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RELATÓRIO Ciclo de Debates sobre Bioética, Diplomacia e Saúde
2º Trimestre de 2011
• Cooperação Sul-Sul em saúde vis-à-vis os processos de integração regional;
• Bioética e Religião no Hemisfério Sul;
• Ciência e Poder: gestão do conhecimento em bioética e diplomacia em saúde;
• Vulnerabilidade e teoria social: alguns apontamentos à luz da obra de Pierre
Bourdieu.
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Elaboração, distribuição e informações: NÚCLEO DE ESTUDOS SOBRE BIOÉTICA E DIPLOMACIA – NETHIS Avenida L3 Norte. Campus Universitário Darcy Ribeiro, Gleba A, SG 10, 2 andar CEP 70910-900 Brasília/DF – Brasil http://www.bioeticaediplomacia.org FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ – FIOCRUZ Centro de Relações Internacionais em Saúde – CRIS Av. Brasil, 4365 - Manguinhos, Rio de Janeiro CEP: 21040-360 Rio de Janeiro/RJ - Brasil http://www.fiocruz.br/cris UNIVERSIDADE DE BRASILIA – UnB Cátedra UNESCO de Bioética e Programa de Pós-Graduação em Bioética Campus Universitário Darcy Ribeiro, CEP 70910-900 Brasília/DF – Brasil http://www.bioetica.catedraunesco.unb.br ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DA SAÚDE – REPRESENTAÇÃO DO BRASIL Programa de Cooperação Internacional em Saúde - TC 41 Setor de Embaixadas Norte, Lote 19 CEP: 70800-400 Brasília/DF – Brasil http://www.paho.org/bra
Coordenação técnica e editorial: José Paranaguá de Santana Roberta de Freitas Santos Colaboração: Marco Aurélio Antas Torronteguy
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Sumário
1. Apresentação ............................................................................................................................ 4
2. Cooperação Sul-Sul em saúde vis-à-vis os processos de integração regional........................... 6
3. Bioética e Religião no Hemisfério Sul...................................................................................... 12
4. Ciência e poder: gestão do conhecimento em bioética e diplomacia em saúde.................... 16
5. Vulnerabilidade e teoria social: alguns apontamentos à luz da obra de Pierre Bourdieu...... 22
6. Considerações finais................................................................................................................ 29
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1. Apresentação
O presente relatório apresenta o quarto, o quinto, o sexto e o sétimo encontros do ano de
2011 do “Ciclo de Debates sobre Bioética, Diplomacia e Saúde”, promovido pelo
Núcleo de Estudos sobre Bioética e Diplomacia em Saúde (NETHIS), em parceria com
o Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília, com apoio da
Direção Regional de Brasília da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ Brasília) e da
OPAS/OMS/Brasil.
A quarta reunião do Ciclo tratou do tema “Cooperação Sul-Sul em saúde vis-à-vis os
processos de integração regional” e contou com a participação, como palestrante, do
Doutor Rodolfo Rodriguez, como debatedor, do Doutor Ricardo Caldas e, como
presidente de mesa, da Doutora Maria Alice Fortunato Barbosa.
A quinta abordou o tema “Bioética e Religião no Hemisfério Sul”, tendo como
palestrante o Doutor Márcio Fabri, como debatedor o Doutor Wanderson Flor e, como
presidente da mesa, o Doutor Volnei Garrafa.
O sexto encontro abordou o tema “Ciência e poder: gestão do conhecimento em bioética
e diplomacia em saúde”, tendo como palestrante a Doutora Ilma Noronha, como
debatedor o Doutor Pedro Urra e, como presidente da mesa, o Doutor Emir Suaiden. Na
mesma ocasião foi lançado o Portal Web do NETHIS, pelo Doutor José Paranaguá de
Santana.
Enfim, o sétimo encontro, com o tema “Vulnerabilidade e teoria social: alguns
apontamentos à luz da obra de Pierre Bourdieu”, teve como palestrante o Doutor Miguel
Ângelo Montagner e, como debatedor e presidente de mesa, o Doutor José Paranaguá de
Santana.
A seguir, são apresentados os conteúdos discutidos em cada um desses encontros, com a
perspectiva de captar os elementos estruturantes do escopo temático do NETHIS. Ao
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final, a título de considerações finais, o resultado dos debates é interpretado na forma de
temas que podem ser objeto de trabalho por este Núcleo de Estudos, no sentido de que
esses temas possam ser problematizados e estudados, contribuindo, assim, para a
produção científica do NETHIS.
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2. Cooperação Sul-Sul em saúde vis-à-vis os process os de integração regional
Palestrante: Rodolfo Rodriguez1
Debatedor: Ricardo Caldas2
Presidente de Mesa: Maria Alice Fortunato Barbosa3
Data: 26 de maio de 2011
Local: Fiocruz Brasília
O Doutor Rodolfo Rodriguez propôs realizar uma exposição do quadro da Saúde no
MERCOSUL há 20 anos, o que vem ocorrendo e o que antevê para o futuro, tanto no
contexto particular do MERCOSUL como numa reflexão mais ampla sobre outro bloco
regional – a UNASUL.
O palestrante iniciou sua fala contextualizando o surgimento do MERCOSUL, a partir
do concerto entre Brasil e Argentina, na conjuntura da redemocratização de ambos os
países. Na década de 1990, os países, principalmente Brasil e Argentina, mudaram as
formas de conflito regional – pois passaram a reconhecer-se mutuamente como sócios
potenciais. Segundo o palestrante, o presidente argentino Raul Alfonsín considerava que
a única possibilidade de desenvolvimento desses países estava em uma associação
concreta.
Paralelamente à aproximação entre os governos argentino e brasileiro, no âmbito
continental havia o projeto “Saúde: pontes para a paz”, da OPAS, que estava sob
direção do Dr. Carlyle. Esse processo produziu uma conferência sanitária no âmbito
1 Médico pela Universidad Nacional de Córdoba, já foi Ministro da Saúde da República Argentina e atualmente é Presidente da Gestão de Seguros de Saúde da Província de Córdoba, Argentina. 2 Professor Adjunto do Instituto de Ciência Política (IPOL) da Universidade de Brasília (UnB) e Vice-Diretor do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília (CEAM/UnB). 3 Coordenadora do SGT-11/MERCOSUL/BRASIL e Coordenadora Alterna da Unasul Saúde/Brasil. Ministério da Saúde.
