o primeiro momento considerada precaacuteria ou mesmo
concebida como uma espeacutecie de treacutegua prolongadardquo (GARLAN apud VERNANT 1994
pp 49-50)
Em uma sociedade predominantemente guerreira como a espartana a covardia de
um guerreiro era vista com repugnacircncia assim a desonra em Esparta acompanhava os
covardes sendo preferiacutevel a morte a uma vida infame e desonrosa Eacute um guerreiro que
natildeo merecia nenhuma timeacute ldquohonrardquo pois tem como aliados a atimiacutee ldquodesonrardquo e a
kakoacutetes ldquocovardiardquo Consequentemente este homem eacute algueacutem sem aidoacutes ou seja
algueacutem que natildeo eacute digno ldquode respeitordquo ldquode consideraccedilatildeordquo Haacute pois uma conexatildeo clara
entre aidoacutes ldquorespeitordquo e timeacute ldquohonrardquo na sociedade espartana
O binocircmio aidoacutes ldquorespeitordquo e aiskhryacutene ldquovergonhardquo satildeo vocaacutebulos que estatildeo
presentes no estatuto ciacutevico de Esparta como pontua Nicole Loraux (LORAUX 1989 p
82)
O desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo
poderiam ter medo de nada deveriam ser resistentes aos ferimentos odiando qualquer
4 Houve duas guerras entre Messecircnia e Esparta Na primeira os espartanos sob a lideranccedila do rei
Theopompo foram vencedores Os messecircnios eram comandados por Aristomenes Segundo Heroacutedoto
(HEROacuteDOTO Histoacuteria VIII 1312) o rei Theopompo pertencia agrave oitava geraccedilatildeo antes de Leoticidas
que governou de 491 a 469 aC Depois de cinquenta anos de opressatildeo os messecircnios se revoltaram com
a ajuda de aliados de Argos Arcaacutedia e Pisa Essa rebeliatildeo eacute conhecida como Segunda Guerra da
Messecircnia Campbell afirma que eacute difiacutecil estabelecer a cronologia das duas guerras (CAMPBELL 1967
p 169) Costuma-se contudo fixar o periacuteodo da primeira guerra em torno da segunda metade do seacuteculo
VIII aC mais precisamente entre 735 e 715 aC e a segunda guerra que teria durado aproximadamente
vinte e dois anos na segunda metade do seacuteculo VII aC por volta de 640-650 aC
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demonstraccedilatildeo de covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Toda a sociedade e
educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases atribuiacutedas agraves matildees
espartanas era ldquoespero que o meu filho volte com o seu escudo ou deitado sobre elerdquo
Cada espartano era formado para ser um soldado perfeito e sua maior gloacuteria era
morrer em batalha retornar derrotado jamais Digno de nota satildeo os versos tirteanos
ldquoLutemos com ardor por esta terra e pelos filhos morramos sem pouparmos nossas
vidasrdquo (10 W 13-14)
Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem A
propoacutesito Platatildeo era tambeacutem a favor da valentia de um guerreiro no campo de batalha
(PLATAtildeO Repuacuteblica 468e)
Os dois primeiros versos do fragmento 10W de Tirteu pontua dessa mentalidade
de morrer pela poacutelis ldquoeacute belo morrer caindo entre os combatentes das primeiras filas um
homem valente ao combater por sua terrardquo (10W 1-2)
A morte eacute bela quando eacute a de um heroacutei que morre pela cidade Esta ideia daacute agrave
morte o sentido de um ldquosacrifiacuteciordquo do proacuteprio cidadatildeo em prol de um bem mais alto ldquoa
morte gloriosardquo No mesmo fragmento aliaacutes o poeta contrasta a morte gloriosa no campo
de batalha com a vida desventurada e errante do homem que natildeo cumpriu na guerra seus
direitos de cidadatildeo e se viu na necessidade de deixar a cidade (10W 9-12)
A linguagem de Tirteu eacute em grande parte herdeira de tradiccedilatildeo eacutepica De um modo
geral as suas elegias demonstram um amplo conhecimento do vocabulaacuterio da Iliacuteada e da
Odisseia quando descreve a luta sangrenta e o heroiacutesmo guerreiro O ideal espartano eacute
proacuteximo da epopeia no que diz respeito agrave bravura apesar de pertencerem a tempos
literaacuterios diferentes
Jaeger destaca que os versos tirteanos eacute o primeiro testemunho do ideal poliacutetico e
guerreiro tendo mais adiante a sua realizaccedilatildeo na totalidade da educaccedilatildeo espartana ldquoos
seus poemas deixam ver claramente que a educaccedilatildeo espartana tal como as eacutepocas
seguintes a conheceram natildeo era uma coisa acabada mas estava em processo de
formaccedilatildeordquo (JAEGER 2001 p 115)
Qualquer fraqueza demonstrada era vista como pusilanimidade algo
veementemente repelido do seio daquela sociedade
Natildeo comeceis a fuga vergonhosa nem o medo
mas tornai grande e ardoroso o coraccedilatildeo no peito
natildeo ameis a vida ao combaterdes contra homens (10 W 16-18)
O modo de vida era regulamentado em funccedilatildeo das necessidades do Estado e
tinham consciecircncia de natildeo pertencerem a si proacuteprios mas agrave poacutelis
Em suma estimavam todos que natildeo tinham nascido para servirem a si mesmos
antes para servir o paiacutes e portanto se outra coisa natildeo lhes era recomendada
continuavam sempre a ir ver o que faziam os meninos e a ensinar-lhes alguma
coisa que resultasse em utilidade puacuteblica ou ainda a aprender eles proacuteprios
com os que eram mais idosos do que eles (PLUTARCO Licurgo LI In
Vidas Paralelas)
Licurgo teria imposto que os espartanos tivessem uma vida de austeridade por
exemplo diz-se que eram obrigados a fazerem as refeiccedilotildees em comum em torno de um
caldo negro (PLUTARCO Licurgo XXI In Vidas Paralelas)
Plutarco daacute testemunho dessa coletividade
A agogeacute espartana
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Em suma acostumou os cidadatildeos a natildeo quererem e natildeo poder jamais viver soacutes
antes serem por assim dizer colados e incorporados uns com os outros e a se
acharem sempre juntos como as abelhas em torno dos superiores saindo de
si mesmos quase por um arrebatamento de amor para com o paiacutes e de desejo
de honra para servir inteiramente ao bem da coisa puacuteblica (Op cit LIV In
Vidas Paralelas)
Eacute bom lembrar que Licurgo ordenou que os espartanos fizessem as mesmas
refeiccedilotildees juntos era proibido se alimentarem agrave parte e em particular em grandes
banquetes (Op cit XV In Vidas Paralelas)
Conveacutem citar Aristoacuteteles ldquoacreditamos que a amizade eacute o maior dos bens para as
cidades porquanto pode ser o melhor meio de evitar revoltasrdquo (ARISTOacuteTELES Poliacutetica
II 1262b 7-8)
O estagirita faz uma criacutetica a respeito das refeiccedilotildees comuns intituladas de phidiacutetia
Para o filoacutesofo essas refeiccedilotildees deveriam ser pagas pelo tesouro puacuteblico tal qual em Creta
Entretanto em Esparta os cidadatildeos tinham de fazer uma contribuiccedilatildeo ateacute os pobres que
tinham dificuldades de arrumar dinheiro para essas refeiccedilotildees O objetivo de Licurgo era
que essas refeiccedilotildees fossem democraacuteticas ldquoa maneira espartana tradicional de fixar o
limiar da cidadania consiste em privar de participaccedilatildeo o que natildeo pode pagar a taxa das
refeiccedilotildees comunsrdquo (Op cit II 1271a 26-30)
De acordo com o historiador Xenofonte nas accedilotildees de guerra os lacedemocircnios
(espartanos) usavam traje vermelho para que natildeo se percebessem as manchas de sangue
Se morressem em combate eram enterrados com essas tuacutenicas (JENOFONTE La
Republica de los Lacedemonios)5
Na agogeacute espartana a sophrosyacutene (temperanccedila moderaccedilatildeo autocontrole) tem um
caraacuteter social sendo um comportamento imposto regulamentado marcado pelo
comedimento que o jovem deve observar em todas as circunstacircncias comedimento em
seu andar em seu olhar em suas expressotildees comedimento diante das mulheres em face
dos mais velhos comedimento aos prazeres agrave bebida
Desse modo o futuro guerreiro era exercitado em dominar seus extintos Na
verdade a agogeacute era precisamente destinada a experimentar esse poder de domiacutenio de
si A sophrosyacutene submete assim cada indiviacuteduo em suas relaccedilotildees com o proacuteximo em
contraste com a hyacutebris a ldquodesmedidardquo a ldquotransgressatildeordquo
O ideal da sophrosyacutene era o nada em excesso haacute uma tendecircncia na qual a
sophrosyacutene e a hyacutebris se encarnam respectivamente nos velhos e nos jovens (ideia que
seraacute mais clara nos traacutegicos)
A bela morte espartana deve ter ligaccedilatildeo com a cidadania ou melhor um criteacuterio
de cidadania sendo uma manifestaccedilatildeo ciacutevica (12W 18 34) Uma das diferenccedilas mais
acentuadas entre o mundo de Tirteu e dos poemas homeacutericos estaacute nas relaccedilotildees do
indiviacuteduo com a comunidade pois os guerreiros de Homero lutam pela gloacuteria individual
enquanto os heroacuteis de Tirteu combatem pela comunidade por suas famiacutelias e
dependentes Assinale-se que haacute na Iliacuteada XV 494-9 um episoacutedio em que Heitor estaacute
claramente lutando pela sobrevivecircncia de Troia
5 Para Jaeger a Constituiccedilatildeo (Repuacuteblica) dos Lacedemocircnios de Xenofonte eacute resultado do romantismo ldquomeio
filosoacutefico meio poliacutetico do seacuteculo IV aC o qual via no Estado espartano uma espeacutecie de revelaccedilatildeo
poliacutetica primordialrdquo (JAEGER 2001 p 109)
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A cidade espartana condena o ato de bravura de um soacute combater e permanecer
corajosamente no seu lugar na falange natildeo ceder agrave vontade de fugir encorajar seu
companheiro de linha eacute um bem comum para a cidade e para todo o povo
Heroacutedoto disserta a respeito do espartano Aristodamos que estava entre os
trezentos lacedemocircnios que tinham defendido as Termoacutepilas ele foi o uacutenico sobrevivente
mas preocupado em livrar-se do oproacutebio que os espartanos infligiram a essa
sobrevivecircncia o guerreiro saiu de seu posto do seu lugar na falange e procurou e
encontrou a morte em Plateia ao realizar faccedilanhas extraordinaacuterias (HEROacuteDOTO
Histoacuteria IX 71)
Aleacutem do exemplo de Aristodamos o historiador daacute testemunho de outro episoacutedio
nas Termoacutepilas em que os combatentes saindo de seus postos lutavam de maneira furiosa
em torno do corpo de Leocircnidas Quando as espadas dos espartanos foram quebradas eles
se defenderam com as matildeos e os dentes (Op cit VII 225) em um estado de furor
belicoso que se assemelhava aos heroacuteis homeacutericos Diomedes e Aquiles Os espartanos
abandonaram a sophrosyacutene e estavam claramente em estado de lyacutessa o que a cidade natildeo
tolerava
Todavia apesar de sua valentia os espartanos natildeo lhe concederam as honras
fuacutenebres devidas aos melhores isto eacute recusaram-lhe a aristeacuteia porque violara a lei de
permanecer em seu lugar na falange Possuiacutedo pela lyacutessa por um furor guerreiro
combateu furiosamente fora de seu posto
A virtude guerreira natildeo pertence agrave ordem do thymoacutes do impulso e sim da
sophrosyacutene a temperanccedila um domiacutenio muito grande para que o guerreiro pudesse refrear
seus impulsos e natildeo perturbasse a ordem da formaccedilatildeo em falange
A eacutetica militar espartana proiacutebe o estado de furor de lyacutessa Vernant destaca que a
cidade rejeita atitudes tradicionais da aristocracia que tem por costume a exaltaccedilatildeo do
prestiacutegio do poder dos indiviacuteduos e de colocaacute-los acima do comum satildeo considerados
como um descomedimento uma hyacutebris de igual modo o furor guerreiro e a busca no
combate de uma gloacuteria particular (VERNANT 2002 p 69)
Ateacute os sessenta anos os espartanos estavam sujeitos a participar das guerras
pertenciam ao Estado ate agrave morte As moccedilas natildeo eram tratadas de modo diverso acima
da famiacutelia vinha a poacutelis
Xenofonte destaca que Licurgo ordenou que o sexo feminino exercitasse tanto
quanto o masculino A mulher espartana tambeacutem tinha uma formaccedilatildeo regulamentada
cuja muacutesica a danccedila e o canto natildeo possuiacuteam tanta importacircncia quanto a ginaacutestica e o
esporte (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios 1 4)
As espartanas estavam a serviccedilo da cidade quando solteiras praticavam
exerciacutecios que a tornavam forte e saudaacutevel a fim de que seus corpos se tornassem riacutegidos
ao se exercitarem havia exerciacutecios de correr de lutar de jogar a barra e de lanccedilar o dardo
com o objetivo de gerarem filhos igualmente robustos e para suportarem as dores do
parto (PLUTARCO Licurgo XXV In Vidas Paralelas)
Havia a ideia entre os homens de que pai e matildee fortes gerariam igualmente filhos
mais vigorosos Por isso quando casada a missatildeo da mulher era dar ao Estado filhos
fortes grandes guerreiros e bons cidadatildeos Percebe-se que haacute uma preocupaccedilatildeo de
eugenia dentro da sociedade espartana
Os receacutem-nascidos eram observados e se constatada qualquer imperfeiccedilatildeo essas
crianccedilas consideradas ldquodefeituosasrdquo que tivessem qualquer tipo de doenccedila ou
deformidade eram sumariamente assassinadas sendo atiradas de um precipiacutecio Esses
A agogeacute espartana
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receacutem-nascidos natildeo estariam prontos para defender a cidade-estado e consequentemente
natildeo seriam bons guerreiros na fase adulta6
Entrementes depois que a crianccedila nascia [] mas se lhes parecia feia
disforme ou franzina mandavam atiraacute-la num precipiacutecio a que vulgarmente se
dava o nome de Apothetes isto eacute depositoacuterios pois tinham a opiniatildeo de que
natildeo era expediente nem para a crianccedila nem para a coisa puacuteblica que ela
vivesse visto como desde o nascimento natildeo se mostrava bem constituiacuteda para
ser forte satilde e rija durante toda a vida E por esse motivo as proacuteprias mulheres
que as governavam natildeo as lavavam com aacutegua simples como se faz por toda
parte mas com uma mistura de aacutegua e vinho e por esse meio experimentavam
se a compleiccedilatildeo e a tecircmpera de seus corpos era boa ou maacute porque dizem eles
que as crianccedilas sujeitas agrave epilepsia ou entatildeo catarrosas e doentias natildeo podem
resistir nem tolerar esse banho de vinho mas definham e caem em langor e
ao contraacuterio as que tecircm sauacutede se tornam mais rijas e mais fortes
(PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)
Aristoacuteteles sublinha que Licurgo com o objetivo de fazer com que os espartanos
fossem numerosos encorajava-os a terem o maior nuacutemero possiacutevel de filhos haacute a lei de
que o pai de trecircs filhos estaacute isento do serviccedilo militar e o de quatro livre de impostos
(ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1270b 1-5)
A renomada helenista Claude Mosseacute infere que seria interessante acreditar que
Esparta passou por uma seacuterie de etapas entre a adoccedilatildeo da falange hopliacutetica seacuteculo VII
aC e o ldquofechamento da cidade em si mesmardquo iniacutecio seacuteculo IV aC Aleacutem do mais a
rheacutetra que fora atribuiacuteda a um possiacutevel legislador Licurgo pode ter sido resultado de
uma possiacutevel abertura da falange aos membros do decircmos cuja participaccedilatildeo nas tomadas
de decisatildeo era reconhecida Em relaccedilatildeo agrave partilha de terras pode ter acontecido depois
do teacutermino da segunda guerra da Messecircnia (uacuteltimo quarto do seacuteculo VII aC) e a agogeacute
e o militarismo da cidade podem ter ocorridos no princiacutepio do seacuteculo VI aC tendo por
principal objetivo a defesa da cidade-estado espartana contra os povos da Lacocircnia e
Messecircnia que foram escravizados
A Esparta do seacuteculo VII aC estaacute empenhada em um movimento que leva as
aristocracias das diversas cidades ao luxo Depois a ruptura se daacute entre o final do seacuteculo
VII aC e o iniacutecio do VI aC concentra-se em si mesma repudiando a ostentaccedilatildeo da
riqueza proibindo o uso dos metais preciosos depois a moeda de ouro e de prata (o
dinheiro era feito de um ferro de maacute qualidade que natildeo deveria ser fundido em grandes
quantidades) permanece fora das correntes intelectuais fecha-se a tudo o que eacute
intercacircmbio com o estrangeiro comeacutercio atividade artesanal voltam-se sua preocupaccedilatildeo
para a guerra em defesa da poacutelis (MOSSEacute 2004 p 189-190)
Qualquer riqueza natildeo poderia ser exposta em puacuteblico os artesatildeos natildeo
confeccionavam luxos desnecessaacuterios como tapetes e adornos mas faziam muito bem
apenas o baacutesico pois a riqueza seria a causa de muitos males Xenofonte escreve que os
espartanos natildeo se adornavam com riquezas de vestuaacuterios exceto com a boa forma fiacutesica
de seus corpos (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)
Pode-se conceituar a agogeacute como uma educaccedilatildeo estatal com fins extremamente
belicosos que se estendia da infacircncia ateacute a adolescecircncia Nessa educaccedilatildeo os futuros
6 Esse costume natildeo ocorreu soacute em Esparta a Lei das XII taacutebuas na Roma antiga autorizava os patriarcas a
matar seus filhos fraacutegeis ou deficientes
Luciene de Lima Oliveira
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combatentes aprendiam as artes militares as manobras em campos de batalha e a ser
destemidos diante do inimigo
Infere-se que o principal objetivo da agogeacute era formar poderosos guerreiros para
a defesa da poacutelis Para isso uma riacutegida educaccedilatildeo foi imposta aos jovens e uma peculiar
maneira de viver aos adultos
REFEREcircNCIAS
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Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 11
capiacutetulo 2 refere-se a deus com o tetragrama sagrado (Yhwh) seguido da forma Elohim
O texto mistura entatildeo as duas fontes
A conclusatildeo de HaAdam natildeo necessariamente afirma a lenda mas abrem uma
possibilidade neste sentido O que se pode concluir eacute que natildeo havia nada na criaccedilatildeo com
a qual ele HaAdam se identificasse
A preocupaccedilatildeo da leitura biacuteblica e as possiacuteveis interpretaccedilotildees relacionando ao
papel da mulher na sociedade ainda precisam ser mais bem resolvidas Mesmo que se
faccedila a presenccedila de Lilith no texto como a histoacuteria omitida e natildeo contada porque precisava
ser reescrita na forma de Chawah ainda assim carece a ideia de submissatildeo e inferioridade
que culturalmente ainda se insiste afirmar
O texto Eloiacutesta que domina o capiacutetulo primeiro do Gecircnesis natildeo tem qualquer
preocupaccedilatildeo em distinguir homem e mulher O capiacutetulo segundo na comunhatildeo Javista-
Eloiacutesta tem a preocupaccedilatildeo em frisar que satildeo diferentes e ateacute mesmo contraacuterios mas que
natildeo perdem a noccedilatildeo da mesma mateacuteria e partilham da mesma becircnccedilatildeo da semelhanccedila
divina Natildeo haacute uma prioridade A confusatildeo que suscita a ideia androacutegina surge da essecircncia
comum dois elementos criados partes de uma soacute ideia a humanidade
A ordem na criaccedilatildeo tambeacutem natildeo gera conclusotildees de superioridade Se
entendecircssemos que os primeiros seriam submissos aos uacuteltimos seres criados entendendo
o homem a coroa da criaccedilatildeo o ser acima de toda a criaccedilatildeo poderiacuteamos supor que a
mulher criada depois dele lhe seria entatildeo superior Colocaccedilotildees deste tipo natildeo prosperam
na anaacutelise do texto biacuteblico porque haacute que se considerar o texto como um todo Ou entatildeo
seriam os astros celestes criados primeiros inferiores aos mares ou os animais Eacute certo
que a ordem natildeo sugere algum tipo de superioridade
Enfim o que se vecirc depois da criaccedilatildeo eacute uma luta constante da figura feminina pela
conquista de seu espaccedilo luta esta que infelizmente ainda persiste A necessidade de ser
semelhanccedila de Deus e natildeo soacute costela
REFEREcircNCIAS
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946508
AS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO E SEU IMPACTO NO
REINADO DE VALENTINIANO I
Carlos Eduardo Schmitt
RESUMO Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio (c 340-402) possui uma extensa obra da qual
chegaram agrave contemporaneidade mais de 900 cartas (epistolae) 49 informes (relationes)
e 8 discursos (orationes) Suas obras de maior destaque satildeo as Orationes I II e III
proferidas entre 369-370 e sua Relatio III escrita durante seu tempo como prefeito de
Roma em 384 Tais obras lhe renderam a fama de melhor orador de seu tempo ainda em
vida Nosso trabalho tem como objetivo expor o impacto que as Orationes I II e III
tiveram na carreira do orador e na relaccedilatildeo entre o Senado e o reinado de Valentiniano I
A partir de suas Orationes ressaltaremos a delicada missatildeo do orador enviado de Roma
agrave Treacuteveris para servir como ponte entre o Senado e o imperador
PALAVRAS-CHAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I
SYMMACHUSrsquo ORATIONES I II AND III AND ITS IMPACT IN THE
KINGDOM OF VALENTINIAN I
ABSTRACT Quintus Aurelius Symmachus Eusebius (c 340-402) has an extensive work
from which more than 900 letters (epistolae) 49 reports (relationes) and 8 discourses
(orationes) survived His most outstanding works are Orationes I II and III pronounced
between 369-370 and his Relatio III written during his time as praefectus of Rome in
384 Such works earned him the fame of the best speaker of his time being still alive Our
paper aims to expose the impact that Orationes I II and III had on the speakers career
and on the relation between the Senate and the reign of Valentinian I From his Orationes
we will highlight the delicate mission of the speaker sent from Rome to Trier to serve as
a bridge between the Senate and the emperor
KEYWORDS Symmachus Orationes Valentinian I
LAS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO Y SU IMPACTO EN EL
REINADO DE VALENTINIANO I
RESUMEN Quinto Aurelio Siacutemaco Eusebio (c 340-402) tiene una extensa obra de la
cual chegaron a la contemporaneidad maacutes de 900 cartas (epistolae) 49 informes
(relationes) e 8 discursos (orationes) Sus obras de mayor destaque son las Orationes I
Doutorando pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail carlosschmitt90gmailcom
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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II y III pronunciadas entre el 369-370 y su Relatio III escrita durante su tiempo como
prefecto de Roma en 384 Tales obras le rindieron la fama de mejor orador de su tiempo
auacuten en vida Nuestro artiacuteculo tiene como objetivo exponer el impacto que las Orationes
I II y III tuvieron en la carrera del orador y en la relacioacuten entre el Senado y el reinado de
Valentiniano I A partir de sus Orationes resaltaremos la delicada misioacuten del orador
enviado de Roma a Treacuteveris para servir como puente entre el Senado y el emperador
PALAVRAS CLAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I
INTRODUCcedilAtildeO
Joseacute Antonio Gallego (2003 p 153) esclarece que a obra mais famosa de Siacutemaco
foi seu informe terceiro apesar de que durante a Idade Meacutedia as epistolae foram suas
obras mais valorizadas sendo utilizadas como modelo para escrever uma carta Contudo
em seu proacuteprio tempo ele era famoso por ser um grande orador Eacute por isso que Gallego
(2003 p 154) pondera como injusto o que a histoacuteria fez com Siacutemaco Apenas oito de
seus discursos chegaram ateacute noacutes sendo que estes satildeo dos iniacutecios de sua carreira aleacutem de
estarem num manuscrito palimpsesto com grandes lacunas Deve-se ter presente tambeacutem
que ldquoSiacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador romano se excetuarmos os escritores cristatildeosrdquo1
(GALLEGO 2003 p 154) Em outras palavras Siacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador da
religiatildeo tradicional romana
Cristiana Sogno (2006 p viii) faz uma reconstruccedilatildeo da carreira poliacutetica de
Siacutemaco atraveacutes de uma anaacutelise minuciosa de seus escritos Ele ocupa uma posiccedilatildeo
peculiar entre os autores latinos pela quantidade de escritos que nos chegaram A autora
defende que a razatildeo pelo desconhecimento de Siacutemaco por parte dos estudantes de
Claacutessicas e de Histoacuteria Antiga eacute o fato de natildeo existir uma traduccedilatildeo completa do corpus
simaquiano em nenhuma liacutengua moderna Sogno clarifica tambeacutem que a ediccedilatildeo de Otto
Seeck do seacuteculo XIX continua sendo o modelo do texto
Sogno (2006 p 1) clarifica que a primeira fase da carreira de Siacutemaco estaacute bem
documentada em suas orationes Sua nominaccedilatildeo como embaixador senatorial em 368 foi
um marco em sua vida sendo que sua reputaccedilatildeo como orador foi estabelecida na corte de
Valentiniano I tornando-se uma ponte entre o Senado e o imperador
Apesar de que Siacutemaco tenha a fama de ser um grande orador suas orationes
desapareceram ateacute seu redescobrimento no seacuteculo XIX Sabe-se que Siacutemaco ficou
conhecido por ser um bastiatildeo em defesa da religiatildeo tradicional romana sobretudo durante
seu periacuteodo como Prefeito de Roma por volta de 384 E Sogno (2006 p 1) sem perder
a oportunidade relata uma ldquoironia do destinordquo sendo que foi um cardeal da Igreja
Catoacutelica Romana Angelo Mai quem descobriu e publicou os fragmentos de suas
orationes em 1815 Tratava-se de um palimpsesto onde por cima havia uma traduccedilatildeo
latina das atas do Conciacutelio de Calcedocircnia O cardeal destruiu o documento para que as
orationes pudessem ser recuperadas Apesar disso Sogno (2006 p 2) constata como
esses discursos de Siacutemaco satildeo ainda pouco estudados em comparaccedilatildeo com outros
escritos seus como suas epistolae Esses oito discursos satildeo apenas uma parte de toda a
produccedilatildeo simaquiana Haacute tambeacutem um panegiacuterico em honra do usurpador Maacuteximo que
por razotildees oacutebvias natildeo foi publicada
1 ldquoSiacutemaco es el uacuteltimo gran orador romano si dejamos a un lado a los escritores cristianosrdquo
Carlos Eduardo Schmitt
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ORATIONES I II E III
Foi no inverno do ano 368-369 que Siacutemaco naquele tempo um jovem senador que
iniciava sua carreira poliacutetica foi enviado de Roma agrave Treacuteveris com o objetivo de dirigir
