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Expediente
REVEJ@ - Revista de Educação de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008 NEJA-FaE-UFMG. Belo Horizonte. Dezembro de 2008. ISSN: 1982-1514 CAPA
Máscaras em argila dos artistas Mestre Ciça, de Mauro Cassiano e Silvana Gonçalves, expostas no Centro de Cultura Popular Mestre Noza, em Juazeiro do Norte (CE).
Fotos de Juliana Gouthier.
A REVEJ@ é uma publicação eletrônica do Grupo de Estudos e Pesquisas em EJA, vinculado ao Núcleo de Educação de Jovens e Adultos da Faculdade de Educação da UFMG. Sua periodicidade é quadrimestral. Sua distribuição é gratuita e está disponível para acesso e download no endereço http://www.reveja.com.br.
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Equipe Editorial Coordenador: Leôncio José Gomes Soares
Editor Responsável: Luiz Olavo Fonseca Ferreira
Jornalista Responsável/Revisora: Mirella Augusta Carvalho
Revisora: Ângela Pinto
Comitê Editorial: Ana Paula Ferreira Pedroso
Comitê Editorial: Emmeline Salume Mati
Comitê Editorial: Isamara Grazielle Martins Coura
Comitê Editorial: Lígia Vilela Félix
Comitê Editorial: Raquel Miranda Vilela
Comitê Editorial: Cristiane Fernanda Xavier
Comitê Editorial: Fernanda Aparecida Oliveira R. Silva
Comitê Editorial: Analise de Jesus da Silva
Comitê Editorial: Jerry Adriani da Silva
Comitê Editorial: Magda Antunes Martins
Comitê Editorial: Sônia Maria Alves de Oliveira Reis
Layout e Arte: Juliana Gouthier Macedo
Conselho Editorial Presidente: Leôncio José Gomes Soares (UFMG)
Edna Castro de Oliveira (UFES)
Eliane Ribeiro (UNIRIO)
Jane Paiva (UERJ)
Liana Borges (ONG Diálogo - Assessoria e Pesquisa em Educação Popular)
Maria Amélia Giovanetti (UFMG)
Maria Aparecida Zanetti (UFPR)
Maria Clara Di Pierro (USP)
Maria Margarida Machado (UFG)
Maria Luiza Pereira Angelim (UnB)
Osmar Fávero (UFF)
Sônia Couto Souza Feitosa (Instituto Paulo Freire)
Tânia Maria de Melo Moura (UFAL)
Timothy Denis Ireland (UFPB)
Consultores Ad hoc Analise de Jesus Silva (UFMG)
Domingos Leite Lima Filho (UTFPR)
Inês Assunção de Castro Teixeira (UFMG)
Maria da Conceição Ferreira Reis Fonseca (UFMG)
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Sumário
Editorial ............................................................................................................................... 05
História e memória dos Encontros Nacionais dos Fóruns de EJA no Brasil: dez anos de luta pelo direito à educação de qualidade social para todos
Adán Pando Moreno.............................................................................................................. 07
Compromisso renovado para a aprendizagem ao longo da vida - Proposta da América
Latina e do Caribe
UNESCO .............................................................................................................................. 14
Desejos e desafios de pessoas da terceira idade no processo de escolarização
Isamara Grazielle Martins Coura........................................................................................... 19
O Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na modalidade de EJA no CEFET-GO: uma análise a partir da implantação do curso técnico integrado em serviços de alimentação
Mad´Ana Desirée R. de Castro - Jacqueline M. Barbosa Vitoretti ....................................... 31
Formação de Educadores de Jovens e Adultos: saberes na proposição curricular
Rosa Aparecida Pinheiro ....................................................................................................... 44
A Educação de Jovens e Adultos semipresencial: leituras do cotidiano escolar
Liliam Cristina Caldeira - Doralice A. Paranzini Gorni ........................................................ 56
Um olhar sobre a postura do educador da Educação de Jovens e Adultos numa perspectiva freiriana
Maria Teresinha Kaefer e Silva ............................................................................................ 67
“Mulher não precisava estudar”: relatos de vida e de violência simbólica
Andréia da Silva Pereira - José Carlos Miguel ...................................................................... 74
Os caminhos da linguagem: possibilidades de aprendizagem por meio do audiovisual na
EJA
Michel Silva ........................................................................................................................... 86
REVEJ@ o filme: A Última Hora
Kelen Rezende - Maria Andréia A. Leandro - Rosângela Cristina Barbosa ......................... 95
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Editorial
Esta edição da REVEJ@ comemora os dez anos de dois movimentos que se
entrelaçam na construção da história da Educação de Jovens e Adultos no Brasil: o Encontro
Nacional de Educação de Jovens e Adultos – ENEJA e o Grupo de Trabalho de EJA (GT 18)
da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – ANPED. O ENEJA,
desdobramento das ações preparatórias à V CONFINTEA, iniciou-se em 1999 e, desde então,
vem sendo realizado anualmente congregando diferentes segmentos que atuam na educação
de jovens e adultos. O primeiro Encontro Nacional foi sediado no Estado do Rio de Janeiro e,
ao completar uma década, retornou ao estado fluminense, dessa vez no município de Rio das
Ostras. Para marcar a ocasião, transcrevemos nesse número a palestra do representante do
CREFAL, Adán Pando, que abordou as concepções de EJA na América Latina enquanto
direito público.
Damos também informações sobre as reuniões preparatórias para a VI CONFINTEA,
a ser realizada no mês de maio em Belém, com a publicação do documento final do Centro de
Cooperación Regional para la Educación de Adultos en la América Latina y el Caribe
(CREFAL), ocorrida na Cidade do México, em setembro de 2008, intitulado “Compromisso
renovado para a aprendizagem ao longo da vida - Proposta da América Latina e do Caribe”.
Em comemoração aos dez anos do GT 18 da ANPED, publicamos artigos de pesquisadoras
que apresentaram seus trabalhos na última reunião anual. Dentre elas, Isamara Grazielle
Martins Coura discute os casos e percalços quando alunos idosos chegam à educação de
jovens e adultos. Mad’ana Desirée Ribeiro de Castro e Jacqueline Maria Barbosa Vitorette
analisam a implantação do curso técnico integrado em Serviços de Alimentação no PROEJA
do CEFET-GO. Rosa Aparecida Pinheiro relata o estudo de uma proposta curricular de
formação de educadores de jovens e adultos que teve como foco o diálogo entre os saberes da
experiência e os saberes acadêmicos dos educadores. Por fim, Lílian Cristina Caldeira e
Doralice A. Paranzini Gorni analisam a relação estabelecida entre os documentos oficiais que
regulamentam a EJA e o real da vivência escolar a partir da visão dos educandos e educadores
na modalidade semipresencial. Continuando essa edição, Maria Teresinha Kaefer e Silva
aborda a postura do educador da EJA, bem como o medo e a ousadia que permeiam suas
ações, baseando suas reflexões no pensamento de Paulo Freire. As relações que se
estabelecem entre família, gênero e educação são analisadas por Andréia da Silva Pereira e
José Carlos Miguel, por meio de relatos orais de vida de educandas.
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O papel do áudio-visual como ferramenta da prática de ensino e do letramento de
jovens e adultos é a questão que Michel Silva apresenta. O autor aponta que nas diferentes
fases de criação e elaboração do material pode-se perceber a contribuição do áudio-visual no
processo de ensino-aprendizagem e formação de alunos jovens e adultos.
.A sessão REVEJ@ o Filme apresenta um relato a partir do documentário Última
Hora, narrado e produzido por Leonardo Di Caprio, sob a direção de Leila e Nadia Conners, o
qual provocou um debate em sala de aula sobre os desastres naturais causados pela própria
humanidade e o atual estado de risco ambiental do planeta.
Desejamos a tod@s que nos acompanham uma boa leitura e que o ano de 2009 possa
ser promissor para a Educação de Jovens e Adultos.
Equipe Editorial
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História e memória dos Encontros Nacionais
dos Fóruns de EJA no Brasil: dez anos de luta
pelo direito à educação de qualidade social
para todos
Adán Pando Moreno1
Devo começar fazendo um profundo e
sincero agradecimento à Comissão organizadora
do X ENEJA e, em particular, à Jane Paiva e ao
nosso amigo em comum Timothy Denis Ireland
por nos ter colocado em contato e pela
desmerecida deferência com a qual nos
convidaram e nos tem tratado, tanto ao CREFAL
quanto a mim. A eles e a todos vocês nossos
agradecimentos e nossa amizade. Recebam
também nossas congratulações pela realização
deste X Encontro de alcance não só brasileiro,
mas também latino-americano.
Antes de começar quero me desculpar por
não poder fazer esta apresentação em português.
Já é bastante o dano que faço ao espanhol quando
falo e tenho certeza de que ao terminar minha
estadia neste país maravilhoso, vou ser a pessoa
mais perseguida pelas Academias de Línguas
espanhola e portuguesa.
Em seguida quero aproveitar esta
oportunidade para compartilhar a perda que
sentimos no CREFAL e, de um modo geral, todos
aqueles que trabalham no âmbito da educação no
México pelo recente falecimento de nosso amigo
1 Diretor de Docencia y Educación para la Vida. do Centro de Cooperação Regional para a Educação de Adultos na América Latina e Caribe (CREFAL).
Juan Manoel Gutiérrez. Juan Manoel foi um
notável educador mexicano, organizador de
muitas iniciativas de grande importância no
âmbito da educação no México. Dentre elas,
fundou o Departamento de Investigação
Educativa (DIE) do Instituto Politécnico Nacional
e também a Universidade de Ciénega; foi
fundador e diretor, até os últimos dias, da revista
Decisio, de grande alcance na educação de
adultos e, também até seu falecimento, foi
pesquisador e assessor do CREFAL. Quero
dedicar esta apresentação à memória de Juan
Manoel.
Não pretendo fazer uma exposição
acadêmica. Mas somente uma espécie de resenha
que vincula aquilo que é considerado público com
aquilo que chamemos de modelos de imbricação
entre o Estado e a educação de adultos na
América Latina. O tema da educação de jovens e
adultos tem, como sabem, vários pontos de vista e
proporções. Primeiro, penso que seria melhor
olhar a EDJA a partir da perspectiva sociológica
de campo de Pierre Bourdieu. Sem dúvida há
muitos outros enfoques, mas tomo este porque
creio que uma das características que tem a EDJA
na América Latina é que não se trata somente de
um campo, senão de vários campos intercalados e
sobrepostos.
Se nós dissermos “a Universidade”, isso
se constitui um só campo. Podendo conter vários
subcampos, por exemplo, o da pesquisa e da
docência; ou disciplinas como as humanas, as
tecnológicas, etc. Mas é reconhecida como algo
instituído com suas próprias regras de jogo e com
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o capital cultural comum que possui e distribui de
alguma forma. Todo campo tem uma fronteira
definida em relação a outros campos do entorno.
A EDJA, por outro lado, não parece ser
assim. Penso que é possível distinguir três
grandes campos: um campo que é o tema
específico da pedagogia de adultos (ou
andragogia se assim preferem, não seria agora o
momento de discutir isso); há outro campo que é
o da condição social-sociológica da EDJA; há um
terceiro campo que é o das políticas públicas
sobre EDJA.
Nem todos os “temas” da EDJA
concorrem de forma igual nos três campos. Há
“temas” que estão construídos conceitual e
metodologicamente em apenas um dos campos.
No entanto, é fácil reconhecer que há temas que
dizem respeito a mais de um desses campos. Se
falarmos, por exemplo, do problema da formação
dos educadores, implicaria os três campos. Se
falarmos do problema do financiamento da
EDJA, abordamos, sobretudo, os dois últimos
campos.
E ainda mais, esses campos não têm a
mesma lógica, a mesma dinâmica nem o mesmo
discurso. Por isso, precisamente, afirmo que se
trata de campos diferenciados. Por exemplo,
enquanto que nas políticas públicas se fala em
“combater o atraso educativo” e busca-se que os
programas tenham um impacto preferencialmente
quantitativo, a teoria da educação ou pedagógica
e a sociologia da educação renegam justamente a
expressão (porque oculta um processo social de
exclusão), a direção e o tipo de resultados que
buscam a maioria das políticas públicas.
Mas, de certa forma, o campo das
políticas públicas é o campo da diretriz (em
outras palavras diríamos hegemonia) dentro da
EDJA.
De um lado, porque na América Latina
herdamos uma teoria pedagógica proveniente do
Iluminismo, a qual privilegiava o ensino infantil e
só tardiamente se ateve aos jovens e adultos. Por
outro, porque a EDJA nasceu na América Latina
como um conjunto de iniciativas internacionais e
de cada Estado, para enfrentar um problema
social que afetava gravemente a incorporação de
nossos países aos esquemas internacionais de
produção, trabalho e distribuição. A EDJA nasceu
ligada à capacitação para o trabalho e à geração
de competências mínimas de “integração
nacional”. Não é o momento de tecer comentários
superficiais sobre a questão, mas creio que
aproveitaria para ler a história recente da EDJA a
partir desse ponto de vista.
E, finalmente, porque o que às vezes
chamamos de economia política da educação de
adultos, geralmente começa seus caminhos
financeiros como investimento público (nacional
ou internacional).
Ontem à noite escutei no programa do
Canal 10 o físico José Bautista Vidal. Afirmava o
senhor Vidal que a educação deveria estar ligada
ao trabalho, que a educação não deveria estar
colocada como uma condição, a priori,
verticalizada. Queixava-se de que as políticas
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públicas colocavam muita ênfase e recursos na
educação e, em contrapartida, não havia uma
política da mesma magnitude para o petróleo.
Trata-se obviamente de uma concepção
utilitarista, puramente funcional da educação. A
educação reduzida a ensino e o ensino visto como
um meio e não como um fim. E, ademais, como
um meio subordinado a diversos fins.
Agora o fato de que as políticas públicas
reconheçam – em maior ou menor grau – a
educação de adultos como uma questão social,
não quer dizer que seja plenamente considerada
como uma questão pública. O público é uma
espécie de âmbito ou espaço que abarca aquilo
que não pode ser de ninguém em particular e,
além disso, aquilo que é de todos. Certamente, o
público começa por definir-se por negociação,
por exemplo, com preceitos como “ninguém deve
fazer justiça com as próprias mãos”. Esta espécie
de “terra de ninguém” supõe o intento de
equilíbrio entre os interesses do privado, aqueles
mínimos nos quais – seguindo a hipótese
rousseauniana – estamos de acordo em que não
ocorram.
De maneira paralela, o público se define
como o que é de todos sem ser “de cada um”.
Uma praça ou uma rua é de todos. Eu não posso –
nem vocês nem ninguém – chegar a reclamar
minha parte proporcional da praça, meu meio
metro quadrado de praça. Quando alguém
usufruir privadamente de algo que é de todos, isso
faz com que o objeto perca o caráter de público.
Desse modo, se alguém desrespeita uma
das regras proibitivas fere o direito individual de
alguém e, ao mesmo tempo, o direito público. Se
alguém se excede no direito público e toma como
particular algo que é de todos fere o direito
público e, seguramente, o individual. Neste
momento, no México, discute-se a reforma
energética e se diz que uma das propostas é
vender títulos de petróleo aos cidadãos “para
fazê-los partícipes dos benefícios”. Assim se
contradiz o direito público, ainda que cada um
dos mexicanos pudesse ter a mesma quantidade
de títulos de petróleo, estes permaneceriam já
propensos ao uso individual, mesmo que
minimamente. Na teoria liberal clássica supõe-se
que o Estado é a garantia - a cada momento - do
equilíbrio entre as partes, do direito público, de
evitar a transgressão dele e de resguardar os
direitos individuais. Nesta concepção o Estado é
o corpo do público.
Por ele, se uma pessoa, um particular,
transgride o direito público comete delito. Mas, é
duplamente grave se o faz o Estado e seus
funcionários. Inclusive, um particular pode não
atuar diante de certas situações sem incorrer em
uma falta, pode fazer um exercício passivo de
seus direitos, mas o Estado não pode não atuar,
seria negligência. É a mesma lógica de quando os
representantes públicos (os deputados, senadores,
prefeitos, etc) e os funcionários opõem-se a
cumprir e fazer cumprir as leis. Para o cidadão
comum basta que cumpra a lei, o representante do
público deve, portanto, fazer com que seja
cumprida.
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Essa é a teoria sobre o que é público. A
teoria clássica, liberal e republicana, ainda que
sem fazer críticas. Mas é evidente que na
Constituição de cada país estão presentes
determinações historicamente diferentes sobre o
que é, de fato, o âmbito público. Na Europa
ocidental foi um processo que aconteceu entre os
séculos XVII e XVIII. Na América Latina, entre
o século XIX e inicio do XX. No caso do México,
essa definição do que é público se deu
marcadamente com a Constituição de 1857 e com
as Leis de Reforma durante o governo de Benito
Juarez.
Seguindo a idéia de que um Estado se
compõe de população, território e governo, a
administração de Juarez se propôs a reformar o
governo, sobretudo, nos órgãos de justiça, ou
seja, decretar leis para a população (o registro
civil obrigatório para os recém-nascidos, os
cemitérios públicos e os atestados de óbito) e
confiscar terrenos (uma forma de expropriação
que atingiu os terrenos baldios, as propriedades
da Igreja Católica e das comunidades indígenas).
Entretanto, fez algo mais: percebeu que não se
podia construir um Estado nacional forte sem
uma escola pública, isto é, uma educação básica
dada por instituições escolares do Estado, que não
atendesse a interesses privados, que fosse de
acesso para todos, bem como gratuita e
obrigatória.
Quase todos os países da América Latina
têm tido sistemas semelhantes de ensino público.
Na maioria destes países a educação ou ensino
público está em crise. Não somente pela
qualidade da educação que se oferece, senão
porque o conceito do que é público e a forma
como se construiu historicamente está em crise.
Provavelmente pela conjunção de três tendências:
Primeira, a confusão do público com o
aumento de penetração da mídia de massa,
especialmente a televisão, a qual cria uma falsa
impressão do “público”. Os meios de
comunicação de massa são isso: de massa, não
públicos. Ficar sabendo da vida privada dos
políticos, se têm um ou uma amante, ou filhos
fora do casamento, etc, não faz estes fatos nem
mais nem menos públicos, seguem sendo
privados ainda que muita gente fique sabendo.
A segunda tendência tem a ver com a
primeira, mas de maneira ambígua, dual. Nas
últimas três ou quatro décadas tem havido um
movimento crescente de cidadania que tem posto
em marcha diversas causas dependendo das
condições de cada país. Em geral, uma luta contra
os autoritarismos que chegavam ao extremo com
as ditaduras militares, uma luta pela
democratização, às vezes por mudanças radicais
na estrutura social, às vezes reclamando somente
maior participação social; uma sociedade aberta e
com melhores níveis de existência e
sustentabilidade. Particularmente desde os anos
oitenta, tem havido uma ascensão das ações das
organizações da sociedade civil. Porém, digo que
é ambígua porque uma maior participação ou
protesto da sociedade civil não é
automaticamente um assunto público. No México
existem muitas organizações de caráter
assistencialista ou filantrópico que atuam no setor
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educativo, de saúde, etc, mas que não querem ter
a menor ingerência na questão pública. Também
existem organizações que tratam de converter em
assunto público aquilo que deve ser questão de
consciência privada, como as que propõem
legislar para moderar a forma de vestir das
mulheres evitando que sejam “provocativas”.
Terceira, o neoliberalismo e o reajuste
estrutural reduziram o Estado. Ou, como foi dito
no início dos anos de noventa, “afinaram” o
Estado. Como sabemos, este emagrecimento não
constituiu em uma diminuição da burocracia,
senão na venda do mercado – mais ou menos
aberto – de muitas empresas e serviços do Estado.
Junto com a venda de instituições foram áreas
estratégicas e se perdeu toda a responsabilidade
pública sobre esses temas. Neste contexto, a
educação recebeu sua parte de privatização.
De tudo o que falei até agora, quero
destacar dois aspectos:
Primeiro, toda diminuição do âmbito
público é uma perda de soberania dos Estados (e
soberania foi o tema que primeiro apareceu
teórica e historicamente em relação ao público).
Mas que o público não é algo imutável e que só
existe no Estado. Há formas coletivas de resgate e
construção daquilo que é público. Atualmente não
se pode nem se deve pensar formas autoritárias. A
participação e a democracia são indispensáveis na
construção do público, ainda que por si só não
sejam suficientes. Reitero, a privatização não é o
fato de que companhias privadas operem alguns
serviços ou programas. A privatização é,
essencialmente, o abandono do espaço público.
Um estado pode privatizar-se ainda assim não ter
vendido nada, devagar vai deixando de lado suas
responsabilidades públicas. Hoje sabemos,
citando Aníbal Quijano, que não se trata de mais
ou menos Estado, senão de melhor Estado.
Segundo, não é possível falar de direito a
educação (de todas as idades, não só de adultos)
sem pensar no direito público para a educação
pública. A questão educativa e o direito a
educação estão no centro do debate sobre o
público. O direito à educação não é somente o
problema de cobertura, é um assunto de
governabilidade.
Este conjunto de idéias serve de marco
para examinar, grosso modo, a situação da
educação de jovens e adultos na América Latina a
respeito de suas políticas públicas. Cabe dizer
que, não obstante a planetarização das
comunicações, a abertura comercial de algumas
fronteiras, e isso que chamam acriticamente
globalização, os Estados nacionais continuam
sendo sistemas bastante consolidados e funcionais
para se abrirem a isso.
O primeiro fato que se deve destacar é que
o direito à educação não tem um grau de
desenvolvimento muito diferente em cada país.
Ainda que todos o reconheçam, não há em todos
a mesma escala legislativa. Assim, em alguns está
presente em sua Constituição, em outros em leis
secundárias, etc.
Do mesmo modo, as instituições e
políticas públicas são diferentes de país a país. Há
quase 60 anos, quando o CREFAL foi fundado
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em Pátzcuaro, Michoacán, no México, existia
uma política dos organismos internacionais para
atender de maneira urgente a desvantagem
educativa em que se encontrava a região latino-
americana. Atualmente, já não é assim. Tanto os
países como as articulações dos organismos
internacionais modificaram-se; não podia haver
nenhuma política internacional (ainda bem que
não há um direito internacional neste âmbito)
uniforme ou que chegasse de cima. É preciso
conhecer bem as políticas de educação de cada
país, a fim de tentar modificá-las com as
iniciativas internacionais e pelas vias de
financiamento de programas.
É urgente compilar, organizar e
sistematizar uniformização sobre a EDJA no
âmbito das questões econômicas e construir
indicadores mais exatos no cumprimento do
direito à educação.
Seguindo algumas das conclusões
provisórias que emergem de uma pesquisa
patrocinada pelo CREFAL, sobre o estado da arte
da EDJA nos países da América Latina, parece
que temos quatro grandes conjuntos ou formas
(não quero dizer modelos) de integração das
políticas públicas de EDJA na América Latina.
O primeiro é o esquema no qual o governo
absorve as instituições e é o indutor das políticas
públicas, mas sem que cheguem a ser políticas de
Estado. É o caso do México. Uma instituição
sólida, muito grande, opera os principais
programas federais contra o analfabetismo e o
atraso escolar: o INEA. Porém, tem como
limitações uma concepção muito estreita da
EDJA, a centralização que não permite uma
participação efetiva em quase nenhum nível
institucional ou programático e uma enorme
dificuldade na gestão e operação de programas. O
esquema possui marcada preocupação pela
cobertura.
O segundo, do outro lado do espectro, é
um esquema de privatização da educação. Poderia
ser o caso do Chile. As grandes instituições são
melhores na avaliação e fiscalização, somente
oferecem linhas gerais e agentes diversos, muitos
deles do setor mercantil, operam os programas e
serviços. Não obstante, investiram quantidade
considerável de recursos em certos aspectos como
a reforma curricular e a avaliação de políticas. Tal
esquema possui marcada preocupação pela
eficiência.
Entre estes dois pólos há outros esquemas.
O terceiro é um esquema híbrido - no qual o
Estado e o governo assumem parte da educação
de adultos - que subcontrata ou dá concessão à
operação dos programas. Pode ser o caso da
Colômbia. Não recai no governo o financiamento
de toda a EDJA. Há uma marcada preocupação
assistencialista neste esquema.
O quarto esquema pode ser o do Brasil. O
governo financia a EDJA em esquemas
compartilhados, as políticas públicas e os planos
estabelecidos são agendados com participação da
sociedade, mas uma parte importante da operação
dos programas é realizada por agentes
governamentais. Há uma marcada preocupação
participativa.
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É provável que este seja o esquema de
mais êxito para as condições de países como o
Brasil - muito extensos, com grande população,
com economias dinâmicas e produtivas, uma
república federal muito heterogênea em seu
interior. Mas deve-se levar em conta que o Brasil
tem dez vezes mais Encontros Nacionais de EJA
e, antes disso, uma larga tradição de mobilização
civil pela EDJA.
A quinze dias da reunião preparatória para
a VI CONFINTEA no México, há poucos meses
para a realização da CONFINTEA aqui no Brasil,
a realização deste X Encontro Nacional de EJA se
reveste de um significado particular. Trata-se não
só de festejar, vocês brasileiros primeiro, como
também nós os demais latino-americanos, os anos
de esforço e os frutos alcançados. Trata-se
também de projetar para ao futuro o dinamismo e
os ensinamentos dos ENEJAs.
Notas
1. Conservei as siglas “EDJA” por duas
razões principais: por antecedência histórica do
termo; porque me parece mais próximo ao uso em
português que o atual “EPJA” (educação de
pessoas jovens e adultas). Por suposto, não tenho
nenhum inconveniente em fazer a adequação
necessária.
2. Em geral conservei o tom da oralidade
da exposição, porque assim foi pensada a
primeira versão. Portanto, qualquer citação
bibliográfica ou de textos acadêmicos.
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Conferência Regional da América Latina e do Caribesobre Alfabetização e Preparatória para a CONFINTEA VI
“Da alfabetização à aprendizagem ao longo da vida: desafios do século XXI”
Cidade do México (México), 10-13 de setembro de 2008
Documento Final:
COMPROMISSO RENOVADO PARA A APRENDIZAGEM AO LONGO DA VIDA
Proposta da América Latina e do Caribe
I. CONSIDERAÇÕES GERAIS
Da alfabetização à aprendizagem ao longo da vida é o grande desafio ao qual nos convoca esta Conferência Regional.
Em outras palavras, o desafio de passar de uma alfabetização inicial – que é como continua a ser entendida a alfabetização de pessoas jovens e adult as em muitos países da região – a uma visão e uma oferta educativa ampla que inclua o ensino, ao mesmo tempo em que reconheça e valide as aprendizagens realizadas pelas pessoas, não some nte na idade adulta, mas ao longo da vida1: na família, na comunidade, no trabalho, pelos meios de comunicação de massa, na participação social, no exercício da própria cidadania.
A educação é um direito fundamental, uma chave que permite o acesso aos direitos humanos básicos, tais como saúde, habitação, trabalho e par ticipação, entre outros, possibilitando assim o cumprimento das agendas globais2, regionais e locais de desenvolvimento.
Isto implica em reconhecer que estamos diante de um paradigma que concebe o ser humano como sujeito da educação, portador de saberes singulares e fundamentais, criador de cultura, protagonista da história, capaz de produzir as mudanças urgentes e necessárias para a construção de uma sociedade mais justa.
1 Nota do tradutor: o original utiliza a expressão “ao longo e ao largo da vida”, para designar aprendizagens que se realizam ao longo do tempo e em todos os âmb itos da vida social. Optou-se por empregar a expressão “ao longo da vida” porque a tradução lite ral ao português não agrega o significado pretendido. 2
Os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM) e da Educação para Todos (EPT), a Quinta Conferência Internacional de Educação de Adultos (C ONFINTEA V), a Década das Nações Unidas da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (DEDS), o Projeto Regional de Educação para a América Latina e o Caribe (PRELAC), o Plano Ibero-americano de Alfabetização e Educação Básica de Pessoas Jovens a Adultas (PIA), entre outros.
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Concepção que contempla não somente a educação form al, mas que incorpora e valoriza a educação não-formal e popular, e supera a visão ind ividualista da aprendizagem, ao propor uma construção social do conhecimento em comunidades de aprendizagem que propiciem o encontro intercultural, intergeracional e intersetorial e a proteção do meio ambiente.
Nessa perspectiva, a alfabetização é um ponto de partida necessário, mas não suficiente, para que cada sujeito do século XXI possa continuar e complementar suas aprendizagens ao longo da vida e exercer os seus direitos de cidadão.
A ESPECIFICIDADE E HETEROGENIEDADE DESTA REGIÃO
A América Latina e o Caribe constituem uma região com grandes especificidades e enormemente heterogênea, formada por 41 países e territórios, onde são faladas cerca de 600 línguas, com realidades muito diferentes em todos os sentidos, incluindo o educativo e especificamente o de educação de pessoas jovens e adultas (EPJA). Essa diversidade entre países e dentro de cada país exige cautela quanto às generalizações e um grande esforço de diversificação, elaboração e melhoramento de políticas e programas, adequando-os a contextos e grupos específicos, considerando entre outras diferenças, idade, gênero, raça, região, língua, cultura e pessoas com necessidades educativas especiais.
Esta é também a região mais desigual do mundo com 71 milhões de pessoas vivendo na indigência e cerca de 200 milhões de pobres. Exclus ão educativa e exclusão política, econômica e social são todas faces da mesma moeda. A EPJA situa -se exatamente nessa problemática, entendendo que a educação é uma ferramenta fundamental para lutar contra a pobreza e a exclusão social, mas considerando também a impossibilidade de resolver tal problemática exclusivamente do campo educativo, na ausência de m udanças estruturais e sem a convergência de outras políticas.
Os diversos contextos socioeconômicos, étnicos e culturais da região estabelecem cada vez mais obstáculos à alfabetização e outras formas de apren dizagens entre as pessoas jovens e adultas. Entre esses fatores figuram o desemprego, a exclusão social, as migrações, a violência, as disparidades entre homens e mulheres, todos esses vinculados, em grande parte à pobreza estrutural. Esta situação tem sido agravada, nos úl timos tempos, pela crise alimentar, pela crise energética e pelas mudanças climáticas.
AVANÇOS
Nos últimos anos, a EPJA ganhou impulso renovado na região, após um período de recesso nos anos 90, tanto por parte dos governos como dos organismos internacionais. Na maioria dos países ocorreram avanços significativos no plano legal e das políticas, em termos do reconhecimento do direito à educação, à diversidade lingüística e cultural destas nações. Em particular, têm-se retomado as agendas nacionais e internacionais, os planos, programas e campanhas de alfabetização. Foram institucionalizadas, deste modo, ofertas para completar e certificar os estudos de educação primária e secund ária para as pessoas jovens e adultas, em alguns casos, vinculados a programas de capacitação e formação para o trabalho.
A oferta educativa não-formal ampliou-se considerav elmente, abrangendo tópicos muito diversos, vinculados a direitos, cidadania, saúde, violência intrafamiliar, HIV/Aids, proteção do meio ambiente, desenvolvimento local, economia social e solidária etc. Em alguns países houve avanços na eqüidade de gênero. Também começou a ter visibilidade a atenção a grupos especiais, como imigrantes e pessoas privadas de liberdade. Os meios audiovisuais e o uso das TICs penetraram no campo da EPJA, em alguns casos a partir de investimentos e intervenções governamentais e de cooperação internacional.
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Em alguns poucos países, a EPJA obteve avanços importantes em termos de construção de sistemas de informação, documentação, monitoramento e avaliação dos programas. Também houve, nos últimos anos, estímulo à pesquisa tanto nacional como regional. A cooperação Sul-Sul iniciou-se em muitos desses contextos, com iniciativas regionais e sub-regionais de diversas naturezas.
DESAFIOS
Não obstante, cada um dos avanços apresenta ao mesmo tempo, novos e velhos desafios. Continua sendo grande a distância entre o previsto nas leis e políticas e o efetivamente realizado, colocando-se a necessidade de uma construção mais participativa das políticas e de sua vigilância social por parte da cidadania, em geral, e por parte, especificamente, dos sujeitos da EPJA.
A cobertura dos programas governamentais e não-gove rnamentais continua sendo, em geral, limitada para as necessidades e a demanda efetiva, e continua marginalizando as populações rurais, indígenas e afrodescendentes3 , migrantes, pessoas com necessidades educativas especiais e pessoas privadas de liberdade mantendo ou aumentando a exclusão, em vez de reduzi-la.
A estratégia de integrar pessoas jovens e adultas em uma mesma categoria, não pode deixar perder de vista a especificidade e os desafios de cada grupo etário, considerando que os jovens são um grupo majoritário na região. Entretanto, a oferta educativa para certos segmentos por idade vem sendo priorizada, de maneira geral até os 35 ou 40 anos, deixando de fora a população de mais idade e negando, assim, seu direito à educação, e contrariando a própria adoção do paradigma da aprendizagem ao longo da vida.
A diversificação e descentralização da oferta educativa requerem coordenação e articulação entre os diferentes atores: governos nacionais e locais, sociedade civil, sindicatos, igrejas, empresa privada, organismos internacionais, entre outros.
A igualdade de gênero em vários países surge como u ma necessidade, que afeta particularmente as mulheres de populações indígenas e os meninos e homens do Caribe anglófono, desde a educação inicial até a universitária, e também para o campo da EPJA, exigindo políticas e estratégias de ação positiva.