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americano, que concluiu que a saúde é hábil para fomentar a paz entre os países, pois à
medida que ela pode propiciar melhores níveis de equidade, pode contribuir para o
desenvolvimento do país, pode favorecer a participação cidadã e pode contribuir para o
aperfeiçoamento da democracia regionalmente.
Ou seja, segundo o palestrante, havia uma concordância entre a visão dos organismos
internacionais – notadamente a OPAS – e a percepção que os países americanos tinham
sobre a importância da aproximação entre estes países e sobre a consciência de que a
saúde pode contribuir para essa aproximação.
Logo, percebeu-se que a saúde deveria estar na agenda do MERCOSUL, assim que ele
foi constituído. Hoje, o MERCOSUL, com cento e cinquenta acordos na área da saúde,
está somente atrás da Europa em número de acordos multilaterais obrigatórios sobre
saúde. Isso demonstra a importância deste setor nos processos de integração regional,
conforme o Doutor Rodriguez.
O palestrante apontou que a saúde deixou de ser vista somente como “serviços de
saúde” para atendimento a enfermidades, e passou a abarcar também postulados de
saúde do ambiente (saúde como componente essencial da relação entre ambiente e
desenvolvimento), bem como com os postulados da Carta de Otawa.
O palestrante prosseguiu dizendo que a saúde conforma um pilar importante dos direitos
da cidadania, a partir da consciência, pelas pessoas, de que saúde é muito mais do que a
ausência de doença ou enfermidade.
Mais recentemente, foi criada na esfera das relações internacionais a UNASUL. O
Doutor Rodolfo Rodriguez apontou as distinções entre esta iniciativa e aquela do
MERCOSUL. Diferentemente de criar um mercado (como o Mercado Comum do Sul –
MERCOSUL), a UNASUL tem uma motivação política. Neste sentido, ainda conforme
o palestrante, o primeiro tema da UNASUL foi a defesa regional – e se há uma defesa
regional é porque há um sentimento de pertencimento regional. A segunda questão da
agenda da UNASUL é, para Doutor Rodriguez, o respeito aos direitos humanos. Com
efeito, na Ata Constitutiva da UNASUL está expresso o compromisso de os países
atuarem na educação, tema fundamental para reduzir os índices de morbidade e
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mortalidade de doenças transmissíveis primárias (prévias à mudança do perfil
epidemiológico). Lamentavelmente, conforme o palestrante, na Ata Constitutiva não foi
mencionada a saúde.
No MERCOSUL, a saúde é tratada juntamente com a segurança social, na forma de
acesso aos serviços de saúde. Nas Américas, milhões de pessoas ainda não têm acesso a
serviços de saúde. Outro passo foi dado pela criação, no Rio de Janeiro, do Conselho
sobre Saúde da UNASUL. Assim, já se coloca o setor saúde no meio político
internacional que lhe é próprio. E, conforme o palestrante, o veículo para concretizar a
internacionalização da saúde é a cooperação internacional. A cooperação internacional,
segundo Doutor Rodriguez, deve ser uma via de mão dupla, em um círculo virtuoso de
dar e receber cooperação, um processo duradouro de colaboração mútua. Note-se que a
agenda dessa cooperação há que ser feita desde o nível local (demandas e escolhas das
populações). Precisamente aqui essa cooperação Sul-Sul se distingue da Norte-Sul (a
qual é definida e decidida pelo Norte, pelos países desenvolvidos que exercem poder
pelo fato de serem eles os doadores). O palestrante exemplificou essa posição dizendo
que os termos de licitações dos programas de cooperação muitas vezes são preparados
para beneficiar as empresas dos próprios países doadoras. Isso não quer dizer que a
cooperação Norte-Sul seja má ou que ela deva ser rejeitada, mas ela é seguramente
limitada por suas condicionalidades.
O Doutor Rodriguez também referiu que, anteriormente, o mundo era polarizado entre
quem tinha e quem não tinha armas nucleares. Hoje essas relações de poder se
transformaram, de modo que a questão é saber quem tem e quem não tem água, quem
tem e quem não tem energias limpas. Neste cenário, é importante refletir sobre o papel
da UNASUL, criada para ser um espaço de aproximação e concertação política, com o
protagonismo do Brasil. Aqui, a cooperação internacional tem elevado valor estratégico,
o qual não pode ser menosprezado.
Doutor Rodriguez entende que, com a inserção de temas como a saúde, começam a
mudar os paradigmas das relações internacionais. O palestrante disse que confia neste
entendimento em função de sua própria experiência, na Nicarágua, durante o programa
“Saúde: pontes para a paz”.
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O palestrante recordou que, em 1985, Raul Alfonsín convidou um conjunto de pessoas
na residência presidencial em Olivos, dizendo a seus ministros (inclusive o palestrante,
à época Ministro da Saúde) que eles deveriam tornar-se sócios do Brasil, não sócios de
conveniência, mas sócios em problemas comuns, profundamente. No mesmo momento,
no Brasil, o então presidente José Sarney trabalhava no mesmo sentido.
Naquela época, ainda segundo o palestrante, a Argentina tinha elevada quantia em
dinheiro disponível junto a doadores internacionais para a construção de hospitais, mas
o país tinha outras prioridades (não necessitava, naquele momento, construir hospitais,
mas sim centros de saúde e outras estruturas) e por isso não aceitou a oferta. Ou seja, a
burocracia internacional “pensava” pelos países e lhes queria impor suas ideias e suas
“soluções”. Então, o palestrante concluiu pela necessidade de procurar soluções Sul-Sul
entre os próprios países em desenvolvimento.
O doutor Rodriguez concluiu refletindo que os países americanos têm capital humano
valiosíssimo, têm dez anos de crescimento contínuo extraordinário (embora não tenham
dez anos de crescimento social), têm instituições e, portanto, têm todos os instrumentos
para o seu desenvolvimento.
Debate:
O debatedor, doutor Ricardo Caldas, iniciou suas considerações recordando os 25 anos
do CEAN/UnB, agora iniciando um doutorado em cooperação internacional e
desenvolvimento. Segundo o debatedor, a ideia de cooperação internacional e
desenvolvimento desenvolvida no CEAN é próxima à concepção defendida pelo
palestrante.
