REPRESENTAÇÕES MUSICAIS E MEMÓRIAS DE UMA BATALHA:
ARTICULAÇÕES ENTRE HISTÓRIA MILITAR E HISTÓRIA DA MÚSICA À LUZ
DE UM POEMA SINFÔNICO
Anderson de Rieti Santa Clara dos Santos
Era 5 de dezembro de 1961. Na Ilha das Cobras, no Comando do Corpo de Fuzileiros Navais,
o público numeroso, quase mil pessoas, após conhecer “pontos pitorescos” da Baía de
Guanabara, incrementava ao seu brinde os sons que vinham da banda de música pertencente
àquele corpo. Inusitados efeitos dos gorjeios dos pássaros e tiros de festim saídos de tal
apresentação impressionaram o repórter. Mas o que mais chamou a sua atenção foi o fato de
surgirem na execução da música, uma inesperada encenação teatral. Na missão de quem
queria premiar os leitores do citado jornal em uma excursão cultural como aquela, coube ao
repórter transmitir a outros leitores as emoções expressadas pelos premiados – para que estes,
quem sabe, concorressem a tal prêmio em uma próxima oportunidade. Assim, foi sob
“lágrimas” que os ouvintes deixaram transparecer o seu “entusiasmo”, quando o marinheiro
conseguiu completar, nessa encenação, um cerimonial de hasteamento da bandeira. Mas não
era um hasteamento qualquer. Era sim um hasteamento como epílogo de uma batalha, em que
o sangue derramado pelos sobreviventes, um marinheiro e dois soldados, ensanguentava
também a bandeira. Foram seis minutos em que, ao final, o público, antes em suspense, pôde
fazer “aclamações entusiásticas”. A performance, assim, foi mais uma proposta de
rememoração do 11 de junho, naquilo que mais havia de caro para o reforço de uma
lembrança complementando a memória sonora: o drama, a teatralização do evento. (PRÉ-
ESTREIA 1961, p. 2)
Esta foi mais uma execução da música Poema Sinfônico Riachuelo de Oswaldo Cabral que
por muito tempo esteve com as batutas da Banda do Corpo de Fuzileiros Navais (1933 -
1970). Ela foi composta em 1942 e ainda figurava no repertório das apresentações daquele
grupo musical. Nela constava a proposta performática, tal como a citada anteriormente,
visando lembrar os ouvintes-espectadores a vitória, deveras sofrida com sacrifícios, obtida
pelos brasileiros e seus aliados durante a Batalha Naval do Riachuelo em 11 de junho de
1865. A música, imbricada na arte cênica, era o meio pelo qual se podia aprender um pouco
Pós-graduando em História Militar pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Pós-graduando em
História Militar Brasileira Pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
mais sobre os “vultos” do passado, reforçando, portanto, a memória sobre o importante
evento.
Assim, este artigo busca apontar caminhos para a articulação entre a pesquisa no campo da
história da música, naquilo que há de proveitoso em seus avanços teórico-metodológicos nas
últimas décadas com a também renovada história militar através do Poema Sinfônico
Riachuelo. A tarefa aqui é ver na composição, por meio da partitura que dá a ela suporte em
seus elementos rítmicos, melódicos e harmônicos, e, principalmente, na performance, através
das notícias sobre uma das apresentações da música em 1961 como a Batalha Naval do
Riachuelo, data magna para a Marinha do Brasil foi rememorada e representada através da
imbricação das linguagens musical e cênica.
A Nova História Militar: possibilidades de articulação com a História da Música (um
balanço historiográfico)
A História Militar passou, nos últimos anos, por um momento de redescoberta no âmbito
acadêmico nos últimos trinta anos, a partir de três movimentos, dentro ou não deste campo
específico: 1) a redescoberta da história política seguindo novas orientações dentro do
movimento de Annales – a chamada quarta geração – em que, com a proeminência de
historiadores, como Roger Chartier e sua insistência na necessidade de impor novos caminhos
para a história cultural e uma reapresentação do conceito de “representações coletivas” –
conceito utilizado na “nova” história política -, e de René Remond, como expoente dessa
renovação; 2) o questionamento sobre a subordinação da história política à história militar a
interdisciplinaridade proposta nessas mudanças; e, 3) a antropologização nos estudos
militares, com a ascensão de temas até então estranhos ao campo, tais como minorias,
identidades culturais nas forças, tradições, representações, etc. (SOARES & VAINFAS:
2012).