Falta aproveitar melhor, com maior sensibilidade e com espírito comunitário, as novas tecnologias para fins educativos, e aprender lições práticas pr ovenientes das experiências dos países que têm desenvolvido iniciativas pioneiras neste terreno. Também é preciso avançar em termos de monitoramento e avaliação, especialmente na avaliação das aprendizagens, assim como divulgar mais e aproveitar melhor os resultados de pesquisa já existentes, tanto para alimentar a política como para melhorar a prática.
Permanecem como problemas pendentes, entre outros: o sub-financiamento crônico da educação de pessoas jovens e adultas, sua grande vulnerabilidade em termos de participação, institucionalização e continuidade de políticas e programas.
Também, é preciso prestar especial atenção à formação de educadores e educadoras, à pesquisa para a EPJA, em um marco pedagógico-didático que permita atender os contextos e a especificidade da área, apoiando-se para isso nas u niversidades.
3 Especialmente na América Latina
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Do ponto de vista de sua coerência com a eqüidade, é necessário reverter as tendências atuais, dando prioridade e atenção com qualidade e pertinên cia às áreas, aos setores e grupos em desvantagem, como são nesta região as populações ru rais, migrantes, indígenas, afrodescendentes e pessoas privadas de liberdade e com necessidades educativas especiais.
II. ESTRATÉGIAS E RECOMENDAÇÕES
Reconhecer que a realização plena do direito humano à educação de pessoas jovens e adultas está condicionada à implementação de políticas de s uperação das profundas desigualdades econômicas e sociais dos países e da região, torna-se imperativo em matéria de:
POLÍTICAS
1. Reconhecer a EPJA como um direito humano e cidadão que implica maior compromisso e vontade política dos governos nacionais e locais, na criação e fortalecimento de ofertas de aprendizagens de qualidade ao longo da vida, assegurando que a EPJA desenvolva políticas orientadas para o reconhecimento dos direitos à diversidade cultural, lingüística, racial, étnica, de gênero, e inclua programas que s e articulem com a formação para o trabalho digno, a cidadania ativa (DDHH) e a paz, de maneira a fortalecer e promover o empoderamento das comunidades.
2. Promover políticas e legislação que integrem a EPJA nos sistemas de educação pública e garantir sua aplicação, estimulando mudanças nas estruturas que as tornem mais flexíveis, promovam a adequação das normas com as metas e desafios, com a criação de observatórios cidadãos de acompanhamento das políticas e uso dos recursos.
3. Construir mecanismos de coordenação em nível nacional, que ajudem a estabelecer uma política integral para promover um trabalho intersetorial e interinstitucional, que articule as ações do Estado com a sociedade civil (movimentos sociais organizados, igrejas, sindicatos, empresários, entre outros), e possibili te uma abordagem holística, assim como o acompanhamento e o controle social.
4. Continuar buscando enfoques que fortaleçam e garantam a aprendizagem ao longo da vida, que incluam a alfabetização e a educação bási ca; o fomento à leitura e à cultura escrita para a criação de ambientes letrados, como diferentes ferramentas para a superação da desigualdade e da pobreza na região, e de construção de alternativas de desenvolvimento. Nesse sentido, a valorização da educação popular e não-formal é fundamental.
5. Elaborar políticas de formação inicial e continuada de educadores de pessoas jovens e adultas, com a participação das universidades, dos sistemas de ensino e dos movimentos sociais, para elevar a qualidade dos processos educativos e assegurar o melhoramento das condições laborais e profissionais dos educadores e funcionários.
FINANCIAMENTO
6. Recomendar percentuais mais significativos para os orçamentos nacionais de educação – pelo menos 6% do PIB – e assegurar nos mesmos recursos específicos para a EPJA – pelo menos 3% do orçamento educativo – que permitam ser executados com transparência, eficácia e eficiência.
7. Assegurar recursos intersetoriais – nacionais e internacionais de origem pública e privada – para planos, programas e projetos da EPJA, com perspectiva de gênero e reconhecimento da diversidade, que possibilitem o desenvolvimento de políticas de ação positiva e o financiamento de estudos que demonstrem o custo social e econômico de manter amplos setores da população com baixos níveis educativos.
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FERRAMENTAS
8. Desenvolver políticas de pesquisa e sistematização de experiências educativas, promover a divulgação do conhecimento, de documentação e circulação das práticas relevantes da EPJA. Fortalecer as redes latino-americanas e caribenhas de pesquisa em EPJA.
9. Desenvolver um sistema de avaliação, informação, registro e monitoramento com parâmetros internacionais, que possibilitem a formu lação de políticas a partir da avaliação dos processos, sistemas e métodos, que assegurem a certificação, validação e homologação dos conhecimentos e habilidades.
10. Promover de forma intersetorial e interinstitucional o desenho e a elaboração de material escrito na língua materna que reflita a diversidade cultural dos povos.
INCLUSÃO
11. Desenhar e implementar políticas educativas que favoreçam a inclusão, com eqüidade de gênero e qualidade que contemplem, com enfoque inte rcultural, as diferentes especificidades de todos os grupos populacionais dos países da região: indígenas, afrodescendentes, migrantes, populações rurais, pessoas privadas de liberdade e pessoas com necessidades educativas especiais.
PARTICIPAÇÃO
12. Fomentar maior participação, em especial dos sujeitos da EPJA, e cooperação entre a sociedade civil, os setores privados e os diferentes órgãos do Estado, mediante a promoção e fortalecimento da modalidade da cooperação horizontal entre os países, e reforçar a cooperação internacional a favor da EPJA.
13. Propor que a UNESCO assuma papel relevante e central para a garantia do direito à educação e, em particular, coordenar as metas estabelecidas nas conferências internacionais e monitorar seus resultados.
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Desejos e desafios de pessoas da terceira idade
no processo de escolarização1
Isamara Grazielle Martins Coura2
Resumo: O artigo é um recorte feito em relação aos
resultados de uma pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da
UFMG, objetivando investigar que expectativas e
motivações que levam as pessoas da terceira idade a
retornar às salas de aula. Através dos relatos dos educandos
percebeu-se que estudar, na maioria das vezes, fazia parte
de um sonho, mas que concretizar este desejo, exigia
contornar desafios. Percebeu-se ainda que o ato de
escolarizar-se promove melhorias na qualidade de vida
destes sujeitos.
Palavras-Chave: Terceira Idade – Educação de Jovens e
Adultos – desejos e desafios frente à escolarização
Introduzindo o tema
O presente trabalho trata-se de alguns
dados obtidos através de uma pesquisa de
mestrado intitulada A Terceira Idade na
Educação de Jovens e Adultos: Expectativas e
Motivações. A referida investigação de caráter
qualitativo, que para ser realizada teve como
critérios para escolha dos sujeitos pesquisados a
idade – ter mais de 60 anos e estar em diferentes
tempos de escolarização na Educação de Jovens e
Adultos (EJA). Sendo assim, a pesquisa foi
1 Este artigo é uma versão do trabalho apresentado e publicado nos anais da 31ª Reunião anual da ANPED realizada em outubro de 2008. 2 Graduada em História pela UFMG, mestre em Educação pela UFMG e professora da Faculdade Pitágoras.
realizada com sete educandos3, sendo três
homens e quatro mulheres, com idades entre 60 e
81 anos no período da realização das entrevistas.
Dentre estes, dois já se encontravam no Projeto
de Ensino Médio de Jovens e Adultos (PEMJA),
e os demais freqüentavam diferentes períodos do
curso no Projeto de Ensino Fundamental de
Jovens e Adultos - Segundo Segmento (PROEF
II), ambos os projetos fazem parte do programa
de educação básica de jovens e adultos da
UFMG.
Através dos relatos dos educandos, foi
possível perceber os desafios encontrados e os
desejos existentes em seu cotidiano para
continuarem seu processo de escolarização nesta
etapa da vida. Ao contarem suas trajetórias,
relatando os sonhos, as expectativas, os
obstáculos e as alegrias vividas neste retorno à
vida escolar, foi possível perceber o que a escola
representa para esses sujeitos e ainda, apontar
algumas melhorias na qualidade de vida dessas
pessoas a partir da volta aos estudos.
Na terceira idade o momento de estudar
Os sujeitos pesquisados apresentam
histórias similares. Vieram de famílias humildes e
numerosas, em que trabalhar para “ajudar em
casa” era uma necessidade vivenciada desde
muito jovens. Soma-se a este fato a falta de
escolas públicas para que pudessem estudar
quando se encontravam na chamada “idade
regular”. Sendo assim, apesar do desejo de
escolarizar-se ter perpassado toda a vida dessas
3 Os nomes aqui apresentados são todos fictícios.
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pessoas, este só pode ser concretizado ao
chegarem à terceira idade.
Elvira afirma que, com a morte do pai, ela
e os irmãos tiveram que trabalhar. Já Perpétua
conta que aos quatorze anos trabalhava em uma
fábrica de tecidos em Itabirito. A vida de
trabalho para Isabel e seus irmãos também
começou cedo, uma vez que os pais adoeceram e
ficaram inválidos tornando-se, assim, o trabalho
dos filhos fundamental para a manutenção de
uma renda familiar. Claudina, apesar de em seu
relato não dizer ter “saído para trabalhar”, e
assim, auxiliar no sustento da casa, conta que, por
ser a única menina de um total de seis irmãos, era
quem ajudava a mãe nas tarefas domésticas.
Para os homens a questão do trabalho
também se mostrou presente muito cedo. Ivan
passou por dificuldades financeiras, era órfão de
pai e mãe e vivia com seus irmãos, tendo todos
que trabalhar para prover seu próprio sustento.
Quanto à falta dos pais em relação à interrupção
de sua escolarização enquanto criança, ele não
aponta apenas a questão do trabalho como único
responsável, mas afirma também que faltou quem
lhe orientasse sobre a importância de se estudar
naquela época: Eu não tinha quem me orientasse,
né? Era órfão de pai e mãe e a gente vivia com os
irmãos com muita dificuldade, a gente tinha
mesmo era que trabalhar.
Raimundo, em sua entrevista, relata que
foi criado por uma madrinha após a morte de sua
mãe e que, por serem pessoas criadas na roça,
não só não era incentivado por ela a estudar como
também era criticado quando demonstrava seu
interesse em freqüentar as salas de aula.
Comumente sua vontade de sair da roça e ir para
cidade em busca de uma escola era interpretada
por sua madrinha como uma estratégia para fugir
do trabalho.
Além da falta de escolas públicas gratuitas
para que pudessem estudar, e de terem que
enfrentar as jornadas de trabalho precocemente, a
relação da família com o significado do saber
escolar foi outro fator relevante destacado por
muitos dos entrevistados que os levaram a deixar
ou ficar longe da escola.
O desejo pela escolarização esteve
presente durante a vida desses sujeitos desde a
infância, quando não tiveram a oportunidade de
concluir seus estudos em “idade regular”, até
chegarem à Terceira Idade. A privação que
sofreram, seja por terem que sair para trabalhar
ainda muito jovens, ou por falta de escolas
públicas, levou-os a uma condição de excluídos.
Sobre a exclusão Martins (1997) define:
A exclusão é apenas um momento da percepção que cada um e todos podem ter daquilo que concretamente se traduz em privação: privação de emprego, privação de bem-estar, privação de direito, privação de liberdade, privação de esperança. (MARTINS,1997, p. 18, grifos do autor)
A exclusão, primeiramente de um direito,
levou esses sujeitos a serem excluídos em
diversas outras situações vivenciadas como, por
exemplo, de uma melhor oportunidade de
emprego, de uma maior e mais efetiva
participação social, de conhecer de forma mais
ampla seus direitos como cidadãos e lutar por
eles. Foram privados até mesmo de, muitas vezes,
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poder sonhar com dias melhores e de usufruir de
uma melhor qualidade de vida.
Com o passar do tempo, o desejo pela
escolarização se mantinha e com ele os
enfrentamentos do cotidiano que o tornava
distante. Cresceram, casaram e as obrigações com
o trabalho e a família continuavam. O desejo de
completar sua escolarização só pôde ser realizado
na Terceira Idade. Vários fatores contribuíram
para que isto fosse possível nesta fase da vida.
Quanto à questão econômica essas
pessoas já não pagam passagens para freqüentar
uma escola. No que se refere à questão política e
à oferta de vagas, têm seu direito à educação
garantido por leis federais. A Terceira Idade vem
lhes permitindo buscar a escolarização, uma vez
que a maioria desses sujeitos já se encontra
aposentada e suas famílias já “estão criadas”. É
isso o que Elvira aponta: eu resolvi voltar a
estudar em 2002. Porque os meninos já não
precisavam tanto de mim, meus netos, né. E eu
tinha parte da tarde disponível.
Entre receios e sonhos
Apesar dos fatores apontados acima, os
quais propiciam estes sujeitos a freqüentar uma
escola na Terceira Idade, há também, por estar
nesta fase da vida, um certo receio do que está
por vir. Ao envelhecerem, muitas pessoas
chegam a acreditar que realizar seus sonhos não é
mais possível, que o tempo que têm pela frente
não seria suficiente para concretizar seus desejos.
A questão da idade foi, sem dúvida, uma
grande fonte de preocupação ao pensarem em
voltar a estudar. Perpétua, por exemplo, ao ser
questionada sobre como viu a possibilidade de
voltar a estudar, conta que, como primeira reação,
acreditou que poderia nem ser aceita na escola
devido ao preconceito contra os idosos: Mas eu já
estou velha, eles não vão me aceitar, e mesmo
depois de chegar à escola a preocupação com a
idade ainda existia:
Eu achava, no inicio, eu achava assim: Nossa! Eu no meio dessa turma toda, eu sou bem mais velha. Tinha hora que eu ficava meia sem saber, falei: “Gente, que bobagem minha, eu sou nova igual eles. Pronto! Tirei aquele negócio de falar que sou mais velha do que eles, sou igual eles. (Perpétua)
Perpétua demonstra em seu relato mais do
que a preocupação quanto a sua capacidade de
realizar as atividades. Estando em boas condições
físicas e mentais questionou a sua ida à escola por
causa do preconceito social contra os idosos. Não
se questionou se estaria apta a freqüentar o curso
por ter que aprender coisas novas ou por ter que
se locomover todos os dias até a escola à noite.
Não eram questões referentes à suas limitações
que a preocupavam, mas se seria aceita, como
idosa, em um local “destinado” socialmente aos
jovens.
A fala de Perpétua leva-nos a refletir
sobre a necessidade de se repensar qual é o lugar
do idoso na sociedade em que vivemos. Uma
sociedade que vê não apenas nos dados
estatísticos, mas também no dia a dia, nas ruas,
praças, bancos e nos demais locais públicos o
aumento da população idosa e, entretanto, ainda
os trata com certo preconceito, limitando suas
possibilidades de viver bem. É verdade que
políticas públicas que assegurem direitos aos
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idosos vêm sendo criadas, como é o caso do
Estatuto do Idoso de 2003. Mas não basta apenas
que sejam criadas, é necessário que as garantias
estabelecidas nas leis sejam cumpridas.
Mais do que isso, é fundamental uma
mudança de pensamento e de postura de todos
nós em relação aos papéis sociais dos idosos. Não
basta garantir a eles acesso a lugares como
teatros, cinemas, transportes gratuitos e educação.
É importante garantir também respeito para que
eles possam usufruir de tais benefícios. As
pessoas, de modo geral, precisam perceber essas
pessoas como seres sociais que são. Sujeitos que
precisam de lazer, de cultura e de se relacionar
socialmente como qualquer outro ser humano em
qualquer outra etapa da vida. Precisam perceber
que as pessoas idosas fazem e vão, cada vez mais,
fazer parte da sociedade.
Mesmo após terem passado por diversos
desafios, os sujeitos pesquisados souberam
contorná-los para chegar a uma escola. O que
demonstram é que têm consciência de suas
idades, dos seus limites, mas que pretendem
aproveitar cada ano de vida realizando seus
projetos e, assim, buscar uma velhice mais feliz.
Isabel, em seu relato, retrata bem esse momento:
Mas sempre lá dentro de mim eu tinha um sonho de estudar, sabe? E esse sonho foi passando, né? Até que um dia eu acreditei que tinha morrido esse sonho, mas só que adormece. E quando eu me vi com setenta anos já e pensei assim: Puxa vida! Eu pensava que já estava muito velha. Engraçado, eu já estou com setenta anos, num estudei, num morri e o que eu estou fazendo aqui? Vou estudar. Voltei a estudar. (Isabel)
Percebe-se, através da fala de Isabel que,
estar na Terceira Idade, não tendo mais que
cumprir um horário no emprego ou se preocupar
com a criação dos filhos, podendo contar com
transporte gratuito para se chegar a uma escola de
EJA, também gratuita, não é o suficiente para
levar essas pessoas a freqüentarem um banco
escolar. É preciso um elemento mais forte, que
venha do interior de cada uma delas. É preciso
sonhar, desejar esta escolarização. Em relação à
importância dos sonhos Freire (2001) afirma:
Sonhar não é apenas um ato político necessário, mas também uma boa conotação da forma histórico-social de estar no mundo de mulheres e homens. Faz parte da natureza humana que, dentro da história, se acha em permanente processo de tornar-se... não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança... (FREIRE, 2001, p. 13)
Sonhar é, portanto, um importante
constitutivo da natureza humana que nos
impulsiona a viver. Para todos os seres humanos,
em qualquer etapa da vida em que se encontrem,
a motivação e os sonhos são necessários. Para as
pessoas da Terceira Idade não é diferente, muito
pelo contrário, é um fator importante para
garantir a vontade de viver. Foi a partir dos
sonhos, nutridos durante toda uma vida, que esses
sujeitos buscaram a escolarização, tendo nela um
objetivo de vida.
A escola significava para cada um, uma
forma de completar algo que julgavam deficitário
em suas vidas. A maior parte dos entrevistados
tem como expectativa inicial de sua volta à escola
o aprendizado de conteúdos próprios de uma
instituição escolar, como é o caso de Elvira: Eu
tinha essa meta de vida. Eu quero aprender,
apesar de ter dificuldades, eu quero aprender, eu
vou aprender. Já Antônio desejava ter
explicações sobre as matérias através dos
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professores, uma vez que lia livros didáticos em
casa, mas nem sempre entendia o que estava
lendo. Também foi o desejo pelo saber escolar
que levou Perpétua à escola: Oh, eu acho que é
porque eu queria tanto, tanto saber, sabe?
Já Claudina aponta outro elemento
motivador para que fosse a busca de uma escola.
Ela conta que já fazia parte das atividades de um
grupo de Terceira Idade da Faculdade de
Educação Física da UFMG, mas que ao ficar
sabendo do PROEF II, através de sua filha, viu
uma nova possibilidade de ocupar seu tempo e
exercitar sua mente. Ela afirma:
Então fui para o projeto porque ficar em casa fazendo o quê? Ficar, por exemplo, numa cadeira de balanço, aí fazendo um crochê, fazendo um tricô, cochilando, lendo um livro. Às vezes lendo, cochilando por cima do livro, né? Eu acho que eu tenho que fazer alguma coisa. Então menina, foi a melhor coisa do mundo que me aconteceu foi isso: voltar a estudar! Quando eu pensei em voltar a estudar, foi para não ficar parada porque eu acho que um carro parado enferruja, uma máquina parada enferruja. (Claudina)
As falas desses educandos sobre os
motivos que os levaram a voltar a estudar vão ao
encontro da afirmação de Dayrell (1996) sobre a
presença dos alunos jovens na escola (...)
afirmamos que todos os alunos têm, de uma
forma ou de outra, uma razão para estar na
escola, e elaboram isto de uma forma mais
ampla, ou mais restrita, no contexto de um plano
de futuro (DAYRELL, 1996, p.144). No entanto,
esse mesmo autor acredita que os projetos que
levaram essas pessoas a procurarem por uma
escolarização não são imutáveis ou permanentes:
Um outro aspecto do projeto é a sua dinamicidade, podendo ser reelaborado a cada momento. Um fator que interfere nesta dinamicidade é a faixa etária e o que ela
possibilita enquanto vivências. Essa variável remete ao amadurecimento psicológico, aos papéis socialmente construídos, ao imaginário sobre as fases da vida. (DAYRELL, 1996, p.144)
No caso da pesquisa aqui apresentada
pode-se confirmar que, de fato, os projetos
iniciais destes educandos, ao chegar à escola,
foram ampliados. Se chegaram à escola
desejando aprender, conhecer mais os conteúdos
escolares para “não morrer burro”, a o fato de
estarem na escola lhes proporcionou um
redimensionamento dos sonhos, levando-os a
acreditarem mais em si mesmos e a se permitirem
ousar mais nos seus desejos e projetos de vida na
Terceira Idade.
Muitos alunos, ao chegarem às salas de
aula de EJA, após um bom tempo fora da escola,
sentem-se inseguros. Imaginam que não terão
condições de acompanhar o aprendizado da
turma. Isso também ocorreu com os entrevistados
da pesquisa. Elvira, por exemplo, afirma que
tinha medo de não conseguir: Era um dos meus
sonhos, mas eu tinha medo de não conseguir.
No entanto, com o passar dos dias, foram
percebendo-se capazes e, a partir de então,
puderam ampliar suas metas em relação aos seus
estudos. Se as expectativas iniciais giravam em
torno de aprender e de ocupar um tempo ocioso,
agora as metas são de conclusão de ensino médio
e até mesmo de fazer uma faculdade. Santos
(2001) ao escrever sobre o desejo de continuidade
dos estudos dos educandos, em sua pesquisa
afirma:
Por outro lado, não se pode deixar de ressaltar que, provavelmente, o fato de obterem êxito, na vivência da experiência de escolarização tardia no CP (Centro
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Pedagógico), tenha atuado também como um forte motivador para que a continuidade dos estudos se transformasse em desejo e necessidade. (SANTOS, 2001, p. 228)
Os sonhos que alimentaram internamente
de ter uma profissão, no primeiro momento de
chegada à escola, não eram ao menos expostos.
Eram guardados somente para eles, pois os viam
distantes de serem realizados. Ao perceberem seu
desempenho no ensino fundamental, foram
acreditando mais que seria possível chegar à
concretização de seus ideais. No relato de Perpétua
pode-se notar que os objetivos educacionais vão se
ampliando. Após ter feito a viagem para a Europa
desejava ir para escola aprender mais. Agora já vê o
ensino médio como uma realidade e a faculdade
como uma possibilidade. Acredita que apenas
poderá ter como empecilho questões relacionadas
ao financeiro:
Eu vou para o ensino médio que é o PEMJA, né? E se eu tiver oportunidade, vou fazer pedagogia, sabe? Isso se eu conseguir lá na escola. Porque assim, condições financeiras de pagar eu tenho certeza que eu não tenho. (Perpétua)
Para Raimundo, a meta agora é concluir o
ensino médio. Acredita em si, mas revela ter na sua
idade um possível problema para concretizar este
objetivo:
... pelo menos a oitava série, o segundo grau eu quero fazer sim. Depois, terminando a oitava série, né, se Deus quiser, eu quero fazer o segundo. Agora, se Deus quiser, o ano que vem eu vou terminar a oitava, né? Por um lado, se eu não morrer muito depressa, né? Porque setenta anos você espera... igual o Raul Seixas, você fica de boca aberta esperando a morte chegar. (Raimundo)
A questão da idade não preocupou apenas
Raimundo. Claudina também se refere à sua
idade como um elemento que poderia limitar a
conclusão de seus estudos: Tem hora que eu fico
pensando assim: gente, vai ser com oitenta e três
anos que eu vou me formar. Será que eu chego
lá? Por mais que saiba que ter seus mais de
oitenta anos de vida poderia reduzir suas chances
de se formar, ela não parou. Tem consciência da
sua condição etária, mas não deixa de estudar por
isso:
Meu tempo está muito curto, porque eu se eu pudesse ter uma formação mais cedo seria melhor para mim. Por quê? Não é para eu chegar a lugar nenhum não. É para eu completar aquilo que eu sempre sonhei. Realizar aquilo que eu sempre sonhei que foi estudar, né?(...) Menina, eles me perguntam: “Dona Claudina, a senhora vai continuar?” Sabe o que eu falo? Ainda que esteja de bengalinha eu chego lá. Assim, eu falo porque eu tenho que dar um incentivo para os outros, né? (Claudina)
Em suas reflexões acerca da velhice
Bobbio (1997) afirma: enquanto o ritmo da vida
do velho fica cada vez mais lento, o tempo que
tem pela frente fica dia a dia mais curto
(BOBBIO,1997, p.49). Apesar da consciência de
ter seu tempo diminuído em função da idade,
estes sujeitos têm procurado viver suas vidas sem
deixar que tal fato se torne um empecilho na
realização de seus projetos. O que percebem é
que procuram trilhar seus caminhos, deixando
que o destino se encarregue de determinar se
atingirão ou não os objetivos almejados. É isto
que demonstra o relato abaixo:
Quando acabar o PEMJA? Aí vem o vestibular, né? Eu não sei... Nós estávamos até discutindo isso aqui. Eu gosto muito de geografia, sabe? Eu não tenho expectativa assim... perspectiva assim... vamos ver...eu estou estudando. Vamos ver até onde vai dar para ir. (Ivan)
A partir de suas expectativas iniciais eles
têm ampliado suas metas, gerando novos desejos,
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dando cada vez mais sentido a suas vidas,
proporcionando-lhes novas motivações para
continuar lutando por seus ideais. A atitude aqui
apresentada desses educandos vai ao encontro do
que afirma Simone de Beauvoir (1990) quando
esta diz que é necessário buscar objetivos que
dêem sentido à vida para que a velhice não se
torne um fardo.
No entanto, apesar da vida escolar estar
lhes oferecendo tais benefícios, continuar os
estudos, para eles, não é uma tarefa simples. É
necessário saber contornar diversos problemas
que vão surgindo ao vivenciarem a experiência
escolar que tanto desejaram.
No tópico seguinte trato das experiências
vividas no dia a dia da escola por esses
educandos, levando em consideração as alegrias e
as dificuldades apresentadas.
A realidade e os enfretamentos na volta à escola
O desejo pela escolarização, que tiveram
desde criança, hoje se torna uma realidade para
essas pessoas da terceira idade aqui apresentadas.
Enxergam como uma grande oportunidade o fato
de poderem freqüentar a escola, uma vez que
foram privados do acesso a uma instituição
escolar por muitos anos ao longo de suas vidas. É
isso o que revelam as palavras de Raimundo:
Eu nunca pensei assim... de ter essa chance de estudar principalmente na universidade, né? Porque eu sempre levava os filhos dos meus chefes pra fazer vestibular. Não é o meu caso, porque vestibular eu acho que não vou fazer nunca. Mas eu sempre falava assim: “Engraçado, eu nunca tive oportunidade de estudar assim”, mas hoje graças a Deus eu me sinto feliz de estar lá.
Porque eu não tive oportunidade, né? Então eu acho que o estudo é a melhor coisa. (Raimundo)
No entanto, ter acesso a uma escola
púbica para que possam concluir seus estudos não
é o suficiente para garantir que esses sujeitos
permaneçam nela. Ter o direito de freqüentar uma
escola pública e gratuita, de qualidade, é o
primeiro dentre outros fatores que podem
promover, efetivamente, a escolarização destes
educandos, podendo proporcionar-lhes uma
forma de sair do lugar de exclusão a que foram
pré-destinados por tantos anos. Sobre o direito
desses alunos em relação à educação escolar,
Giovanetti (2006) ressalta:
Este direito é aqui entendido não apenas como o do acesso das camadas populares à escola, mas também como propiciador de sua permanência em uma escola que proporcione um processo educativo marcado por sua inclusão efetiva; enfim, o direito a uma educação de qualidade, por parte daqueles excluídos. (GIOVANETTI, 2006, p. 246)
O cotidiano da população brasileira de
camada popular exige que tenham que viver
contornando obstáculos. No caso da Terceira
Idade, os valores pagos pelas aposentadorias são
defasados e, no entanto, em grande parte, são eles
que colaboram com o sustento e a organização
familiar. As dificuldades com a família e a parte
financeira somam-se à questão da saúde. Nesta
fase da vida, nem sempre esta se encontra em sua
melhor forma. Portanto, garantir o direito de
freqüentar uma escola é, para eles, apenas o
primeiro passo rumo à conclusão de seus estudos.
As escolhas e renúncias feitas a favor da
escolarização são muitas e os enfrentamentos
para que isso se concretize são diários.
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No que toca à família, freqüentar a escola
noturna acaba por restringir o tempo destinado ao
convívio familiar. Isabel, por exemplo, conta que
com a escola, o momento de encontro familiar
ocorre nos fins de semana:
E pretendo continuar estudar, sabe? Mas talvez eu estava pensando seriamente... em arrumar um curso a tarde.(...) quase não estou vendo meus filhos, eu quase não tenho tempo de ver meus filhos. E depois que eu perdi uma é que eu vi o quanto é importante a gente estar sempre junto. (Isabel)
A fala de Isabel retrata bem a afirmação
de Zago (2000, p.39): para permanecer na escola
são feitos grandes sacrifícios, pois ser estudante
não é um ofício que possa ser exercido sem ônus.
Além da questão da família, Isabel ainda se refere
a um outro desafio diário para chegar à escola: a
distância entre sua casa e o ponto de ônibus, para
ir à aula, lhe exige uma caminhada de dez
quarteirões. Entretanto, ela não reclama. Vê esse
desafio como uma forma de realizar um exercício
físico. Certamente é preciso uma força de vontade
muito grande para reverter essa distância
percorrida em algo que ela aponta como
agradável:
Eu moro aqui, eu atravesso essa cidade para ir para UFMG. Aí veio a questão: a distancia. Eu falei: “Ah, distância,?! Para mim não vai ter distância não”. Tem. Eu ando dez quarteirões a pé todos os dias. E esses dez quarteirões para mim é uma caminhada que eu faço. Estou unindo o útil ao agradável, né? (Isabel)
Outro que aponta dificuldades para viver
seu processo escolar é Raimundo. Ele conta que
sua memória não tem lhe auxiliado no
aprendizado. Mas que continua indo às aulas
também para melhorar esse aspecto: mas também
minha cabeça tem hora que não dá não, sabe? Às
vezes eu estou estudando um negócio hoje,
amanhã eu já esqueço. Mas o que me levou a
estudar é justamente para melhorar isso.
Além da memória, outro desafio que
Raimundo, assim como Antônio, tem que superar
para escolarizar-se é a oposição de sua esposa. A
falta de apoio dos cônjuges apareceu somente na
fala dos homens. Apenas Raimundo e Antônio
revelaram essa relação conflituosa advinda da
posição contrária das esposas ao fato de voltarem
a estudar.
No entanto, Antônio e Raimundo
encontram nos ciúmes de suas respectivas
esposas a explicação para tal oposição. As
esposas tentam desmotivá-los referindo-se à
idade deles. No entanto, a força de vontade de
estudar é maior e os dois acabam levando as
críticas com certo bom humor para assim
poderem, ao mesmo tempo, manter uma boa
relação em casa e continuar os estudos.
Os enfrentamentos cotidianos apontados
pelos sujeitos como necessários para que
continuem seus estudos são de ordens diversas.
Para concretizar a realização de seu curso cada
um deles tem que saber contornar as dificuldades.
É necessário fazer escolhas e renúncias usando,
sobretudo, de muita força de vontade.
No entanto, há também as condições que
contribuem para que estes sujeitos, apesar dos
desafios que têm que contornar, continuem a
buscar por esta escolarização. De acordo com o
que pude analisar, as grandes motivações que
levam esses sujeitos a continuarem a freqüentar a
escola, apesar de algumas condições adversas,
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encontram-se no fato da escola, hoje, estar
respondendo às suas expectativas. Isso pode ser
observado, por exemplo, quando destacam os
momentos preferidos na educação atual.
Os sujeitos entrevistados, ao falarem da
sua relação com a escola que atualmente
freqüentam, sempre ressaltam que raramente
faltam às aulas. Ainda que tenham que enfrentar
os desafios, ir à escola é tido por eles como uma
atividade prioritária. Até mesmo aqueles que
participam de atividades destinadas à Terceira
Idade, como exercícios físicos, como é o caso de
Claudina e Perpétua, afirmam que se um dia
tivessem que escolher entre as duas atividades
ficariam com a escola. Tais depoimentos
reforçam a idéia de que a escola vem
correspondendo às suas expectativas. A
afirmação de Carlos e Barreto (2005) aponta
nesta direção:
A disparidade entre a visão que o aluno tem do que seja a escola e uma educação que efetivamente sirva esse aluno pode gerar conflito. Não são incomuns casos até de desistência do curso. Não encontrando uma escola que corresponda às suas expectativas, o aluno se frustra e como não é uma criança que os pais levam obrigatoriamente à escola, acaba abandonando o curso. (CARLOS e BARRETO, 2005, p. 67)
Assim, levando-se em consideração que
os alunos que chegam à escola têm previamente
uma idéia do que encontrariam lá, através dos
momentos relatados por eles como os preferidos,
pode-se perceber se a escola que vêm
freqüentando corresponde ao que desejavam
encontrar. Cada educando, a partir de sua
vivência até chegar à escola, vai escolher um
determinado momento ou atividade que considera
como o que mais gosta ou que considera o
importante para sua vida. Sobre este aspecto
Maria da Conceição F. R. Fonseca (2005)
destaca:
Como grupo sociocultural, os alunos da EJA têm perspectivas e expectativas, demandas e contribuições, desafios e desejos próprios em relação à educação escolar. Em particular, nas interações que têm lugar, ocasião e estrutura oportunizada pelo contexto escolar e, mais do que isso, num contexto de retomada da vida escolar os sujeitos tendem a privilegiar os modos de relação com a escola que possam ser social e culturalmente compartilhados e, a partir desse marco sociocultural, valorizados. (FONSECA, 2005, p.325)
As expectativas iniciais da maioria dos
entrevistados giravam em torno da aprendizagem
de conteúdos considerados como próprios de uma
instituição escolar. As respostas, referentes ao
que destacam como o que mais gostam no seu
processo de escolarização, vão nessa direção.
