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Qualmetafísicaparaapsicanálise?
Oquevaiteresteanodemaisaborrecedorésubmeterumcertonúmerodeditosdatradiçãofilosóficaaestaprova.Vejamvocês!1
LACAN,Mais,ainda.
Háumpardeanos,duranteumaconferênciasobreogozo,naUSP,eu
batiacominsistênciaemduasteclas:"precisamoscuidardocercadodonosso
próprio campo, antes de mexer no campo dos outros", e "Lacan não fazia
metafísica mas psicanálise, mesmo e sobretudo quando discutia com os
filósofos".Fiqueicomaimpressãodequeminhainsistênciafoicomprendida
como uma declarada desistência a aventurar-nos além das quatro paredes
dos consultórios (o que era visto, com razão, como empobrecedor) e como
uma advertência para manter nossas mãos longe das questões grandiosas
como"oser","osentidodavida","afelicidade"ou"amorte".Eusugeria,por
exemplo,queainterdiçãodepensar"aorigemdalinguagem"mepareciaum
claroposicionamentoepistemológicodeLacan, completadopelo cuidadode
nãotomarjamaisosconceitosdapsicanálisenumsentidoontológico.Depois
dapalestra,ChristianDunker,meuamigoeanfitriãonaocasião,observouque
nãobastavarecusarsimplesmenteametafísica;queeudeviadizerqualeraa
metafísica da psicanálise, caso contrário meus ouvintes impor-me-iam a
própria.Estaaulaéumarespostaàqueledesafio2.
1Lacan(Mais,ainda]
2AulaMagnadadanaUniversidadedeLondrinaem4/3/2016
2
OPROBLEMA DOCAMPO
Campo é, de modo literal ou figurado, uma zona limitada de algum
modoequedefineumdentroeum fora.Vocêsestão familiarizadoscomos
camposdefuteboledeplantaçãodecana,mashácamposfilosóficos,lógicos,
matemáticos e físicos. A primeira providência que uma disciplina, em
qualqueráreadoconhecimento,precisatomarparaseconstituirédelimitaro
própriocampo.Fazerissoequivaleapoderresponderdomodomaispreciso
queforpossívelperguntasdotipo"dequeseocupa?";"qualéasuaáreade
atuação?"e"aquem(ouaque)seaplica?"AdisciplinainventadaporFreud3
nãoénempodeserumaexceção.Entretanto,muitospraticantesagemcomo
sefossemcônsulesdoimpérioRomanonoséculoum:oumbigodomundo.O
ditado"todososcaminhoslevamaRoma"queriadizerisso:nadaestavafora
doimpério,poiseleabarcaomundotodo.Eéporessaatitudeimperialqueos
psicanalistasnão conseguemmais debater comninguém, e cada vezmenos
gente(n)oslevaasério.
Vamoscomeçardefinindoumcampopsicanalítico.
Oquesedenominaintensão–comesse,desapo-deumconceitoéasua
definição. A intensão de "brasileiro" seria: "homem ou mulher nascido no
Brasilouquepossuiacidadaniabrasileira".Onúmerodepessoasàsquaiso
predicado"brasileiro"seaplicaseriaaextensãodoconceito.Elenãoseaplica
a mim, por exemplo, mas sim ao meu filho. Em lógica clássica (quem diz
"clássico",diz "aristotélico") a "intensão"ou "compreensão"é inversamente
proporcional à "extensão". O gênero, digamos, "animal", é uma classe com
maior extensão e menor compreensão que a classe "homem", que é uma
espécieincluídanaquelegênero.Ouseja,hámaisanimaisdoquehomensem
quantidade e ao especificar "homens" estamos fornecendomais informação 3Sónãoachamo"ciência"porserumpontopolémico,masvalelembrarqueFreud
queriamuitoqueasuafosseumaciênciaentreasciênciaspositivas,bemseparadadamagiaedareligião.
3
do que ao simplesmente dizer "animal". Para começar a delimitar o nosso
campo, proponho considerarmos com muito cuidado a diferença entre a
intensão da psicanálise, o conjunto de conceitos denominados por Freud
"metapsicologia"ouosistemaconceitualcovariantedeLacan4,enfim,oque
seconhececomo"doutrina"5.Eaextensãodapsicanálise,todososelementos
quecaemoupodemcairdentrodestaáreaconceitual.Ou,melhor,osobjetos
queestesistemadeconceitospodeapreender.
O que chamo de psicanálise pura –assim como se diz "matemática
pura"–éotrabalhoconceitual.Ateoria(thesisdiriamosgregos,comooposta
aphusys,anatureza).Seriaa"psicanáliseemintensão".QuandoLacandiscute
os universais de Aristóteles, ou quando afirma que o método freudiano é
consequência das "meditaçõesmetafísicas" de Descartes, ou, ainda, quando
demonstra que o significante é um corte e o sujeito uma superfície, está
fazendo psicanálise pura, compreensiva. Está fazendo teoria, não está
aplicandoadoutrinaparainterpretaralógica,afilosofiaouatopologia,que
tem campos específicos; está ocupando-se de problemas próprios destas
disciplinas–osparadoxoslógicos,porexemplo–masquepoderiamconcernir
àpsicanálise.
Já psicanálise aplicada só tem uma: o tratamento dos pacientes
medianteométododalivreassociação.Éoúnicolugaremqueapsicanálise
purasentaasbasesdoquesedenominaumaexperiência.Note-seque,stricto
sensu, sópodemos falar empraxisdepleno sentidonoplanodapsicanálise
aplicada. Ali não se trata de demonstrar se é verdadeira ou falsa6, mas de
constatarseusefeitos,quandohouve,ouentendera faltadeles,quandonão
houve.Note-sequeestemétodo,quecomeçacomainstauraçãodaregranão
4Co-variantes:mudarumconceitoimplicaemmudartodos.5Doutrina:conjuntodeprincípiosdeumsistema.6Critério usado por Popper para negar à psicanálise o status de ciência: a sua
experiêncianãopodeserfalseada.
4
por nada chamada "fundamental", é a realização prática de uma teoria da
linguagem que faz parte do arcabouço doutrinal da teoria psicanalítica. A
clínica, portanto, resulta da psicanálise pura, não o contrário. Com efeito,
dependendo do conceito que eu tiver de inconsciente, vou tratar meus
pacientesdeummodooudeoutro.Edomododetratá-losdependeráotipo
deinconscientequefaçoexistir.
Ditodeoutromodo,nãoexisteuminconscientejádado,dentrodecada
um, que será analisado por um psicanalista, como um químico analisa a
composiçãodeumfluído,quejáeraassimantesdechegaraolaboratório.O
analisante e seu analista farão existir entre eles um determinado tipo de
inconsciente, de sintoma, de fantasia, de pulsão... que não preexiste o seu
trabalhoconjunto.Umpacientemedisseumavez:"desdequemeanalisocom
você sonho sonhos curtos". Para seu analista anterior sonhava romances,
paramim,pequenos contos.Talvez,quando formelhoranalista, elepassea
sonhar-mehaikus.Asnossasconcepçõesteóricasdeterminamaofertadoque
iremosescutar,eestaofertadecideoquenoséoferecidoparaanalisar.
Mas isto não é teoria vazia, porque a aplicação da teoria produz
consequências verificáveis sobre as vidas das pessoas que se analisaram
conoscodestemodo.Comodisse,umaanálisenãoéverdadeiraou falsa,ela
funciona ou não funciona para alguém; muda ou não muda os impasses
sintomáticosdospacientes.Masoquefazpossívelaexperiênciaqueterátais
consequênciaséateoriaqueaorienta.Oconceitodepraxisfoiinventadopor
Lukacsparamostrarqueeranapráticapolíticaquea teoriamarxistapodia
ser verificada. Creio que se existe umadisciplina onde o conceito depraxis
tem pleno sentido é na psicanálise clínica, ou seja, aplicada a pessoas que
estãovemnosverparafalardelasconosco.PoderiamosemprestardeKanta
denominaçãoereferir-nosaelacomo"psicanálisepuraprática".
5
Aindasobre"psicanáliseemextensão".
ExtenderocampopsicanalíticoeraparaLacanumaestratégiapolítica;
alargar a área de influência da psicanálise. Fazê-la ir além dos limites dos
consultórios particulares para distintos espaços da sociedade; disseminá-la
pela cultura. Ele incentivava a ocupação universitária, hospitalar, cultural;
havia que avançar sobre as famílias, as crianças, os psicóticos, os
psicossomáticos... Hoje a histeria, amanhã omundo!Quando incentivava os
analistasanãoretrocederemfrenteàpsicose(comoFreud,queaconsiderava
forado alcancedométodo, desenvolvidopara asneurosesde transferência
somente), estava ampliando a extensão da psicanálise. Esta operação foi
confundida com o que se denominava, desde Freud, "psicanálise aplicada",
como,porexemplo,quandofalamoscomumcineastasobreseufilme7.Lacan
teve que especificar que não, que a única aplicação da psicanálise era aos
pacientes.
Eu uso este sintagma para dizer outra coisa. Chamo psicanálise em
extensão à tarefa de garimpar nos campos dos outros os conceitos que
poderiam servir-nos no nosso. Freud fez isso inúmeras vezes. Foi buscar na
físicadeHelmholtz,porexemplo,oconceitodeenergialivreeligadaeousou
paraexplicarofuncionamentodaspulsões.Foiprocurarnastragédiasgregas
evoltoucomocomplexonucleardasneuroses,paraconceitualizaraetiologia
destasúltimas.Lacannuncadeixoude fazer isso,eéoque faremoshojeao
falardefilosofia.
Achei por bem começar apresentando nosso campo porque Lacan
sempreteveocuidadodesesituardentrodele;dereferiroseudiscursoao
campopsicanalítico.Equandodigo"sempre",digoemtodasasaulasdetodos
7QuandoFreudmostrou seu ensaio sobreGradiva! a Jensen, seu autor. Estedisse
que provavelmente tudo que Freud encontrou estava ali porque ele tinha feito algumasmatériasdocursodemedicina...
6
os seminários, durante os 30 anos do seu ensino, assim como em todos os
textos teóricos escritos ao longo desses mesmos anos. Ou seja, é
incompreensível, a não ser supondo ali uma rejeição, o pouco caso dos
leitores e ouvintes de Lacan frente a esta insistência. Outra advertência
constante aos analistas é que tudo foi retirado da experiência psicanalítica
(mas aqui, embora também se refira à clínica, trata-se principalmente de
experimentos mentais, no sentido de Galileu, Newton e Einstein). Em todo
caso,nãorestadúvidadequetudoqueelefalaéàdoutrinaquesedestina.A
maioria dos leitores ignora estas coordenadas epistemológicas, tratando-as
comosefossemgirosoufigurasretóricas,forçadeexpressãodoexpositor.O
problema é que ao desconsiderarmos o traçado do campo desde o qual
deveriamostomarapalavra,fazemosdapsicanálisealgoquenãodeveriaser:
uma ideologia.ÉmuitocômodocitarFreuddizendoqueasuaciêncianãoé
umaWeltanschauung–visãodomundo–,paradepoistratá-lacomosefosse.
Em1974,aoapresentar,emVincennes,oprimeiro"Departamentode
psicanálise"emumauniversidadenomundo,Lacanespecificaasciênciasque
seriamnecessárias,aseuver,parafundarocampopsicanalíticoeexprimea
sua esperança de que a psicanálise possa vir umdia a contribuir algo para
ditas ciências8. Quais são elas? A lingüística, a lógica, a topologia e... a
antifilosofia.
AantifilosofiaqueLacan tememmente9éa incorporaçãoda filosofia
dentro do campo psicanalítico: psicanálise em extensão, portanto. Mas os
resultados da reflexão antifilosófica devem servir à teoria psicanalítica –a
psicanálise em intensão. Em 18 de maio de 1980, a menos de um ano de
morrer, o velho mestre, que não parava de polemizar com os filósofos,
8TalvezemVincennes9Háoutras.Antifilosofianãoéuma invençãodeLacan,masumapostura filosófica
queincluinomescomoRousseau,KierkegaardeNietzsche.