Tais movimentos se originaram na nova postura dos estudiosos sobre a guerra enquanto
objeto de estudo para a história militar, especialmente pelo entendimento em torno da
historicidade do conceito, questionando-se a perspectiva da imutabilidade da guerra na
história face às características das “guerras” no tempo recente.
Outra mudança significativa ocorrida no âmbito da história militar é a interdisciplinaridade
sobre a qual vários estudiosos têm lançado mão, ao tentar interligar problemas com o apoio
teórico e conceitual da antropologia, a sociologia, ciência política, psicologia social e
pedagogia, em decorrência do movimento ocorrido também com a “nova história”
(SANCHES, 2010), com especial destaque para a primeira das ciências, direcionada
basicamente para as experiências individuais perante a tropa, à diversidade dos seus
integrantes, fugindo, assim, de uma suposta uniformização que se queira ver em uma força.
Nesse sentido, a interdisciplinaridade se faz muito útil também em um estudo que tenha a
música, a partir das disciplinas que se interessam por esse tema, como a musicologia, como
fonte para conceitos e procedimentos metodológicos para o estudo da história militar. Nesse
caso, como veremos adiante, as mudanças ocorridas na história da música e na musicologia
ajudaram a trazer importantes contribuições, principalmente em se tratando da constituição
dos grupos musicais formados dentro das instituições militares e as representações, memórias
e tradições forjadas com o apoio de tal campo.
Ao passo que a história militar sofria transformações que a conduziram para uma ampliação
de seus objetos, temas e problemas, amparada em novas orientações de cunho teórico-
metodológico, a história da música também passava por inflexões, algo sintomático diante das
próprias modificações pelas quais passava a ciência histórica, questionando-se mesmo o seu
status científico.
O foco dos estudos da história da música para a “música popular” foi uma dessas mudanças.
Movimento observado mundialmente a partir da década de 1960, tal aproximação possibilitou
uma aproximação da musicologia com outras disciplinas como a antropologia, a sociologia,
os estudos literários, os estudos culturais entre outras, do ponto de vista teórico-metodológico.
Até então a música era somente pensada a partir da chamada música “séria”, isto é, a erudita.
O que era tido como popular era somente um “resto” da música erudita, uma degenerescência
na sua forma urbana, contraposta com a verdadeira música – e nesse caso poderia ser a
própria música erudita, ou, como foi o caso de estudos realizados por Mário de Andrade aqui
no Brasil, com a música folclórica, a genuína musica. (NAPOLITANO, 2005).
A segunda e, talvez, decorrente da primeira, tem a ver com as transformações ocorridas na
própria musicologia. Também designada como “nova” a partir da década de 1970, repensando
a escolha de temas e objetos tais como a recepção das obras e a vida musical, o contexto de
produção das obras passou a ser um dos aspectos relevados pelos musicólogos, como um
caminho para se pensar as estruturas internas presentes em uma obra musical, passível de
conter nelas uma narrativa, sendo, assim, possível a adoção de métodos utilizados no estudo
literário. O que os musicólogos observavam em suas preocupações sobre a sua disciplina era
que a História, especificamente a História Cultural, e, próximo deles, a Etnomusicologia,
apresentavam questões que refletiam sobre a relação entre obra musical e contexto, o que os
deixavam no patamar de uma análise meramente técnica de seu objeto, em que esse pairava
no ar, uma influência ainda possível do positivismo dentro da musicologia. (VOLPE, 2004).
O Poema Sinfônico Riachuelo e Oswaldo Cabral: referenciais e lugares sócio-culturais
Ao tratar da referida composição de Oswaldo Cabral, em seus aspectos estéticos e
performáticos, para o nosso propósito, faz-se necessário, antes, percorrermos em seus
referenciais sociais e culturais.
Oswaldo Passos Cabral nasceu em 1900 na cidade de Taperoá, Bahia. A sua experiência
musical se iniciou na Filarmônica Braz na sua cidade natal com apenas oito anos. Continuou
em sua trajetória na música, mas já inserido na vida militar, na Banda do Primeiro Corpo da
Força Pública da Bahia (MAESTRO OSWALDO CABRAL, p. 268).