uma laudatio uma oraccedilatildeo de louvor a Valentiniano I por motivo de seus cinco anos de
reinado (Quinquennalia) Sogno (2006 p 2) destaca que tal missatildeo natildeo significava
apenas um reconhecimento por parte do Senado de seus dotes retoacutericos mas constituiacutea
tambeacutem uma oportunidade iacutempar para crescer na carreira poliacutetica e fazer amigos na corte
Apesar de ser um momento festivo Sogno (2006 pp 1-2) esclarece que constituiacutea
uma situaccedilatildeo delicada Ateacute o momento Valentiniano I natildeo havia estado em Roma e essa
era a primeira vez que ele se encontraria com uma delegaccedilatildeo senatorial Sendo assim
Siacutemaco tinha a importante missatildeo de estabelecer boas relaccedilotildees com o imperador Havia
natildeo apenas o discurso mas tambeacutem certa quantidade de ouro (aurum oblaticium2) que os
senadores ofereciam ldquovoluntariamenterdquo ao imperador Em Roma os senadores
aguardavam ansiosos pelo regresso de Siacutemaco e por informaccedilotildees de primeira matildeo
Eacute estranho ver que um senador tatildeo jovem ndash Siacutemaco natildeo tinha ainda nem trinta
anos ndash recebesse tamanha honra e responsabilidade Sogno (2006 p 6) sem colocar em
xeque a capacidade do orador argui que isso foi possiacutevel em parte graccedilas ao Prefeito de
Roma naquele entatildeo Pretextato responsaacutevel direto pela arrecadaccedilatildeo da oferenda de ouro
ao imperador e pela escolha do ldquocorretordquo orador que a levaria Haacute de se ter presente que
das epistolae de Siacutemaco vaacuterias delas tecircm Pretextato como destinataacuterio
Siacutemaco natildeo se limitou a estreitar laccedilos de amizade apenas no Senado Buscou
tambeacutem amigos na corte imperial E um de seus principais foi Ausocircnio tutor de Graciano
filho de Valentiniano I Sabe-se que eles trocavam correspondecircncias antes mesmo de
Siacutemaco ter ido agrave Treacuteveris e que havia entre eles uma muacutetua admiraccedilatildeo (SOGNO 2006
p 6)
A prova de que o panegiacuterico (laudatio) de Siacutemaco dirigido a Valentiniano foi um
sucesso de acordo com Sogno (2006 pp 8-9) foi o fato do proacuteprio imperador ter
solicitado ao orador um segundo panegiacuterico Siacutemaco eacute consciente de sua responsabilidade
e da honra que lhe eacute aferida e expressa esses sentimentos em seu discurso Consciente de
que o objetivo primeiro de uma laudatio eacute agradar ao puacuteblico Siacutemaco expotildee que tudo o
que anuncia e proclama eacute verdadeiro baseado em fatos que vivenciou e tambeacutem naqueles
de que ouviu o testemunho
Sogno (2006 p 9) classifica o primeiro panegiacuterico de Siacutemaco a Valentiniano
como um encocircmio biograacutefico composiccedilatildeo descrita em detalhe no terceiro livro da
Institutio oratoria de Quintiliano Nele Siacutemaco reconhece e celebra publicamente o
estabelecimento da dinastia valentiniana realizando um resumo dos seus cinco primeiros
anos de reinado desde que tinha sido escolhido pelo exeacutercito O encocircmio biograacutefico
como detalha Sogno requer discorrer tambeacutem sobre os ancestrais e os descendentes da
nova dinastia
2 ldquoOs clariacutessimos ie os indiviacuteduos de categoria senatorial tinham ainda que contribuir com o aurum
oblaticium oferecido pelo Senado por ocasiatildeo dos aniversaacuterios dos imperadoresrdquo (SILVA amp MENDES
2006 p 212) Isso era parte da reforma fiscal iniciada por Diocleciano e ampliada por Constantino
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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Satildeo estrateacutegicas as alusotildees que Siacutemaco faz do lugar de nascenccedila de Valentiniano
e daqueles onde ele acompanhou seu pai em campanhas militares O futuro imperador
nasceu na fria regiatildeo da Iliacuteria e acompanhou seu pai no calor escaldante da Aacutefrica Isso
significa natildeo soacute que ele estaacute preparado para qualquer dificuldade que advir mas
sobretudo que eacute um homem que conhece seu reino muito bem porque jaacute esteve em
diversas partes dele Todas essas dificuldades unidas aos inimigos enfrentados lhe
qualifica como a melhor pessoa para reger o Impeacuterio (SOGNO 2006 p 10) Um cuidado
que Siacutemaco tem em sua laudatio eacute o de reforccedilar a legitimidade de Valentiniano sobretudo
ao dizer que ningueacutem protestou quando o elegeram dando a impressatildeo de que houve um
consenso geral no exeacutercito (SOGNO 2006 p 12)
O conteuacutedo dos panegiacutericos eacute exagerado e por isso deve-se ter cuidado ao tomaacute-
los como fonte histoacuterica No entanto nos revelam muito sobre o tempo de Siacutemaco e sobre
ele mesmo No primeiro dedicado a Valentiniano I por motivo de seu primeiro lustro no
poder vemos como Siacutemaco enaltece a vida e a obras do imperador desde sua tenra
formaccedilatildeo nas diversas partes do Impeacuterio seguindo o bom exemplo de seu pai Graciano
Com verbosidade Siacutemaco atesta que natildeo havia outra pessoa melhor para o posto de
imperador que o proacuteprio Valentiniano superior a qualquer outro liacuteder Homem valente
assentou-se na parte mais perigosa do Impeacuterio Treacuteveris e lutou contra o inimigo mais
feroz dos romanos os alamanos Aleacutem de guerreiro eacute saacutebio e prefere defender os
interesses do Estado que os seus proacuteprios Eacute por isso que deixou a seu irmatildeo Valente
cuidar sozinho da rebeliatildeo de Procoacutepio uma guerra interna enquanto ele se dedicava a
proteger o Impeacuterio dos inimigos externos Foi um imperador que preferiu o bem comum
ao de sua proacutepria famiacutelia Realizou obras incriacuteveis
O comeccedilo do segundo panegiacuterico a Valentiniano indica sua razatildeo de ser o terceiro
consulado do imperador ao lado de seu irmatildeo Valente em 370 Siacutemaco
estrategicamente revela que iraacute relatar apenas alguns acontecimentos sem exaustatildeo
Deixaraacute todos os outros feitos natildeo mencionados para que sejam cantados pelos poetas
Parabeniza ao imperador por ser sua fonte de inspiraccedilatildeo e o restaurador da liberdade de
expressatildeo Ao mesmo tempo que Siacutemaco preza ao imperador por ter dado assunto que
fosse cantado e escrito como suas grandes vitoacuterias sobre os alamanos ele tambeacutem lembra
o imperador de que sem esses oradores e poetas haacute o silecircncio e que o silecircncio eacute o pior
inimigo da grandeza (SOGNO 2006 p 12)
Siacutemaco se dedica basicamente a enaltecer o imperador por suas conquistas e
fortificaccedilotildees ao longo do Reno e de que se impressionou ao ter visto as mesmas
pessoalmente Enaltece-o por seu terceiro consulado mas sobretudo se centra em seus
avanccedilos militares Entre outras exaltaccedilotildees Siacutemaco o parabeniza por ser exemplo de
governante ideal que eacute amado e temido por seu povo Tambeacutem o parabeniza por haver
aceitado o Impeacuterio de forma relutante (SOGNO 2006 p 14) Na verdade Siacutemaco
exaltou muito mais as fortificaccedilotildees erguidas por Valentiniano do que suas batalhas contra
os baacuterbaros Sogno (2006 p 15) pensa que isso se deve principalmente pelo acontecido
com Siaacutegrio uacutenico sobrevivente de uma batalha que foi considerado um desertor pelo
imperador E isso aconteceu exatamente quando o orador se encontrava na corte
O segundo panegiacuterico dedicado tambeacutem a Valentiniano I tinha por motivo
a designaccedilatildeo do imperador para o seu terceiro consulado que ele havia recebido como
um reconhecimento por seus feitos recentes Sendo assim o panegiacuterico deveria se centrar
em suas atividades recentes as quais lhe fizeram merecedor do terceiro consulado
Siacutemaco inicia dizendo que o consulado era uma recompensa insuficiente para
Valentiniano comparado com tudo o que perpetrou no Reno Mas como natildeo haacute algo
Carlos Eduardo Schmitt
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maior que eles possam ofertar Siacutemaco solicita ao imperador que se contente com o
melhor presente e honra que o Senado lhe pode oferecer E a partir de entatildeo o orador
narra as atividades beacutelicas de Valentiniano contra os alamanos e suas construccedilotildees ao
longo do Reno Em um determinado momento Siacutemaco o elogia por haver restaurado a
liberdade de expressatildeo no Impeacuterio Termina exaltando sua sobriedade
No panegiacuterico de Siacutemaco dedicado a Graciano vecirc-se claramente como ele se
dirige ao jovem imperador como a esperanccedila de Roma Durante todo o discurso o orador
enfatiza sua juventude enaltecendo-a Sogno acredita que essa insistecircncia seja uma forma
de favorecer a aceitaccedilatildeo do imperador possivelmente criticado pela aristocracia romana
por sua pouca idade (SOGNO 2006 p 18) Como recompensa por sua performance na
corte Siacutemaco recebeu o tiacutetulo honoriacutefico de comes tertii ordinis e trecircs anos depois em
Roma recebeu o proconsulado da Aacutefrica (373-374)
O panegiacuterico ao menino Graciano talvez tenha sido o mais difiacutecil para Siacutemaco
elaborar Devido a sua pouca idade objetivamente natildeo havia feitos grandiosos do qual
ele fosse sujeito No entanto Siacutemaco surpreendeu mesmo assim Vecirc em Graciano o iniacutecio
de uma nova eacutepoca porque eacute um imperador ainda menino e sendo assim estaraacute bem
treinado em todos os campos Seu louvor se centra entatildeo na juventude do imperador e
em seu governo ao lado de seu pai Valentiniano e de seu tio Valente Aos baacuterbaros natildeo
lhes restaraacute mais do que a escravidatildeo e eles jaacute sabem disso
OS DOZE PANEGIacuteRICOS LATINOS
Tendo em vista as trecircs orationes mencionadas podemos fazer uma breve anaacutelise
dos famosos doze panegiacutericos latinos com o intuito de entender melhor as diversas
asserccedilotildees simaquianas bem como seu estilo Susanna Morton Braund (2005 pp 90-91)
descreve que de forma convencional a oratoacuteria grega foi divida em trecircs tipos discurso
forense deliberativo e epidiacutectico O primeiro tambeacutem chamado de judicial eram aqueles
proferidos nos tribunais no foacuterum os discursos deliberativos eram aqueles proferidos
diante do Senado ou de uma assembleia do povo e os discursos epidiacutecticos eram aqueles
escritos para uma comemoraccedilatildeo especial Este uacuteltimo para Braund se revestiu de
especial importacircncia durante o principado como panegiacuterico (elogio)
Uma das coisas mais importantes para um aristocrata romano era o
reconhecimento pelas pessoas ao seu redor de seu valor puacuteblico e permanente
ndash sua auctoritas e sua dignitas Idealmente isso seria celebrado em panegiacuterico
ndash isto eacute louvor escrito em prosa ou verso3 (2005 p 110)
O panegiacuterico era um elemento central na poliacutetica romana e na vida puacuteblica sob
o Principado ndash e jaacute o era haacute muito tempo De fato alguns dos nossos mais
antigos textos latinos sobreviventes os epitaacutefios aos membros da famiacutelia
Cipiatildeo que datam do terceiro e segundo seacuteculos AEC (Scipionum elogia)
satildeo os louvores (poacutestumos) dos grandes homens4 (2005 p 112)
3 ldquoOne of the most important things for a Roman aristocrat was the recognition by people around him of
his public worth and standing ndash his auctoritas and his dignitas Ideally this would be celebrated in
panegyric ndash that is praise written in prose or verserdquo 4 ldquoPanegyric was a central element in Roman politics and public life under the Principate ndash and had been
so for a long time already In fact some of our earliest surviving Latin texts the epitaphs to members of
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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Ainda sobre o panegiacuterico e sua difusatildeo durante este periacuteodo do Impeacuterio Romano
Mitchell (2015 p 19) o relaciona agrave natureza autoritaacuteria do mesmo Segundo ele a
dissidecircncia aberta natildeo era tolerada e isso se vecirc pelos extremos dos discursos que satildeo de
louvor ou vituperaccedilatildeo mas raramente se encontram num meio termo Apesar de
parecerem pouco confiaacuteveis o autor defende a utilizaccedilatildeo de panegiacutericos e poemas como
fontes histoacutericas para o periacuteodo alegando que seus exageros omissotildees e estilos retoacutericos
expressam de forma criacutetica muito daquele momento Segundo Mitchell as obras mais
significativas neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos5
As obras-chave neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos que
provavelmente foram compilados pelo orador gaulecircs Pacato e foram
prefaciados pelo longo panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem para o imperador Trajano
(I) Aleacutem do trabalho do proacuteprio Pacato de 389 em louvor a Teodoacutesio I (II)
este inclui discursos a Maximiano em 289 (X de Cl Mamertino o Velho) e
291 (XI) a Constacircncio pai de Constantino em 296 e 298 (IX) para o
casamento de Constantino e Fausta em 307 (VII) a Constantino em 310 (VI)
312 (V) 314 (XII) e 321 (IV de Nazaacuterio) e a Juliano em 362 (III de Cl
Mamertino o Jovem em sua proacutepria nomeaccedilatildeo para o consulado)6
Mitchell (2015 p 4) realccedila que conforme o Impeacuterio crescia foi se dando cada
vez mais ecircnfase agrave religiatildeo do Estado Acreditava-se que ele era mantido devido ao apoio
dos deuses e os imperadores romanos que em parte controlavam as atividades religiosas
em seus territoacuterios eram vistos como aqueles que mantinham o pacto de paz com os
deuses a pax deorum E segundo Mitchell todos os meios de propaganda estavam
imbuiacutedos desta ideologia inclusive os discursos panegiacutericos
Braund (2005 129) especifica que o cocircnsul Pliacutenio entregou seu panegiacuterico ao
imperador Trajano no iniacutecio de seu reinado Era um discurso de gratidatildeo onde ele
aproveita para contrastar a imagem do bom Trajano com a do mau Domiciano imperador
de 81 a 96 EC Para Braund (2005 p 130)
Este texto revela dois modelos contrastantes de patrono ou imperador - e afinal
de contas o imperador era apenas o patrono mais poderoso em Roma O bom
patrono ou imperador eacute marcado por sua abertura acessibilidade e atitude
amigaacutevel e tolerante O mau patrono ou imperador eacute marcado pelo abuso
tiracircnico de seus poderes para tomar decisotildees de vida e morte sobre todos ao
seu redor do menor escravo ao senador mais eminente A celebraccedilatildeo do bom
modelo e a condenaccedilatildeo do ruim encontram-se em toda a gama de textos da
literatura latina incluindo poesia eacutepica e pastoral poesia liacuterica e elegiacuteaca
saacutetira e epigrama historiografia oratoacuteria e romance Isso natildeo nos deixa
duvidar de que o modo como um homem poderoso se comportava com seus
the Scipio family dating from the third and second centuries BCE (the Scipionic elogia) are the
(posthumous) praises of great menrdquo 5 Ver tambeacutem BERRY D H Oratory In HARRISON Stephen (ed) A Companion to Latin Literature
Oxford Blackwell 2005 pp 267-268 6 ldquoKey works in this genre are the twelve Latin panegyrics which were probably compiled by the Gallic
orator Pacatus and were prefaced by the younger Plinyrsquos lengthy panegyric for the emperor Trajan (I)
Apart from Pacatusrsquo own work of 389 in praise of Theodosius I (II) this includes speeches for
Maximianus in 289 (X by the elder Cl Mamertinus) and 291 (XI) for Constantius the father of
Constantine in 296 (VIII) and 298 (IX) for the marriage of Constantine and Fausta in 307 (VII) for
Constantine in 310 (VI) 312 (V) 314 (XII) and 321 (IV by Nazarius) and for Julian in 362 (III by the
younger Cl Mamertinus on his own appointment to the consulship)rdquo
Carlos Eduardo Schmitt
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pares e seus subordinados era crucial para sua posiccedilatildeo social e reputaccedilatildeo
poliacutetica7
Bruce Gibson (2005 p 72) critica a postura deste gecircnero por natildeo se envolver
abertamente com a poliacutetica atual de seu tempo senatildeo de modo indireto e o panegiacuterico
modelo natildeo foi a exceccedilatildeo ldquoMesmo o Panegiacuterico de Pliacutenio um discurso em louvor ao
imperador Trajano dado por ocasiatildeo de seu consulado em setembro de 100 EC oferece
sua criacutetica de governo indiretamente atraveacutes da estrateacutegia de atacar o principado de
Domicianordquo8
CONSIDERACcedilOtildeES PARCIAIS
As condiccedilotildees do discurso representavam um novo momento para o Impeacuterio De
acordo com A D Lee (2013 p 1) foi por meados do seacuteculo IV que o Impeacuterio Romano
havia alcanccedilado quase tanto territoacuterio quanto durante o seacuteculo II periacuteodo conhecido pelo
auge do poder romano Foi o periacuteodo dos imperadores guerreiros que se viram forccedilados
a se retirar dos confortos de Roma para proteger suas fronteiras (LEE 2013 p 5) Roma
foi substituiacuteda como residecircncia imperial por Treacuteveris Milatildeo Sirmio e Antioquia Com a
criaccedilatildeo de Constantinopla por parte do imperador Constantino essa situaccedilatildeo soacute se
agravou De qualquer forma o tema que domina o seacuteculo e que dominou os discursos
traduzidos de Siacutemaco foi a histoacuteria militar (MITCHELL 2015 pp 11-12)
Natildeo eacute um Impeacuterio em decadecircncia mas sim um momento de transiccedilatildeo Mitchell
(2015 p 56) se daacute conta de como por exemplo Diocleciano Joviano e Valentiniano
vieram de origens semelhantes Eram todos militares de meia idade nascidos nas
proviacutencias da Iliacuteria o que plasma uma mudanccedila no eixo do poder Mitchell (2015 pp 56-
57) frisa como desde a ascensatildeo de Diocleciano em 284 ateacute a morte de Teodoacutesio I em
395 o Impeacuterio foi governado por esses imperadores guerreiros que aniquilavam inimigos
internos e externos O Estado estava centrado em guerras e batalhas Calcula-se que mais
de dois terccedilos de seu orccedilamento anual eram gastos em atividades militares atividades das
quais os imperadores participavam pessoalmente
Siacutemaco soube valer-se da situaccedilatildeo para estreitar laccedilos com a corte e obter ascensatildeo
poliacutetica Esse periacuteodo foi especial tambeacutem por sua produccedilatildeo literaacuteria e pela quantidade
de escritos que sobreviveu ao tempo Segundo OrsquoDonnel (2015 p 161) haacute mais literatura
latina que nos chegou entre 350 e 450 do que de qualquer outro periacuteodo mais ateacute mesmo
que a eacutepoca de ouro latina entre o final da Repuacuteblica e comeccedilo do Impeacuterio9
7 ldquoThis text reveals two contrasting models of patron or emperor ndash and after all the emperor was just the
most powerful patron in Rome The good patron or emperor is marked by his openness accessibility and
friendly and tolerant attitude The bad patron or emperor is marked by his tyrannical abuse of his powers
to make life and death decisions about everyone around him from the lowest slave to the most eminent
senator Celebration of the good model and condemnation of the bad model are found in the entire range
of texts of Latin literature including epic and pastoral poetry lyric and elegiac poetry satire and epigram
historiography oratory and the novel This can leave us in no doubt that how a powerful man behaved
towards his peers and his subordinates was crucial to his social standing and to his political reputationrdquo 8 ldquoEven Plinyrsquos Panegyricus a speech in praise of the emperor Trajan given on the occasion of his
consulship in September AD 100 offers its critique of rulership indirectly through the strategy of
assailing the principate of Domitianrdquo
9 ldquoWe have more surviving Latin literature from this century between 350 and 450 than for any comparable
period before that including the more famously golden age of Caesar Cicero and Vergilrdquo
As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I
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22 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6
DOI httpsdoiorg1012957principia201946510
OS IMPERADORES SUETONIANOS EM MEMOacuteRIAS POacuteSTUMAS
DE BRAacuteS CUBAS
Bruno Torres dos Santos
RESUMO O presente trabalho busca discutir atraveacutes da anaacutelise de traduccedilotildees proacuteprias as
referecircncias aos imperadores romanos descritos e consagrados pelo bioacutegrafo Suetocircnio em Vida
dos Ceacutesares na obra Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis Aquele no
iniacutecio do seacuteculo II da era comum demonstrou os viacutecios e as virtudes dos imperadores inclusive
enfatizando os escacircndalos de suas cortes Jaacute Machado trouxe agrave tona as vaidades e as ambiccedilotildees
da burguesia brasileira do seacuteculo XIX Entatildeo analisaremos e interpretaremos o uso destes
personagens histoacutericos para a criaccedilatildeo literaacuteria no referido romance partindo do pressuposto de
que eles poderiam passar despercebidos por leitores modernos que natildeo recuperassem as
referecircncias agrave cultura agrave literatura e agrave histoacuteria da Roma Antiga
PALAVRAS-CHAVE Machado de Assis Imperadores romanos Suetocircnio
THE SUETONIAN EMPERORS IN THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF
BRAS CUBAS
ABSTRACT The present work aims through the analysis of own translations the references to
the Roman emperors described and consecrated by the biographer Suetonius in Life of the
Caesars in the novel Posthumous Memoirs of Bras Cubas by Machado de Assis Suetonius
at the beginning of the second century of the common age demonstrated the vices and virtues
of the emperors including emphasizing the scandals of their courts Machado has already
brought to light the vanities and ambitions of the Brazilian bourgeoisie of the nineteenth
century Then we will analyze and interpret the use of these historical characters for the literary
creation in the novel assuming that they could go unnoticed by modern readers who do not
recover references to the culture literature and history of Ancient Rome
KEYWORDS Machado de Assis Roman emperors Suetonius
Entre os mais diversos romancistas com que a literatura brasileira teve contato natildeo haacute
nome maior do que Machado de Assis Tal personalidade nasceu no Morro do Livramento
Eacute doutorando no PPGLC-UFRJ bolsista CAPES sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Anderson Esteves e integrante
discente do grupo de pesquisa ATRIVM ndash Espaccedilo Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (PPGLC-UFRJ) E-
mail brunots_hotmailcom
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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localizado na aacuterea central do Rio de Janeiro proacuteximo a zona portuaacuteria em junho de 1839
Oriundo de famiacutelia pobre estudou em escolas puacuteblicas mas nunca frequentou uma
universidade Dedicou-se aos mais diversos gecircneros literaacuterios escrevendo poesia crocircnica
teatro conto romance Tambeacutem foi criacutetico literaacuterio e jornalista Testemunhou a Aboliccedilatildeo da
Escravatura e as mudanccedilas poliacuteticas no Brasil quando o Impeacuterio foi entatildeo substituiacutedo pela
Repuacuteblica comentando e relatando os respectivos eventos poliacutetico-sociais Em 1897 funda a
ABL (Academia Brasileira de Letras) da qual permaneceu presidente ateacute sua morte em 1908
com 69 anos
Ao discorrer sobre a consolidaccedilatildeo do nosso sistema literaacuterio o professor Antonio
Candido opina sobre Machado afirmando que ele ldquoera dotado de raro discernimento literaacuterio e
adquiriu por esforccedilo proacuteprio uma forte cultura intelectual baseada nos claacutessicos mas aberta aos
filoacutesofos e escritores contemporacircneosrdquo (CANDIDO 2010 p 65) E ainda acrescenta
Sua obra eacute variada e tem caracteriacutestica das produccedilotildees eminentes satisfaz tanto aos
requintados quanto aos simples Ela tem sobretudo a possibilidade de ser
reinterpretada agrave medida que o tempo passa porque tendo uma dimensatildeo profunda de
universalidade funciona como se se dirigisse a cada eacutepoca que surge (CANDIDO
2010 p 65)
Eacute esse diaacutelogo entre o claacutessico e o contemporacircneo com pitada filosoacutefica que daacute
singularidade agrave sua obra fazendo com que suas produccedilotildees sejam sempre atemporais Satildeo esses
traccedilos que se mostram mais produtivos para o nosso estudo no qual pretendemos analisar e
interpretar como os imperadores romanos descritos pelo bioacutegrafo Suetocircnio em sua obra satildeo
utilizados por Machado em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas1 Para tal julgamos necessaacuterio
primeiramente contextualizar brevemente os autores em apreccedilo bem como suas obras
(Memoacuterias Poacutestumas e Vida dos Ceacutesares2) os gecircneros praticados (Romance e Biografia
Antiga) e os tipos de criacutetica social dos dois autores Depois disso analisaremos os excertos do
romance machadiano em questatildeo no qual as presenccedilas dos principes (no singular princeps
termo latino usado na Roma Antiga para se referir ao que entendemos hoje por imperador) se
mostrem mais evidentes para entatildeo coligirmos com trechos da obra suetoniana Para o trabalho
com esta obra utilizaremos a ediccedilatildeo da Loeb Classical Library (1914) mas com traduccedilotildees de
nossa proacutepria autoria para o trabalho com aquela utilizaremos a ediccedilatildeo criacutetica estabelecida
pela Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira (1975)
Como jaacute afirmado Machado praticou os mais diversos gecircneros literaacuterios E jaacute demos os
merecidos creacuteditos pelo conjunto da obra Mas devemos frisar que eacute na praacutetica sobre o gecircnero
romance que os creacuteditos se mostram mais merecidos pois eacute nele que o autor apresenta natildeo soacute
todo o seu ingenium (talento natural) mas tambeacutem toda a sua ars (habilidade teacutecnica) para
usarmos termos proacuteprios da literatura latina
Foi esse talento somado a seu espiacuterito galhofeiro que proporcionou a criaccedilatildeo de um
narrador mais que incomum em Memoacuterias Poacutestumas Sobre esse narrador Francisco Silveira
discorre que ldquoele vinha pelo menos agrave primeira vista infringir dois postulados realistas a
impessoalidade e o verismordquo (SILVEIRA 2001 p 97) Convergirmos com tal visatildeo posto que
eacute com a referida obra e seu respectivo narrador defunto-autor que o Realismo enquanto esteacutetica
literaacuteria vai ser ldquoinauguradordquo no Brasil em 1881 Natildeo menos importante eacute a visatildeo de Alfredo