7
desabafa: "Eume insurjo contra a filosofia!" A que se deve tal insurgência?
Aondeseoriginaoódioenamorado(hainamoration),queolevaaatormentar
sem cessar os filósofos, ao mesmo tempo que anuncia que a pesquisa
psicanalíticanãovaiavançarsenãointerrogarafilosofia,paraconstituirseu
próprio campo como antifilosofia? Na minha opinião, este incessante
tormento filosófico caminhademãosdadas comodiálogo coma ciência. A
psicanálise seria impossível de fundamentar se não se mede em relação à
ciênciaformalizada,emerefiroàsjácitadaslógicaetopologiamatemáticas,
não às ditas "ciências do homem", como seria de se esperar. Falo de seu
projetodeensinarapsicanálisepelo"matema",pelafórmula,nãopelorelato
oupelaintuição.
Podemoscomeçarporali,pelascoisasqueLacandizdosfilósofosaos
psicanalistas. Diz que o amor está no coração da filosofia, o que é óbvio
porqueéissoquesignificaapalavrafilo,mas,oquenãoétãoóbvioéporque
acrescentaqueissorepresentaumproblemaaserpensado.Dizqueofilósofo
é um tapado (bouché, rolhado, com a rolha tampando o buraco da garrafa)
para a matemática. E conclui que a metafísica tampa, obtura (mesma
palavra: bouche, rolha), o buraco da política10. Deixo para outro momento
comentarcomoametafísicaobstaculizaapolítica,masdesdejáadiantoque
serefereaodesaparecimentodosignificantesobosignificado.Veremosentão
duasdastrêsdeterminaçõesdaposiçãofilosóficavistaspelapsicanálise,mas
antes:
OQUEENTENDERPOR"METAFÍSICA"?
Em primeiro lugar, se refere à posição dos livros escritos por
Aristóteles nas prateleiras da biblioteca. Nem mais, nem menos. Aqueles
arrumadosnaestanteantes(meta)dosensaiosdeFísicaseriamosdemeta-
107/8/73
8
física (onomeda coleção foi dadoporAndrónicodeRodas, no século IAC,
nãoédofilósofo).JáoconteúdodostratadosdeMetafísicaéoqueAristóteles
mesmodenominava"filosofiaprimeira"(protéphilosofia),oqueestáportrás
(tametá)dascoisasnaturais,oqueseriaprimordialefundamental.Guardem
isto:oquecaracterizaàfilosofia,atodafilosofia,éaprocuraporumprincípio;
o princípioqueexplique, sepossível, tudo.AFilosofiaPrimeira,ouFilosofia
dosPrincípiostratadosprincípiosqueseaplicamatodasubstância,ouseja,a
todo que é. Viria, portanto, antes da física, como seu fundamento. Nós,
curiosamente, quando falamos em "metafísica" pensamosno alémenãono
aquém da física. A definição aristotélica desta filosofia das essências é:
"ciênciaqueestudaoserenquantoser(tooneon)eaquiloquelheépróprio."
Vale observar que existe uma séria controvérsiamedieval sobre se a
metafísica se refereaoestudodosalicercesdoser (mais tarde, "ontologia")
ou ao estudo do primeiro-motor-imóvel de todas as coisas (mais tarde,
"teologia",jáqueédeDeusquesetrata).Encurtandodemaisummuitolongo
e sinuoso caminho, havería que mencionar a Kant, que tentou pensar a
metafísicaaristotélicacomointuitodefazerdelaumaciência(éamissãodas
três críticas), e a Heidegger, que elaborou a única metafísica realmente
modernaquehá e que, diferentedeKant, tenta resolver os impassesdade
Aristóteles.Emtodocaso,cabelembraraobservaçãodeBarbaraCassinsobre
Lacanseroúnicopensadornãoaristotélicodequeelatenhaconhecimento.E
issoédizermuito,porquesignificaquetodos,incluindo-seelamesma,somos
aristotélicos,saibamosounão.
Setomarmosaopéda letraaexpressão"meta-física",a teoríadoque
estáaoladoouaquémdofísico,estamosdizendoqueaphusys–anatureza,o
que é material– não esgota o pensável. Nem sequer o "cientificamente
9
pensável"11.Amecânicaquânticarompede talmodocomnossa intuiçãodo
que seja a realidade, que os cientistas mesmos se deram conta que não
conseguiam acreditar nos resultados dos cálculos matemáticos, sem antes
abandonartodatentativadefazerencaixaraquelesresultadosnaconcepção
que tinham do mundo até então. Einstein –e falo não só do homem que
mudou toda a concepção do que era o universo e as leis da física clássica,
como tambémdo inventordamecânicaquânticaemquestão–,Einsteinnão
conseguiu. Seus preconceitos naturalistas e essencialistas o impediram de
aceitar as consequências da sua própria descoberta (invenção?). Morreu
acreditando que a mecânica quântica era uma teoria falha e devia estar
errada.Seu famoso"Deusnão jogadados"exprimemuitobemasuarecusa
(verwefung).
Acontece que a visão do mundo de Newton era bela, consistente e
tranqüilizadora. Os fenômenos naturais estavamdescritos por umpunhado
de equaçõesmatemáticas que sintetizavam tudoque se sabia a respeito do
movimento,assimnaterracomonocéu,edestemodoelecompósapartitura
damúsicadasesferas,asinfoniadoqueficariaconhecidocomofísicaclássica.
A forma matemática da descrição da realidade alinhava-se tão
harmoniosamente com a experiência e fornecia uma âncora tão perfeita a
nossaintuiçãoquesópodiaserverdadeira.Seempurrarmosumcarrinhoele
ganhará aceleração. Se arremessarmos uma pedra com força seu impacto
quebraráavidraça.Sevocêapertarobraçodacadeirasentirácomoelareage
comumaforçacontráriaàpressãoquevocêexercesobreela.Açãoereação.
TudoissoestáexplicadodemodocientíficonolivroPrincipiaMathematica. 11BertrandRussell"Sevocêsléemostrabalhosdosfísicosverãoqueelesreduzema
matériaacertoselementos-átomos,iones,corpúsculos,coisasdotipo.Mas,sejacomofor,oquevocêsprocuramnumaanálise físicadamatériaé alcançarospedacinhosmínimosdematériaque ainda são comomatériano sentidodequepersistematravésdo tempo, e sedeslocam através do espaço [...] Coisas desse tipo, eu digo, não são os constituintesderradeirosdamatériaemnenhumsentidometafísicodotermo.Aquelascoisassão...ficçõeslógicas.
10
Afísicaclássicadeclarasemhesitações,queopassadoeofuturoestão
gravados no presente. A relatividade especial e geral compartilham desta
ideia.Setivermostodososdadosnomomentoatualsaberemoscomexatidão
como as coisas estavam ordenadas na origem, e como estarão no fim dos
tempos.Seaindanãopodemosfazerissodeve-seaquenosfaltamdados,eos
aparelhos paramedir ainda não foram fabricados.Deus, porém, que possui
todaainfo,certamenteconheceopresente,opassadoeofuturodetodasas
partículasdouniverso.AnovidadedeLacanteriasidoligarapergunta"Deus
sabe?"aoamordivino,novidadedocristianismo.
Antesdisso,porém,cabeobservarqueamecânicaquânticademonstra
(entenda-se: matematicamente) que mesmo determinando com a maior
precisãopossíveloestadoemqueas coisas seencontramnodiadehoje,o
máximoquesepodeesperaréumaprevisãodasprobabilidadesdoestadoem
que elas estariam em algum momento do passado ou do futuro. Para a
mecânica quântica, o estado do universo não está escrito no presente.
Segundoas leisquânticas, ouniverso funciona comoum jogodeazar.Deus
jogadados,poisnão!
Diziaqueoquepodeserpensadocientificamentedanaturezaéoque
denominamos"física",deummodogenérico.Masafísicaclássicanãoesgota
oquepodeserpensado.Ouseja,"hámaiscoisasnocéuenaterra,Horácio,
que o que sonha a tua vã filosofia."12E o que está fora da física,mas pode
pensar-se,podeserchamadodemetafísica.AprimeiraobjeçãoqueLacanfaz
àdefiniçãoaristotélicadametafísicaéquenãopodetratar-seda"ciênciado
ser enquanto que é". Ao contrário, é isso mesmo que deveria excluir-se.
PrimeirogestoantifilosóficodoLacan.Mas,vejamoseguinte:deveriaexcluir-
se caso levarmos em conta as descobertas, os meios, o método e a teoria
psicanalíticos.Não se trata de propor outra filosofiamais verdadeira,mais
12Shakespeare,Hamlet.CenanasalmenasdocastelodeElsinore
11
acorde aos avanços da ciência,mas de servir-nos da crítica à filosofia para
situaroalcanceeapotênciadocampoanalítico13.Estetrabalhocríticoseriaa
antifilosofia.
Eisoselementosgeraisparaumametafísicalacaniana:
1)Seriaaristotélica,naconvicçãodequeafísicanãoesgotatudooque
podeserpensado.Oquenãopodepensar-se,nãoé,simplesmente.Quandose
fala de algo impensável14estamos usando uma figura retórica destinada a
exprimir algo que foge à representação, aos significados que sustentam a
representaçãoquetenhodemimmesmo.Oqueépensáveleoqueésãouma
eamesmacoisa.Afísica,portanto,nãoesgotatudoqueé.
2) Seria antiaristotélica na recusa a defini-la como "ciência do ser
enquantotal",ou,ainda,comociênciadasubstância(nosentidodaquiloque
subsiste no tempo e no espaço). A metafísica lacaniana trabalharia com a
ideia de que não há outro ser que não os significados produzidos pelos
significantes, e este ser não tem nenhuma consistência fora do mundo da
palavraedafala.Oserseriaimaginárioeproduzidopelosimbólico.
*Vemosperfilar-seaquiumapolíticadetransmissão(deensino)paraa
psicanálise.Elaprecisariairnadireçãodeumesvaziamentodoser.Tantona
13Cabeobservarquecommuitafrequência,Lacanserefereaocampopsicanalítico
como "discurso analítico". E este não deveria confundir-se com o matema denominado"discursodoanalista".
14Porexemplo,otamanhodaspartículassubatômicasétãoabsurdamentepequenoqueresultadifícil imaginarquesejamreais.Edecertomodonãosão.Elas temexistênciamatemâtica,masmesmoquenãosejapossívelvê-las,nemagoranemnunca(vistoquesãomenores que um fóton, e precisamos de luz para ver), os cálculos e as leis que as regempermitem experimentos cujos resultados confirmam aquelas leis. Aliás, sem isso nãoteriamosiphones...
12
teoriacomonaclínica.Eapropósitodistoúltimo: "nãoháumpacienteque
nãosejaumalunodeAristóteles"15,soltaLacan.E,commed'habitude,atirada
permaneceinexplicada.Cabe-nosatarefaelucidativa.Proponhoisto:trata-se
dacrençanasessências16.