Claudina, por exemplo, refere-se sempre às aulas
e conteúdos disciplinares, quando questionada
sobre o que mais gosta na escola:
Por exemplo, eu gosto muito de português. Não sei se desenvolvo bem o português, mas eu gosto muito de português, gosto de ciências, gosto das outras matérias. E a gente, a gente vibra muito com as notas, com as avaliações. Isso é muito bom! (Claudina)
A princípio, estes entrevistados pensaram
na escola apenas como um lugar para o
aprendizado de conteúdos. A pergunta se referia
apenas à palavra escola - Qual o momento na
escola que você mais gosta? Por quê?- não
tratava de forma mais direta sobre as aulas ou
qualquer outra atividade escolar como trabalho de
campo, festas ou o intervalo. No entanto, a maior
parte dos entrevistados referiu-se a momentos na
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escola como os tempos e espaços durante as
aulas.
Destacam o aprendizado da matemática e
do português. Ao se referirem às tais disciplinas,
dão a entender que percebem que dominar bem
estes conteúdos significa dominar bem o saber
escolar. Sobre isto Carlos e Barreto (2005)
afirmam:
Sabendo porque busca a escola, o adulto elege também seu conteúdo. Espera encontrar, lá, aulas de ler, escrever e falar bem. Além é claro das operações técnicas e aritméticas. Espera obter informações de um mundo distante do seu, marcado por nomenclaturas que ele considera próprias de quem sabe das coisas. (CARLOS e BARRETO, 2005, p. 63)
Dayrell (1996) destaca os diferentes
significados atribuídos pelos educandos ao seu
processo educativo e ressalta:
Sobre o significado da escola, as respostas são variadas: o lugar de encontrar e conviver com os amigos; o lugar onde se aprende a ser “educado”; o lugar onde se aumentam os conhecimentos; o lugar onde se tira um diploma e que possibilita passar em concursos. Diferentes significados para um mesmo território, certamente irão influir no comportamento dos alunos, no cotidiano escolar, bem como nas relações que vão privilegiar. (DAYRELL, 1996, p.144)
Assim como aponta Dayrell (1996), ainda
que esteja se referindo aos jovens, pode-se notar
que cada um dos entrevistados tem suas
atividades e momentos preferidos, dando um
significado para sua permanência no ambiente
escolar. No caso dos idosos, Isabel destaca os
trabalhos de campo, tidos por ela como passeios,
como os melhores momentos da escola. Destaca,
entre outros, a ida ao Museu de Artes e Ofícios e
a visita à cidade histórica de Sabará.
Ivan também declara como um dos
momentos importantes no seu processo de
escolarização a realização de atividades em
espaços fora da escola. Conta que foi a partir de
sua inserção na escola que passou a freqüentar
museus e teatros. Espaços que, mesmo morando
em Belo Horizonte desde sua infância, não sabia
que existiam e, provavelmente, não sabia nem da
possibilidade de alguém como ele, integrante de
uma classe popular, pudesse usufruir:
Vou em museu. Eu não ia em museu. Há quanto tempo que não ia a um museu?! Agora vou sempre no museu. Na praça da estação tem um museu muito bom, né? Eu nem sabia que tinha um museu lá na estação central. Não, não ia não. Outro dia nós fomos no teatro lá na Serra da Piedade. Você vê, é coisa que eu não freqüentava eu estou freqüentando agora. (Ivan)
A escola vem permitindo a estes
educandos ampliar seus horizontes, a conhecer e
freqüentar lugares que antes não faziam parte do
seu mundo. Sobre este fato, afirma Gómez (1997,
p.46): No podemos olvidar que los grupos
sociales más desfavorecidos probablemente sólo
en la escuela peuden encontrar el espacio para
vivir y disfrutar la riqueza de la cultura
intelectual. É exatamente isso que nos revela o
relato de Ivan. Participaram de espaços que eram
de improvável acesso a quem estava numa
condição de exclusão como a que viviam antes de
retornar aos estudos.
Para Ivan o que a escola tem de melhor é a
oportunidade de proporcionar o convívio entre
pessoas diferentes: Eu acho que é o convívio com
os professores, com as pessoas diferentes, né? É
outra família da gente. A gente forma outra
família. As relações sociais que tem estabelecido,
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a partir do convívio escolar, têm tanta
importância para Ivan que ele considera os
amigos da escola como parte de sua família. Vale
lembrar que Ivan não teve como intenção inicial
ir à escola para aprender determinados conteúdos,
como é o caso de alguns dos outros entrevistados.
A princípio, como já foi dito, foi para escola
apenas para acompanhar sua esposa e ocupar seu
tempo ocioso. Pode-se inferir que suas
expectativas vêm sendo correspondidas e, além
disso, vêm lhe proporcionando uma ampliação
em suas redes de amizade.
A partir da vivência de tempos e espaços
escolares estabelecendo novas relações sociais,
vários elementos da vida desses educandos têm se
modificado. Para Raimundo a convivência
estabelecida entre as pessoas através do ambiente
escolar fez com ele se tornasse uma pessoa menos
impulsiva. Consegue contornar melhor os
momentos de desavenças em casa ou em outro
ambiente social. A diversidade encontrada na
escola pode ter auxiliado nesse processo de
mudança de postura de Raimundo. Ao conviver
com pessoas diferentes, procurando respeitá-las,
foi reformulando suas atitudes ao lidar com
conflitos. Sobre esta mudança de comportamento
provocado pela escolarização, reflete Dayrell
(1996)
Vista por esse ângulo, a escola se torna um espaço de encontro entre iguais, possibilitando a convivência com a diferença, de uma forma qualitativamente distinta da família e, principalmente do trabalho. Possibilita lidar com a subjetividade, havendo oportunidade para os alunos falarem de si, trocarem idéias, sentimento. Potencialmente, permite a aprendizagem de viver em grupo, lidar com a diferença, com o conflito. (DAYRELL, 1996, p.144)
Além disso, apontam outros benefícios
trazidos pela volta à escola em suas vidas, como
por exemplo, uma percepção quanto à reativação
da memória. Afirmam ainda ter havido uma
maior integração entre os membros de suas
famílias. O fato de estarem na escola vem
aproximando-os mais de seus filhos, genros,
noras e netos, seja pelas caronas, por auxiliarem
na realização de pesquisas e atividades escolares
ou ainda por ter possibilitado aos educandos
maiores subsídios teóricos para participarem de
discussões acerca de assuntos atuais ampliando,
assim, o diálogo na família.
Poder ter acesso a novas informações e a
novos lugares, conhecer e conviver com outras
pessoas, ampliando seu campo de amizade, ter
liberdade e confiança na relação professor/aluno,
assim como aprimorar seus conhecimentos e
habilidades torna a frequência à escola uma coisa
prazerosa para os alunos. Além de terem suas
expectativas iniciais atendidas, estas vêm sendo
ampliadas após sua volta à escola. Surgem
momentos, espaços e atividades que vão lhes
dando novas alegrias e, conseqüentemente, os
motivando a estarem ali.
Os relatos analisados nessa pesquisa
demonstram que a educação vem lhes
promovendo uma ampliação de aprendizagens,
provocando mudanças em seus modos de ser, agir
e pensar. O retorno à escola tem aumentando seus
espaços de convívio social, intensificado as
relações familiares, além de promover o desejo
por aprender coisas novas e fazer novos cursos,
melhorando a auto-imagem desses sujeitos e,
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conseqüentemente lhes permitindo uma maior
inserção social. Potencializou não apenas suas
capacidades relativas ao aprendizado de
conteúdos curriculares, mas também seu
potencial de relacionar-se com o mundo e fazer
parte dele ativamente.
O que se percebe, portanto, é que os
resultados apresentados vêm refutar a idéia
lançada por Darcy Ribeiro, no encerramento do
Congresso Brasileiro organizado pelo Grupo de
Estudos e Trabalhos em Alfabetização (GETA),
no ano de 1990, ao falar: Deixem os velhinhos
morrerem em paz!, quando tratava da educação
de jovens e adultos. As pessoas da Terceira Idade
desejam ter suas vidas ativas e estão em
condições de usufruir de todos os benefícios
gerados pela educação. Além de se constituir em
um direito, a educação tem se mostrado
promotora de qualidade de vida. A educação vem
promovendo para estes sujeitos uma forma de se
manterem vivos não apenas biológica, mas
também socialmente.
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O Programa Nacional de Integração da
Educação Profissional com a Educação Básica
na modalidade de Educação de Jovens e
Adultos (PROEJA) no Centro Federal de
Educação Tecnológica de Goiás (CEFET-GO):
uma análise a partir da implantação do curso
técnico integrado em serviços de alimentação
Mad´Ana Desirée Ribeiro de Castro1
Jacqueline Maria Barbosa Vitoretti2
Resumo: O presente trabalho procura explicitar como se
deu o processo de implantação do Curso Técnico Integrado
em Serviços de Alimentação e as implicações dele
decorrentes para o CEFET-GO, na unidade de Goiânia,
buscando identificar as suas características e as
manifestações internas em relação ao PROEJA, no
momento da assunção do Programa pela Instituição. Para a
realização desta análise, serão considerados: o nível de
adesão das áreas profissionais ao Programa, a construção
histórica da implantação do curso e os primeiros desafios
colocados para a consolidação do Curso e do PROEJA.
1- O PROEJA no CEFET-GO: reacendendo conflitos e estabelecendo novas perspectivas
O Programa Nacional de Integração da
Educação Profissional com a Educação Básica na
modalidade de Educação de Jovens e Adultos
(PROEJA), finalmente instituído por meio do
1 Graduada em História (licenciatura), Especialista em História do Brasil Contemporâneo e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás. Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Goiás, é professora de História do PROEJA e professora efetiva do Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás - CEFET-GO. 2 Graduada em Química (licenciatura e bacharelado), possui Especialização em Ciências, Mestrado em Tecnologia, Educação Tecnológica pela Universidade Federal Tecnológica do Paraná. Coordenadora do Programa de Educação Profissional Integrada a Educação de Jovens e Adultos e Ações Inclusivas do Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás e professora de Química do PROEJA.
Decreto n. 5.840, de 13 de julho de 20063, teve
pouca repercussão no interior do Centro Federal
de Educação Tecnológica de Goiás. As
justificativas para não ofertar cursos destinados a
pessoas jovens e adultas, num primeiro momento,
voltaram-se para o fato de que seria muito difícil
assumir mais uma modalidade de ensino em
função da falta de professores, da oferta de
grande quantidade, níveis e modalidades de
cursos - ainda não consolidados -, da falta de
infra-estrutura e do interesse das áreas em
oferecer cursos de pós-graduação, como indica
pesquisa realizada para identificar o perfil dos
alunos da primeira turma do PROEJA no
CEFET-GO, na unidade de Goiânia (SILVA e
OLIVEIRA, 2007).
As alegações das áreas profissionais
podem ser compreendidas como desdobramentos
das transformações ocorridas na Educação
Profissional da Rede Federal, em especial a partir
de meados da década de 1990. Tais mudanças,
ancoradas numa política educacional baseada no
ideário de Estado Mínimo, resultaram na
ampliação do número de Centros Federais de
Educação Tecnológica em substituição às Escolas
Técnicas Federais, no fim da oferta dos cursos
técnicos integrados, na drástica redução da
contratação de servidores efetivos, na
desarticulação de um tipo de educação
3 Este Decreto é originário da Portaria 2.080, de 13 de junho de 2005, e do Decreto que a substituiu, o de n. 5.478, de 24 de junho de 2005. As modificações jurídicas se deram em função das impropriedades legais, da redefinição da abrangência do Programa, antes restrito à Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, bem como do Ensino Médio, e da sua ampliação para outros sistemas de ensino e outros níveis da Educação Básica.
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profissional que não correspondia mais às
demandas do mercado; o que forçou a construção
de itinerários formativos fundados nos princípios
da flexibilização e da fragmentação do processo
de aprendizagem, expressos na adoção de
arranjos curriculares no formato de módulos
(FILHO, 2003).
Percebe-se, contudo, que as justificativas
acabaram por se constituir em elemento
construtor de uma nova orientação para a
educação profissional no interior do CEFET-GO:
a de se firmar enquanto instituição de ensino
superior, ofertando cursos de graduação e pós-
graduação4. Nesta perspectiva, torna-se relevante
o fato de que desde 2004, quando já havia a
possibilidade legal de se voltar a ofertar cursos
técnicos integrados – historicamente definidores
da identidade da educação ofertada pela Rede
Federal -, somente em 2008 a Instituição passou a
oferecê-los de maneira mais significativa e, até o
momento, apenas o Curso Técnico Integrado em
Serviços de Alimentação destina-se a pessoas
jovens e adultas. Há ainda uma forte presença de
cursos técnicos seqüenciais, ofertados para quem
já terminou o Ensino Médio e uma tendência à
ampliação dos cursos de bacharelado (CEFET-
GO, 2007).
A configuração de um contexto interno
profundamente dividido em relação às
4 Foram criados, de uma única vez, 13 cursos superiores de tecnologia logo após a transformação da Escola Técnica Federal de Goiás em CEFET e promoveu-se a desarticulação dos cursos técnicos integrados, apesar das resistências internas ao Decreto 2.208, de 17 de abril de 1997. Entre 2.000 e 2.001 foram ofertados cursos superiores de graduação em Gestão Turística e Gestão Hoteleira, mantidos, em parte, por meio da cobrança de mensalidade e administrados pelo extinto Caixa Escolar.
concepções, princípios e funções da educação
profissional e tecnológica ressalta a vitória das
proposições políticas educacionais de âmbito
estrutural que procuraram desarticular uma
orientação educacional de cunho formativo,
assentada na integração entre conhecimentos
gerais e técnicos, e por isto, potencialmente
humanizadora e emancipatória - mesmo que de
significativa tradição histórica – assim como
rearticulá-la em outra perspectiva, cujo caráter se
fundamenta no produtivismo, na fragmentação e
no economicismo.
Mesmo o Decreto 5.154 de 23 de julho de
2004, decorrente de um outro contexto
governamental, que possibilitou a volta da oferta
da educação profissional integrada, não
conseguiu restabelecer, no interior da Instituição,
de maneira enfática, ações contrárias aos
princípios que atrelam a educação profissional e
tecnológica à lógica do mercado. Como afirma
Frigotto e Ciavatta:
A reforma da educação profissional, por ser de interesse direto do capital, talvez expresse esta regressão de forma mais emblemática, bem como um tecido cultural na área, no plano dirigente, mas não só, dominantemente conservador. Isso talvez possa nos ajudar a entender tanto a pouca produção acadêmica sobre escola unitária e politécnica quanto a acomodação silenciosa, especialmente da rede CEFET, após a revogação do Decreto 2.208/97 e a publicação do Decreto 5.154/04.(p. 49, 2006).
Tal lógica se justifica hoje por meio da
necessidade de formação trabalhadores para
ajudarem a enfrentar os desafios do crescimento
econômico5. A formação para o mercado
5 Ver, em específico, as orientações para a educação profissional e tecnológica contidas no Plano de
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transformou-se em formação para o crescimento
econômico, que pode indicar a reedição de uma
“outra” idéia - mais sedutora e fetichizada - da
relação entre capital e trabalho: a que se assenta
na ausência de conflitos e oposições estruturais
entre eles, pois ambos combinam-se na promoção
de um bem comum. Nesse sentido, a construção
da qualidade da educação deve ser um
compromisso de todos6: governos, empresários e
trabalhadores7.
Em outra perspectiva, o PROEJA tem
conseguido aglutinar pessoas e projetos, no
interior da Instituição, cujos interesses vinculam-
se à promoção da educação pública, gratuita, de
qualidade acadêmica e social. Estes princípios
podem ser concretizados, na educação
profissional e tecnológica, por meio da afirmação
de uma escola unitária e politécnica, de formação
unilateral, pelo desmonte de aparatos político-
administrativos e organizacionais facilitadores de
ações de cunho privatista, pela retomada de
discussões acerca do papel social da Instituição e
da necessidade da incorporação, nos seus
Desenvolvimento da Educação (PDE) (BRASIL, 2007a.). Disponível em www.mec.gov.br. 6 Ver livreto “Compromisso Todos pela Educação: passo-a-passo”. Disponível em www.mec.gov.br. 7 Neste aspecto, ainda há de se considerar a movimentação de grupos de empresários preocupados com a educação brasileira que, neste sentido, lançaram a agenda “Compromisso Todos pela Educação”, no dia 06 de setembro de 2006, no Museu do Ipiranga, em São Paulo. O documento apresenta cinco metas para a educação: a) Todas as crianças e jovens de 4 a 17 anos deverão estar na escola; b) Toda criança de 8 anos deverá saber ler e escrever; c) Todo aluno deverá aprender o que é apropriado para a sua série; d) Todos os alunos deverão concluir o ensino fundamental e médio; e) O investimento necessário na educação básica deverá estar garantido e bem gerido. (SAVIANNI, 2007)
espaços, de setores sociais historicamente
excluídos das benesses e direitos sociais.
O PROEJA, apesar da ainda fragilidade
em relação a sua constituição enquanto política
pública apresenta-se, hoje, no CEFET-GO, como
um espaço concebido muito em função das
contribuições teórico-práticas do campo da
Educação de Jovens e Adultos e da própria
natureza histórica desta modalidade de educação8,
de reflexão e proposição de novas formas de
relações entre os sujeitos da educação e de
estruturação do trabalho pedagógico. Afirma-se,
pois, que a inserção do Programa na Instituição
tem ajudado a retomar a educação técnica
integrada9, a aguçar os sentimentos e a
compreensão sobre as características dos sujeitos
da aprendizagem, a repensar as possibilidades de
promoção curricular dos educandos, a forma
como a Instituição tem estabelecido a sua
Organização Didática e o acesso aos cursos
ofertados, dentre outras questões. O Programa
tem colocado, ainda que timidamente, discussões
sobre outros princípios e maneiras de se pensar e
realizar processos educativos.
8 Para Arroyo (p. 36), “Um ponto importante na história da EJA é de ter sido um rico campo da inovação da teoria pedagógica. O Movimento da Educação Popular e Paulo Freire não se limitaram a repensar métodos de educação-alfabetização de jovens-adultos, mas recolocaram as bases e teorias da educação e da aprendizagem. A EJA tem sido um campo de interrogação do pensamento pedagógico. O que levou a essa interrogação? Perceber a especificidades das trajetórias dos jovens-adultos”. 9 Apesar do Decreto 5.840 de 13 de julho, que institui o PROEJA garantir outras formas de articulação entre a Educação Básica e Profissional, a defesa é que a Educação de Jovens e Adultos – que consta no Projeto Pedagógico do curso implantado - na sua aproximação com a Educação Profissional se dê de maneira integrada porque é ela que potencialmente pode conduzir a formação de trabalhadores na perspectiva de uma emancipação real, prática e final (Marx, s/d).
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A perspectiva de retomada de uma práxis
pedagógica da educação profissional
historicamente de qualidade – e não uma
educação pobre para os pobres -, a inserção de
outras possibilidades políticas e pedagógicas no
âmbito da educação realizada no CEFET-GO e o
envolvimento de servidores e alunos na
consolidação do PROEJA fundamentam-se nos
princípios orientadores do Programa, que
apontam para a inclusão da população que tem
pouco acesso à educação profissional, a inserção
orgânica da modalidade EJA integrada à
educação profissional nos sistemas educacionais
públicos, a ampliação do direito à educação
básica e a universalização do ensino médio, a
assunção do trabalho como princípio educativo, a
pesquisa como fundamento e para a compreensão
de que as identidades sociais e a formação do
sujeitos da aprendizagem devem ser consideradas
a partir da sua condição de trabalhador e das
questões relativas ao gênero, à etnia e à geração.
Ressalta-se, por fim, que esses princípios
pressupõem a adoção de uma concepção de
educação cuja finalidade seja a formação integral
do educando, que, assim pensada,
Contribui para a integração social do educando, o que compreende o mundo do trabalho sem resumir-se a ele, assim como compreende a continuidade de estudos. Em síntese, a oferta organizada se faz orientada a proporcionar a formação de cidadãos-profissionais capazes de compreender a realidade social, econômica, política, cultural e do mundo do trabalho, para nela inserir-se e atuar de forma ética e competente, técnica e politicamente, visando à transformação da sociedade em função dos interesses sociais e coletivos especialmente os da classe trabalhadora (BRASIL, 2007b, p.35).
Os documentos-base assinalam princípios
e concepções que indicam a necessidade de
superação da atual configuração “societal”
brasileira, profundamente desigual e excludente.
O desafio colocado é o de potencializar as
possibilidades colocadas pelo Programa em
relação à construção de uma educação libertadora
– como apontava Paulo Freire – ampliando-o de
maneira que possa garantir condições de
igualdade formativa para as pessoas jovens e
adultas, num momento em que a educação para o
mundo do trabalho tem se constituído em
fundamento para a inserção social.
Tendo como pressupostos o que acima se
expôs, é que vem se implementando no CEFET-
GO, a partir de 2006, a realização de uma série de
ações que buscam fortalecer a oferta da Educação
Básica integrada à Educação Profissional, na
modalidade de Educação de Jovens e Adultos. A
compreensão é a de que o seu fortalecimento não
se encerra em si mesmo, ou seja, a concepção, os
princípios e as finalidades do Programa,
concretizado por meio da implantação do Curso
Técnico em Serviços de Alimentação, acabam por
revelarem-se como universais, pois podem
referir-se também a outros sujeitos que, em maior
ou menor grau, de modos diversos e diferentes,
sofrem com os processos de exclusão social e
com os efeitos de uma formação incompleta, que
dificulta a ampliação da competência técnica e
política dos trabalhadores, condição importante
para a viabilização de movimentações sociais que
visem manter os direitos sociais conquistados
e/ou a serem conquistados.
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2. O processo e a implantação do Curso Técnico Integrado em Serviços de Alimentação: O PROEJA no CEFET-GO
Compreende-se que a explicitação da
construção histórica do curso é um processo que
visa registrar a efetivação de um projeto que se
fundamenta na perspectiva de afirmação dos
direitos sociais, particularmente relacionados à
educação, daqueles sujeitos que historicamente,
no Brasil, foram excluídos das benesses sociais -
uma revelação da história dos de “baixo”,
lembrando Thompson (1987). Visa também,
como desdobramento da própria natureza do
curso, detectar as dificuldades de criação de
possibilidades educativas que se colocam, pelo
menos num primeiro momento, na contramão dos
interesses e perspectivas dominantes dentro da
Instituição e da sociedade.
O Decreto 2.208, de abril de 1997,
enquanto vigorou, impossibilitou a oferta, aos
brasileiros e brasileiras, de uma educação com
orientação para superar a dualidade entre o
conhecimento escolar e o mundo do trabalho. Na
ebulição desse processo, diversas críticas foram
elaboradas em relação à formação de nível médio.
Várias foram as resistências e lutas pela
revogação do referido Decreto, pois entendia-se
que este não constituía o melhor caminho para a
formação dos trabalhadores desescolarizados e
desempregados do Brasil (FRIGOTTO,
CIAVATTA e RAMOS, 2005). Uma nova
regulamentação, o Decreto nº. 5.154/2004,
elaborado pelo atual governo, substituiu o
Decreto nº 2.208/1997. Por ele houve a
possibilidade de retomada do ensino técnico
integrado ao ensino médio. Na seqüência da
publicação de Decretos, seguiu-se o de nº.
5.478/2005 que regulou a criação do PROEJA
(Programa de Integração da Educação
Profissional Técnica de Nível Médio no Ensino
Médio, na Modalidade de Educação de Jovens e
Adultos). Houve uma ampliação do seu
atendimento para toda a Educação Básica, com o
Decreto nº. 5.840, de 13 de julho de 2006. A
partir daí, o PROEJA passou a ser chamado de
Programa Nacional de Integração da Educação de
Profissional com a Educação Básica, na
Modalidade de Educação de Jovens e Adultos.
Com a implantação do PROEJA, o Centro
Federal de Educação Tecnológica de Goiás –
CEFET-GO passou a oferecer um Curso Técnico
Integrado ao Ensino Médio profissionalizante
para Jovens e Adultos, um tipo de programa
ímpar no Brasil, que pode ajudar a reconfigurar10
a EJA.
A elaboração do projeto-pedagógico do
Curso Técnico Integrado em Serviços de
Alimentação na modalidade de EJA ocorreu
durante uma greve, num trabalho, em princípio
coletivo, que durou cerca de oito meses. Nesse
período, houve a participação de professoras e de
um professor da Coordenação de Turismo e
Hospitalidade, uma professora da Coordenação
de Português, uma da Coordenação de Química e
outra da Coordenação de Ciências Humanas.
10A Educação de Jovens e Adultos, no Brasil, historicamente é marcada por ações parciais, campanhas de alfabetização (MACHADO, 1997). O PROEJA aponta para a possibilidade de inserção da Educação Básica com Educação Profissional na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos nas redes de ensino nas três esferas: Municipal, Estadual e Federal.
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Participaram da implantação da nova proposta do
Curso educadores comprometidos com a
educação pública, gratuita e de qualidade para
todos.
Uma vez elaborado, o Projeto do Curso
foi enviado para o Conselho Diretor11 do Centro
Federal de Educação Tecnológica de Goiás.
Diversos percalços ocorreram para a
aprovação do Projeto do Curso. Foram três
reuniões com o Conselho Diretor, quando
ocorreram questionamentos em relação aos
autores citados na referência bibliográfica, à
quantidade insuficiente de pratos fundos, xícaras
e pires para ensinar os alunos a servir uma mesa,
à formação técnica do curso, e outros obstáculos.
Participaram destas reuniões as autoras do já
referido projeto.
A morosidade na aprovação do curso
implicou em um “desgaste” por parte do grupo
que elaborou o projeto, uma vez que houve
intensos debates para convencer os Conselheiros
sobre a importância da retomada do curso técnico
integrado12 e da necessidade de atender Jovens e
11 São membros do Conselho Diretor do CEFET-GO: Diretor-Geral (Presidente); Representante da Diretoria de Ensino; Representante da SETEC/MEC; Representante da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Goiás; Representante da Federação das Indústrias do Estado de Goiás; Representante da Federação do Comércio do Estado de Goiás; Representante do Corpo Docente; Representante do Corpo Técnico-administrativo; Representante do Corpo Discente e Representante dos Técnicos Egressos. 12 “O que é integrar? [...] No caso da formação integrada ou do ensino médio integrado ao ensino técnico, queremos que a educação geral se torne parte inseparável da educação profissional em todos os campos onde se dá a preparação para o trabalho: seja nos processos produtivos, seja nos processos educativos como a formação inicial, como o ensino técnico, tecnológico ou superior. Significa que buscamos enfocar o trabalho como princípio educativo, no sentido de superar a dicotomia trabalho manual/trabalho
Adultos que tiveram os seus estudos
interrompidos (existem, hoje, milhões de pessoas
com 15 anos ou mais, no Brasil, que não
cursaram a educação básica), realidade esta que
indica o grau de dificuldade que se tem no país de
se efetivarem os direitos sociais13. Isto significa,
no mínimo, que milhares de brasileiros e
brasileiras, com baixo nível de escolaridade,
enfrentam o mundo do trabalho despreparados
(BRASIL, 2007b).
Diante dos enfrentamentos ocorridos para
a implantação, dois fatos concorreram para a
baixa procura pelo curso: o processo seletivo para
o preenchimento das vagas desvinculado da
seleção de candidatos dos outros cursos e a falta
de tempo hábil para fazer a sua divulgação na
comunidade.
Os atropelos também se fizeram presentes
na elaboração do edital, pois, no geral, a entrada
dos alunos no CEFET - GO ocorre por vestibular.
Reivindicou-se que a seleção dos alunos do
PROEJA fosse por sorteio, com inscrição
gratuita. Entretanto, apesar dos questionamentos,
a inscrição foi realizada pela Internet, o que
acabou por dificultar o acesso dos candidatos ao
processo seletivo. Ocorreram problemas na hora intelectual, de incorporar a dimensão intelectual ao trabalho produtivo, de formar trabalhadores capazes de atuar como dirigentes e cidadãos”. (GRAMSCI, 1981, p.144 apud CIAVATTA, 2005, p. 84). 13 “Historicamente, nem sempre o direito à educação esteve resguardado, nem tem sido automática a assunção do direito à educação como dever de oferta pelo Estado, e em inúmeros momentos a sociedade civil assume um protagonismo social essencial na conquista de direitos. Apesar da formulação, o texto constitucional em 1988 não se prática. A forma como as políticas públicas conceituam a EJA e como vêm desenvolvendo ações como oferta pública merece atenção especialmente quando vinculam ações de educação ao utilitarismo do voto, ou defendem este último, sem precisar da primeira” (PAIVA, 2006, p.30).
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de efetivar a matrícula dos alunos, em função de
uma rígida exigência de documentos, sem levar
em consideração as particularidades de um
público que não se encontra inserido nem mesmo
nas estruturas burocráticas e formais da
sociedade, e também por não se compreenderem
as especificidades do processo seletivo desse
público, mesmo elas estando explicitadas no
primeiro edital de Seleção do PROEJA14.
Nesse processo, houve ainda mudança na
composição da Coordenação de Turismo e
Hospitalidade, o que implicou na desarticulação
do trabalho que já vinha sendo desenvolvido em
relação ao curso e ao PROEJA. A reivindicação
junto à Direção passou a ser a constituição de
uma Coordenação Pedagógica que pudesse
acompanhar o processo de implantação do curso,
buscando garantir as possibilidades de efetivação
dessa nova modalidade de educação. Somente
após um ano e depois de intensas movimentações
é que se conseguiu a criação de uma Coordenação
que ficasse responsável pelo Programa no âmbito
do CEFET-GO.
O Curso Técnico Integrado em Serviços
de Alimentação na Modalidade de Educação de
Jovens e Adultos, na Área de Turismo e
Hospitalidade, implantado em agosto de 2006,
ainda sob a vigência do Decreto nº 5.478/2005,
destina-se a estudantes que tenham concluído o
Ensino Fundamental e com idade de dezessete
anos ou mais. A duração do curso é de três anos 14 Nesse momento, alguns servidores não sabiam explicar o que era esse “tal PROEJA”, conforme pesquisa sobre o Perfil dos Alunos da Primeira Turma do Curso Técnico Integrado em Serviços de Alimentação do PROEJA (SILVA e OLIVEIRA, 2007).
e ele apresenta uma carga horária de 2.130 horas.
São ofertadas trinta vagas semestrais e o acesso,
para a primeira e segunda turma, deu-se por meio
de sorteio, definido em edital (CEFET-GO,
2006).
O enfoque nos serviços de alimentação
proposto teve sustentação em pesquisa de
demanda da sociedade por profissional
qualificado na área. Levantaram-se dados da
Associação Brasileira de Bares e Restaurantes
(ABRASEL), do Sindicato de Hotéis,
Restaurantes, Bares e Similares do Estado de
Goiás (SINDHORBS), da Associação Brasileira
da Indústria de Hotéis (ABIH) e da Agência
Goiana de Turismo (AGETUR). Os dados
apontaram para a oferta da Educação Profissional
integrada ao Ensino Médio, voltada para o
público de EJA, no setor de bares e restaurantes.
Após estudos sobre o horário de saída da
maioria dos trabalhadores em bares e
restaurantes, decidiu-se que as aulas seriam
oferecidas nos turnos vespertino e noturno, de
segunda a sexta-feira, em número de 05(cinco)
por dia, com duração de 45min (quarenta e
cinco), com intervalos de 15 (quinze) minutos, e
que seriam ministradas no horário de 16h30min
às 20h30min.
O técnico em serviços de alimentação
estará capacitado a trabalhar em todos os locais
onde são servidos, comercialmente ou não,
alimentos e bebidas, como bares, restaurantes,
night-clubs, danceterias, pizzarias, lanchonetes,
padarias, churrascarias, fast-foods, escolas, meios
de hospedagens, hospitais, residências, bem como
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a realizar trabalhos autônomos na área (CEFET-
GO, 2006).
Seguindo as orientações do Documento
Base (BRASIL, 2007b), os professores que se
dispuseram a elaborar o projeto de implantação
do curso optaram por formatá-lo a partir da
articulação integrada da Educação Básica de
Nível Médio com a Educação Profissional, com
matrícula única.