O debatedor ponderou que, em que pese a afirmação do palestrante de que hoje o
mundo é um ambiente multipolar (e não unipolar norte-americano), os Estados Unidos
ainda exercem imenso poder. Doutor Caldas avaliou que se está a caminho de uma
dualidade EUA-China, país que cresce economicamente e que comprou boa parte dos
títulos públicos norte-americanos.
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O debatedor também ponderou que as questões de segurança e defesa internacionais
ainda são prioritárias (cujos gastos governamentais superam os gastos com saúde).
Referiu que saúde e educação ainda não são prioridades internacionais e ainda não são
prioridades nacionais. Segundo ele, talvez esses novos temas, que têm dificuldade de se
impor, precisem repensar suas estratégias para tornarem-se mais importantes nas
agendas interna e internacional (rever seus atores, seus enlaces, seus pactos). Em que
pese o discurso Sul-Sul, há que se pensar quem é o “Sul”. O Brasil tem deixado de ser
recebedor e se tornado doador. Que Sul é esse? Que cooperação é essa? Foram
provocações do debatedor.
Doutor Caldas perguntou pela necessidade de incorporar novas tecnologias em saúde.
Outra provocação lançada pelo debatedor disse respeito ao contexto da globalização.
Ele perguntou se ainda há espaços para processos e decisões nacionais em um mundo
globalizado e cada vez mais vinculado por meio de acordos internacionais obrigatórios.
Exemplificou questionando se a Amazônia é um projeto nacional. Retomou os
exemplos referidos pelo Doutor Rodriguez em sua palestra, afirmando que água e
energia também podem ser exemplos disso. O debatedor também disse que há uma
tensão entre os projetos nacionais, os projetos regionais e os projetos globais. Enfim,
Doutor Ricardo Caldas concluiu reafirmando a necessidade de que se pense como tornar
prioritários os temas sociais como a saúde e a educação – os quais devem se tornar
prioridades nacionais e também da agenda internacional.
Diálogo com o público:
Antes de abrir a palavra ao público, a Doutora Maria Alice Barbosa apresentou a
estrutura e a atuação do SGT-11/MERCOSUL/Brasil, interessante exemplo concreto da
integração que foi objeto do debate precedente.
Doutor Rodriguez abordou a questão do Doutor Henri Jouval Jr, presente na plateia, que
perguntou sobre quais são, ou quais deveriam ser, as diferenças nas agendas de saúde da
UNASUL e do MERCOSUL. O palestrante ponderou que o MERCOSUL é um
mercado em que há importantes barreiras sanitárias. Então a agenda do MERCOSUL é
correlata a esta fato de ser um mercado. A UNASUL, diferentemente, está ocupada com
novos paradigmas das relações internacionais e tem uma perspectiva política – o desafio
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é a realização concreta das suas intenções. Ainda segundo Doutor Rodriguez, o
MERCOSUL ainda não chegou ao nível das pessoas, ainda não há consciência sobre
isso – e exemplificou as regras sanitárias sobre vigilância de alimentos, que foram
produzidas nos foros do MERCOSUL, como o SGT-11. Para o palestrante, o
MERCOSUL continua ocupado com uma agenda que diz respeito ao mercado, mas ele
observou que a experiência de vinte anos deste bloco regional deve contribuir para a
agenda da UNASUL, sendo que essa agenda deve ser feita com a participação dos
cidadãos dos países, descendo ao nível local. Por fim, Doutor Rodolfo Rodriguez
argumentou que o MERCOSUL não é uma associação de países iguais, que ao mesmo
tempo há diferenças históricas, econômicas, demográficas etc. Disse que, em virtude
dessas diferenças, é natural que o Brasil seja indutor na área da saúde, assim como a
Argentina pode ser protagonista em outras áreas, nas quais por sua vez tenha grande
experiência.
Após os debates, no encerramento, o Doutor Paranaguá de Santana, coordenador do
NETHIS, falou sobre a intersecção entre bioética e diplomacia. Doutor Paranaguá
apontou que o palestrante começou contextualizando a cooperação Sul-Sul em função
das diferenças entre os países cooperantes. Essas diferenças pautam os problemas
bioéticos que surgem entre os países no âmbito e no curso dos processos de cooperação
internacional.
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3. Bioética e Religião no Hemisfério Sul
Palestrante: Márcio Fabri (UNISAL)4
Debatedor: Wanderson Flor (UnB)5
Presidente de Mesa: Volnei Garrafa
Data: 30 de junho de 2011
Local: Fiocruz Brasília
Dr. Márcio Fabri iniciou sua palestra chamando a atenção para a importância da
laicidade da bioética. Esclareceu que este fenômeno decorreu da transformação social
do papel da religião – a qual, antigamente, era tida como a única interpretação válida do
mundo, mas com a modernidade deixou de sê-lo, perdendo espaço para outro tipo de
explicação dos fenômenos do mundo: a explicação científica.
Ocorre que, segundo o palestrante, a bioética não pode ignorar as religiões, pois as
pessoas são religiosas, de maneira que na sociedade a religião é um elemento muito
presente e muito relevante. Ou seja, a religião é um fato social. Trata-se de um elemento
de qualquer sociedade, mas que é notadamente importante no contexto social latino-
americano.
A questão central proposta pelo Dr. Fabri foi saber se pode haver diálogo entre a razão
religiosa e a razão científica. A bioética pode prescindir da razão religiosa em suas
reflexões?
Para procurar responder a essa questão, Dr. Fabri iniciou refletindo que a religião, na
verdade, são as religiões. Trata-se da pluralidade religiosa, a qual é inerente à
4 Pe. Márcio Fabri dos Anjos, Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma. Docente do Programa de Pós-Graduação em Bioética no Centro Universitário São Camilo e membro da Câmara Técnica de Bioética do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. 5 Prof. Dr. Wanderson Flor do Nascimento, graduado em Filosofia e Doutor em Bioética pela Universidade de Brasília (UnB), é professor do departamento de Filosofia da UnB e sacerdote do Candomblé.