Explico-me:aética–asregrasdoagircerto–ésemprerelativaaumfim,
paraAristóteles.Talfinalidadeseria,aomesmotempo,aconclusãodaaçãoe
a sua razão de ser. O filósofo se refere a ela como o bem do agente. Se
chamamos "feliz" a um gesto perfeito, acabado, podemos entender que a
plena realização de algo, o desenvolvimento completo da razão de ser de
algumacoisa,sejaditaasuafelicidade17.Aristótelesdiz,comtodasasletras,
queafelicidadeéobemsoberanodetudoquehá,eolugarparaondetodas
as coisas tendem. Portanto, é em busca da felicidade que se justifica e se
caracteriza a boa ação humana. E todos os outros bens que possamos
conceber sãoacessórios;meiosapenasparaatingirobemsupremoqueéa
felicidade. Esta última, causa de tudo seria um bem em si. E este bem
soberanonadamais é do que a realizaçãodaminhaessência. O que realiza
meu ser. Isto vale para todos os seres, animados ou não. O marceneiro
encontraránamarcenariaarealizaçãodasuaessênciademarceneiroecom
15Lacan.Unrêved'Aristote16Seguramentenãonosentidosartreano(talveznohusserliano),masLacaneraum
existencialista,seportalentendemosadefesadasupremaziadaexistênciasobreaessência.Nadécadadesessenta,umaafirmaçãodessasteriasidotomadacomoumelogio;hojeseráescutadacomoumdemérito.Mas,deixandodeladoo"ismo"provocativo,nãohásombradedúvidaqueogestoantimetafísicodeLacansesustentanestainversão.Apenasprecisamosexplicitarmuitobemoqueeleentendiaporexistência,porquetrataoconceitodeummododiversoa comoera tratadopela filosofia clássica, e comestaabordagemsedistancia semremédio tanto de Aristóteles como de Sartre. Veremos mais adiante que define a ex-sistênciatopologicamente,ouseja,apartirdosignificante.
17Leia-sesobreistoThefragilityofgoodness,deNusbaum.Lacan"traduz"felicidadepor jouissance, gozo, o que levanta inúmeras questões que não posso retomar aqui. Issomereceriaumestudotantoetimológicoquanto filosóficodeambasnoções.Mas,enquantoissonão for feito, cabeobservarque, tantoemportuguês, francês comoemgrego, gozoefelicidadeestão longederecobrir-sesemanticamente.Abordoalgodisto,noqueconcerneestritamente ao campo analítico, no meu comentário de um parágrafo do seminário XIIdedicadoàpulsão(cf.infra).
13
ela a sua felicidade. Caso fosse obrigado a dedicar-se a outra tarefa, a sua
naturezaseriacontrariadaeaquiloseriaumainfelicidade.Masapedraqueé
jogada para o alto não sofre melhor sorte: a sua natureza está sendo
contrariadaeéporissoqueteimaemcair,insistindoemdirigir-seaocentro
da terra, aonde a empurra a suanaturezapétrea. É ali que se encontra seu
bemeondeserealizaráasuaessênciadepedra,eépraláquevai.Umavezlá
não mais haverá de mover-se, pois finalmente se encontra em casa. Já a
fumaça, cuja felicidade a aguarda nos céus, vê-se levada a subir, como os
pássaros.
Ora,olugardobemabsolutoedetodabemaventurançafoicolonizado
na idade média pelo Deus cristão, mas na Grécia clássica ainda estava
ocupado pelo "primeiro-motor-imóvel". Causa de todomovimento, de toda
transformação,detodamudança.Nadaéfixosobosol.Tudosemexe,nasce,
cresceemorre; a água se congela e se evapora;o rio corre.Emalgúmsítio
deveoriginar-setaletamanhaagitação,eestaorigemhádeserlogicamente
fixa.Lacanbotaali "[...]esteOutro [...], estesersupremo,míticodeummodo
manifesto em Aristóteles, esta esfera imóvel de onde procedem todos os
movimentos,sejamquaisforem,mudanças,gerações,translações,aumentos,
diminuições,etc."18Paraofilósofo,apedra"sabe",conheceseubem.Porisso
cai.Sabernãorefletido,claro,sabersemconsciência,massabermesmoassim.
Saberdeaondedeverdirigir-se;doprópriolugarnavidaenomundo;doseu
bem,dasuaessênciaedesuarazãodeser.
E nossos pacientes alunos de Aristóteles? De um lado, esperam um
diagnóstico, que faça deles o caso particular de um universal. Você é um
neurótico obsessivo, por exemplo. E de outro, acreditam possuir uma
essência desconhecida e única, um ser verdadeiro, que lhes deveria ser
revelado.Sesoubessemqual,saberiamqualéseubem,epoderiamorientar-
18Encore
14
separaafelicidadenavida.ÉoprojetodaÉticaaNicómaco.Dizemquesevá
aoanalistaporimaginarqueelesabe,oupoderiasaberqualénossobem.E
nãomudanadaacreditar,quandosomos lacanianos,queo terapeuta ignora
tudo sobre nós,mas podemostrar-nos o caminho das pedras para o nosso
bem, do qual somos os portadores inconscientes. Em que se converte esta
teleologiacomomodelodaciênciamatematizada?Koyrédizquedesparecem
avirtude,aperfeição,aharmonia,osentidoeofimdouniverso.Apedracai
pelaleideatraçãodoscorposenãosabepatavina.Enós?Nósdependemosda
leiedalógicadossignificantesquedecidenossosdestinosporqueoscriacom
a nossa ajuda, como demonstra suficientemente Édipo realizando a cada
passooprogramadooráculodeDelfos.
*
Emnossocampo,nãoháoutroserqueodossignificadosproduzidos
pelos significantes. Estávamos nesse ponto, antes do excursus. A ética do
psicanalista(enquantotal,comodiriamos franceses)consisteemlevaresta
ideiaasérioeeliminartodaconsistênciaaosconteúdosdasfalas,suspendero
referente em benefício de pensar o sentido como efeito do puro jogo dos
significantes. Porque os significantes podem não ter corpo, mas são
perfeitamente materiais19. Esta operação de esvaziar o ser imaginário e
reduzir o discurso à sua materialidade significante é a essencia de nossa
clínica.Ateoriadapráticaseriaomapeamentodosmodoscomosãoafetados
nossos analisantes pela experiência criada pelo discurso analítico. Desde
sempre foi constatado um efeito despersonalizante desta experiência.
19Cf.Osincorporaisdosestóicos.
15
Melanie Klein, Ferenczi, Balint e Searles, entre outros, trabalharam, com
outrosconceitossobreesteefeito,queLacandenominadesêtre–"des-ser"20.
O des-ser seria o resultado de levar até as últimas consequências o
pressuposto teóricoque sustenta a "regra fundamental"daassociaçãolivre:
aosefeitosdeumaanálise tudo estánodiscurso;nada foradele.Nãoexiste
corpoforadodiscurso;nempai,nemmãe,nemnamoradoforadodiscurso;
não existe nem paciente, nem analista fora do discurso. Bem visto, você
mesmo não está fora do discurso21. E esta afirmação, dizia eu, não seria
metafísica mas psicanalítica. Hoje quero elaborar melhor esta noção de
metafísica,paraacolherumaideiadeAlainBadiou,quemepareceprocedente
epoderrespondermelhoràquelaobjeçãoquemeforafeitaedaqualfaleino
começo.
AMETAFÍSICAMODERNA
Aúnicametafísica,depoisdeAristóteles,nãodiriaquerompemasque
deixa de seguir as suas premissas é a de Heidegger22. Figura decisiva da
filosofia da modernidade a quem Lacan, como o resto da intelligentzia
20Conceitoa serpensadona teoriaenaclínica, juntocomanoçãode "destituição
subjetiva".21Veremos, quando falarmos de Descartes, que Lacan retém dele o método, a
"dúvida hiperbólica", mas não as conclusões ontológicas da aplicação deste método. Ométodofreudianoé idênticoaocartesianotomadopeloavesso.Por isso,o lugardacertezaestá deslocado, do "eu penso" para "(isso)pensa" (no discurso, claro). Uma observação,contudo:istonãosignificaqueaclínicasignificalimitarmo-nosàfala.Oqueistoquerdizeréque tudooquecontece,desdeoapertodemão,passandopelobeijoquevocêdá (ounãodá), até o gesto do pagamento ou o livro que vocêmostra ou a bala que você oferece oupede, tudo issosão fatosdediscurso.Tudo,dentrodocampoanalítico,deveser jogadonacontadodiscurso.Tudo.Asala,amobília,aroupa,asecretária,omalhálito,otrânsitodeSão Paulo... são fatos de discurso e não tem outra natureza, no que diz respeito ao atoanalítico.
22Kant,porexemplo,tentaporametafísica,adeAristóteles,embasescientíficas(ouseja, newtonianas), mas não inova fundamentalmente. Outro tanto poderia ser dito deDescartes,antesdele.
16
francesa de pós-guerra, frequentava. Segundo este filósofo, a ciência
moderna,quesempre tevea tecnologianohorizonte, seocupariadosentes,
dascoisasfácticas,emdetrimentodoser,quepermaneceriaocultodetrásdo
ente,nãointerrogado.Algoassimcomoperderaalmaporcausadamatéria.A
metafísica, segundoo filósofoalemão, seriaahistóriadesteocultamentodo
ser, que brilhava no pensamento dos pressocráticos, como Demócrito e
Heráclito,e teriasidosepultadoporParmênidese todososqueoseguiram,
começandoporPlatão.Hánoiníciodahistóriadafilosofiadeocidente,pensa
ele,umaempreitadadecolonizaçãodosermedianteaIdeia,comoresultado
dequeoconceitodeente(étant,emfrancês,"o[queestá]sendo"–tradução
do grego ti toeon)teria subjugadoode ser.Parmênidespassadoesti ("é",
terceirapessoadosingulardoverbo"ser")atoeon:particípiosubstantivado,
derivadodoverboseredoravantetema[sujet]daontologia.AIdeiaplatônica
seriaumaimposiçãofilosóficadopensamentodouno.
A Ideia (eidos) de Platão é a figura da presença de tudo que pode
pensar-se,e,desdeParmênides,oquepodepensar-seé.Eéum.Umacoisaé
umacoisa.ComPlatão,oserpassaaserpensadocomo"aquilo[ente]queé".É
a quididade, palavra da escolástica (ou seja, da leitura medieval de
Aristóteles) que responde à pergunta "o que [quid, em latim] é isso?". A
consequênciaéque,comPlatão,seestabeleceumaposiçãonormativadoser,
na qual a verdade (aletheia) fica subjugada pela Ideia. Os sofistas,
terrivelmente combatidos por Platão, privilegiavam a verdade, que decorre
dafaladaspessoaseémutável,sobreumserimutáveleúnico,tomadocomo
essência.O seruno, a essência das coisas, estaria na Ideia que, paraPlatão,
temmaisrealidadequeascoisasmesmas,queapenasparticipamdela.AIdeia
unaeúnicaestariaportrásdetodasascoisasmutáveisdomundosublunare
quepodemserpensadas.
17
Heidegger o diz desta maneira: "A preeminência do ente fixa o ser,
enquantorazãocomumapartirdoUm.Ocaráterdistintivodametafísicaestá
decidido.Oumcomounotorna-senormativoparaadeterminaçãoulteriordo
ser."Esteseráseucavalodebatalha:teriahavidoumtomadadepoderdoser
peloUm,embasandoasupremaziadoenteeoadventodeumaonto-teologia,
queesqueceosercomoospressocráticosotematizavam,atravésdanoçãode
verdade.
DUASOBSERVAÇÕESINCIDENTAIS.
A ação política de transmissão da psicanálise feita por Lacan 23
aconteciaemdoisfronts.Oestrado(opúlpito?)eodivã.Nesteúltimocaso,a
transmissãoaconteciadefacto,masnãodejure.Fazemosaexperiência,junto
comnossosanalistas,dosacontecimentosdediscursoquenosrevelamnossa
própria divisão; podemos descobrir-lhes a lógica, mas isso se passade um
modoquenãopodesercalculadodeantemãonemcolocadoemfórmulasde
valoruniversal.DiferentedaIPA,Lacannãoacreditavaquesepudessefazer
uma análise com o intuito de aprender a analisar outros. Quando diz que
"toda análise édidática", está contestandoomodeloda formação freudiana
padrão,baseadonaidéiadequesepodeaprenderaanalisarcomoumartesão
aprendeoexercíciodasuaarte,deummestremaisexperiente.Oensinode
jureacontecenoSeminário,ealiaestratégiadeLacanéaviadomatema.E"a
viadomatema"(nosentidodetao)teriaaciênciaformalizadacomomodelo,
maspassadacomumaretóricaquenada temdecientífica.Éantes sofística,
23Transmitirécomunicarumconteúdodedoutrinamas, fundamentalmente, fazer
passaraoutremumaexperiênciaquese teveequenãobastadescrever.Nessesentido,adita"transmissão",termodaliturgiacatólica,dizrespeitoàpsicanáliseemextensãoecolocaempautadomodomaisagudoasrelaçõesentreouniversal,oparticulareosingular
18
como muito bem diz Barbara Cassin24. Nesse sentido, se o matema visa a
psicanálise em intensão, o Seminário faz uma prática de psicanálise em
extensão.Acríticadafilosofiaseencaixanestaduplicidadematema/poema25.