Bosi
1 Nas proacuteximas remissotildees a essa obra usaremos apenas Memoacuterias Poacutestumas 2 Em liacutengua latina De uita caesarum
Bruno Torres dos Santos
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Quando o romancista assumiu naquele livro capital o foco narrativo na verdade
passou ao defunto-autor Machado-Braacutes Cubas delegaccedilatildeo para exibir com o despejo
dos que nada mais temem as peccedilas de cinismo e indiferenccedila com que via montada a
histoacuteria dos homens A revoluccedilatildeo dessa obra que parece cavar um fosso entre dois
mundos foi uma revoluccedilatildeo ideoloacutegica e formal aprofundando o desprezo agraves
idealizaccedilotildees romacircnticas e ferindo ao cerne o mito do narrador onisciente que tudo vecirc
e tudo julga deixou emergir a consciecircncia nua do indiviacuteduo fraco e incoerente O que
restou foram as memoacuterias de um homem igual a tantos outros o cauto e desfrutador
Braacutes Cubas (BOSI 2006 p 177)
Entendemos assim que o ser humano seraacute analisado sob seu cinismo e sob a
indiferenccedila por um narrador tambeacutem fraco e cheio de incoerecircncias rompendo nesse aspecto
com a esteacutetica Romacircntica Bosi ainda acrescenta
o ponto de vista um velho tema como o triacircngulo amoroso jaacute natildeo se carregaraacute do
pathos romacircntico que envolvia heroacutei-heroiacutena-o outro mas deixaraacute vir agrave tona os mil e
um interesses de posiccedilatildeo prestiacutegio e dinheiro dando a batuta agrave libido e agrave vontade de
poder que mais regem os passos do homem em sociedade Da histoacuteria vulgar do
adulteacuterio de Braacutes Cubas-Virgiacutenia-Lobo Neves agrave triste comeacutedia de equiacutevocos de
Rubiatildeo-Sofia-Palha (Quincas Borba) e desta agrave trageacutedia perfeita de Bentinho-Capitu-
Escobar (D Casmurro) soacute aparecem variantes de uma soacute e mesma lei natildeo haacute mais
heroacuteis a cumprir missotildees ou a afirmar a proacutepria vontade haacute apenas destinos destinos
sem grandeza (BOSI 2006 p 180)
Observamos o olhar aparentemente ldquodespretensiosordquo de Machado de Assis sem a
intenccedilatildeo de criar e de se defrontar com personagens heroicos mas ao lidar com homens-
personagens comuns lidaraacute tambeacutem com problemas comuns Ele analisa a psicologia do
ldquohomemrdquo com todas as suas peculiaridades inveja ganacircncia ambiccedilatildeo E eacute a atmosfera
burguesa que potencializa esses sentimentos De todo modo faz uma ldquocriacutetica socialrdquo sem querer
fazecirc-la Eacute isso que o aproxima e o distancia de Suetocircnio que analisa os retratos morais dos
imperadores romanos com todos os viacutecios e virtudes mas faz ldquocriacutetica socialrdquo e ateacute propaganda
poliacutetica de modo velado
Diferente do esforccedilo na anaacutelise da vida e obra de Machado quem se propotildee a estudar o
bioacutegrafo Caio Suetocircnio Tranquilo inicialmente se depara com algumas imprecisotildees acerca de
sua vida No tocante ao seu local de nascimento Anderson Esteves em seu artigo busca
encontrar vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas proacuteprias obras nos apontando como mais
plausiacutevel a ideia segundo a qual este teria nascido em Roma ou pelo menos se estabelecido
nessa cidade desde a infacircncia Ele nos informa sobre a origem e a condiccedilatildeo familiar de Suetocircnio
o avocirc era de uma condiccedilatildeo menos abastada visto que teria sido um liberto do imperador
Claacuteudio jaacute seu pai de uma condiccedilatildeo social mais elevada pois pertencia a ordem dos equestres
(ESTEVES 2015 p 1-7)
Eacute dado como certo que Suetocircnio teria nascido em 70 EC um ano apoacutes o conhecido ldquoAno
dos quatro imperadoresrdquo sobre o qual ainda falaremos Maacuterio Citroni esclarece-nos que em 69
EC o pai do bioacutegrafo foi combatente ao lado de Oto com o grau de tribunus militum (tribuno
militar) (CITRONI 2006 p 971) Natildeo menos importante eacute o que esclarece Ronald Mellor
segundo ele o cognomen ldquoTranquilordquo atribuiacutedo a Suetocircnio eacute decorrente do esforccedilo do seu pai
na busca pela estabilizaccedilatildeo da paz apoacutes esta terriacutevel guerra civil (MELLOR 1999 p 147)
Conforme observamos de alguma forma sua famiacutelia estava envolvida com as casas
imperiais e dada a condiccedilatildeo do seu pai Suetocircnio teve a possibilidade de ter uma boa educaccedilatildeo
na urbs dedicando-se aos estudos de gramaacutetica e de retoacuterica Nessa trajetoacuteria instrutiva o
bioacutegrafo torna-se amigo iacutentimo do renomado senador Pliacutenio o Jovem Por influecircncia dessa
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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amizade Suetocircnio consegue alguns cargos de prestiacutegio dentro das cortes imperiais Durante o
principado de Trajano ele ocupou os postos de a studiis (com a funccedilatildeo de cuidar dos interesses
e das obrigaccedilotildees culturais do imperador) e o de a bibliothecis (com a funccedilatildeo de cuidar das
bibliotecas puacuteblicas) Sob o principado de Adriano ocupou o posto de ab epistulis (com a
funccedilatildeo de redigir a correspondecircncia oficial) (MORENO 1997 p 645 CITRONI 2006 p
971)
A rede de contato iniciada por seu amigo Pliacutenio permitiu que Suetocircnio alcanccedilasse as
referidas ocupaccedilotildees e por consequecircncia o acesso direto aos arquivos imperiais muitas vezes
fundamentais para a feitura da sua obra De uita caesarum na qual discorre sobre os doze
primeiros ceacutesares de Roma desde o general Juacutelio Ceacutesar ateacute o polecircmico imperador Domiciano
Cabe considerar que ele iniciou a composiccedilatildeo desse seu opus magnum por volta dos primeiros
anos do principado de Adriano o qual se estendeu entre os anos de 117 e 138 EC
Acerca do gecircnero praticado por Suetocircnio devemos considerar que ateacute aqui muito foi
usada a terminologia moderna ldquobiografiardquo poreacutem conveacutem lembrarmos que esse gecircnero relativo
agrave escrita de uma vida na Antiguidade eacute referido por bios pelos gregos e uita pelos romanos
O termo ldquobiografiardquo como salienta Sabina Loriga soacute aparece ao longo do seacuteculo XVII
designando uma obra veriacutedica fundada numa descriccedilatildeo realista que se opotildee a outras formas
antigas de escritura idealizadoras do personagem e das circunstacircncias de sua vida tal qual o
panegiacuterico o elogio a oraccedilatildeo fuacutenebre e a hagiografia (LORIGA 2011 p 17)
A pesquisadora argumenta ainda que desde sua origem na Antiguidade a biografia eacute um
gecircnero hiacutebrido e composto que equilibrando-se entre a verdade histoacuterica e a verdade literaacuteria
sofreu ao longo do tempo profundas transformaccedilotildees sobretudo no que diz respeito agrave escolha e
agrave elaboraccedilatildeo dos fatos e do estilo de narraccedilatildeo (LORIGA 2011 p 18)
Frente a esses esclarecimentos avancemos aos excertos de Memoacuterias Poacutestumas em cujo
iniacutecio o narrador e protagonista Braacutes Cubas relata suas lembranccedilas apoacutes ter sido vitimado por
uma pneumonia Ele que pertencia a uma famiacutelia abastada do seacuteculo XIX narra sua morte e
seu enterro em que apareceram apenas onze amigos Relata diversos periacuteodos da vida infacircncia
adolescecircncia e fase adulta Ainda apresenta suas expectativas com o ldquoEmplastordquo um
medicamento por ele inventado com grande potencial de cura O narrador reconhece que esse
projeto se tornou uma ldquoideia fixardquo que entendemos como uma ideia difiacutecil de se retirar da
cabeccedila E eacute justamente no IV capiacutetulo intitulado A ideacutea fixa que o narrador machadiano faz a
primeira referecircncia a imperadores romanos e ao proacuteprio bioacutegrafo Suetocircnio
A minha ideacutea depois de tantas cabriolas constituiacutera-se ideacutea fixa Deus te livre leitor
de uma ideacutea fixa antes um argueiro antes uma trave no olho Vecirc o Cavour foi a ideacutea
fixa da unidade italiana que o matou Verdade eacute que Bismarck natildeo morreu mas
cumpre advertir que a natureza eacute uma grande caprichosa e a histoacuteria uma eterna
loureira Por exemplo Suetocircnio deu-nos um Claacuteudio que era um simploacuterio mdash ou
ldquouma aboacuteborardquo como lhe chamou Secircneca e um Tito que mereceu ser as deliacutecias de
Roma Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dous
ceacutesares o delicioso o verdadeiro delicioso foi o ldquoaboacuteborardquo de Secircneca E tu madama
Lucreacutecia flor dos Boacutergias se um poeta te pintou como a Messalina catoacutelica apareceu
um Gregorovius increacutedulo que te apagou muito essa qualidade e se natildeo vieste a liacuterio
tambeacutem natildeo ficaste pacircntano Eu deixo-me estar entre o poeta e o saacutebio (Machado de
Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap IV p 103)3
3 Para facilitar a leitura usaremos tal forma nas referecircncias a esta obra que compotildee nossa documentaccedilatildeo textual
Para as referecircncias agraves biografias de Vida dos Ceacutesares adotamos as abreviaccedilotildees do renomado The Oxford Latin
Dictionary (httpswwwoxfordscholarlyeditionscompageabbreviations acessado em 25102019)
Bruno Torres dos Santos
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Nesse discurso metalinguiacutestico dirigido diretamente ao leitor a fim de exemplificar a
proacutepria noccedilatildeo de ldquoideia fixardquo Braacutes Cubas evidencia que Suetocircnio o qual ressignificou a ldquoideiardquo
do filoacutesofo estoico Secircneca teve a sua ldquoideiardquo ressignificada por um professor moderno
Diferentemente do bioacutegrafo Suetocircnio bem como os imperadores que ele ldquonos deurdquo que foram
personagens histoacutericas o referido professor natildeo o foi
Entatildeo passemos a essas referecircncias o primeiro imperador citado eacute Tibeacuterio Claacuteudio Druso
Braacutes Cubas adjetiva o Claacuteudio de Suetocircnio como um ldquosimploacuteriordquo que eacute assim descrito na
biografia suetoniana
Infans autem relictus a patre ac per omne fere pueritiae atque adulescentiae tempus
variis et tenacibus morbis conflictatus est adeo ut animo simul et corpore hebetato ne
progressa quidem aetate ulli publico privatoque muneri habilis existimaretur (Suet
Cl 21)
No entanto era crianccedila quando foi abandonado pelo pai e por quase todo o tempo da
primeira infacircncia e adolescecircncia foi acometido por vaacuterias doenccedilas persistentes de tal
modo que estivesse ao mesmo tempo com o espiacuterito e com o corpo debilitado foi
certamente por conta de sua idade avanccedilada estimado como natildeo apto para cargo no
acircmbito puacuteblico e no acircmbito privado
Posteriormente Suetocircnio faz o seguinte relato sobre a inesperada subida ao trono apoacutes o
assassinato do sobrinho Caliacutegula
Per haec ac talia maxima aetatis parte transacta quinquagesimo anno imperium cepit
quantumvis mirabili casu Exclusus inter ceteros ab insidiatoribus Gai cum quasi
secretum eo desiderante turbam submoverent in diaetam cui nomen est Hermaeum
recesserat neque multo post rumore caedis exterritus prorepsit ad solarium proximum
interque praetenta foribus vela se abdidit Latentem discurrens forte gregarius miles
animadversis pedibus studio sciscitandi quisnam esset adgnovit extractumque et prae
metu ad genua sibi accidentem imperatorem salutavit (Suet Cl10 1-2)
Por estas e outras coisas semelhantes tendo passado muito do tempo assumiu o
impeacuterio soacute com cinquenta anos atraveacutes de um caso extremamente interessante
Excluiacutedo entre os outros pelos assassinos de Caio Caliacutegula quando sob o pretexto
de expulsarem a multidatildeo e desejando ele um lugar isolado retirou-se para um
pavilhatildeo ao qual chamam de ldquoHermeacuteurdquo E natildeo muito depois aterrorizado com a
notiacutecia da morte avanccedilou se arrastando para uma galeria solar proacutexima e se escondeu
entre as cortinas postas diante das portas Tendo os peacutes sido observados um soldado
raso correndo de uma parte a outra com uma forte curiosidade procurou saber quem
estaria escondido e reconheceu quem por ele foi retirado do esconderijo Diante do
medo Claacuteudio se prostrou aos seus peacutes o soldado o saudou como imperador
Notamos que um eventual olhar do narrador machadiano sobre a dinastia julio-claudiana
sempre lembrada no pensamento ocidental pelos excelentes generais como Juacutelio Ceacutesar e
Augusto e pelos polecircmicos Tibeacuterio Caliacutegula e Nero pode justificar a anaacutelise de Claacuteudio como
um personagem simploacuterio Isso se daacute mesmo este tendo conquistado diversas regiotildees e tido boa
aceitaccedilatildeo pelo povo romano pois como percebemos nos excertos de sua biografia Suetocircnio
fez ressoar sua fraqueza de espiacuterito inaptidatildeo para o governo e a covardia Cabe lembrar ainda
que numa leitura completa da biografia do imperador ele aparece como um joguete nas matildeos
das proacuteprias esposas Primeiramente Valeacuteria Messalina (a mesma referida no capiacutetulo em
questatildeo das Memoacuterias Poacutestumas) tentou entregar o Impeacuterio nas matildeos de um de seus amantes
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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C Siacutelio mas sem sucesso foi por Claacuteudio condenada e executada Jaacute viuacutevo ele se casa com
Agripina que trama pela sua morte para legar o trono a seu filho Nero
Justifica-se assim tambeacutem o seu retrato como uma ldquoaboacuteborardquo na obra Apocoloquintose
na qual o filoacutesofo e tragedioacutegrafo Secircneca que foi banido de Roma por Claacuteudio em 41 em
razatildeo de intrigas palacianas critica ironicamente o receacutem-assassinado imperador Horaacutecio
Rolim de Freitas explica que
O tiacutetulo inicial seria Ludus de morte Claudii O historiador Dion Caacutessio sugeriu que
o tiacutetulo tenha sido Apocolocyntosis (transformaccedilatildeo em aboacutebora) do grego
Ἀποκολοκύνθοσις Tiacutetulo curioso mas era entendido pelos leitores da eacutepoca pois
aboacutebora (ποκολοκύντἡς) era siacutembolo da estupidez (FREITAS 2010 p 13)
Para compreendermos isso devemo-nos lembrar de um aspecto cultural importante na
Roma Antiga ndash a Apoteose A cerimocircnia de deificaccedilatildeo que ocorria durante os funerais dos
iminentes ceacutesares iniciada por Otaacutevio a partir da morte de seu tio Juacutelio Ceacutesar Ou seja o
argumento da obra senequiana eacute parodiar a narraccedilatildeo agraves avessas da apoteose de Claacuteudio
relatando como o morto foi recebido nos infernos pelos deuses transformando-se no alegoacuterico
legume
O segundo imperador citado nesse IV capiacutetulo de Memoacuterias Poacutestumas foi Tito
Vespasiano Augusto Tito foi o segundo princeps da dinastia flaviana Era o filho mais velho
de Vespasiano e irmatildeo de Domiciano os quais tambeacutem seratildeo citados por Braacutes Cubas ao longo
do romance Depois da morte de seu pai Tito assume as reacutedeas do Impeacuterio atuando de modo
similar a ele com excelecircncia no campo militar e com moderaccedilatildeo no campo poliacutetico foi visto
como um bom imperador por Roma Por essa razatildeo eacute descrito por Suetocircnio logo no primeiro
capiacutetulo de sua biografia como ldquoTito tendo o cognome do pai foi o amor e as deliacutecias do
gecircnero humano Tanto de inteligecircncia de habilidade e de fortuna abundava nele que ganhava a
simpatia de todos o que eacute muito difiacutecil durante um governordquo (Titus cognomine paterno amor
ac deliciae generis humani ndash tantum illi ad promerendam omnium voluntatem vel ingenii vel
artis vel fortunae superfuit et quod difficillimum est in impeacuterio () (Suet Tit 11) Com essa
seleccedilatildeo vocabular Suetocircnio ldquonos daacuterdquo o retrato de um imperador diferente de Claacuteudio Eacute esse
retrato com vastos predicados perante a humanidade que serviu de fonte para Machado de
Assis fazer o jogo de palavras com o termo ldquodeliacuteciardquo na ldquoideia fixardquo de um professor
Para encerrar a anaacutelise do capiacutetulo conveacutem observar a segunda referecircncia a tais principes
em ldquoViva pois a histoacuteria a voluacutevel histoacuteria que daacute para tudo e tornando agrave ideacutea fixa direi que
eacute ela a que faz os varotildees fortes e os doudos a ideacutea moacutebil vaga ou furta-cor eacute a que faz os
Claacuteudios mdash formula Suetocircniordquo (Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap
IV p 103) O Bruxo do Cosme Velho brinca com o gecircnero historiograacutefico ao qual o gecircnero
biograacutefico estaacute aparentado Chamando a histoacuteria de voluacutevel ele usa novamente o verbo ldquodarrdquo
Em nossa interpretaccedilatildeo o narrador quer reforccedilar que a histoacuteria ldquodaacuterdquo na acepccedilatildeo de ldquopromoverrdquo
diversos retratos sejam eles positivos ou negativos a depender da ldquoideiardquo que cada personagem
possui Esse modus operandi da formulaccedilatildeo de Suetocircnio muito se relaciona com o de Machado
Avancemos agora ao capiacutetulo XXIII de Memoacuterias Poacutestumas intitulado Triste mas curto
Em tal capiacutetulo Cubas narra sua chegada ao Rio de Janeiro e a sensaccedilatildeo de rever os locais de
sua infacircncia a tristeza de sua famiacutelia e o sofrimento de sua progenitora Quando vecirc sua matildee
com quem natildeo tinha contato haacute nove anos acha-a paacutelida e sem soltar uma palavra sequer pega
em suas matildeos No dia seguinte ela vem a falecer sendo a primeira vez que ele teria tido contato
com a morte de perto de uma pessoa amada Neste iacutenterim ele faz referecircncia a mais um ceacutesar
descrito por Suetocircnio o proacuteprio Juacutelio Ceacutesar que embora natildeo tenha chegado a ser um
ldquoimperadorrdquo enquanto chefe de estado eacute ele quem ldquodesenhardquo o que viria a ser o Impeacuterio
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romano iniciado por seu sobrinho-neto Otaviano Por essa razatildeo tambeacutem incluiacutemos tal general
em nossas anaacutelises e eacute assim referenciado no romance
Longa foi a agonia longa e cruel de uma crueldade minuciosa fria repisada que me
encheu de dor e estupefacccedilatildeo Era a primeira vez que eu via morrer algueacutem Conhecia
a morte de outiva quando muito tinha-a visto jaacute petrificada no rosto de algum
cadaacutever que acompanhei ao cemiteacuterio ou trazia-lhe a ideacutea embrulhada nas
amplificaccedilotildees de retoacuterica dos professores de coisas antigas mdash a morte aleivosa de
Ceacutesar a austera de Soacutecrates a orgulhosa de Catatildeo (Machado de Assis Memoacuterias
Poacutestumas de Braacutes Cubas cap XXIII p 145)
Nas referidas amplificaccedilotildees retoacutericas ressoa a morte do filoacutesofo Soacutecrates a qual de fato
ficou no imaginaacuterio ocidental como uma morte ldquoausterardquo dado o fato de ele ter se mantido
firme em suas ideias ldquocorruptorasrdquo dos jovens atenienses ateacute a hora de seu oacutebito A morte de
Catatildeo o Jovem tambeacutem eacute adjetivada por Braacutes Cubas poreacutem como ldquoorgulhosardquo A respectiva
adjetivaccedilatildeo se apresenta com ecircxito dado o fato de Catatildeo ter sido um poliacutetico romano notaacutevel
por sua integridade moral Sendo ele ainda partidaacuterio da filosofia estoica descrito pelo
historiador Saluacutestio como a antiacutetese direta de Juacutelio Ceacutesar suicidou-se apoacutes a vitoacuteria deste seu
opositor na Batalha de Tapso
Concentremo-nos poreacutem na morte de Ceacutesar mesmo que natildeo haja nenhuma associaccedilatildeo
direta dele com o bioacutegrafo diferentemente dos excertos com os imperadores anteriores isso
natildeo nos impede de relacionaacute-los O narrador machadiano adjetiva tal morte como ldquoaleivosardquo
denotando a atmosfera da traiccedilatildeo pela qual Ceacutesar passou no Senado romano relatada em sua
biografia deste modo
Assidentem conspirati specie officii circumsteterunt ilicoque Cimber Tillius qui
primas partes susceperat quasi aliquid rogaturus propius accessit renuentique et gestu
in aliud tempus differenti ab utroque umero togam adprehendit deinde clamantem
ldquoIsta quidem vis estrdquo alter e Cascis aversum vulnerat paulum infra iugulum Caesar
Cascae brachium arreptum graphio traiecit conatusque prosilire alio vulnere tardatus
est utque animadvertit undique se strictis pugionibus peti toga caput obvoluit simul
sinistra manu sinum ad ima crura deduxit quo honestius caderet etiam inferiore
corporis parte velata Atque ita tribus et viginti plagis confossus est uno modo ad
primum ictum gemitu sine voce edito etsi tradiderunt quidam Marco Bruto irruenti
dixisse καὶ σὺ τέκνον (Suet Jul 82 1-2)
Os que haviam concordado com a natureza do trabalho rodeavam aquele que estava
sentado Sem demorar Ciacutember Tiacutelio que se encarregava dos primeiros papeacuteis como
se houvesse de falar algo caminhou para mais perto Ceacutesar negando atraveacutes de um
gesto contraacuterio passou-o para outro momento Por ambos os lados aquele apertou sua
toga Entatildeo Ceacutesar clamou ldquoIsso eacute verdadeiramente uma violecircnciardquo Um dos Cascas
jaacute lhe tinha ferido por traacutes um pouco abaixo da garganta Com um ponteiro furou com
um ponteiro o braccedilo arrebatado de Casca e o impulso de arremeter foi detido por uma
outra ferida Mas quando observou que seria tomado por robustos punhais por todos
os lados cobriu a cabeccedila com a toga Ao mesmo tempo com a matildeo esquerda conduziu
a dobra da veste ateacute as extremidades das pernas de modo que jaacute estando com a parte
inferior do corpo coberta caiacutesse mais honrosamente Desta maneira foi dilacerado
por vinte e trecircs golpes Ateacute a primeira ferida teria produzido apenas um gemido sem
uma palavra sequer embora alguns afirmem que com o ataque de Marco Bruto teria
dito ldquoTambeacutem tu meu filhordquo
Como reconhecemos esses escritos de Suetocircnio com grande carga dramaacutetica foram
grandes responsaacuteveis por propagar no imaginaacuterio do mundo ocidental este evento que mudou
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os rumos da Roma Antiga Machado de Assis foi ciruacutergico ao usar a palavra aleivosa para
qualificar a morte de Ceacutesar a qual condensa toda a ideia da conjuraccedilatildeo Muito provavelmente
teve acesso a isso atraveacutes da referida biografia
Podemos avanccedilar ao capiacutetulo LXXII do romance cujo tiacutetulo eacute O bibliocircmano no qual o
defunto-autor confessa que deveria suprimir o capiacutetulo antecedente alegando haver nele um
despropoacutesito acerca do qual natildeo gostaria de receber criacuteticas Afirma que setenta anos agrave frente
este leitor que eacute por ele caracterizado e denominado ldquobibliocircmanordquo procuraria minuciosamente
o tal ldquodespropoacutesitordquo poreacutem sem ecircxito natildeo encontraria Em seguida explica que ele natildeo o
encontraria pelo simples fato de ele natildeo existir jaacute que foi suprimido Discorre ainda que isso
natildeo causaria o desinteresse do leitor sobre o livro e que pelo contraacuterio ele o adoraria por ser
um exemplar uacutenico O bibliocircmano continua sua procura mas mesmo sem sucesso se contenta
com o fato de dispor do uacutenico tomo
Jaacute prometeu a si mesmo escrever uma breve memoacuteria na qual relate o achado do livro
e a descoberta da sublimidade se a houver por baixo daquela frase obscura Ao cabo
natildeo descobre nada e contenta-se com a posse Fecha o livro mira-o remira-o chega-
se agrave janela e mostra-o ao sol
Um exemplar uacutenico Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um Ceacutesar ou um
Cromwell a caminho do poder Ele daacute de ombros fecha a janela estira-se na rede e
folheia o livro de vagar com amor aos goles Um exemplar uacutenico (Machado de
Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap LXXII p 209-210)
Neste excerto em que Braacutes Cubas manteacutem sua divagaccedilatildeo sobre o despropoacutesito da mesma
forma que fez com a noccedilatildeo de ideia fixa notamos a segunda referecircncia ao general Juacutelio Ceacutesar
A menccedilatildeo a Ceacutesar e a Cromwell visa ilustrar o modo como uma pessoa estaria transitando pela
rua ldquoa caminho do poderrdquo Oliver Cromwell foi um comandante militar e poliacutetico nascido na
nobreza rural inglesa em 1599 Em 1630 passa por uma conversatildeo religiosa e reconhecendo-
se como um Puritano acreditava que Deus era quem o guiava em suas vitoacuterias sendo muito
ativo durante a Guerra Civil Inglesa Mas quem mais nos interessa eacute o outro poliacutetico e militar ndash
Juacutelio Ceacutesar ndash e este nome associado agrave expressatildeo ldquocaminho do poderrdquo leva-nos a lembrar de
outro aspecto cultural da Roma Antiga ndash a travessia ao Rio Rubicatildeo Jaacute durante a Repuacuteblica
esse rio que dividia a proviacutencia da Gaacutelia Cisalpina (ao norte) do resto da Itaacutelia (ao sul) era de
suma importacircncia visto que a lei romana proibia que fosse transpassado por quaisquer legiotildees
do exeacutercito romano caso isso fosse feito denotaria uma ameaccedila militar interna
Resumidamente os sucessos de Ceacutesar na Gaacutelia acarretaram o aumento de seu poder de
sua popularidade e da ira de seus inimigos Estes influenciados por Catatildeo o Jovem (tambeacutem
jaacute referido no romance de Machado) tentaram promover sua ruiacutena poliacutetica Em 50 AEC o
Senado aprovou uma moccedilatildeo para que Ceacutesar fosse retirado do cargo de governador na Gaacutelia
Marco Antocircnio embasado pelo poder de tribuno do povo vetou a proposta Apoacutes isso houve
uma intensa perseguiccedilatildeo aos partidaacuterios de Juacutelio Ceacutesar Antocircnio precisou deixar Roma por
conta da alta probabilidade de ser assassinado e sem oposiccedilatildeo do Senado declarou estado de
emergecircncia delegando poderes excepcionais a Pompeu Magno Ceacutesar retrucou isso com a
famosa cruzada assim relatada por Suetocircnio
Dein post solis occasum mulis e proximo pistrino ad vehiculum iunctis occultissimum
iter modico comitatu ingressus est et cum luminibus extinctis decessisset via diu
errabundus tandem ad lucem duce reperto per angustissimos tramites pedibus evasit
Consecutusque cohortis ad Rubiconem flumen qui provinciae eius finis erat paulum
constitit ac reputans quantum moliretur conversus ad proximos ldquoEtiam nuncrdquo