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multiplicidade de culturas. A dinâmica das culturas/religiões provoca o surgimento de
hegemonias e o fenômeno da conquista religiosa. Paralelamente, surgem novos
movimentos religiosos, novas comunidades – são as religiões em sua transformação.
Além disso, a religião se torna um “espaço de mercado”, à medida que oferece
prestação de serviços de salvação. É difícil distinguir de maneira estanque religião e
laicidade. Talvez nem a religião seja tão religiosa e nem a laicidade seja tão laica. Daí o
palestrante falar em entrelaçamento entre religião e laicidade.
Então o palestrante observou que o problema da bioética (trabalhado por Potter) é o
problema da sobrevivência: como a humanidade sobreviverá ao avanço tecnológico (e o
poder dele decorrente) se não houver regras éticas seguidas por todos? Pois Dr. Fabri
observa que o problema da sobrevivência também é central para as religiões. Na origem
dessa ideia está a reflexão, sob o ponto de vista da filosofia, de que a condição humana
exige o outro como forma de libertar o próprio eu.
O palestrante também observou que a razão é antecedida pela crença. A fé precede a
razão. Para compreender é preciso, antes, crer e, então, agora sim, pela razão fazer a
crítica à crença anterior. Desta maneira, o objeto da crença é transformado pela
experiência. Para que o conhecimento deslanche, é necessário que haja, previamente,
alguma confiança nesse deslanchar. Por isso se diz que a crença precede a ciência.
Enfim, a ciência critica a crença e possibilita novas reflexões, as quais darão início a
novas crenças.
Feito esse raciocínio, Dr. Fabri questionou: como fazemos para passar da crítica
científica das crenças para a crítica religiosa da ciência?
O palestrante então observou que, com a modernidade, perdeu-se a noção de certeza.
Afinal, a ciência atualmente se faz de certezas provisórias, alcançadas pelas evidências
– as quais, na realidade, são apenas indícios de como se dão os fenômenos observados
pelo cientista.
Ou seja, se é correto que a certeza religiosa ruiu, também é verdadeiro que a ciência não
produz certezas. Precisamente neste ponto aparece o espaço para o diálogo entre as
religiões e as ciências.
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Finalmente, outro problema comum aos campos da bioética e da religião é o que se
refere à dor e ao sofrimento. Ambos os campos se preocupam com isso. Portanto, a
bioética necessita de transcendência, espaço de diálogo com as religiões, no sentido de
sair de si, de aceitar o outro, de reconhecer em si a parte que é do outro.
Debate:
O debatedor, Doutor Wanderson Flor, inicialmente distinguiu entre a “laicidade” e a
“contra-religiosidade” como enfoque dos bioeticistas. Afirmou que hoje o que se vê é
muito mais a segunda posição, de contra-religiosidade, do que a primeira, propriamente
de laicidade.
Essa posição contra-religiosa pode negar o próprio lugar da neutralidade, sendo que o
debatedor observou que a neutralidade já é, ela própria, um lugar – o que não deve ser
ocultado. Para superar essa falsa compreensão, Dr. Flor propõe o diálogo entre religião
e ciência.
Segundo o debatedor, o problema, de ambos os lados, é o dogmatismo. O dogmatismo
pode assumir duas posições: a de um dogmatismo religioso ou a de um dogmatismo
anti-religioso. Ambas as posturas são contrárias a uma visão pluralista e multicultural.
Se esse duplo dogmatismo for superado, pondera Dr. Wanderson, será possível pensar,
por um lado, em uma bioética laica que não seja contra-religiosa. E, por outro lado, será
possível imaginar uma bioética que aproxime religiões, mas que não seja religiosa. E
essas duas posturas não dogmáticas poderão criar condições para o diálogo entre
religião e ciência. Ao fazer essa proposição, Dr. Flor responde àquela primeira pergunta
formulada pelo Dr. Fabri, sobre a possibilidade do diálogo entre a razão religiosa e a
razão científica.
Para o debatedor, no contexto latino-americano há dois fenômenos religiosos que
podem oportunizar esse diálogo: a teologia da libertação e o candomblé. Então Dr. Flor
falou sobre sua experiência no candomblé, no qual o re-ligare (que está na raiz da ideia
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de religião) não é propriamente com deus (pois para o candomblé a ligação com deus
jamais foi perdida), mas é com os antepassados, com a ancestralidade. Daí vem a
percepção coletivista que o candomblé engendra, segundo a qual os conflitos devem ser
resolvidos coletivamente. Além disso, o debatedor observou o pluralismo que
necessariamente é afirmado no candomblé, em virtude da pluralidade de deuses e do
reconhecimento, inclusive, da existência de deuses estrangeiros – o que não permite que
exista espaço para totalitarismos.
Por fim, Dr. Flor refletiu que precisamos entrar de acordo sobre o que seja uma bioética
latino-americana. Se é para ser pluralista, nenhuma voz pode ser suprimida ou ignorada.
Ou seja, não se pode, a priori, excluir a religião, por pressupor que a religião já traga
respostas pré-concebidas, o que seria preconceito. Se continuar-se excluindo a religião
dos debates sobre bioética, essa bioética dita pluralista em verdade será cínica. Isso
porque há uma razão pública na religião: a razão religiosa não se restringe à fé – nem
tudo é fé na religião, pois há muitos outros usos da razão nas religiões.
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4. Ciência e poder: gestão do conhecimento em bioética e diplomacia em saúde
Palestrante: Ilma Noronha (ICICT/FIOCRUZ)
Debatedor: Pedro Urra (BIREME/OPAS/OMS)
Presidente de Mesa: Emir Suaiden (IBICT)
Data: 28 de julho de 2011
Local: Fiocruz Brasília
Lançamento do site do NETHIS
Antes da palestra, houve o lançamento do site do NETHIS, com apresentação do Doutor
José Paranaguá de Santana, coordenador do Núcleo. Ele apresentou a utilidade do site
para aqueles que se interessam pelo estudo da inter-relação entre os campos da bioética,
da diplomacia em saúde e da saúde pública. Neste particular, ressaltou que os trabalhos
científicos do Núcleo partem, conceitualmente, da noção de campo elaborada por Pierre
Bourdieu.