Dada às especificidades do Curso Técnico
Integrado em Serviços de Alimentação, tais como
seu público alvo, as orientações legais e o
convencimento de que é necessário; estruturar
uma trajetória formativa que estimule, de um
lado, o início de um rompimento do isolamento
das disciplinas e de uma aprendizagem centrada
numa visão de mundo fragmentada, e de outro,
buscar, por meio de conhecimentos das diversas
áreas, pensar, refletir e propor alternativas de
aprendizagem mais próximas da experiência dos
jovens e adultos; estabeleceram-se quatro eixos
temáticos como estratégia metodológica. Assim,
pensou-se numa matriz curricular a partir da
definição destes eixos: Trabalho, Cultura e
Alimentação; Conhecimento, Tecnologia e
Alimentação; Sujeito, Desenvolvimento e
Responsabilidade Sócio-ambiental e Serviços de
Alimentação e Mercado X Gestão e Alternativas
de Trabalho e Renda. Esta matriz curricular tem
como objetivo proporcionar um maior diálogo
entre as disciplinas e possibilitar uma formação
profissional que extrapole a aprendizagem do
saber fazer e que compreenda o mundo do
trabalho a partir das reflexões acerca das
condições de vida do trabalhador, associadas à
política e à cultura (CIAVATA, 2005).
Para a implantação dos cursos vinculados
ao PROEJA foram disponibilizados, pelo MEC,
R$ 1.100,00 (mil e cem reais) para cada vaga
aberta em edital, até o limite máximo de oitenta
vagas. O financiamento abrangia exclusivamente
a categoria de custeio, contemplando, assim,
reforma e reparos em infra-estrutura física e de
instalações, adequação de espaços físicos,
serviços de consultoria, elaboração e produção de
material pedagógico, capacitação de pessoal,
serviços técnicos especializados, aquisição de
material de consumo, e insumos para laboratórios
e unidades educativas de produção (BRASIL,
MEC/SETEC, 2005).
Avaliando os dois primeiros processos
seletivos que se deram por meio de sorteio, a não
matrícula de alunos que tiveram o direito à vaga,
a tentativa de chegar ao público de jovens e
adultos, e o perfil do egresso do curso, foi
realizada uma reunião com o coletivo de
professores e reformulou-se o processo seletivo.
Este passou a ser realizado em três etapas:
sorteio, palestra e entrevista. Processo que foi
conduzido pela Coordenação do Programa dos
Cursos Técnicos Integrados na Modalidade de
Educação de Jovens e Adultos, PROEJA/CEFET-
GO (CEFET-GO, 2007a). Ainda com
dificuldades para divulgação do curso, no terceiro
processo seletivo, em julho de 2007, o número de
candidatos não foi suficiente para completar a
turma. Isto implicou na realização de uma
chamada pública para sua formação. O processo
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se deu já dentro dos novos parâmetros de seleção.
Para cinco vagas, houve a inscrição de 120
candidatos. No processo seletivo de janeiro de
2008 foram 300 candidatos inscritos para 30
vagas, ou seja, 10 candidatos por vaga; resultado
do esforço coletivo de professores do PROEJA,
maior apoio do CEFET-GO, da participação dos
alunos e professoras na divulgação do Curso nas
reuniões do Fórum Goiano de Educação de
Jovens e Adultos (EJA) e em instâncias e núcleos
de pesquisa relacionados ao PROEJA.
Nos dias 27 e 28 de junho de 2007, duas
técnicas do SETEC fizeram um levantamento de
dados em relação ao curso do PROEJA no
CEFET-GO, unidade de Goiânia. Conversou-se
com a coordenadora do Programa, a diretora de
ensino, professores e estudantes do curso e
funcionários. O relatório desta visita apresentou
os seguintes problemas: divulgação do curso;
coordenação do curso; processo seletivo; horário
do curso; aprendizado dos jovens e adultos;
capacitação do corpo docente; material didático;
infra-estrutura do curso, currículo e avaliação
(BRASIL, 2007c).
As estratégias utilizadas para superar
alguns dos problemas apontados foram:
� Confecção de cartazes grandes e pequenos
que foram distribuídos nas coordenações
do CEFET-GO, escolas do município,
igreja, sindicatos, reunião do Fórum
Goiano de EJA, reunião do Núcleo de
Pesquisa em Ensino de Ciências –
NUPEC/UFG, restaurantes próximos à
Instituição, vídeos-locadora, padarias e
em outros locais;
� Realização de reuniões ordinárias com o
coletivo de professores do curso;
� Efetivação, por meio da Coordenação do
PROEJA, de um trabalho de aproximação
junto aos alunos do curso, a existência de
um local de referência ao qual os alunos
poderiam se dirigir, a criação de um mural
para colocação de recados e móveis para a
composição do espaço da coordenação;
� Mudança do horário de funcionamento do
curso das 16h30min às 20h30min para o
horário das 18h15min às 22h15min;
� Em relação ao aprendizado dos Jovens e
Adultos, procurou-se, por meio das
reuniões, aproximar os professores,
estudar e selecionar materiais - a Coleção
Cadernos de EJA da Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade - SECAD, Projeto Integrar da
CUT e outros -, para construir no coletivo
uma linha de intervenção de forma
orgânica na construção do processo de
ensino e aprendizagem dos educandos,
questão esta que ainda é um desafio para o
coletivo de professores do curso;
� Capacitação de alguns professores do
curso que tem se dado através do
acompanhamento e participação em
pesquisas. Por ocasião da implantação do
Curso Técnico Integrado em Serviços de
Alimentação para Jovens e Adultos no
CEFET-GOIÁS, solicitou-se ajuda ao
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NUPEC-UFG15 para contribuir na
elaboração do programa do curso, com as
aulas de química acompanhadas durante o
primeiro semestre por uma aluna de
iniciação científica e um aluno de
mestrado da UFG. As aulas foram
registradas em VHS e em diário de
campo. A partir dos dados coletados,
escreveu-se um artigo que permitiu
visualizar as especificidades de
aprendizagem desse significativo grupo
social, assim como as dificuldades do
professor em lidar com elas. Os resultados
desse trabalho de investigação serão
considerados na reelaboração curricular
do curso;
� Participação na elaboração e execução de
especialização destinada à capacitação de
profissionais para atuarem no PROEJA.
“A incorporação pela Instituição de uma nova
modalidade de educação, com características próprias
e de caráter inclusivo, indicou a necessidade de se
produzirem conhecimentos acerca das pessoas Jovens
e Adultas que passaram a freqüentar o curso” (SILVA
e OLIVEIRA, 2007). Nesta perspectiva, é que outras
ações vêm sendo desenvolvidas pelo coletivo de
professores do curso, a saber:
� Produção de Pesquisa sobre PROEJA: A)
Pesquisa de iniciação científica
(PIBIC16/CEFET-GO) cujo tema foi: “O
15 Núcleo de Pesquisa de Ensino em Ciências da Universidade Federal de Goiás. 16 Primeiro Programa de Iniciação Científica do Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás.
perfil dos alunos da primeira turma do
Programa de Educação de Jovens e
Adultos (PROEJA)”, na unidade Goiânia,
realizada por duas alunas do Curso
Superior de Tecnologia em Hotelaria; B)
Aprovação do Projeto NUPEC-UFG e
Engenharia Civil (CIEENG17/UFG), com
financiamento FINEP, cujo tema é “O
ensino de ciências para a conservação de
recursos naturais e o ambiente
construído”. O CEFET-GO entrou neste
projeto em co-execução com o Projeto “A
construção de um Biodigestor e
Biodecompositor Doméstico: uma
proposta em construção para o Curso
Técnico Integrado em Serviços de
Alimentação PROEJA – na perspectiva da
economia solidária”, a ser desenvolvido
pelos alunos da turma do quarto período.
Espera-se que o desenvolvimento do
projeto permita uma construção
interdisciplinar e trabalho com os eixos
temáticos propostos no curso, tirando as
disciplinas do isolamento e repensando o
currículo; C) Participação em projeto de
pesquisa sobre o PROEJA, com duração
de quatro anos, de 2007 a 2010; D) Outro
projeto vincula-se ao Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação em
Desenvolvimento Tecnológico e Inovação
PIBIT/CNPq - CEFET-GO, desenvolvido
por aluna do terceiro período do Curso
17 Sigla do Projeto “O ensino de ciências para a conservação dos recursos naturais e o ambiente construído”, desenvolvido pela Escola de Engenharia Civil da Universidade Federal d Goiás juntamente com o NUPEC/UFG.
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Técnico Integrado em Serviços de
Alimentação, na modalidade de Educação
de Jovens e Adultos.
� Participação dos alunos do PROEJA em
encontros temáticos promovidos pelo
Fórum Goiano de EJA, nos quais foram
abordados os seguintes temas: 1) EJA e a
qualificação profissional e 2) EJA e o
Mundo do Trabalho: O que é isso?
� Por fim, a construção do Projeto
‘Incrementar o Programa de Educação de
Jovens e Adultos’ – PROEJA DO
CEFET-GO, fruto da visita da SETEC na
unidade de Goiânia. Para a execução
desse projeto houve um aporte financeiro
de R$ 250.000,00 (duzentos e cinqüenta
mil reais) provenientes da SETEC, que
tem possibilitado ofertar transporte
coletivo para todos os alunos do PROEJA.
No mês de fevereiro, eles receberam R$
36,00 cada e, nos outros meses do ano até
o final de 2008, receberão mensalmente
R$ 79,20. Foram selecionados seis
bolsistas do Curso Técnico Integrado em
Serviços de Alimentação – PROEJA –
que receberão durante o ano de 2008 R$
300,00 cada, para desenvolverem
atividades formativas relacionadas aos
seguintes projetos: ‘Construção de
Biodigestor’; ‘Construção de
Biodecompositor’; ‘Construção de Horta
de Ervas Finas’; ‘Tecnologia de
Informação e Comunicação’. Houve
ainda a aquisição de 22 computadores e
móveis (mesas e cadeiras giratórias,
armários), livros, dicionários, material
para o laboratório de química e
gastronômico, carteiras novas e mais
confortáveis para os educandos, mesas
para o refeitório, bebedouro, prateleiras
para almoxarifado, impressora a laser,
scanner, filmadora digital e máquina
fotográfica digital.
3- Considerações finais ou desafios para a consolidação do Curso Técnico Integrado em Serviços de Alimentação do CEFET-GO e do PROEJA:
Compreende-se que pensar os desafios
postos para o Curso Técnico em Serviços de
Alimentação e para o PROEJA é uma tarefa que
não se limita à afirmação de um projeto restrito a
uma Instituição e nem a uma ação governamental.
Ela amplia-se para a construção de alternativas
que buscam consolidar um tipo de sociabilidade
que se funda nas premissas da igualdade e da
justiça social, da democracia e do reconhecimento
e efetivação dos direitos sociais.
Nesse sentido, o desafio básico é
transformar o PROEJA em uma política pública,
com previsão orçamentária regular e garantidora
de ações que não se tornem reféns das
alternâncias de governo. Somente assim será
possível dar seqüência ao conjunto de iniciativas
que compuseram o lançamento do Programa –
detalhadas no item 2 do presente trabalho -,
constituindo-se em um corpo de ações integradas
em nível nacional, a partir da articulação das
diversas redes de ensino e lócus formativo,
capazes de fomentar novos parâmetros e práticas
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educacionais, com o objetivo de fortalecer e
ampliar a educação pública, gratuita, de qualidade
acadêmica e social para todos.
Outra proposição é a de que se consolide
uma sociabilidade fundamentada em relações
democráticas e no trabalho coletivo, dentro e fora
dos espaços formativos. De um lado, percebe-se
que é somente por meio deste tipo de
sociabilidade que se pode estabelecer a
construção dos princípios e fundamentos de
políticas públicas voltadas para a democratização
do acesso e permanência dos sujeitos cujos
direitos foram historicamente negados. Por outro,
sabe-se que as relações sociais estabelecidas
nestes parâmetros pressupõem a efetivação da
gestão democrática, enquanto promotora de
instrumentos de participação e de reafirmação de
uma educação popular, no interior dos espaços
formativos, única via possível para construir um
ambiente em que os sujeitos da aprendizagem
possam ser percebidos em suas especificidades e
universalidades, por meio do diálogo e das suas
interações, entendendo que somos sociais de
ponta a ponta (BAKHTIN, 1999). Diante disso, é
primordial a construção de metodologia
apropriada para o desenvolvimento de processos
de aprendizagem para pessoas Jovens e Adultas.
Há de se pensar também que, do ponto de
vista formativo, é preciso compreender o trabalho
como fundamento das relações sociais e, de
forma extensiva, como princípio educativo. Nesse
caso, a proposição é de que a “educação geral
seja parte inseparável da educação profissional
em todos os campos onde se dá a preparação para
o trabalho” (CIAVATTA, 2005, p.84). Pensar o
itinerário educativo de pessoas Jovens e Adultas,
nesta perspectiva, poderá ampliar as
possibilidades de se formar, de maneira mais
completa e reveladora da sua posição social,
trabalhadores-cidadãos cuja competência técnica
e política se revelem mais substantiva quanto às
questões relativas ao mundo do trabalho e as
decisões que dele se acercam.
4- Referências biblbiográficas
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Formação de Educadores de Jovens e Adultos:
saberes na proposição curricular
Rosa Aparecida Pinheiro1
Resumo: Este trabalho apresenta a investigação realizada
em nossa tese de doutoramento, em que nos reportamos
aos elementos constituintes de uma proposta curricular
para formação de educadores de jovens e adultos, no que
concerne à relação entre os saberes acadêmicos e os
saberes da experiência. Nossa atuação como formadores
educacionais se deu junto a um grupo de alfabetizadores
egressos das comunidades periféricas da cidade do Natal –
RN, onde se concentram migrantes que se estabelecem na
zona urbana em busca de trabalho.
A formação dos alfabetizadores de
educadores de jovens e adultos, das comunidades
periféricas da cidade do Natal – RN, ocorre de
forma diferenciada e descontínua, com cursos de
preparação em instituições responsáveis por
programas de alfabetização de adultos como as
Universidades, SESI e órgãos governamentais.
Apresenta-se, portanto, um grupo eclético, que
tem em comum as ações comunitárias e um saber
experiencial daí advindo e acumulado. Essa
formação descontínua, que inclui o
reconhecimento da experiência, propicia também
a reflexividade crítica sobre as práticas
1 Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal de São Carlos, possui Especialização em Avaliação - Cátedra UNESCO de Educação à Distância/Universidade de Brasília, Mestrado em Educação pela Universidade Federal da Paraíba e Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É professora assistente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
educativas, pois a formação não se constrói por
acumulação, mas na reconstrução permanente de
uma identidade pessoal no processo educativo.
Ao partir dessa consideração, vivenciamos
a experiência formativa fundamentada em
subsídios teóricos, metodológicos e experienciais
com o objetivo de contribuir para a construção de
um referencial de conhecimentos necessários à
prática do alfabetizador. Objetivamos promover
um processo de ensino-aprendizagem
significativo nas salas de aula, assim como
colaborar para a formação intelectual da equipe
de formadores. A configuração de um processo
que mantenha uma continuidade de formação
implica em um desafio constante para os que
compartilham de uma proposta pedagógica
pautada na dialogicidade, na interação dos
participantes, na apropriação e construção de
conhecimentos. Nesse contexto, entendemos ser
essencial constituir um repertório de saberes
próprios ao ensino-aprendizagem, revelando e
validando o saber experiencial dos
alfabetizadores como o fundamento de sua prática
e de sua competência.
A noção de saber se exprime conforme a
época, campos disciplinares, lugares de
elaboração e perspectivas teóricas, apresentando
uma polissemia que denota a impossibilidade de
uma definição consensual. O saber diferencia-se
da crença, da ideologia ou do habitus, no sentido
empregado por Bourdieu (2001) como modelo de
ação e de pensamento interiorizado no âmbito da
vida do individuo, quer seja na família, no
trabalho, etc. Concordamos com Charlot (2000)
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que a natureza do saber deve englobar
argumentos, discursos, idéias, juízos e
pensamentos que obedecem às exigências da
racionalidade. Compreendendo por saber o que,
para um determinado sujeito, é adquirido,
construído, elaborado através do estudo ou da
experiência, na formação educacional de
alfabetizadores pressupomos que a fusão entre
seu saber existente e uma nova informação resulta
em um saber diferenciado e reelaborado em
função de seus valores e linguagens específicas.
Para valorizarmos esse saber, entendendo,
como Freire (1996), a natureza formadora da
docência como a exigência ético-democrática de
respeito ao pensamento e curiosidade dos
educandos, buscamos uma forma de organização
do ensino onde a percepção da memória e dos
conhecimentos próprios do grupo de
alfabetizadores são parâmetros para processos de
ensino-aprendizagem. Na Educação de Jovens e
Adultos (EJA), como tratamos com cidadãos
trabalhadores e jovens que têm condições de
repensar criticamente sua relação com o mundo,
se acentua a percepção do campo educativo como
espaço de ação política. Com base nesse
pressuposto, ao concretizarmos nossa intervenção
não devemos negligenciar os aspectos
organizativos dessa modalidade; pois, como
enfatiza Paulo Freire, o pensar o quê das coisas, o
para que, o como, o em favor de quem são
exigências fundamentais de uma educação
democrática à altura dos desafios do nosso tempo
(FREIRE, 1997, pg. 274).
Esse exercício encontra na organização
curricular seu espaço privilegiado como
enfatizam as concepções no campo do currículo,
que o compreendem construído socialmente como
artefato e veículo cultural, como aponta Goodson
(1997). O embate cultural e ideológico se
manifesta nesse campo, em que se valida e
transforma conhecimentos, intenções político-
educativas, normas, valores e atitudes.
Entendendo esse espaço como possibilidade de
contradição e produção cultural, em nosso
trabalho de formação na área da EJA
concretizamos a elaboração curricular
subsidiando-nos pela necessidade de considerar a
apropriação, a re-significação e a produção de
conhecimentos por parte dos formadores e
alfabetizadores.
Em nossa ação educativa, no âmbito da
Universidade, para que essa prática se consolide
prescindimos de uma cultura escolar diferenciada,
uma reformulação do pensamento, como defende
Morin (2003). Esse autor aponta a resistência
pelo nosso sistema de idéias (teorias, doutrinas,
ideologias) às informações e inferências que não
nos convém ou que não podem ser assimiladas.
Mesmo que as teorias científicas aceitem a
possibilidade de serem refutadas, tendem também
a manifestar resistência.
Ao priorizarmos a relação entre os saberes
acadêmicos e experienciais, de que são portadores
os alfabetizadores comunitários, nos aportamos
em Morin (2003) ao afirmar que a racionalidade
existe em qualquer cultura em que se encontram
presentes mitos, religião e magia em diferentes
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formas de manifestação e os indivíduos
conhecem, pensam e agem segundo paradigmas
neles inscritos culturalmente. O paradigma efetua
a seleção e determinação da conceitualização e
das operações lógicas, designando assim as
categorias fundamentais da inteligibilidade e
operando o controle de seu emprego.
Nossas ações são pautadas pela
racionalidade construtiva que ao elaborar teorias
coerentes verifica o caráter lógico de sua
organização, bem como a compatibilidade entre
as idéias que compõe essa teoria e a concordância
entre suas asserções. Quando se perverte em
racionalização (que se crê racional porque
constitui um sistema lógico perfeito,
fundamentado na dedução ou indução) se
transforma em doutrina que obedece a um modelo
mecanicista e determinista, em que o mundo não
é racional, mas racionalizador.
Para se desestruturar o imprinting cultural
racionalizador demanda um tempo a ser
percorrido para a introjeção de uma nova
mentalidade, principalmente no campo educativo
como no trabalho da educação de pessoas jovens
e adultas. Essa dificuldade se manifestou em
nossa atuação junto aos alfabetizadores formados
na óptica da educação infantil, pelo próprio
direcionamento da maioria dos cursos
universitários. A organização do trabalho ainda
com parâmetros da escola moderna, em que o
modelo taylorista impregna a organização
científica do trabalho educativo, cria
circunstâncias em que o alfabetizador repassa o
conteúdo de forma linear e hierarquizada em
detrimento dos modos, ritmos e necessidades
diferenciadas de aprendizagem dos alunos.
Em contraponto, na organização
curricular em uma dimensão ampliada - que não o
restringe a instituição escolar, mas o percebe
enquanto estruturante na ligação dos saberes -
buscamos entender como os formadores de
alfabetizadores na EJA pensam a articulação dos
saberes populares com o conhecimento científico
que deve ser mediado nas salas de aula. A
questão principal é o entendimento pelo
alfabetizador da razão de ser desses saberes em
relação com o ensino, como explicita Freire
(1997). Segundo esse autor, os procedimentos
metodológicos específicos para jovens e para
adultos são inadequados, pela crença errônea que
estes têm maiores dificuldades de aprendizagem,
o que acarreta o desperdício da memória de sua
cultura e do diálogo reflexivo.
Enquanto equipe de formação
preocupamo-nos como o conjunto de saberes
recuperados no refazer dos laços comunitários,
pelas manifestações existentes nas comunidades,
pode ser imbricado com o conhecimento
cientifico. Como a organização desses
conhecimentos se dá a partir de lógicas
diferenciadas, devemos compreender a forma de
dialogar com o tempo linear e parcializado da
escola em contrapondo ao tempo recursivo
comunitário. Ao priorizarmos o planejamento
curricular colaborativo, visamos o sentido de
socialização e, partindo dos valores comunitários,
repensamos situações cotidianas.
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Compreendemos que o processo de
formação organizado em encontros de reflexão
sobre a cultura escolarizada deve fundamentar-se
nas capacidades de contextualizar e globalizar -
intrínsecas ao ser humano. O desenvolvimento
dessas capacidades possibilita o diálogo entre os
saberes diferenciados, tendo como referência não
apenas uma racionalidade única, mas
racionalidades diversas e possíveis de
complementação com o enriquecimento de
relações.
Saberes experienciais como propulsor na ação
pedagógica
Na formação de educadores salientamos a
importância da mobilização de saberes, que o
educador utiliza na resposta às situações
concretas em sala de aula. Esses saberes
específicos que fundamentam a organização do
trabalho escolar, segundo Gauthier (1998), se
apresentam, entre outros, como o saber
disciplinar, o saber curricular, o saber
experiencial e o saber da ação pedagógica. Na
relação entre esses saberes, que se organizam no
saber curricular e se concretizam no saber da ação
pedagógica, verifica-se que é no saber disciplinar
que a lógica da ciência se manifesta nas analogias
e metáforas que o educador produz para o ensino
em suas áreas, com base no pensamento científico
em sua objetividade e generalização.
No saber curricular os educadores
selecionam e organizam saberes produzidos pelas
ciências, transformando-os num corpus que será
ensinado nos programas escolares. A questão
principal se relaciona a quais seriam os elementos
constituintes para o alfabetizador elaborar seu
programa e como a formação desse educador
trabalha esse ponto. Um elemento de forte
conotação relaciona-se ao saber experiencial
enquanto manifestação da experiência e do hábito
que estão intimamente relacionados, pressupondo
que aprender através de suas próprias
experiências significa viver um momento
particular, sendo registrado como tal em nosso
repertório de saberes. Mas o que limitaria o saber
experiencial seria exatamente o fato de que ele é
feito de pressupostos e de argumentos que não
são verificados por meio de métodos científicos
que delimita a validade de um conhecimento.
Essa relação do saber experiencial e do
saber cientifico / disciplinar se concretizará no
saber da ação pedagógica que o educador produz
com base na organização do saber curricular,
como espaço de interconexão nessa produção de
conhecimento. No processo de alfabetização de
pessoas jovens e adultas o saber experiencial do
alfabetizador torna-se primordial, em função de
ser uma clientela diferenciada no sistema de
ensino, detentor de conhecimentos profissionais e
relacionais apropriados.
Nossa dificuldade no papel de formador
originou-se em como articular esse saber com o
saber cientifico e disciplinar o qual a escola é
portadora, pois a lógica de ação impregnada na
atuação de nossos formadores encontrava-se na
estruturação de uma organização do currículo a
partir dos procedimentos científicos, o que se
invertia na concepção dos alfabetizadores que
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têm acumulado o saber experiencial de sua
comunidade.
O debate sobre os saberes essenciais para
o processo educativo, e dentre eles a importância
do saber experiencial, tem suas raízes na filosofia
de Hume (1973), no século XVIII, em que a única
fonte de conhecimento é a experiência e o objeto
desta não é a ocorrência externa, mas sua
representação. Apoiando-se neste princípio,
Hume afirma que as representações ou as
impressões constituem o dado último do
conhecimento humano, o limite contra o qual o
homem se choca e no qual deve deter-se.
Retomando o debate sobre o experiencial
no pensamento contemporâneo, encontramos em
Arendt (1997) o pensar sobre as estruturas da
experiência humana, que não seriam facilmente
identificáveis e se exporiam apenas por
investigações pormenorizadas. Esta autora
enfatiza que “el pensamiento mismo nace de los
acontecimientos de la experiencia viva y debe
mantenerse vinculado a ellos como los únicos
indicadores para poder orientare”. (ARENDT,
1996, pg. 20). O saber experiencial envolveria
aspectos como a utilidade, mas em uma critica ao
filisteu que vê apenas a função de utilidade a
todos os objetos; envolveria também as normas e
regras, que devem prevalecer para estruturar o
mundo dos objetos em que nos movemos, mas
que podem, por sua vez, perder sua validade e se
voltar perigosas quando se aplicam ao próprio
mundo como produto. Referem-se também ao
gosto, que orienta como decidir não apenas que
aspecto tem o mundo, senão também quem
pertence a ele conjuntamente.
Para as condições específicas da
modalidade EJA, Lovisolo (1996) estabelece a
utilização dessas três linguagens sociais da
norma, da utilidade e do gosto, em uma síntese
integradora. Nessa síntese, a norma
corresponderia às condutas estabelecidas
socialmente formando o campo das atitudes que
referendam a ação coletiva, referindo-se a um
fundamento que pode ser negativo, como evitar
apenas uma sanção, por exemplo, ou positivo,
tendo como base a crença de respeito aos valores
comuns. Essas normas se dariam em um tempo
histórico, sendo modificadas de acordo com o
contexto social e com a moral e a ética vigente.
Quanto à utilidade, demanda
conhecimentos de natureza variada com base na
reflexão sobre verdade e utilização de um
conhecimento ou técnica como situacional e
histórico. A construção de saberes é relacional,
sendo útil apenas para determinados fins ou
objetivos e em função de seu tempo e espaço. A
linguagem da utilidade não deve ser imediatista,
pois saber perguntar e responder é mais
importante do que ter um estoque de respostas
prontas. Essa óptica é preponderante na
preparação do aluno que visa à elaboração de
competências, entendida por Perrenoud (2001)
como a capacidade de mobilizar seus saberes
adquiridos na aplicabilidade para a qualificação
social.
Na linguagem do gosto é onde
expressamos a formação de nossa personalidade,
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vinculando-a a satisfação de anseios
particularizados. Sendo o gosto profundamente
individual, ao mesmo tempo em que é
compartilhado socialmente, tem a função da
construção das identidades coletivas, na
sociabilidade que se organiza pelas afinidades.
Em nossa ação educacional podemos valorizar as
linguagens da norma e da utilidade, mas o apoio
na linguagem do gosto torna-se o espaço para
acatar estas linguagens, pois é o respeito à
diversidade de alunos jovens e adultos que
referenda as práticas educativas que mobilizam
para a construção de elementos comuns no
trabalho educativo.
A associação dessas linguagens sociais,
expressas no saber experiencial com os eixos
possíveis de organização do currículo, se constrói
a partir da definição de um conceito, de um
problema geral ou particular e da temática a ser
tratada. A elaboração dos eixos temáticos, em sua
relação com os conteúdos, tem na
heterogeneidade própria das salas de EJA, em
função de faixa etária, princípios religiosos ou
opções sexuais, a busca de manifestações comuns
que possibilite a formação de valores e atitudes.
O princípio básico são os eixos estruturantes das
áreas de ensino que façam dialogar o
conhecimento global com o conhecimento local,
em uma abordagem que contemple as
experiências vivenciadas na organização
curricular.
A diversidade passa a ser considerada
ponto central para a organização do ensino,
possibilitando aos alunos a interação das
estratégias de raciocínio, padrões de
comportamento e aquisição de saber. Nessa
perspectiva, o foco central de nosso processo de
formação do alfabetizador foi o de exercitar sua
autonomia e criatividade para novas
possibilidades de respostas, em momentos
diferenciados e com um tempo próprio de
raciocinar e relacionar saberes, mesmo que de
forma preliminar. O alfabetizador, como
mediador, tem a possibilidade de construir algo
em comum, não como padrão institucionalizado,
mas como reconstrução em sua prática cotidiana.
A ação reflexiva na elaboração curricular da
EJA
O campo dessa pesquisa se inseriu no
Programa de Alfabetização Geração Cidadã,
vinculado como projeto de Extensão da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), em parceria com a Prefeitura Municipal
da cidade do Natal (RN) e o Programa Brasil
Alfabetizado (MEC). A equipe de formação,
como campo de investigação, constituiu-se por
formadoras que desenvolvem trabalhos na área
com uma prática e experiência acumuladas que
são referenciais para o desenvolvimento de
material didático e realização de oficinas
pedagógicas de formação de alfabetizadores. O
grupo desenvolveu discussões temáticas, com
foco na organização do conhecimento, baseando-
se nas ações vivenciais para a ação pedagógica.
Em nossa investigação utilizamos como
diretriz metodológica os princípios da Pesquisa
Colaborativa, em integração com a Entrevista
Compreensiva que deu suporte na análise das
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falas dos educadores participantes. Os
procedimentos de pesquisa aportaram-se
basicamente à Pesquisa Colaborativa, como
modalidade de Pesquisa-ação na Educação, em
que o campo de pesquisa se amplia com a
colaboração dos educadores na construção da
problemática, bem como na elaboração e
utilização de dispositivos para a produção de
conhecimentos. Essa modalidade de pesquisa
possibilitou às formadoras um processo de
reflexão sobre aspectos de sua prática, em que o
desafio colaborativo é responder às necessidades
de desenvolvimento e/ou aperfeiçoamento dos
mesmos. Com aporte interacionista, a Pesquisa
Colaborativa tem em seu princípio básico o
processo de colaboração entre os participantes, ou
os colaboradores, sendo uma atividade coletiva a
partir da participação de cada sujeito envolvido
no trabalho.
Cada grupo de pesquisa deve elaborar sua
própria dinâmica de colaboração, pois as
situações são particularizadas. Os procedimentos
básicos podem, aplicando-se o critério de
transferibilidade, servir como referência à
organização para grupos com ações diferenciadas
em seus componentes de hierarquização,
interesses e modos de ação diferenciados. Em
complementaridade, para a expressão de cada
individualidade, utilizamos a Entrevista
Compreensiva, em que cada sujeito pode refletir,
através de sua fala sobre seu processo de
apropriação e implicação nas ações de formação
da equipe.
Faz-se necessário, para um melhor
entendimento, o discernimento da Entrevista
Compreensiva enquanto metodologia e da técnica
de entrevista como instrumento de coleta de
dados. Entendendo-se método como conjunto de
procedimentos que organizam operações, em
função de opções filosóficas e políticas, e técnica
como conjunto de processos para execução desses
procedimentos, podemos identificar
diferenciações quando se colocam as duas
conceituações de entrevista. Enquanto técnica, a
entrevista pode ser utilizada em diferentes
metodologias, como outros instrumentos que
respondam a preceitos básicos da organização do
conhecimento científico. Quanto à Entrevista
Compreensiva, nos referimos a uma metodologia
com suas formulações teóricas e conteúdos
procedimentais elaborados e referendados em sua
utilização. É um procedimento de interação social
entre entrevistado e entrevistador para obtenção
de informações, como afirma Kaufmann (1996).
A Entrevista Compreensiva pressupõe
envolvimento ativo do pesquisador na
problemática, sendo intrínseco um engajamento
na pesquisa.
Realizamos, no desenvolvimento dessa
investigação, reuniões quinzenais, durante dez
meses de trabalho, para chegarmos a um
consenso sobre nossa pesquisa colaborativa e
entrevista compreensiva com os membros do
grupo sobre sua trajetória pessoal e a constituição
do grupo de formadores. As discussões se
encaminharam na ótica da formação de
educadores enquanto pesquisadores e na
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necessidade da ação reflexiva para a elaboração
de uma nova práxis educativa.
A concepção de professores-
pesquisadores, segundo Elliott (1998), tem como
foco a organização do currículo escolar e as
mudanças pedagógicas voltadas para a melhoria
do ensino. Essa construção deve se dar em um
ideário que priorize o coletivo, em que a
participação e a inovação na perspectiva da
formação profissional são questões chave na
constituição de um educador que entenda a
complexidade das relações educacionais e sociais.
Em nossa atuação, tanto o formador educacional
quanto o alfabetizador assumem o papel de
educador reflexivo e pesquisador de sua própria
ação, em detrimento dos papéis que
tradicionalmente lhes são atribuídos, com ênfase
em sua formação como agente de transformação
social.
Como toda perspectiva de trabalho, em
nossa ação formadora defrontamo-nos com
empecilhos a serem transpostos, como a
abordagem tradicional do paradigma científico
ainda ressonante com seu aporte na razão
instrumental. Como já apontado, a racionalidade
técnica como legitimadora de uma organização de
trabalho hierarquizada em relação ao domínio do
conhecimento científico e a falsa dicotomia entre
pensar e fazer ou entre teoria e prática prevaleceu
por longo tempo. Como os alfabetizadores
comunitários tiveram sua formação com foco
nessas premissas, a postura crítica passaria pela
reformulação da relação entre a construção de
teorias e a prática educativa.