inquit ldquoregredi possumus quod si ponticulum transierimus omnia armis agenda
eruntrdquo (Suet Jul 31 2)
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Em seguida apoacutes o pocircr do Sol atadas as mulas desde o moinho mais proacuteximo ateacute o
veiacuteculo mais escondido comeccedilou o caminho com uma modesta caravana Com as
luzes acabando ia-se embora pelo caminho Entatildeo durante o dia tendo aparecido um
guia com peacutes errantes evadiu pelas mais estreitas veredas E acompanhado pelas
coortes ateacute o rio Rubicatildeo que traccedila o limite de sua proviacutencia parou um pouco e
calculou o quanto se moveu virou-se aos mais proacuteximos e disso ldquoAteacute agora podemos
recuar porque se atravessarmos a pequena ponte todas as coisas deveratildeo ser feitas
atraveacutes das armasrdquo
Cunctanti ostentum tale factum est Quidam eximia magnitudine et forma in proximo
sedens repente apparuit harundine canens ad quem audiendum cum praeter pastores
plurimi etiam ex stationibus milites concurrissent interque eos et aeneatores rapta ab
uno tuba prosilivit ad flumen et ingenti spiritu classicum exorsus pertendit ad alteram
ripam Tunc Caesar ldquoEaturrdquo inquit ldquoquo deorum ostenta et inimicorum iniquitas
vocat Iacta alea estrdquo inquit (Suet Jul 32)
Com ele ainda de tal modo titubeando foi eficaz um prodiacutegio Apareceu de repente
ali proacuteximo uma certa pessoa que estava sentada tocando com uma flauta exiacutemia em
grandeza e forma Para o ouvirem correram muitos pastores tambeacutem muitos soldados
das guarniccedilotildees entre eles alguns tocadores de trombeta Com a trombeta tomada de
um deles o muacutesico lanccedilou-se ao rio E com um imenso vigor realizou um toque
introdutoacuterio ateacute a outra margem do rio Entatildeo disse Ceacutesar ldquoVamos para onde o sinal
dos deuses e a hostilidade dos inimigos nos chamam A sorte estaacute lanccediladardquo
Como jaacute frisamos por parte do narrador de Machado natildeo haacute nenhuma referecircncia direta
desse Ceacutesar ao bioacutegrafo Suetocircnio mas vemos relaccedilotildees diretas entre o ato da desconhecida
pessoa ldquoa caminho do poderrdquo e os atos do general romano Mais uma vez o autor foi ciruacutergico
no uso da expressatildeo destacada para a qual muito provavelmente teve acesso ao excerto de
Suetocircnio cujo conteuacutedo tambeacutem faz parte do imaginaacuterio ocidental ndash a travessia ao rio Rubicatildeo
antecedida da frase ldquoA sorte estaacute lanccediladardquo Cabe lembrar que Machado jaacute usara a expressatildeo no
capiacutetulo XIII de seu romance Helena publicado em 1876 quando o personagem Estaacutecio na
tentativa de esquecer o amor pela protagonista Helena decide pedir Eugecircnia em casamento
Naquela mesma noite ouviu Eugecircnia a esperada palavra A alegria que se lhe
derramou nos olhos foi imensa e caracteriacutestica Um pouco mais de recato natildeo era
descabido em tal ocasiatildeo Natildeo houve nenhum o primeiro ato da mulher foi uma
meninice Eugecircnia ignorava tudo ateacute a dissimulaccedilatildeo do sexo Concedendo a matildeo a
Estaacutecio natildeo era uma castelatilde que entregava o precircmio mas um cavaleiro que o recebia
com alvoroccedilo e submissatildeo
Transposto o Rubicon natildeo havia mais que caminhar direito agrave cidade eterna do
matrimocircnio Estaacutecio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr Camargo pedindo-lhe
a matildeo de Eugecircnia carta seca e digna como as circunstacircncias a pediam (Machado de
Assis Helena cap XIII p 133)
Terminadas as referecircncias ao instaurador da dinastia juacutelio-claudiana faccedilamos um salto
ao capiacutetulo CXVI intitulado Filosofia das folhas velhas no qual Braacutes Cubas alega ter ficado
tatildeo triste com o capiacutetulo anterior a este4 pelo fato de sua amante Virgiacutelia ter embarcado para a
Europa No capiacutetulo CXVI vemos referecircncia a outro imperador associado ao escrito
suetoniano nesse caso trata-se do jaacute referido Domiciano
Apoacutes um governo moderado de dez anos o do seu pai Vespasiano seguido por outro
governo tambeacutem moderado de apenas dois anos o do seu irmatildeo Tito de modo contraacuterio
4 O capiacutetulo CXV intitulado O almoccedilo
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Domiciano assume com bastante autoritarismo Durante seus quinze anos de governo o uacuteltimo
imperador flaviano cometeu assassinatos de diversos cidadatildeos importantes incluindo
senadores Essas razotildees acarretaram numa conjuraccedilatildeo para a sua morte E diferente do seu pai
e irmatildeo que foram divinizados apoacutes a morte Domiciano ldquorecebeurdquo do Senado um decreto para
a sua damnatio memoriae essa danaccedilatildeo da memoacuteria significava as retiradas de suas imagens
em bustos inscriccedilotildees etc
Esclarecidos esses pontos sobre o imperador Domiciano voltemos a Braacutes Cubas O
narrador inicia o referido capiacutetulo em questatildeo refletindo pela metalinguagem ldquoFiquei tatildeo triste
com o fim do uacuteltimo capiacutetulo que estava capaz de natildeo escrever este descansar um pouco purgar
o espiacuterito da melancolia que o empacha e continuar depois Mas natildeo natildeo quero perder tempordquo
(Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258) e continua a
reflexatildeo
A partida de Virgiacutelia deu-me uma amostra da viuvez Nos primeiros dias meti-me em
casa a fisgar moscas como Domiciano se natildeo mente o Suetocircnio mas a fisgaacute-las de
um modo particular com os olhos Fisgava-as uma a uma no fundo de uma sala
grande estirado na rede com um livro aberto entre as matildeos (Machado de Assis
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258)
O narrador-personagem machadiano Braacutes Cubas discorre sobre seu desgosto pela vida
e sobre a monotonia agrave qual estava submetido apoacutes a partida da mulher ldquoextraconjugalmenterdquo
amada Virgiacutelia Notamos que para ilustrar de modo exagerado o desacircnimo por parte de Braacutes
Cubas sendo esse abatimento comparado a uma viuvez Machado de Assis apresenta seu
defunto-autor de um modo tatildeo ocioso que fisgava as moscas apenas com os olhos Ou seja ele
eacute apresentado mais ociosamente que o imperador Domiciano que espetava moscas A fim de
captarmos essa menccedilatildeo valemo-nos do capiacutetulo 3 da biografia de Domiciano
Inter initia principatus cotidie secretum sibi horarum sumere solebat nec quicquam
amplius quam muscas captare ac stilo praeacuto configere ut cuidam interroganti
essetne quis intus cum Caesare non absurde responsum sit a Vibio Crispo ne muscam
quidem (Suet Dom 3)
Durante os iniacutecios de seu principado solitaacuterio estava ele habituado diariamente pelas
horas a colher para si nada mais que moscas e prender com um estilete pontudo Para
uma certa interrogaccedilatildeo se acaso natildeo tinha ningueacutem dentro do local com Ceacutesar de
modo adequado teria sido respondido por Viacutebio Crispo que natildeo que nem mesmo
uma mosca
Notamos entatildeo que se por um lado atraveacutes da intertextualidade Machado se volta para
o Domiciano de Suetocircnio com o intuito de descortinar o estado de alma de Braacutes Cubas por
outro Suetocircnio apresenta essa anedota das moscas para condicionar seu leitor a um juiacutezo
negativo sobre o retrato moral de Domiciano que nada fazia em prol da burocracia puacuteblica no
iniacutecio de seu principado Essa anedota sobre Domiciano com Viacutebio Crispo enquanto locutor
jamais deixaria de ser apresentada por Suetocircnio haja vista que os atos burocraacuteticos bem como
as accedilotildees militares e diplomaacuteticas faziam parte das temaacuteticas de suas biografias Somos tentados
a crer que o fato de Suetocircnio ser oriundo da ordem dos equestres e mais tarde ter assumido
algumas funccedilotildees puacuteblicas durante o principado de Trajano e de Adriano tambeacutem teria
contribuiacutedo para sua atenccedilatildeo a esses tipos de chistes
Embora Suetocircnio natildeo seja visto como um historioacutegrafo mas sim como um erudito
bioacutegrafo e natildeo tenha pertencido agrave ordem senatorial sabemos que ele enveredou pela tradiccedilatildeo
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historiograacutefica senatorial isto eacute aquela que retratava moralmente bem os imperadores
favoraacuteveis ao Senado e moralmente mal os refrataacuterios a esse corpo Isso talvez tenha se dado
graccedilas ao seu contato com o influente senador Pliacutenio o Jovem e ao participar do seu ciacuterculo
de amizades tambeacutem teve contato com os historiadores Taacutecito e Faacutebio Ruacutestico Podemos
depreender que Domiciano natildeo deixou de apresentar motivos para ser exageradamente mal
retratado pela pena suetoniana e por isso a ressalva de Braacutes Cubas que diz ldquose natildeo mente o
Suetocircniordquo
Avancemos ao capiacutetulo CLII intitulado A moeda de Vespasiano no qual encontramos a
uacuteltima menccedilatildeo feita desde seu tiacutetulo a um imperador romano retratado por Suetocircnio Em tal
capiacutetulo na volta do enterro de Lobo Neves Braacutes Cubas refletia sobre o choro mais
precisamente sobre os soluccedilos sinceros da sua amante Virgiacutelia para o marido ao qual tinha
traiacutedo com igual sinceridade
Jaacute sabemos algumas informaccedilotildees acerca do ceacutesar em questatildeo todavia vale reforccedilar que
foi ele quem saiu vitorioso do conhecido historicamente Ano dos Quatro Imperadores em 69
Apoacutes o suiciacutedio ocorrido em 68 do uacuteltimo juacutelio-claudiano ndash o polecircmico Nero ndash que natildeo havia
deixado ningueacutem para linha sucessoacuteria os generais Galba Otatildeo Viteacutelio e Vespasiano atraveacutes
de sucessivos confrontos armados guerrearam entre si ansiando o trono deixado por Nero
Com a vitoacuteria de Vespasiano eacute instaurada a dinastia flaviana Entatildeo passemos ao curto capiacutetulo
das Memoacuterias Poacutestumas em completude
Tinham ido todos soacute o meu carro esperava pelo dono Accendi um charuto afastei-
me do cemiteacuterio Natildeo podia sacudir dos olhos a cerimocircnia do enterro nem dos ouvidos
os soluccedilos de Virgiacutelia Os soluccedilos principalmente tinham o som vago e misterioso
de um problema Virgiacutelia traiacutera o marido com sinceridade e agora chorava-o com
sinceridade Eis uma combinaccedilatildeo difiacutecil que natildeo pude fazer em todo o trajecto em
casa poreacutem apeando-me do carro suspeitei que a combinaccedilatildeo era possiacutevel e ateacute
faacutecil Meiga Natura A taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave
origem e tanto se colhe do mal como do bem A moral repreenderaacute porventura a
minha cuacutemplice eacute o que te natildeo importa implacaacutevel amiga uma vez que lhe recebeste
pontualmente as laacutegrimas Meiga trecircs vezes Meiga Natura (Machado de Assis
Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CLII p 294)
Percebemos que na busca pela anaacutelise do estado de alma de sua amada Virgiacutelia o narrador
Braacutes Cubas reverbera que ldquoA taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave origem
e tanto se colhe do mal como do bemrdquo Mas de onde ele teria tirado essas relaccedilotildees semacircnticas
entre o imperador Vespasiano-moeda-taxa-cheiro Pois bem Mais uma vez quem nos traz a
resposta eacute Suetocircnio
Reprehendenti filio Tito quod etiam urinae vectigal commentus esset pecuniam ex
prima pensione admovit ad nares sciscitans num odore offenderetur et illo negante
ldquoAtquin inquit e lotio estrdquo (Suet Vesp 233)
Repreendeu seu filho Tito porque ele Vespasiano teria inventado um imposto sobre
a urina que por aquele foi advertido entatildeo aproximou o dinheiro do primeiro
pagamento desse tributo do nariz de Tito E perguntando-o se acaso natildeo se sentia
incomodado com odor e Tito negando Vespasiano respondeu No entanto eacute
proveniente da urinardquo
Na curiosa anedota Vespasiano criador de um imposto sobre a urina pois muitos
comerciantes as retiravam das latrinas puacuteblicas e as utilizavam para curtir os tecidos que
vendiam repreende o primogecircnito por ter discordado inicialmente da ideia Natildeo temos duacutevidas
Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas
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de que Machado de Assis teve acesso a essa biografia para usar com propriedade em seu
romance nessa cena em que seu narrador busca explicaccedilotildees para fatos aparentemente
contraditoacuterios
Esse excurso pelas duas obras aparentemente distantes e des-relacionadas nos deu a liccedilatildeo
de que o narrataacuterio enquanto entidade leitora fictiacutecia compreende e decodifica os aspectos
concernentes agraves personalidades em apreccedilo os princepes no entanto para o leitor ideal isso se
mostra mais obscuro Machado de Assis aproveita os questionaacuteveis retratos dos ceacutesares de
Suetocircnio para enriquecer sua obra literaacuteria
Assim contribuindo mais para a compreensatildeo do romance machadiano pela anaacutelise da
traduccedilatildeo a qual nos permitiu o estudo sobre as referecircncias agrave histoacuteria agrave cultura e agrave literatura da
Roma Antiga cristalizados pelos Claacuteudio Tito Ceacutesar Domiciano e Vespasiano suetonianos
os esforccedilos empreendidos teratildeo alcanccedilado seu objetivo nessas ressignificaccedilotildees Se as
referecircncias e os eventos atrelados a esses ceacutesares que nos foram ldquodadosrdquo pelas biografias de
Suetocircnio tiverem sido descortinados dentro das Memoacuterias Poacutestumas de Machado de Assis
podemos ficar sem ldquoideias fixasrdquo de que criamos ldquodespropoacutesitosrdquo
IacuteNDICE DE ABREVIACcedilOtildeES
Suet Cl (Suetocircnio Claacuteudio)
Suet Dom (Suetocircnio Domiciano)
Suet Jul (Suetocircnio Juacutelio Ceacutesar)
Suet Tit (Suetocircnio Tito)
Suet Ves (Suet Vespasiano)
DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL
ASSIS Joaquim Maria Machado de Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Rio de Janeiro
Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975
______ Helena Rio de Janeiro Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975
SUETONIUS Lives of the Caesars Volume I Julius Augustus Tiberius Gaius
Caligula Translated by J C Rolfe Introduction by K R Bradley Loeb Classical Library 31
Cambridge MA Harvard University Press 1914
______ Lives of the Caesars Volume II Claudius Nero Galba Otho and Vitellius
Vespasian Titus Domitian Lives of Illustrious Men Grammarians and Rhetoricians
Poets (Terence Virgil Horace Tibullus Persius Lucan) Lives of Pliny the Elder and
Passienus Crispus Translated by J C Rolfe Loeb Classical Library 38 Cambridge MA
Harvard University Press 1914
Bruno Torres dos Santos
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 35
REFEREcircNCIAS
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LUCIacuteOLA E O TRAacuteGICO ESTUDO ACERCA DAS MARCAS DO HEROacuteI
TRAacuteGICO EM UM PERFIL DE MULHER ALENCARIANO
Heitor Victor
RESUMO Recorrer aos claacutessicos para entender nosso tempo natildeo eacute mesmo nenhuma novidade
Apelar para a trageacutedia grega a fim de identificar o que persiste em nossa compreensatildeo acerca
de noacutes mesmos se tornou lugar comum de investigaccedilotildees em diversas aacutereas de interesse Tal
estrateacutegia se repete em razatildeo evidentemente de uma inesgotaacutevel potecircncia alegoacuterica acerca da
existecircncia humana O que pretendo neste breve trabalho eacute uma anaacutelise em linha comparativa
das marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia de Alencar personagem que o proacuteprio autor considera
um de seus perfis de mulher Para tal dialogo com Benjamin que se apresenta como um elo de
compreensatildeo do heroacutei traacutegico figura esta que se mostrou mais longeva do que a proacutepria trageacutedia
helecircnica
PALAVRAS-CHAVE Luciacuteola Traacutegico Heroiacutena
LUCIacuteOLA AND THE TRAGIC ESSAY ABOUT THE MARKS OF THE
TRAGIC HERO IN A WOMAN PROFILE OF JOSEacute DE ALENCAR
ABSTRACT It is no novelty that a return to the classics helps to understand our own time It is
even a commonplace in many research fields that an approach to greek tragedy makes it
possible for us to better understand ourselves Such a strategy still turns out to be suitable
because there is an ongoing possibility of creating allegories of human existence My aim in
this short essay is to perform a comparative analysis of the tragical features of Luacutecia an
important character of Joseacute de Alencars prose who the author himself deems to be a crucial
example of his depictions of the feminine In order to do that I draw upon Walter Benjamins
work which provides us with a comprehensive overview of the tragic hero - who actually
proved himself to be more important than the helenic tragedy itself
KEYWORDS Luciacuteola Tragic Heroine
Introduccedilatildeo
O teatro traacutegico dos gregos natildeo pode mais retornar isso eacute um fato mas eacute marcante a sua
presenccedila ainda em nossa literatura ocidental Analisar o elemento traacutegico natildeo eacute necessariamente
uma novidade mas sempre se mostra desafiador relacionarmos o traacutegico agrave estrutura de
composiccedilatildeo da personagem do romance na literatura moderna O presente trabalho pretende
Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
E-mail heitor-victorhotmailcom
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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pois fazer uma leitura da personagem Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar pioneira da
seacuterie perfis de mulher como construiacuteda sob o signo do traacutegico uma heranccedila legada pelo teatro
grego e que perdura em nossa cultura
O desafio que salta aos olhos eacute certamente as dificuldades de se transpor para o romance
caracteriacutesticas da personagem do texto dramaacutetico ou entender nesta a capacidade de se
apresentar com a profundidade comum ao romance Eacute possiacutevel entender contudo que retiradas
as divergecircncias praacuteticas do meio de veiculaccedilatildeo das narrativas sobram elementos em comum
que residem no imaginaacuterio coletivo e soacute fazem enriquecer o repertoacuterio de leituras que nos
permite a prosa alencariana do seacuteculo XIX
Luacutecia eacute uma das heroiacutenas mais complexas de seu autor capaz de em poucas paacuteginas
fazer o leitor se questionar sobre sua verdadeira natureza ora por sua candura ora por sua ironia
aacutecida apego e desprendimento iacutempares no cenaacuterio romanesco de um tempo que vecirc transbordar
a quantidade de novas e encantadoras personagens Nossa heroiacutena permite-nos destacaacute-la
exatamente por encerrar um signo que extrapola o estilo de seu tempo por meio de grandes
dicotomias autoconsciecircncia e culpa sacrifiacutecio e desejo silecircncio e seduccedilatildeo a personagem se
nos mostra uacutenica no cenaacuterio veloz e dinacircmico dos romances de folhetim
Sublime Decaiacutedo Uma Alegoria
No intuito de criar um elemento intermediaacuterio entre o heroacutei da trageacutedia e o heroacutei traacutegico
que mostrarei estar presente no romance Luciacuteola de Joseacute de Alencar seraacute preciso recorrer agrave
descriccedilatildeo desse heroacutei feita por Walter Benjamin (2011) acerca do drama traacutegico alematildeo
Enquanto aparato cecircnico ou mesmo de criaccedilatildeo literaacuteria encontramos outro contexto e outra
realidade mas o elemento fundamental ainda estaraacute laacute presente O heroacutei traacutegico manteraacute uma
seacuterie de aspectos essenciais que o transformam no portador da anguacutestia humana sem perder o
inexoraacutevel do mito despido ainda mais do movimento de ritualizaccedilatildeo religioso Eacute o traacutegico que
permanece e esse seraacute fundamental para a construccedilatildeo de uma identidade nacional do drama
alematildeo segundo o autor o que nos mostra o potencial desse heroacutei traacutegico no processo de
aproximaccedilatildeo entre o discurso formador e o seu espectador (BENJAMIN 2011)
Um primeiro elemento identificado por Benjamin (2011) que nos interessa no heroacutei
traacutegico eacute o seu caraacuteter alegoacuterico se eacute que posso falar em alegoria do mito que jaacute o eacute em essecircncia
Certamente contudo figura nesse elemento a grande potecircncia reflexiva da personagem traacutegica
que poderaacute ser transportado para Luacutecia Ao relevarmos a ambiccedilatildeo do autor de traccedilar perfis de
mulher1 a alegoria destaca Luacutecia de Emiacutelia e Aureacutelia o que faz evidenciar naquela a tragicidade
em comparaccedilatildeo com estas Deixe-me verificar antes e em linhas mais gerais o que entende
Benjamin por alegoria no drama traacutegico
Devo dispensar em razatildeo de objetivos praacuteticos a discussatildeo do autor acerca das
concepccedilotildees de alegoacuterico e simboacutelico para o barroco e para o romantismo para ir diretamente ao
ponto o alegoacuterico eacute entendido como aquele que supera a unidade da obra e se posiciona com
transcendecircncia agrave medida que o siacutembolo se encerra em si mesmo mostra identidade e um caraacuteter
proacuteprio da obra em que se coloca Benjamin recorre a Goethe para mostrar a concepccedilatildeo
romacircntica de siacutembolo e alegoria ldquoHaacute uma grande diferenccedila entre o poeta procurar o particular
para chegar ao geral e contemplar o geral no particular No primeiro procedimento temos uma
alegoria e o particular serve apenas como exemplo como caso exemplar do geralrdquo
(BENJAMIN 2011 p 171)
1 Natildeo devemos deixar de reconhecer que essa intenccedilatildeo descritiva de construccedilatildeo de um perfil apresenta-se como
um elemento romanesco do narrador de Luciacuteola Como visto no primeiro capiacutetulo da obra quando o narrador
se justifica a G M sua pretensa correspondente ldquoEacute um perfil de mulher apenas esboccediladordquo (ALENCAR 1972
p 121) A todo momento que eu tocar nesse ponto se deve reconhecer que a nossa base reside antes de tudo
nesse caraacuteter narrativo do romance alencariano
Heitor Victor
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A despeito da valoraccedilatildeo feita por Goethe seguiremos a leitura de Benjamin para
entender Luacutecia como o caso particular representativo de um perfil maior o da mulher que
encarna o anjo caiacutedo seu nome daacute a grande indicaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo alegoacuterica mas a mesma
natildeo deixa de aparecer ao longo da obra Reconhecerei em minha anaacutelise na Luacutecia de Alencar
a alegoria da mulher sublime que decai em todo o seu caraacuteter duacutebio mas ainda assim
permanente que morre ao final do romance natildeo agrave toa mas de maneira necessaacuteria para
consolidar a aspiraccedilatildeo alegoacuterica desse perfil de mulher talvez o mais ousado de Alencar
Benjamin reconhece que
o seu (da alegoria) significado eacute aquele que o alegorista lhe atribuir Ele investe-o
desse significado e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele natildeo em sentido
psicoloacutegico mas ontoloacutegico Nas suas matildeos a coisa transforma-se em algo de diverso
atraveacutes dela ele fala de algo de diverso e ela torna-se para ele a chave que lhe daacute acesso
a um saber oculto que ele venera na coisa como seu emblema Eacute nisso que reside o
caraacuteter escritural da alegoria (BENJAMIN 2011 p 196)
Esse seraacute portanto o meu ponto de partida Para natildeo deixar qualquer duacutevida sobre essa
relaccedilatildeo devo me deter nesse tema ainda para mostrar na obra algumas marcas dessa relaccedilatildeo A
comeccedilar pelo elemento dramaacutetico de narraccedilatildeo o recado de G M ldquoao autorrdquo Apoacutes reconhecer
a grandeza da personagem e o valor da narrativa que se seguiraacute dramaticamente posta como
uma publicaccedilatildeo da mesma G M afirma ldquoNatildeo seraacute a imagem verdadeira da mulher que no
abismo da perdiccedilatildeo conserva a pureza drsquoalmardquo (ALENCAR 1972 p 120) Natildeo se pode
desaperceber que eacute usado natildeo a referecircncia definida dedicada agrave Luacutecia mas uma referecircncia geral
a todas as mulheres Eacute exatamente nesse caraacuteter geneacuterico que residiria o valor alegoacuterico de que
trato neste trabalho
Podemos tambeacutem recorrer aos eventos narrados no interior do romance para vermos
personificada a alegoria do anjo caiacutedo seja pela capacidade de transitar com primor entre um e
outro digo entre o angelical e o demoniacuteaco ou seja por encerrar em si mesma os dois
extremos Luacutecia se nos apresenta apenas pela narrativa de Paulo natildeo se pode esquecer e muito
de sua transitoriedade pode residir apenas nas impressotildees desse narrador personagem mas isso
em nada muda o seu caraacuteter alegoacuterico Um episoacutedio que expressa com clareza a ambivalecircncia
de Luacutecia eacute o de seu primeiro encontro iacutentimo com Paulo Em curto espaccedilo de tempo
cronoloacutegico e narrativo vemos uma transformaccedilatildeo que beira a ida pronta do sagrado ao
profano No momento em que avanccedila sobre Luacutecia Paulo reconhece
Quando poreacutem os meus laacutebios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as
formas encantadoras que debuxavam a seda pareceu-me que o sangue lhe refluiacutea ao
coraccedilatildeo As palpitaccedilotildees eram bruscas e precipites Estava liacutevida e mais branca do que
o alvo colarinho do seu roupatildeo Duas laacutegrimas em fio duas laacutegrimas longas e sentidas
como dizem que chora a corccedila expirando pareciam cristalizadas sobre a face de tatildeo
lentas que rolavam (ALENCAR 1972 p 134-135)
Vemos aqui com a reaccedilatildeo genuiacutena de Luacutecia somada agraves laacutegrimas sua comparaccedilatildeo ao
choro da corccedila notamos aqui o temperamento puro que nos surpreende a todos narrador e
leitor Surpresa que se justifica com a mudanccedila abrupta de Luacutecia para entregar a imagem que
nos foi construiacuteda pelos pares de Paulo de que nossa heroiacutena se tratava de uma cortesatilde das mais
haacutebeis
Era outra mulher O rosto cacircndido e diaacutefano que tanto me impressionou agrave doce
claridade da lua se transformara completamente tinha agora uns toques ardentes e
um fulgor estranho que o iluminava Os laacutebios finos e delicados pareciam tuacutemidos dos
desejos que incubavam Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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narina que tremiam com o aneacutelito do respiro curto e sibilante e tambeacutem nos fogos
