Titulo: Revolução de Angola e os Direitos Humanos: Nações Unidas e a segurança
humana
Autor: Juliana Faria de Brito
Publicado em: Revista Eletrônica de Direito Internacional, vol. 7, 2010, pp.
42-68
Disponível em: http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/volume7/
ISSN 1981-9439
Com o objetivo de consolidar o debate acerca das questões relativas ao Direito e as Relações
Internacionais, o Centro de Direito Internacional – CEDIN - publica semestralmente a Revista Eletrônica de Direito Internacional, que conta com artigos selecionados de pesquisadores de todo o Brasil.
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REVOLUÇÃO DE ANGOLA E OS DIREITOS HUMANOS: NAÇÕES UNIDAS
E A SEGURANÇA HUMANA
Juliana Faria de Brito*
RESUMO
Esse artigo discute como a segurança humana, através do direito internacional,
interferiu na guerra civil em Angola. Apresenta-se como o respeito aos Direitos
Humanos é um instrumento para a implementação e manutenção da paz após um
conflito armado. As intervenções em Angola mostram a necessidade das ferramentas do
Direito Internacional para a segurança dos indivíduos, apontando como crítica a idéia de
soberania, mostrando as fragilidades do sistema institucional nacional na África devido
o peso das configurações econômicas e sócio-políticas no transcurso da história no
continente.
Palavras-chave: África, Angola, direitos humanos, segurança humana.
ABSTRACT
This article discusses how human security interfered in the civil war in Angola through
international law. It presents the respect to Human Rights as an instrument to implement
and maintain peace after armed conflicts. The intervention in Angola shows the need for
International Law tools that can assure individual safety. It also criticizes the idea of
sovereignty by showing fragilities of the national institutional system in Africa, due to
the weight of the economic and socio-politics settings during the continent's history.
Key-words: Africa, Angola, human right, human security.
INTRODUÇÃO
A pesquisa científica tem na leitura e na escrita não apenas meios, mas também
um ponto de partida e de chegada. A leitura subsidia deste modo a reflexão crítica e a
construção do saber científico. Compreendida dessa forma, a interpretação sobre o pós-
independência e sua guerra civil, em seus aspectos associados aos Direitos Humanos,
orienta a investigação. Assim, as Relações Internacionais configuram-se tanto como
* Graduada em Relações Internacionais pelo Centro Universitário de Belo Horizonte Uni-BH.
E-mail: [email protected].
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reprodução quanto criação de sentidos. Os significados estão arraigados à linguagem
como representação sobre as sociedades nacionais no ambiente internacional.
Sob a ótica da História das Relações Internacionais e da História da África, o
presente trabalho aborda a vigência dos Direitos Humanos e do Direito Internacional
Humanitário em Angola. Esse estudo foi elaborado por meio de uma pesquisa
qualitativa, cuja opção metodológica principal é a análise documental.
A leitura do texto requer que se faça também uma leitura do mundo. Portanto, a
interpretação do mundo deve anteceder, perpassar e ultrapassar a leitura do próprio
texto. Todo texto, assim, requer uma contextualização. Nesse sentido, texto e contexto
caminham juntos.
A principal contribuição da presente pesquisa reside na possibilidade de ampliar
as possibilidades de discussão acerca da importância dos Direitos Humanos no processo
de revolução transcorrido em Angola.
O objetivo geral deste artigo é fazer a análise do momento pós-independência de
Angola, tomando como referência a aplicação dos Direitos Humanos no Direito
Internacional e na Segurança Humana nas intervenções externas da guerra civil
angolana no período de 1988 a 1997.
Para tanto, será necessária a análise do conflito, seu histórico, enfatizando a
influência das potências da Guerra Fria, Estados Unidos (EUA) e União Soviética
(URSS), que são de grande influência na guerra civil de Angola.
Um estudo sobre África remete ao subdesenvolvimento crônico1, sem melhoras
relativas para os países que ali estão. Tal reflexão faz urgir a necessidade de bases para
sustentá-la, que possa tornar mais clara a situação deste continente de enorme
1 “O paradigma estruturalista (Presbisch e Furtado) entende o subdesenvolvimento como um fenômeno
relacionado às estruturas produtivas da periferia - indústria não integrada, agricultura dual e comércio
exterior reproduzindo tais assimetrias. Bresser Pereira (1985) chama de interpretação da superexploração
imperialista a abordagem neo-marxista que trata o desenvolvimento econômico e social dos países
subdesenvolvidos como se fosse condicionado por forças externas (dominação desses países por outros mais poderosos). Isto os levam a dar ênfase na esfera da circulação, explicando o subdesenvolvimento em
termos de relações de dominação na troca. Argumentam que um “excedente” é extraído de países
subdesenvolvidos por países capitalistas adiantados, empobrecendo os primeiros que deixam de se
desenvolver porque perdem acesso a seus excedentes. Esse excedente é apropriado pelos países
capitalistas adiantados e neles investido, convertendo-se num dos primeiros elementos para o seu rápido
desenvolvimento econômico. A interpretação da superexploração imperialista afirma que a dicotomia
extração/apropriação de excedente tanto causa como perpetua as desigualdades entre os países.
Historicamente, o saque e a expoliação das colônias por parte dos países “metropolitanos” foi a causa
inicial do desenvolvimento destes e da estagnação das colônias; e essa mesma dinâmica explicaria a
persistência do subdesenvolvimento”. (MANTEGA, & REGO) Desenvolvimento, subdesenvolvimento:
breves registros sobre a Teoria da Dependência e considerações sobre “precursores”. Disponível em: www.ipardes.gov.br/pdf/revista_PR/106/liana.pdf. Acessado em: 26/11/2009.
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diversidade biológica e sócio-cultural, rico em vários aspectos, como em recursos
naturais e cultura, porém com grande fragilidade em instituições democráticas.
Ao escolher Angola, se faz necessário estudar a influência externa em sua guerra
civil pós-independência a partir dos direitos humanos. Angola é um país que reflete o
interesse de potências externas em sua história, e sua guerra constante durante décadas
demonstra a urgência de uma ajuda internacional para o estabelecimento da paz
nacional.