A sua experiência se amplia quando se muda para o Rio de Janeiro em 1929, matriculando-se
na Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil, cursando Composição e
Interpretação, História da Música, Contraponto e Fuga, Regência e Folclore. Nesse mesmo
ano pertenceu à orquestra da Sociedade de Concertos Sinfônicos do Rio de Janeiro, na qual
estabeleceu os primeiros contatos com Francisco Braga, à época também professor de Música
das Bandas Militares da Marinha. Em 1933 Oswaldo Cabral assume tal cargo substituindo
Francisco Braga na Marinha - ocupando-o por 37 anos.
Diante desse quadro, percebemos que a trajetória musical de Oswaldo Cabral até 1942 se
inicia com as sociedades musicais que davam os primeiros passos para aqueles que escolhiam
tal arte como ofício, devendo preservá-la na comunidade onde estavam inseridas (SANTOS,
2009) (CAZAES, 2014). Após, chega-se à primeira experiência da caserna: a música então
está vinculada às suas funções em uma corporação militar, uma delas, tornar “coesa” a tropa
ao formar um espírito de corpo (BÍNDER, 2006, p. 15). Logo após, começa a sua vida
musical em instituições que, de alguma forma, estão em um patamar na “ordenação
hierárquica”, de certa “respeitabilidade social”, mas, de maneira alguma, excluindo os
músicos que por elas passaram de outros espaços da experiência musical (salas de cinema,
espaços públicos pelos quais circulavam músicos com formação musical de ruas e praças). E
consolida a sua experiência com o magistério e regência em uma instituição militar, sendo,
neste caso, um funcionário civil e já com tarefas relacionadas não só à preservação do
patrimônio musical como também de culto aos símbolos e à identidade nacional. É o que nos
indica o Diário Oficial de 19 de fevereiro de 1937, onde, ao designá-lo como membro da
Comissão de Hinos para fixar os diversos hinos, entre os quais o da Independência e o da
Bandeira. (DIÁRIO OFICIAL, 1937, p. 3281).
Em 1942, ano que o Poema Sinfônico – Riachuelo foi composto, o Brasil passava por um
momento difícil no decurso da Segunda Guerra Mundial em que, alastrada sobre todo o globo
terrestre, acontecia no Atlântico Sul uma das batalhas em que mais se empenhou a Alemanha,
atingindo o transporte de mercadorias pelas companhias de navegação brasileiras, deixando
centena de mortos, além de baixas em contingente militar transportado por navio de guerra,
estado que levou à declaração de beligerância contra os países do eixo (Alemanha, Itália e
Japão).
Tal quadro se imbricava ainda com o momento político por que passava o país, sob o Estado
Novo, em que a cultura política se baseava, por um lado, na busca do genuinamente nacional,
com o seu conteúdo eminentemente popular – basicamente o conteúdo folclórico - e, por
outro, tornando como base para a busca do nacional, o conteúdo normativo, neste caso, o
erudito, visto principalmente pelas iniciativas de incrementar no currículo das escolas de
ensino primário e secundário o ensino de música, com a iniciativa de Heitor Villa-Lobos, com
o apoio de Getúlio Vargas, em instituir o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, este
como instituição-modelo – que se irradia para os demais estados da federação - para a
formação de professores nos graus primário e secundário responsáveis pela educação musical
inicial dos alunos. (TRAVASSOS, 2003) (LEMOS JUNIOR & MIGUEL, 2013).
Mas por que o Oswaldo Cabral rememorou Riachuelo com um tipo de obra que tivesse como
forma um poema sinfônico? Tal escolha nos remete a um outro contexto, isto é, ao do
Romantismo do século XIX e de suas implicações para as artes no Brasil, neste caso
específico arte musical e cênica.
O poema sinfônico foi uma categoria expressiva do movimento romântico no século XIX
dentro da música programática. Através de um programa previamente estabelecido, em forma
de história ou descrição, os compositores exporiam elementos que evocariam imagens, cenas,
cores, etc. A música, assim, buscava estreitar laços com a pintura e a literatura, tendo na
música programática e, dentro dela, o poema sinfônico como resultado da imbricação das
artes (BENNET, 1986).