surdos que incendiavam a pupila negra (ALENCAR 1972 p 136)
Nessa transformaccedilatildeo se apresenta a indistinguiacutevel transiccedilatildeo do sagrado do choro da
corccedila para a respiraccedilatildeo sibilante demoniacuteaca em lasciacutevia Seria inuacutetil continuar enumerando os
momentos em que se evidencia tal transformaccedilatildeo acredito que esses episoacutedios partem da
anteriormente citada alegoria que pode nortear nossa leitura do romance
Natildeo nos seraacute nunca possiacutevel bater o martelo sobre tal questatildeo seria Luacutecia o siacutembolo de
Goethe ou a alegoria de Benjamin Somando contudo as marcas supracitadas a ainda o
reconhecimento de outras marcas do traacutegico preferirei me manter na leitura de Benjamin de
que o alegoacuterico eacute ainda desejaacutevel mesmo no romance exatamente por seu valor transcendente
e assim poderemos entender Luacutecia e seu perfil exclusivo de mulher como tambeacutem dotado de
valor reflexivo e generalista das anguacutestias femininas
Marcas do Heroacutei Traacutegico
As laacutegrimas do episoacutedio transcrito acima servem como indicador do demais elementos
de proximidade entre o heroacutei traacutegico de Benjamin e a Luacutecia de Alencar Tal choro evidencia
uma dor suprimida mas acima de tudo encerra em si quatro aspectos sobre os quais tratarei
neste trabalho o silecircncio a culpa a consciecircncia e o sacrifiacutecio O silecircncio de quem guarda para
si o seu verdadeiro eu suas dores e reflexotildees Eacute nas laacutegrimas que temos o primeiro vislumbre
da profundidade traacutegica de Luacutecia A personagem demonstra nesse exato momento plena
consciecircncia de si de seu destino e sente a culpa que pesa sobre si as laacutegrimas expressam o
ardor do seu sacrifiacutecio pois satildeo sublimadas por sua candura Vejamos adiante o que pretendo
dizer com esses quatro aspectos e sua relaccedilatildeo com o traacutegico
Devo principiar contrariando a ordem anterior pelo sacrifiacutecio para manter a
abordagem de Benjamin O autor entende que o heroacutei traacutegico realiza sua atuaccedilatildeo maior em sua
proacutepria morte o sacrifiacutecio maior e que eacute exatamente entatildeo que o heroacutei se distingue dos demais
indiviacuteduos Benjamin afirma
A marca identificativa da trageacutedia natildeo estaacute pois num conflito de niacuteveis entre o heroacutei
e mundo circundante [] mas sim a forma uacutenica grega de tais conflitos E onde deve
ser procurada essa forma Que tendecircncia se esconde no fenocircmeno traacutegico Por que
causa morre o heroacutei A poesia traacutegica assenta na ideia do sacrifiacutecio (BENJAMIN
2011 p 108)
Luacutecia se sacrifica natildeo apenas porque morre mas se encerra em sua morte uma entrega
definitiva a Paulo e agrave sua irmatilde Ana A morte de Luacutecia eacute decisiva para a construccedilatildeo e para a
profundidade da personagem aleacutem de ser elemento fundamental para a generalidade
constitutiva da alegoria Ainda mais que o sacrifiacutecio do heroacutei traacutegico natildeo eacute um sacrifiacutecio
comum Seguindo ainda o raciociacutenio de Benjamin temos
o sacrifiacutecio traacutegico difere no seu objeto ndash o heroacutei ndash de todos os outros e eacute ao mesmo
tempo inaugural e terminal Terminal no sentido do sacrifiacutecio expiatoacuterio devido aos
deuses guardiatildees de um antigo direito e inaugural no sentido de uma accedilatildeo que em
algum lugar desse direito anuncia novos conteuacutedos da vida do povo (BENJAMIN
2011 p 108)
Ou seja o sacrifiacutecio de Luacutecia eacute terminal expiatoacuterio de sua vida de perfiacutedia Luacutecia
reconhece em seus uacuteltimos momentos para Paulo a sua importacircncia e exatamente por isso por
ele se sacrifica
Heitor Victor
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ndash Paulo Paulo Tu bem sabes que com essa palavra me farias cometer crimes se
crimes fosse necessaacuterio para te provar que eu soacute vivo da vida que me daacutes e me podes
tirar com um sopro Natildeo sou eu criatura tua natildeo renasci pela luz que derramaste em
minha alma Natildeo eacutes meu senhor meu artista meu pai e meu criador (ALENCAR
1972 p 243)
O sacrifiacutecio de Luacutecia como se evidencia natildeo estaacute apenas na morte mas na sua entrega
completa Entrega que se apresenta como sua uacutenica forma de se redimir da vida que levara O
sacrifiacutecio reconhecendo ainda tais aspectos de Benjamin eacute tambeacutem inaugural quando se
direciona a Ana sua irmatilde em quem enxerga a uacutenica continuidade possiacutevel Seja para sua
protegida ou mesmo para a continuidade da vida de Paulo possiacutevel apenas com o encerramento
da sua proacutepria vida
Outro aspecto do heroacutei traacutegico de Benjamin presente em Luciacuteola eacute o silecircncio jaacute
mencionado anteriormente ldquoO heroacutei traacutegico tem apenas uma linguagem que plenamente lhe
corresponde precisamente a do silecircncio Assim eacute desde o iniacuteciordquo (BENJAMIN 2011 p 109)
Esse silecircncio eacute identificaacutevel em diversos momentos em Luacutecia pois evoca a resiliecircncia da
heroiacutena com o seu fardo Natildeo eacute um silecircncio de conformismo ou mesmo qualquer espeacutecie de
natildeo se importar que a toma mas ldquoo testemunho de um sofrimento mudordquo (BENJAMIN 2011
p 109) Eacute com esse silecircncio que Luacutecia arrebata o leitor para o seu drama pessoal natildeo como um
perseguidor ou inquisidor mas como partiacutecipe de seu pesar de sua dor Tal silecircncio aparece
nos momentos de prazer como quando se divertia no banquete noturno na casa de Saacute ldquoLuacutecia
fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria e caiacutera no costumado abatimento e distraccedilatildeo Eu a
contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava
quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaiacutedordquo (ALENCAR 1972 p 152-
153) Ou mesmo em sua face mais sincera jaacute como Maria ldquoQuando cheguei Luacutecia estava soacute
no jardim debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujaacutes tatildeo absorvida em sua
meditaccedilatildeo que natildeo me percebeurdquo (ALENCAR 1972 p 245)
Seguindo com minha anaacutelise comparativa devo abordar o aspecto da consciecircncia
fundamental para a diferenciaccedilatildeo entre uma outra personagem qualquer e o heroacutei traacutegico Esse
aspecto em especial eacute importante para a leitura que apresento por se tratar de algo que
claramente distingue o heroacutei romacircntico convencional daquele que eacute regido pelo signo do
traacutegico O heroacutei do romance desconhece completamente o seu destino e reside precisamente
nisso suas duacutevidas e questionamentos Nossa heroiacutena traacutegica contudo ainda que tambeacutem
romacircntica ndash natildeo o desejamos negar em nenhum momento se mostra consciente do seu caminho
Para esclarecer esse sentido de consciecircncia Benjamin traz uma fala de Lukaacutecs acerca do
reconhecimento da proacutepria morte
Tambeacutem a escolha da morte pelo homem traacutegico eacute um heroiacutesmo soacute aparentemente
heroico soacute assim visto de um ponto de vista humano e psicoloacutegico os heroacuteis
moribundos da trageacutedia ndash escrevia haacute pouco tempo um jovem autor traacutegico ndash estatildeo
mortos muito tempo antes de morrerem (BENJAMIN 2011 p 117)
Apenas a cargo de exemplificaccedilatildeo que se encaixa bem na ideia de reconhecimento da
morte como marca do heroacutei traacutegico podemos citar a consciecircncia apresentada por Luacutecia antes
de sua proacutepria morte ldquondash Se eu pudesse viver haveria forccedilas que me separassem de ti Haveraacute
sacrifiacutecio que eu natildeo fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade Mas Deus natildeo
quis Sinto que a vida me fogerdquo (ALENCAR 1972 p 248)
Devo tratar por fim do quarto aspecto a que me reservei neste trabalho que eacute o da culpa
Sem duacutevidas o eixo central de todo o romance de Alencar A culpa natildeo pode ser entendida
contudo como o arrependimento de seus atos ou mesmo sujeiccedilatildeo completa ao proacuteprio erro A
culpa como elemento traacutegico traz um valor de compreensatildeo Nossa heroiacutena traacutegica natildeo apenas
se lamenta da vida que fora levada a ter mas por meio da culpa ela se reconstroacutei eacute precisamente
Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano
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por meio da culpa que no fim em meio ao embate entre anjo e democircnio prevalece sua face
angelical e a alegoria alcanccedila a sua plenitude Recorro ainda agraves palavras de Benjamin para
clarificar essa noccedilatildeo de culpa no drama traacutegico
No decorrer da accedilatildeo traacutegica um heroacutei assume e internaliza essa culpa que segundo
as antigas normas eacute imposta aos homens a partir de fora pela desgraccedila Ao refleti-la
na sua consciecircncia de si ele furta-se agrave sua tutela demoniacuteaca [] Paradoxal como
todas as manifestaccedilotildees da culpa traacutegica ela consiste apenas numa orgulhosa
consciecircncia de culpa na qual a figura heroica se liberta da servidatildeo que na sua
lsquoinocecircnciarsquo a sujeita agrave culpa demoniacuteaca (BENJAMIN 2011 p 135)
Essa culpa talvez seja dentre os aspectos ateacute aqui elencados o que mais se mostra claro
ao longo de Luciacuteola Nos momentos de maior comoccedilatildeo compartilhamos com Luacutecia esse seu e
genuiacuteno sentimento e eacute precisamente graccedilas a ele que o lado sagrado desse anjo caiacutedo prevalece
e nos faz criar a empatia entre leitor e personagem Vejamos portanto dois casos que
expressam os dois extremos da culpa vivida por Luacutecia Ora tal sentimento se expressa pela
ironia como quando Paulo no evento da casa de Saacute tenta singularizar a sua presenccedila e nossa
heroiacutena rebate com acidez
ndash Ora Haacute tanta mulher bonita Qualquer destas vale mais do que eu acredite Demais
quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado saberaacute o senhor de
quem satildeo os laacutebios que toca Qual Eacute uma mulher Uma presa em que ceva o apetite
Que importa o nome Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe
prepararam esta ceia Conhece-os Nem por isso as iguarias lhe parecem menos
saborosas (ALENCAR 1972 p 153)
Em outro momento contudo vemos a culpa sob outra roupagem da maneira mais
sincera em um de seus momentos de maior entrega
ndash Tu podes me fazer voltar agrave treva de que me arrancaste podes estancar as fontes de
minha existecircncia que manam de tua alma e natildeo me haacutes de ouvir uma soacute queixa A
dor como a alegria seratildeo sempre benditas por que viratildeo de ti Mas Paulo a suacuteplica
do humilde natildeo ofende Deus a permite e exalccedila Natildeo me retires a graccedila e a becircnccedilatildeo
que me deste Salva-me Paulo Salva-me a ti Salva-me de mim mesma
(ALENCAR 1972 p 243)
Natildeo agrave toa seleciono esta uacuteltima fala de Luacutecia para encerrar a argumentaccedilatildeo pois
precisamente aqui a culpa se mostra como o elemento libertador e eacute aqui que Luacutecia talvez tenha
entendido e absorvido o orgulho citado por Benjamin para livraacute-la da tutela demoniacuteaca Liberta-
se finalmente da servidatildeo que a acomete por toda a obra A projeccedilatildeo em Paulo eacute certamente a
projeccedilatildeo em um amor libertador que foi capaz de transfigurar a modalidade da culpa que sentia
Eacute entatildeo que Luacutecia deixa claro que compreende que a dor e a alegria se complementam e assim
encerra o perfil da mulher que decaiu mas que no fim projeta em sua alegoria a clareza do seu
papel em sua proacutepria narrativa Essa compreensatildeo faz de Luacutecia a heroiacutena de Alencar que mais
beira a perdiccedilatildeo a mais altiva e capaz de se assemelhar agrave heroiacutena da trageacutedia e assim como laacute
melhor do que se realmente apresentam homens e mulheres
Conclusatildeo
Ao recorrer portanto agraves estrateacutegias de identificaccedilatildeo da interioridade e de posiccedilotildees
constitutivas do heroacutei traacutegico acredito que se torna possiacutevel clarificar como o teatro grego
passou a atuar sobre o mito por meio de maior variabilidade narrativa do mesmo Essa
possibilidade de apresentar uma personagem mais profunda ainda que por meio da accedilatildeo
Heitor Victor
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dramaacutetica eleva o texto teatral e especificamente a trageacutedia ndash que usa a personagem miacutetica
como forma de apresentar seres mais elevados do que os indiviacuteduos da sociedade ndash ao papel de
ressignificar o mito Eacute por meio dessas personagens dramaacuteticas que a fabulaccedilatildeo estaacutetica do mito
pode apresentar novos argumentos para o meio em que estaacute inserida
Reconhecendo nas estrateacutegias de interpretaccedilatildeo da personagem dramaacutetica a ferramenta
de atualizaccedilatildeo do mito despida do elemento religioso foi possiacutevel analisar com certo grau de
convicccedilatildeo o heroacutei da trageacutedia Evidenciou-se como isso o papel desse heroacutei e sua capacidade
de conduzir efetivamente a narrativa miacutetica para novos caminhos interpretativos possibilitando
essa narrativa a se apresentar sob nova perspectiva O heroacutei visto dessa maneira ganha
destaque como formador de questionamentos e permite ao leitorespectador por meio do
elemento traacutegico estabelecer nova compreensatildeo
Esse heroacutei traacutegico permanece com o seu poder reflexivo mesmo fora do contexto miacutetico
levando-nos ao reconhecimento do traacutegico como formador efetivo de questionamentos Satildeo
estes aspectos traacutegicos que Benjamin identifica como herdeiros do teatro grego no teatro
alematildeo que eu resgato como possiacuteveis na construccedilatildeo de profundidade do heroacutei do romance eacute
precisamente sob esses aspectos que Luacutecia ndash a heroiacutena romacircntica mas dotada do elemento
traacutegico ndash eacute capaz de saltar aos olhos do leitor como dona de seu proacuteprio destino jamais apenas
sujeita ao mesmo Com isso cada traccedilo da heroiacutena de Alencar eacute capaz de se mostrar natildeo apenas
como marca de um perfil de mulher mas tambeacutem o perfil de um aspecto comum a todas as
mulheres Somente por meio da alegoria do anjo caiacutedo se poderia alcanccedilar tamanha projeccedilatildeo
dentro de um cenaacuterio em que o indiviacuteduo eacute professado como ponto central da construccedilatildeo de
uma obra de arte
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CARACTERIZACcedilAtildeO SIMBOacuteLICA ATRAVEacuteS DE SIacuteMILES
ANIMAIS NA ILIacuteADA
Marco Valeacuterio Classe Colonnelli (Universidade Federal da Paraiacuteba)
RESUMO O intuito deste artigo eacute demonstrar a partir de alguns siacutemiles como Homero
produz uma caracterizaccedilatildeo concisa de seus heroacuteis A perspectiva de abordagem neste
estudo eacute comprovar a eficaacutecia do uso dos siacutemiles pelo poeta em consonacircncia com a obra
de Aristoacuteteles Investigaccedilatildeo dos Animais que nos permite aferir certo valor simboacutelico de
determinados animais ainda no seacutec IV aC Partindo de comparaccedilotildees com animais o
poeta produz siacutemiles que formam um quadro imediato e eficaz do heroacutei projetado pela
forccedila simboacutelica e analoacutegica que o animal evoca como termo comparativo na cultura grega
arcaica e claacutessica
PALAVRAS-CHAVES Caracterizaccedilatildeo Iliacuteada Homero siacutemiles eacutepica Aristoacuteteles
SYMBOLIC CHARACTERIZATION THROUGH SIMILES
ANIMALS IN THE ILIAD
ABSTRACT The purpose of this article is to demonstrate from some similes how Homer
produces a concise characterization of his heroes The prospect of approach in this study
is to prove the efficacy of the use of similes by the poet in accord with the work of
Aristotle Research of the Animals which allows us to assess certain symbolic value of
certain animals even in the 4th century BC Starting from the comparison with animals
the poet produces similes that form an immediate and effective framework of the hero
projected by the symbolic and analogue force that the animal evokes as a comparative
term in the archaic and classical Greek culture
KEYWORDS Characterization Iliad Homero Facsimiles Epic Aristotle
1 Sobre o siacutemile homeacuterico
Desde o lanccedilamento do livro de Milman Parry ldquoThe Making of Homeric Verserdquo
que revelou novas facetas para o estudo de Homero o siacutemile passou a ser estudado por
uma infinidade de autores Foacutermulas funccedilotildees oralidade sequecircncias de imagens dentre
outras caracteriacutesticas foram tatildeo sistematicamente investigadas nos siacutemiles que um resumo
sobre essas principais teorias produziria um material muito denso1
E-mail mcolonnellihotmailcom 1 Desde os estudos de Milman Parry duas principais linhas de estudos tecircm debatido calorosamente a
possibilidade de uma caracterizaccedilatildeo de personagens a despeito das foacutermulas e repositoacuterios de palavras
usados nos dois poemas eacutepicos de Homero Adam Parry filho de Milman em seu artigo ldquoLanguage and
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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O siacutemile grosso modo eacute uma comparaccedilatildeo entre coisas Coffey que analisou os
siacutemiles na eacutepica homeacuterica encontra dois grupos um que eacute
composto de uma palavra introdutoacuteria tal como ὡς seguida por um nome que
eacute frequentemente qualificado por um adjetivo ou um particiacutepio [] e casos
nos quais uma ou mais oraccedilotildees relativas contendo uma forma infinitiva ou
verbos flexionados estatildeo ligadas a uma oraccedilatildeo anterior de comparaccedilatildeordquo
(Coffey 1957 60) e outro ldquoo siacutemile longo que consiste em uma sentenccedila
separada introduzida por ὡς ὅτε ou palavras similaresrdquo2
Aqui as duas formas de siacutemiles nos interessam jaacute que a primeira trata de uma economia
em termos de caracterizaccedilatildeo e a segunda um desenvolvimento da situaccedilatildeo da personagem
em conflitos eacuteticos e psicoloacutegicos
Um pouco mais tarde Moulton passa a estudar os siacutemiles a partir de suas
sequecircncias ultrapassando o esquema fechado dos siacutemiles e de suas correspondecircncias
sintaacuteticas para ampliaacute-los ateacute uma anaacutelise semacircntica demonstrando unidades de sentido
maiores na sequecircncia do enredo Duas tambeacutem satildeo as formas encontradas por ele siacutemiles
pares e ainda siacutemiles sucessivos ou seja respectivamente um siacutemile direto simples
menor e outro longo com unidades maiores e liames semacircnticos
Coffey ainda apresenta algumas funccedilotildees que o siacutemile homeacuterico desempenha tais
como movimentaccedilatildeo descriccedilatildeo notaccedilatildeo temporal enumeraccedilatildeo caracterizaccedilatildeo dentre
outras funccedilotildees Especificamente no tocante agrave caracterizaccedilatildeo diversos siacutemiles apresentam
como termo comparativo animais Clarke por exemplo em seu artigo ldquoEntre Homens e
Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo pontua em contraste com teoacutericos que soacute veem o
siacutemile como uma ornamentaccedilatildeo formulaica que ldquoo simbolismo envolvendo animais
selvagens e agressivos eacute muito maior que uma questatildeo de estilo e que eles desempenham
grande papel no retrato de Homero dos problemas eacuteticos e psicoloacutegicos do heroiacutesmordquo
(Clarke 2006 p 2)
Eacute desse ponto de vista entatildeo que partimos em nossa investigaccedilatildeo ou seja
examinar em suas duas formas o potencial que os siacutemiles animais possuem na Iliacuteada
como teacutecnica de caracterizaccedilatildeo3 Eacute necessaacuterio tambeacutem antes determinar para que o
quadro de comparaccedilatildeo seja efetivo o valor simboacutelico que cada animal pode atribuir ao
seu comparante dentro da estrutura do siacutemile e soacute assim procedermos com a anaacutelise de
caracterizaccedilatildeo
2 A simbologia dos animais como elemento caracterizador
Estudar a caracterizaccedilatildeo de uma personagem sem seu caraacuteter (ἦθος) manifesto
pode parecer uma empresa arriscada Entretanto eacute possiacutevel determinar este caraacutecter
atraveacutes de analogias que deixam entrever certos estados eacuteticos e psicoloacutegicos das
personagens Eacute dessa forma que entendemos com Clark que
Characterization in Homerrdquo jaacute havia contestado boa parte dos epiacutetetos formulaicos para demonstrar certa
habilidade do poeta eacutepico em sua construccedilatildeo de caracterizaccedilatildeo No tocante aos siacutemiles M Coffey em
ldquoThe function of the Homeric Similerdquo demonstra como os siacutemiles desempenham diversas funccedilotildees dentre
elas a de caracterizaccedilatildeo e ainda mais Carroll Moulton em ldquoSimiles in the Iliadrdquo e ldquoSimile Sequencesrdquo
aponta como os siacutemiles produzem caracterizaccedilatildeo e influenciam em toda narrativa posterior para aleacutem de
uma foacutermula meramente ornamental respectivamente Importante contribuiccedilatildeo tambeacutem eacute o artigo de
Michel Clark ldquoEntre Homens e Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo que aponta comportamentos eacuteticos e
psicoloacutegicos nos siacutemiles animais 2 Todas as traduccedilotildees satildeo de responsabilidade do autor Texto grego extraiacutedo das ediccedilotildees de Paul Mazon e
Balme 3 Cf Adam Parry 1972 p 1-22
Marco V C Colonnelli
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Os siacutemiles animais satildeo um excelente candidato para gerar tal tipo de sistema
eles satildeo tantos e tatildeo variados nas conexotildees que forjam que seu efeito
combinado pode natildeo apenas ampliar a narrativa mas de fato assimilar
aspectos da aparecircncia das personagens e da personalidade do guerreiro ao
animal (Clark 2006 p 4)4
Um dado relevante neste universo eacutepico eacute que ldquoos animais de Homero tecircm
igualmente o mesmo aparato emocional e cognitivo que os homensrdquo (Clark 2006 11)
Na Iliacuteada poreacutem jamais encontraremos algum tipo de eacutethos (ἦθος) aplicado ao animal
mas somente o contraacuterio disso o animal conferindo eacutethos ao homem Em Homero os
animais estatildeo encobertos por uma carga simboacutelica que os determina em certos aspectos
com traccedilos bem definidos Mas como eacute possiacutevel atribuir um eacutethos ao animal Como ver
tacitamente no animal um eacutethos humano Para entendermos melhor essa relaccedilatildeo eacute
preciso recorrermos a Aristoacuteteles
Em seu tratado Investigaccedilatildeo dos Animais o filoacutesofo faz uma afirmaccedilatildeo que parece
se coadunar com o mundo homeacuterico
Haacute pois tambeacutem em muitos desses outros animais traccedilos de caracteriacutesticas
psiacutequicas que nos homens possuem diferenccedilas mais claras Assim mansidatildeo
e ferocidade doccedilura e violecircncia coragem e covardia temor e ousadia vontade
e astuacutecia estatildeo em muitos animais semelhantes aos homens tambeacutem ateacute em
inteligecircncia
῎Ενεστι γὰρ ἐν τοῖς πλείστοις καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ἴχνη τῶν περὶ τὴν ψυχὴν
τρόπων ἅπερ ἐπὶ τῶν ἀνθρώπων ἔχει φανερωτέρας τὰς διαφοράςmiddot καὶ γὰρ
ἡμερότης καὶ ἀγριότης καὶ πραότης καὶ χαλεπότης καὶ ἀνδρία καὶ δειλία καὶ
φόβοι καὶ θάρρη καὶ θυμοὶ καὶ πανουργίαι καὶ τῆς περὶ τὴν διάνοιαν συνέσεως
ἔνεισιν ἐν πολλοῖς αὐτῶν ὁμοιότητες [] (Arist Investigaccedilotildees sobre os
animais 588 a 19-25)
Aristoacuteteles reconhece duas caracteriacutesticas psiacutequicas diferentes entre os animais e
os homens A primeira eacute de grau ou seja entre os homens uns teratildeo mais outros menos
dessas caracteriacutesticas e a mesma relaccedilatildeo entre homens e animais A segunda eacute por
analogia ou seja por certa semelhanccedila entre as caracteriacutesticas psiacutequicas dos homens
comparadas a certas manifestaccedilotildees nos animais5 Partindo dessa premissa analoacutegica
Aristoacuteteles neste tratado delineia o caraacuteter de alguns animais com base em sentimentos
humanos A analogia que faz a ponte entre essas constituiccedilotildees psiacutequicas se vale tambeacutem
do simbolismo que cada animal possuiacutea jaacute entre os gregos Este simbolismo natildeo tem um
vieacutes religioso ainda que seja necessaacuterio reconhecer essa dimensatildeo simboacutelica na cultura
grega6 mas meramente empiacuterico
Eacute nesse sentido que vamos encontrar em Aristoacuteteles a aplicaccedilatildeo do eacutethos humano
por analogia aos animais Worther tambeacutem assinala que
Aristoacuteteles define o ἦθος como uma capacidade ou potecircncia primeira e natural
possuiacuteda por todos os animais em virtude da qual eles satildeo natildeo somente capazes
4 Moulton discorda de que isso seja possiacutevel 5 Diferenccedila segundo a analogia consiste em estabelecer que a capacidade natural de um dado animal se
encontra sob uma forma diferente mas com a mesma funccedilatildeo ou uma funccedilatildeo anaacuteloga em um outro animal
Assim a arte a sabedoria ou a inteligecircncia do homem existem em outros animais mas sob a forma de
uma capacidade que natildeo faz intervir o elemento racional que pertence propriamente ao homem
(Woerther 2007 138) 6 Natildeo se nega o valor das relaccedilotildees religiosas entre homens e animais mas deve-se tambeacutem ressaltar as
relaccedilotildees sociais e poliacuteticas que esta associaccedilatildeo releva (Bodson 1994 55)
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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de ser afetados por paixotildees como tambeacutem suscetiacuteveis de desenvolver graccedilas
agraves accedilotildees repetidas disposiccedilotildees habituais da alma (Woerther 2007 p 138)
A observaccedilatildeo do filoacutesofo sobre o eacutethos animal tambeacutem eacute extraiacuteda da proacutepria obra
de Homero de quem ele muitas vezes cita passagens para justificar seus escritos
bioloacutegicos o que nos leva a crer que as observaccedilotildees homeacutericas e aristoteacutelicas formam um
todo empiacuterico de observaccedilotildees a respeito da natureza em geral Desse saber empiacuterico o
valor do eacutethos animal passa a figurar como um siacutembolo que o animal possui em si
Vejamos agora como certos valores simboacutelicos dos animais confluem para uma