Nessa ótica, prevalece a compreensão de
que a contextualização social e cultural se
constrói na relação em grupo, em que a prática
reflexiva não significa individualizar
responsabilidades. Quando o formador e o
alfabetizador têm possibilidade de refletir sobre
sua ação no coletivo a percepção sobre sua
prática se amplia na reestruturação e incorporação
de novos conhecimentos, possibilitando a re-
significação de suas ações e respaldando as
escolhas e o entendimento de como as decisões
aparentemente rotineiras podem contribuir para a
sustentação ou transformação de uma proposta
curricular vigente.
As experiências relatadas, associadas aos
estudos teóricos, possibilitaram a construção dos
elementos centrais em uma proposição curricular
para ações educativas a partir de intervenções
comunitárias. Nesse sentido, nosso trabalho como
educadores pressupôs a formação de uma atitude
de investigação, de problematização em cada
relação estabelecida com a comunidade, assim
como com as instituições escolares que dela
fazem parte.
Nessa formação, a composição do
currículo teve como enfoque a relação de saberes
que se apresentou em cada prática educativa e, no
decorrer das discussões, construímos e
analisamos os elementos referenciais que se
destacaram como temas em nossa problemática.
No currículo, articulador do conhecimento
acadêmico com os saberes experienciais,
colocaram-se como centrais: o movimento de
formação continuada, os espaços e tempos
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formativos, a memória social, a reflexão e o
diálogo na relação de saberes.
No componente apontado na
categorização do tempo linear, como o
acadêmico, e do tempo recursivo, como o
comunitário, a divisão não se colocou como
determinante, mas orientadora para a
reorganização e produção de conhecimentos. As
aprendizagens se deram em um tempo possível,
quando o tempo humano de elaboração para a
reflexão sobre nossas ações necessita de
amadurecimento na constituição de um saber.
Nosso tempo de formação foi
condicionado pelos padrões institucionalizados,
com uma delimitação prevista para determinada
ação. As rupturas e reelaborações se deram na
relação do tempo coletivo, direcionado pelos
referenciais gerais do Programa GerAção Cidadã,
e do tempo individual, ou o tempo próprio de
aprendizagem de cada sujeito.
Lidar com essa temporalidade, que é
objetiva e subjetiva ao mesmo tempo, implicou
na escolha de conteúdos que necessitávamos
relacionar com a nossa prática. Consideramos
para essa seleção a participação dos
alfabetizadores, suas sugestões e nossa própria
experiência como formadoras na relação dos
saberes envolvidos. Os pontos de interação
surgiram das práticas cotidianas como eixos de
interconexão com sua explicação científica.
O princípio da temporalidade, ao nortear
uma elaboração curricular que abrangesse lógicas
de organização temporal diferenciadas, foi
trabalhado em um movimento em espiral
(Rosnay, 1995), no qual a linearidade sequencial
em níveis de abrangência diferenciados retorna
aos pontos de relação, em rupturas, superação e
reorganização em um crescente de aprendizagens.
Por exemplo, os trabalhos nas áreas de arte e os
projetos pedagógicos com temas de interesse da
comunidade ofereciam suporte para uma
aprendizagem em tempos diferenciados que se
adequavam a uma programação pedagógica
elaborada no desenvolvimento do Programa
GerAção Cidadã.
Ao organizarmos a formação em um
tempo determinado, estávamos inseridos em uma
política educacional que delimitava esse
Programa a um tempo, uma ordem, um espaço.
Entendemos que toda a discussão deve ter esses
elementos, mas, além dos eixos da discussão da
formação, foi no exercício de pensar essa
formação e problematizar a realidade da EJA e
das comunidades que nossa proposta se
concretizou.
A priorização de conhecimentos possíveis
se dá em um lugar específico em que existam
composições singulares, como coloca Augé
(2005), como situações que encontramos no
Programa GerAção Cidadã na organização das
salas de aula. Ao pensarmos a questão da
reapropriação dos lugares, em como os alpendres
de moradias se transformaram em espaços
escolares, visualizamos uma postura do
alfabetizador em seu papel social de educador
comunitário.
Essa transformação de lugares
particularizados em espaços comunitários
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institucionalizados aponta a aproximação dos
sujeitos na mudança do seu locus para satisfazer
uma necessidade da comunidade. A reordenação
do território repercutiu também no pensamento de
todos os envolvidos, reorganizando-se as
formulações técnicas e uma herança cultural
formada de saberes, hábitos e valores culturais
em relação ao espaço físico comunitário.
Em nossa prática educativa, não nos
restringimos aos espaços escolares, realizando
também exposições em centros comunitários.
Entendemos que os espaços curriculares se
instituíram no respeito às delimitações das áreas
de trabalho e relações de grupo, em que se
fomentou o diálogo como compreensão do outro.
Esse diálogo que foi primordial na prática da
formação não ocorreu de maneira simétrica e
harmoniosa, mas se constituiu de significações,
experiências e valores sócio-culturais
diferenciados.
Nesse contexto, o diálogo e a reflexão
foram temas que permearam todo o movimento
de articulação dos saberes. O diálogo se
concretizou no respeito aos saberes
experienciados nas comunidades, expressos nas
formas variadas nos discursos próprios aos
grupos constituídos em sua apropriação
específica. O respeito se refere também a
pensarmos como relacionamos essas expressões
com o acadêmico de nossa formatação, sem
menosprezarmos a capacidade de compreensão
dos educadores comunitários.
Ao nos referenciarmos às práticas
culturais e aos saberes experienciais, reportamo-
nos às memórias coexistentes, enquanto função
biopsicossocial do indivíduo e como memória
coletiva no espaço social de manutenção das
tradições. No saber experiencial as referências às
práticas culturais influenciam mudanças sociais,
adequando ou transformando concepções
diferenciadas. Essas concepções, como
experiência individual, quando não refletida, pode
se tornar tanto um hábito ou um costume, quanto,
a partir da reflexão, uma memória coletiva como
um saber experiencial compartilhado pela
comunidade.
Nossa questão central não era apresentar
uma proposta curricular para todas as situações,
mas pontos ou elementos que podem se adequar à
elaboração de uma proposta específica para cada
vivência dos alfabetizadores e necessidades da
comunidade. Cada planejamento curricular deve
ser um campo próprio de pesquisa para sua
própria constituição.
Ao apontarmos a sistematização de
conhecimentos, na constituição de saberes mais
amplos, entendemos ser necessária uma
organização que, assegurada através de
negociação e consenso dos grupos envolvidos,
possa representar as fontes distintas, respeitando
as diferenças intrínsecas em função de sua
utilidade social e vivências culturais.
A relação dos saberes presente nos
encontros de formação teve como base uma
lógica instituída a partir de determinados
contextos e dos conhecimentos identificados
como essenciais, estabelecendo uma
convergência desses com nossa proposta de ação.
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O grupo de elementos proposto não constituiu,
por si mesmo, uma teoria da formação, mas uma
reflexão no intuito de estabelecer componentes
que propiciassem a construção de um saber
curricular.
Esse saber curricular imbricado ao saber
experiencial tem em sua formulação a memória
coletiva como eixo que perpassou o diálogo e a
reflexão, sendo contextualizada em um tempo e
um espaço comunitário. A memória coletiva se
materializa como espaço de respeito à tradição,
em que podem ocorrer mudanças relacionadas a
uma ação específica ou a um contexto
diferenciado em posturas impregnadas no
imaginário social.
A tradição na organização curricular
implica em pensar o presente em relação aos
acontecimentos remotos, em que a tradição não
pode ser entendida como passado definitivo, pois
nos chegam através de palavras, símbolos,
ciências, ritos, que mesmo sendo modificados
conservam sua matriz no decorrer da história.
Toda ação cultural é uma forma de sistematização
deliberada de intervenção, como afirma Freire
(1997), em que a experiência anterior traz a
possibilidade de realizarmos uma seleção de
conhecimentos que leve à mobilização de saberes,
em um percurso de formação.
O trabalho com os alfabetizadores e nossa
vivência com as comunidades nos possibilitou
redimensionar nossa formação acadêmica na
compreensão da necessidade de, através da
formulação do saber curricular, criar um canal de
articulação com as práticas culturais comunitárias
em seus saberes experienciais. O saber curricular,
nesse contexto, não é um saber delimitado, mas
se estabelece na relação entre outros saberes.
Nas reflexões realizadas no grupo
colaborador concluímos que o processo formativo
continuado se consolidou na discussão sobre o
currículo e na reflexão sobre os conhecimentos e
aprendizagens em cada situação vivenciada. Não
temos, portanto, a constituição de uma proposta
que se aponte como modelo aplicativo para os
cursos de formação em geral, mas priorizamos a
análise de elementos que podem se articular em
proposições específicas para os grupos de
formadores. Essa articulação deve se dar em um
processo de interação, pois todos os cursos de
formação e capacitações de educadores são
constituídos sobre um saber curricular, nas
relações de saberes próprios a cada grupo
componente dessas formações.
A proposição trabalhada pelo grupo, na
relação de saberes, trouxe também uma alteração
significativa na participação das formadoras e
demais educadores participantes do Programa
GerAção Cidadã na lógica funcional da academia.
A Universidade, como instituição privilegiada de
produção do conhecimento, ao receber pessoas de
várias comunidades pôde modificar seus
parâmetros de ação, na inter-relação de visões de
mundo diferenciadas e, na inserção reflexiva,
buscar aportes que possam transitar pelos campos
de saberes diferenciados, mas não excludentes.
Essas vivências contribuem com ações
pedagógicas necessárias a uma constituição social
e política de uma Universidade aberta a novas
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posturas e à incorporação e produção de
conhecimentos que atendam a ação educacional
em sua totalidade, superando fragmentações de
saberes e identidades coletivas.
Ao finalizarmos nossa investigação,
comparando metas propostas e o que realizamos,
nos apoiamos em Morin (1996) quanto a nossa
consciência do inacabamento em uma pesquisa
científica que deve ser retomada continuamente a
partir de novas referências e mudanças em nossa
práxis educativa.
Concluímos que essa investigação foi
instigante para o grupo colaborador, com a
possibilidade de reflexão sobre o trabalho de
formação de educadores para EJA e trazendo
pontos essenciais a serem considerados em um
planejamento curricular para além do espaço
acadêmico. A articulação de saberes pressupõe o
processo criativo dos alfabetizadores na
formulação de conceitos e procedimentos, em que
o currículo é integrador de um saber que o
educador traz e não como fator externo a ser
dominado.
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A Educação de Jovens e Adultos
semipresencial: leituras do cotidiano escolar
Liliam Cristina Caldeira 1
Doralice A. Paranzini Gorni 2
Resumo: Este artigo apresenta o recorte de uma pesquisa
que investigou, por meio de um estudo de caso, a EJA
semipresencial, analisando-a a partir das políticas públicas
e da perspectiva dos sujeitos inseridos no contexto escolar.
O recorte aqui apresentado foca a visão dos sujeitos sobre a
EJA semipresencial e revela os limites impostos à prática
pedagógica em razão de uma carga horária cumprida
grande parte a distância, bem como a visão dos sujeitos
sobre a experiência educativa que vivenciam e suas
expectativas.
Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos, Educação
Escolar, Semipresencial.
1. A origem desse estudo
O trabalho que deu origem a este estudo
trata-se de uma pesquisa de mestrado,
desenvolvida na Universidade Estadual de
Londrina – UEL, cujo foco foi a relação entre a
perspectiva da Educação de Jovens e Adultos
(EJA), presente nos documentos oficiais e a
perspectiva que emana da vivência escolar na
configuração semipresencial, a partir da visão de
educandos e educadores.
O objetivo central da referida pesquisa foi
desvelar as contradições existentes na EJA, assim
como seus limites e possibilidades no contexto
atual. Essa investigação foi realizada sob a forma
1 Doutoranda em educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. 2 Profa. Dra. do mestrado em educação da Universidade Estadual de Londrina – UEL.
de estudo de caso em um Centro Estadual de
Educação Básica de Jovens e Adultos (CEEBJA)
do Paraná, focalizando a EJA semipresencial
referente ao segundo segmento do ensino
fundamental.
Para delinear a configuração política que
norteia a prática educativa investigada e conhecer
a perspectiva do discurso oficial, foram
analisados documentos específicos que a
subsidiam em âmbito estadual e federal.
No recorte aqui apresentado tratamos da
produção da EJA semipresencial na visão dos
educandos e educadores. Portanto, nesse
momento, nosso foco está centrado na
perspectiva dos sujeitos inseridos nesse processo
de educação escolar e nas relações estabelecidas
nesse cenário.
2. O percurso investigativo
Nossa desenvolvida no mestrado teve
início com um levantamento da trajetória
histórica do desenvolvimento da EJA no Brasil e
da criação dos espaços de discussão acerca dessa
modalidade de ensino na Europa, na América
Latina e no Brasil. Em seguida, foram analisados
documentos oficiais estaduais e federais com o
intuito de delinear o contorno oficial que
respaldou a EJA semipresencial naquele dado
contexto histórico.
Já a perspectiva que emana da vivência
escolar foi dada a conhecer através das
observações e entrevistas realizadas, com
educandos e educadores da escola, nosso lócus de
pesquisa. As observações foram direcionadas
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tanto para as condições materiais de produção da
EJA quanto para as relações estabelecidas entre
seus sujeitos na vivência escolar.
O cenário observado encontrava-se,
naquele momento, marcado por improvisações
para o desenvolvimento das atividades da EJA.
Cabe citar como exemplo a divisão do espaço em
salas pequenas, com pouca ventilação, algumas
separadas por divisórias, tendo assim acústica
deficitária.
Em certos momentos, professores de
diferentes disciplinas lecionavam
simultaneamente no mesmo espaço, promovendo
uma nítida redução da liberdade do educador e do
educando para a realização de discussões sobre as
temáticas estudadas, exposição de dúvidas, etc.
Com isso, os diálogos revelaram-se como
impedimentos para a realização a aula, gerando o
que Freire (2005a) concebeu por cultura do
silêncio. Mas a cultura do silêncio não condiz
com o que preconiza o discurso oficial, que
anuncia a formação de um cidadão crítico e
autônomo.
A experiência educativa calcada no
silêncio, centrada na atividade do professor,
pouco pode contribuir para o desenvolvimento de
uma democracia autêntica, pois como confirma
Freire (2005a, p.103) “[...] quanto menos
criticidade em nós, tanto mais ingenuamente
tratamos os problemas e discutimos
superficialmente os assuntos.” As instalações
encontradas na ato da pesquisa mostraram-se
menos precárias do que outras já ocupadas pelo
Centro, conforme evidencia P7, ao comparar dois
lugares ocupados anteriormente: “Aqui foi
otimizado em relação ao outro lugar. No outro
tinha três, quatro, cinco professores juntos,
porque tinha poucas salas para as disciplinas e era
só um salão grande. Eram três, quatro, cinco
professores de disciplinas diferentes dando aula
todos juntos.”
Essas condições concretas de produção da
EJA encontradas no caso estudado corroboraram
para visões que a relacionam a um prática
educacional informal, espontaneísta. A concepção
de A4 sobre a EJA, evidenciou esse entendimento
quando em seu relato posicionou-se dizendo que
“a modalidade desse tipo de ensino é bom (sic),
mas não é como na escola”. Para ele, a EJA está
distante do sistema formal de ensino, distancia-se
do processo de escolarização.
3. A EJA semipresencial na perspectiva dos sujeitos
No período de realização desse estudo, as
atividades pedagógicas desenvolvidas no Centro
estiveram organizadas em momentos presenciais
e não presenciais. Ao tentar compor a
configuração dos momentos de estudos à
distância, verificou-se que estes se trataram de
estudos desenvolvidos pelos próprios alunos, com
alguns poucos encaminhamentos do professor no
intuito de exercitarem o “autodidatismo”.
Já as aulas, ou melhor, os encontros
presenciais ocorreram de duas formas: através de
atendimento individual, ou coletivo. O momento
denominado “coletivo” dizia respeito àqueles
organizados por projetos didáticos relacionados a
uma dada disciplina. Neste formato de aula, os
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alunos costumavam receber direcionamento e
explicações comuns, pois o planejamento do
encontro visava trabalhar com todos
simultaneamente.
Nos encontros individuais observados,
percebeu-se que a rotina estabelecida é composta
por momentos para sanar dúvidas acerca de
atividades desenvolvidas em casa pelos
educandos.
Porém, o próprio ato de verbalizar a
dúvida comporta um aprendizado à parte para
aqueles que estavam por anos consecutivos
distantes do universo escolar, carecendo com isso
atenção especial. Para alguns alunos, essa
configuração revelou-se como empecilho no
decorrer do processo de aprendizagem, como
indica A4:
[...] numa escola assim normal que você vai todos os dias, você tem um professor todo dia que explica aquilo que você não entende. Sendo que aqui você vai pela cabeça, você tem que fazer mais força para aprender e o professor te explica o básico, não o que você realmente necessita saber. Então, se quiser passar de ano e se quer aprender, tem que fazer força por si mesmo, ou não vai para frente [...].
Dessa forma, A4 chamou a atenção de seus
interlocutores para a distância existente entre suas
necessidades educativas e a organização do
trabalho pedagógico da modalidade
semipresencial, evidenciando uma dimensão
solitária desse processo.
Os encontros chamados de coletivos
destacam-se por uma maior vivência de situações
de diálogo, de troca de experiência e socialização
de conhecimentos entre os educandos e destes
com o educador.
Nesses momentos, eles acompanhavam
uma mesma aula, participando das mesmas
lições, tirando suas dúvidas com o professor ou
com um colega de sala, vivenciando diversas
oportunidades de interação.
No período em que o estudo foi
desenvolvido, o Centro possuía recursos de
aparelho de vídeo e televisão; porém, as apostilas
didáticas eram essencialmente os únicos materiais
bibliográficos disponíveis para estudo e pesquisa
na escola, uma vez que a biblioteca existente se
resumia a um pequeno acervo disposto em uma
estante na sala ocupada pelos supervisores, então
Professores Pedagogos.
Essas limitações materiais
contraditoriamente aproximam essa experiência
dos tempos marcados pela informalidade que
historicamente esteve presente na EJA, mas que
não condiz com o contexto atual. Sobre isso,
Arroyo (2005, p.32) lança o alerta de que
“vivemos um momento em que a configuração da
EJA é vista como deixar de ser educação não-
formal para entrar na formalidade escolar.
Somente assim, os direitos dos jovens e adultos à
educação seriam levados a sério”.
A maior parte das matrículas efetivadas no
decorrer do estudo foi de jovens por volta de
vinte anos de idade, sendo acompanhados, em
segundo lugar, pelos adultos com
aproximadamente trinta anos. Entretanto, cabe
destacar que o grupo nascido na década de 90
apresentava uma crescente e significativa procura
pela EJA, em razão da redução da idade de
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ingresso nessa modalidade de ensino, viabilizada
pela LDB 9.394/96.
Dentre esses adolescentes muito jovens,
encontramos aqueles como A5, que não
apresentavam ter clareza sobre as razões que o
levaram para a EJA, como foi possível constatar
em seu depoimento: “É bom, né, porque [...] você
tem o dia inteiro para ficar em casa”. Trata-se de
jovens que não estão no mercado de trabalho e
migraram do ensino fundamental popularmente
chamado de “regular”.
Preocupados, alguns pais e mães se
matricularam na EJA oferecida no Centro no
intuito de acompanhar os filhos jovens, tanto no
trajeto entre escola e casa, quanto nos próprios
estudos, como descreveu A5: “Meu pai estuda
aqui também [...] Estuda na minha sala”. Mas
nem todas as investidas dos pais tiveram êxito, no
que se refere à permanência dos filhos nos
estudos, como narrou A6: “para puxar ele, eu vim
para escola, eu voltei [...]. Só que eu vim e ele
não veio, quem sabe o ano que vem?”.
A expressão: “Quem sabe o ano que vem”
denotou que na visão desse sujeito sempre é
momento de estudar e que não há na vida das
pessoas uma fase exclusiva para aprender,
conhecer e produzir. Também evidenciou o
sentido: uma porta sempre aberta para aqueles
que, em razão das lutas travadas diariamente pela
sobrevivência, estiveram à margem da escola.
Notamos que o deslocamento dos
adolescentes para a EJA, impulsionados pela
própria escola de origem, tem desvirtuado as
razões da existência dessa modalidade de ensino.
Para fazer frente a essa problemática foi
desencadeado um processo de reflexão sobre a
EJA em todo estado do Paraná, resultando na
reformulação da legislação local e elaboração do
Projeto Político Pedagógico das escolas.
Sobre o ingresso dos jovens à EJA,
Dayrell (2005, p.63) indica que “grande parte dos
jovens [...] vêm de uma experiência educativa
formal diversificada, alguns tendo sido excluídos
da escola nos mais variados estágios,
frequentemente ainda no Ensino Fundamental,
com uma história marcada por repetências,
evasões esporádicas e retornos, até a exclusão
definitiva”.
A trajetória de A8 exemplificou essa
realidade: “Eu aprendia com facilidade de
primeira a quarta, mas quando foi na quinta eu
não consegui aprender mais não [...]. Eu chegava
dentro da sala, eu nem fazia nada, eu ficava na
carteira assim e deixava o dia passar e [...]
reprovava”.
Esses percursos que levam à EJA
evidenciam o distanciamento entre a educação no
mundo vivido pelo educando e o ilustrado
universo dos princípios e fins da educação
nacional, que segundo a LDB 9394/96, em seu
Título II, art. 2o “A educação, dever da família e
do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e
nos ideais de solidariedade humana, tem por
finalidade o pleno desenvolvimento do educando,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho”. (BRASIL, 1996)
Seja jovem ou adulto, o ingresso na EJA
semipresencial apresentou-se, na maioria das
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vezes, relacionado a expectativas limitadas à
satisfação das necessidades básicas de
sobrevivência por meio da chance de
empregabilidade em um futuro incerto, como se
percebe no relato de A1: “Eu espero que eu
aprenda bem para mim(sic) fazer o meu segundo
grau. Se não fizer o segundo grau, não arrumo
serviço, não arrumo nada. [...] assim você pode
arrumar um serviço melhor, num escritório”.
Níveis de escolarização mais elevados
passaram a ser exigidos para o exercício de
funções menos complexas, que antes não
comportavam tal demanda. Ao aprendizado
foram condicionadas as possibilidades futuras de
trabalho, como mencionam o educando A2 e o
professor P1 “[...] as empresas estão exigindo
cada vez mais estudo da gente, então eu voltei a
me matricular” (A2); “Eles querem estudar, a
primeira expectativa é um emprego bom. Eles
falaram também que tem firma que está pedindo
o segundo grau, se não tem também não faz nem
ficha”. (P1).
A configuração atual do mundo do
trabalho segue na contra mão das esperanças e
expectativas dos alunos sem emprego, dos
despossuídos do campo ou da cidade, dos
assalariados precarizados, pois tem perdido seu
lugar para uma corrente de destrutividade da
força humana através do descarte e daquilo que
Antunes (2002) intitula de superfluidade do
trabalho.
Entretanto, nesse movimento de busca
pelo emprego, os sujeitos concebem a EJA como
uma abreviação do tempo de estudo, como um
processo educativo com resultados rápidos e
imediatistas através da certificação em curto
prazo, aprisionando-a as experiências do passado.
Neste sentido, a configuração
semipresencial da EJA representa sonho e
desilusão simultaneamente, pois viabiliza a
permanência dos educandos ao mesmo tempo em
que não garante a devida instrumentalização para
uma transformação social.
O desemprego, a pressão do mercado de
trabalho - juntamente com a insolidez das
políticas públicas no campo da EJA - colaboram,
no contexto atual, para desvirtuar as
possibilidades formativas dessa modalidade de
educação.
Desta forma, nesse cenário marcado pelas
impressões do passado, diversos atores
caracterizaram a EJA como uma escolarização
que além de breve é mais fácil do que a escola
dita regular, como ficou evidente com A9 ao
justificar seu ingresso: “É para mim(sic) adiantar,
porque senão eu vou ficar muito atrasada [...]
porque eu já tenho dezesseis anos”.
Na necessidade de promover mudanças na
sua condição social e de suas famílias, alguns
educandos que procuram a EJA semipresencial
ocupam o papel de consumidores de uma
mercadoria, cujo tempo de produção foi reduzido
ao seu limite mínimo.
Com isso, o trabalho enquanto atividade
humana constituinte do ser deixa de representar
uma fonte de expressividade, pois estes jovens já
não vislumbram uma carreira profissional
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atrelada às escolhas relacionadas à realização
pessoal, desalienação, mas sim a nada além do
que sobrevivência. A satisfação se limita a um
âmbito mínimo de aprendizagem como se
percebe por A10: “Quando eu entrei aqui não
sabia quase nada, agora eu estou sabendo, eu não
sabia somar [...] quando eu saí daqui eu já posso
fazer as coisas, já sei somar [...]”.
O abismo de carências evidenciado nas
falas dos educandos possibilitou-nos legitimar
nos tempos atuais o pensamento de Freire (2005b,
p.75) ao alegar que “a tarefa pedagógica da escola
é ampliar nos jovens alunos a sua condição de
humanos”.
Esses jovens demandam mais do que a
escolarização, “eles demandam redes sociais de
apoio mais amplas, com políticas públicas que os
contemplem em todas as dimensões, desde a
sobrevivência até o acesso aos bens culturais”,
como bem conclamou Dayrell (2005, p.65).
Os grupos de educandos que frequentam a
EJA no contexto analisado apresentaram uma
rotatividade dinâmica, no que diz respeito à
permanência na instituição e conclusão dos
estudos, pois cada educando tem rotinas e
demandas específicas de sobrevivência. Como foi
observado, o atendimento a essa diversidade no
formato semipresencial constitui um fator que
dificulta aos educadores um acompanhamento
sistemático da freqüência e aprendizagem desses
atores.
A dificuldade para fazer um
acompanhamento mais aproximado da
aprendizagem do aluno revelou ser um ponto
problemático no ensino semipresencial, trazendo
à tona a necessidade da construção de alternativas
para solucioná-lo.
O próprio educando também não possui as
ferramentas necessárias para encaminhar com
autonomia seu processo de estudo, como aponta
A9: “Eu aprendi pouca coisa, porque não tem
explicação [...] devido aos alunos que têm uns
que precisam de mais assim, que são os mais
velhos que precisam de mais explicação e então
acaba nem tendo tempo assim do professor
chegar e explicar para você”.
Esse formato não viabiliza a mediação e
intervenções do professor por não dispor da
condição de tempo necessária a um processo de
avaliação contínua e formativa dos progressos na
aprendizagem desse sujeito.
4. A percepção dos sujeitos sobre si mesmos e sobre a aprendizagem na EJA semipresencial
Os educandos presentes na situação
escolar estudada podem ser explicados a partir
das características políticas, econômicas e sociais
produzidas historicamente e que delineiam o
momento atual em que estão inseridos. Mas mais
apropriado do que classificá-los é lê-los por suas
autonarrativas, que revelam trajetórias tão
díspares, tão singulares e tão comuns ao mesmo
tempo, como as apresentadas em seus relatos.
As biografias dos educandos da EJA têm
marcas em comum: a da exclusão. Em todas, o
retorno à escola tem um por que e para que
também, como pode se notado em: “[...] é uma
nova vida surgindo que às vezes você fala assim,
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é mais um curso que eu fiz que me abriu
caminhos, pra saber do passado por exemplo, do
meio ambiente, da língua inglesa, da matemática,
como também para servir de pedreiro (A5).”
O tempo já vivido, marcado por
conquistas pessoais, por sonhos, expectativas, por
tempo de trabalho, de desemprego, de criação dos
filhos, dos afazeres domésticos, religiosos, etc. é
também concebido pelos atores como tempo de
recomeçar.
Ao definirem os educandos e como se
relacionam com eles, encontramos
posicionamentos como esse, por parte dos
educadores: “Relação de igual para igual. O aluno
vê o professor como um orientador, como um
amigo que está disposto a tirar suas dúvidas. E o
professor vê no aluno um cidadão com vontade
de vencer. Eu pelo menos vejo isso. Aqui para
eles é a solução, ele vê no professor uma
solução”. (P3).
Da mesma forma se posicionaram alguns
educandos, que muitas vezes, por não terem tido
acesso à escola anteriormente, ou por terem
interrompido esse processo por vários anos,
sentiram-se enaltecidos pela possibilidade de
retornar à escola. Ao posicionarem-se assim, eles
tomaram para si a responsabilidade por não terem
concluído os estudos na idade apropriada e
também por qualquer dificuldade que vivenciam
durante o processo de escolarização.
Por outro lado, os educadores também se
definiram pelos aspectos afetivos, emocionais,
enfim, aqueles elementos que dão à relação
professor-aluno uma maior proximidade e
cumplicidade, como comentaram P2, ao descrever
o professor da EJA: “Eu acho que eu sou uma
amiga, filha, às vezes mãe do aluno. Você tenta
levar, dar a mão, dar forças. Porque às vezes são
muito pessimistas, negativos. Então você tem que
estar sempre reanimando, dando forças”.
Para outros educandos como A5, é na
própria relação professor-aluno que se
reabastecem para enfrentar as árduas lutas
cotidianas: “[...] eles são muito melhores do que
numa escola. Eles dão mais atenção”.
A motivação por parte do professor aos
educandos da EJA constituiu, no nosso percurso
investigativo, um dos fatores de acolhida e
motivação para darem continuidade aos estudos e
ao empenho para alcançar seus objetivos.
Dada à carência por reconhecimento e a
baixa autoestima que muitas vezes apresentaram,
o desempenho dos docentes chegou a ser
considerado por alguns educandos como quase
uma dádiva e não uma atribuição profissional.
Sem descartar o valor da relação afetuosa
e dedicada dos professores da EJA com seus
educandos, não pôde deixar de ser percebida a
fragilidade da intervenção pedagógica do
professor.
Com secundária importância atribuída à
apropriação de conhecimentos, como foi possível
verificar nos relatos de alguns educandos, a EJA
passa a configurar mais uma forma de
aprisionamento do ser ao invés de libertá-lo.
Ao serem indagados se sentem
dificuldades para aprender e/ou estudar, diversos
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educandos comentaram que em razão das
dificuldades que sentem, contam com a ajuda de
amigos, professores particulares ou filhos, como
relatou A4: “[...] às vezes eu procuro um
professor particular [...] ele me ajuda, me ensina
algumas matérias”.
Relatos como esses geram reflexões sobre
o quanto uma carga horária cumprida, em sua
maior parte à distância, contribui para o
acompanhamento devido da aprendizagem e o
quanto é possível contar com o apoio pedagógico
adequadamente direcionado, por parte da escola.
A este respeito A7 referiu-se ao que
poderia ser melhorado: “Tem professor que não
explica bem a matéria, porque é à base de apostila
[...]. E tem um tempo para você estudar, para
fazer as provas, então acho que a professora
deveria dar a apostila e explicar o conteúdo”.
Concordamos com a ideia de que o
objetivo central da educação é o de que ao
possibilitar ao indivíduo relações com as
objetivações e apropriações de elementos da
esfera não cotidiana, implicando assim numa
caminhada rumo à superação da alienação. A
educação escolar constitui, assim, uma prática
determinada “[...] mediadora entre o cotidiano e o
não cotidiano na vida do indivíduo [...]”
(DUARTE, 1999, p.43). Nesse sentido, a
aprendizagem por si é uma prática social histórica
produzida a partir de necessidades específicas,
dirigida aos fins determinados e que envolve a
mobilização do sujeito, atribuição de sentido,
significado e emoção.
Entretanto, pelos relatos como o de A3,
verificamos que as possibilidades de mediação
produzidas nesse cenário muitas vezes não
contribuem para a formação de um sujeito não
alienado, incidindo então em uma prática
reprodutivista, como relatado a seguir:
[...] tem muitas pessoas que não lêem que não fazem o trabalho, que chegam na sala pedem o gabarito vão corrigir [...] Ela passa o gabarito, ele vai corrigir e mesmo se ele não fez ou se ele errou ele não vai falar para o professor se ele errou ou não. E às vezes ele nem fez, ele pegou o gabarito, deu uma olhada na prova e no gabarito e fala: professora dá a prova. Então ele começa a apagar a apostila, ela não viu se ele fez ou não fez e ele vai direto para a prova.
Concebendo que a aprendizagem do
indivíduo se dá desde o seu nascimento, uma
pessoa adulta é desta forma possuidora de longa
vivência social, ou seja, se apropriou fora da
escola de elementos culturais da sociedade da
qual faz parte, por meio das relações
estabelecidas com os demais indivíduos.
Mas, além de ser uma prática social, a
aprendizagem também tem uma dimensão
subjetiva, pela qual o educando autor do processo
traz à tona momentos de subjetivação produzidos
em outros espaços e momentos da vida, conforme
Rey (2006).
Ao tomar para si o conhecimento a ser
apropriado, o sujeito resignifica aquilo que está
sendo objetivado e assim reorganiza internamente
um conhecimento que foi primeiramente externo
e social, antes de ser internalizado singularmente.
A aprendizagem assume tanto formas
históricas, com elementos singulares postos pelas
relações e organização sociais de um dado
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momento, quanto formas universais compostas
pelos elementos pertinentes ao gênero humano.
Aprender redunda em apropriar-se de
elementos da cultura que traz em si, conforme
Alves (2003), elementos de singularidade e de
universalidade como indissociáveis.