A seguir, falaram o Doutor Cláudio Lorenzo, pela UnB, e a Doutora Nísia Trindade
Lima, pela Fiocruz. Doutor Lorenzo ressaltou que, embora haja entendimentos
contrários, ele não vê a bioética ainda como uma ciência autônoma, mas como um
campo epistemológico em construção e, por isso, é muito importante a iniciativa do
NETHIS e, neste contexto, o seu sítio eletrônico. Além disso, Doutor Lorenzo ressaltou
que no Brasil e na América Latina existe uma politização importante dos debates em
torno da bioética, o que também exige seu estudo e compreensão aprofundados, que é o
que o Núcleo se propõe a fazer. Por fim, a Doutora Nísia Trindade Lima, Vice-
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presidente de ensino, informação e comunicação da Fiocruz, saudou a iniciativa do
NETHIS e a parceria com a UnB.
Palestra
Inicialmente, o Presidente da mesa, Doutor Emir Suaiden, apresentou a conferencista e
o debatedor. Contextualizou a discussão, referindo que o Brasil é o 13o país em
produção científica, muito em virtude dos esforços da FIOCRUZ, da EMBRAPA e da
BIREME.
A Doutora Ilma Noronha começou sua palestra ressaltando a importância para o SUS do
acesso livre à produção científica em saúde. Saudou o NETHIS e a Fiocruz, a qual, em
Brasília, saiu da estatura de um escritório de gestão e assume uma postura de produção
do conhecimento.
A palestrante contextualizou o desenvolvimento da Política de Saúde e da Política de
Informação Científica em Saúde, em uma perspectiva histórica. Antes, deter informação
significava poder; hoje se deu um salto qualitativo para valorizar o compartilhamento da
informação. Segundo a palestrante, mais de 50% da informação científica produzida no
mundo ocorre no campo da saúde. A trajetória da informação científica no Brasil, na sua
história recente, foi influenciada pelo processo político da “abertura” democrática. Este
processo começou com o problema da dengue nos anos 1970 e se fortaleceu com o
movimento da reforma sanitária dos anos 1980.
Neste contexto, foi importante a 8a Conferência Nacional de Saúde, presidida por Sérgio
Arouca, que reconheceu a saúde como um direito que deve ser de todos. O Ministro da
Saúde da Época, Roberto Santos, apoiou a reforma. A 8a Conferência adotou uma
compreensão ampliada da saúde, não apenas como ausência de doença, mas como bem-
estar. Além disso, não se trata mais de uma visão individual da saúde, mas também de
sua percepção coletiva, social. Essa nova concepção trouxe o caráter intersetorial da
saúde (economia, educação, agricultura etc.). Isso ampliou muito o campo da saúde. O
projeto que saiu da 8a conferência foi a construção de um sistema único de saúde – o
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que se tornou realidade com a constituição de 1988. E na constituição o acesso à
informação também foi reconhecido como um direito.
A palestrante destacou que no Brasil, atualmente, vive-se o paradoxo de que, ao mesmo
tempo em que a atual política científica nacional reconhece que a informação científica
é um bem público e um direito de cidadania, o seu acesso permanece restrito, bem como
o seu compartilhamento e uso permanecem limitados.
Segundo a Doutora Ilma Noronha, hoje, no Brasil, embora o acesso à informação seja
um direito, sua efetivação ainda é um grande desafio. Ela criticou os critérios de
reconhecimento do mérito científico, os quais, estabelecidos internacionalmente, não
traduzem as particularidades brasileiras. Criticou a dependência brasileira às
publicações estrangeiras. Por exemplo, o Institute for Scientific Information (ISI) só
analisa publicações em inglês e não prioriza periódicos que tratam das doenças
negligenciadas. As prioridades são definidas de acordo com as agendas de pesquisa dos
países desenvolvidos, por influência das agências de fomento nacionais destes países
ricos. Essas agendas não contemplam as prioridades pactuadas pelos organismos
internacionais em atenção aos interesses dos países em desenvolvimento (OMS é o
grande exemplo), nem priorizam os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM).
Enfim, de acordo com a palestrante, muito embora a pesquisa no Brasil seja
desenvolvida no âmbito de um sistema público de saúde e seja financiada por recursos
públicos, o seu acesso permanece restrito e, muitas vezes, só é acessível com altos
custos para o próprio Poder Público que financiou a pesquisa.
Diante desse quadro, ainda segundo a palestrante, se discute a legitimação da produção
científica brasileira e o reconhecimento dos pesquisadores dedicados aos problemas
sanitários brasileiros. Isso foi debatido na 2a Conferência Nacional de Ciência
Tecnologia e Informação em Saúde – CNCTIS, realizada em 2004, em Brasília.
Para a palestrante, atualmente se passou a defender o acesso livre ou o acesso aberto aos
periódicos científicos. Esses periódicos têm um impacto bastante positivo, porque dão
grande visibilidade ao trabalho do pesquisador. Entretanto, há elementos culturais que
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ainda dificultam o avanço do acesso aberto, pois muitos pesquisadores preferem
publicar nos periódicos fechados e mais badalados no meio científico internacional.
Ainda conforme Doutora Ilma Noronha, estudos indicam que a criação do portal Scielo
não resolveu o problema da inclusão de pesquisadores brasileiros na comunidade
científica internacional, pois brasileiros continuam citando brasileiros e estrangeiros
continuam citando estrangeiros, em regra. Em que pesem essas dificuldades, a pesquisa
em saúde no Brasil continua crescendo. Editais específicos para pesquisa de doenças
negligenciadas têm sido abertos no Brasil, por exemplo.
A palestrante concluiu referindo que o acesso livre no Brasil na área da saúde começou
com a BVS. Foi criada a via verde, que se realiza com a disponibilização pelo autor de
trabalhos seus sem avaliação por pares em um Repositório Institucional (RI) – sendo
que a Fiocruz tem seu RI. Há, também, a via dourada, na qual há revisão por pares,
mantendo-se o acesso livre. Não obstante esses avanços, no Brasil ainda há muito o que
avançar em direção ao acesso livre.
Debate:
O debatedor, Senhor Pedro Urra, inicialmente saudou a todos e destacou o desafio da
construção interdisciplinar proposta pelo NETHIS. Afirmou que a informação em si e as
atividades de informação científica e técnica tem importante papel a cumprir para a
construção da intersecção entre saúde, cidadania e cultura.