Para definir a estrutura e o desenvolvimento de um Estado, existem vários
fatores que necessitam ser analisados. Ao olharmos para a realidade de um país, vemos
o reflexo de uma história. O continente africano tem em sua história marcas profundas
de suas colonizações, principalmente a exploração massiva de recursos naturais e de sua
população. Essas marcas trouxeram conseqüências que perduram até os dias de hoje.
Com a chegada dos portugueses na África no século XV, as relações sociais das
populações de Angola sofreram grandes impactos, segundo Pain (2007), principalmente
pelo aprisionamento e exportação de escravos.
De acordo com Anderson (1966), na costa ocidental africana, em volta de
Luanda – fundada em 1576 – a penetração portuguesa tinha como objetivos escravos e
prata. Como o metal não fora encontrado, as feitorias portuguesas acabaram por ser
quase exclusivamente o tráfico de escravos, com postos de embarque.
A expansão de Portugal em Angola era determinada exclusivamente pela
economia escravista, sendo a maior área de abastecimento de mão-de-obra das
plantações e minas brasileiras, principalmente no período colonial brasileiro (1500 a
1820).
No início dos anos de 1600 as regiões angolanas tornaram-se decisivas para o
domínio de Portugal no Atlântico Sul, devido a alimentação de um intenso e cruel trato
de escravos, como afirma Hernandez (2005).
Angola foi uma colônia portuguesa que teve uma forte exploração,
principalmente de seu povo utilizado como mão-de-obra escrava nas Américas. De
acordo com Anderson (1966), “no final do século XVII, calculava-se que 150.000
quilômetros, aproximadamente, estavam controlados, pelo menos, no sentido de que
existia liberdade de movimentos para os portugueses dentro dessa área” (ANDERSON,
1966, p. 28).
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Esta, como muitas explorações colonizadoras existentes na África, definiu o
futuro do povo africano, deixando marcas até os dias de hoje:
“A ocupação dos territórios visando sua exploração implicava em introduzir
profundas modificações no modo de vida das sociedades africanas. Duas em
especial causaram enorme impacto nestes povos: a expropriação das terras e
a obrigação do trabalho. Estas modificações eram condições para que as
principais atividades econômicas e investimentos dos europeus se tornassem
viáveis” (ARNAUT; LOPES, 2008, p. 67).
As atividades missionárias em Angola - 1650 a 1750 - foram dominadas por
capuchinos italianos, nos quais cerca de 400 frades tentavam converter a população
africana na retaguarda de Luanda, como afirma Anderson (1966). Em 1875, se tem a
chegada dos missionários portugueses, que modificou a situação em Angola devido a
competição com as missões estrangeiras, inclusive católicas. De acordo com Hernandez
(2005), combateram missões protestantes britânicas, missionários evangélicos norte-
americanos, como também os missionários europeus e dos EUA da igreja metodista.
Havia a escravatura interna, para o fornecimento de mão-de-obra para as novas
plantações coloniais no distrito de Moçâmedes, segundo Hernandez (2005), onde
numerosa mão-de-obra e barata era resgatada por portugueses mediante a acordos feitos
por autoridades africanas. A fuga era a forma de resistência a essa escravidão, assim, os
portugueses, para facilitar essa questão, optaram por escravizar crianças e mulheres,
principalmente em fazendas européias do norte ao sul de Angola.
Em 1878 houve a abolição da escravatura, porém os ex-escravos eram obrigados
a trabalhar assalariados nas residências de seus ex-donos. Dois mecanismos do sistema
colonial foram implantados: cobrança de impostos e o confisco de terras, devido o
influxo de colonos e comerciantes desde 1860. Os europeus confiscavam terras de
exploração coletiva através da violência física, o que acarretou a alteração profunda das
estruturas sociais e políticas dos povos africanos: “alimentando um conjunto de
movimentos de resistência que se estenderam pelo século XX” (Hernandez, 2005,
p.568).
A África, ao final do século XIX foi fragmentada e “distribuída” entre as nações
européias colonizadoras que tinham como objetivo a expansão de seus mercados e
obtenção de lucros, o que foi oficialmente acordado (uma vez que a ocupações já
estavam em andamento) na Conferência de Berlim:
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Tratar da partilha européia e da conquista da África significa repor o
protagonismo europeu no momento em que são traçadas as modernas
fronteiras do continente na Conferência de Berlim (1884-85),
desencandeando-se um processo cujas conseqüências se fazem sentir até os
dias atuais. Nesse sentido, a conferência é o grande marco na expansão do
processo de “roedura” do continente iniciado por volta de 1430 com a entrada
portuguesa na África. (HERNANDEZ, 2005, p.45).
Em diferentes partes em Angola começaram a aparecer novas formas religiosas
de associação que deram aos distintos grupos um importante grau de identidade.
Surgiram movimentos proféticos e messiânicos nos quais articulavam o cristianismo
com as religiões tradicionais africanas, onde o cristianismo era permeado de meios
mágicos de intervenção, “significando uma atuação imediata no cotidiano configurando
uma forma de resistência” (Hernandez, 2005, p.573). O movimento mais significativo
ocorreu após Primeira Guerra Mundial, que tinha como líder Simon Kimbangu, que
criou uma igreja sincrética responsável por gerar uma enorme força de resistência contra
os mecanismos do sistema colonial.
Apoiava-se no culto dos antepassados, integrando-o a uma interpretação do
Antigo Testamento, assim se identificando com o povo judeu. Pregava a vinda de um
Cristo negro ao mundo, que iria salvar os negros da opressão. Kimbangu foi preso e
deportado em 1921, se tornando um mártir, um modelo para a resistência nacional. O
kimbanguismo se estendeu tanto em Angola como nos dois Congos (belga e francês),
“tornando-se uma igreja autônoma com alto grau contestatório, dando ensejo a um
nacionalismo religioso que ganhou mais força depois da Segunda Guerra Mundial”
(Hernandez, 2005, p.574).