No entanto, o poema sinfônico permaneceu como uma das formas musicais notável em
outros movimentos artísticos, como o modernismo em uma vertente específica que foi o
futurismo, este proveniente da Itália. Evidente que tal permanência se dava em outro contexto,
no qual determinados movimentos estilísticos na música buscavam, de alguma maneira, se
contrapor às ideias que os músicos românticos propugnavam para a essa arte, considerando o
Romantismo como o estilo que é “vulgar” nos seus melodramas. (CONTIER, 2004, p. 4).
Assim, a escolha de Oswaldo Cabral já começa a partir da tensão entre dois estilos, o
romântico e o moderno, buscando fundi-los a partir da apresentação de uma nação em glória
após uma batalha por ela vencida, Riachuelo, tal como veremos adiante, quando analisarmos a
composição e a sua proposta e execução através de uma performance.
Riachuelo em composição e performance
Iremos encontrar as alusões a apresentações do Poema Sinfônico Riachuelo em diversas
ocasiões, principalmente em eventos que tiveram como público a gente “extra caserna”. O
tipo de fonte em que predominam tais apresentações são os jornais, detidamente do Rio de
Janeiro, nas notícias e indicações de colunas específicas sobre entretenimento. Ora quando o
Corpo de Fuzileiros Navais se apresentava em aniversários de alguns de seus batalhões
comemorados em espaços públicos como praias e praças, ora em eventos comemorativos de
entidades civis pelo menos entre o período que se pretende analisar, qual seja, de 1942 a 1964,
ano limite até às comemorações do centenário da Batalha Naval do Riachuelo em 1965, que
foi até onde pudemos identificar os registros dessas apresentações. Depreende-se disso a
busca de uma audiência específica, de civis, que visualizará as glórias de um passado através
de uma linguagem prazerosa, que chame atenção. Abstrata na forma e concreta no seu
conteúdo. E, em alguns casos, a música tomará sua forma concreta não só nas alusões em
ornamentos musicais como também com o apoio de uma linguagem que traga mais
visibilidade a objeto rememorado: a linguagem cênica. Assim, a Marinha, através de suas
organizações militares que ora encampavam as comemorações, ora cediam as bandas para tais
apresentações, visava extrapolar os seus muros, tendo nessas apresentações a sua vitrine, e na
música, os artefatos que tornam visuais os vultos que deve preservar.
Indo ao artefato, ou seja, à música, observando a sua partitura, no seu lado esquerdo, logo à
primeira página, nota-se a composição organológica no poema sinfônico para os seguintes
instrumentos, respeitadas as devidas quantidades: 1 flautim; 2 flautas; 2 oboés; 2 clarinetes
em Mi bemol; 12 clarinetes em Si bemol (6 fazendo 1º clarinete e mais 6 2º clarinete); 2
fagotes; 4 saxofones altos (em Mi bemol); 3 saxofones tenores (em Si bemol); 2 saxofones
barítonos (em mi bemol); 4 horns (em Fá); 4 trompetes (em Si bemol); 2 cornetins; 8
cornetas; 4 tambores (postos no mesmo pentagrama junto às cornetas); 6 trombones; 4
tímpanos; bateria; 2 tenorhorns; 4 baixos; 6 contrabaixos; e 3 sinos (ao que indica a partitura
parece ser feito pelos xilofones).
Reprodução fotográfica 1ª página do Poema Sinfônico – Riachuelo
Analisando tal constituição organológica e a coloração timbrística dela decorrente, percebe-se
que boa parte dos instrumentos historicamente esteve às mãos de instrumentistas que fizeram
parte de bandas militares. No entanto, alguns deles não faziam parte de tal configuração, a
exemplo dos baixos, contrabaixos e tímpanos, estes específicos de uma orquestra, o que
evidencia uma perspectiva para essas bandas de mudar o sentido das comemorações e
tradições apoiadas na música, buscando um novo tipo de performance e de público, este agora
mais contemplativo, sem o pulsar passageiro de uma banda militar. Isso poderia indicar
também um tipo de performance mais estática. No entanto, adiante, veremos que não se
tratava disso, pelo menos não nessa música.
Como já dito, quanto à forma musical, Riachuelo é um poema sinfônico, forma evidente no
seu subtítulo. O que poderia ser o programa, um esboço em linguagem escrita de tal
composição foi encontrado dentro da partitura doada por Oswaldo Cabral para o Arquivo da
Marinha em texto escrito por Renan Cabral1, sem data, o que nos coloca em dúvida quanto ao
fato de ser um texto base para Riachuelo. Mas, se pensarmos que texto e música se
completam em seus caracteres enunciativos, pode-se inferir que se trata mesmo de um
programa, anunciando paisagens, formas, passagens, personagens.