caracterizaccedilatildeo taacutecita em algumas passagens da Iliacuteada
3 Siacutemiles animais como elementos caracterizadores
Muitos siacutemiles animais podem ser encontrados na Iliacuteada O leatildeo eacute de longe o
animal mais citado como imagem para os heroacuteis entretanto outros animais como o cervo
ou a cabra que satildeo presas tambeacutem abundam nas comparaccedilotildees Alguns animais satildeo
empregados especificamente em algumas passagens de modo natildeo muito usual Em uma
passagem do canto VIII da Iliacuteada Aquiles eacute comparado a um golfinho natildeo soacute pelo locus
de sua caccedila mas tambeacutem por algumas reconhecidas qualidades deste animal Vejamos o
siacutemile
Em seguida o divino Aquiles deixou sua lanccedila na ribeira
Inclinada nos arbustos e mergulhou semelhante a um deus
Portando apenas uma espada e na mente meditava maus atos
E golpeou dando giros dos feridos pela arma uma gritaria elevou-se
Indecorosa enquanto tingia a aacutegua de vermelho
Tal como quando outros peixes dos golfinhos de grande ventre
Fugindo enchem os recantos de uma baiacutea fundeada
Aterrados pois tudo aquilo que consegue apanhar devora
Assim os Troianos para as correntes do terriacutevel rio
Fugiam pelas iacutengremes ribanceiras Aquiles quando cansou
Suas matildeos de matar recolheu do rio doze jovens vivos
Paga pela morte de Paacutetroclo filho de Meneacutecio
Αὐτὰρ ὃ διογενὴς δόρυ μὲν λίπεν αὐτοῦ ἐπ ὄχθῃ
κεκλιμένον μυρίκῃσιν ὃ δ ἔσθορε δαίμονι ἶσος
φάσγανον οἶον ἔχων κακὰ δὲ φρεσὶ μήδετο ἔργα
τύπτε δ ἐπιστροφάδηνmiddot τῶν δὲ στόνος ὄρνυτ ἀεικὴς
ἄορι θεινομένων ἐρυθαίνετο δ αἵματι ὕδωρ
ὡς δ ὑπὸ δελφῖνος μεγακήτεος ἰχθύες ἄλλοι
φεύγοντες πιμπλᾶσι μυχοὺς λιμένος εὐόρμου
δειδιότεςmiddot μάλα γάρ τε κατεσθίει ὅν κε λάβῃσινmiddot
ὣς Τρῶες ποταμοῖο κατὰ δεινοῖο ῥέεθρα
πτῶσσον ὑπὸ κρημνούς ὃ δ ἐπεὶ κάμε χεῖρας ἐναίρων
ζωοὺς ἐκ ποταμοῖο δυώδεκα λέξατο κούρους
ποινὴν Πατρόκλοιο Μενοιτιάδαο θανόντοςmiddot
(Il VIII 17-28)
Em suas investigaccedilotildees Aristoacuteteles nos fornece certos traccedilos do animal que
configuram seu eacutethos Assim em 631a ele afirma que ldquodentre os animais mariacutetimos
muitos sinais de doccedilura e inteligecircncia satildeo anunciados a respeito dos golfinhos assim
como tambeacutem em relaccedilatildeo aos filhos satildeo amorosos e apaixonadosrdquo (Τῶν δὲ θαλαττίων
πλεῖστα λέγεται σημεῖα περὶ τοὺς δελφῖνας πραότητος καὶ ἡμερότητος καὶ δὴ καὶ πρὸς
παῖδας ἔρωτες καὶ ἐπιθυμίαι ndash Arist 631a 8-11) Natildeo obstante esta caracteriacutestica doacutecil
do animal a sua destreza na caccedila tambeacutem eacute exaltada Em outra passagem ele acrescenta
Marco V C Colonnelli
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Fala-se tambeacutem coisas incriacuteveis a respeito da rapidez do animal Parece pois
que dentre todos os animais tanto da aacutegua quanto da terra eacute o mais raacutepido e
tambeacutem saltam por cima dos mastros dos grandes navios Isso lhes acontece
sobretudo quando perseguem algum peixe graccedilas a sua necessidade alimentar
Neste momento pois se o peixe fugir perseguem-no ateacute o fundo do mar por
causa de sua fome [] E girando sobre si mesmos lanccedilam-se como uma
flecha desejando percorrer com velocidade uma grande extensatildeo para respirar
Λέγεται δὲ καὶ περὶ ταχυτῆτος ἄπιστα τοῦ ζῴουmiddot ἁπάντων γὰρ δοκεῖ εἶναι
ζῴων τάχιστον καὶ τῶν ἐνύδρων καὶ τῶν χερσαίων καὶ ὑπεράλλονται δὲ
πλοίων μεγάλων ἱστούς Μάλιστα δὲ τοῦτ αὐτοῖς συμβαίνει ὅταν διώκωσί
τινα ἰχθὺν τροφῆς χάρινmiddot τότε γάρ ἐὰν ἀποφεύγῃ συνακολουθοῦσιν εἰς βυθὸν
διὰ τὸ πεινῆν [] καὶ συστρέψαντες ἑαυτοὺς φέρονται ὥσπερ τόξευμα τῇ
ταχυτῆτι τὸ μῆκος διελθεῖν βουλόμενοι πρὸς τὴν ἀναπνοήν (Arist 631a 20-
27)
A caracteriacutestica do golfinho em sua caccedila parece iluminar o curto siacutemile em que
Aquiles toma as presas de guerra A rapidez do ataque do animal o mais raacutepido dentre
todos alude a proacutepria destreza do heroacutei que tambeacutem eacute raacutepido em seu ataque e efetivo em
sua conquista O ataque eacute motivado pela voracidade da fome do animal e o modo como
ele caccedila tambeacutem estaacute representado atraveacutes dos giros que facilmente o animal executa
Aquiles golpeia girando tal como o golfinho Se o amor filial eacute a caracteriacutestica do animal
natildeo se pode negar que o iacutempeto que move o heroacutei eacute a vinganccedila pela morte de Paacutetroclo
demonstrando a amizade que os unia A comparaccedilatildeo com o golfinho eacute salutar em diversos
aspectos mas sobretudo pela inteligecircncia e pela destreza que o animal evoca na passagem
Outro animal natildeo menos mencionado em siacutemiles do que o leatildeo eacute o catildeo de caccedila
Apesar de ser um animal domesticado sua ferocidade na caccedila eacute muito representada em
siacutemiles Aristoacuteteles nos informa a respeito deles que
A raccedila dos catildees de caccedila em Molosso natildeo diferem em nada das raccedilas de outras
localidades mas a raccedila que pastoreia junto aos rebanhos difere em porte e em
coragem contra animais selvagens E diferem em coragem e dedicaccedilatildeo
tambeacutem a raccedila dos catildees gerados do cruzamento entre os de Molosso e da
Lacocircnia
Τὸ δ ἐν τῇ Μολοττίᾳ γένος τῶν κυνῶν τὸ μὲν θηρευτικὸν οὐδὲν διαφέρει πρὸς
τὸ παρὰ τοῖς ἄλλοις τὸ δ ἀκόλουθον τοῖς προβάτοις τῷ μεγέθει καὶ τῇ ἀνδρείᾳ
τῇ πρὸς τὰ θηρία Διαφέρουσι δ οἱ ἐξ ἀμφοῖν ἀνδρείᾳ καὶ φιλοπονίᾳ οἵ τε ἐκ
τῶν ἐν τῇ Μολοττίᾳ γινομένων κυνῶν καὶ ἐκ τῶν Λακωνικῶν (Arist HA 608
a 27-33)
Duas caracteriacutesticas satildeo apontadas no animal a coragem contra animais selvagens
e a sua dedicaccedilatildeo na caccedila Eacute com esse eacutethos que Heitor eacute pintado no canto VIII da Iliacuteada
no momento em que Zeus o favorece na batalha contra os Aqueus
De novo nos Troianos o Oliacutempio excitou a coragem
E eles impeliram os Aqueus direto agrave profunda trincheira
Heitor entre os primeiros movia-se fero em sua forccedila
Como quando um dos catildees de javalis selvagens ou de leotildees
Toca sucessivamente perseguindo-os com patas ceacuteleres
As coxas ou naacutedegas e tem olhos fixos em quem se vira
Assim Heitor perseguia os Aqueus de longos cabelos
Matando sempre o mais recuado enquanto os outros fugiam
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
50 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326
῍Αψ δ αὖτις Τρώεσσιν ᾿Ολύμπιος ἐν μένος ὦρσενmiddot
οἳ δ ἰθὺς τάφροιο βαθείης ὦσαν ᾿Αχαιούςmiddot
῞Εκτωρ δ ἐν πρώτοισι κίε σθένεϊ βλεμεαίνων
ὡς δ ὅτε τίς τε κύων συὸς ἀγρίου ἠὲ λέοντος
ἅπτηται κατόπισθε ποσὶν ταχέεσσι διώκων
ἰσχία τε γλουτούς τε ἑλισσόμενόν τε δοκεύει
ὣς ῞Εκτωρ ὤπαζε κάρη κομόωντας ᾿Αχαιούς
αἰὲν ἀποκτείνων τὸν ὀπίστατονmiddot οἳ δὲ φέβοντο
(Il VIII 335-343)
Na passagem acima a coragem tambeacutem encontrada no ethos animal eacute insuflada por Zeus
nos Troianos O siacutemile parece de fato retomar a qualidade deste animal em colocar em debandada
animais ferozes Entretanto a diligecircncia e a dedicaccedilatildeo do animal natildeo fica para traacutes na
representaccedilatildeo jaacute que o catildeo tem os olhos fixos nos animais que lhe satildeo superiores em porte fiacutesico
natildeo descuidando daqueles que viram O siacutemile indica sobretudo o cuidado presente no eacutethos do
animal na dispersatildeo das feras reproduzindo a imagem de heroacuteis mais fracos que inspirados pelos
deuses potildeem em debandada heroacuteis mais robustos Nesse sentido apesar da coragem eacute necessaacuteria
muita cautela na perseguiccedilatildeo para que natildeo se invertam as posiccedilotildees entre caccedila e caccedilador
Retomando a relaccedilatildeo entre os animais acima tambeacutem eacute possiacutevel perceber que o
caraacuteter dessas feras natildeo como habitualmente satildeo representadas ou seja como animais
ferozes e corajosos mas como animais que algumas vezes satildeo covardes Neste caso o
leatildeo tatildeo usado em siacutemiles de batalha para denotar violecircncia ferocidade tambeacutem possui
iacutendice de covardia Aristoacuteteles nas Investigaccedilotildees sobre os Animais observa que
Haacute duas raccedilas de Leotildees haacute uma que eacute mais roliccedila juba encaracolada e covarde
outra mais larga de juba ericcedilada e mais corajosa Fogem algumas vezes
entretanto com o rabo entre as pernas como os catildees Jaacute se viu tambeacutem um leatildeo
que estava a ponto de se lanccedilar sobre um javali e como percebeu que esse se
ouriccedilava fugiu Eacute deacutebil contra golpes em sua barriga mas suporta muitos
golpes em outra parte do corpo e tem um cabeccedila forte
Γένη δ ἐστὶ λεόντων δύοmiddot τούτων δ ἐστὶ τὸ μὲν στρογγυλώτερον καὶ
οὐλοτριχώτερον δειλότερον τὸ δὲ μακρότερον καὶ εὐθύτριχον ἀνδρειότερον
Φεύγουσι δ ἐνίοτε κατατείναντες τὴν κέρκον ὥσπερ κύνες ῎Ηδη δ ὦπται
λέων καὶ ὑῒ ἐπιτίθεσθαι μέλλων καὶ ὡς εἶδεν ἀντιφρίξαντα φεύγων ῎Εστι δὲ
πρὸς τὰς πληγὰς εἰς μὲν τὰ κοῖλα ἀσθενής κατὰ δὲ τὸ ἄλλο σῶμα δέχεται
πολλὰς καὶ κεφαλὴν ἔχει ἰσχυράν
(Arist HA 629 b 33- 639 a8)
A informaccedilatildeo que Aristoacuteteles nos traz natildeo soacute ilustra o siacutemile homeacuterico anterior
como tambeacutem demonstra que o encontro entre javalis e leotildees eram decididos por acaso
jaacute que os dois animais satildeo comumente representados na Iliacuteada como animais ferozes
Assim uma passagem pode ser lida de forma interessante quando dois grandes heroacuteis
satildeo postos frente a frente no canto VII Heitor e Aacutejax
Ambos concomitantes retirando as longas lanccedilas com as matildeos
De suacutebito se encontram parecendo leotildees apreciadores de carne
Ou selvagens javalis cuja forccedila eacute inesgotaacutevel
τὼ δ ἐκσπασσαμένω δολίχ ἔγχεα χερσὶν ἅμ ἄμφω
σύν ῥ ἔπεσον λείουσιν ἐοικότες ὠμοφάγοισιν
ἢ συσὶ κάπροισιν τῶν τε σθένος οὐκ ἀλαπαδνόν
(Il VII 255-257)
Atraveacutes desse siacutemile a passagem demonstra como forccedilas equacircnimes os dois heroacuteis
representados aiacute pela forccedila descomunal do javali e pelo apreciador de carne crua o leatildeo
Marco V C Colonnelli
Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 51
O choque entre os heroacuteis no resto da passagem natildeo terminaria jaacute que chegada a noite
o combate foi interrompido pelos arautos
O leatildeo em outros siacutemiles quando confrontado por caccediladores e catildees manifesta
cautela em seus ataques Aristoacuteteles descreve o comportamento do leatildeo face a essa
adversidade
Nas caccediladas sendo observado jamais foge ou se apavora mas se por uma
multidatildeo de caccediladores eacute forccedilado a se afastar retira-se passo a passo e com a
face voltada ao inimigo girando-se de pouco em pouco se ele se encontra
entre arbustos foge rapidamente ateacute chegar em uma clareira momento em que
de novo se afasta passo a passo Em campo aberto quando eacute forccedilado a fugir
para uma clareira por uma multidatildeo corre com passos raacutepidos e natildeo pula Sua
corrida eacute contiacutenua e extensa como a do catildeo
᾿Εν δὲ ταῖς θήραις ὁρώμενος μὲν οὐδέποτε φεύγει οὐδὲ πτήσσει ἀλλ ἐὰν καὶ
διὰ πλῆθος ἀναγκασθῇ τῶν θηρευόντων ὑπαγαγεῖν βάδην ὑποχωρεῖ καὶ κατὰ
σκέλος κατὰ βραχὺ ἐπιστρεφόμενοςmiddot ἐὰν μέντοι ἐπιλάβηται δασέος φεύγει
ταχέως ἕως ἂν καταστῇ εἰς φανερόνmiddot τότε δὲ πάλιν ὑπάγει βάδην ᾿Εν δὲ τοῖς
ψιλοῖς ἐάν ποτ ἀναγκασθῇ εἰς φανερὸν διὰ τὸ πλῆθος φεύγειν τρέχει
κατατείνας καὶ οὐ πηδᾷ Τὸ δὲ δρόμημα συνεχῶς ὥσπερ κυνός ἐστι
κατατεταμένονmiddot (Arist HA 629 b 12-20)
Ainda que muito forte a simbologia do leatildeo na Iliacuteada como o animal mais
intreacutepido dos que se encontram na obra eacute interessante tambeacutem notar que em alguns
siacutemiles de fuga o proacuteprio leatildeo o siacutembolo da coragem eacute usado para representar a fuga de
alguns heroacuteis No canto XI Aacutejax recua da seguinte maneira
Zeus pai de seu trono introduziu o medo em Aacutejax
E atocircnito ele estacou aos ombros laccedilou o escudo de sete camadas
E depois de ver uma multidatildeo fugiu semelhante a uma fera
Que se volta continuamente para traacutes alternando em breves passadas
Tal quando sobre um feroz leatildeo do curral
Dos bois afugentam catildees e pastores
E eles o impedem de arrebatar o melhor dos bois
Vigilantes por toda noite mas ele desejoso de carne
Avanccedila com zelo mas nada encontra pois dardos
Numerosos voam de corajosas matildeos em sua direccedilatildeo
E tochas acesas que teme ainda que sedento
E ao amanhecer retira-se com acircnimo aflito
Assim Aacutejax dos Troianos com o coraccedilatildeo inquieto
Afasta-se muito contrariado pois temia pelas naus dos Aqueus
Ζεὺς δὲ πατὴρ Αἴανθ ὑψίζυγος ἐν φόβον ὦρσεmiddot
στῆ δὲ ταφών ὄπιθεν δὲ σάκος βάλεν ἑπταβόειον
τρέσσε δὲ παπτήνας ἐφ ὁμίλου θηρὶ ἐοικὼς
ἐντροπαλιζόμενος ὀλίγον γόνυ γουνὸς ἀμείβων
ὡς δ αἴθωνα λέοντα βοῶν ἀπὸ μεσσαύλοιο
ἐσσεύαντο κύνες τε καὶ ἀνέρες ἀγροιῶται
οἵ τέ μιν οὐκ εἰῶσι βοῶν ἐκ πῖαρ ἑλέσθαι
πάννυχοι ἐγρήσσοντεςmiddot ὃ δὲ κρειῶν ἐρατίζων
ἰθύει ἀλλ οὔ τι πρήσσειmiddot θαμέες γὰρ ἄκοντες
ἀντίον ἀΐσσουσι θρασειάων ἀπὸ χειρῶν
καιόμεναί τε δεταί τάς τε τρεῖ ἐσσύμενός περmiddot
ἠῶθεν δ ἀπὸ νόσφιν ἔβη τετιηότι θυμῷmiddot
ὣς Αἴας τότ ἀπὸ Τρώων τετιημένος ἦτορ
ἤϊε πόλλ ἀέκωνmiddot περὶ γὰρ δίε νηυσὶν ᾿Αχαιῶν
(Il XI 544-557)
Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada
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Diferente dos outros siacutemiles esse mais longo natildeo soacute caracteriza o recuo do heroacutei
em termos de movimentaccedilatildeo e comportamento mas tambeacutem em termos de iacutendices
psicoloacutegicos que abundam no siacutemile O leatildeo aqui ainda eacute visto como um animal corajoso
feroz sedento por carne em suma em sua simbologia completa Entretanto como a
situaccedilatildeo eacute de fuga e caacutelculo o comportamento animal descrito por Aristoacuteteles representa
bem a maneira como Aacutejax se encontra tanto em termos psicoloacutegicos quanto em situaccedilatildeo
Aacutejax recua foge mas sem a pressa dos covardes sua fuga eacute bem descrita pelo
comportamento do leatildeo que recua lentamente sempre se voltando para traacutes Ademais o
nuacutemero de inimigos na liccedila e os dardos em sua direccedilatildeo o forccedilam ao recuo
Quanto ao plano psicoloacutegico Aacutejax que em sua caracterizaccedilatildeo eacute visto sempre como
voluntarioso e corajoso torna-se temeroso por uma intervenccedilatildeo divina E o conflito
gerado por essas disposiccedilotildees psicoloacutegicas eacute bem expresso pelo comportamento calculado
do recuo do leatildeo Neste afastamento tanto o heroacutei quanto o leatildeo estatildeo com acircnimo aflito
e inquieto e por uacuteltimo Aacutejax deixa o campo de modo involuntaacuterio
A caracterizaccedilatildeo neste siacutemile eacute completa Ela cobre tanto a perspectiva de um
desenvolvimento da accedilatildeo quanto o conflito psicoloacutegico que ocorre com o heroacutei Natildeo se
trata aqui de um siacutemile curto em que teriacuteamos de projetar o comportamento animal para
a compreensatildeo da passagem mas de um siacutemile longo em que o desenvolvimento do
comportamento animal eacute tatildeo magistralmente descrito que podemos consideraacute-lo sem
exageros como o proacuteprio iniacutecio de toda ciecircncia empiacuterica encontrada quase quatro seacuteculos
depois em Aristoacuteteles
3 Conclusatildeo
O uso do siacutemile em Homero eacute extremamente complexo Aleacutem dos siacutemiles naturais
produzidos com as potecircncias da natureza haacute tambeacutem os siacutemiles animais que se tornam
muito impactantes sobretudo porque revelam natildeo soacute facetas de movimentaccedilatildeo mas
tambeacutem de caraacuteter que o animal comporta O mundo natural eacute usado por Homero com
maestria a ponto de produzir situaccedilotildees nos combates em que grande parte do que eacute
descrito jaacute eacute bem conhecido pela audiecircncia em contato com o mundo natural circundante
Hoje talvez para reconhecer a forccedila de seus siacutemiles nos seja preciso talvez aleacutem do
conhecimento do mundo arcaico grego um bom entendimento sobre a vida natural sem
o qual a complexidade das cenas na Iliacuteada pareceraacute meramente fantasiosas
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54 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326
DOI httpsdoiorg1012957principia201946513
OS PROFISSIONAIS DO SOBRENATURAL
MAacuteGOS GOacuteES E PHARMAKEUacuteS
Dulcileide V do Nascimento Braga (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO O presente artigo objetiva ao pressupor que as accedilotildees maacutegicas constituem
praacuteticas passiacuteveis de aprendizado apresentar a anaacutelise da estrutura vocabular dos termos
que classificam os profissionais da magia Busca-se tambeacutem a partir da tradiccedilatildeo miacutetico-
literaacuteria grega demonstrar que tais profissionais tecircm uma praacutetica registrada em diversos
periacuteodos da literatura grega e influenciaram accedilotildees que extrapolam o vieacutes temporal
PALAVRAS-CHAVE Teacutechne maacutegica Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes
THE SUPERNATURAL PROFESSIONALS
MAacuteGOS GOacuteES AND PHARMAKEUacuteS
ABSTRACT This article aims assuming that magical actions constitute practices that can
be learned to present the analysis of the vocabulary structure of the terms that classify
magic professionals It is also sought from the greek mythical-literary tradition to
demonstrate that these professionals have a practice recorded in several periods of greek
literature and influenced actions that go beyond the temporal bias
KEYWORDS Teacutechne magic Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes
Magia do grego mageiacutea segundo Tupet (1976 p X) eacute a praacutetica exercida atraveacutes
de palavras e gestos por um indiviacuteduo que deteacutem certos conhecimentos que o capacitam
a produzir resultados de toda ordem George Luck (1995 p 35) precisa essa definiccedilatildeo ao
afirmar que a magia eacute uma teacutecnica cuja crenccedila se baseia nos poderes localizados na alma
humana e no universo e que pretende impor a vontade humana sobre a natureza ou sobre
os seres humanos
Platatildeo em Leis XI 932e-933b jaacute enumera os principais procedimentos maacutegicos
no seacutec IV aC e a difiacutecil tarefa de analisar essa teacutecnica
Quanto aos malefiacutecios que uns podem causar aos outros por meio de drogas
(pharmaacutekois) jaacute tratamos dos de consequecircncias letais mas ainda natildeo falamos
dos incocircmodos provocados intencionalmente e com premeditaccedilatildeo por meio de
bebidas e alimentos ou com unguentos O difiacutecil na presente exposiccedilatildeo eacute que
haacute no gecircnero humano duas espeacutecies de envenenamento uma eacute a que acabamos
de nos referir e que consiste em causar dano ao corpo pela accedilatildeo natural de
outros corpos a outra por meio de sortileacutegios (magganeiacuteais) encantamentos
(epoidaicircs) e o que se denomina ligadura (katadeacutesesi) chega a persuadir aos
E-mail dulcinascimentobragagmailcom
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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que querem causar danos a terceiros que o conseguiratildeo com tal recurso como
tambeacutem convence a estes uacuteltimos que ningueacutem lhes pode ocasionar tanto mal
como as pessoas conhecedoras de artes maacutegicas O que possa haver de
verdadeiro em tudo isso natildeo eacute faacutecil conhecer nem depois de sabido deixar
aceitaacutevel para ningueacutem dada a desconfianccedila reinante nos espiacuteritos a respeito
de tais assuntos natildeo vale a pena procurar convencecirc-los sempre que
encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera ou em encruzilhadas ou
talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados de que natildeo devem dar a
menor importacircncia a essas praacuteticas pois acerca de tudo isto ningueacutem tecircm
opiniatildeo formada
Eacute relevante destacar que o conceito de pharmakeiacutea utilizado por Platatildeo natildeo se
restringe exclusivamente ao uso de um phaacutermakon (bebidas alimentos ou unguentos)
mas se prolonga atraveacutes de sortileacutegios encantamentos e ligaduras
Platatildeo ainda questiona a eficaacutecia dessas profissionais de magia cujas habilidades
eram difiacuteceis de se averiguar analisar ou compreender sendo a profissional julgada pela
eficiecircncia ou pelos danos causados por sua praacutetica
O fato de atribuir aos praticantes de magia um caraacuteter perigoso por conta do saber
que detinham e a necessidade de que essas praacuteticas fossem controladas por leis remetem-
nos aos diversos processos de impiedade sofridos por mulheres praticantes das teacutechnai
maacutegicas Dentre elas destacamos o nome de trecircs mulheres a hetaira Frinea de Thespis
que foi acusada pelo seu amante Euthias de utilizar lugares sagrados para a praacutetica de
atos iliacutecitos e por ter formado um thiacuteasos1 sem a autorizaccedilatildeo legal dos atenienses a
sacerdotisa Teoris de Lemos acusada de produzir phaacutermaka para curar a epilepsia e
ainda temos o processo sofrido pela sacerdotisa Ninos baseado nas mesmas acusaccedilotildees
direcionadas agraves duas mulheres citadas anteriormente
Tais atitudes eram consideradas desvios agrave ordem instituiacuteda pela poacutelis que
determinava que qualquer accedilatildeo envolvendo contato direto com uma divindade ou com os
mortos requereria a presenccedila de um sacerdote instituiacutedo pela cidade e responsaacutevel por
impedir qualquer praacutetica que pudesse contaminaacute-la de alguma maneira
Maria Regina Candido (2003 p 169) informa-nos sobre as praacuteticas dessas
mulheres
Acreditamos que Teoris de Lemos assim como Frinea de Thespis difundiam
a crenccedila na possibilidade de o homem efetuar de maneira direta a sua relaccedilatildeo
com as potecircncias sobrenaturais e controlar os processos mais complicados que
envolvem a vida como doenccedilas inimizades e maacute sorte de maneira eficaz e
segura Receitavam banhos infusotildees com ervas e oferendas agraves divindades
ctocircnicas estimulavam os praticantes a fazer incursotildees pelo mundo de seres
sobrenaturais como os mortos O mundo dos homens deixava de atender agraves
necessidades do cotidiano e a alternativa era solicitar auxiacutelio das potecircncias
sobrenaturais
Assim como Platatildeo Candido acredita que a puniccedilatildeo relacionada a estas praacuteticas e
a seus praticantes esteja baseada no resultado advindo das mesmas que nem sempre
acarretava proveito agravequele que solicitava um benefiacutecio maacutegico Portanto por temer a
extensatildeo do poder dessas praacuteticas os atenienses puniam seus praticantes na maioria dos
casos mulheres estrangeiras como uma forma de se precaverem
Tambeacutem salientamos que apesar de a praacutetica maacutegica ser em determinadas
circunstacircncias apontada como uma atividade marginal ou uma forma de corromper a
religiatildeo poliacuteade como mencionamos anteriormente os praticantes destas teacutechnai
1 Palavra utilizada para designar um grupo de pessoas que celebram um deus normalmente com festas
cantos e banquetes
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detinham um conhecimento e um poder cuja eficaacutecia seria sustentada por uma crenccedila
coletiva e por uma dependecircncia de uma ordem moral que buscava a autoproteccedilatildeo fato
que garantia a continuidade das diversas formas de magia em todas as classes da
sociedade helecircnica como afirma o texto de Luck (1995 p 42)
Pode a magia antiga se basear em ideias ldquoprimitivasrdquo mas a forma em que nos
foi transmitida natildeo era de nenhum modo primitiva Pelo contraacuterio a magia
nesse sentido existiu somente dentro de culturas altamente desenvolvidas e
constituiu uma parte importante delas Natildeo soacute as classes baixas os ignorantes
e incultos criam nela mas ateacute o final da Antiguidade os ldquointelectuaisrdquo
estiveram convencidos de que poderosas forccedilas sobrenaturais atuavam em
torno deles podendo ser controladas por certos meios
Em grego destacamos trecircs termos para designar os detentores das artes maacutegicas
maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
O nome mais comumente utilizado para designar a feiticeira eacute maacutegos cognato de
mageiacutea magia Segundo Pierre Chantraine (1984 v maacutegos) esta palavra constitui um
empreacutestimo iraniano e no plural maacutegoi designa uma das tribos dos Medos como narra
Herocircdoto I 101 ldquoDeioces unificou a naccedilatildeo dos Medos governando-a A Meacutedia era
composta de diferentes povos os Busos Paretacenos Estrucatos Arizantos Budios e os
Magosrdquo
Segundo ainda o relato de Heroacutedoto haacute entre os maacutegoi aqueles que tecircm a funccedilatildeo
de ser ldquointeacuterpretes de sonhosrdquo Podemos verificar esta atribuiccedilatildeo dos magos em Histoacuteria
I 107 Astiacuteages apoacutes ter um sonho solicitou aos magos inteacuterpretes de sonhos que
revelassem o seu significado em I 120 Astiacuteages para decidir a sorte de Ciro mandou
chamar os mesmos magos que anteriormente tinham interpretado o seu sonho em I 128
vemos isso quando Astiacuteages manda empalar os magos inteacuterpretes dos sonhos que o
haviam convencido a deixar Ciro partir No livro VII 37 haacute uma passagem que ratifica a
funccedilatildeo de inteacuterprete dos sonhos aos magos Nela Xerxes apoacutes ver um eclipse solar
acreditando ser um mau pressaacutegio pede aos seus magos que interpretem o fenocircmeno
Segundo Graf (1994 p 30) aleacutem de serem inteacuterpretes dos sonhos os maacutegoi seriam os
responsaacuteveis pelos sacrifiacutecios reais pelos ritos funeraacuterios e pela adivinhaccedilatildeo
O termo maacutegos parece ter adquirido com o advento da filosofia conotaccedilatildeo
negativa sendo entatildeo utilizado para estigmatizar opiniotildees e comportamentos
considerados socialmente desviados a julgar por Heraacuteclito frag 14 que associa maacutegoi
aos ldquovagabundos da noite bacantes mecircnades e aos mistosrdquo e acredita serem esses homens
merecedores de morte posto que praticam accedilotildees iacutempias Graf (1994 32) discute se esta
caracterizaccedilatildeo de Heraacuteclito reproduziria a atuaccedilatildeo dos maacutegoi pois se ela corresponder agrave
realidade este termo semanticamente poderaacute ganhar a conotaccedilatildeo dos termos aguacutertes e
maacutentis pedinte e adivinho utilizados por Platatildeo na Repuacuteblica II-364b ou ser
interpretada a partir da expressatildeo utilizada no papiro de Derveni profissional dos ritos