Os portugueses pegaram esses movimentos proféticos e messiânicos para
justificar o racismo e a subordinação dos povos negros. As diferenças raciais passaram a
articular, como afirma Hernandez (2005), com as diferenças étnicas, religiosas e sociais,
onde os negros e suas características físicas passaram a ser consideradas determinantes
em suas capacidades intelectuais. O governo colonial passou a restringir os africanos
para o trabalho em cargos públicos, afastando-os inteiramente da administração
colonial. Este racismo acentuou as hostilidades entre colonizadores e colonizados,
promovendo situações freqüentes de conflito.
Uma elite cultural composta por crioulos surgiu no pós-1945, apresentando
capacidades de mobilização da grande maioria rural para uma luta capaz de ultrapassar
o reformismo, que foi ganhando perspectiva nacional e revolucionária, tendo seu marco
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inicial em 1947, quando o Grêmio Africano passa a se chamar de Associação dos
Naturais de Angola (Anangola). Em 1948 são criadas três organizações políticas, em
1955 há a criação de outros partidos do mesmo movimento de mobilização, que
acabariam por criar os três principais partidos da revolução do pós-independência até os
dias de hoje: o Movimento pela Libertação de Angola (MPLA) em 1956, a União das
Populações do norte de Angola (UPA) em 1954 que mais adiante passou a se chamar
Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), e por último a União Nacional para a
Independência Total de Angola (Unita) em 1966 (Hernandez, 2005).
Rebeliões estouraram no país, propriedades e bens de brancos e mestiços eram
atacadas por trabalhadores agrícolas que contestavam a lei do cultivo obrigatório do
algodão implantado há mais de trinta anos pelos portugueses, e conseqüentemente estes
trabalhadores se juntavam aos dois movimentos (UPA e MPLA) para fugir da ofensiva
portuguesa, dando mais força (Hernandez, 2005).
Em 04 de fevereiro de 1961 ocorreu um violento ataque cometido pelos grupos
revolucionários. O ato teve repercussão internacional:
“Por outro lado, as independências na África, em 1960, também sinalizaram
aos militantes angolanos a necessidade de radicalização do movimento, uma
vez que o governo português mostrava-se invulnerável quanto à negociação para uma transição pacífica” (HERNANDEZ, 2005, p.578).
Os movimentos de independência atuaram separadamente, sem conseguir formar
uma unidade. O MPLA atuava em Cabinda, a FNLA ao norte do país e a Unita a leste.
Como explicita Hernandez (2005), cada movimento assinou um acordo de cessar-fogo
com os portugueses: Unita em 14 de junho; a FNLA em 12 de outubro; e o MPLA em
21 de outubro, todos no mesmo ano de 1974.
Em 11 de novembro de 1975 o MPLA (Movimento Popular de Libertação de
Angola), com Agostinho Neto na direção, declarou a independência de Angola com o
reconhecimento português (Hernandez, 2005). Logo após sua independência obtida por
meio de uma guerra contra o governo fascista português, eclodiu uma nova guerra civil
acarretada pela fragmentação ocorrida durante a descolonização e a disputa de poder
entre os dois partidos da revolução (MPLA e Unita), que já acontecia antes da saída dos
portugueses.
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Tais políticas adotadas pelos europeus são de extrema importância para se
compreender o porquê da necessidade da revolução com o ideal de liberdade. Para
mostrar uma breve situação da Angola sob dominação portuguesa:
“Trabalho forçado em massa: leis transmitidas de facto: capital estrangeiro
onipresente: um conjunto de proletariado branco incendiário: uma
superestrutura de magia: uma máquina social e econômica funcionando num
vazio, impulsionada pelo terror puro. Esse era o sistema do imperialismo
português no início de 1961, o mais primitivo, o mais deficiente e o mais
cruelmente exploratório regime colonial da África” (ANDERSON, 1966,
p.99).
Para entender as guerras de independência existentes no continente africano é
necessário saber o contexto de seu surgimento, bem como suas causas. O mundo
passava por um período de turbulência: durante a Guerra Fria, vários países estavam se
estruturando em termos ideológicos. Tal definição era construída a partir do
alinhamento com uma das potências mundiais – Estados Unidos e União Soviética –
que tentavam expandir seu domínio econômico e ideológico, como uma espécie de “re-
colonização” do mundo, o que não foi diferente na África.
Muitos Estados conquistaram suas independências por meio de golpes militares
durante a Guerra Fria, para os quais se buscava apoio das superpotências, oferecendo
em troca, concessões estratégicas. Tais acordos, vistos pelas partes interessadas como
necessário, gerou o agravamento e ampliação dos conflitos:
“O apoio estadunidense e russo às diversas facções dos exércitos de
libertação muitas vezes transformou o conflito, introduzindo novos
complicadores. O que inicialmente era uma guerra entre a colônia e a
metrópole foi acrescida por uma disputa intra e inter colonizados e destes
contra o colonialismo. Nas colônias, mais de um exército pretendeu falar e
representar a “nação” na sua luta pela independência e, conforme a
orientação de cada um recebia apoio econômico e militar dos EUA ou da
URSS” (ARNAUT & LOPES, 2008, p. 82).
Os principais partidos que foram formados durante a revolução, recebiam o
apoio de diferentes países: o Unita recebia tropas de apoio dos EUA e da África do Sul.
O MPLA possuía o apoio logístico e humano da URSS, China e principalmente de
Cuba. Nesse sentido, observa-se que: “a continuidade das divisões internas não
demorou em transformar-se em uma segunda guerra civil, disputada entre MPLA e
UNITA, no âmbito de articulações internacionais” (HERNANDEZ, 2005, p.582).
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Esta revolução apenas foi possível após o apoio externo de potências que a viam
como forma de estratégia política. Assim, seu financiamento com armas e a guerra civil
após a revolução pela luta de controle de território entre os partidos da revolução apenas
deixou o Estado mais fraco, podendo dizer até mais dependente, devido ao apoio militar
e financeiro de Estados socialistas e capitalistas. É inevitável que as conseqüências disto
tenham sido devastadoras, principalmente para sua sociedade.