Nesse “programa”, em seu início, as batidas dos sinos anunciam às oito horas da manhã do
dia 11 de junho de 1865, quando se aprestam as “fainas de rotina e preparação da missa”, e,
“entre gorjeio alegres dos pássaros”, o “murmúrio da correnteza e o sôpro úmido do
minuando, um rumor de inquietação corta a paisagem. Levanta-se no tôpo da ‘Mearim’ o
sinal de ‘Inimigo à vista’”. Essa cena, que se prolongou na memória e trazida para a
historiografia (BITTENCOURT, 1997) (BITTENCOURT, 2009) é uma antítese de uma
batalha. Reina a calmaria, em que pese ela seja trazida para compor também o cenário bélico,
evidenciando que a paz é o início e fim (desejado) do cenário; a batalha é o imponderável e
desordem, mas um meio útil e necessário para confortar os anseios de quem deseja a paz. Para
tanto, Oswaldo Cabral nos dá os sinais musicais de tais cenas a exemplo do gorjeio dos
pássaros, através das quiálteras de semicolcheias em uma série cromática nos compassos nº
19 ao nº 37 para as flautas, clarinetas em Eb, os saxofones alto e tenor, e os tenor horns e
contrabaixos, como se pode ver abaixo:
1Não conseguimos encontrar informações sobre Renan Cabral. Portanto, decidi por não inferir parentesco com
Oswaldo Cabral.
Voltemos então para aquela apresentação aludida no primeiro parágrafo deste texto. O
articulista do Correio da Manhã de 5 de dezembro de 1961, na homenagem em que esse jornal
promovera aos seus leitores num passeio à organizações da Marinha, entre elas, a sede do
Comando do Corpo de Fuzileiros Navais na Ilha das Cobras, buscava passar aos leitores que
não compareceram ao referido evento, no que consistia o Poema Sinfônico Riachuelo, como
estava dividido em suas partes – neste caso, em seus temas –, e assim também tocava nos
“efeitos especiais de gorjeios de pássaro” (PRÉ-ESTREIA, 1961, p. 2). Desse modo, a
linguagem técnica do cinema era utilizada para qualificar as alusões imagéticas no
encadeamento rítmico-melódico nos compassos acima.
Após a mudança de cenário, o andamento passa ser o andante. São os sinais de preparação
para uma batalha, a partir da C. O tempo da batalha se acelera: é um outro tempo, já não mais
os dos pássaros e da calmaria que os comporta. As ações dos homens se tornam mais
aligeiradas. Já não há mais contemplação. O público já é parte da música quando se deixa
agonizar com os trinados recorrentes. E ele é fustigado a lembrar da pátria que se sonoriza
através de algumas frases melódicas do Hino Nacional, que Oswaldo Cabral faz questão de
que trazida, ainda que distante.
O herói, Francisco Manoel Barroso da Silva, deve ter o seu lugar de destaque como logrou ao
longo de anos de Riachuelo rememorado. E o herói se faz devedor da pátria, em momento tão
delicado que ela em Riachuelo vive. A parte E assim o anuncia, pelo sinal que faz içar a bordo
do navio capitânia, a fragata Amazonas, e pela profusão de quiálteras de sextas e os trinados
que continuam. São estes os sinais de angústia, os quais são reflexos da responsabilidade da
obrigação de cada homem naquele front. São os sinais de que, conforme Barroso,
rememorado por Cabral, “O Brasil espera que cada um cumpra o seu dever”:
Para o cumprimento de tão árduo dever, faz-se necessário se impor ao adversário pelo poder
de fogo. Assim é que Oswaldo Cabral deixa bem claro as ordens por meios de motivos e
frases muito próximos dos vistos nos regulamentos militares, especificamente no compasso nº
69, no qual, ao sinal de “fogo”, descrito na partitura, os trompetes, cornetas e cornetins
ordenam artilharia:
O tom belicoso é ainda mais enfatizado com a artilharia por meio dos bumbos, indicados pelo
compositor a estarem de lados opostos, e as caixas elucidando os sons dos fuzis em combate,
o que nos remete aos efeitos possíveis em uma performance. Foi o que tentou Cabral, quando
naquela apresentação de dezembro de 1961, usaram-se tiros de festim, como testemunhou o
articulista do Correio da Manhã.