Pode-se identificar dois conceitos estratégicos nesta política de
transmissão:orealeogozo.Elesnãoserãotematizadosfilosoficamente,mas
antesmediantealógicaeatopologia26.Realegozonãosão,naminhaopinião,
um fim em si mesmo, mas ummeio para introduzir a noção de impossível
comoumoperadorcentraldapsicanálise.Vocêspodemnãoentenderaquese
refere,masdáparasentiraimportânciadissoquandolêemqueLacandefine
ofimdaanálise–ouseja,tantootermoquantoafinalidade–como"passarda
impotênciaàimpossibilidade".
Queria dizer, neste ponto, que esta política de ensino (ou de
transmissão) que se serve como alavanca do conceito de impossível, tem
comoobjetivodesontologisarapsicanálise.Em197027Lacandiz,apropósito
dalingüística,comociênciadalinguagem,oseguinte:
Osignificadoseráounãoserápensávelcientificamenteconformetenhaounão um campo de significantes28, que na sua materialidade mesma, sejadistingüíveldequalquercampofísicoobtidopelaciência.
24CassinBarbara,Jacqueslesophiste.25Chamogenericamentearetóricade"poema"paraquesevejaumaoposiçãoque
nãoénempodeserdialética.Ouseja,nãoaspiraanenhumasíntese.Oquedeixaamaioriamuito frustrada.Pareceriaquedevemosescolherumcaminhoououtro, oquemeparecetãofalsoquantoquererfazerasíntese.
26Umalógicaeumatopologia"lacanianas",sobreaqualmuitosetemescrito,oquenãoatornamuitomaisacessível,nemaosespecialistasdasciênciasexatas,queemgeraladesconsideram, nem aos leigos psicanalistas que em geral se contentam com repetirfórmulas que não entendem. Digamos que a topologia e a lógica adequada para nossocampo está sempre um pouco na Twilight zone (me refiero a la serie La dimensióndesconocida, de Rod Sterling), na zona crepuscular entre ficção e realidade. AlfredoEidelszteintrabalhaintensamenteparafundamentarestaviadeummodoconsistentecomométodocientífico.
27LacanJacques.Radiofonia28 Aqui "campo" está sendo usado no sentido da física moderna: "campo
eletromagnêtico",porexemplo.Nessesentido,uncamporepresentaadistribuiçãoespacial
19
Como psicanalista, ele advertiu que se distingue da lingüística (e da
ciência) e afirma fazer "linguisteria"29 . Mas aqui se refere à lingüística
estrutural,aquelaquedeveriatratar,precisamenteparasercientífica,arede
simbólica (o corpo do simbólico30) como um campo de significantes que
permitiria pensar cientificamente (como oposto a "psicologicamente") o
significado.Note-sequeoproblemaontológicodalingüísticanãoéosignoou
o significante mas o significado: aonde está o significado e qual é a sua
natureza?Mas,oqueaquicabesalientaréqueocampodossignificantesnão
seriaumcampofísico.Oumelhor,seriaumcamponão-físico.Nãofísico,mas
material31.Paraestudá-loprecisamosrecorreràlógicaeàtopologia.
Isso implica –continua Lacan– uma exclusãometafísica a ser tomada comofato de des-ser. Doravante nenhuma significação será concebida comoevidente [ne sera désormais tenue pour aller de soi: não será tida comocaindodoseuprópriopeso].
Há pelo menos duas leituras desta passagem, habilitadas pelo estilo
calculadamente anfibológico do autor. Uma, que a metafísica (no sentido
filosófico) deve ser excluída, precisamente por não haver um ser da
significação ("exclusão [da]metafísica").Entendendo-sepor "significação"o
efeito de sentido produzido pelos significantes encadeados quando se fala.
de uma magnitude física que mostra certa variação numa região do espaço.Matematicamente, os campos são descritos mediante uma função que os define.Graficamente,costumamrepresentar-semediantelinhasousuperfíciesdeigualmagnitude.Históricamente, a noção foi introduzida para explicar a ação à distância das forças degravidade,eletricidadeemagnetismo,masseuusotemseextendidosubstancialmente,paradescrevervariaçõesdetemperatura,tensõesmecânicasnoscorposepropagaçãodeondas.
29RecadodadoaJakobson,presentenaqueledianoSeminário:a lingüísticaparaolinguista;a linguisteriaparaopsicanalista(AulatrêsdeMais,ainda).Mas,valeperguntar:quando pratica a psicanálise faz linguisteria; ora, será que isso se aplica também para aelaboraçãoteórica?E,searespostafor"sim",emquetermosdialogao"linguisteiro"comolinguista?
30Lacan.Op.cit.Radiofonia.31Deixo entreparênteses a pergunta "dequematéria são feitos os significantes?",
que requer estudar o conceito estóico de "incorporal". Creio que a psicanálise lacanianaprecisasedefendermelhordeoutraacusaçãofilosóficadepeso:adeseridealista.Entendoque saídas como dizer (Mais, ainda, aula 3 da versão não estabelecida por Miller) quefazemos "linguisteria", não linguística, visam a um posicionamento epistemológico, mashaveriaqueesclarecé-loumpoucomelhorparaquenãovireumapetiçãodeprincípio.
20
Outra, que Lacan realiza aqui uma operação metafísica antifilosófica, que
consisteemagirdetalmodoqueasignificaçãonãopossaconsistirporsisó.
Quenuncaseconstituaumserdesignificação.Seriao intuitodesteestilode
insuportável ambiguidade da retórica lacaniana: que seja impossível
determinardeummodounívocooqueele"quisdizer".Aprimeiraleituraera
aminha. A segunda, de Badiou. Para pensar cientificamente a produção de
significadosprecisa, como condiçãoprévia,excluirametafísica, pensava eu;
realizarumaoperaçãometafísicadeexclusão,pensaBadiou.Segundoele,esta
exclusãodoserdasignificaçãoseriaametafísicadeLacan. Badioué filósofo:
precisa defender a filosofia para não ficar fora do jogo. Eu pratico a
psicanálise,nãoprecisosalvarafilosofia.Odebatepermaneceaberto...
Notem,emtodocaso,oseguinte:quandooquedigofazsentido,aquilo
viraumarepresentação.Constituiumagestalt;afiguraacabadaefechadaque
poderia ser ilustradamediante uma esfera. Parece que, aquilo que disse (e
vocês entenderam), é. Se disser "chove", basta olhar pela janela para
constatarseéverdadeounão.Mas,mesmosemconferiroreferente,achuva
declaradaadquire imediatamenteum"serdesignificação".Depois entramos
noproblemade saber se as palavras coincidemounão comas coisas.Mas,
antesdisso,bastaeudizerparaqueseconstituaotal"serdesignificacão"de
quefalavahápouco.ÉaissoquesereferiaHeideggerquandodissequepor
culpadePlatãoa Ideia (o efeitode significaçãodos significantes) subjugaa
verdade. Porque é na verdade e não na Ideia que reside a singularidade
daquele que fala. Mas não na verdade como correspondência entre as
palavras e as coisas, mas na verdade em relação à posição enunciativa do
locutor.Seeudisserquechove,numdiadesol,meuinterlocutorpodepensar
"eleseengana"ou"elequermeenganar".Mas,mesmoqueestejacaindoum
21
aguaceiro,elepodeperguntar-se:"Paraquêelemedizoqueelesabequeeu
sei(quechoveláfora)?
Voltandoà"exclusãometafísica":paraqueasignificaçãosejapensável
(filosófica ou cientificamente) é necessário previamente, como condição,
subtrair-lhetodoser, toda ideiadeumserdosignificado.Haveriaumcampo
consistentedesignificantes,quepodeserestudadoobjetivamente,epermite
pensaressefenômenoestranhoqueéofatodeofalar"fazersentido",querer
dizer alguma coisa para quem entende a língua32 . Quando escuto dois
chineses conversando, aquilo não faz sentido para mim, mas creio sem
problema que faz para eles. Não são como dois macacos grunhindo. Eu
suponho que no caso dos chineses há realmente sujeitos. No caso domeu
iphone, quando o Siri33–que tem voz de mulher porque assim escolhi–
conversa comigo, aquilo faz sentido,mas não creio que haja realmente um
sujeito.Talvezhajaumefeitosujeito,emmim,mas,aténovaordem,nãono
meu celular. O filme de Spike Jonze,Her, está baseado precisamente nesta
ideia, da inteligência artificial produzindo um sujeito. Um psiquiatra
surpreendeuasuavizinhaconversandocomasplantas,enquantoasmolhava,
na sacada do apartamento. Embaraçada, ela fez um gracejo: "Falar com as
plantaségrave,doutor?"Eele: "Não,masquandoelas responderem,venha
mever."Éisso.
CONTRAQUEMVOCÊFALA?
Vale notar que, embora Lacan fale contra os filósofos, é aos
psicanalistasque sedirige [s'adresse]. Sempre.Caso tenham lidoalgunsdos
seminários, terão notado que ele injuria os analistas constantemente. Ora
32Umavezparticipeideumsimpósiochamado"Oquefalarquerdizer?"33Oaplicativodeinstruçõesporvozdocelular.
22
increpa seus alunos ali presentes, ora censura os analistas em geral, ora
repreende ou satiriza tal ou qual analista em particular. Alain Badiou faz
umas considerações a este respeito assaz interessantes34. Primeiro, observa
queantifilosofiasexistemvárias,nãoapenasuma.AdeLacanseriaaúltima,
masnãoécertamenteaúnica.Apalavramesma, "antifilosofia", foi cunhada
no séculoXVIII.Badiounão apenasnomeaos antifilósofos comodedicaum
anodecursoacadaumdeles.SãoPaulo,oprimeiro,avantlalettre,seguido
por Pascal, Rousseau e Kierkegaard, os clássicos e por Nietzsche e
Wittgenstein,osmodernos.Lacanserianossoantifilósofocontemporâneo,e
Badiou o tem em alta estima. Ele diz, nemmais nemmenos, que o grande
desafiodafilosofiacontemporâneaémedir-secontraaantifilosofiadeLacan
Emsegundolugar,observaalgosobreosantifilósofosquemechamou
profundamente a atenção, sobretudo por coincidir com uma caraterística
minha.Eupensocontra.Penso"contra",nomesmosentidoemquesedizde
alguémqueseapoiacontraumaparede.Eparecequeumantifilósofotambém
é um pensador adversário. Cada um deles se opunha a algo ou a alguém
específico. Pascal argumentava contra os libertinos. Rousseau se dirige aos
malvadosIluministas–aoshomenssemcoração,comoVoltaireouHume.Já
Nietzsche fala para homens livres, aqueles que não tem uma moral de
escravos.Kierkegaard,doseulado,pensapara,porecontraamulher.Enfim,
o homem a quem Lacan se dirige35é o psicanalista. Lacan fala e pensa
"contra"opsicanalista36.
Oespantosoé,observaBadiou,quenenhumadversáriodapsicanálise
teriaacoragemdedizermetadedoqueLacanproferecontraosanalistas.Eo
diz em todos os tons do diapasão. Que são homens perdidos, aos quais ele
34L'antiphilosophie35Talvez vocês tenham reparado, no prefácio dos Escritos, que Lacan completa o
aforismodeBouffon"oestiloéohomemmesmo"com"ohomemaquemnosdirijimos".36Daliopesodasuapergunta:hápsicanalista?(ilyadupsychanalyste?)