O pan-africanismo também é essencial para captar os ideais que influenciaram
parte das revoluções de independência. A construção do pensamento africano em torno
de raça gerou uma resistência à dominação branca, européia. A questão da identidade é
mais forte do que a questão de raça para o desencadeamento das descolonizações:
“Portanto, uma nação situada na África não tem entre seus membros somente
negros e seus descendentes. Novamente vemos que a questão não se reduz à
cor da pele, ser negro ou não, mas partilhar de uma identidade, ao sentimento
de pertencimento e à aceitação como parte da coletividade, da nação”. (ARNAUT & LOPES, 2008, p. 92).
A história de Angola faz mostrar o quanto potências de diferentes épocas
contribuíram para o subdesenvolvimento crônico. Foi palco de jogos político-
econômicos de potências durante o período das colonizações européias também durante
a Guerra Fria. Essas são as raízes deste subdesenvolvimento, que suscitam questões a
serem discutidas.
Tais independências tiveram alto custo, segundo Arnaut e Lopes:
“De um lado representou o gasto de enorme soma de recursos; de outro, acarretou uma imensa quantidade de mortes e de seqüelas físicas, morais e
familiares para os habitantes da colônia. E, por último, substituiu a política, a
livre circulação de opiniões, por uma lógica militar onde impera a ordem e a
hierarquia. Esta militarização da política explica a distinção que gozava a
figura do guerrilheiro no imaginário africano, no qual o uniforme e a
metralhadora constituíam distintivos honoríficos”. (ARNAUT & LOPES,
2008, p. 94).
As marcas deixadas pela exploração e colonialismo português possuem
profundas raízes. A combinação do impacto colonial na sociedade africana é uma
variante de seu não-desenvolvimento após a independência. Em Buzan e Waever (2003,
p.226) explica o comportamento desta sociedade com o relacionamento patrão-cliente,
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onde ficaram enraizadas as idéias “esperar e principalmente obter incompetência,
preconceito, venalidade e corrupção em lidar com o „seu‟ Estado2”.
Mesmo com o quadro jurídico de soberania e a Carta da Organização da
Unidade Africana (OUA), não houve um desenvolvimento político e nem econômico no
continente, conforme Buzan e Waever (2003). As tentativas de estabilização da paz
foram através de intervenções humanitárias, sobretudo pela ONU, porém o país
permanece na extrema pobreza e com grande risco de segurança humana, tal conceito
será desenvolvido posteriormente.
Direitos humanos e o Direito Internacional Humanitário (DIH)
Direito Internacional dos direitos humanos
Os direitos humanos foram criados com base em valores europeus, definidos ao
longo da história, podendo ser observado no pensamento grego, em guerras medievais e
chega até o século XXI buscando adaptar-se diante dos novos desafios. É possível
distinguir dois principais momentos da história que mostram o desencadeamento
positivo dos direito humanos, segundo Menezes (2006). O primeiro pode ser observado
durante os movimentos de independência dos EUA, com a Declaração dos Direitos da
Virgínia, a Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776, assim como sua
constituição de 1787; períodos nos quais os direitos individuais e limitações dos poderes
do Estado foram inclusos. O segundo, de maior repercussão ocorreu após a Revolução
Francesa, expresso na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que
contém vários dispositivos nos quais proclamam liberdades individuas e as garantias
contra atos do governo.
A sociedade internacional contemporânea foi redefinida a partir das
transformações estruturais pelas quais o mundo passou no pós Segunda Guerra. A partir
de então “desencadearam um processo modelador de um novo sistema normativo
internacional e um ambiente propício para as trocas culturais, normativas, econômicas e
ideológicas entre o plano global e local” (Menezes, 2006, p.575).
Uma das transformações mais significativas foi a afirmação dos direitos
humanos pelo conjunto de Estados na esfera das Nações Unidas logo em 1945 e com a
2 “expect and mostly get incompetence, bias, venality, and corruption in dealing with „their‟ state (...)”.
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Declaração Universal dos Direitos do Homem de 10 de dezembro de 1948, que apesar
de ser uma resolução sem força normativa, acabou por gerar um processo de
comprometimento por parte dos Estados, que incluíram em suas Cartas constitucionais
dispositivos afirmando os preceitos proclamados nestes documentos, devendo ser
considerado um documento ideológico – um documento que deve ser visto à luz das
ideologias presentes no contexto em que é produzido (Menezes, 2006).
A Declaração Universal dos Direitos do Homem é considerada um marco
histórico pois constitui o primeiro instrumento de direitos humanos adotado por uma
organização internacional. Este se divide em duas partes: a primeira diz respeito aos
direitos civis e políticos, e a segunda sobre os direitos econômicos, sociais e culturais,
que diz respeito ao direito à seguridade social e a um nível de vida digno3:
“Neste contexto, a Declaração de 1948 vem a inovar a gramática dos direitos humanos, ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos
humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos.
Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos,
sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a
titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser
essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como
valor intrínseco à condição humana. Indivisibilidade porque a garantia dos
direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais,
econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais
também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade
indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e
culturais” (PIOSEVAN, 2009, p.69).
Este não é um tratado, e sim uma resolução da Assembléia Geral. Desse modo,
não é obrigatório ou vinculante para os Estados. Ainda assim, a Declaração teve uma
grande repercussão internacional:
“Os Estados, em sua grande maioria, acabaram não só por adotar aquelas normas como princípio basilar de suas relações internacionais, mas também,
como se debaterá adiante, reproduziram em seus ordenamentos jurídicos e
suas normas fundamentais estatais a idéia de um humanismo universal”.
(MENEZES, 2006, p.726).
Assim, a declaração, ao longo do tempo, se tornou referência para a comunidade
internacional no que dizia respeito aos direitos humanos. Em decorrência de sua
3 Ver em BRANT, Leonardo Nemer Caldeira; BORGES, Leonardo Estrela. A Proteção Internacional dos
Direitos Humanos.
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aceitação, se tornou legítima, se consolidando como um costume internacional. Ainda
assim, existem discussões em torno desta obrigatoriedade e sobre quais direitos
declarados são realmente de caráter obrigatório e em quais circunstâncias devem ser
submetidos.