Segundo Urra, um dos desafios importantes apresentados pela palestrante foi o de
desenvolver e consolidar os marcos epistêmicos de conceitos, valores e sentidos. Essa
consolidação é importante para promover a saúde das pessoas.
Neste sentido, o debatedor destacou que hoje uma das funções essenciais da OPAS,
mesmo no contexto do questionamento dos organismos internacionais multilaterais, é
auxiliar na construção do conhecimento. Uma das funções da OPAS é desenvolver a
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saúde baseada em evidências científicas e na ética. Portanto, a bioética é um
componente muito importante da saúde.
Pedro Urra apontou que as bibliotecas, sejam virtuais, sejam físicas, são espaços
importantes para compartilhar o conhecimento e a informação. Além disso, o
desenvolvimento da bioética no Brasil tem a ver com o contexto político democrático.
O debatedor também chamou a atenção para a importância dos conceitos. Neste sentido,
o thesaurus de descritores é um espaço de conflito e de interação. Assim, é importante
perceber o acesso a informação como um tema estratégico. Outro conceito chave é
“ordenar”, no sentido de alinhar a informação no sentido das metas e objetivos que
temos. Ordenar é hierarquizar, alinhar para algum propósito. Nesse sentido, a BVS pode
constituir-se um espaço ordenador, hierarquizador. A BIREME, como órgão de
cooperação técnica da OPAS, deve cooperar para construir e desenvolver capacidades
nacionais. Com a BVS, por exemplo, se constrói um espaço novo (BVS) que tende ao
alargamento e ao desenvolvimento de novos espaços, em prol do acesso à informação.
Esse foi o panorama apresentado pelo debatedor.
Especificamente para responder à questão da palestrante, sobre o que pode ser feito para
melhorar o acesso aberto à informação em saúde no Brasil, o debatedor concluiu
apresentando as prioridades que ele considera que devam ser enfrentadas. A primeira
delas é desenvolver capacidades nacionais para manejar o acesso aberto. A segunda,
produzir bens públicos internacionais ou globais, que o mercado não pode produzir.
Neste sentido, os bens públicos em informação, como o thesaurus de descritores, é uma
ferramenta criada não para repetir a informação, mas para interoperar e, com isso,
contribuir para a construção de conhecimento. A terceira prioridade, segundo o
debatedor, é perceber que a saúde existe no contexto da sociedade, como tema
intersetorial. Daí a necessidade de interagir com outras bases e redes que contribuem,
desde diferentes pontos de vista, para a saúde compreendida de maneira ampla.
Também conforme Pedro Urra, essas são prioridades da OPAS, que podem ajudar no
fortalecimento do acesso aberto à informação em saúde nos diferentes países em
desenvolvimento do continente americano. O debatedor concluiu sua fala com essas
prioridades, que devem ser realizadas com o respeito à reunião entre a ética e a ciência.
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Após o debate, o Presidente da mesa destacou a aproximação entre as ideias da
palestrante e do debatedor e abriu para o público perguntar e fazer considerações sobre
as discussões do Ciclo.
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5. Vulnerabilidade e teoria social: alguns apontame ntos à luz da obra de Pierre Bourdieu 6
Palestrante: Miguel Ângelo Montagner (UnB)
Debatedor: José Paranaguá de Santana (OPAS/OMS)
Data: 25 de agosto de 2011
Local: Fiocruz Brasília
O palestrante iniciou sua apresentação referindo que as ciências sociais estão na origem
do campo da saúde coletiva, sendo que cientistas sociais participaram da formação do
campo saúde coletiva nas ciências da saúde – o que é uma característica deste campo
no Brasil.
A saúde coletiva surge a partir da discussão sobre desigualdade social (própria do
campo das ciências sociais) no âmbito das ciências da saúde. Segundo o palestrante, ela
recebeu influência do pensamento marxista (anos 1970), que entrou no Brasil com a
obra de autores como Asa Cristina Laurell, que discutia o processo saúde-doença e suas
condicionantes de classe (problemas de saúde e índices sanitários distintos conforme a
classe social, traduzindo a desigualdade econômica no campo da saúde). Outra
influência foi da Maria Cecília Donnangelo, que também partia da abordagem marxista
para analisar o papel da saúde na estrutura de classes brasileira (obra Saúde e sociedade,
de 1976). Juan César Garcia, também marxista, trabalhava a saúde sob perspectiva
marxista, contrariando o funcionalismo; ele agregou muitos pensadores e sanitaristas em
países latino-americanos, por ter sido funcionário da OPS/OMS.
O palestrante destacou que “nos anos 90, passa-se a trabalhar o conceito de
vulnerabilidade, como forma de apontar para causas sociais dos adoecimentos e não
6 O título desta edição do Ciclo de Debates seria, inicialmente, “Vulnerabilidade e Globalização”.
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para a vítima ou grupos sociais em risco”. Ainda segundo Montagner, “trata-se de uma
ultrapassagem do conceito de desigualdade social fundada somente na estrutura de
classes, apontando para aspectos além do econômico per se“. Com isso, supera-se a
análise apenas sobre as desigualdades de classes, para estudar outros fatores, vale dizer,
supera-se o estrito enfoque do risco, para um enfoque da vulnerabilidade.
O palestrante notou que no campo das ciências sociais, a categoria da vulnerabilidade já
era conhecida. Então realizou breve resumo do pensamento sociológico, partindo de
Augusto Comte, que promoveu o salto conceitual do termo física social para o termo
sociologia.
No Brasil, as ciências sociais têm como primeiros expoentes Gilberto Freyre, Sérgio
Buarque de Holanda (“homem social”, teoria do patrimonialismo) e Caio Prado Júnior.
Outra linha sociológica importante, destacada por Montagner, é a da escola uspiana (que
influenciou Donnangelo): escola paulista de Florestan Fernandes, Fernando Henrique
Cardoso, Otávio Ianni. Segundo o palestrante, esses autores “introduziram um programa
de pesquisas interessado na possível modernização do país. Focaram as mudanças no
corpo social”.