A educação escolar tem a finalidade de
promover o indivíduo, instrumentalizá-lo para
superar o senso comum, de forma que este se
torne “capaz de conhecer os elementos de sua
situação para intervir nela transformando-a no
sentido da ampliação da liberdade, da
comunicação e colaboração entre os homens”
(SAVIANI, 2002, p.38).
Diferentemente das formas espontâneas de
educação, o trabalho educativo é uma atividade
intencionalmente dirigida por fins, de acordo com
Duarte (2003). Mas o educando da EJA portador
de autonomia para solucionar problemas e
aprender com as questões cotidianas, ao inserir-se
na escola, percebe não poder contar tanto com
ela, como mostrou A9: “Esse ensino do supletivo
você não aprende muita coisa porque é uma coisa
bem mais rápida, tipo assim, já num colégio
assim normal onde você já frequenta cinco aulas
num período assim maior, você aprende
explicações bem melhor das coisas [...]”.
Entre os próprios adolescentes foi possível
verificar tanto aqueles que vislumbram a EJA
como caminho mais fácil para a conclusão dos
estudos, quanto outros que criticamente apontam
a fragilidade do exercício da prática educativa do
professor como fator de impacto sobre o processo
de ensino e aprendizagem. Podemos tomar como
referência disso a recente passagem pelo ensino
regular, como se vê em A8:
Eu entrei aqui mesmo por causa do curso e já que eu estou atrasado. [...] as escolas ensina mais, tem diploma que vale mais pra entrar nas firmas, no caso aqui [...] eles já não valoriza tanto. [...] você não aprende aqui não. Por causa que aqui eles não explicam nada. Eles dão a apostila assim e falam:“ Estuda”. Mas estudar o quê? “Lê”. Elas num fala nada. Aí você lê, faz a prova e do nada você já passa.
Entre esses sujeitos soou a cobrança por
ensino de qualidade, por uma prática docente
apropriada ao educando da EJA, por processos
avaliativos e currículos coerentes, enfim, por um
processo formativo eficaz.
As visões dos sujeitos presentes nessa
investigação deixaram evidências de que, mesmo
com toda sua trajetória de aprendizagens ao longo
da vida, o educando da EJA necessita de
intervenções didáticas eficazes, direcionadas e
coerentes. Tal fato revela um dos limites da
configuração semipresencial com a qual nos
deparamos nesse caso, uma vez que se percebeu o
destaque para uma prática educativa que continua
atribuindo ao sujeito o sucesso ou o fracasso no
processo de aprendizagem.
5. Considerações finais
A concretização da EJA sob a
configuração semipresencial apresentou
limitações materiais muito próximas àquelas
oriundas da sua condição não-formal, tão
marcada historicamente. Não obstante, a
perspectiva dos sujeitos, em sua maioria, não
evidencia as transformações já produzidas no
campo da EJA a partir das pesquisas, vivências e
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debates produzidos ao longo da história da
educação no Brasil.
Um relevante indício que evidenciou
aspectos como este foi a cultura do silêncio tão
presente no contexto de sala de aula,
descaracterizando o diálogo como ferramenta
primordial a serviço do processo de ensino e
aprendizagem de jovens e adultos.
A visão de educação que permeia esse
cenário tende a reduzi-la à escolarização, ao invés
de expandi-la num panorama de formação
humana. A partir dessa visão reducionista,
constatamos que ao sujeito professor tem sido
delegado a função de instruir e mensurar,
deixando de lado a tarefa de educar e formar.
Notamos que a organização
semipresencial, nos moldes em que se encontrava
no estudo, constituiu um dos fatores de
dificuldade para o educador acompanhar a
aprendizagem do educando, não contribuindo,
desse modo, para uma intervenção pedagógica
coerente com as reais necessidades do processo.
Outro elemento de destaque foi a presença
da cumplicidade essencial à relação professor-
aluno anunciada pelos sujeitos entrevistados.
Nesse sentido, o respeito, a admiração e a
cooperação entre os atores continuam sendo
preponderantes na realimentação da EJA como
resgate social.
Porém, demonstrou ser esse mesmo
destaque de acolhimento o que a distancia da
objetividade que deve permear a educação
escolar, no que se refere ao alcance de propósitos
como o de garantir a apropriação, a socialização e
a produção de novos conhecimentos para
contribuir efetivamente com a superação da
condição de marginalidade social de seus
educandos.
Os educandos da EJA que colaboraram
com o estudo chegaram a essa modalidade de
ensino mobilizados pela necessidade de trabalho,
pela conquista de uma condição mais digna de
vida, pelo desenvolvimento de seu potencial e
pela elevação da autoconfiança e autoestima.
No entanto, o ensino semipresencial no
formato estudado também ocupa uma condição
de marginalidade, dado aos limites materiais,
estruturais e pedagógicos que comumente o
assolam. As fragilidades pedagógicas não estão
instaladas por falta de vontade ou
descompromisso de seus atores, mas sim devido à
insuficiência da formação inicial e continuada
dirigida ao educador de jovens e adultos e,
consequentemente, à atenção voltada a EJA no
terreno das políticas públicas.
Nesse processo educativo verificou-se que
os educandos que chegam à EJA excluídos pelos
mais recentes mecanismos e anulados ao longo da
vida, enquanto atores sociais, passaram a
incorporar a responsabilidade pelo próprio
insucesso escolar e pela sua condição marginal
em distintos espaços da sociedade. Ou seja,
enquanto atores sociais demonstraram sentir-se
culpabilizados pelo fracasso e pelas limitações
geradas pela própria estrutura capitalista, num
processo de naturalização de suas formas de
exclusão e alienação.
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Tem sido notável a consolidação histórica
dos espaços de produção da EJA e da construção
de suas políticas, que podem ser comprovadas
através da sua oferta regular pela rede pública de
ensino, mesmo com seu insuficiente
financiamento.
Apesar disso, sua mais nobre riqueza: seu
teor político e as metas de transformação social
não encontram eco na experiência de EJA
semipresencial materializada no contexto escolar
aqui estudado.
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Um olhar sobre a postura do educador da
Educação de Jovens e Adultos numa
perspectiva freiriana
Maria Teresinha Kaefer e Silva1
Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. [...] não posso ser professor a favor de quem quer que seja e a favor de não importa o quê.[...] Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura da direita ou da esquerda. Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais.[...] Sou professor a favor da esperança que me anima apesar de tudo.[...] (Freire1996, pág.115).
Resumo: Este artigo refere-se à postura do educador da
Educação de Jovens e Adultos, do medo e da ousadia que
permeia suas ações. Traz para a reflexão possibilidades
teóricas e concretas para mudanças da prática educativa, a
luz do legado de Paulo Freire. È parte da sistematização de
minha experiência como educadora popular da EJA no RS.
Palavras-chaves: Educação de Jovens e Adultos,
Formação continuada de educadores, Legado de Paulo
Freire.
Introdução
Não se pode criar um país democrático e
desenvolvido sem que a educação tenha se
estendido a todos. “Um país democrático não
precisa de grandes luminares da ciência e da
1 Professora da Rede Estadual de Ensino do RS, atualmente diretora do Neejacp Metamorfose(Núcleo de Educação de Jovens e Adultos e Cultura Popular) Metamorfose de Bento Gonçalves/RS.Especialista em PROEJA/UFRGS. Mestranda na linha de pesquisa Educação Popular e Movimentos Sociais/UFRGS.
técnica, como precisa de um povo esclarecido e
instruído” (Gadotti, 1985, p. 125). Precisa-se de
clareza para desenvolver um país culturalmente,
deve-se ter uma leitura política e social da
educação, sendo então, uma tarefa coletiva,
popular e democrática. É nesta perspectiva que
incluo a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e o
PROEJA2 como pequenos fragmentos
esperançosos de uma ação cultural.
Nesse contexto, pensar numa oferta de
EJA que considere as características individuais,
os limites e possibilidades de cada sujeito do
processo é articular a proposta pedagógica com o
respeito aos saberes dos educandos, sobretudo
quando estes jovens e adultos são na sua
totalidade oriundos da classe trabalhadora,
marginalizados, pobres, subempregados e
oprimidos.
Como fazer isso? Certamente esta é uma
pergunta que não quer calar. Procuram-se
respostas em cursos, formações, diálogos e troca
de experiências com colegas, tudo isso é parte do
repensar a prática pedagógica, de refletir sobre a
postura do professor, de avaliar que tipo de
pedagogia norteia a sua prática: a que dá mais
força ao silêncio ou a que procura, de alguma
maneira, criar oportunidade de dar-lhes a palavra.
2 Programa Nacional de Integração de Educação Profissional com a Educação Básica na modalidade de Jovens e Adultos-do governo federal, envolvendo as escolas federais brasileiras, implantado em 2006.
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Educação de Jovens e Adultos – um desafio...
Ao longo da história da EJA, pode-se
considerar a idéia de movimento3desta
modalidade, articulado entre o saber acadêmico e
o construído em sala de aula de forma criativa,
corajosa, cheia de ressignificações. Assim, ao
tecer ligações de coragem e destemor,
relacionando os atos pedagógicos com a política,
não só percebendo as relações escola -
comunidade, mas também estabelecendo relações
entre o que se ensina e o conteúdo ideológico do
que se ensina, os sujeitos educadores e educandos
da EJA contemplam possibilidades diferentes de
aprender e ensinar, respeitando a diversidade e a
pluralidade de idéias.
Transportar para a EJA um olhar
esperançoso, de resgate dos direitos negados aos
sujeitos trabalhadores, grande demanda desta
modalidade, é sem dúvida pautar no espaço de
escolarização o direito à cidadania ativa desses
homens e mulheres. Nesse sentido é que trago
para reflexão um pequeno texto de nosso grande
sociólogo Betinho, retirado do Almanaque do
ALUÁ n. 02, de 2006, p.87:
São cinco os princípios da democracia, são cinco e juntos totalmente suficientes. Cada separado já é uma revolução. Pensar a liberdade, o que acontece em sua falta e o que se pode fazer em sua presença.
A igualdade, o direito de absolutamente todos e a luta sem fim para que seja realidade. E assim o poder da solidariedade, a riqueza da diversidade e a força da participação. E quanta mudança ocorre por meio deles.
3 O processo que norteia a educação popular é o movimento que dá um caráter dialético para a educação, contextualizando o processo real dos sujeitos envolvidos nele.
Se cada separado quase daria para transformar o mundo, imaginem todos eles juntos. O desafio de juntar a igualdade com diversidade, de temperar com solidariedade conseguida pela participação. Essa é a questão da democracia, a simultaneidade na realização concreta dos cinco princípios, meta sempre irrealizável e ao mesmo tempo possível de se tentar a cada passo, em cada relação, em cada aspecto da vida [...].
Cidadania e democracia se fundam em princípios éticos e, por isso, tem o infinito como seu limite. Não existe o limite para a solidariedade, a liberdade a igualdade, participação e diversidade... democracia é uma obra inesgotável.
Seguindo a linha de pensamento do
Betinho, trago para consideração atenta alguns
princípios que me são caros4 na discussão da
Educação de Jovens e Adultos: Igualdade de
acesso e permanência a escolarização para todos:
trabalhadores, desempregados; todos que não
tiveram acesso à educação em idade adequada.
Uma educação de qualidade que realmente faça a
diferença na vida dos sujeitos, que parta do
princípio da riqueza da diversidade, que possa
trabalhar com os limites e possibilidades de cada
um, pressupondo respeito às diferenças, as
particularidades, e ao mesmo tempo, ser feito um
trabalho coletivo, que venha ao encontro de uma
prática que viabilize a transformação da realidade
micro e macro em que está inserido o cidadão, na
construção de um mundo mais solidário e justo
para todos.
Chamo atenção para estes princípios que
se misturam, não existindo limites para tal. A
democracia se faz presente no cotidiano da EJA
quando educador e educando reconhecem-se
como interlocutores do processo, Estando no 4 Que são tidos em grande importância, que são imprescindíveis para esta modalidade.
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mundo (expressão freiriana), buscando um
diálogo verdadeiro, na perspectiva da ação-
reflexão–ação, certos de seu inacabamento.
Acredita-se veementemente que se pode transpor
essas palavras para o cotidiano da Educação de
Jovens e Adultos.
Formação continuada na EJA: garantia da possibilidade de mudança de paradigmas
Sem dúvida, percebe-se ruídos em relação
à concepção de EJA, ainda hoje - como ensino de
segunda categoria, herança trazida pela história,
pela falta de políticas públicas para a educação de
adultos em nosso País. Segundo Haddad e Di
Pierro (1999 e, apud caderno da EJA1, 2000,
p.9)” a preocupação com a EJA não se distinguia
como fonte de pensamento pedagógico ou de
políticas educacionais específicas”. Certamente, a
Educação de jovens e adultos mexe e desestrutura
o modelo arcaico de educação que a escola ainda
insiste em desenvolver.
Tenho a convicção que à EJA está
diretamente ligada à formação da cidadania ativa
dos sujeitos jovens e adultos, contribuindo de
forma direta na trajetória de vida das pessoas, na
projeção de diferentes possibilidades. Tem um
caráter transformador de mudanças reais na vida
dos sujeitos e da comunidade, contribuindo na
busca de uma vida com qualidade social. A EJA,
na maioria das vezes, aparece vinculada a um
projeto de educação e sociedade voltado para a
Gentetude5 do ser humano ,na qual o sujeito tem
o direito de optar , decidir e fazer suas escolhas.
5 Gentetude - expressão freiriana que quer dizer “gente com atitude”.
A EJA é parte da educação popular que
representa com exatidão a imediata e permanente
participação popular.
[...] ampliação de possibilidades de vida e de condição para a emancipação individual, reflexão e transformação da realidade, acesso ao conhecimento sistematizado. Ela não é neutra nem estéril, vai sempre tomar parte e gestar repetição se estiver voltada para a manutenção do sistema; transformação se estiver voltada para as classes populares, para a libertação. (Borges, 2005, p.24)
Muitas são as limitações que surgem no
desenrolar de uma ação que envolve rompimento
de paradigmas, no caso da EJA, dificultando o
processo de evolução no campo educacional,
criando uma espécie de proteção a qualquer tipo
de sedução possível, na intenção de quebrar
protótipos até então tidos como únicos e
absolutos. “O desrespeito à leitura de mundo do
educando revela o gosto elitista, portanto
antidemocrático, do educador que, desta forma,
não escutando o educando, com ele não fala. Nele
deposita seus comunicados.” (Freire, 1996,
p.139)
Quando se fala no modo elitista de ser
educador, fala-se na falta de consciência do
educador sobre seu espaço e sua classe. De uma
educação pautada na perpetuação da ordem social
vigente, na qual há uma visão dicotômica sobre a
questão do direito à educação: uma educação para
ricos, educação para excelência; e outra para
pobres, educação para a certificação e a serviço
do mercado de trabalho, como se o saber popular
não pudesse completar o científico e ambos
serem instrumentos para recriar o mundo de
forma esperançosa.
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Importante que se esclareça a centralidade
da ênfase curricular na EJA, que não corresponde
à mera aquisição de conhecimentos e, tampouco,
a uma menor “profundidade” ou a uma
abordagem resumida. O currículo da EJA deve
agregar um caráter desafiador, esperançoso e de
real importância para aqueles trabalhadores a
serem “atingidos” por ele.
É uma transgressão dizer que é necessário
construir uma relação dialógica entre os sujeitos
do processo ensino-aprendizagem, se há uma
distância entre o educador e o cotidiano dos
educandos em nome de uma “qualidade
mercantilista e conteudista”, não respeitando o
caráter humanista da educação.
O ato de ensinar e de aprender, dimensões do processo maior-o de conhecer -fazem parte da natureza da prática educativa. Não há educação sem ensino, sistemático ou não, de certo conteúdo. E ensinar é um verbo transitivo-relativo.Quem ensina, ensina alguma coisa-conteúdo-a alguém-aluno. A questão que se coloca não é a de se há ou não educação sem conteúdo, a que se oporia a outra, a conteudística porque, repitamos, jamais existiu qualquer prática educativa sem conteúdo. (Paulo Freire, 1992, p.110)
Cabe buscar a medida exata entre o que se
quer como educador e o que os educandos
querem como agentes do processo. É preciso ter
um “outro olhar” para esses sujeitos (educandos),
ir além da superfície do conteúdo como
conhecimento. Transpor os olhares para uma
educação humanizadora, vinculada ao desejo de
ensinar e aprender, construindo um projeto
educativo, voltado para as classes populares na
tentativa de contribuir na construção de uma
sociedade auto-sustentável, com a preservação
dos direitos do ser humano na sua totalidade.
Para isso o educador precisa reeducar os
olhares e as escutas, relacionando o significado
do vivido e do percebido. Fazendo conexões com
a realidade micro e macro, apreendendo os
significados de cada fala, cada olhar, num nível
de consciência crítica de estar no mundo (como
diz Paulo Freire), olhando para aqueles sujeitos
como únicos, construtores da história, que se
relacionam no meio social em que vivem. Ana
Maria Freire (2000, p.26) chama atenção para o
fato de “que o ato de escutar, em Freire, supera o
ato de ouvir, indo além deste, pois incorpora, ao
ouvir, o sentir e o sistematizar o que ouve”.
Durante o processo de docência o
professor constrói sua prática reflexiva,
pesquisando, investigando, numa relação dialética
entre o “já conhecido“ e o “desafio do novo”,
constituindo uma mediação da teoria com a
prática, visualizando de forma coletiva e
interativa a reelaboração do saber.
Portanto, é na atitude reflexiva que o professor reencontra suas perspectivas, enquanto um dos sujeitos do trabalho educativo. Refletindo, ele torna consciente o que poderia parecer apenas preconceito, sem embasamento científico. Ao mesmo tempo refletindo, o professor busca a clareza suficiente para acreditar em sua proposta educativa e, de antemão, sabe-se que sem um ideal, sem uma crença a educação ecoa no vazio (Goller, 1996,p.7)
Entre docentes da EJA (e mesmo entre os
docentes de outras modalidades) percebe-se, em
alguns momentos, o medo de ousar, de correr
riscos, que implica na tomada de posição a
respeito da opção desejada, desconstruindo
saberes dados, talvez pela academia, ou
amarelados pelo tempo, como importantes e
únicos. Faço minha as palavras de Paulo Freire
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quando, em diálogo com Ira Shor, no livro Medo
e ousadia (1987, p.68), refere-se ao medo do
educador como algo concreto e não uma
abstração:
Na medida em que tenho mais e mais clareza a respeito da minha opção, de meus sonhos, que são substantivamente políticos e adjetivamente pedagógicos, na medida em que reconheço que, enquanto educador sou um político, também entendo melhor as razões pelas quais tenho medo, porque começo a antever as conseqüências desse tipo de ensino. Pôr em prática esse tipo de educação que prova criticamente a consciência do estudante, necessariamente trabalha contra alguns mitos, que nos deformam.Esses mitos deformadores vem da ideologia dominante na sociedade. Ao contestar esses mitos também contestamos o poder dominante. [...] Devemos estabelecer limites para nossos medos. Antes de mais nada, reconhecemos que é normal sentir medo. Sentir medo é uma manifestação de que estamos vivos. Não tenho que esconder meus temores. Mas o que não posso permitir é que meu medo seja injustificado e que me imobilize.[...] O medo pode ser paralisante.
Uma nova compreensão sobre a prática
educativa vem do reconhecimento da
mundanidade6 de homens e mulheres capazes de
protagonizar sua história, reconfigurando-a. De
fato, nesse aspecto, a prática educativa da EJA
contempla a multiplicidade dos educandos,
homens e mulheres, jovens e adultos, com
trajetórias diferentes, níveis de escolarização
diversificados, esforços e tempos diferenciados
de construção de conhecimento, assim como uma
estreita relação entre educação e trabalho, tendo
como intencionalidade a educação ao longo da
vida.
É nesse contexto que trago alguns
elementos do livro Pedagogia da autonomia de
6 Mundanidade é uma expressão freiriana que denota o sentido do homem e da mulher na sua totalidade de sujeito, com seus limites e possibilidades.
Paulo Freire (1996), para voltarmo-nos à
formação continuada dos educadores,
desencadeando um debate com densidade teórica
necessária, ao mesmo tempo em que reforça a
intencionalidade da mudança, do olhar do
educador de jovens e adultos, no importante
processo de direito e consolidação como política
pública desta modalidade, quer em âmbito
municipal, estadual ou federal.
Humildade - Exige de nós decência e
seriedade, que não constitui fraqueza, apatia, ou
falta de consideração consigo mesmo. A
humildade é característica dos sujeitos sábios,
seguros e de bom senso. É certamente
característica essencial para um educador
democrático. A humildade exige que tenhamos a
coragem de rever nossas práticas, de não termos
uma verdade única. No contexto do educador da
EJA, a humildade traz ressignificações para a
prática educativa, no sentido da ação-reflexão e
ação.
[...] Como posso respeitar a curiosidade do educando se, carente de humildade e da real compreensão do papel da ignorância na busca do saber, temo revelar meu desconhecimento. Como ser educador, sobretudo numa perspectiva progressista, sem aprender, com maior ou menor esforço, a conviver com os diferentes? Como ser educador, se não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte? Não posso desgostar do que faço sob pena de não fazê-lo bem. (Freire, 1996, p.75)
Capacidade para correr riscos – É
legítimo dizer que quem corre risco na educação,
ousa, busca, pesquisa, inova com seriedade,
coopera na transformação e produz saberes,
abortando de vez a desesperança, assume seu
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papel de estar no mundo. “É próprio do pensar
certo a disponibilidade ao risco, a aceitação do
novo, que não pode ser negada ou acolhida só
porque é novo, assim como o critério de recusa ao
velho não é apenas cronológico.” (Freire,
1996,39).
Acreditar numa proposta de EJA voltada
para a ousadia de transformar é correr riscos, é ter
a coragem de trilhar por caminhos desconhecidos,
é pesquisar e dessa pesquisa criar novas teorias,
fazer releituras das já existentes. Na medida em
que vão surgindo os obstáculos é saber buscar
soluções para cada um, na medida certa. Correr
riscos é uma virtude primordial, que implica em
ousadia, perseverança e atitude do educador.
Rigorosidade metódica – Enfatizamos a
importância do princípio da rigorosidade que
nada tem a ver com autoritarismo, com o mero
exercício repetitivo de transferir conteúdos, com
discurso bancário.
O educador que, segundo Paulo Freire
(1996), se pauta pela rigorosidade metódica dá
sinais de sabedoria e de segurança; sabendo o que
faz, com o olhar democrático, voltado para a
transformação do saber popular em saber
científico, na perspectiva de uma educação que
emancipe o sujeito e o torne, cada vez mais,
construtor de seu conhecimento e
consequentemente protagonista de sua história.
A rigorosidade de que falo não é aquela
que se escamoteia na superficialidade do
conteúdo, mas que vislumbra a possibilidade de
aprender criticamente, que perceba a totalidade e
a importância das relações entre todos os
instrumentos e estratégias adotadas.
O educador ou a educadora crítica, exigente, coerente, no exercício de sua reflexão sobre a prática educativa, ou no exercício da própria prática, sempre a entende na sua totalidade. Não centra a prática educativa, por exemplo, nem no educando, nem no educador, nem no conteúdo, nem nos métodos, mas a compreende nas relações de seus vários componentes, no uso coerente por parte do educador ou da educadora dos materiais, dos métodos, das técnicas. (Freire, 1992, p.110)
Tecendo algumas conclusões...
Estou convencida que, de fato,
aprendemos e ensinamos diariamente e, em todas
as situações, precisamos construir uma nova
cultura de formação entre os educadores,
fortalecendo ainda mais a formação continuada.
Para isto é imprescindível a pesquisa, o debate e o
aprofundamento sobre o contexto no qual são
tecidas as relações sociais, econômicas e políticas
dos envolvidos.
Certamente, é necessário que se reveja a
importância da relação professor-aluno na
construção de uma prática educativa
humanizadora, calcada na possibilidade de
mudança das relações de poder.
O processo de formação se dá de acordo
com o perfil de cada grupo de educadores,
considerando suas possibilidades e limitações,
sendo necessário e fundamental não perder de
vista, a construção metodológica baseada na
ação-reflexão-ação. Penso que a formação de
professores é uma construção cheia de boniteza,
edificada com dores e desafios, mas voltada para
a mundanidade dos sujeitos educadores e
educandos.
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Por isso, é extremamente fundamental que
na EJA, corajosamente, o poder público invista
fortemente na formação continuada de
educadores, tornando-a parte essencial na
implantação de uma política pública para esta
modalidade.
As reflexões que perpassaram nosso
diálogo nestas páginas apontam na direção de
alguns caminhos. Em minha experiência,
enquanto educadora e pesquisadora, pude
contatar a importância da formação inicial para
educadores da EJA, pautando princípios e
concepções, estendendo esta formação para uma
prática continuada semanal ou quinzenal, com
uma concepção voltada para a educação como
ação cultural. A pesquisa, os estudos, as reflexões
são fundamentais na escolha de uma metodologia
que traga para dentro da escola o cotidiano dos
sujeitos - seus saberes feitos (saber popular) - e os
transformem (saber científico), assim como o
fortalecimento do coletivo dos educadores e a
certeza de que o mais certo é não ter a certeza de
tudo, construindo permanentemente e de forma
coletiva o cotidiano da EJA.
Termino minha escrita com um parágrafo
do livro Pedagogia da esperança; um reencontro
com a Pedagogia do oprimido:
Não posso entender os homens e as mulheres, a não ser mais do que simplesmente vivendo, histórica, cultural e socialmente existindo , como seres fazedores do seu “caminho” que, ao fazê-lo, se expõem ou se entregam ao “caminho” que estão fazendo e que assim os refaz também.” (Freire, 1999, p.97)
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“Mulher não precisava estudar”: relatos de
vida e de violência simbólica
Andréia da Silva Pereira1
José Carlos Miguel2
Resumo: Neste artigo objetivamos apresentar os relatos
orais de vida de três educandas do Programa de Educação
de Jovens e Adultos (PEJA) e discutir as relações entre
família, feminino e educação. Tendo como categorias de
análise as teorizações sobre gênero e violência simbólica,
observamos as mudanças e permanências em relação à
pluralidade de identidades das mulheres participantes da
pesquisa realizada; identidades essas que são sociais e que
remetem ao que significa a educação escolarizada para as
entrevistadas.
Palavras-chave: Educação de Adultos. Escolarização de
mulheres. Relações de gênero.
Mulheres em sala de aula
Estudar o feminino implica em tomar
demasiadas precauções a fim de não vitimizar ou
heroicizar os sujeitos da pesquisa3, pois as
mulheres são atrizes de sua história, mas não
compreendem sujeitos isolados dos
acontecimentos. Foram, por muitas vezes,
sujeitos silenciados, mas têm as suas vozes, as
suas versões dos fatos. E fatos que, no contexto
da pesquisa, tomaram proporções diferenciadas,
pois são mulheres de uma história em construção,
num distrito denominado Padre Nóbrega. Mas,
1 Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual Paulista e pesquisadora em alfabetismo funcional. 2 Doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista, coordenador geral do PEJA (Programa de Educação de Jovens e Adultos). 3 Soihet (1997) e Louro (1997) são autoras que alertam para esta precaução quando os estudos referem-se ao feminino.
que olhar focaria a sua atenção para um distrito a
9 Km da cidade de Marília – localizada no
interior do estado de São Paulo– e com pouco
mais de 5000 habitantes?4 E que realidade
poderia revelar a emergência de um estudo
naquela localidade?
Ao fim do ano de 2001, com diversas
questões sobre os motivos que configuravam o
feminino como perfil dos educandos do PEJA5
em Padre Nóbrega, iniciamos pesquisa na área da
educação de jovens e adultos que relacionou
mulher e educação, num estudo sobre os motivos
que impulsionavam as mulheres residentes no
distrito de Padre Nóbrega a freqüentarem as aulas
do programa.
Foram quatro anos de pesquisa em que,
considerando a peculiaridade do PEJA em Padre
Nóbrega, reorganizamos nossas observações
acerca dos motivos que impulsionavam a
presença das mulheres no Programa. A presença
feminina reconfigurava não somente o espaço
físico da sala de aula, mas também os modos
como os discursos das educandas retratavam uma
visão de mundo acerca do feminino e do
masculino de um ponto de vista biológico da
diferença que, em verdade, fora construída
cultural e historicamente.
4 Dados fornecidos pela Comissão Organizadora dos Registros Históricos da Câmara Municipal e da cidade de Marília no último levantamento feito, em 1994. 5 O Programa de Educação de Jovens e Adultos (PEJA) está vinculado ao Programa UNESP (Universidade Estadual Paulista) de Integração Social e Comunitária da PROEX (Pró Reitoria de Extensão Universitária). No campus de Marília – cidade em que se localiza a Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista - é desenvolvido desde 2001.
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De posse dessas considerações, de um
universo de 16 educandas, foram selecionadas 3 -
por meio de sorteio – para a realização de
entrevistas, baseadas nos relatos orais de suas
vidas6. Todas as entrevistas foram realizadas no
ano de 2003, com duração média de três horas
cada, realizadas na casa de cada uma das
educandas, conforme as condições abaixo
descritas (nome da entrevistada, idade, grau de
escolaridade, estado civil e condições de
entrevista):
� Clarinda, 58 anos, freqüentou a escola
regular por menos de seis meses, casada.
A entrevista transcorreu bem, sendo que o
marido da entrevistada levou as netas para
passear, deixando a sua esposa mais à
vontade para falar. Ela não demonstrou
vergonha e falou de várias passagens de
sua vida, indo além das questões básicas
feitas.
� Benedita, 72 anos, freqüentou a escola por
um ano, casada. Foi uma entrevista
realizada na casa da aluna, que se sentiu
insegura durante a entrevista ao falar do
seu marido e das violências cometidas por
ele há anos atrás. Demonstrou rancor
quando relatava as pressões sofridas para
6 Todas as educandas permitiram a publicação de seus relatos orais por meio do Termo de Livre Consentimento, aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Filosofia e Ciências – Campus de Marília. As entrevistas foram realizadas na residência de cada educanda por solicitação das mesmas. O argumento das entrevistadas para tal solicitação teve base no fato de que, como donas de casa, não poderiam se ausentar do lar no período diurno e vespertino. O período noturno ficava reservado para a freqüência das aulas do PEJA.
que não estudasse; houve seleção rigorosa
por parte da entrevistada sobre o que
relataria ou não para mim e do que
desejava ou não que fosse publicado. No
início da entrevista estávamos somente eu
e ela, mas o marido da entrevistada
chegou e, quando notou a presença do
gravador, passava pela cozinha a todo o
momento para pegar copos de água.
� Aparecida, 70 anos, nunca freqüentou a
escola, casada. A entrevista foi realizada
na cozinha da casa da aluna e a sua
preocupação era com o que ela deveria
falar. No início das questões, ela ainda me
tratava hierarquicamente como professora
e não como entrevistadora. O filho da
entrevistada saiu da casa para que a
entrevista pudesse ser realizada. A
entrevistada solicitou o desligamento do
gravador para relatar momentos de sua
vida que não desejava ver publicado.
Para a realização das entrevistas, as
abordagens e os métodos e materiais adotados
qualitativamente tiveram base fundamental nos
autores que abordam e discutem os relatos orais
de vida, tais como Queiroz (1987, 1988) e Trigo
(1992). Os materiais utilizados para o andamento
da pesquisa tiveram relação direta com o tipo de
abordagem adotada. Nesse sentido, as entrevistas
realizadas com as três educandas selecionadas
foram gravadas, sendo que seus dados foram
registrados em fichas de identificação,
contemplando informações como idade, sexo e
estado civil.
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Partindo do embasamento teórico
fundamental e dos materiais utilizados, a pesquisa
teve como método inicial adotado a análise
bibliográfica e documental, aprofundando os
temas referentes ao desenvolvimento histórico da
educação de jovens e adultos, bem como gênero e
educação feminina.
Esses elementos serviram de base para a
análise das entrevistas com as educandas que
foram transcritas e analisadas tematicamente,
com base em Queiroz (1987), de modo que foram
destacados os tópicos em comum nos relatos –
considerando que o eixo fundamental está
relacionado a seus relatos orais, a partir do acesso
e permanência à educação e a atual freqüência
nas salas de EJA, na perspectiva de gênero.
As entrevistas foram recompostas a partir
da importância e da seqüência dos temas
encontrados nos relatos, considerando que eles
poderiam encaminhar as análises para outros
temas, relacionados à EJA e aos motivos que
impediram as três educandas entrevistadas de
freqüentarem a escola em idade escolar. Os
depoimentos, assim, foram reunidos a partir da
temática a que pertencem, numa análise-síntese
documental, desejando captar nos relatos orais de
vida extra-escolar e aspectos nos relatos que são
relevantes e poderiam ser considerados em sala
de aula.
As entrevistas foram realizadas nas casas
das educandas, em momentos que elas julgaram
mais adequados, sendo as falas gravadas em fitas
cassete. Inicialmente era comum a vergonha
tomar conta das alunas, mas elas iam se
acostumando e quando víamos, elas já estavam
falando até de outros assuntos, transformando as
entrevistas em conversas agradáveis.