Como afirma Brown (2008), após a Primeira Guerra Mundial, foi necessário
organizar um sistema de paz por meio de governo internacional. Nesse sentido houve a
tentativa da criação da Liga das Nações, sendo vista como um resultado promissor da
guerra, um meio de eliminar a luta pelo poder. A Liga não teve futuro pelo fato de ter
sido fundada com base no princípio da igualdade entre Estados soberanos
independentes, sendo que os Estados integrantes mal haviam assinado os tratados de
paz, e os vitoriosos da Primeira Guerra Mundial já davam início à formação de novas
alianças para manter sua supremacia (Burns, 1993). Após a Segunda Guerra Mundial,
diante do extermínio de seres humanos e outros horrores, constatou-se a necessidade de
construir uma posição universal acerca dos direitos humanos. Nesse sentido, segundo
Piosevan (2009), a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o
Pós-Guerra deveria então significar a sua reconstrução. Portanto, há um fortalecimento
da idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve estar reduzida ao domínio do
Estado por se revelar tema legítimo de interesse internacional.
Não há direitos humanos sem democracia assim como não há democracia sem
direitos humanos (Piosevan, 2009). Ou seja, o regime compatível com a proteção dos
direitos humanos é o democrático.
Direito Internacional Humanitário
O Direito Internacional Humanitário (DIH) foi criado e codificado por Francis
Lieber e Henri Dunant, duas pessoas que viveram experiências fortes e traumáticas e
resolveram tentar de certa maneira codificar regras para períodos de guerras nas quais
protegiam os civis.
Lierber era um jurista e imigrante alemão radicado nos Estados Unidos, que
criou um sistema normativo de regras de condutas para as tropas em campanha na
Guerra de Secessão, que acabou servindo como fonte material para uma série de
esforços normativos que se iniciara na sociedade internacional no século XIX.
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Dunant é considerado o criador do DIH. O jovem empresário suíço, em 1859 foi
ao norte da Itália, na cidade de Solferino, para encontrar Napoleão III afim de obter
auxílio financeiro para fazer investimentos na Argélia. Acabou por encontrar uma
guerra entre franceses, italianos e austríacos, que deixou mais de 40.000 mortos e
feridos. Dunant, após voltar da Itália, escreve um livro sobre a batalha – Un Souvenir de
Solferino – e coloca duas importantes ações que deveriam ser adotadas para evitar este
tipo de situação: “a criação de sociedades de socorro privadas, que atuariam nos locais
de conflito independentemente do vinculo com qualquer das partes; e a aprovação de
um tratado internacional que facilitasse a sua atuação” (BORGES, 2006, P.10).
Juntamente com mais cinco pessoas, Dunant funda um “Comitê Internacional
de Ajuda aos Feridos”, que mais tarde se transformaria em Comitê Internacional da
Cruz Vermelha – (CICV). Em agosto de 1863, convoca a conferência diplomática que
dá origem ao primeiro tratado internacional do DIH: a Convenção de Genebra:
“Nunca antes na história da civilização os Estados se haviam colocado de acordo para limitar, em um tratado internacional aberto à ratificação
universal, seu próprio poder em benefício do indivíduo. Pela primeira vez, a
guerra havia cedido terreno para o direito geral e escrito. Estava criada a base
axiológica e institucional sobre a qual se desenvolveria o direito internacional
humanitário” (BORGES, 2006, p.10).
O DIH pode ser entendido como regras internacionais destinadas à
regulamentação dos problemas humanitários em conflitos armados, nacionais ou
internacionais, limitando os meios e métodos passíveis de utilização em um conflito
armado. Suas determinações dizem respeito desde os armamentos até ao tratamento
dados aos combatentes e civis que estejam direto ou indiretamente envolvidos. A
finalidade última do DIH é a redução do sofrimento dos indivíduos causado pela guerra,
preservando a dignidade humana, tentando impedir assim que pessoas sejam expostas a
um sofrimento irrazoável:
“Dessa forma, conclui-se que, dada a incapacidade de se prover, no sistema
internacional, mecanismos efetivos para a erradicação dos conflitos, a criação
de um conjunto normativo que vise a diminuição de seus perversos efeitos é
algo plenamente justificável” (BORGES, 2006, p.17).
Segundo Borges (2006), existem semelhanças entre a Proteção dos Direitos
Humanos e o DIH: a proteção da dignidade da pessoa humana; o princípio da
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inviolabilidade4; princípio de segurança que determina a proibição de represálias, penas
coletivas e tomadas de reféns; por fim o princípio da não-discriminação, obrigando a
aplicar os direitos humanos e o DIH sem distinção de raça, sexo, cor, idade,
nacionalidade ou religião.
Apesar das semelhanças, são duas ordens jurídicas distintas, onde o sistema
internacional de proteção dos direitos humanos possui uma institucionalização, tanto
mundial quanto regional. Já o DIH não possui tal institucionalização, tendo seu
principal ator responsável pela difusão de suas normas: CICV (Borges, 2006).
Na aplicação de cada instituto, o DIH é aplicado em situações e tempos de
conflitos armados, em locais onde há hostilidade, diferentemente da Proteção dos
Diretos Humanos, que são aplicados em qualquer tempo e local. Na aplicação pessoal,
os direitos humanos não distinguem quais são os protegidos, ao contrário do DIH, que
protege especificamente indivíduos afetados por conflitos armados5.
A forma de implementação e controle de ambos são distintas. No DIH há uma
exigência de controle espontâneo, preventivo, permanente e corretivo na prática,
enquanto nos direitos humanos o controle é a posteriormente, através de um processo
judicial ou quase judicial (Borges, 2006).
Entre semelhanças e distinções, há uma complementaridade existente: “ora o
DIH utilizando-se de mecanismos dos direitos humanos para sua implementação, ora os
direitos humanos utilizando as instituições de DIH para sua promoção” (BORGES,
2006, p.40). As normas do DIH são aplicadas aos conflitos armados internacionais e aos
conflitos armados internos, que diz respeito à guerras civis.