Com base nesta definiccedilatildeo poderiacuteamos afirmar que Heraacuteclito ao utilizar a expressatildeo
ldquovagabundos da noiterdquo estaria dizendo que os maacutegoi seriam especialistas de toda uma
seacuterie de ritos privados e secretos como nos afirma o proacuteprio Graf (1994 p 33) ldquoPara um
jocircnico do fim do periacuteodo arcaico o maacutegos era semelhante aos especialistas itinerantes
dos cultos privados homens agrave margem da sociedade ridicularizados por uns e
secretamente temidos por outrosrdquo
Outro termo utilizado para nomear o praticante da magia eacute goeacutes termo cognato
do verbo goaacuteo gemer lamentar-se e que inicialmente designava um cantor que proferia
um lamento ritual pelos mortos ou seja o goeacutes eacute aquele que ldquocombina o ecircxtase com um
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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lamento ritual e a cura ritual com a adivinhaccedilatildeordquo (GRAF 1994 p 35) e que manteacutem
uma relaccedilatildeo estreita com o mundo dos mortos
Formadas a partir da mesma raiz encontramos as palavras goeteiacutea magia assim
como goeacuteteuma procedimento maacutegico fascinaccedilatildeo Heroacutedoto (II 33) ao narrar a histoacuteria
de Etearco o amocircnio aplica o termo goacuteetes para informar-nos sobre a crenccedila por parte
dos nasamones de que os habitantes de uma cidade em que entraram eram feiticeiros e
em IV 105 discorre sobre os relatos que afirmam que todos os Neuros eram goeacutetes
Encontramos ainda o termo goacutees associado a epoidos cantor aquele que canta
palavras maacutegicas para curar por exemplo em Euriacutepides As Bacantes 234-235 em que
encontramos os dois termos na fala de Penteu para fazer referecircncia ao estrangeiro que
estaacute propagando o culto a Dioniso ldquoDizem que veio um forasteiro feiticeiro cantor (goacutees
epoidoacutes) da terra da Iacutediardquo
Em Platatildeo Leis 903b quando a personagem chamada Ateniense ao mencionar
que iraacute convencer algueacutem por meio de argumentos diz ldquoMas ainda precisamos
acrescentar algumas histoacuterias a fim de imobilizaacute-lo com o encantamento (epoidocircn) que
lhes eacute proacutepriordquo E da mesma maneira eacute associado a maacutegos no Elogio agrave Helena de
Goacutergias ao evocar o poder da arte goeacutetica que encanta persuade e transforma Essas
teacutecnicas associadas agrave magia segundo o sofista seriam teacutecnicas do engano pois
desvirtuariam a alma e a opiniatildeo com falsas ilusotildees Desse modo Goacutergias defende Helena
dizendo que ela foi viacutetima da persuasatildeo maacutegica de Paacuteris contra a qual natildeo haveria defesa
O terceiro nome eacute pharmakeuacutes ou pharmakoacutes e designa um preparador de drogas
feiticeiro ou por ser cognato de pharmakeuacuteo significa simplesmente aquele que daacute um
remeacutedio ou veneno a algueacutem ou aquele que realiza uma operaccedilatildeo maacutegica Haacute ainda o
termo pharmakiacutes -idos atribuiacutedo agrave mulher que prepara poccedilotildees ou agrave feiticeira Aristoacutefanes
em As Nuvens 749 utiliza esta palavra como qualificativo para a mulher A expressatildeo
gunaicircka pharmakiacuteda encontrada em Aristoacutefanes refere-se a uma feiticeira da Tessaacutelia
que fazia a lua baixar agrave noite prendendo-a em um espelho
Cabe-nos contudo falar um pouco mais da magia das palavras ou do
encantamento Como jaacute mencionamos o termo goeacutes tem sua funccedilatildeo e significado
associado ao termo epoideacute que revela a natureza maacutegica do emprego da palavra e traz em
sua composiccedilatildeo o termo aoideacute canto que por sua vez estaacute relacionado com o termo audeacute
voz humana O grego distingue a linguagem humana audeacute do termo phoneacute que tanto
pode representar a linguagem humana como o som produzido por um animal
Pierre Chantraine (v aeidocirc) assinala que o prefixo epi- destaca o valor maacutegico do
canto assim epoideacute significa ldquocanto ou palavra maacutegicardquo
Eacute notoacuterio entretanto que o canto faz parte da cultura grega seja atraveacutes do maior
aedo de todos os tempos Homero atraveacutes do teatro da vida privada ou da puacuteblica O que
diferencia portanto essas utilizaccedilotildees da arte maacutegica das goeteacutes A diferenccedila estaacute na
estrutura destes encantamentos na tonalidade com que as palavras eram pronunciadas na
junccedilatildeo de siacutelabas estranhas apresentadas como verdadeiras foacutermulas maacutegicas bem como
aos poderes e divindades invocadas Tal estrutura eacute apresentada no seguinte fragmento
ldquoFebo o que auxilia na adivinhaccedilatildeo vem contente filho de Leto arqueiro infaliacutevel
protetor do mal venha aqui neste momento Vem Vaticinador daacute-me teus oraacuteculos
durante a noite allala allala santalala talalardquo (PGM II)
As foacutermulas maacutegicas do ponto de vista formal portanto tinham uma estrutura
preacute-estabelecida (pronunciada e realizadas de uma determinada maneira) que consistem
em uma seacuterie de instruccedilotildees que foram transmitidas atraveacutes do processo de iniciaccedilatildeo Esse
processo de aprendizado pode ser no acircmbito familiar ou em lugares considerados
sagrados
Dulcileide V do Nascimento Braga
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Temos diversos registros de foacutermulas maacutegicas algumas por exemplo
denominadas eroacuteticas objetivam a realizaccedilatildeo do desejo de um solicitante e tecircm
basicamente a mesma estrutura Como exemplo cito o PGM IV 3
Que fulana me ame a mim fulano filho de cicrano que ela natildeo tenha relaccedilotildees
sexuais nem por frente nem por traacutes nem busque prazer com outro homem
somente comigo de modo que fulana natildeo possa beber nem comer nem amar
nem sofrer nem ter sauacutede que natildeo consiga dormir sem mim arrasta a fulana
pelos cabelos as entranhas sua alma em cada momento de sua vida ateacute que
venha ateacute mim e permaneccedila inseparavelmente unida a mim
Neste encantamento se invoca o espiacuterito de um morto ou de uma divindade
normalmente Tiacutefon Selene ou Heacutecate mas quando se trata de magia eroacutetica se invoca
especialmente a deusa Afrodite e seu filho Eros Essas praacuteticas satildeo acompanhadas de um
gesto do solicitante como por exemplo um suspiro diante da mulher desejada um beijo
na lacircmina que conteacutem o pedido ou a simples repeticcedilatildeo do nome de Afrodite
Teoacutecrito no Idiacutelio 2 com 166 versos demonstra-nos como essas foacutermulas eram
utilizadas ao narrar a histoacuteria de como Simeta executa um ritual maacutegico com o intuito de
reconquistar o amor de Deacutelfis um jovem atleta que a trocou por um novo amor Eis alguns
versos do poema
Trecircs vezes faccedilo uma libaccedilatildeo e trecircs vezes Soberana
Pronuncio estas palavras quer seja mulher quer seja homem
Que com ele dorme agora que um tatildeo grande esquecimento invada
Deacutelfis como aquele que ndash ao que dizem ndash fez Teseu esquecer um
Dia Ariadne de belas tranccedilas (43-47)
Essa ldquoteacutecnicardquo das palavras tambeacutem faz parte da tradiccedilatildeo de uma literatura meacutedica
pois aleacutem de apresentar vaacuterios deuses responsaacuteveis pela cura tinha um deus especiacutefico
para a medicina Ascleacutepio e um lugar de cura Epidauro Ascleacutepio tinha um poder de cura
muito grande acreditava-se que ele inclusive podia ressuscitar os mortos O filho de
Apolo curava a uns com as doces palavras da magia (contos poemas e muacutesica) a outros
oferecia poccedilotildees eficazes ou lhes aplicava ervas em torno de seus membros ou cortava o
mal com o ferro para devolver-lhes a sauacutede
A tradiccedilatildeo meacutedica incluiacutea uma mistura de curas que podiam genuinamente ser
observadas e uma medicina popular considerada maacutegica Uma parte dos que exerciam a
medicina maacutegica eram mulheres embora a maioria delas trabalhasse como parteiras
Os templos de Ascleacutepio foram encontrados em todo o mundo mediterracircneo
Nesses templos o processo de cura consistia mais em repouso massagem e uma dieta
modificada do que aquilo que poderiacuteamos chamar de medicina Um meacutetodo de cura que
se tornou conhecido foi a ldquoincubaccedilatildeordquo em que o doente dormia confinado no templo de
Ascleacutepio na esperanccedila de receber uma revelaccedilatildeo daquele deus por meio de sonho
Aqueles que haviam sido curados faziam contribuiccedilotildees especiais para os templos que
frequentemente incluiacuteam reproduccedilotildees de gesso de quaisquer partes de seus corpos que
tivessem sido curadas Estes eram colocados em exibiccedilatildeo como testemunhos do poder de
cura do deus
Um relato que corroborou esse processo foi o de Eacutelio Aristides orador e tambeacutem
um portador de doenccedila crocircnica que no seacuteculo da nossa era em seus Hieroigrave Loacutegoi nos daacute
uma visatildeo da necessidade que as pessoas tinham pela cura bem como os meacutetodos
empregados para esse fim Depois tentar vaacuterios procedimentos meacutedicos Aristides tornou-
se um devoto de Ascleacutepio As curas prescritas para ele nos sonhos incluiacuteam accedilotildees como
banhar-se em um rio agitado durante o inverno derramar lama em si mesmo antes de se
Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
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assentar no paacutetio do templo andar sem sapatos todo o inverno e fazer sangria de vaacuterias
partes do seu corpo
A teacutecnica maacutegica portanto ao longo da histoacuteria foi um recurso utilizado como
tentativa de controlar o mundo natural atraveacutes de forccedilas consideradas sobrenaturais Essa
teacutecnica era ensinada somente aos iniciados e envolviam a arte da adivinhaccedilatildeo o preparo
de feiticcedilos e poccedilotildees a realizaccedilatildeo de rituais e cerimocircnias bem como a maneira correta de
se invocar deuses e espiacuteritos Quando realizados dentro dos templos tais procedimentos
eram considerados parte da religiatildeo Quando realizados fora eram classificado como
magia
A ideia de inferioridade feminina que perpassa toda a histoacuteria natildeo tem registro de
quando comeccedilou Desde a Antiguidade temos concepccedilotildees como a de Pitaacutegoras que
relacionava a mulher ao lado negativo ao dizer que ldquoHaacute um princiacutepio bom que criou a
ordem a luz e o homem e um princiacutepio mau que criou o caos as trevas e a mulherrdquo
(PITAacuteGORAS apud BEAUVOIR 1997 p 6)
Os elos que ligaram a imagem da mulher ao obscuro ao caos e ao infortuacutenio
masculino foram delineados e reforccedilados por figuras arquetiacutepicas como Pandora Lilith
e a proacutepria Eva Da mesma maneira as goeteacutes foram chamadas de charlatatildees quando natildeo
obtinham o resultado desejado ao evocarem os deuses e tentarem por teacutecnicas diversas
atender agrave solicitaccedilatildeo de algueacutem que recorria agraves praacuteticas maacutegicas para resolver problemas
particulares Essas solicitaccedilotildees normalmente envolviam uma accedilatildeo que prejudicaria
algueacutem fato que serviu para atenuar a fama negativa das goeteacutes
Ainda hoje encontramos aspectos desse tipo de comportamento maacutegico presentes
nos procedimentos considerados maacutegico-religiosos ou na proacutepria literatura ficcional que
demonstram a forccedila da seleccedilatildeo vocabular e da sonoridade provocada pela repeticcedilatildeo de
palavras e desejos com o uacutenico objetivo de concretizar desejos nem sempre passiacuteveis de
serem expressos em outras circunstacircncias Este eacute o caso da poesia citada abaixo
A VOLTA DA MULHER MORENA Vinicius de Moraes
Meus amigos meus irmatildeos cegai os olhos da mulher morena
Que os olhos da mulher morena estatildeo me envolvendo
E estatildeo me despertando de noite Meus amigos meus irmatildeos cortai os laacutebios
da mulher morena Eles satildeo maduros e uacutemidos e inquietos
E sabem tirar a voluacutepia de todos os frios
Meus amigos meus irmatildeos e voacutes que amais a poesia da minha alma
Cortai os peitos da mulher morena
Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono
E trazem cores tristes para os meus olhos
Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes
Traze-me para o contato casto de tuas vestes
Salva-me dos braccedilos da mulher morena
Eles satildeo lassos ficam estendidos imoacuteveis ao longo de mim
Satildeo como raiacutezes recendendo resina fresca
Satildeo como dois silecircncios que me paralisam
Aventureira do Rio da Vida compra o meu corpo da mulher morena
Livra-me do seu ventre como a campina matinal
Livra-me do seu dorso como a aacutegua escorrendo fria
Branca avozinha dos caminhos reza para ir embora a mulher morena
Reza para murcharem as pernas da mulher morena
Reza para a velhice roer dentro da mulher morena
Que a mulher morena estaacute encurvando os meus ombros
E estaacute trazendo tosse maacute para o meu peito
Meus amigos meus irmatildeos e voacutes todos que guardais ainda meus uacuteltimos
cantos
Dai morte cruel agrave mulher morena
Dulcileide V do Nascimento Braga
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O texto de Viniacutecius dialoga com o texto de Platatildeo citado anteriormente em que
faz menccedilatildeo agraves bonequinhas de cera utilizadas para fazer magia A finalidade dessas
bonecas conhecidas posteriormente por bonecas de vodu era gradativamente extinguir
a funcionalidade de determinados oacutergatildeos (cegar calar impedir de andar roer por dentro)
ateacute provocar a morte ldquodaiacute morte cruel agrave mulher morenardquo
O princiacutepio ldquose natildeo eacute meu natildeo seraacute de mais ningueacutemrdquo estaacute impliacutecito em inuacutemeros
encantamentos contidos nos PGM e representa natildeo soacute o desejo daquelea que foi
abandonadoa de se vingar de quem oa abandonou como tambeacutem o desejo de se livrar
daquelea que emocionalmente lhe causa mal
A voz humana eacute portanto o instrumento que potencializa a forccedila do pensamento
concretizando-os atraveacutes das palavras
Portanto a palavra quer cantada pronunciada em forma de versos ou balbuciada
em forma de encantamentos ou foacutermulas invocatoacuterias faz parte do universo sonoro grego
como forma de perpetuar segredos e manifestar um poder
Ainda hoje tentamos aprender sobre esta teacutechne que capacitava o indiviacuteduo a
concretizar desejos entretanto esbarramos nas lacunas temporais miacuteticas e religiosas
cujas entrelinhas foram desfeitas com o passar dos anos e que intencionalmente ou natildeo
desabilitaram a humanidade a obter o desejado com a mesma constacircncia com que eram
obtidas no passado
Os ritos religiosos continuam a utilizar a magia das palavras mas algumas
palavras tornaram-se impronunciaacuteveis e permanecem trancafiadas nas prisotildees silenciosas
do descaso cabe portanto a noacutes pronunciaacute-las ou natildeo reconhecendo a influecircncia que os
profissionais da magia tiveram e tecircm nas accedilotildees atemporais denominadas sobrenaturais
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Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes
62 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881
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DOI httpsdoiorg1012957principia201946515
A AGOGEacute ESPARTANA
Luciene de Lima Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
RESUMO Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem O
desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo deviam ter
medo de nada sendo resistentes aos ferimentos odiando qualquer demonstraccedilatildeo de
covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Cada espartano tinha de ser um soldado
perfeito e sua maior gloacuteria era morrer em batalha retornar derrotado jamais Desse modo
toda a sociedade e educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases
atribuiacutedas agraves matildees espartanas era ldquoespero que meu filho volte com o seu escudo ou
deitado sobre elerdquo Assim eacute que este artigo tem por escopo discorrer a respeito da agogeacute
espartana que era um tipo de educaccedilatildeo peculiar com fins extremamente belicosos
PALAVRAS-CHAVE Esparta agogeacute guerra Licurgo
THE SPARTAN AGOGEacute
ABSTRACT In Sparta courage was part of the formation of a manrsquos character The
development of courage was a Spartan obsession Spartans should not be afraid of
anything showing themselves resistant to wounds They hated any type of cowardice and
were extremely dedicated to the poacutelis Each Spartan male had to be a perfect soldier and
the ultimate glory was to die in battle to never come back defeated Given this Spartan
society and education was focused on war One famous sentence related to Spartan
mothers was ldquoI hope my son comes back with his shield - or on itrdquo Thus this article has
as its scope the discussion of the practices of Spartan agogeacute their very peculiar
education with extremely bellicose objectives
KEYWORDS Sparta agogeacute war Lycurgus
Esparta tem de pleno direito um lugar na histoacuteria da educaccedilatildeo A
criaccedilatildeo mais caracteriacutestica de Esparta eacute o seu estado e o Estado
representa aqui pela primeira vez uma forccedila educadora no mais vasto
sentido da palavra (Werner Jaeger)
E-mail oliveira-lluolcombr
A agogeacute espartana
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Esparta tambeacutem intitulada Lacedemocircnia era a principal cidade de uma regiatildeo
denominada Lacocircnia na regiatildeo do Peloponeso A cidade localizava-se agraves margens do rio
Eurotas cercada de montanhas a nordeste
Os primeiros invasores da regiatildeo foram os aqueus esses expulsaram os povos preacute-
helecircnicos que ali habitavam e fundaram a cidade de Lacedemocircnia
A migraccedilatildeo doacuterica eacute o uacuteltimo dos movimentos de povos possivelmente
originaacuterios da Europa Central que a partir da Peniacutensula Balcacircnica entraram na Greacutecia e
se misturaram com os povos de outras raccedilas mediterracircneas ali fixadas primitivamente
constituindo assim o povo helecircnico
Os doacuterios ao se apoderarem da maior parte do Peloponeso invadiram Creta e
foram os responsaacuteveis pela colonizaccedilatildeo de algumas ilhas Ciclaacutedicas e Espoacuteradas Os
espartanos satildeo considerados descendentes dos doacuterios1 esses tinham por caracteriacutestica
peculiar a belicosidade
A cidade de Esparta era conhecida por usufruir de uma eunomiacutea ldquouma boa
legislaccedilatildeordquo De acordo com a tradiccedilatildeo Licurgo apoacutes consultar o oraacuteculo de Delfos2 teria
dado agrave Esparta leis para a vida social e econocircmica citem-se por exemplo a proibiccedilatildeo do
comeacutercio e a utilizaccedilatildeo de metais preciosos que foram substituiacutedos por moedas de ferro
instituiu uma educaccedilatildeo rigorosa as refeiccedilotildees coletivas regulamentaccedilatildeo do casamento a
maneira de viver etc
Os espartanos eram considerados xenofoacutebicos Plutarco escreve que eles natildeo
tinham permissatildeo para sair da cidade pois poderiam trazer costumes estranhos e
desordenados para dentro da cidade Os estrangeiros que residiam em Esparta foram
expulsos com exceccedilatildeo daqueles que faziam algo de uacutetil para a cidade Aleacutem do mais natildeo
comercializavam com o estrangeiro nenhum navio de fora entrava no porto para ali
comercializar (PLUTARCO Licurgo XIV LVII In Vidas Paralelas)
Ora foi o historiador Heroacutedoto o primeiro a retratar Licurgo como o idealizador
da eunomiacutea se dedicando ldquoagraves coisas relacionadas com a guerrardquo (HERODOTO Histoacuteria
I) Na Antiguidade jaacute havia duacutevidas sobre a sua eacutepoca e ateacute mesmo sua existecircncia
Os espartanos ndash ao contraacuterio de outros grupos ndash natildeo desenvolveram relaccedilotildees
culturais e comerciais externas sua crescente populaccedilatildeo soacute encontrou um meio de
expandir-se pelas armas
Xenofonte inclusive indaga como Esparta uma das cidades menos povoadas
tornou-se a mais poderosa e famosa dentre toda a Heacutelade (JENOFONTE La Republica
de los Lacedemonios I 1-2)
O vocaacutebulo que os espartanos empregavam para designar ldquoeducaccedilatildeordquo era agogeacute
que proveacutem do verbo aacutego ldquotransporto conduzordquo Os filoacutesofos Platatildeo (PLATAtildeO Leis
1 O helenista Jaeger faz a seguinte ponderaccedilatildeo a respeito dos doacuterios ldquoa raccedila doacuterica ofereceu a Piacutendaro o
seu ideal de homem loiro de alta estirpe tal como era representado natildeo soacute o Menelau de Homero como
tambeacutem o heroacutei Aquiles e de um modo geral os ldquohelenos de loira cabeleirardquo da antiguidade heroica
(JAEGER 2001 p 111) 2 Esparta pelo vieacutes poliacutetico constituiacutea uma diarquia hereditaacuteria real Acredita-se que Licurgo fora
descendente de uma das famiacutelias reais de Esparta a euripocircntida O legislador tinha um irmatildeo
rei mas apoacutes a morte daquele Licurgo subiria ao trono poreacutem o seu irmatildeo havia deixado um
descendente ainda no ventre de sua esposa Leobotas O legislador foi entatildeo tutor de seu
sobrinho Preocupado com a situaccedilatildeo de Esparta jaacute que o sobrinho era uma crianccedila Licurgo
se dirigiu a Delfos para receber conselhos diga-se leis escritas a rheacutetra em relaccedilatildeo a Esparta
(HEROacuteDOTO Histoacuteria I LXV) Sabe-se muita coisa de Licurgo por meio de Plutarco em
Vida de Licurgo
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659d) e Aristoacuteteles (ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1321) tambeacutem se referem a agogeacute como
ldquoeducaccedilatildeordquo
Entrementes Marrou emprega o termo ldquoadestramentordquo para traduzir agogeacute e
chama a atenccedilatildeo para o fato de ser ldquouma condiccedilatildeo necessaacuteria senatildeo suficiente para o
exerciacutecio dos direitos ciacutevicosrdquo (MARROU 1966 p 41) O helenista considera que a
educaccedilatildeo em Esparta possui natildeo soacute um lugar especial na histoacuteria da educaccedilatildeo como
tambeacutem na cultura grega (Op cit p 33)
Todos os cidadatildeos espartanos tinham uma participaccedilatildeo ativa na educaccedilatildeo militar
constituindo uma casta aristocraacutetica a priori lembrando a educaccedilatildeo da antiga nobreza
grega Natildeo obstante foi mais tarde estendida agravequeles que natildeo faziam parte da nobreza
Jaeger expotildee que mesmo que Licurgo tenha realmente existido e criado a rheacutetra
ldquoleis escritasrdquo que o poeta Tirteu (4W 1-10) bem a conhecia jaacute no seacuteculo VII aC natildeo
adiantaria muito saber a respeito da origem da educaccedilatildeo espartana conforme Xenofonte
a descreve (JAEGER 2001 p 114)
O pesquisador considera tambeacutem a agogeacute como ldquoo adestramento espartanordquo que
nada mais era do que o ideal do movimento educativo do seacuteculo IV aC (Op cit p 115)
O helenista destaca que a crenccedila de que a educaccedilatildeo espartana era uma preparaccedilatildeo militar
tinha sua origem na Poliacutetica de Aristoacuteteles Platatildeo igualmente jaacute havia definido essa
ideia quando relata nas suas Leis o espiacuterito do Estado de Licurgo (Op cit p 110)
As crianccedilas futuros guerreiros de Esparta eram ldquocriadasrdquo anatropheacute por seus
pais em suas casas ateacute os sete anos de idade depois essa tarefa era assumida pelo
governo sendo treinados para a obediecircncia em situaccedilotildees penosas e difiacuteceis3
Desse modo Licurgo natildeo colocou a educaccedilatildeo nas matildeos nem de mercenaacuterios nem
de servos comprados os pais natildeo poderiam educar seus filhos a seu bel prazer Quando
completavam sete anos eram divididos em grupos a fim de serem educados juntos e
brincassem entre si aprender e estudar uns com os outros Aquele que sobressaiacutesse e fosse
mais valente em combate se tornaria o liacuteder de todo o grupo os outros deveriam obedecer
as suas ordens O legislador considerava a educaccedilatildeo das crianccedilas como a coisa mais bela
que um legislador pudesse estabelecer (PLUTARCO Licurgo XXV XXXIII In Vidas
Paralelas)
Dos sete aos quinze anos eram instruiacutedos nas letras e nos caacutelculos e naturalmente
nos hinos do poeta Tirteu que ressaltavam a bravura e a coragem destemida
Na etapa final entre dezesseis e vinte anos quando denominados de eireacuten um
pouco antes de entrarem no serviccedilo da poacutelis eram treinados a manusear as armas na luta
com lanccedilas e espadas no arco e flecha Com isso a carga dos exerciacutecios e as operaccedilotildees
militares simuladas nas montanhas ao redor da poacutelis eram aumentadas
Plutarco daacute o seguinte testemunho
Quanto agraves letras aprendiam somente o necessaacuterio e em suma todo o
aprendizado consistia em bem obedecer suportar o trabalho e obter a vitoacuteria
em combate Por essa razatildeo agrave medida que avanccedilavam em idade aumentavam-
lhes tambeacutem os exerciacutecios corporais raspavam-lhes os
cabelos faziam-nos andar descalccedilos e os constrangiam a brincar juntos a maior
parte do tempo inteiramente nus depois quando chegavam agrave idade de doze
anos natildeo mais usavam saios daiacute por diante pois todos os anos lhes davam
somente uma tuacutenica simples o que era causa de andarem sempre sujos e
3 Plutarco daacute testemunho que estrangeiros se dirigiam ateacute a Lacocircnia para contratarem amas para criarem
seus filhos (PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)
A agogeacute espartana
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ensebados como aqueles que natildeo se lavavam nem se untavam senatildeo em certos
dias do ano quando os faziam gozar um pouco dessa doccedilura Deitavam e
dormiam juntos sobre enxergas que eles proacuteprios fabricavam com pontas dos
juncos e caniccedilos que cresciam no rio Eurotas os quais eles proacuteprios deviam ir
colher e quebrar somente com as matildeos sem nenhuma ferramenta mas no
inverno ajuntavam a isso e misturavam no meio o que se chama Lycophanos
porque parece que essa mateacuteria tem em si um pouco de calor (PLUTARCO
Licurgo XXIV In Vidas Paralelas)
A agogeacute propriamente dita se iniciava aos sete anos e finalizava ateacute os vinte anos
compreendendo portanto um periacuteodo de treze anos Havia a supervisatildeo de um
paidonoacutemos uma espeacutecie de magistrado especial
Marrou oferece a seguinte divisatildeo da agogeacute agrupados em trecircs ciclos (MARROU
1966 p 42)