A composição de Oswaldo Cabral persegue a dramatização da batalha. Os sinais de comando
para que a Esquadra brasileira atacasse a adversária, a evolução dos movimentos em um
combate, a profusão da artilharia através da percussão, enfim, cada detalhe é incorporado pelo
compositor, como se quisesse do ouvinte e dos músicos a atenção às lições que Riachuelo
deixaram para a posteridade. Mesmo em situações adversas como no caso da Parnaíba quase
que dominada pelo inimigo, abordada por três vapores paraguaios, mas que se lançou sobre
um deles, o Paraguari. As lutas corpo-a-corpo nessas abordagens foram lembradas por Cabral
na parte P, nos compassos nº 241 ao nº 244, quando ele sugere a diminuição da intensidade e
velocidade da composição, além do uso, em quase todos os instrumentos, de semínimas e
colcheias e indicando acima desses compassos o uso das machadinhas pelos oponentes nessa
refrega. Tais movimentos também são observados nas abordagens da Amazonas contra o
Jejuí, o Marquês de Olinda e o Salto.
Seguem-se às abordagens, na parte S, o gemido dos náufragos nas flautas e nos saxofones alto
num movimento de oscilação da intensidade entre crescendo e diminuindo, dando contornos
de mais dramaticidade à composição. Já em T e U, Cabral finaliza o combate depois de “seis
horas de ódio, de sangue, de desespero e de morte”, tendo a tarde de 11 de junho caído
“suavemente sobre a vitória chanfrada de ouro”. À memória de Oswaldo Cabral e à de seus
ouvintes e músicos que executariam “Riachuelo”, a armada brasileira deixava o legado de
“mais belo crepúsculo” (p. 45-48).
Poema Sinfônico Riachuelo: Parte T “ Escoaram-se seis horas de ódio, de sangue, de desespero e de
morte. A tarde de 11 de junho caiu suavemente sobre a vitória”. Reprodução fotográfica.
No final, na parte V, Oswaldo Cabral dedica-se à surpresa: é evocado mais uma vez, só que
agora cantado fragmentos adaptados do Hino Nacional Brasileiro, de soprano a baixo, com a
mudança de andamento, desta vez largo, no retorno à calmaria de antes, mas desta vez
cerimoniosa. Retornam os sinos. Calam-se os canhões e as espingardas. Vem a calmaria. Mas
não a de outrora: o cenário está arrasado.
A música, a partir de então, é dramatizada não apenas pelos seus elementos e suas variantes
composicionais e interpretativas. Cabral também inova ao querer dar aos seus ouvintes o
drama musical através do encenado. Assim ele teatraliza o movimento final. E o faz, não com
o herói Barroso, ou como outro herói que participou com certo destaque da batalha, como o
guarda-marinha Greenhalg, ou ainda o marinheiro imperial, Marcílio Dias – estes últimos
mortos em combate. Os heróis sobreviventes são anônimos. Um marinheiro ferido amparado
por outro marinheiro e um fuzileiro. “Entra um marinheiro, ferido, arquejante, amparado por
outro marinheiro e um fuzileiro. Encaminham-se para o mastro; o marinheiro entra, iça a
bandeira nacional (...), cai fulminado”. Tudo em torno de mais um símbolo nacional, a
memória simbólica da pátria. É para ela que são dadas as deferências nos cerimoniais diários,
referência local nas organizações militares e também para o público em geral. Foi em defesa
dela que sucumbiram alguns naquela batalha como o já mencionado Greenhalg, conforme
relatou na parte de combate o comandante da corveta Parnaíba, capitão-tenente Aurélio
Garcindo Fernandes de Sá. (BITTENCOURT, 2009, p. 285). Içá-la naquelas condições seria
mais um sinal de vitória. Toda esta encenação se dá com a execução do Hino Nacional em
vocalizes que se alternam em suas respectivas alturas e encadeamento melódico, sendo,
portanto, uma interpretação livre das prescrições normativas sobre sua execução, conforme
vemos nesses últimos compassos abaixo.
.