Existem dois blocos normativos que regem as situações de guerra: o direito de
Haia e o direito de Genebra. O direito de Haia diz respeito aos meios e métodos de
combates. Já o direito de Genebra diz respeito à proteção das vítimas. Também há o
chamado “direito misto”, que envolve situações como a proteção dos bens culturais em
tempos de guerra e o desarmamento (BORGES, 2006).
4 Princípio da inviolabilidade: “o direito de cada indivíduo possui de ter a sua integridade física e moral
respeitada, seja em uma situação de paz ou de beligerância, seja vis-à-vis do seu próprio Estado ou de um
Estado invasor ou ocupante”. (BORGES, 2006, p.37). 5 “população civil, feridos, enfermos, prisioneiros de guerra ou detidos civis; assim como o pessoal
sanitário e religioso, civil ou militar, e o pessoal da cruz vermelha ou qualquer outra instituição de socorro, a fim de que possam realizar sua tarefa durante o conflito armado”. (BORGES, 2006, p.39)
199
Construtivismo e a Segurança Humana
A identidade nacional e a soberania foram dois temas que surgiram durante a
colonização e irromperam no sistema pós-colonial, afinal tais pensamentos nortearam as
revoluções de independência durante a Guerra Fria. O Sistema Vestifália6 possui sua
idéia central na formação de um Estado e suas etapas, no qual a competição de
demandas militares e a guerra criam um Estado burocrático, depois nacional e como fim
Estados democráticos - como se afirma em Buzan e Waever (2003). Esta idéia da
formação de um Estado burocrático estava distante desses sistemas pós-coloniais na
África – nos quais fugiram do processo europeu do desenvolvimento.
A África possui vários Estados-nação, cujas fronteiras foram definidas a partir
de interesses coloniais que não consideraram a composição étnica da região
(ACHARYA, 2008). Essas raízes deixadas pelos colonizadores geraram vários
movimentos étnicos separatistas, cujos conflitos violam constantemente os princípios de
segurança humana, não tendo a consolidação de uma democracia.
A segurança tradicional, de acordo com Acharya (2008), é a proteção da
soberania e integridade territorial dos Estados de ameaças militares externas. Já a
segurança humana é aquela que visa a segurança dos indivíduos. Esta possui sete áreas
segundo o relatório de Desenvolvimento Humano de 1994, do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD): segurança econômica, alimentar, segurança
da saúde, ambiental, pessoal, da comunidade e a segurança política (ACHARYA,
2008).
A base da segurança humana está no desenvolvimento de um Estado, já que
apenas este é o garantidor da segurança dos indivíduos. Desse modo, a noção de
segurança humana complementa a segurança do Estado. Assim, Estados fracos não são
capazes de proteger seus indivíduos, pois essas respectivas seguranças dependem da
natureza do regime vigente em um Estado (ACHARYA, 2008).
6 O Tratado de Vestfália em 1648 teve seus princípios normativos centrais fixados, que são: soberania,
territorialidade, autonomia e legalidade, configurando assim o Sistema internacional de Estados. As
relações entre os Estados tornam-se submetidas ao Direito Internacional de Estados, a partir do momento
que cada um dos Estados consinta, “já que não há autoridade legal para além do Estado capaz de impor
obrigações legais a ele ou a seus cidadãos”.
Disponível em: <http://www.tempopresente.org/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=4387>. Acesso em: 30/11/2009.
200
Alguns governos são uma ameaça para sua própria população. Na maioria das
pós-colonizações africanas, grupos insurgentes tomaram o controle do governo, o que
gerou mais conflitos do que estabilidade, como o caso da interminável guerra civil
angolana, como coloca Buzan & Waever (2003).
Ao invés da consolidação de um Estado burocrático, houve uma onda inversa
nos países africanos. Os neo-patrimoniais e/ou senhores da guerra na África controlam
países a partir de seus interesses, sem terem a mínima preocupação no desenvolvimento
da sociedade civil, muito menos em estabelecer um Estado burocrático:
“Tais regimes, como entidades políticas não-estatais, comandam através do controle do comércio, ao invés de ser por mobilização das burocracias, e a
autoridade política e de comando sobre os recursos vêm principalmente
através das decisões de indivíduos específicos que agem para servir os seus
interesses privados, em grande parte sem levar em consideração a
formalidade das instituições governamentais, regras ou processos”. (RENO,
1998, apud BUZAN & WAEVER, 2003, p.79-80)7.
Um exemplo dado por Buzan e Waever (2003) é o alto crescimento do PIB de
Angola com base no petróleo, combinado com uma devastação e empobrecimento de
seu povo.
As falhas no sistema do Estado pós-colonial são eminentes e é a partir destas que
se torna possível a compreensão do seu não-desenvolvimento. A segurança doméstica
nos Estados africanos é raramente existente. Questões como fronteiras, religião e etnia
são pontos importantes para tal segurança, segundo Buzan e Waever (2003). Só em
Angola há cinco grupos étnicos principais, como confirma Anderson (1966): os
bacongos ao norte do país; os quibundos que ficam na região de Luanda; os
ovimbundos no planalto de Benguela; mais os povos de luanda e ganguela nas regiões
orientais do país.
Buzan & Waever (2003), representantes da Escola Inglesa no âmbito das
Relações Internacionais, elevam o construtivismo entre as abordagens que utilizam de
forma combinada com outras vertentes teóricas. A partir disto o construtivismo é uma
maneira, segundo Onuf (1998), de estudar sobre qualquer relacionamento humano.
Explica que as pessoas fazem a sociedade, assim como as sociedades fazem as pessoas,
7 “Such regimes, just like non-states political entities, rule through control of commerce rather than by
mobilising bureaucracies, and political authority and command over resources come mainly through the
decisions of specif individuals who act to serve their private interests, largely without regard for formal government institutions, rules or processes.”