As entrevistas tiveram base para serem
realizadas em LÜDKE, considerando que:
Parece-nos claro que o tipo de entrevista mais adequado para o trabalho de pesquisa que se faz atualmente em educação aproxima-se mais dos esquemas mais livres, menos estruturados [...] Há uma série de exigências e cuidados requeridos em qualquer tipo de entrevista. Em primeiro lugar, um respeito muito grande pelo entrevistado. Esse respeito envolve desde um local e horário marcados e cumpridos de conveniência até a perfeita garantia do sigilo e anonimato em relação ao informante, se for o caso. (LÜDKE, 1986, p. 34-35)
Foi adotada, assim, a entrevista com
questões semi-estruturadas para que as educandas
pudessem discorrer melhor em seus relatos. Em
respeito ao sigilo e individualidade de cada
entrevistada, foi questionado às mesmas sobre a
autorização ou não da divulgação de seus nomes.
As autorizações foram dadas, conforme
explicitado no início deste texto, a partir do
Termo de Livre Consentimento.
Para que a abordagem em gênero e
educação de jovens e adultos contemplasse, de
fato, a relações entre homens e mulheres e a sua
possível relação com o processo educativo no
projeto Educação de Jovens e Adultos, a
perspectiva do relato oral de vida tornou-se
fundamental. Isso porque é através dele que se
torna possível conhecer a forma como o sujeito se
vê e como a sua vida tem relação direta com a
falta de acesso à educação escolarizada.
Outro aspecto relevante foi a abordagem
da vida dos alunos na perspectiva de sujeito ativo
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da sociedade e como aluno que busca na EJA
uma tentativa de retorno aos estudos. Isso
considerando o jovem e adulto em diferentes
enfoques, pois estes carregam diversas
experiências de vida, sejam elas escolares ou não,
que não podem ser excluídas do ambiente em que
as aulas ocorrem; isso abarca a necessidade de
conhecer, de fato, os motivos que configuram um
determinado alunado nas salas de EJA em Padre
Nóbrega.
Esses aspectos tornam-se importantes ao
passo que conhecer os relatos das educandas
promove a obtenção de elementos para a
construção de uma proposta pedagógica nessa
modalidade de educação e suas realidades.
Reconhecer o relato oral de vida como
instrumento de análise do cotidiano dos alunos e
também dos motivos que impediram seu acesso
e/ou permanência à educação escolarizada,
ampliando o campo de pesquisa e a
multiplicidade de objetos a serem analisados.
A perspectiva adotada partiu do conceito
de gênero como categoria de análise, conforme
proposto por Louro (1997), Benoit (2000), Priore
(2000) e Muraro (1993), tendo sido possível,
assim, a realização de pesquisa de campo que
privilegiava as relações que impediram o acesso
das entrevistadas à educação escolarizada.
Gênero e violência simbólica
Para compreender as questões que
relacionam violência simbólica e os discursos das
educandas entrevistadas fundamentamos as
análises nas considerações de Pierre Bourdieu,
mais especificamente em seus conceitos de
habitus, campus e violência simbólica, que
elaboram um conjunto de disposições do agir,
pensar e sentir de determinada maneira
(BOURDIEU, 1989). O habitus gera as práticas e
as representações, e é imposto, porque o habitus
gera práticas e representações pertinentes às
instituições, inclusive a familiar, que condiciona
o aprendizado e, no caso de gênero, cria
identidades de feminino e masculino. Tais
identidades são construídas social, histórica e
culturalmente e orientam e constituem as ações
de homens e mulheres, sendo também construídas
nas relações entre homens e mulheres. Nesse
contexto, acaba por existir um sistema de
disposições que dão significado às ações e às
representações do indivíduo. Esse sistema adentra
as consciências e perpassa as práticas e estruturas
sociais e individuais (BOURDIEU,1989). Nas
constituições de feminino e masculino o conceito
de violência simbólica se apresenta de diversos
modos, incluindo gestos e falas, pois a própria
construção de identidades feminina e masculina
se dá na interiorização das categorias que
expressam e reproduzem uma forma de violência.
Ou seja, são violentados simbolicamente, homens
e mulheres, para que os papéis socialmente
construídos sejam reproduzidos. Não é necessário
que exista agressão física para que seja
caracterizada a violência:
A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante ( e, portanto, à dominação) quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para pensar sua relação com ele, mais que de instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo mais que a forma incorporada da relação de
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dominação, fazem essa relação ser vista como natural. (BOURDIEU, 1999, p. 41)
A própria violência simbólica tem
modalidades. O discurso é uma delas, pois
evidencia e reforça as representações de feminino
e masculino. Inserida nessa consideração, uma
questão fundametal que envolve a discussão em
torno da violência simbólica está nas relações
entre homens e mulheres, pois a sutileza com que
a violência atinge os gêneros permite
compreender melhor como a força física e a
imposição pela agressão passam a ser elementos
menos convincentes que um discurso ou gesto.
Esses elementos é que buscamos analisar na
pesquisa.
Dos conceitos que discutimos - a partir da
análise dos dados - elaboramos um esquema de
como a violência simbólica pode se materializar
nas relações entre homens e mulheres:
De modo geral, a construção social da
polaridade feminino X masculino acaba por se
justificar na diferença física e, assim, a adesão
dos que são dominados. No caso das mulheres,
ocorre, entre outros fatores, porque a
naturalização do processo de dominação, pois a
naturalização das relações de gênero transforma o
que é histórico e imposto em algo entendido
como um processo comum, é visto/tido como
correto. É como nascer homem ou mulher, ou,
feminino ou masculino a partir da diferença
anatômica. O social toma o biológico e faz dele a
justificativa para as mais variadas formas de
dominação e a masculina passa a ser determinada
pela força física, oposta ao sexo frágil, à
feminilidade.
No campo das relações de dominação, no
entanto, deve-se considerar, ainda, que
Por outro lado, a incorporação da dominação não exclui a presença de variações e manipulações por parte dos dominados. O que significa que a aceitação, pela maioria das mulheres, de determinados cânones não significa, apenas, vergarem-se a uma submissão alienante, mas, igualmente, construir um recurso que lhes permitam deslocar ou subverter a relação de dominação. (SOIHET, 1997, p. 12)
Em relação à violência simbólica, a
construção do ideal de feminino e masculino ao
longo da história, na história das mulheres em
geral ou na das educandas entrevistadas,
exemplifica como as representações tomam as
consciências e transformam a violência evidente
em mascaração e conseqüente naturalização do
social, ou seja, como a diferença meramente
sexual deixa de ser primordial para dar lugar ao
construído social e historicamente através de
discursos e ações normatizadoras.
O poder, nesse contexto, toma forma nas
relações de dominação, no construído e
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reformulado, na troca das posições de dominação,
na violência simbólica contra si mesmo. O
dominar e ser dominado surge e se reforça nas
relações construídas e é, nesse ponto, que as
relações de poder têm importância, uma vez que
Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais do que se possui, que não é o privilégio adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito do conjunto de suas posições estratégicas – efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos que são dominados. (FOUCAULT, 1987, p. 29)
Há uma relação e não um elemento que se
possui. Interessa então as relações de poder, que
são múltiplas e estão em troca a todo o momento.
Ela se dá de forma sutil e contínua. Nas relações,
tem-se poder sobre a ação sem estar diretamente
agindo sobre o sujeito e isso se dá de forma
mascarada. O poder não precisa estar explícito
para ser exercido. Ao contrário, ele tem mais
influência quando exercido sem chocar, sem ferir
diretamente, em uma espécie de convencimento,
de naturalização.
Violentar o outro significa, no contexto
das questões de gênero, diferenciar atitudes
femininas e masculinas. Ser homem é ser
masculino, no sentido social da palavra, ou, ter
atitudes ditas de machos. Ser mulher, ao
contrário, é ter atitudes frágeis, femininas, de
fato. Dessa forma, o que não é naturalizado,
normal, perde o seu valor.
Esse poder não só reprime como constrói
nas mentes conceitos de normal e anormal. O
julgamento do que é ser feminino ou masculino é
construído, reformulado e reforça as relações de
poder existente entre os gêneros.
Isso ocorre porque o poder é forte. O
poder reprime, mas essa não é sua exclusividade,
pois ele convence nas relações. Ao mesmo tempo
em que cria hierarquias, ele fabrica, adestra,
molda, constrói necessidades, opiniões, ações
(FOUCAULT, 1979). Ele modela o ser e o sentir,
feminino e masculino, nas formas mais sutis da
construção, da normatização.
Os meios de manutenção das relações de
poder são os mais diversos. Além dos discursos,
temos meios de comunicação e instituições
diversas. Quantas vezes jornais, revistas, músicas,
igrejas, escolas e a família não ditaram o ser
feminino e masculino?
No caso das educandas entrevistadas,
esses elementos permitiram a análise dos modos
como o feminino e suas relações sociais são
permeados pelas construções sociais. As
necessidades de estudo, trabalho, de exercer a
maternidade e outras, transformam a negação ou
o impedimento de acesso à educação escolarizada
em um conjunto de permanências e mudanças,
em que ser mulher, por vezes, significou
transgredir e/ou silenciar.
Mulher e educação: permanências e mudanças
Por que entrevistar três mulheres? O que
as havia impedido de estar na escola
anteriormente? Essas questões deram início à
pesquisa sobre gênero e educação de jovens e
adultos.
As respostas a essas questões foram
obtidas a partir das educandas que, contando suas
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histórias, revelaram a família como elemento
fundamental no processo de constituição das
identidades femininas pautadas nas
representações de maternidade e casamento.
Educação para elas se tornava uma
impossibilidade, visto que os discursos sobre o
ser mulher determinaram sua exclusão da
educação escolarizada e da aprendizagem da
leitura e da escrita por décadas e décadas.
Ser mulher era, por muitas vezes, estar
confinada ao espaço doméstico, privado. Essa foi
a educação recebida pela maioria das educandas.
Desse modo, representações se consolidaram e
transformaram homens e mulheres em seres
dicotômicos e privados de atitudes e/ou palavras
que representassem uma divergência no papel
dito natural e correto a ser seguido. As histórias
das educandas se confundem com a condição
feminina no Brasil:
Talvez em nenhum outro lugar tenha sido a distância entre os sexos, que caracterizou a estrutura patriarcal, mais claramente articulada que em suas imagens de macho e fêmea [...] as relações entre os sexos sob o sistema patriarcal eram baseadas num princípio de extrema oposição e diferenciação [...] O homem e a mulher e, por extensão, os próprios conceitos de masculinidade e feminilidade foram assim definidos, em termos de sua oposição fundamental, como uma espécie de tese e antítese. (PARKER, 1991, p. 57-58)
Posto que nos relatos orais de vida das
educandas, a família se constitui como principal
elemento ou fator de freqüência dos alunos à
educação, torna-se necessário buscar nos
discursos das entrevistadas possíveis formas
sofridas ou reproduzidas de violência simbólica
no que se refere à educação.
A violência simbólica (BOURDIEU,
1989; 1999) foi investigada nas relações das
educandas com seus familiares, primordialmente,
e com pessoas diretamente ligadas a elas. A
violência simbólica investigada nos discursos das
educandas incluiu o que as mesmas entendiam
como ser mulher e do modo como se davam as
relações de gênero em suas práticas sociais.
Desse modo, para que a abordagem de
gênero em educação de jovens e adultos
contemplasse, de fato, a relações entre homens e
mulheres e a sua possível relação com o processo
educativo no PEJA, os relatos orais de vida das
educandas foram fundamentais, visto que, através
deles, foi possível conhecer a forma como as
entrevistadas se viam e como as suas vidas
tinham relação direta com a falta de acesso à
educação escolarizada.
Outro aspecto que necessita de ressalvas
se refere à necessidade de uma análise que
reconhecesse em cada relato a dinamicidade das
relações envolvidas no acesso, negação e/ou
permanência à educação escolarizada.
Foram diversos os motivos relatados pelas
entrevistadas para o não acesso e/ou permanência
na escola, sendo que a questão de gênero sempre
esteve presente nos relatos, fosse pelos discursos
que justificavam o lugar da mulher na sociedade
como aquele destinado ao lar, fosse pelas atitudes
das próprias educandas, ao cumprirem funções de
mãe ou esposa diante da constituição da vida
junto a um companheiro.
Os relatos, assim, retratam as variáveis
que envolveram o analfabetismo das
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entrevistadas, sendo que todas elas dividiram a
questão da escolarização em suas vidas em três
períodos fundamentais: 1) infância, 2) casamento,
3) freqüência ao PEJA. As análises, assim,
priorizaram a reconstrução dos momentos
relatados pelas educandas, interpretando as suas
dificuldades, resistências, transgressões e
manutenções do papel da mulher na sociedade e
sua relação com a educação escolarizada. Neste
artigo selecionamos alguns extratos de seus
discursos para análise:
Infância e escola
Quando eu era pequena, a gente morava na fazenda... na fazenda São Paulo e não tinha escola e meu pai era daqueles velhos ignorantes que não estudava e também não deixava estudar. Só estudava homem na família do meu avô. Quer dizer, mulher não precisava estudar. (Clarinda)
Eu tinha que colher o arroz antes da chuva e era assim, uma desculpa atrás da outra... E aí era assim, eu ia para a escola uns dois meses, faltava mais do que eu ia... (Clarinda)
Eu não estudei porque naquele tempo a gente morava na fazenda e não tinha escola e mesmo quando tinha era muito longe. Às vezes tinha escola assim, na casa dos outros, mas a gente não podia ir porque meu pai não deixava. Ele falava que a gente que era mulher não precisava estudar. Ele falava assim que eram só os homens que estudavam, que mulher só podia trabalhar [...] um dia, mais velha eu fui escondida do meu pai numa escola na outra fazenda. Aí ele descobriu e foi atrás de mim. Ele ficou tão bravo! Me levou de lá e me xingou, que mulher não precisava estudar. Minha mãe não falou nada. Ela não podia falar nada... (Aparecida)
A perspectiva de educar perpassa pela
criação de necessidades diretamente ligadas ao
que é aceito pela sociedade. Mais que uma forma
de organização, a família se apresenta, em alguns
momentos, como fonte de impedimentos para o
estudo. Outros fatores, tais como trabalho,
condições sociais e econômicas também se
relacionam com os impedimentos de acesso à
educação escolarizada. A família, não sendo um
todo homogêneo, se mostra como aquela que
impede, mas, também, como fonte de incentivos e
transgressões no que se refere à educação
escolarizada.
No caso de Aparecida as construções
sobre o ‘ser’ mulher – entendido como as
representações sobre as funções femininas na
sociedade – e o impedimento de estudar pelo pai
tiveram relação com as necessidades de trabalho,
em que a sobrevivência dependia do trabalho e
não do estudo.
Em outros momentos, como no relato de
Clarinda, o trabalho surge como necessidade,
porém, as questões de gênero são mais explícitas.
O fato de mulher não precisar estudar foi a ênfase
dada pela entrevistada. Cabe ressaltar que, nesses
discursos, as questões econômicas e de classe
também se mostraram relevantes, porém, quando
as justificativas para o não acesso à educação
escolarizada surgiam, se referiam ao papel da
mulher na sociedade.
A violência simbólica, nos relatos, se
misturou às condições sociais das entrevistadas,
configurando as submissões que, conforme já
explicitamos com base em Soihet (1997),
permitia, também, a subversão da relação de
dominação, como no relato de Aparecida que foi
à escola escondida do pai.
Outro momento marcante na vida das
educandas entrevistadas tem relação direta com o
casamento, momento em que seus companheiros
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e a família se mostraram fundamentais para o
retorno e/ou abandono da escola:
Estudo e casamento
Meu marido era meio estúpido, né... não gostava muito. Ele bebia muito. Quem trabalhava era eu. Ele bebia demais, bebia mais de um litro de pinga por dia. E ele ficava deitado na cama ou no sofá, ele tinha coleção desses livrinhos policiais. Ele ficava deitado lendo e eu ia trabalhar. O único lugar que ele não falava nada era para trabalhar, mas de resto... eu não podia sair para nada. Eu só saía para trabalhar... Às vezes, para brigar, ele judiava das meninas. Brigava com as meninas ou batia nelas para poder brigar comigo. Aí numa briga feia que nós tivemos eu peguei um pau que estava na porta e, quando ele veio para cima de mim, eu levantei o pau e ele saiu correndo de medo... Mas ele era terrível, terrível, terrível... eu pedia às vezes, que eu tava na escola para ele olhar as meninas. Ele judiava muito das meninas para eu faltar. A vida é essa... a vida minha não foi fácil ... (Clarinda)
Quando casada eu precisei trabalhar também, para ajudar meu marido. A gente morava em fazenda e eu nunca deixei de trabalhar, tinha meus filhos pra cuidar também. Era diferente, eu trabalhava, mas eu tava casada e tinha liberdade. Era diferente. (Aparecida)
Quando eu entrei na escola eu estava com 44. Depois eu saí né, porque o véio ficava me enchendo o saco ... é que ele brigava muito, bebia muito e aí eu saí da escola, porque quem bebe briga ... ele brigava porque gostava de brigar. Eu tava aprendendo bem, tava aprendendo a fazer conta, aprendendo tudo. Depois eu larguei mão, porque ele falava para mim que eu ia atrás de homem. A gente brigava quase toda noite, ele me tocava de casa ... (Benedita)
Aparecida relata uma disparidade: a falta
de oportunidade em freqüentar a escola atrelada à
necessidade de auxiliar o marido no trabalho. A
liberdade aparece como principal elemento que
constituiu sua vida durante o casamento. Apesar
de não estudar, a entrevistada enfatizou o termo
liberdade, numa referência ao pai, que a impediu
de estudar durante sua infância e início da
adolescência.
Nos casos de Clarinda e Benedita, os
relatos se tornam mais enfáticos, dado que as
lembranças são de companheiros que –
explicitamente – impediam seus estudos. A
questão patriarcal se mostrou latente nesses
relatos, que fizeram com que as entrevistadas
abandonassem o MOBRAL (Movimento
Brasileiro de Alfabetização).
Os relatos, salvo o de Aparecida, foram os
mais difíceis para as entrevistadas, porém,
Clarinda e Benedita relataram suas mudanças,
transgressões e, também, as permanências. Esses
elementos se mostravam latentes à época da
freqüência dessas educandas ao Programa de
Educação de Jovens e Adultos (PEJA):
Freqüência ao PEJA
O Toni? Ele tira um sarro, né. Ele fala: 'Ah, você não vai aprender coisa nenhuma. Você é durona, você é ruim, não vai não’. Mas a minha mãe, os outros... todos incentivam. Ele também. Fica tirando sarro, mas ele gosta que eu vou. (Clarinda)
O véio falou que eu não ia aprender nada, que já estava velha, mas eu falei que ia, que ele não mandava [...]. Agora ele fala se depois de velha eu vou aprender alguma coisa. Se eu der moleza ele quer mandar e desmandar e fala: 'Depois que começou a estudar ficou bocuda'. Eu era boba. Ele falava, falava e eu só escutava. Comecei a estudar e fiquei mais sabida e aí eu comecei a responder para ele. (Benedita)
Ah, meu marido, meus filhos e meus netos dá a maior força! Eles vêm aqui e falam: “a vó ta lendo!”. Meu marido gosta que eu aprenda. Porque antes eu não estudava por causa dos filhos, mas agora eu to lendo já. (Aparecida)
Em relação à freqüência às aulas do PEJA
os relatos são variados. Há a violência simbólica,
relatada por Benedita nas discussões com o
marido, assim como os incentivos e os
comentários das famílias de Aparecida e
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Clarinda. Embora Tony, esposo de Clarinda, fale
do possível não aprendizado, as relações se
estabelecessem sem embates diretos. Mesmo
Benedita relata momentos menos violentos que os
de outros anos de seu casamento.
Os desafios de aprendizagem, no
momento das entrevistas, agregavam o fator da
idade. Todas as educandas relataram as
dificuldades de atenção, aprendizagem e
memória. Porém, os desafios da idade se
recompensavam pela oportunidade de estudar,
conhecer os escritos, ler o mundo.
Essa questão, quando relacionada com as
educandas entrevistadas, remete às possibilidades
de mudança em relação ao que as próprias
consideram como ser mulher: a possibilidade de
aprender, de transgredir, de possuir identidades
múltiplas.
Assim como a mudança, existe a
permanência, a construção de representações
pautadas no modo como homens e mulheres se
relacionam nas situações cotidianas. São os
meandros das relações entre homens e mulheres.
A busca pela educação escolarizada para
as entrevistadas pareceu, durante a pesquisa, mais
que uma busca pela leitura das palavras: pareceu
uma busca pela leitura de suas próprias histórias,
ou, nas palavras de Aparecida:
Um dia, antes de dormir eu fui rezar e prometi pra Deus que eu ia estudar e que eu não ia morrer analfabeta. Que eu ia aprender a ler, nem que fosse um pouquinho. E eu to lendo né? Tô lendo bem...
Algumas considerações
Desde a infância até o momento de
retorno aos estudos, o que notamos foi a
construção acerca do ser homem e ser mulher que
está arraigada na mentalidade das educandas
entrevistadas. É revelador como a problemática
do gênero percorre as mentes dessas educandas e
o modo como a diferença se constituiu em suas
vidas, muitas vezes, em elemento fundamental
para a permanência ou não na educação
escolarizada. É a diferença que exclui e determina
qual direção ‘deve’ ser tomada.
A diferença a que nos referimos se
constitui no sentido em que, uma vez impedidas
de estudar, as entrevistadas viram no ‘ser’
mulher, uma diferença fundamental quanto ao
acesso e permanência à educação escolarizada.
Pertencer ao gênero feminino significou, por
vezes, ter a função de maternidade.
Reconhecer a importância das
representações sobre gênero e suas relações com
o acesso à educação escolarizada remonta à
compreensão das necessidades de quem busca as
salas de EJA. Afinal, o que significa aprender a
ler e a escrever para mulheres que passaram a
vida sendo impedidas de estudar? Qual a
importância da aprendizagem da leitura e da
escrita para essas mulheres?
Para buscar algumas respostas
necessitamos, em nossa pesquisa, ouvir as
educandas. E mais, compreender suas concepções
sobre as relações de gênero. E dessa pesquisa
surgiram duas questões essenciais.
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A primeira tem relação com violência
simbólica e representações de gênero. A segunda
remete ao papel do educador na problemática que
envolve a violência simbólica sofrida e
reproduzida pelas entrevistadas, que se relaciona
diretamente com a educação escolarizada. No
caso específico das nossas discussões, gênero e
educação estabelecem relações fundamentais para
a pesquisa, uma vez que
Para promover a cidadania das mulheres, então, é essencial oferecer contradiscursos nos quais a possibilidade do engajamanto ativo de mulheres em transformação social nos níveis micro e médio seja locada. Isso implica planejar as aulas de alfabetização de modo a encorajar o engajamento do estudante por meio de pedagogias alternativas e não autoritárias tais como conversas, jogos, dramatizações e teatro popular. Também implica que os professores de alfabetização tenham consciência das questões envolvendo gênero e que sejam treinados para administrar aulas de alfabetização que utilizem as experiências e habilidades dos adultos em lugar de reproduzir as formas escolares de educação, freqüentemente semelhantes às de uma sala de aula de primeiro ano. (STROMQUIST, 2001, p. 312, grifo da autora)
A perspectiva de uma educação
diferenciada, com vistas a não-reprodução da
sociedade que polariza homens e mulheres em
suas práticas sociais se torna elemento importante
para a questão que envolve feminino e educação,
pois essa perspectiva envolve trabalhar também
com os valores negativos do feminino em relação
ao sexo masculino. É a necessidade de pensar a
relação de gênero em sua concepção de
construção, contrário a uma abordagem feminista
da condição da mulher (MATOS, 2000).
Educar para a igualdade e não para uma
nova polaridade. É compreender-se como vítima
e como opressor, como produtor de discursos e
reprodutor da diferença construída socialmente.
Por esse motivo é que as discussões se pautaram,
primeiramente, na análise dos discursos das
educandas para depois buscar a relação entre
família, educação e violência simbólica.
Outra consideração relevante se refere à
forma como a família imprime nos sujeitos o ser
feminino e masculino. É a perspectiva de uma
educação voltada para a criação de pessoas ditas
normais para os padrões sociais. Tudo no
processo de violentar ao outro e a si mesmo,
sendo que a educação passa a constituir-se como
mantenedora da representação vigente.
Ser parte de uma família implica, muitas
vezes, em abdicar de vontades e estabelecer
prioridades que não permitem que o estudo seja
visto como uma forma necessária de reflexão e
questionamento da própria realidade.
Considerar homens e mulheres como
membros de uma sociedade brasileira patriarcal é
uma forma de questionar essa condição. E esse é
o papel fundamental da educação. Mais que o
ensino das letras, a perspectiva de ensino é a da
humanização e da consciência.
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Os caminhos da linguagem: possibilidades de
aprendizagem por meio do audiovisual na EJA
Michel Silva1
Resumo: Neste ensaio, tomando como ponto de partida o
estágio realizado em uma das unidades da Educação de
Jovens e Adultos (EJA) de Florianópolis, pretende-se
analisar a utilização do audiovisual como ferramenta na
prática de ensino. Dessa forma, refletindo acerca do
letramento dos sujeitos da EJA, explicita-se o papel que o
audiovisual, nas suas diferentes fases de criação e
realização, pode cumprir no processo de ensino-
aprendizagem e a contribuição desta ferramenta na
formação de jovens e adultos.
Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos;
linguagem audiovisual; letramento.
Abstract: In this trial, taking as its starting point the stage
held in one of the units of Education for Youth and Adults
(EJA), Florianopolis, it is intended to examine the use of
audiovisual as a tool in the practice of teaching. Thus,
reflecting on the subject of literacy EJA, explicitly is the
role that the audiovisual media, in its various stages of
creation and implementation, can meet in the learning
process and how these tools can help in the training of
young people and adults.
Key-words: Education for Youth and Adults; language
audiovisual; literacy.
Introdução
Causa-nos receios, temores e
preocupações uma primeira aproximação com
sujeitos da Educação de Jovens e Adultos (EJA);
afinal, se não temos contato com esses sujeitos,
descritos em estudos de caso disponíveis para
leitura nos mais variados volumes e coletâneas, 1 Graduando em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e em Ciências Sociaia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
eles realmente não passam de interpretações dos
pesquisadores. Cada sujeito pesquisado, em cada
local, em cada tempo, é diferente, por isso, estar
frente a frente com pessoas desconhecidas, sobre
as quais temos algumas poucas informações
genéricas, pode causar inclusive espanto.
Sabemos que essas pessoas trabalham, que estão
fora da idade escolar regular, que têm suas vidas
marcadas pelas mais variadas dificuldades, que
cada uma tem um motivo específico para procurar
novamente a educação formal. Mas, mesmo tendo
uma grande variedade de estatísticas e algumas
descrições, as pesquisas disponíveis pouco ou
nada dizem acerca das pessoas concretas com as
quais nos deparamos quando entramos numa sala
de aula para falar de assuntos sobre os quais
talvez aqueles sujeitos nem sequer tenham
interesse.
Mas receios, temores e preocupações
talvez sejam menos nocivos do que ideias
concebidas previamente ao contato com esses
sujeitos. Criar estigmas e preconceitos, produtos
do desconhecimento da realidade daquelas
pessoas, pode originar barreiras ainda maiores ao
processo de ensino e aprendizagem, seja da parte
do educador, seja da parte do educando.
Para se evitar a estigmatização do aluno, não se pode condicionar a deficiência da aprendizagem humana à condição de pobreza, à necessidade de trabalhar e ao estudo noturno, entre outras. Observa-se que sejam quais foram, a condição socioeconômica do aluno, o tipo de trabalho que realiza e seu turno de estudo, a aprendizagem sempre se efetua, dependendo muito mais de como o trabalho pedagógico é articulado com essas variáveis (PICONEZ, 2005, p. 33).
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Nas descrições disponíveis acerca das
motivações que levam esses sujeitos a procurar
novamente a educação formal, temos que
as expectativas dos alunos giram em torno da valorização profissional e da ampliação de conhecimentos. As principais vantagens mencionadas pelos alunos quanto a esse tipo de curso são: a rapidez, o enxugamento de conteúdos e a ampliação da visão de mundo, ligada ao “pensar e agir diferente” e à valorização profissional (PICONEZ, 2005, p. 36).
No estágio realizado em um dos núcleos
da EJA, em Florianópolis, era nossa intenção
trabalhar com os alunos como a linguagem
audiovisual se faz presente no seu cotidiano e na
sociedade, concluindo o processo com a produção
de um vídeo. O estágio foi realizado entre julho e
outubro de 2007, no Centro de Educação
Continuada, Núcleo de Educação de Jovens e
Adultos, localizado no Centro de Florianópolis, a
partir de projeto apresentado à cadeira de “Prática
Curricular em Imagem e Som”, no curso de
graduação em História, da Universidade do
Estado de Santa Catarina. Durante o estágio,
procuramos criar situações que possibilitassem a
esses sujeitos se tornarem produtores de uma obra
audiovisual, um vídeo curto que seria a conclusão
de um letramento audiovisual, entendido como
processo de aproximação com a gramática e os
mecanismos de construção dessa forma de
expressão.
Nosso objetivo geral era proporcionar a
esses sujeitos uma reflexão em torno do
audiovisual, tocando nos âmbitos prático e
teórico, e que fosse parte constitutiva do processo
de aprendizagem da própria EJA. Pretendíamos
“possibilitar aos sujeitos da EJA a tomada de
contato com a linguagem audiovisual, de um
ponto de vista teórico e prático, participando do
seu processo de aprendizagem e fazendo-os
conhecer a construção, os recursos e as regas da
linguagem audiovisual e da tecnologia do vídeo”
(BRAMORSKI; RIPARDO; SILVA, 2007). Esse
objetivo é corroborado por Durante (1998, p. 31),
quando afirma que, “para o ensino de
características discursivas da linguagem, é
necessário introduzir os diferentes tipos de textos,
atos de leitura e escrita como existem e são
utilizados no mundo, criando-se situações
educativas semelhantes às práticas sociais”.
Partíamos da compreensão presente na Proposta
Curricular do Estado de Santa Catarina, de que na
EJA o processo de aprendizagem deve ser
encarado como “interativo e interdiscursivo de
apropriação de diferentes linguagens (escrita,
matemática, das ciências, das artes e do
movimento) produzidas culturalmente” (SANTA
CATARINA, 1998, p. 42).
Em contato com os sujeitos da EJA, no
campo de estágio, percebemos que no processo
de ensino e aprendizagem era dada maior ênfase
ao exercício da escrita, ou seja, à aproximação
mais permanente e sistemática com a produção
textual.2 Nosso desafio seria mostrar aos sujeitos
da EJA uma gramática diferente, apresentando a
eles a escrita audiovisual, tomando como ponto
2 Outro aspecto importante, apontado em um material de orientação aos professores, se refere ao curso, que “é planejado e organizado, principalmente, através de pesquisas em grupo de poucos alunos (...) pesquisas que originam-se a partir de perguntas (problemáticas) do interesse e necessidade dos mesmos” (FLORIANÓPOLIS, 2007, p. 39). Nesse sentido, tínhamos a necessidade de nos inserirmos no processo de realização da pesquisa, de um ou mais grupos.
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de partida uma reflexão mais aprofundada sobre
seu processo de criação. No projeto de estágio,
afirmamos que
nossa principal problemática, nesse sentido, passa pela formulação de uma metodologia que dê conta de ser parte orgânica no processo de aprendizagem da EJA. Também passa pela análise de suas potencialidades e pela definição de quais são os principais desafios presentes nessa aprendizagem. Um outro aspecto fundamental é perceber a receptividade dos sujeitos à proposta apresentada e quais as formas possíveis dessa interação. E também vemos como fundamental perceber que ganhos, de um ponto de vista pedagógico, trouxeram aos sujeitos essa aproximação com a linguagem audiovisual que estamos propondo (BRAMORSKI; RIPARDO; SILVA, 2007).
Neste ensaio procurarei apresentar uma
discussão teórica acerca do processo que estou
chamando de letramento audiovisual, tomando
como ponto de partida a prática realizada na EJA.
Uma sociedade audiovisual
Não é difícil constatar a presença do
audiovisual, em suas mais variadas formas, na
sociedade contemporânea, especialmente em
função da massificação da televisão nas últimas
décadas. O audiovisual, desde o início do século
passado, vem se tornando presente no cotidiano
das pessoas, sendo, desde os primeiros anos de
existência do cinema, uma mercadoria consumida
maciçamente pela maior parte da população,
primeiro nos países mais industrializados,
espalhando-se mais tarde pelo mundo. Desde os
últimos anos do século XIX, com o surgimento
do cinema, temos algo que poderíamos chamar de
espetáculo popular. Segundo Alea (1984, p. 26,
grifos do autor), o cinema “rapidamente se fez
‘popular’, não no sentido de ser expressão do
povo (...) mas porque conseguia atrair um público
indiferenciado, majoritário, ávido de ilusões”.