Oitavo ano ao deacutecimo primeiro ano
a) rhobiacutedas (termo obscuro)
b) promikkizoacutemenos (meninote)
c) mikki(khi)zoacutemenos (menino)
Deacutecimo segundo ano ao deacutecimo quinto ano
a) pratopaacutempais (rapaz jaacute maduro de primeiro ano)
b) hatropaacutempais (rapaz jaacute maduro de segundo ano)
c) melleiacuteren (futuro irene)
d) melleiacuteren (irene de segundo ano)
Deacutecimo sexto ano ao vigeacutesimo ano
a) eireacuten de primeiro ano
b) eireacuten de segundo ano
c) eireacuten de terceiro ano
d) eireacuten de quarto ano
e) proteicircras (irene-chefe)
O historiador francecircs pontua que os meninos espartanos eram divididos em
unidades (iacutelai ou ageacutelai) comandadas pelos jovens maiores os proteicircrai de vinte anos
que eram os mais velhos dentre os irenes (Op cit p 43)
Plutarco lembra que os espartanos ldquonatildeo usam de muita linguagemrdquo eram
lacocircnicos ldquopessoas de poucas palavrasrdquo como resultado natildeo se expressavam com
propriedade mas nada os impedia de serem bem compreendidos pelos ouvintes O
bioacutegrafo sublinha que o proacuteprio Licurgo era breve no falar Interessante destacar que era
proibido entrar em Esparta algum retoacuterico para ensinar a arte da persuasatildeo ao povo Natildeo
obstante os espartanos eram exiacutemios compositores de belos cacircnticos em que incitavam
a coragem (PLUTARCO Licurgo XIV XL XLIV In Vidas Paralelas)
Quando estavam reunidos em Conselho os cidadatildeos espartanos natildeo poderiam
deliberar indagar seus superiores muito menos apresentar alguma opiniatildeo lhes era
permitido somente aprovar ou reprovar os informes propostos pelos reis ou senadores
(Op cit X)
O futuro guerreiro tinha de ter por haacutebitos a modeacutestia andar nas ruas com as
matildeos dentro do manto e caminhar em silecircncio sem dirigir o olhar a nenhum lugar apenas
olhando em direccedilatildeo a seus proacuteprios peacutes O historiador Xenofonte compara o jovem
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espartano que anda em silecircncio e de olhos baixos a uma estaacutetua de virgem
(JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)
Entre vinte e trinta anos os espartanos eram obrigados a se casar mas a vida
familiar natildeo era lhes permitida soacute depois dos trinta podiam deixar de dormir nos
acampamentos militares
A fim de dotar de coragem os seus infantes em Esparta havia a kryptiacutea um
ldquoesquadratildeo de extermiacuteniordquo que estimulava os jovens selecionados a caccedilarem sozinhos ou
em grupos os hilotas ou seja os escravos que por um acaso andassem desgarrados ou
que de alguma forma representassem pelo seu vigor fiacutesico uma ameaccedila agrave seguranccedila da
poacutelis Os hilotas quando localizados eram vitimados pela espada ou pela lanccedila armas
que o grupo de jovens sempre trazia consigo (PLUTARCO Licurgo LVIII In Vidas
Paralelas)
Os jovens espartanos estavam sempre forccedilando seus corpos ao limite cultivando
a excelecircncia da forccedila fiacutesica Aristoacuteteles destaca que de entre as cidades que mais se
preocupavam com a educaccedilatildeo infantil a maioria procurava aperfeiccediloaacute-la por meio de uma
disposiccedilatildeo atleacutetica O filoacutesofo sublinha que os espartanos davam para os futuros
guerreiros trabalhos aacuterduos como se essa atitude fosse vista como adequada para o culto
da bravura (ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1338b 10-15)
O estagirita ressalta que natildeo eacute contra a ginaacutestica mas deve-se praticaacute-la com
moderaccedilatildeo ateacute a adolescecircncia evitando exerciacutecios forccedilosos pois podem resultar em
prejuiacutezos para o corpo Daacute como exemplo que de entre os vencedores dos jogos
Oliacutempicos tem apenas dois ou trecircs espartanos vitoriosos Acredita que isso se daacute ao fato
de terem sido sujeitos desde crianccedila a treinos fiacutesicos extremos que acabaram por exaurir
suas forccedilas (Op cit II 1338b 35-40 1339a 1-5)
Aristoacuteteles sublinha que toda a organizaccedilatildeo legislativa dos espartanos tinha como
objetivo uma forma de virtude o valor guerreiro uma vez que eacute uacutetil para dominar Como
resultado disso o vigor e a forccedila dos espartanos foram preservados enquanto estiveram
em guerra mas houve um decliacutenio a partir do momento que alcanccedilaram a supremacia Na
verdade natildeo sabiam viver em paz aleacutem do mais natildeo haviam se exercitado em outra
disciplina superior agrave arte da guerra (Op cit II 1271b 1-10)
Jaeger sustenta que na vida dos espartanos por meio de uma educaccedilatildeo
diferenciada percebe-se um ideal de educaccedilatildeo anaacutelogo ao que Platatildeo propotildee na
Repuacuteblica A propoacutesito Platatildeo e outros teoacutericos da educaccedilatildeo posteriores tiveram Esparta
por paradigma em muitos aspectos (JAEGER 2001 p 112)
A necessidade de imposiccedilatildeo dos espartanos sobre a grande maioria de hilotas
(escravos que natildeo possuiacuteam direito algum) que a qualquer momento poderiam se
rebelar teve muita importacircncia na formaccedilatildeo da agogeacute espartana
Ora com as muitas conquistas espartanas havia sempre a iminecircncia de uma
revolta por parte dos povos conquistados Eacute fato que os povos conquistados constituiacuteam
em maior nuacutemero do que os conquistadores espartanos
Acredita-se que no final do seacuteculo VI aC depois da conquista da Messecircnia o
estado espartano completou sua organizaccedilatildeo transformando-se em um verdadeiro
ldquoacampamento militarrdquo permanente
Os resquiacutecios arqueoloacutegicos atestam que ateacute o seacuteculo VI aC Esparta era
dominada por uma aristocracia de grandes proprietaacuterios Devido agraves duas grandes guerras
pela conquista da Messecircnia houve um aumento consideraacutevel daqueles que poderiam
participar da funccedilatildeo guerreira e que se beneficiaram pela distribuiccedilatildeo de lotes de cleroacutei
A agogeacute espartana
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da regiatildeo conquistada Por outro lado os messecircnios foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de
hilotas A respeito da segunda guerra da Messecircnia4 Mosseacute escreve
Esparta parece ter se fechado em si mesma com a decadecircncia do artesanato e
o desaparecimento do uso da moeda de prata Diante da massa de populaccedilotildees
dependentes (hilotas da Lacocircnia e da Messecircnia periecos da Lacocircnia motacos
neodamodos etc) a classe guerreira dos homoioiacute dos semelhantes formada
pelo conjunto dos cidadatildeos espartanos passa a ser um grupo privilegiado que
vive recluso em perpeacutetuo estado de defesa Essa eacute a origem da vida austera que
tanto impressionava seus contemporacircneos e permitia a Esparta desempenhar
papel preponderante no mundo grego (MOSSEacute 2004 p 121) Com efeito
muitas disposiccedilotildees referentes agrave educaccedilatildeo e ao casamento natildeo deixam de evocar
os programas educativos elaborados por Platatildeo na Repuacuteblica e nas Leis Platatildeo
teria tomado o modelo espartano como inspiraccedilatildeo ou nos seacuteculos seguintes
esse modelo teria sido construiacutedo a partir das disposiccedilotildees imaginadas por
Platatildeo para suas cidades ideais Essa eacute uma pergunta de resposta difiacutecil O que
eacute inquestionaacutevel eacute o caraacuteter peculiar da educaccedilatildeo espartana essa agogeacute que
espantava os atenienses da eacutepoca claacutessica especialmente na medida em que
tambeacutem atingia as mulheres (Op cit p 189)
Ressalte-se que a guerra eacute um dos fenocircmenos a ser evitado mas que
frequentemente ocorre nas sociedades humanas Em O Homem Grego obra organizada
por Vernant o ensaio de Garlan denominado ldquoO Homem e a Guerrardquo eacute relevante pois
de acordo com Garlan embora o homem grego ldquonatildeo pudesse ser definido como algueacutem
que gosta da violecircncia pela violecircnciardquo isto eacute como um homo militaris muitos satildeo os
conflitos em que eles se envolveram sobretudo na eacutepoca arcaica e claacutessica Para Garlan
eacute ldquocomo se a paz fosse desde o primeiro momento considerada precaacuteria ou mesmo
concebida como uma espeacutecie de treacutegua prolongadardquo (GARLAN apud VERNANT 1994
pp 49-50)
Em uma sociedade predominantemente guerreira como a espartana a covardia de
um guerreiro era vista com repugnacircncia assim a desonra em Esparta acompanhava os
covardes sendo preferiacutevel a morte a uma vida infame e desonrosa Eacute um guerreiro que
natildeo merecia nenhuma timeacute ldquohonrardquo pois tem como aliados a atimiacutee ldquodesonrardquo e a
kakoacutetes ldquocovardiardquo Consequentemente este homem eacute algueacutem sem aidoacutes ou seja
algueacutem que natildeo eacute digno ldquode respeitordquo ldquode consideraccedilatildeordquo Haacute pois uma conexatildeo clara
entre aidoacutes ldquorespeitordquo e timeacute ldquohonrardquo na sociedade espartana
O binocircmio aidoacutes ldquorespeitordquo e aiskhryacutene ldquovergonhardquo satildeo vocaacutebulos que estatildeo
presentes no estatuto ciacutevico de Esparta como pontua Nicole Loraux (LORAUX 1989 p
82)
O desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo
poderiam ter medo de nada deveriam ser resistentes aos ferimentos odiando qualquer
4 Houve duas guerras entre Messecircnia e Esparta Na primeira os espartanos sob a lideranccedila do rei
Theopompo foram vencedores Os messecircnios eram comandados por Aristomenes Segundo Heroacutedoto
(HEROacuteDOTO Histoacuteria VIII 1312) o rei Theopompo pertencia agrave oitava geraccedilatildeo antes de Leoticidas
que governou de 491 a 469 aC Depois de cinquenta anos de opressatildeo os messecircnios se revoltaram com
a ajuda de aliados de Argos Arcaacutedia e Pisa Essa rebeliatildeo eacute conhecida como Segunda Guerra da
Messecircnia Campbell afirma que eacute difiacutecil estabelecer a cronologia das duas guerras (CAMPBELL 1967
p 169) Costuma-se contudo fixar o periacuteodo da primeira guerra em torno da segunda metade do seacuteculo
VIII aC mais precisamente entre 735 e 715 aC e a segunda guerra que teria durado aproximadamente
vinte e dois anos na segunda metade do seacuteculo VII aC por volta de 640-650 aC
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demonstraccedilatildeo de covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Toda a sociedade e
educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases atribuiacutedas agraves matildees
espartanas era ldquoespero que o meu filho volte com o seu escudo ou deitado sobre elerdquo
Cada espartano era formado para ser um soldado perfeito e sua maior gloacuteria era
morrer em batalha retornar derrotado jamais Digno de nota satildeo os versos tirteanos
ldquoLutemos com ardor por esta terra e pelos filhos morramos sem pouparmos nossas
vidasrdquo (10 W 13-14)
Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem A
propoacutesito Platatildeo era tambeacutem a favor da valentia de um guerreiro no campo de batalha
(PLATAtildeO Repuacuteblica 468e)
Os dois primeiros versos do fragmento 10W de Tirteu pontua dessa mentalidade
de morrer pela poacutelis ldquoeacute belo morrer caindo entre os combatentes das primeiras filas um
homem valente ao combater por sua terrardquo (10W 1-2)
A morte eacute bela quando eacute a de um heroacutei que morre pela cidade Esta ideia daacute agrave
morte o sentido de um ldquosacrifiacuteciordquo do proacuteprio cidadatildeo em prol de um bem mais alto ldquoa
morte gloriosardquo No mesmo fragmento aliaacutes o poeta contrasta a morte gloriosa no campo
de batalha com a vida desventurada e errante do homem que natildeo cumpriu na guerra seus
direitos de cidadatildeo e se viu na necessidade de deixar a cidade (10W 9-12)
A linguagem de Tirteu eacute em grande parte herdeira de tradiccedilatildeo eacutepica De um modo
geral as suas elegias demonstram um amplo conhecimento do vocabulaacuterio da Iliacuteada e da
Odisseia quando descreve a luta sangrenta e o heroiacutesmo guerreiro O ideal espartano eacute
proacuteximo da epopeia no que diz respeito agrave bravura apesar de pertencerem a tempos
literaacuterios diferentes
Jaeger destaca que os versos tirteanos eacute o primeiro testemunho do ideal poliacutetico e
guerreiro tendo mais adiante a sua realizaccedilatildeo na totalidade da educaccedilatildeo espartana ldquoos
seus poemas deixam ver claramente que a educaccedilatildeo espartana tal como as eacutepocas
seguintes a conheceram natildeo era uma coisa acabada mas estava em processo de
formaccedilatildeordquo (JAEGER 2001 p 115)
Qualquer fraqueza demonstrada era vista como pusilanimidade algo
veementemente repelido do seio daquela sociedade
Natildeo comeceis a fuga vergonhosa nem o medo
mas tornai grande e ardoroso o coraccedilatildeo no peito
natildeo ameis a vida ao combaterdes contra homens (10 W 16-18)
O modo de vida era regulamentado em funccedilatildeo das necessidades do Estado e
tinham consciecircncia de natildeo pertencerem a si proacuteprios mas agrave poacutelis
Em suma estimavam todos que natildeo tinham nascido para servirem a si mesmos
antes para servir o paiacutes e portanto se outra coisa natildeo lhes era recomendada
continuavam sempre a ir ver o que faziam os meninos e a ensinar-lhes alguma
coisa que resultasse em utilidade puacuteblica ou ainda a aprender eles proacuteprios
com os que eram mais idosos do que eles (PLUTARCO Licurgo LI In
Vidas Paralelas)
Licurgo teria imposto que os espartanos tivessem uma vida de austeridade por
exemplo diz-se que eram obrigados a fazerem as refeiccedilotildees em comum em torno de um
caldo negro (PLUTARCO Licurgo XXI In Vidas Paralelas)
Plutarco daacute testemunho dessa coletividade
A agogeacute espartana
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Em suma acostumou os cidadatildeos a natildeo quererem e natildeo poder jamais viver soacutes
antes serem por assim dizer colados e incorporados uns com os outros e a se
acharem sempre juntos como as abelhas em torno dos superiores saindo de
si mesmos quase por um arrebatamento de amor para com o paiacutes e de desejo
de honra para servir inteiramente ao bem da coisa puacuteblica (Op cit LIV In
Vidas Paralelas)
Eacute bom lembrar que Licurgo ordenou que os espartanos fizessem as mesmas
refeiccedilotildees juntos era proibido se alimentarem agrave parte e em particular em grandes
banquetes (Op cit XV In Vidas Paralelas)
Conveacutem citar Aristoacuteteles ldquoacreditamos que a amizade eacute o maior dos bens para as
cidades porquanto pode ser o melhor meio de evitar revoltasrdquo (ARISTOacuteTELES Poliacutetica
II 1262b 7-8)
O estagirita faz uma criacutetica a respeito das refeiccedilotildees comuns intituladas de phidiacutetia
Para o filoacutesofo essas refeiccedilotildees deveriam ser pagas pelo tesouro puacuteblico tal qual em Creta
Entretanto em Esparta os cidadatildeos tinham de fazer uma contribuiccedilatildeo ateacute os pobres que
tinham dificuldades de arrumar dinheiro para essas refeiccedilotildees O objetivo de Licurgo era
que essas refeiccedilotildees fossem democraacuteticas ldquoa maneira espartana tradicional de fixar o
limiar da cidadania consiste em privar de participaccedilatildeo o que natildeo pode pagar a taxa das
refeiccedilotildees comunsrdquo (Op cit II 1271a 26-30)
De acordo com o historiador Xenofonte nas accedilotildees de guerra os lacedemocircnios
(espartanos) usavam traje vermelho para que natildeo se percebessem as manchas de sangue
Se morressem em combate eram enterrados com essas tuacutenicas (JENOFONTE La
Republica de los Lacedemonios)5
Na agogeacute espartana a sophrosyacutene (temperanccedila moderaccedilatildeo autocontrole) tem um
caraacuteter social sendo um comportamento imposto regulamentado marcado pelo
comedimento que o jovem deve observar em todas as circunstacircncias comedimento em
seu andar em seu olhar em suas expressotildees comedimento diante das mulheres em face
dos mais velhos comedimento aos prazeres agrave bebida
Desse modo o futuro guerreiro era exercitado em dominar seus extintos Na
verdade a agogeacute era precisamente destinada a experimentar esse poder de domiacutenio de
si A sophrosyacutene submete assim cada indiviacuteduo em suas relaccedilotildees com o proacuteximo em
contraste com a hyacutebris a ldquodesmedidardquo a ldquotransgressatildeordquo
O ideal da sophrosyacutene era o nada em excesso haacute uma tendecircncia na qual a
sophrosyacutene e a hyacutebris se encarnam respectivamente nos velhos e nos jovens (ideia que
seraacute mais clara nos traacutegicos)
A bela morte espartana deve ter ligaccedilatildeo com a cidadania ou melhor um criteacuterio
de cidadania sendo uma manifestaccedilatildeo ciacutevica (12W 18 34) Uma das diferenccedilas mais
acentuadas entre o mundo de Tirteu e dos poemas homeacutericos estaacute nas relaccedilotildees do
indiviacuteduo com a comunidade pois os guerreiros de Homero lutam pela gloacuteria individual
enquanto os heroacuteis de Tirteu combatem pela comunidade por suas famiacutelias e
dependentes Assinale-se que haacute na Iliacuteada XV 494-9 um episoacutedio em que Heitor estaacute
claramente lutando pela sobrevivecircncia de Troia
5 Para Jaeger a Constituiccedilatildeo (Repuacuteblica) dos Lacedemocircnios de Xenofonte eacute resultado do romantismo ldquomeio
filosoacutefico meio poliacutetico do seacuteculo IV aC o qual via no Estado espartano uma espeacutecie de revelaccedilatildeo
poliacutetica primordialrdquo (JAEGER 2001 p 109)
Luciene de Lima Oliveira
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A cidade espartana condena o ato de bravura de um soacute combater e permanecer
corajosamente no seu lugar na falange natildeo ceder agrave vontade de fugir encorajar seu
companheiro de linha eacute um bem comum para a cidade e para todo o povo
Heroacutedoto disserta a respeito do espartano Aristodamos que estava entre os
trezentos lacedemocircnios que tinham defendido as Termoacutepilas ele foi o uacutenico sobrevivente
mas preocupado em livrar-se do oproacutebio que os espartanos infligiram a essa
sobrevivecircncia o guerreiro saiu de seu posto do seu lugar na falange e procurou e
encontrou a morte em Plateia ao realizar faccedilanhas extraordinaacuterias (HEROacuteDOTO
Histoacuteria IX 71)
Aleacutem do exemplo de Aristodamos o historiador daacute testemunho de outro episoacutedio
nas Termoacutepilas em que os combatentes saindo de seus postos lutavam de maneira furiosa
em torno do corpo de Leocircnidas Quando as espadas dos espartanos foram quebradas eles
se defenderam com as matildeos e os dentes (Op cit VII 225) em um estado de furor
belicoso que se assemelhava aos heroacuteis homeacutericos Diomedes e Aquiles Os espartanos
abandonaram a sophrosyacutene e estavam claramente em estado de lyacutessa o que a cidade natildeo
tolerava
Todavia apesar de sua valentia os espartanos natildeo lhe concederam as honras
fuacutenebres devidas aos melhores isto eacute recusaram-lhe a aristeacuteia porque violara a lei de
permanecer em seu lugar na falange Possuiacutedo pela lyacutessa por um furor guerreiro
combateu furiosamente fora de seu posto
A virtude guerreira natildeo pertence agrave ordem do thymoacutes do impulso e sim da
sophrosyacutene a temperanccedila um domiacutenio muito grande para que o guerreiro pudesse refrear
seus impulsos e natildeo perturbasse a ordem da formaccedilatildeo em falange
A eacutetica militar espartana proiacutebe o estado de furor de lyacutessa Vernant destaca que a
cidade rejeita atitudes tradicionais da aristocracia que tem por costume a exaltaccedilatildeo do
prestiacutegio do poder dos indiviacuteduos e de colocaacute-los acima do comum satildeo considerados
como um descomedimento uma hyacutebris de igual modo o furor guerreiro e a busca no
combate de uma gloacuteria particular (VERNANT 2002 p 69)
Ateacute os sessenta anos os espartanos estavam sujeitos a participar das guerras
pertenciam ao Estado ate agrave morte As moccedilas natildeo eram tratadas de modo diverso acima
da famiacutelia vinha a poacutelis
Xenofonte destaca que Licurgo ordenou que o sexo feminino exercitasse tanto
quanto o masculino A mulher espartana tambeacutem tinha uma formaccedilatildeo regulamentada
cuja muacutesica a danccedila e o canto natildeo possuiacuteam tanta importacircncia quanto a ginaacutestica e o
esporte (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios 1 4)
As espartanas estavam a serviccedilo da cidade quando solteiras praticavam
exerciacutecios que a tornavam forte e saudaacutevel a fim de que seus corpos se tornassem riacutegidos
ao se exercitarem havia exerciacutecios de correr de lutar de jogar a barra e de lanccedilar o dardo
com o objetivo de gerarem filhos igualmente robustos e para suportarem as dores do
parto (PLUTARCO Licurgo XXV In Vidas Paralelas)
Havia a ideia entre os homens de que pai e matildee fortes gerariam igualmente filhos
mais vigorosos Por isso quando casada a missatildeo da mulher era dar ao Estado filhos
fortes grandes guerreiros e bons cidadatildeos Percebe-se que haacute uma preocupaccedilatildeo de
eugenia dentro da sociedade espartana
Os receacutem-nascidos eram observados e se constatada qualquer imperfeiccedilatildeo essas
crianccedilas consideradas ldquodefeituosasrdquo que tivessem qualquer tipo de doenccedila ou
deformidade eram sumariamente assassinadas sendo atiradas de um precipiacutecio Esses
A agogeacute espartana
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receacutem-nascidos natildeo estariam prontos para defender a cidade-estado e consequentemente
natildeo seriam bons guerreiros na fase adulta6
Entrementes depois que a crianccedila nascia [] mas se lhes parecia feia
disforme ou franzina mandavam atiraacute-la num precipiacutecio a que vulgarmente se
dava o nome de Apothetes isto eacute depositoacuterios pois tinham a opiniatildeo de que
natildeo era expediente nem para a crianccedila nem para a coisa puacuteblica que ela
vivesse visto como desde o nascimento natildeo se mostrava bem constituiacuteda para
ser forte satilde e rija durante toda a vida E por esse motivo as proacuteprias mulheres
que as governavam natildeo as lavavam com aacutegua simples como se faz por toda
parte mas com uma mistura de aacutegua e vinho e por esse meio experimentavam
se a compleiccedilatildeo e a tecircmpera de seus corpos era boa ou maacute porque dizem eles
que as crianccedilas sujeitas agrave epilepsia ou entatildeo catarrosas e doentias natildeo podem
resistir nem tolerar esse banho de vinho mas definham e caem em langor e
ao contraacuterio as que tecircm sauacutede se tornam mais rijas e mais fortes
(PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)
Aristoacuteteles sublinha que Licurgo com o objetivo de fazer com que os espartanos
fossem numerosos encorajava-os a terem o maior nuacutemero possiacutevel de filhos haacute a lei de
que o pai de trecircs filhos estaacute isento do serviccedilo militar e o de quatro livre de impostos
(ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1270b 1-5)
A renomada helenista Claude Mosseacute infere que seria interessante acreditar que
Esparta passou por uma seacuterie de etapas entre a adoccedilatildeo da falange hopliacutetica seacuteculo VII
aC e o ldquofechamento da cidade em si mesmardquo iniacutecio seacuteculo IV aC Aleacutem do mais a
rheacutetra que fora atribuiacuteda a um possiacutevel legislador Licurgo pode ter sido resultado de
uma possiacutevel abertura da falange aos membros do decircmos cuja participaccedilatildeo nas tomadas
de decisatildeo era reconhecida Em relaccedilatildeo agrave partilha de terras pode ter acontecido depois
do teacutermino da segunda guerra da Messecircnia (uacuteltimo quarto do seacuteculo VII aC) e a agogeacute
e o militarismo da cidade podem ter ocorridos no princiacutepio do seacuteculo VI aC tendo por
principal objetivo a defesa da cidade-estado espartana contra os povos da Lacocircnia e
Messecircnia que foram escravizados
A Esparta do seacuteculo VII aC estaacute empenhada em um movimento que leva as
aristocracias das diversas cidades ao luxo Depois a ruptura se daacute entre o final do seacuteculo
VII aC e o iniacutecio do VI aC concentra-se em si mesma repudiando a ostentaccedilatildeo da
riqueza proibindo o uso dos metais preciosos depois a moeda de ouro e de prata (o
dinheiro era feito de um ferro de maacute qualidade que natildeo deveria ser fundido em grandes
quantidades) permanece fora das correntes intelectuais fecha-se a tudo o que eacute
intercacircmbio com o estrangeiro comeacutercio atividade artesanal voltam-se sua preocupaccedilatildeo
para a guerra em defesa da poacutelis (MOSSEacute 2004 p 189-190)
Qualquer riqueza natildeo poderia ser exposta em puacuteblico os artesatildeos natildeo
confeccionavam luxos desnecessaacuterios como tapetes e adornos mas faziam muito bem
apenas o baacutesico pois a riqueza seria a causa de muitos males Xenofonte escreve que os
espartanos natildeo se adornavam com riquezas de vestuaacuterios exceto com a boa forma fiacutesica
de seus corpos (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)
Pode-se conceituar a agogeacute como uma educaccedilatildeo estatal com fins extremamente
belicosos que se estendia da infacircncia ateacute a adolescecircncia Nessa educaccedilatildeo os futuros
6 Esse costume natildeo ocorreu soacute em Esparta a Lei das XII taacutebuas na Roma antiga autorizava os patriarcas a
matar seus filhos fraacutegeis ou deficientes
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combatentes aprendiam as artes militares as manobras em campos de batalha e a ser
destemidos diante do inimigo
Infere-se que o principal objetivo da agogeacute era formar poderosos guerreiros para
a defesa da poacutelis Para isso uma riacutegida educaccedilatildeo foi imposta aos jovens e uma peculiar
maneira de viver aos adultos
REFEREcircNCIAS
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des Hautes Eacutetudes en Sciences Sociales Paris 1999
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Universidade de Brasiacutelia 1988
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PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica Lisboa
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________ A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Eduardo Menezes Satildeo Paulo Hemus Livraria
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VERNANT Jean-Pierre O Homem Grego Lisboa Editorial Presenccedila 1994
________ Jean-Pierre As Origens do Pensamento Grego Rio de Janeiro Difel
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