23
deve reconduzir para o caminho certo, como um pastor. Que não são
confiáveis.Queviramascostasaoseupróprioato,doqual temhorror.Que
ignoram ou desprezam aquilo de que depende a sua própria formação (se
refere àmatemática e à lógica). Que não entenderamnada do que ele vem
lhes dizendohá 20 anos.Que fala para as paredes, porque eles são surdos.
Que está completamente só, clamando no deserto. E, last butnot least, que
está ali para... envergonhá-los! Lacan se dá a missão de envergonhar os
psicanalistas.Éfenomenal!
Quando começa a falar sobre o ser, diz que o faz como um "sem
vergonha"[toutehontebue,depoisdeterengolidotodaavergonha],porque
nunca se curvou à tirania do sentido. Seu estilo de exercer a psicanálise e
ensiná-laseriamaprovadisso.Nãoéapenasumabrincadeiramasumponto
centraldeética,vistoquechegaaopontodechamaraontologie[ontologia]
dehontologie[dehonte,vergonha].Aontologialhepareceumavergonha.Não
nasmãosdosfilósofos:éumavergonhaqueosanalistassesubmetamaela.E
pior,ainda,quandoofazemsemsaberou,sabendo,ficamorgulhososdisso.É
ali que declara a suamissão de envergonhar colegas e alunos. Ele não vai
deixarbarataestaposição,jáquelheparecevergonhosoqueumpsicanalista
enchaodiscursodaanálisecomsentido.Eesperaaborrecertodosquefazem
isso, descaradamente ou não. Foi esta condena feroz e nada ambígua da
ontologia, aliás, que me levou a afirmar que Lacan pretendia erradicar a
metafísica do campo psicanalítico, visto que tanto na história da filosofia
como no sentido comum, ontologia e metafísica são quase sinônimos. Isso
quandoapalavrametafísicanãoéusadasimplesmenteparadizer"filosofia".
Maisumavez, conquantoele critiqueseriamenteos filósofos,nãoéa
elesquesedirige,masaosanalistas.Equandoosmandacominsistêncialer
filosofia é por considerar que o psicanalista está ameaçado, como analista,
pelafilosofia.Tantomaisameaçadosquantoque,nasuaignorânciafilosófica,
24
nãopodemsequerperceberoperigoqueestarepresentaparaapsicanálise.É
obrigatórioqueosanalistasleiamosfilósofosporqueprecisamdelesparapor
odiscursopsicanalíticoaprovafrenteàfilosofia.Devemsaberoqueelestem
para dizer, não para fazer outra filosofia diferente ou melhor, mas para
separar-se, para destacar-se dela. E qual é o risco iminente que enxergana
filosofiaenosfilósofos?Aameaçadeapsicanálisevirarumahermenéuticado
sentido. Apsicologia é hoje operigo do psicanalista. O psicólogo, vindo das
filasdafilosofiaedareligião,cheiodeamor(edesentido)paradar.Porque
"da religião"?Porqueo sentido é sempre religioso, vistoque faz consistir o
ser.O sentidodavida,dodestino,dosdiscursosdeLula,da felicidade... E a
hermenéuticaconsisteemaplicarsentidoaoqueopacientediz.Éo fim(no
sentido de sua caducidade) do ato analítico. "A interpretação vai contra a
significação",escreveem197337.
TRÊSQUESTÕESDIFÍCEIS
Naminha leitura,existemtrêsquestõesmuitodifíceisdeelucidarem
Lacan.OstemasdoUm,doAmoredoGozo.OUmconcerneaoser.Oamordiz
respeitoaodois.Eogozo,aotemadocorpoedoindivíduo(eporextensão,ao
real).Ostrêsestãointimamenterelacionados.
OUMEOUNO.
Éumproblemadelógica,paraAristóteles.Osgênerossãouniversaise
abstratosenãoalcançamosindivíduos,quesãoúnicos;contam-seumporum
enãofazemumaclasse.Sedisserdohomemqueéum"animalracional"[zoon
logon], isso vale para todos. Poderia não haver homens e o predicado
continuaria valendo, assim como a definição "cavalo branco com chifre na
37L'étourdit
25
testa" é válida ainda que não existam unicórnios. Declarar-me um caso
particular da espécie "animal racional" não me alcança. Como tampouco é
suficiente declarar-me um caso particular de histeria, diagnosticado pelo
médico.Oparticularentranalógicadeclasses,osingular,não.
Para o estagirita, os gêneros e as espécies são substâncias segundas.
Elas não existem "realmente". O que realmente existe são as substâncias
primeiras, os indivíduos "de carne e osso", como se diz. É o outro tigre do
Borges,oquenãoestánoverso.Lacanconfinaeste indivíduonoimaginário
(aopontodeafirmarqueaconsistência,istoé,amaterialidade,éimaginária,
não real38). Se Platão começa com a Ideia, a essência abstrata, para depois
chegar até a coisa em si; Aristóteles começa com a substância primeira,
concreta e física, e não consegue verdadeiramente eliminar o vão que a
separa do conceito universal. Ele denomina ousia (traduzido ora como
"essência"oracomo"substância",oquedeixatudomuitoconfuso)aoestofo
dequeestá feitoumcorponatural. Nessesentido,asubstânciaestáemum
sujeito[hypokeimenon,outrapalavracheiadehistória39].
Emalgumlugarda"Metafísica",escreve:
Hámais unidade naquilo que é um todo e que está configurado por umaforma,especialmenteseessetodooénaturalmente,enãocomoaquiloquese juntapelacolaoucomumpregoouporumvínculoqualquer,resultadodeumacoerção.Ouseja,seessetodocarregaemsimesmoacausadasuacontinuidade[oprincípiodasuaunidade].
Está falando do organismo, da unidade do corpo vivo. Mas esta
unicidade é imaginária. É a diferença, muito bem conotada pelo nosso
português,entreoumcontáveldaunidadenumérica,eounodacompletude
daesfera,dotodounificado,doconjuntooudaclasse.
38 Para o real reserva a "ex-sistência", escritura que indica tratar-se de uma
operaçãofeitaapartirdosimbólico.Noháreal,portanto,semosimbólico.39Cf.oapêndice1
26
Quandoumseranimadosedeslocaporseusprópriosmeiosdizemos
queeleéautônomo,quetememsimesmooprincípiodoseumovimento(não
omovemaspilhas,nemos fiosdeummarionetista40) e supomosneleuma
intenção (com cé-cedilha)41. Em "O movimento dos animais", que está na
Física, Aristóteles escreve: "O animal se move e se desloca sob a ação do
desejoedaescolhapensada,depoisdetersofridoumaalteração[excitação]
debidaàpercepçãoouàimaginação."Oimportanteaquiésalientarquepara
ofilósofooqueestáalojadodentrodaunidadecorporalquepodemosveréo
serdobichooudacoisa(omesmovaleparaapedraquecai).Esteseréseu
princípiomotor.ÉnestepontoqueLacanseseparadoestagirita:paraelenão
hánenhumsernaaparênciacorporaloudentrodocorpomesmo.
Istotrarádificuldadesnahoradepensarasrelaçõesentreaalma,que
está em mim, –autônoma e sede das minhas intenções–, e a unidade
ontológica do corpo quemovimento com ela. Por que seria um problema?,
porqueAristótelesnãoéDescarteseosersendounoehomogêneonãopode
estaraomesmo temponomeucorpoe naminhaalma,que são claramente
duassubstânciasheterogêneasentresi.Lacanserefereaissoem197342:
"O homem pensa com –instrumento– a sua alma, quer dizer, com osmecanismossupostosnosquaissesuporta[sustenta]seucorpo43."
EAristóteles44:
40Pensandobem,nãofaçoideiaoqueAristótelesteriapensadodeum"autômato",
umcachorrinhomovidoapilhas,poresemplo.Haveriaquedecidirseasbateriasestãonele,"comonumsujeito",ouestãonelecomoumartifício,semfazerpartedele.
41Todoestetema,"oquemovealguém",éoassuntodoTriebfreudiano,tematizadocomo"tendência"(tendance)pelosanalistasfranceses,incluídoLacan.
42Encore.43Caberecordarque"suposto", "suporte", "sustentação"e "substância" (e também
"sujeito")são,emgrego,amesmapalavra.Ouseja,pensacomosmecanismosquetornamseucorposubstancial.Refere-se,claro,aossignificantesestruturados.Masquese tratadeuminstrumentoé,calro,umailusãodoeu.
44Deanima
27
É comaalma inteira que pensamos, nosmovemos, sentimos e assim pordiante [...] A alma é o princípio das faculdades e se define por elas: asfaculdadesnutritiva,sensitiva,pensanteemotriz.
Ou sou um ou sou múltiplo (como uma matilha, mas a matilha é
abstrata,nãoexisteemrealidade;oqueexisteemrealidadeéumaporçãode
cachorros correndo, latindo e mordendo), as duas coisas juntas não
procedem. Por isso será tão difícil para o filósofo grego conceitualizar o
número,vistoqueo"dois",primeironúmero(o"um"nãoéumnúmerojáque
éumdosnomesdo"ser"),éaomesmotempoumaunidade–umnúmero–e
umapluralidade–oconjuntodeduasunidades.Onúmerodoiscolocaparaele
umproblemaontológico.
Lacan sobre isso observa que "a lição platônica [aprendida por
Aristóteles]équeonúmeroéonúmerodois.Oumnãoéumnúmero."45Para
nós, que temos o um como um número, a dificuldade grega é difícil de
entender.Paraeles, tanto"omesmo"quanto"odiferente"sãopropriedades
doUm,porquesãopropriedadesdoSer.EoUm(oSer),éanterioraonúmero
e sua condição.Masonúmeroé compostodeunidades idênticas, cadauma
dasquaisalojaoSer.EoSernãopodeserumemúltiploaomesmotempo.A
dificuldade grega comodoiséportanto a seguinte: comopode serpossível
queumnúmero–queéumacoisa– estejacompostodeduasoumaiscoisas?
Comopodeumacoisaser,aomesmotempo,umaemúltiple?
Lacan faz uma festa com este impasse grego, porque lhe serve para
avançaratesedequeéadíadaqueobstaculizaainstauraçãodoser-uno.Isso
dará no famoso aforismo "nãohá relação sexual": não se pode completar o
Uno pela presença irredutível do Outro (heteros).Mesmo reconhecida na
políticaenanatureza,adiferençadossexoscontinuavaumapedranosapato
da Lógica, por não submeter-se à dialética e ao Uno. Em outras palavras,
45Lacan.Problemascruciais
28
enquantooum não fosse tematizado comonúmero,nãohavia comochegar
atéodois.TeriasidonecessárioesperarporFregepararesolveroproblema
colocado pelo conceito de um, e isso só foi possível recorrendo ao zero,
desconhecido para os gregos. Vale observar que como concerne ao ser, o
obstâculoqueemperraalógicanãoseriaapenaslógicomasontológico.
Aotrazeroimpassedalógicaclássicaparaonossocampo,contudo,me
parecequeLacansecontradizquandojogaadiferençadossexosnacontada
ontologiaaristotélica.Jáque,seforconstatadaumafalhanoraciocíniogrego,
nasualógica,eestafalhadesignaorealdosexo,istonãotemnadaavercoma
diferençadossexos,queéimagináriaou,sesequer,"empírica",nãológica46.