Ainda de acordo com Montagner, para a compreensão atual do conceito de
vulnerabilidade, é importante compreender o neoliberalismo – o qual, segundo Lúcio
Kowarick , trata-se de um processo mundial que, sobretudo nos Estados Unidos, tem
sido caracterizado pela “culpabilização das vítimas”, com ”ênfase na questão estamental
(cultura da pobreza, welfare dependency, parasitismo social)”, fazendo uso de
categorias preconceituosas como underclass (desclassificado, subclasse, inútil social).
Com o neoliberalismo, entrou em crise a sociedade salarial (Robert Castel), com a
precarização do trabalho, extinção de determinadas profissões – o que provoca crise de
identidade profissional de grande número de trabalhadores, perda de enraizamento
social, perda das raízes sociais (donde se passa a falar nos sobrantes, inúteis,
desabilitados socialmente).
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Esse processo também ocorre no Brasil, com forte exclusão social nos anos 80 e 90,
forte precarização do trabalho (o que provocou a descrença no mito da ascensão social
decorrente do esforço e do trabalho; essa descrença tem a ver com a visão
patrimonialista da sociedade brasileira). No Brasil, Montagner aponta a “não
responsabilização do Estado”, porque considerado pela sociedade ineficaz e corrupto, a
ascensão das ONGs em substituição ao Estado, a destituição de direitos trabalhistas, a
acomodação social. Além disso, ocorre a “naturalização das demandas”: quem reclama
é considerado um “chato” pelo restante da sociedade.
Na teoria de Pierre Bourdieu, oposta ao neoliberalismo, estão conceitos importantes
para se pensar a vulnerabilidade e a desigualdade. Bourdieu, na tradição marxista, não
abriu mão da teoria da dominação, discutindo o Estado e a sociedade pelo enfoque da
sua ordem simbólica, da cultura. Bourdieu analisa, por exemplo, o papel da mídia para
gerar o consenso social (lógica estamental ou simbólica) e bens culturais simbólicos,
especialmente da televisão e do jornalismo, pois, como disse o palestrante: “Os
universos simbólicos são estruturados historicamente”.
Montagner então ressaltou que Bourdieu, nas suas últimas obras, trabalhou a categoria
do universo simbólico (poder simbólico), parecida com a ideia do micropoder, de
Foucault. Mas com uma diferença: Bourdieu não abandonou a ideia do peso
preponderante do Estado, ao contrário de Foucault, que destacou o peso de outras
estruturas da sociedade.
Foi muito importante a análise que o palestrante fez do conceito de campo na obra de
Pierre Bourdieu. Segundo Montagner, campos são “os universos sociais específicos e
históricos, lugar de uma luta concorrencial dos agentes e dos grupos sociais em torno de
princípios ‘localizados’ que compõem o capital específico daquele campo”. Ele
ressaltou que se pode “mapear” um campo, por meio da análise das revistas
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especializadas, dos congressos, dos alunos etc. Assim, o campo é um espaço de luta
concorrencial feroz. Daí Montagner falar que um campo “é consenso no dissenso”.
Além disso, também conforme o palestrante, o campo “possui uma autonomia relativa:
um corpo com ‘legitimidade’ socialmente reconhecida”, pois o que é legítimo no campo
é o que os próprios membros do campo determinam, o que abre espaço para hegemonias
– trata-se do “princípio de legitimação interno ao campo”. Para Bourdieu, a
representação gráfica dos campos é como um móbile: várias partes com movimentos
próprios, mas unidas por um ponto comum (ponto de equilíbrio).
Em suma, campos sociais podem ser percebidos como espaços de conflitos, a partir das
dicotomias: dominantes e dominados; vanguardas e heréticos; conservadores e
revolucionários; capital simbólico (científico etc.) versus capital temporal
(administrativo, de grupo, de área). Neste sentido, Montagner destacou que há
hegemonias não apenas entre grupos de um campo, mas entre áreas de um mesmo
campo (por exemplo, a hegemonia da área da genética no campo científico).
Outro conceito de Bourdieu destacado pelo palestrante foi da teoria da dominação:
“uma proposta de análise das relações entre os campos sociais e o papel do Estado na
regulação dos grupos sociais. O Estado como legitimador das diferenças através do
sistema de ensino, de formação e distribuição dos ’capitais’”. Sobre este tema,
Montagner chamou a atenção para duas obras de Bourdieu: La Distinction e O Poder
Simbólico. Segundo o palestrante, Bourdieu consegue mapear os usos sociais utilizando
critérios e variáveis não apenas econômicos.
Montagner também destacou que o campo do poder não se confunde com o campo
político, pois “é o espaço de relações de força entre os diferentes tipos de capital“, em
cujo centro está o Estado, o qual não desapareceu (como diziam os neoliberais) – bem
ao contrário, foi o Estado que socorreu os grandes bancos na crise econômica recente. O
Estado é o ponto central, o ponto de equilíbrio do móbile.
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Na sociedade, vários tipos de capital entram em jogo (econômico, cultural, social,
simbólico, físico). Daí decorre a ideia de que na sociedade não existe apenas a falta de
dinheiro, mas também a falta de condições simbólicas (ex.: ser imigrante argelino na
França), o que implica a grande miséria, ou miséria da condição (“Posição ocupada no
macrocosmo social e na ‘ordem’ societária”). Por outro lado, existe a pequena miséria,
ou miséria de posição (“relacionada ao ponto de vista de quem vivencia os
Microcosmos Sociais”). Há, ainda, os excluídos do interior, os quais, embora estejam
inseridos, são excluídos, como os filhos franceses de imigrantes argelinos – trata-se de
uma exclusão invisível.
O palestrante então destacou que as práticas sociais são expressão da hierarquia social,
manifestada pelo uso dos capitais simbólicos. Segundo Montagner, estas práticas sociais
manifestam a violência simbólica. No seu dizer: “espaços sociais são comandados pela
violência simbólica, a capacidade de manter e reproduzir as relações de dominação
através de meios simbólicos e não explícitos, amalgamados em uma lógica social na
qual essas relações estão encobertas por uma doxa (senso comum, uma ordem) que
esconde as relações arbitrárias de dominação econômica ou simbólica, tanto por parte
de quem sofre quanto até mesmo de quem exerce a dominação”.
A violência simbólica é resultado de uma cultura dominante, tida como legítima pela
sociedade organizada hegemonicamente. Ou o sujeito reconhece essa cultura e tenta se
adaptar a ela, ou procura opor-se a ela. Ainda segundo o palestrante, a violência
simbólica aponta para o imperialismo moral, de acordo com a proposta teórica de
Volnei Garrafa e Cláudio Lorenzo.