(continuação)
O aparecimento das vozes nesse momento final da composição evidencia a perspectiva de
mudança de sentido das bandas militares, sugerindo pelos vocais uma contemplação de mais
um símbolo da pátria, neste caso, o hino, uma lembrança sonora de uma comunidade, esta se
deixando abstrair pelos elementos musicais pertinentes. A canção também é a maneira de
aproximar à linguagem literária da linguagem musical, dando a esta os elementos literários e à
literatura os musicais, afinal, a fonética deve acompanhar duração e encadeamento melódico
específicos. O cerimonial, com o içamento da bandeira nacional, é o rito ideal para que todos
possam se lembrar de que mais um símbolo sobreviveu aos combates, como trazido pelos
anônimos sobreviventes ou mortos, através da memória. Não é demais lembrar que alguns
morreram para deixa-la íntegra. Assim, a bandeira também é o sinal do culto aos vivos e à
nação que vive na memória aos mortos.
Mas intriga a presença dos atores que encenam os personagens desconhecidos, aliás,
recorrente nos monumentos em alusão às duas guerras mundiais existentes mundo a fora. Os
marinheiros e soldado desconhecidos podem nos inteirar sobre a perspectiva de Cabral de
torna-los vivos não só em cena, mas figurando a estrutura interna da música através do
encadeamento melódico e harmônico do Hino Nacional. Por que eles? As escolhas estética e
estilística nos daria algum indício?
Infere-se aqui que, ao compor o Poema Sinfônico Riachuelo, Oswaldo Cabral não está
diretamente filiado a este ou aquele movimento, mas quer, antes, um diálogo entre dois
momentos: o seu tempo e o tempo da batalha. O tempo da batalha é o do século XIX, tempo
da música imbricada a outras linguagens, principalmente o da literatura. Quis Carlos Gomes,
em Il Guarany evocar a alma nacional que identificada com os índios em sua ópera, algo
insólito para o século XIX e risível para o século XX.2 Embora, para alguns, Carlos Gomes,
efetivamente não tenha conseguido alcançar a alma genuinamente nacional ao revesti-la com
uma inspiração musical italiana, a tentativa de busca-la continua por mais algumas décadas
até chegar ao tempo do Modernismo, tempo do Oswaldo Cabral compositor do Poema
Sinfônico. Ao tornar anônimos os marinheiros e o soldado, e terminar a sua música com o
içamento da bandeira nacional por um deles, Cabral evidencia, nesse sentido, a busca e
apresentação dessa alma por meio desses personagens, de modo que o corpo estivesse
identificado pelos possíveis ouvintes que, ao se transfigurarem naqueles, conduzissem ao tope
o pavilhão nacional, tal como aqueles militares.
Além de, ao trazer a face da batalha, torna-la identificável e visível, ainda que distante no
tempo. Emocionando o público presente naquela apresentação de dezembro de 1961,
conforme registra o articulista do Correio da Manhã, Oswaldo Cabral põe a luz em cena com
a sua música a ponto de provocar lágrimas segundo o testemunho. E a performance ainda
ganha um outro rumo quando os músicos se levantam em tal apresentação, figurando, com os
marinheiros e o soldado, não só naquele momento, mas também em Riachuelo. Os ouvintes,
2 Sobre a recepção da citada ópera de Carlos Gomes no século XIX ver Kiefer (1976: 91) e no século XX a partir
da crítica modernista ver (TRAVASSOS, 2000).
certamente, ao memorar por tabela Riachuelo com a composição de Cabral, fez das lágrimas o
rio para que às proximidades do distante, temporal e espacialmente, Riachuelo chegassem.
REFERÊNCIAS:
Fontes
Partituras:
CABRAL, Oswaldo Passos. Riachuelo: Poema Sinfônico. (1942/1958). Rio de Janeiro. 54
pags. Arquivo da Marinha. Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha.
Fundo Batalha Naval do Riachuelo. Nº 0411370, Cx: 01, doc. 29.
Periódicos:
Jornais:
PRÉ-ESTREIA DA SEMANA DA MARINHA. Correio da Manhã, 5 de dezembro de 1961.
Rio de Janeiro. Disponível em Hemeroteca Digital.
Diário Oficial. Sexta-Feira, 19 de fevereiro de 1937, p. 3821.
Livros, artigos, anais, teses, dissertações e monografias
BENNET, Roy. Uma breve História da Música. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986.
CONTIER. Arnaldo Daraya. O Nacional na música erudita brasileira: Mário de Andrade e a
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