Voltando para o drama grego: o indivíduo é assim chamado porque
conserva aunidadeda sua forma,mas aomesmo tempodeve-sepostular a
diferençaqueodistinguedequalqueroutro indivíduo.E este éoproblema
metafísicodasingularidade.Sobreisso,opsicanalistacomenta47que
nãoéevidentequehajaoUm[ça ne va pas de soi qu'il y ait de l'Un –em espanhol diriamos: "no cae de su peso que haya lo Uno", usando o neutro "lo" e não o artigo determinante masculino "el" –O problema aqui está em o que fazer com o partitivo "de l'Un", que não existe em nossas línguas e que estimo conceitual?];issopareceóbvio[ça a l'air d'aller de soi] porque, por exemplo, há seres vivos e vocês,vocês tem toda a aparência, cada um de vocês aí, bem acomodados emvossascarteiras,deserembemindependentesunsdosoutros,deconstituirissoquehojeemdiasedenominauma'realidadeorgânica',desustentarem-secomoindivíduos.Ébemdali,claro,quetodaumafilosofiaprimeiratomouseuapoiomaiscerteiro."
Está falando, sem dúvida, de Aristóteles (a filosofia primeira é a
metafísica).Edizoquê?,queéimaginárioacreditarquehajaindivíduoseque
46Aquiestátodaadificuldadecomoconceitolacanianoderealstrictosensu:elese
deduzda lógica, não vice-versa. Eumesmo tento avançar,mas adiante, um caminhopararesolveristo:nãosetrataria,paraLacan,dadiferençadossexos(imaginária),masdosexo(real).Isto,noentantomerecetodoumdebate,jáqueorealqueinteressaanossocamposedefinedesdealinguagemeodiscurso,jamaisdesdeosorganismos.
47Lacan.OuPire,19/4/1972
29
elesestejamvivos–queasrealidadesorgânicascompropriedadesrealmente
diferenciadas não passam de uma aparência (semblant) 48 . Mas esta é
precisamenteaideiadeAristóteles:hárealidadesorgânicas.ELacandizquea
metafísicaestáemestaideiabemapoiada.
Qualéaposturadopsicanalistaemrelaçãoaestaconcepção?
"Oser–sequeremqueuseotermoaqualquercusto–oseréoserda
significância."49Isto parece contraditório com a exclusão metafísica de que
falavaantes,masdizexatamenteamesmacoisa:nãoexistenenhumserfora
dalinguagem;nãoháoutroserqueoverbo"ser".Acreditarqueascoisasde
quefalamosestãoaliaoalcancedamão,comoestãoaoalcancedoconceito,é
uma ilusão que se produz necessariamente na e pela fala. O método
psicanalíticosebaseianoprincípiodequesuspendemosestacrençaimediata
no ser em si das coisas. Baseia-se na aplicaçãometodológica do princípio
teóricodequetodaacenaanalíticaacontecenalinguagem,nafala,eapenas
ali. Ela e apenas ela é todo o universo de que precisamos para fazer uma
análise.
MasAristótelesnãoépsicanalistae,paraele,oindivíduo,vocêeeu,é
impredicável. Qualquer predicado será universal e o indivíduo, que é real e
concreto, no sentido ingênuo dos termos, é precisamente o que escapa à
apreensão dos predicados. Lacan se refere ao "lado esperto de Aristóteles,
quenãoquerqueosingularjoguenasualógica."Emaisadiante:
"[...] esta estória de essencialismo e unicidade é: 'o Princípio é oUm?'ouentão: 'é o ser?' [são as perguntas de Aristóteles] Como precisa aqualquerpreçoqueoUm sejaequeoSer sejaum(uno),aínosperdemos.Justamente,omododenãoseperderésepará-losseveramente."50
48Mesmoque se tratedasmesmas vacas, omapados cortespara fazer churrasco
delas,noBrasilédiferentedaArgentina.Portantonãohácorrespondênciabiunívocaentreoscortesdaquieoscortesdelá.Um"bifedechorizo"nãoéuma"picanha".
49Encore5018/11/75
30
Eis a operação antifilosófica: separar o um do ser, que Aristóteles
juntou.Eestapropostadecorredeumaoutraconcepçãodalinguagem.Única,
aliás,quefazpossívelaexperiênciapsicanalítica."Quehajaoum[yadel'un]
nãoquerdizerquehajaindivíduos"51
ODOIS(OAMOR).
Comodisse,adíadalevaofilósofoaumimpassemetafísicoinsolúvel.E
opsicanalistaabordaeste impassepelo ladodoamor.Omaismalucoéque
não é Lacan quem junta estas duas coisas, o amor e o número, mas
Aristóteles!, paraquemoamoréum temadaFísica(capítulo IXdo livro I),
não naMetafísica. Suponho que pensava naquilo que muito mais tarde foi
tematizado como "instinto reprodutivo", mas seja como for, é do encontro
sexual entremachos e fêmeas que se trata. Ele já tinha falado do casal na
Política (a diferença dos sexos seria natural e dada, e a sua finalidade
consistiria em reproduzir o mesmo: fazer um segundo corpo, igual ao
primeiro. Esta reprodução humana teria como função fornecer cidadãos à
Cidade). Torna a falar do casal na física, a propósito da forma, completa e
ativa,edamatéria(hylé),incompleta,informeepassiva.Ambas"copulam",e
o resultadoéuma totalidade inseparávelde "formatéria", digamos.Apartir
daliAristótelesdeduzumasériedeequivalênciasquesãoaomesmo tempo
lógicaseontológicas:arelaçãoentreoprincípioativo,daformaepassivo,da
matériaéamesmaqueexisteentreovisíveleoinvisíveleentreomasculinoe
ofeminino.Édanatureza(quandoAristótelesdiz"natureza",diz"essência"e
"ser")dohomemcomandaredamulhersercomandada,porexemplo,assim
comoédanaturezadoamo,mandaredoescravo,obedecer.Sãodiferenças
51Op.cit.Oupire.Porqueoum(osuns)sãodaordemdosignificanteeoindivíduo,
não.
31
que existem nas almas respectivas, não nos corpos. Nada tem a ver com a
anatomia. Em todo caso, que umamulher pretenda comandar vai contra a
ordemdascoisas,éantinatural,umaaberração.
LembrodeondeseoriginaoproblemadeAristótelescomoindivíduo,
denominadopor ele substância[ousia]-primeira: do colapsodo ser sobre o
um52:
Noqueconcerneàssubstânciasprimeiras,éincontestávelmenteverdadeiroque elas significam um ser determinado, pois a coisa exprimida é umindivíduoeumaunidadenumérica.
Háaquidoistiposdeumque,graçasaoportuguês,podemosdiferenciar
claramente, enquanto em francês Lacan precisa fazer cambalhotas para
explicaradiferença.Oportuguês,comovenhomostrandodesdeoinício,tem
umeuno.Oum,dey'ad'l'un,éaunidadenumérica,oumecontar"um,dois,
três". Lacan especifica que essa unidade numérica, o número 1, especifica
tambémosignificanteconsideradocomounidade.Umentreoutros53.Mas,e
aqui está a diferença com o filósofo, a unidade numérica não designa o
indivíduo. "Y'ad'l'unneveutpasdirequ'ilyaitde l'individu"54–"Háunsnão
significaquehajaindivíduos".ÉnestepontoqueLacanlançamãodeFrege.
Toma dele que o número 1 é o zero marcado como um elemento. O
psicanalistadiztratar-sedo"umreal".Eoumrealseriaosignificante,nãoo
indivíduo. O significante, definido ao mesmo tempo pela diferença e pela
unicidade. É este significante (e não outro), e é o não-Outro. Ao mesmo
52Fiz observar acima que Lacan esvazia o singular de substância e o aborda
medianteoutralógica.Eleochamade"real",masrealnãoquerdizerparaeleoindivíduoconcreto da realidade material, como a maioria pensa. Se assim fosse, estaria dizendo omesmoqueAristóteles,equalseriaanovidadequeanuncia?
53Nesteplanodeanáliseossignificantessão indiscerníveis.Cadauméapenasum
entreoutros.Nadaoespecifica.Talvezanoçãodeessaim⎯enxame–paranomearoS1serefiraaoconceitodesignificanteemsuauniversalidade.
54Oupire.
32
tempo,positivoenegativo.Note-sequetantooumcomoadíada–oumeo
Outro;omesmoeodiferente–sesustentamambosdosignificanteemsentido
lato. Mas cabe acrescentar que para poder eliminar o ser da jogada era
necessáriodemonstrarqueumsignificantenãosebastaasimesmo:eleéao
menosdois55.NãoháUmsemOutro;nãoháumsemdois.
Adíadaéoriginárianalinguagem,nãoseengendra.Platãotinharazão,
oprimeironúmeroémesmoodois,masnãopeloqueeleacreditava.Neste
sentido,pode-selerjáemPlatãoo"umoperatório",oumde1,2,3,enquanto
queemParmênidesestamosàsvoltascomoUno,daglobalidade.Opassofora
dametafísica(aqueBadioudenomina"posiçãometafísicasubstrativa")seria
aoperaçãododes-ser.Ocontráriodisso,aafirmaçãoL'unest,"oUnoé",seria
o suspiro metafísico de que Heidegger se queixava. Trata-se de parar com
isso,não de responder ou resolver, mas suspender a pergunta pelo ser do
Um/uno (do mesmo modo que se tratava de suspender a pergunta pela
origem da linguagem). Na clínica, a operação de des-ser da interpretação
significa retirar do traumadopaciente qualquer ser ouunicidade.De certo
modo,parardeacreditarnotrauma.NestepontopensoqueLacanseafasta
deFreud.
Que para Lacan o amor seja uma questão com o número dois, não
resultanadaevidente, vistoqueparaFreuderaprecisamenteumproblema
comonúmeroum:oamorénarcisistaerecusaodoisemfavordouno(acara
metade, junto com a qual fazemos um). E a diferença dos sexos (que não
teriamos nenhuma razão para supor que seja natural, do ponto de vista de
55Nãoseriadiferencialsepudesseserúnico.S1eS2,escreveLacan.Sãodoisesão
demasiados para a linguistica. Saussure, por exemplo, pensa um significante preso a seusignificado e ambos devidamente englobados no conceito de signo. "O um-bi-visto" é ainspiradatraduçãodeMagnodoUnebévuedeLacan(porsuavez,aliteraçãodeUnbewusste,inconsciente, em alemão). Bem visto, o significante um é dois: lê com crê (e esta é umaafirmaçãotantológicaquantoclínica).
33
Lacan) parece impor naturalmente o óbvio da sua binariedade, que Freud
trata mediante o falo (que é precisamente um e único). A binariedade
intuitiva das oposições imaginárias dependem da lógica opositiva do
significante:formaeconteúdo;masculinoefeminino;ativoepassivo;xxexy;
pintado edespintado; yin e yang; etc.Os seus críticos atacammenosFreud
queAristóteles, cuja lógica está ancorada no binário dos gêneros.Quanto a
Lacan,nãoconseguemsequerentenderoqueelepropõe.A saber,pensaro
real(conceitoabsolutamenteequívoco,setemalgum)queestariaemjogono
sexo(osexo,nãoossexos)comoutralógicaquenãoaformalbivalenteeque
eledenominalógicadafantasia.Éarmadocomelaqueconvidaaultrapassar
o limite real da lógica clássica. O real do sexo: limite real da lógica
aristotélica56.Lacanchamaestelimitederapportsexuel(relaçãosexual,mas
também "proporção", no sentido de logos, "razão"). Concedo que não fica
claroseLacanpensaqueexisteumaimpossibilidadeinerenteàlógicamesma,
ouconsideraoimpassedestaumaconsequênciadanossacondiçãosexuada.
Mas,mesmoseesteforocaso,precisamosinsistiremque,noqueconcerne
ao campo analítico, dizer "condição sexuada" é indicar um problema de
discurso,nãodepausebucetas,peitosepelos.