Outros espetáculos, como o teatro e a ópera,
continuavam a ser ainda formas eruditas, portanto
restritas.3 O cinema, que se ocupava inicialmente
de pequenas seqüências do cotidiano, como a
chegada de um trem a uma estação ou a saída dos
operários de uma fábrica, era uma diversão para
grandes massas, que viviam encantadas (ou
assustadas) pelas maravilhas que brilhavam na
tela à sua frente. O cinema “foi se desenvolvendo
adotando as formas de uma verdadeira indústria
de espetáculo e começou a produzir em série uma
mercadoria apta a satisfazer os meios mais
variados de gostos” (ALEA, 1984, p. 25). Foram
necessárias algumas décadas para que o cinema
fosse apontado como grande arte e inclusive
passasse a ser sinônimo de “bom gosto”, o que
não significa que tenha deixado de ser,
“essencialmente, uma Indústria de
Entretenimento, que também faz uso de meios
estéticos para obter determinados efeitos e para
satisfazer um grande mercado de consumidores”
(ROSENFELD, 2002, p. 35). Durante o século
XX, o papel de audiovisual de massas também
passaria a ser exercido pela televisão, que
3 Para Rosenfeld (2002, p. 63-5), o cinema “não teria eventualmente ultrapassado o estágio de mera curiosidade e de instrumento científico para reproduzir o movimento se a sua invenção não tivesse coincidido com o desenvolvimento de um grande proletariado demasiadamente pobre para frequentar o teatro e os espetáculos não mecanizados. (...) O sistema [capitalista] que criara as grandes aglomerações populares e, ao progredir, lhes dera algumas horas diárias de ócio, produziu também o espetáculo barato, pleno de maravilhosos poderes, para distrair essas mesmas massas e para organizar convenientemente as horas de lazer; à atividade manual padronizada e controlada tinha de associar-se uma atividade espiritual igualmente padronizada e controlada”.
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gradativamente chegou aos setores mais pobres e
marginalizados das populações em todo mundo,
articulado a um influente sistema publicitário.4
Após constatarmos a presença do
audiovisual nas sociedades contemporâneas, fez-
se necessário, como primeiro passo do estágio na
EJA, tentar entender sua relação com a vida
cotidiana dos sujeitos com os quais pretendíamos
trabalhar. Considerando a massificação dos meios
de comunicação, da televisão em particular,
deduzimos que certamente os sujeitos da EJA
tinham algum contato com as produções
audiovisuais. Mas, mesmo partindo dessa
hipótese, não tínhamos condições de dimensionar
os gostos e interesses dos sujeitos nem a
importância e o papel que a televisão exercia no
cotidiano de cada um, cabendo-nos, em um
primeiro momento, tentar mapear esses aspectos.
A partir de recortes de revistas,
propusemos aos educandos que montassem uma
programação televisiva de domingo considerada,
por eles, “perfeita”. Poderiam ser selecionados no
máximo dez programas, que seriam organizados
4 Essas questões são analisadas por Ramos (1995), que afirma: “o sistema televisivo brasileiro foi implementado a partir dos anos 50 seguindo o modelo americano, e, portanto, construído em íntima relação com a publicidade. (...) De início, a ação dos anunciantes foi mais direta, caracterizando os chamados ‘programas de patrocinadores’, tendo sido comum a participação das agências na criação e produção dos programas televisivos. (...) Esse tipo de utilização do meio televisivo pela publicidade é chamado pelos profissionais da área de ‘patrocínio americano’, e o processo da sua transformação para o sistema atual no Brasil foi análogo ao dos Estados Unidos. O surgimento do que lá se chama de magazine concept de publicidade consiste na venda de espaços nos variados programas, desaparecendo a figura do patrocinador privilegiado no intervalo comercial, o controle passando para as mãos das redes, que vão ou produzir ou comprar programas de realizadores independentes” (RAMOS, 1995, p. 44-5).
em uma cartolina da forma que eles desejassem.
O objetivo mais específico desta atividade era
dar-nos uma primeira noção do contato que eles
mantinham com a televisão e da forma como
manifestavam seus gostos. Conseguimos, com
isso, perceber a forte preferência pelo
entretenimento e pela diversão, em especial o
gosto pelas novelas e pelos chamados “programas
de auditório”, como Gugu e Faustão. Eles
também demonstraram interesse, ainda que
menor, por programas de notícias. Os esportes
foram pouco mencionados, diferente dos
programas “educativos”, cuja escassez na
programação televisiva gerou queixas,
demonstrando uma grande preocupação daquelas
pessoas em “adquirir conhecimento”, como se
quisessem recuperar o tempo que “perderam”
enquanto estiveram afastados da educação
formal. O universo de ficção daqueles sujeitos era
povoado principalmente pelas novelas, havendo
pouco espaço para os filmes, mesmo aqueles
exibidos na televisão.
Partindo desses dados, pôde-se ter como
primeiras conclusões que os sujeitos da EJA
observados, pessoas mais velhas e que trabalham
um grande número de horas durante o dia,
atribuem à televisão um sentido bastante
utilitário, seja para uma distração mais imediata,
seja como ferramenta para a aprendizagem de
novos conhecimentos.
Letramento e audiovisual
Diante destas conclusões, pode-se afirmar
que esses sujeitos são pouco letrados, não com
relação à linguagem escrita, mas à linguagem
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audiovisual. Os sujeitos da EJA com os quais
tivemos contato no estágio não eram analfabetos,
se entendermos o analfabetismo como
“desconhecimento das técnicas de utilização da
escrita” (SANTA CATARINA, 1998, p. 39),
afinal na vida social e profissional essas pessoas
utilizam a escrita, a leitura e o cálculo, ou seja,
possuem conhecimentos específicos, ainda que
muitas vezes limitados, dessas ferramentas. Não é
correto, portanto, caracterizá-las como
analfabetas.
Conceitualmente, um dos caminhos
possíveis seria caracterizar estes indivíduos como
iletrados. O iletramento é “entendido como a falta
de familiaridade com o mundo da escrita, uma
exclusão quanto ao todo ou a parte desse modo de
comunicação” (SANTA CATARINA, 1998, p.
39). Mas, partindo de Tfouni (2006, p. 23),
concluímos que
não existe nas sociedades modernas o letramento “grau zero”, que equivaleria ao “iletramento”. Do ponto de vista do processo sócio-histórico, o que existe de fato nas sociedades industriais modernas são “graus de letramento”, sem que com isso se pressuponha sua inexistência.
Portanto, por mais que existam pessoas
que não têm ou não tiveram um contato escolar
permanente e sistemático com a “cultura letrada”,
enquanto sujeitos elas participam do mundo
“letrado”, interagem com esse ambiente social e
atuam sobre ele, desenvolvendo mecanismos
próprios de leitura e interpretação da realidade e
de seus signos. Nesse sentido, não é possível
afirmar que esses sujeitos sejam iletrados e,
menos ainda, analfabetos. Então, a explicação
não está em ser, ou não, alfabetizado enquanto indivíduo. Está sim, em ser, ou não, letrada a sociedade na qual esses indivíduos vivem. Mais que isso: está na sofisticação das comunicações, dos modos de produção, das demandas cognitivas pelas quais passa uma sociedade como um todo quando se torna letrada e que irão inevitavelmente influenciar aqueles que nela vivem, alfabetizados ou não (TFOUNI, 2006, p. 27, grifos da autora).
Mas, no âmbito do audiovisual, o baixo
grau de letramento não é uma característica
apenas dos sujeitos da EJA: é realidade
lamentável que a maior parte das pessoas
desconheça a gramática da linguagem
audiovisual. No geral, as pessoas que têm uma
obra audiovisual à sua frente se limitam a análises
superficiais, como os cortes de uma sequência de
cenas ou as cores utilizadas. O cinema e a
televisão - indústrias que reproduzem
mercadorias - criaram um público acostumado a
assistir às obras audiovisuais de forma passiva,
um público que dá maior atenção à narrativa e à
“mensagem” que o audiovisual pretende expor ou
às emoções que as cenas podem provocar. Com
isso, temos o “espectador contemplativo”, cuja
relação com o audiovisual “se produz só no
primeiro nível”, ou seja, “o espetáculo é
contemplado como um objeto em si e nada mais”
(ALEA, 1984, p. 49). O espectador pode
“satisfazer uma necessidade de desfrute, de gozo
estético, mas sua atividade, expressa
fundamentalmente numa aceitação ou rejeição do
espetáculo, não supera o plano cultural” (ALEA,
1984, p. 49). Portanto, como no caso da
linguagem escrita, falar de um baixo grau de
letramento audiovisual significa falar da falta de
familiaridade dos sujeitos sociais com a escrita
dessa linguagem, desconhecendo as ferramentas
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que possibilitam uma melhor interpretação desta
linguagem e, principalmente, de sua gramática.
Assim, o processo que direcionou nossa
prática de estágio na EJA era justamente o de
letramento dos sujeitos, entendido como processo
que “focaliza os aspectos sócio-históricos da
aquisição da escrita” (TFOUNI, 2006, p. 9), tendo
como centro de nossa atividade a linguagem
audiovisual.
O letramento, conforme Tfouni (2006, p.
9-10), “procura estudar e descrever o que ocorre
nas sociedades quando adotam um sistema de
escrita de maneira restrita e generalizada”. Esse
conceito, portanto, auxilia-nos na investigação e
compreensão dos processos psíquicos
relacionados ao contato dos sujeitos com o
audiovisual, em especial para desvelar seus
significados e produzir uma compreensão
reflexiva acerca dos mesmos. Essa linguagem
“secreta”, tão simples em sua composição como
complexa em sua interpretação, pode ter seus
significados conhecidos para além de um restrito
grupo de especialistas e estudiosos de cinema. O
processo de letramento, portanto, pode permitir à
pessoa se postar à frente do audiovisual como
“espectador ativo”, que, “tomando como ponto de
partida o momento da contemplação viva, gera
um processo de compreensão crítica da realidade
(...), e, conseqüentemente, uma ação prática
transformadora” (ALEA, 1984, p. 48).
Linguagem audiovisual e prática reflexiva
Em nosso estágio na EJA procuramos
trabalhar também o processo de letramento como
ação crítica. No projeto afirmamos que, “nesse
processo, o conhecimento histórico produzido
tem a ver com a atitude do sujeito, que se
posiciona no mundo de uma forma particular e
constrói sua leitura sobre sua circunstância”
(BRAMORSKI; RIPARDO; SILVA, 2007). Seria
preciso, portanto, orientar o conhecimento
histórico “no sentido de indagar a relação dos
sujeitos com os seus objetos de conhecimento,
provocando seu posicionamento, questionando as
formas de existência humana e promovendo a
redefinição de posicionamentos dos sujeitos no
mundo em que vivem” (KNAUSS, 1996, p. 28).
Era também necessário “estabelecer e reconhecer
a dinâmica entre os conhecimentos prévios,
anteriores à escolarização, e os conhecimentos
formais da educação escolar” (PICONEZ, 2005,
p. 96). Durante o estágio procuramos desenvolver
atividades que priorizassem a necessidade da
criatividade, da interação entre os sujeitos e da
prática enquanto ferramentas de aprendizagem,
tendo em mente as particularidades na formação e
no cotidiano daquelas pessoas.
Tendo a clareza de que os alunos
trabalhavam durante grande parte do dia e
chegavam cansados na EJA, propusemos
atividades que fossem divertidas e pouco
cansativas. Nesse sentido, após constatarmos o
interesse daqueles indivíduos, enquanto grupo,
pelas questões referentes à degradação ambiental,
pedimos que eles pensassem em uma situação de
destruição do meio ambiente. Depois disso,
pedimos a eles que criassem uma pequena
narrativa, incluindo um personagem de desenho
animado preferido na situação antes pensada. No
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encontro seguinte, desta vez utilizando o
equipamento de vídeo, realizamos um exercício
de mímica, no qual um dos alunos representava a
mímica proposta, enquanto um outro, ao mesmo
tempo em que operava a câmera, tentava
adivinhar. Em outro encontro, solicitamos aos
alunos que criassem uma pequena narrativa e que
gravassem-na, sendo que cada um deles teria a
opotunidade tanto de representar a narrativa
criada quanto de operar o equipamento. Por fim,
como fechamento de nossa prática, partimos para
a realização de um vídeo curto, composto por
várias cenas, na qual os alunos representaram e
operaram o equipamento.
Tínhamos a clareza de que não bastaria
apresentar uma nova forma de escrita para os
sujeitos educandos da EJA, mas, para que a
gramática audiovisual fizesse sentido neste
processo de aprendizagem, seria preciso fazê-los
escrever, propor a eles uma dimensão prática, ou
seja, realizar uma produção. O desafio, portanto,
passava justamente por mostrar àqueles sujeitos
(e para nós mesmos) que qualquer pessoa tem a
capacidade de realizar um filme, desde que tenha
à sua disposição os equipamentos necessários
para tal e conheça alguns aspectos da linguagem
audiovisual. Essa linguagem não surgiu como
invenção genial e isolada de uma pessoa nem
pode ser entendida como algo consolidado e
estático. Ela está ligada de forma indissociável à
própria história do cinema, sendo produto da
prática de profissionais e artistas há mais de um
século. Se quisermos uma definição mais simples
dessa linguagem, partindo de Bernardet (1991, p.
37), podemos defini-la como “sucessão de
seleções”, “um processo de manipulação que vale
não só para a ficção como também para o
documentário”. Essas seleções são escolhas feitas
com ideias e objetivos claros: “escolhe-se filmar
o ator de perto ou de longe, em movimento ou
não, deste ou daquele ângulo; na montagem
descartam-se determinados planos, outros são
escolhidos e colocados em determinada ordem”
(BERNARDET, 1991, p. 37). Essa linguagem,
que no seu início “escrevia antes de saber como
escrever” (CARRIÈRE, 1995, p. 27), se
modificou ao longo do tempo, ganhando novos
elementos, se metamorfoseando, década após
década. “Não surgiu uma linguagem
automaticamente nova até que os cineastas
começassem a cortar o filme em cenas, até o
nascimento da montagem, da edição”
(CARRIÈRE, 1995, p. 14). Depois disso,
deixamos de ter uma simples sucessão de cenas,
passamos a planos complexos, sequências cheias
de detalhes e cores, movimentos e
enquadramentos, enfim, uma “linguagem apta a
contar qualquer coisa” (CARRIÈRE, 1995, p.
27). Uma linguagem que é universal e cuja escrita
pode ser interpretada em qualquer parte do
mundo.
Deste modo, quando observamos a
trajetória da linguagem audiovisual, um elemento
que salta aos olhos é seu vínculo com uma prática
reflexiva. Não haveria hoje uma gramática
audiovisual, diversa, controversa, complexa, se o
cinema não fosse marcado pela experiência
prática, criativa e teórica. Não haveria linguagem
audiovisual se os cineastas, muitas vezes sem
intenção, não inovassem na forma de cortar, nos
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movimentos de câmera, na composição das cores
ou na utilização do som. Sua prática, reflexiva ou
não, foi o que possibilitou o surgimento de uma
linguagem compreensível em todo mundo e em
permanente movimento. Segundo Carrière (1995,
p. 19), em meados da década de 1920 “já existia
uma linguagem verdadeiramente nova, tanto
assim que os efeitos específicos que ela utilizava
logo se tornaram sinais de convenção
internacional, uma espécie de código planetário”.
Mesmo que não se conheça o sentido de todos os
signos, mesmo que não seja possível ter uma
compreensão plena da complexidade de uma
produção, pelo menos é possível entender
aspectos da narrativa e alguns dos seus sentidos,
pois a linguagem utilizada em qualquer lugar do
mundo é semelhante àquela que conhecemos em
nosso próprio ambiente cultural.
Mas, embora universal e acessível a
qualquer pessoa, essa forma de escrita, produto
do acúmulo de experiências e reflexões de mais
de um século, continua a ser “secreta” para a
maior parte das pessoas. Isso se dá não pela sua
diversidade e complexidade, mas pela ausência de
mecanismos que propiciem uma prática reflexiva
e que possam torná-la ainda mais acessível,
permitindo que todos possam ser não apenas
espectadores, mas também criadores do
audiovisual. Quando falamos em “criador”, o
entendemos num sentido bastante amplo, ou seja,
essa criatividade passa tanto pela produção
audiovisual como pela postura crítica do
espectador frente às imagens em movimento,
tomando-as como ponto de partida para uma
reflexão e mesmo para a transformação social.
Refletindo acerca do cinema, Alea (1984, p. 44)
afirma que essa forma de espetáculo “pode
aproximar o espectador da realidade sem deixar
de assumir sua condição de irrealidade, ficção,
realidade-outra, sempre que estenda uma ponte
em direção a ela, para que o espectador retorne,
carregado de experiências e estímulos”.
Nesse ponto localiza-se a importância das
pequenas oficinas de audiovisual que realizamos
com os sujeitos que procuram a EJA,
possibilitando a eles não apenas uma reflexão
crítica, mas também a prática da linguagem
audiovisual enquanto ferramenta de
conhecimento. Os exercícios propostos, que
davam conta tanto da criação de narrativas como
da utilização de equipamentos, deram aos sujeitos
a possibilidade de entrar em um universo
diferente daquele em que viviam. Eles puderam,
com todos os limites possíveis, ir além da
linguagem escrita, tornando mais complexo ou
mesmo mais criativo o processo de letramento na
EJA. Assim, corrobora-se a hipótese de que
“quando os alunos têm respeitados os seus
conhecimentos prévios à escolarização ou
anteriores a ela, uma espécie de ponte pode ser
criada para que a aprendizagem se torne cada
mais significativa” (PICONEZ, 2005, p. 131).
Esses sujeitos da EJA com os quais realizamos o
estágio, a partir de alguns conhecimentos
introdutórios, passaram a ter condições de olhar
uma novela ou um filme e, tendo dimensão de
que aquele é um discurso produzido socialmente
e com certa intenção, melhor refletir acerca
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daquela produção e talvez realizar uma crítica que
se coloque para além da mera análise da narrativa
ou do conteúdo mais imediatos.
Referências bibliográficas
ALEA, Tomás Gutiérrez. Dialética do espectador: seis ensaios do mais laureado cineasta cubano. São Paulo: Summus, 1984.
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. 11ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.
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DURANTE, Marta. Alfabetização de adultos: leitura e produção de textos. Porto Alegre: ARTMED, 1998.
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KNAUSS, Paulo. Sobre a norma e o óbvio: a sala de aula como lugar de pesquisa. In: NIKITIUK, Sonia. Repensando o ensino de história. São Paulo: Cortez, 1996.
PICONEZ, Stela Bertholo. Educação escolar de jovens e adultos: das competências sociais dos conteúdos aos desafios da cidadania. 4ª ed. Campinas: Papirus, 2005.
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TFOUNI, Leda Verdiani.. Letramento e alfabetização. 8ª ed. São Paulo: Cortez, 2006.
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A Última Hora
Kelen Rezende1
Maria Andréia Alves Leandro2 Rosângela Cristina Barbosa3
A Última Hora é um documentário
narrado e produzido por Leonardo DiCaprio, cuja
direção é de Leila e Nadia Conners. O filme
aborda os desastres naturais causados pela própria
humanidade e o atual estado de risco ambiental
do planeta. Seu roteiro apresenta entrevistas com
muitos cientistas, especialistas e diretores de
ONGs que fazem análises e apontam soluções
consideradas economicamente viáveis e
ambientalmente sustentáveis, para que a Terra
controle seus problemas de poluição,
superpopulação e aquecimento global, uma vez
que a destruição do ecossistema pelo homem tem
gerado catástrofes naturais devido ao
desequilíbrio ecológico. Tal fato é resultante de
atividades humanas desordenadas que causam
danos à natureza a curto, médio e longo prazo.
Sem água potável, sem ar, sem florestas, sem
fauna e flora em equilíbrio, a qualidade de vida
do próprio homem estará ameaçada.
Esse documentário é uma forma de
chamar a atenção para as consequências que o
planeta está sujeito devido às ações do homem. O
1 Professora da Rede Municipal da Prefeitura de Belo Horizonte, com Licenciatura Plena em Geografia / EJA-BH e na Rede Agostiniana – Meio Ambiente, pós-graduada em Psicopedagogia. 2 Graduanda do 10º. Período do curso de Psicologia no Centro Universitário Newton Paiva e estagiária em licenciatura. 3 Professora da Rede Municipal da Prefeitura de Belo Horizonte, Pedagoga e pós-graduada em Educação de Jovens e Adultos.
conteúdo alerta para o fato de a espécie humana
correr o risco de desaparecer em um futuro
próximo, se nada for feito para reverter o quadro
caótico no qual estamos inseridos. A narrativa
apoia-se em uma perspectiva que varia do
consumismo devasso ao capitalismo selvagem e
da necessidade do ser humano de ter em
detrimento de ser. Agrupa imagens de tragédias
naturais a imagens do meio ambiente devastado,
bem como de povos de diversas etnias para
mostrar que o mundo está hipertrofiado4, em
termos populacionais, e nem por isso está
aceitando passivamente tal ocupação, uma vez
que se tornam mais escassos os recursos para
suprir as necessidades de sobrevivência e
qualidade de vida dos seres humanos.
Considerando o comportamento humano a
partir de alguns padrões de consumo, o
documentário A Última Hora pode ser explorado
para além das catástrofes naturais e suas
consequências. Nesse sentido, conforme aponta
Duarte (2002, p. 105), os filmes são fontes ricas
de pesquisa sobre temas e problemas que
interessam aos pesquisadores da área da educação
haja vista que “[...] pode fornecer um vasto
material para estudo e reflexão acerca de
estratégias de escolarização e de transmissão de
saberes adotados por diferentes culturas em
diferentes sociedades”.
O filme como recurso didático, num primeiro momento permite ao espectador a percepção de impressões, de sentimentos que tomam significados, de acordo com o conhecimento que o sujeito adquire de si próprio, das suas concepções. Num segundo momento busca a
4 Significa cidades "inchadas" ou excessivamente cheias de pessoas, superlotadas.
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associação das novas experiências às aprendizagens e aos saberes o que permite significar e (re) significar as percepções deixadas pela relação com a narrativa fílmica. (DUARTE, 2002, p.105).
Tomando como referência as
potencialidades do filme como recurso didático
conforme apontado por Duarte (2002), o
documentário A Última Hora foi exibido em sala
de aula para os estudantes de duas turmas da
EJA/BH5, da Escola Municipal Luiz Gonzaga
Júnior, na Região do Barreiro.
A questão que estava em pauta neste
trabalho era a identificação das percepções e das
concepções dos estudantes da EJA sobre a
5 EJA/BH é um programa da Rede Municipal de Belo Horizonte destinada à Educação de Jovens e Adultos de Belo Horizonte. A Constituição de 1988 assegurou a Educação de Jovens e Adultos, ao afirmar que “o dever do estado com a educação deverá ser efetivado mediante garantia de ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada inclusive a oferta para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria” (art. 208). A Educação de Jovens e Adultos torna-se inclusa como direito de obrigação e deveres: os artigos 37 e 38 da LDB em vigor dão à EJA uma dignidade própria, mais ampla, e elimina uma visão de externalidade com relação ao assinalado como regular. O art. 4º VII da LDB é claro: o dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: “oferta de educação regular para jovens e adultos, com características e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições de acesso e permanência na escola”. Também no art. 214, da Constituição fica clara a necessidade de efetivação de planos nacionais de educação para a erradicação do analfabetismo.
temática ambiental. Essa atividade revelou um
processo de interpretação dos estudantes a partir
das suas próprias histórias de vida e do contexto
social em que estão inseridos, permitindo
aproximar o tema em debate das questões
relativas aos processos de alfabetização e
letramento entre os sujeitos da EJA.
“O pobre polui, mas não polui tanto como
as maiores empresas. A gente polui, mas as
maiores empresas polui mais. Vocês deviam
gravar um documentário desse e distribuir nas
escolas, nas favelas e nas comunidades. Isso
conscientizava mais o pessoal a reciclar. Ensinar
o próprio pai e mãe de família a cuidar mais do
seu lixo também que polui muito. E o que polui
mais são os donos de empresa” (Laura Diniz6, da
turma EJA/BH).
“A pessoa tem que colaborar e ajudar.
Aquele que não ajuda, procura atrapalhar. E
aquele que atrapalha nunca vai adiante, porque o
importante é a gente ajudar, contribuir uns com
os outros para as coisas consertar no país. Por
isso é que as coisas não consertam no país,
ninguém colabora. Quando chama uma pessoa
para colaborar ela não quer saber do assunto
que está se tratando. Por que existe o negócio do
meio ambiente? É porque o pessoal está
estragando, a maioria dos homens estraga o meio
ambiente, não somos só nós pobre, é todo mundo,
a humanidade é a culpada. Porque estraga
mesmo, ninguém quer cooperar. Cada um
fazendo a sua parte o mundo pode consertar,
6 Os nomes utilizados para identificar os autores das falas são fictícios com a finalidade de preservar a identidade dos sujeitos envolvidos na discussão do filme exibido.
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cada um colaborando. Se não colaborar o mundo
não tem conserto e vai por água abaixo”. (André
Lucas Alves, da turma EJA/BH).
“Eu acho que o povo devia deixar o luxo.
O luxo é que está destruindo a natureza”. (Alexia
Silva, da turma EJA/BH).
As evidências das falas acima revelam um
universo de conteúdos pessoais que indicam, em
conformidade com Paulo Freire (1996, p.123),
que “o educador que é capaz de escutar e
respeitar a leitura de mundo que o aluno faz
através de sua linguagem, também é capaz de
transformar seu discurso e romper com a barreira
em prol do conhecimento”.
Reconhecer pois o lugar da linguagem
como um instrumento interpretativo à maneira
freiriana é afirmar a linguagem como mediadora
das práticas humanas que envolvem as relações
com os outros, seja através das artes, trocas,
mitos, religiões, comunicação, etc. Ao nascer,
encontramos a língua e esta nos é imposta; cabe a
nós respeitar as suas regras, pois ela é um código
fruto de um contrato social inscrito numa
dinâmica histórica e cultural que independe da
vontade do sujeito falante. Ela esta aí, insiste e
persiste. Ela é social e não apenas interior7.
No caso dos jovens e adultos da EJA/BH,
o movimento de interpretação do documentário
através do diálogo, do debate e da análise,
evidenciou modos singulares de lidar com a vida,
com as suas perdas e ganhos. Permitindo 7 Fala interior, no sentido de que a linguagem, para a psicanálise, não é protótipo do mundo, mas um novo mundo, inconsciente, subjetivo, do próprio homem único, simbólico.
reconhecer como, inclusive, velam e desvelam
suas tramas familiares.
“Antigamente a gente era mais feliz. Tem
que voltar igual era antes, um saco branco - o
bornal maior e vários pequenos para colocar
cada coisa e tudo separadinho. Minha mãe fazia
assim e ensinou a gente assim, aí veio as
sacolinhas”. (Maria das Graças dos Santos, da
turma EJA/BH).
“Antes a gente não tinha ganância por
dinheiro e por causa do dinheiro o homem polui.
Isso aí é coisa de monopólio, de gente da alta”.
(Raimundo Ávila, da turma EJA/BH).
“Somente com a conscientização de cada
um, o governo que falar mais sobre a questão é
que pode mudar o pensamento. Hoje, eu vejo
muita gente reciclando e isso é muito importante.
Então você vê aquelas geleiras, lá no pólo norte,
o aquecimento global ta destruindo. Então tem
que começar com a gente, nós que somos as
donas de casa, vamos reciclar e isso é muito
importante. Você vê que já vem chuva, os bueiros
entope tudo, leva os barraquinhos embora. Tudo
é culpa de quem ? É nossa mesmo. O petróleo
também. Então é somente a conscientização da
família e também ser mais divulgado para a
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população para conscientizar do problema aí”.
(Marcos Pereira, da turma EJA/BH).
“Gostei do documentário. É difícil. Os
próprios homens estão acabando com o nosso
país. Eles desmata, agora nem chove mais, olha
esse calorão. O mundo ta acabando. Sabe o que
acontece, cada bairro devia ter uns quatro fiscal
olhando a sujeira”. (Maria José Alvarenga, da
turma EJA/BH).
Do conjunto dos alunos que participaram
da análise do documentário e o seu tema, muitos
não possuem domínio da alfabetização em termos
da apropriação de um sistema ordenado de regras
gramaticais, mas por outro lado também não
podem ser considerados analfabetos, pois
possuem uma leitura de mundo, dentro do
contexto sócio-cultural em que vivem e, portanto,
fazem uso do letramento que privilegia a língua
falada ao se comunicarem.
O fenômeno do letramento, então, extrapola o mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas instituições que se encarregam de introduzir formalmente os sujeitos no mundo da escrita. Pode-se afirmar que a escola, a mais importante das agências de letramento, preocupa-se, não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de prática de letramento, a alfabetização, o processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico), processo geralmente concebido em termos de uma competência individual necessária para o sucesso e promoção na escola. Já outras agências de letramento, como a família, a igreja, a rua como lugar de trabalho, mostram orientações de letramento muito diferentes. (KLEIMAN, 1995, p. 21)
Na mesma perspectiva de Kleiman,
Tfouni (2000, p.86) afirma que “o sujeito do
letramento, no entanto, não é necessariamente
alfabetizado”. Entretanto, Soares (2004) afirma
que, embora alfabetização e letramento sejam
conceitos diferentes, eles devem ser trabalhados
simultaneamente na escola. As diferenças entre
os conceitos estão relacionadas com concepções
distintas de ensino de língua. Como exemplo, ela
cita as matérias publicadas na mídia, nas quais se
considera que ser alfabetizado é mais do que
saber ler e escrever um simples bilhete, condição
que até algum tempo tida como satisfatória para
tirar uma pessoa da lista dos analfabetos. Mas
para ela não basta apenas alfabetizar, isto é,
ensinar os aspectos da língua como código,
também é preciso trabalhar a língua em seus usos
sociais.
A perspectiva de alfabetização e
letramento tratadas por Soares (2004) convergem,
segundo a autora, para a concepção de
alfabetização desenvolvida por Paulo Freire que
enfatiza a alfabetização como meio de
democratização da cultura, como oportunidade de
reflexão sobre o mundo e a posição e lugar do
homem.
Só assim a alfabetização cobra sentido. É a conseqüência de uma reflexão que o homem começa a fazer sobre a sua própria capacidade de refletir. Sobre sua posição no mundo. Sobre o mundo mesmo. Sobre seu trabalho. Sobre seu poder de transformar o mundo. Sobre o encontro das consciências. Reflexão sobre a alfabetização, que deixa de ser algo externo ao homem, para ser dele mesmo. Para sair de dentro de si, em relação ao mundo, como uma criação. Só assim parece válido o trabalho de alfabetização, em que a palavra seja compreendida pelo homem na sua justa significação: como uma força de transformação do mundo. Só assim a alfabetização tem sentido. Na medida em o homem, embora analfabeto, descobrindo a relatividade da ignorância e da sabedoria, retira um dos fundamentos para a sua manipulação pelas falsas elites. Só assim a alfabetização tem sentido. (SOARES, 2004 apud FREIRE p.119).
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Os estudantes da EJA/BH apresentaram
várias leituras do documentário de acordo com a
leitura de mundo que possuem. A possibilidade
de agregar o recurso visual ao trabalho
pedagógico é algo viável, pois - além de ser um
ato reflexivo - contribui para o desenvolvimento
de uma consciência crítica de cidadania,
permitindo que ocorra retificação subjetiva.
Lembra Quinet que “a retificação subjetiva de
Freud consiste em perguntar ‘qual é sua
participação na desordem da qual você se queixa?
’”8 . Enfim, a retificação subjetiva diz respeito à
responsabilidade que cada sujeito deverá ter sobre
suas escolhas e sobre sua implicação diante da
realidade através de novas interpretações feitas a
partir do diálogo entre os pares.
Dados do filme:
Título Original: The 11th Hour
8 Quinet, A. As 4+1 Condições da Análise. JZE: Rio de
Janeiro, 1991, p. 38.
Gênero: Documentário
Duração: 95 min.
Ano: EUA - 2007
Distribuidora: Warner Independent Pictures
Direção: Nadia Conners e Leila Conners Petersen
Roteiro: Nadia Conners, Leila Conners Petersen e
Leonardo DiCaprioProdução: Chuck Castleberry,
Leonardo Di Caprio, Brian Gerber e Leila
Conners Petersen..
Fotografia: Peter Youngblood Hills.
Edição: Luis Alvarez y Alvarez e Pietro Scalia.
Música: Jean-Pascal Beintus.
Sinopse
Causadas pela própria humanidade, enchentes,
furacões e uma série de tragédias assolam o
planeta cotidianamente. O documentário mostra
como a Terra chegou nesse ponto: de que forma o
ecossistema tem sido destruído e, principalmente,
o que é possível fazer para reverter este quadro.
Entrevistas com mais de 50 renomados cientistas,
pensadores e líderes ajudam a esclarecer estas
importantes questões e a indicar as alternativas
ainda possíveis.
Elenco
Leonardo DiCaprio (Narrador - Voz), Kenny
Ausubel, Janine Benyus , Sylvia Earle, Gloria
Flora, Michel Gelobter, Mikhail Gorbachev,
Thom Hartmann, Paul Hawken, Stephen
Hawking, Wangari Maathai, William
McDonough, Bill McKibben, Wallace J. Nichols,
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100
David Orr , David Suzuki, Greg Watson, Andrew
Weil, James Woolsey.
Referências Bibliográficas
A Última Hora. Direção: Nadia Conners e Leila Conners Petersen. Produção: Warner Independent Pictures. Roteiro: Nadia Conners, Leila Conners Petersen e Leonardo DiCaprio . EUA, 2007. 1 DVD ( 95 min), dvd, son., color., legendado.
CORREA, Mário Braga. Desenvolvimento Sustentável: um paradoxo para a educação ambiental resolver. Revista Ao Pedaletra. Santa Luzia: Faculdade da cidade de Santa Luzia, vol. 3, n. 2, p. 17-21, Nov. 2007.
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