201
e o terceiro elemento que está no meio destes dois é o que faz a ligação: regras. São
essas regras que irão dizer aos participantes de uma sociedade o que eles são. Estes são
chamados pelo construtivismo de agentes. Para entender o ambiente internacional é
necessário entender o papel das regras, já que estas ficam entre os agentes e estrutura
das quais os agentes fazem o cálculo custo/benefício.
Determinadas regras regem o comportamento dos Estados. Um Estado faz o
cálculo custo/benefício tendo em vista certas regras que devem ser respeitadas, essas
são muito mais socialmente difundidas do que o resultado do cálculo custo/benefício.
Nem toda regra se sustenta de maneira institucional, há regras que são
respeitadas pelo costume. Assim, os Estados pegam aquelas regras que são benéficas
para eles e tentam institucionalizá-las.
Voltando à questão da identidade nacional como um propulsor das guerras de
independência, a ligação desta com segurança humana para o construtivismo é
fundamental.
Wendt (1999) explica a identidade através do contraponto. Para a construção de
uma identidade é necessário a existência identidades que se contrapõe. É muito mais
importante o contraponto de uma identidade para explicar porque pessoas agem de
determinada maneira do que realmente questões materiais. Identidades e interesses são
formados por idéias compartilhadas, e não por sua natureza, já que esta é um fator muito
mais material do que ideacional.
A interação, segundo Wendt (1999), é um processo natural através do qual as
identidades são constantemente mudadas, e a ontologia gera implicações na maneira
como as pessoas observam o mundo.
Para Messari (2003), a identidade está ligada à ação, assim ela é constituída
através das relações sociais. Logo, as estruturas narrativas como identidades são
construídas e firmadas por meio de “histórias originais”. Ou seja, a narrativa identitária
é social e historicamente construída, e precisa ser afirmada pelo reconhecimento do
outro, do alheio.
Uma vez que a insegurança existente é devida ao relacionamento com “aqueles
que foram excluídos da identidade coletiva” (MESSARI, 2003, p.178), a segurança está
interligada com a identidade. Um Estado possui o compromisso com seu povo, e é a
202
identificação com seu sofrimento que irá construir uma solidariedade exclusiva e ética
com o outro nos limites nacionais.
Em um sistema internacional dominado pela estrutura do soberano nacional
existem limitações na ajuda do sofrimento alheio. “Para poder ir além de tais limitações
inerentes à identificação nacional, fez-se necessária a existência de instituições de
segurança internacional” (MESSARI, 2003, p.179). Está colocado então o grande
desafio do sistema pós-Guerra Fria: o questionamento da inviolabilidade da soberania
nacional – feita pelos dois ex-secretário-geral Kofi Annan e seu antecessor Boutros
Boutros Ghali, confirma Messari (2003) – onde algumas questões estão além do Estado
soberano, são essas: vidas sob ameaças, independente se estiverem ameaçadas pelo
próprio Estado.
Ambos colocam então que essa responsabilidade apenas cabe a uma instituição
que está além das fronteiras nacionais, logo, as instituições internacionais.
Existe uma conduta moral de intervenção para proteger cidadãos de genocídio e
matança em massa. A soberania deriva da responsabilidade dos Estados em proteger os
civis. Quando o Estado falha em sua conduta, acaba por perder seu direito soberano,
segundo Tesón (1993, apud Bellamy & Wheeler, 2008).
Com as instituições internacionais de segurança, veio a construção de um
discurso com caráter humanitário e de responsabilidade universal, no qual as permitem
estar acima da distinção entre de nacional e o internacional, formando uma
responsabilidade humanitária e universal (MESSARI, 2003).
Durante a Guerra Fria, as intervenções humanitárias eram deixadas de lado, pois
o valor da soberania e ordem dos Estados era colocado no lugar da execução da
Proteção dos Direito Humanos. Entanto, nos anos 1990 houve mudanças,
principalmente entre os Estados liberais democráticos, dando lugar à reivindicações
humanitárias no seio da sociedade internacional (Bellamy e Wheeler, 2008).
Os Direitos Humanos e o Direito Internacional Humanitário são respostas a
construção deste discurso ao longo da história. Como explica Ruggie (1998, apud
Barnett, 2008, p.162), o construtivismo possui seu foco na consciência humana e seu
papel na vida internacional e a intervenção humana pode forçar a história a mudar de
rumo.
203
O papel da instituição internacional para a mudança no curso da política
internacional é de forte influência, como é o caso dos direito humanos e a intervenção
humanitária, mostrando sua capacidade de intervir em um Estado soberano que retrata o
questionamento feito sobre a inviolabilidade desta soberania. O fortalecimento da idéia
da Proteção dos Direitos Humanos acaba por criar outra idéia: de que as relações entre
Estado e seus cidadãos são de preocupação da comunidade internacional, de que os
maus-tratos a cidadãos e a inexistência de um regime democrático devem demandar
ação internacional (Hurrell, 1999 apud Piosevan, 2009, p.69). Se um Estado soberano
possui fragilidades internas, não protegendo seus cidadãos, há motivos para alarmar a
comunidade internacional.
Os Estados permitem intervenções feitas por ativistas humanitários, como afirma
Barnett (2008), devido à existência de uma complacência das normas da Proteção dos
Direitos Humanos, que faz com que se identifiquem com tais normas, acreditando ser a
coisa certa a se fazer. Percebe-se então uma tendência da homogeneização das políticas
mundiais devido a busca dos Estados por legitimação, aceitação e status no “mundo
moderno”, e esta se dá através da internacionalização e institucionalização das normas.
Direitos Humanos e o Direito Humanitário Internacional em Angola: a construção
da paz
O conflito armado em Angola ocorreu no período de 1961 a 2002, podendo ser
dividido em três fases, como descreve Simões (2009): a primeira de 1961 a 1974, que
foi a guerra de independência contra a colônia; a segunda fase é marcada pela guerra
civil entre o MPLA e a Unita; e a terceira e última foi a fase de 1992 a 2002, período de
guerra e paz tenso, que foi marcado pela tentativa da comunidade internacional garantir
a estabilidade no país.