PARMÊNIDES
PorquetudocomeçacomParmênides.Comalonguissimaalegoriaque
escreveu–edaqualnoschegaramapenasalgunsfragmentos.OSeréoherói
destasaga.ViajantenumatravessiaquetemoUnocomodestinofinal.Paraa
maioriadosfilósofos,estepoemaestánaorigemdametafísicadeocidente.Da
filosofia parmenídea reteve-se apenas duas afirmações tão fundamentais
56Ooutro limiteda lógicaéamorte,eLacan juntaambos,seguindonistoaFreud,
diga-se.(Cf,todososdesenvolvimentossobreosilogismoaristotélico:"todososhomenssãomortais")
34
quantoespetaculares.Amaisconhecida:"Oseré eonãosernão-é".Besta
comosoa, istoé fenomenal.Aoutra,"pensar e ser é omesmo".Heidegger
comenta:
Apreeminênciadoentefixaoser,enquantorazãocomumapartirdoUm.Ocaráter distintivo da metafísica está decidido. O Um como Uno torna-senormativoparaadeterminaçãoulteriordoser.
Há um diálogo de Platão denominado "Parmênides" (não confundir
comopoemadopróprio),queconsistenumacríticadasposiçõesdofilósofo
pressocrático.AconclusãoéqueoUmnãopoderser:
Assim,então[termina o diálogo], seoUm for,quer seja comparadoa sipróprio quer aos outros, o Um seria todos, logo não seria mesmo Um –Concordo.
O que está dizendo Platão? que o um-ser, distribuido entre todas as
formas é aomesmo tempo igual a simesmo e aos outros e diferente de si
mesmoedosoutros.OUmnãoéUNO.
NoseminárioXIXdenominadooupire, lacanglosaestascoisasdoseu
jeito: "Ceuxquejedésignedes'...oupirer,c'esta l'unqueçalesporte."A frase
diz–"aquelesaquemmerefirocomosuspirosos,éaounoqueissoosleva."
Massedeixaouviraliumjogohomofônico,comoverbo"piorar",quepermite
entender que aqueles que suspiram, que anseiam pela completude, são
arrastadosaopior.LacanrejeitaesselugarimagináriodoUno."Nãosuspirar
éminhahonra."["d'autress'oupirent,jemetsànepaslefairemonhonneur"].É
a honra de um pensamento que não se deixa arrastar pelo fascínio da boa
formaedatotalidade."Unefemmenes'oupirepasdel'un,étantdel'Autre."
Nuncaentendereiporquêasmulheresserecusamaouviroelogioque
opsicanalistalhesfazcomestaafirmação.Comopodemcontinuarafirmando
quemilita pela ideologia do falo (do Uno, portanto), quando diz que "uma
mulhernão suspirapeloUno, sendoeladoOutro"?Queela sejadoOutroa
deixa do lado da diferença pura e, em tese, não pede nem espera nada da
identidade.Diferentedenós,homens,passariamuitobemsemofalo.
35
FaçonotarqueLacannãotratataisquestõescomateoriadaspulsões
oudaidentificação,comoseriadeseesperar,mascomalógicamodernaea
topologia.Efaçonotar,também,quenãovejoumafeminilidadetalverificar-
senavidacotidiana,napolíticaounaclínica,ondeasmulheresemgeral (e
cadavezcommaiorvirulência)nãofazemsenãoreivindicarofaloemtodas
assuasformasefiguras.
OAMORAOSABER
Eoamor?
"O amor: há tempos que não se fala de outra coisa. Preciso salientar
queeleestánocoraçãododiscursofilosófico?"57Umdiscursoamoroso,então.
Este amor do saber se exerce excluindo o dizer e amarrando o dito ao
significado,comoareligião.Nessesentido,amatemáticaéinstrumentalpara
Lacan,precisamenteporquesecolocaforadosentido:operacompurasletras
vinculadas por axiomas e leis de composição; funciona semque isso faça o
menorsentido.Eomaisespantosoéqueumsatéliteéaprovaexperimental
dajustezadasleisdenewtondegravitação,quesãomatemáticas.
"A estabilidade da religião vem do fato de que o sentido é sempre
religioso [...] donde a minha obstinação na via dos matemas."58Menon: a
figuramesmadoquadradodesenhadooperaareminiscência.Afigura"sabe".
Para Descartes, a matemática é método para tratar de assuntos não
matemáticos, metafísicos (more geometrico): "longas cadéias de razão", diz
Descartes.Oqueéumaxioma?Algoqueéenunciado,ditoepostonaorigem
deumacadeiaderazões.Nadavindodeforajustificaumaxioma.Osfilósofos
procuramprimeirosprincíposqueexpliquemaorigemdetudo.Éapartirde
umprincípioinicialinteligívelqueadialéticaavança.Amatemáticapartede
57Encore58Cartadedissolução,1980
36
hipótesesdasquaisnãopodedar conta.Odesejodomatemático seriaode
colocar um puro dizer (umaxioma) na origem de uma cadeia fiel de ditos,
masodizeroriginaléinsensato.Eissoseriainadmissívelparaumfilósofo.A
tentação filosóficaéa tentaçãodoUno,a"fiscalizaçãodoserpeloUno".Por
issosãotapadosparaamatemática.
O que a experiência analítica demonstra é que o único correlato
subjetivodosaberéoamorenãoháoutro.Asuposiçãodequealguémsabe
de mim enamora, com tudo que isso comporta de sintomas. A relação
professor-alunoéantesdemaisnadaumarelaçãoamorosa.Podeserdeódio
epodedescambarparaoerotismo,massetratadevariaçõessobreotemado
amor desencadeado pelo saber que o aluno supõe ao seu mestre. O
psicanalistaoperadeoutromodoqueumprofessor comeste amor,mas se
tratadomesmoamor.
Insisto–insisteLacan–"éoamorquesedirigeaosaber.Nadadedesejoali.Paraowisstrieb, tenhatidoeleoselodeFreudounão,podemosdeixarpralá,nãoexisteomínimo!Ébemnessepontoquesefundaapaixãomaiordoserfalante:quenãoénemoamornemoódio,masaignorância."59
Ouseja,nãoexistedesejodesaber.AcríticaaFreudéexplícita: teria
confundido o amor provocado pelo saber com um desejo do paciente. O
paciente não quer saber nada. Ou, melhor, como as crianças, quer saber
sempre...outracoisa.Ainterminávelcadeiadosporquêsdascrianças?Éisso.
Em todo caso, haveria uma correlação entre um desejo de não saber e a
paixãodeignorar.Afilosofiapregaoamorpelosaber,ouseja,aignorânciado
desejotravestidadeamorpelaverdade.Doqueofilósofoouocientistanão
queremsaber?Doslimitesedoimpossível.Paraaciência–eafilosofiaanda
semprenaretranca–,algoéimpossível...ainda.
59IntroàediçãoalemãdosEscritosinScilicet5
37
Empédocles, citado por Freud, dizia queDeus era ignorante por não
conhecer o ódio. "Édoódio edo amor [ou seja, do conflito] que se formou
tudooque foi, é e será jamais". Pareceque fazemosqualquernegóciopara
evitarperceberqueocampodoOutro,olugardatranscendência,oparaíso,o
lugardivino,poderiaestarvazio,enãocheiodeamoroudesaber.Deusseria
como esse olhar estúpido do urso que devorou Treadwell: ele não te quer
bemnemmal;eleémovidopelaleiestúpidadoinstintoquefazcomquevocê
não passe, aos seus olhos, de comida ("é pasto!"60). A suposição de amor
d(n)osursosestavatodanacrençadeTreadwell,istoé,nasuafantasia–falo
dodocumentáriodeWernerHerzog,chamadoGrizzlyMan,sobreTreadwell,
umimbecilquefoidevorado,juntocomanamorada,pelosursosdoCanada,
porimaginarqueestesoamavam.
Osescolásticos,especialmenteSantoTomás,ficaramtãodesesperados
em contra-argumentar com Empédocles que transformaram o não-ódio de
Deusemummardeamor,noqual seafogamos fieis.Comamatemática, a
lógicae,especialmente,comatopologia,podemoschegarasaberqueoOutro,
ouseja,Deus,nãopassadeumlugareumlugarnãoamanemodeia,nemsabe
nada de nada. Em todo caso, Lacan fez da tríade amor/odio/ignorancia o
quadroteóricopararepensarateologiacristãoriginadaemAristóteles.Enão
éatoaqueestepensadordanãoontologiadenomineaquelastrês:"paixões
do ser". São paixões para fazer consistir o ser, o sentido, o finalismo e a
harmonia e provocam o ódio de qualquer coisa que venha atrapalhar tal
projeto.Talvezoprojetoneuróticoporexcelência.
PARATERMINARCOMDESCARTES
60OsTitãs
38
Não queria deixá-los sem mostrar o que Lacan quer dizer quando
afirmaqueFreudnãopoderiaterinventadoummétodocomoopsicanalítico
antesdas "Meditaçõesmetafísicas".AsMeditações tambémsãoummétodo.
Destinado a encontrar alguma certeza, para poder conduzir-se bem nesta
vida. E o método freudiano, a associação livre, mede-se em relação ao
cartesiano.NãovoucomentarasMeditações,aindaquevalesseapenafazê-lo.
Comento apenas a objeção lacaniana: o passo inadmissível deDescartes foi
ter passado do cogito à res cogitans –do "penso" à "coisa que pensa"
("substânciapensante").
"O inconsciente,sevê,éapenasumtermometafóricoparadesignarosaberquesósesustémapresentando-secomoimpossível,paraquedestafeita[deça-disso,apartirdisso]eleseconfirmecomosendoreal."61
Aindasetratadaoposiçãoentreoy'ad'l'un,dopsicanalistaeol'unest,
do filósofo. Não existe nenhum inconsciente, o que há em um conjunto de
significantes articulados a que Lacan denomina "saber". Mas é um saber
impossívelparaosujeitoquesomoscomoconsciência,oquenãoimpedeque
ele esteja ali operando sobre nossas subjetividades, de ummodo análogo a
comoaleidegravitaçãooperasobreoscorpos.
"Edestafeita,orealsediferenciadarealidade.Isso,nãoparadizerqueeleéincognoscível, senão que não é questão de conhecê-lomas de demonstrá-lo."62
Estáaquiindicadaaviadomatema,nãoapenasparaoscientistas,mas
também para os psicanalistas. O real é relativo à demonstração lógica ou
matemática, não à natureza. Está fora tanto dos sentidos como do
conhecimentoconsciente.
Mas, o que Lacan retém do gesto cartesiano? A "dúvida hiperbólica"
como uma experiência metódica de pensamento. Qual seja, aplicar
sistematicamente a dúvida a tudoque existe.Nemmais, nemmenos. Como
61Radiofonia62Radiofonia
39
seria senadaexistisse,anãosermeuspensamentos?Nada,querdizernem
mundo, nem universo: nada. Não existem as ideias matemáticas, ou o que
acreditosentirouperceber,tampoucominhaslembranças.Nemmesmomeu
corpoexiste.Oqueresta?O fatodequeestouaquiaduvidarde tudo.Disso
nãocabemdúvidas.Minhaúnicacertezaéminhadúvida,donde...souaquele
queestáaduvidar.Istoébemconhecidoesechamaocogito–o"penso"–em
latim. A fórmula (porque é uma fórmula, não um silogismo) é:Cogito, ergo
sum.Emfrancês: jepense,doncjesuis.Eemportuguêsmaltraduzido:penso,
logoexisto.Bemtraduzido:penso,logosou.
Lacan falou ene vezes sobre o assunto e tirou dele asmais variadas
conclusões.Ocomumdenominadordetodaselaséqueestáaquiogermeda
descoberta do inconsciente. Vou citar uma delas. Em A lógica da fantasia
lemosque:
O cogito de Descartes tem um sentido, substituir a essa relação dopensamento com o ser [a de Parmênides], pura e simplesmente, ainstauraçãodoserdoeu[je].Ocoelhoquedesejotirardacartolaparavocêséeste:namedidaemqueaexperiência–elamesmasequênciaeefeitodeumfranqueamento do pensamento, que representa algo que poderiamoschamar rejeição da questão do ser–, na medida em que essa rejeiçãoengendrou esta sequência, esta abertura na abordagem domundo que sechama a ciência, algo foi produzido no interior dos efeitos destefranqueamento e que se chama a descoberta freudiana –ou ainda, seupensamento,opensamentosobreoatravessamento[sapensée,parlapenséesur la percée –seu pensamento, pelo pensamento sobre "o furo" / o"rompimento" / "o franqueamento"]–o ponto essencial é que isto denenhummodosignificaumretornoaopensamentodoser.Queopensamentonãoatuenosentidodeumaciência,anãosersupostoaopensar,querdizer,queosersejasupostopensar,éoquefundaatradiçãofilosóficaapartirdeParmênides.