Debate
O debatedor, Doutor José Paranaguá de Santana, iniciou destacando que o tema da
vulnerabilidade pode ser discutido de diversas formas, no campo da bioética. Paranaguá
apontou dois elementos essenciais da abordagem proposta por Montagner:
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1. Leitura da vulnerabilidade na versão marxista, que está associada à concepção desse
movimento de construção do ideário da medicina social ou da saúde coletiva brasileira.
Trata-se da mudança do significado de causa, que não é apenas biológica ou física
como antes, mas é causação, ou determinação social, que muda conforme o contexto
histórico, ambiental ou social. Ou seja, saúde e doença não são determinadas apenas por
elementos físicos ou biológicos, mas principalmente por circunstâncias
socioeconômicas decorrentes das situações de vulnerabilidades.
Paranaguá critica o uso do termo “determinantes sociais”, os quais ainda induzem a
pensar em causas, e prefere o termo “determinação social”, o qual é mais adequado para
compreender a causação ou determinação social.
2. O conceito de campo, de Bourdieu, é outro elemento chave para compreender a
vulnerabilidade no campo da intersecção entre bioética, saúde pública e diplomacia.
Esses são os dois referenciais que cercam a relação entre bioética, diplomacia e saúde
pública.
Ainda segundo o debatedor, a incerteza é elemento chave para compreender a
vulnerabilidade, a qual pode ser definida como “a fragilidade diante da incerteza”. Tem-
se que fugir tanto da confusão quanto da ambiguidade do conceito de vulnerabilidade: é
algo que dizia respeito a “riscos e danos associados à participação de seres humanos em
pesquisas biomédicas”. Depois, passou a compreender “incertezas e iatrogenias
decorrentes das biotecnociências”. Então, recentemente, passou a tratar “malefícios para
a saúde e o bem estar resultantes do desenvolvimento industrial (C&T&I) e seus
impactos sobre a Natureza”.
Qual o uso prático de um conceito de campo? Pode-se resolver um problema que está na
confluência entre três campos (diplomacia, bioética, saúde pública) sem estabelecer um
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campo próprio dessa intersecção? Trata-se da “construção de um campo interdisciplinar
na confluência da bioética com a diplomacia e a saúde coletiva”. Paranaguá propõe isso
com “foco da bioética da intervenção sobre os dilemas decorrentes da tensão/confronto
entre os princípios da solidariedade (altruísmo da saúde pública) e da razão de Estado
(interesses diplomáticos)”.
Após o debate, o debatedor abriu para o público perguntar e fazer considerações sobre
as discussões do Ciclo. Entre outras intervenções, Thiago Cunha perguntou pela relação
entre violência simbólica e imperialismo moral (abordadas pelo palestrante), com outra
categoria da bioética que é a colonialidade.
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6. Considerações finais
O acervo dos encontros de maio, junho, julho e agosto de 2011, do “Ciclo de Debates
sobre Bioética, Diplomacia e Saúde”, reforça a importância de se estudar a intersecção
entre estes três campos – bioética, saúde pública e relações internacionais –, a partir de
distintos temas de inflexão – integração regional, religião, gestão do conhecimento e
vulnerabilidade social.
De maneira geral, tem-se a confirmação da hipótese de trabalho do NETHIS, de que
existe a necessidade, extremamente atual, de compreender a relação que há entre
bioética, relações internacionais e saúde pública. De maneira específica, podem ser
elencados os seguintes temas, os quais poderão ser aprofundados durante o
desenvolvimento das atividades do NETHIS:
- é importante comparar/distinguir entre a UNASUL e o MERCOSUL, ou
melhor, entre suas características, considerando a agenda de ambas as
instituições.
- é importante que o NETHIS, ao estudar os problemas bioéticos que emergem
dos processos de cooperação internacional, fique atento às peculiaridades de
cada bloco regional. Desta reflexão surge um tema que pode ser
problematizado nos trabalhos do Núcleo: o perfil econômico (de constituir um
“mercado”) do MERCOSUL e o perfil essencialmente político da UNASUL
engendram diferentes problemas bioéticos no que diz respeito à cooperação em
saúde realizada sob os auspícios de cada bloco regional?
- é interessante aprofundar debate em torno do pluralismo da bioética latino-
americana, quando se discute a relação entre bioética e religião.
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- ao estudar os problemas bioéticos que emergem dos processos de cooperação
internacional, deve-se ficar atento aos possíveis entrelaçamentos ou atritos que
existem, por vezes discretamente, entre religião e ciência no contexto da
bioética latino-americana. Desta reflexão surge um tema que pode ser
problematizado nos trabalhos do Núcleo: a relação entre ciência e religião pode
influenciar a análise da cooperação internacional em saúde sob o prisma da
bioética?
- pode ser desenvolvido o debate em torno do acesso à informação científica
em saúde e da valorização do trabalho dos cientistas do “Sul”, como é o caso
dos brasileiros.
- o NETHIS, ao estudar os problemas bioéticos que emergem dos processos de
cooperação internacional, pode aprofundar o tema do acesso à informação,
sendo que o próprio sítio eletrônico do NETHIS, bem como a BVS, caminham
neste sentido. Isso mostra que o NETHIS está no caminho do seu
amadurecimento como espaço científico e que tem muito a contribuir com o
acesso ao conhecimento no campo da bioética, na sua intersecção com a
diplomacia em saúde e com a saúde pública.
- o debate em torno do conceito de campo e a discussão sobre o campo objeto
do trabalho do Núcleo, contextualizado pela teoria social e pelo conceito de
vulnerabilidade, de certa forma sintetiza muitas referências que vinham sendo
feitas nas discussões do Núcleo sobre a obra de Pierre Bourdieu.
Estes temas podem ser problematizados nas atividades científicas do NETHIS. Enfim,
sugiro que estes temas sejam considerados para o aprofundamento dos trabalhos do
Núcleo, tendo em vista o fortalecimento do seu escopo temático e de sua inserção
acadêmica para contribuir para a compreensão do fenômeno da internacionalização da
discussão bioética no campo da saúde pública.