Aquivaioutra:
"ParmênidesestavaerradoeHeráclitocerto:'OmestrecujooráculoestáemDelphosnãorevelanemesconde,significa'."
Deve-se opor a doutrina heracliteana da significação à doutrina
parmenídeada identidadeentreo sereopensamento.Do ser-pensa ao isso
pensa(emmim).Umpensamentodofluxoedodeviraumpensamentodoser
40
imóvel. Este devir, este fluxo, este futuro do pretérito do sujeito do ato
analítico é o des-ser da significação. Como disse uma vez uma paciente ao
terminar uma sessão, invertendo o tempo e afirmando o que queria negar:
"entro como saí".Oquevai teresteanodemaisaborrecedoré submeterum
certonúmerodeditosdatradiçãofilosóficaaestaprova.Vejamvocês!Edeque
prova [épreuve–experiência, provação, teste, rito de passagem] se trata?, a
provapeloatoanalítico(comosedizaprovapelofogo).
Eraisso.Muitoobrigado.
Londrina,4demarçode2016
ResumodaoperaçãoantifilosóficadeLacan:desacreditarafilosofia, desconstruir o procedimento filosófico. Proporumnovoato.Oatoanalítico..
Apêndice1
OPROBLEMADOSUJEITOEDOOBJETO(AFANTASIA):
Hypokeimenonquerdizeremgrego, literalmente,"postoembaixo"eé
viaderegratraduzidopor"sujeito".Aristótelesabordaesteconceitodoponto
de vista ontológico, gramatical e lógico. Do ponto de vista ontológico, é a
matériadeterminadapela forma (o sujeitoda formaé amatéria–hylé); é a
substânciacomseusacidentes(osujeitodoacidenteéasubstância–ousia:a
madeira da mesa). Do ponto de vista lógico e gramatical, é o suporte dos
predicadosquelhesãoatribuidos(osujeitodopredicadoé...opróprio!).Em
suma,osujeitogregocarregadoissentidos:uminerente,ontológicoeoutro
atribuidooulógico.Sejacomofor,trata-sedoquehojechamariamos"objeto".
41
Se o subiectum é o "posto embaixo", o objectum é o "jogado na frente"
(Gegenstand).
As palavras "sujeito", "suporte", "suposto" e... "substância", embora
tenhamconotaçõessemânticasdiferentes,por teremtidohistóriasdiversas,
temtodasmaisoumenosamesmadenotação:colocadosob,sustentadoem,
apoiadosobre.Emsuma,fazreferênciaoraaoapoio,oraoqueéapoiado.Em
todo caso, sujeito, para os gregos e os escolásticos conota passividade,
recepção, suporte ou carga, jamais ação, atividade ou agência. Heidegger
chama a atenção para o deslizamento medieval que fez com que o X sub-
jacentedeixassedeserapenassustentação lógicadospredicadosatribuidos
em uma função do tipo F(x), e passasse a estar dotado de uma ousia, um
estofo, uma substância, um enchimento, uma matéria, até tornar-se
finalmente um ente, uma coisa concreta. "O ser", escreve Heidegger63 ,
"designaapresençaconstantedoqueestáali;oquesemantémdebaixo:sub-
stans(ousia)".Lacandiráqueesta suposiçãodeumseroudeumaessência
alémdafala,alémdosuportepuramentelógicodoenunciado,narealidadeé
resultadonãotantodeumafantasia,masd'Afantasia[fantasme].
"Quando amparada numa articulação teórica [a psicanálise] revela em umcomportamento o funcionamento da pulsão oral, da pulsão anal [...], dapulsão escoptofílica ou da pulsão sadomasoquista64, é bem para dizer quealguma coisa se satisfaz ali. Com relação a isso é óbvio que não podemosdesigná-lo de outra maneira a não ser como aquilo que está debaixo, umsujeito,umhypokeimenon.Comadivisãoquedevenecessariamenteresultardissoparaele,emnomedequeelenãoéalioutracoisaqueosujeitodeuminstrumento em funcionamento, deumorganon –o termoempregado aquimenosemseuacentoanatômico,deprolongamento,apêndicenaturalmaisoumenosanimadodeumcorpo,quenoseusentidooriginal,aqueleusadoporAristóteles em sua lógica, de aparelho, instrumento. [...]Algunsórgãosporoutroladodiversamenteambíguos,difíceisdepegarnessecorpo,jáqueé demasiado evidente que alguns deles não passamde dejetos domesmo,encontram-sesituadosnestafunçãodesuporteinstrumental.
63Heidegger.Nietzsche64Interessanteobservarquechamasadomasoquistaàpulsão invocante,gênesedo
super-eu.
42
Vamosanalisaresteparágrafo?
Como a psicanálise tem uma teoria das pulsões, os analistas podem
escutar pulsões no discurso dos seus pacientes. Ele diz "revelar em um
comportamento".Opacientetemataquesdediarreiaqueoimpedemdefazer
viagens longas, de ir nabaladaoumesmode convidarumanamoradapara
jantar. Chegou ao ponto de ele se privar de sair de casa por medo do
"estómago" levar amelhor. Isso é importante, o nome do responsável pelo
sintoma que o tiraniza é: "o estómago". Acabei de descrever um
comportamento,mas a bem da verdade, trata-se de uma narrativa que um
analistapoderiaanalisar,nãodeumcomportamentoemsi."Algosesatisfaz
nesse comportamento", continuaLacan.Eacrescenta: "éóbvioque issoque
alisesatisfazestáporbaixo,subjacente,nosentidogregodehypokeimenon."
O sujeito seria a base, o suporte de uma satisfação tal. Mas, disso que se
satisfaz, e que Lacan denomina "sujeito", decorre necessariamente uma
divisãoparaopaciente(digo"paciente"porqueaquiLacan jáestáusandoa
palavra sujeito no sentido corriqueiro do termo, e tudo se torna muito
confuso). Se vocês preferirem, o eu do analisante, que está ali associando
livremente e nos conta seu comportamento parasitado pela disfunção
digestiva que qualificamos de "pulsional", se divide. E por que se divide?
Porque ali ele se descobre não um agente desta "satisfação" mas paciente
desta (quando batemos punheta podemos manter a ilusão de que somos
agentes intencionais do gozo que nos provocamos –self abuse, dizem os
americanos "auto-abuso"–; não é assim, mas como a divisão não aparece
podemos pensá-lo, e de fato o pensamos). "Ele se descobre como sendo o
sujeitodeumórgão",dizLacan,"masnãonosentidoanatômicodapalavrae
simnosentidogregodeorganon:método,manual,aparelhoouinstrumento."
Ouseja,estehomemsedescobreinstrumentodoseuestómago:o"estómago"
mandanele;eleésujeitodoestómagonomesmosentidoemqueeminglêsse
43
diz "subject to the king", servo do rei. Depois disso, acrescenta Lacan, sim
podepensar-sequesetratadeórgãoscorporais,masnemsempresãoórgãos
quereconhecemosdecaracomotais;muitodelessãoestranhosedifíceisde
localizarno corpo.QueremverdoqueLacan fala?AssistamNakedLunch, o
filme de Cronenberg, ("Mistérios e paixões", em português). Verão o que é
uma pulsão no sentido lacaniano. Cronenberg é um gênio! É o escritor que
não consegue parar de escrever, mas enquanto escreve, impassível, o que
você vê é que ele está fazendo gozar sua máquina de escrever (a está
masturbandoaobaternas teclas),quenãoéumser inanimadomasumser
vivo,meiohíbrido,misturadeaparelhocomorganismo,cheiodesecreções,
fluídosemucosasequefalaparapedirmaisatéalcançar"seu"orgasmo(de
quem?).Masofundamentalaqui:éamáquinaquegoza,oórgão(bempoderia
seropinto),nãoseusujeito,oescritoremquestão.Eleestádivididoporqueé
osujeito,osuportedeuminstrumento.Percebem?éafórmuladafantasia.
Apêndice2
FREGE65
DizemdeFregequefoiomaiordetodososfilósofosdamatemáticae,
como lógico, foi comparávelaAristóteles.Seudesígnio foi fundaronúmero
exclusivamente sobre bases lógicas. A questão a que, acima de tudo, queria
responder, era esta: será que as demonstrações da aritmética assentam na
lógicapura,baseando-sesomenteemleisgeraisvigentesemqualqueresfera
do conhecimento, ou precisam do suporte de fatos empíricos? Frege
respondeuqueerapossívelmostrarqueaprópriaaritméticaeraumramoda
lógica,no sentidoemquepodia ser formalizadausandounicamentenoções
ouaxiomaslógicos.EmOsfundamentosdaaritmética,observaque"ozeroeo
65FregeGotlob.1848-1925)
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umsãoobjetosquenãosãodadosdemaneirasensível."Nãoéporquevemos
quatromaçãs que contamos quatromaçãs. É porque contamos quatro que
vemosquatromaçãs.Anoção abstratadenúmeroede série vemprimeiro.
FregenãoéPiaget.
Oasnamangafoisubstituiranoçãoaritméticadenúmeropelanoção
lógica de classe: os números cardinais podem ser definidos como classesde
classescomomesmonúmerodemembros;assim,onúmerodoisseriaaclasse
dos pares, e o número três a classe dos trios. Apesar das aparências, esta
definiçãonãoétautológica,porquepermitedizeroquesignificaduasclasses
terem omesmo número demembros, semrecorrerànoçãodenúmero. Um
criadopodesaberqueexistemnumamesa tantas facasquantospratos sem
saberoseunúmero:bastaobservarqueháexactamenteumafacaàdireitade
cada prato. Duas classes têm o mesmo número de membros se for possível
estabelecerentreelasumarelaçãobiunívoca;taisclassessãoconhecidascomo
classes equivalentes. Um número será, então, a classe das classes
equivalentes. Posso definir o número quatro pela classe das classes
equivalentes ao Fab Four? Não, porque os Beatles não tem uma definição
puramentelógica,vistoquesedefinemcomoumabandadequatroindivíduos
existentes,eaícaemosaindaumavezmaisnoimpassedeAristótelescomos
singularesexistentes.Fregefoiobrigadoaencontrar,paracadanúmero,uma
classecujadimensãofosse,alémdeadequada,asseguradapelalógica.
Resolveucomeçardezero.
Como os gregos não o conheciam, jamais teriam podia pensar
semelhante demonstração. O zero é um número que pode ser definido em
termospuramente lógicoscomo"aclassede todasasclassesequivalentesà
classedeobjetosquenãosãoidênticosasimesmos".Ébomnotarumdetalhe
capital: a coluna mestra de todo este edifício é o princípio de identidade
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aristotélico:"A=A",tomadocomoaxioma.Comoéimpossívellogicamenteque
existamobjetosdiferentesdesimesmos,essaclassenãotemelementos.Uma
vezqueduasoumaisclassescomosmesmoselementossãoamesmaclasse,
existesóumaclassesemelementos,a"classevazia".Eofatodesóexistiruma
classevaziafoiachaveusadaparadefinironúmeroum."Ouméaclassedas
classesequivalentesàclassevazia".Eodoispode,então,serdefinidocomo"a
classedasclassesequivalentesàclassecujoselementossãozeroeum".Otrês,
como"aclassedasclassesequivalentesàclassecujoselementossãozero,um
e dois", etc. A série dos números naturais constrói-se a partir das noções
puramente lógicas de "identidade", "classe", "pertença a uma classe" e
"equivalênciaentreclasses".