Com a independência de Angola em 1975, o MPLA fixou-se no poder, sendo o
único partido político do país, adotando o marxismo-lenismo como modelo sócio-
político-econômico, como afirma Pain (2007). Apesar da conquista da independência os
conflitos continuaram, porém não mais com o domínio colonial, e sim entre os três
movimentos (MPLA, Unita e FNLA).
204
Como explica Pain (2007), a saída de mais de 300.000 portugueses após a
independência causou um enorme impacto na sociedade angola, já que estes ocupavam
a maioria dos cargos técnicos do país. Assim, “a sociedade angolana foi moldada pelas
regras clássicas soviéticas” (Pain, 2007, p.5).
O país se manteve em uma constante guerra civil travada principalmente entre o
MPLA e Unita, com um forte peso geopolítico devido aos apoios externos da Guerra
Fria, como afirma Simões (2009).
Durante o conflito, houveram intervenções humanitárias das Nações Unidas
(ONU) que tinham como meta promover e estabelecer a paz em Angola. O Conselho de
Segurança da ONU é o único órgão possuidor de poder de autorização para uma
intervenção humanitária armada. Desde os anos 90, o Conselho de Segurança expandiu
sua lista de o que conta como uma ameaça a paz para incluir o sofrimento humano. O
Conselho apenas pode autorizar tal intervenção somente em casos onde se encontra uma
ameaça da paz e segurança internacional (Bellamy & Wheeler, 2008).
Em dezembro de 1988 a comunidade internacional passou a enxergar o conflito
angolano, sendo então criada a UNAVEM (United Nation Angola Verifcation Mission
– Missão de Verificação Angolana das Nações Unidas) uma missão de paz das Nações
Unidas, resultado de um processo diplomático internacional que implementou a
resolução de número 435 (1978) do Conselho de Segurança, objetivando a
independência da Namíbia e retirada das tropas cubanas em Angola, para ter como fim a
paz no sul-ocidental no continente africano8.
Angola, África do Sul e Cuba assinaram o acordo tripartite, que previa a retirada
das tropas cubanas de Angola com a supervisão da ONU. Uma solicitação foi feita por
Cuba e Angola ao secretário-geral das Nações Unidas, recomendando ao Conselho de
Segurança a criação de um grupo militar observador, em conformidade com o regime
que já havia sido acordado entre os dois países e o Secretariado.
Em seguida, o secretário-geral apresentou um relatório com recomendações
sobre a criação do grupo militar observador para a retirada das tropas cubanas em
Angola, que foi aprovado pelo Conselho de Segurança através da resolução 6269,
8 Retirado em: <http://www.un.org/Depts/DPKO/Missions/unavem1/UnavemIB.htm>. Acesso em:
12/11/2009, as20:36. 9http://daccessddsny.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/541/53/IMG/NR054153.pdf?OpenElement Acesso em: 12/11/2009.
205
estabelecendo a UNAVEM I. Um período de 31 meses foi estabelecido como prazo
limite da missão10
, que tinha como objetivo a retirada das tropas em 30 meses.
A UNAVEM I teve início de suas operações em 3 de janeiro de 1989, com a
entrada do grupo observador em Luanda, e terminou em 30 de maio de 1991. De acordo
com a ONU, a operação de paz foi cumprida com a retirada total das tropas cubanas no
país11
.
Após a UNAVEM I, as hostilidades entre a Unita e o governo angolano
continuaram. Viu-se necessária a criação de um Acordo de Paz entre ambos, em 1 de
maio 1991 houve a rubrificação do Acordo de Bicesse12
em Estoril, e sua assinatura no
dia 31 de maio em Lisboa, pelo presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, e o
presidente da Unita, Jonas Savimbi. Neste acordo, quatro documentos estavam
incluídos: um acordo de cessar-fogo; princípios fundamentais para o estabelecimento da
paz; conceito para resolver as questões pendentes entre o governo e a Unita e o
Protocolo de Estoril13
.
O Acordo de Bicesse foi o primeiro das três tentativas de entendimento entre o
governo e a Unita, em sua negociação estiveram presente Portugal, Estados Unidos e
URSS, conhecido como Troika, o que foi de grande importância para a criação do
acordo, como afirma Pain (2007). A Troika era um grupo observador dos acordos de
paz em Angola, que, segundo Pureza et alli (2007), no processo e estabelecimento dos
acordos de paz, prevaleciam seus interesses, principalmente os do EUA.
Os Acordos de Paz referentes a Angola se assemelham a tantos outros em
processo naquele momento pelo globo, com objetivos que visavam a democratização
das instituições políticas e de escolha entre as duas partes beligerantes através de um
processo eleitoral. Os atores angolanos (MPLA no governo e os rebeldes da Unita) eram
belicosos e ditatoriais, assim como acontecia com as partes em lugares como o Camboja
ou Moçambique. A grande diferença no caso de Angola é a interligação entre as
questões nacionais e internacionais em jogo:
10 Retirado em: http://www.un.org/Depts/DPKO/Missions/unavem1/UnavemIB.htm. Acesso em:
12/11/2009, as 20:40. 11 http://www.un.org/Depts/DPKO/Missions/unavem1/UnavemIB.htm 12 Os principais pontos do Acordo de Bicesse poder ser visualizado em: http://www.c-r.org/our-
work/accord/angola/bicesse-accords.php 13 http://www.un.org/Depts/DPKO/Missions/Unavem2/UnavemIIB.htm
206
“Nas conversações eram sentidos os maiores poderes dos Estados Unidos
devido ao seu peso na conjuntura internacional. As negociações obrigavam
logo à partida o MPLA a abandonar o marxismo-lenismo e adotar um sistema
multipartidário e, mais tarde, em maio de 1991, e apesar de continuar sendo o
“governo a assinar um acordo de paz com uma UNITA que era reconhecida
como um “partido” em pé de igualdade com o MPLA. Os atores não armados
em Angola não tiveram qualquer desempenho nas negociações, nem na
implementação dos Acordos. Naquele momento, os princípios de gestão de
conflitos, em geral, não os reconheciam, já que se resumiam essencialmente à utilização dos meios eleitorais para ajustar as contas deixadas pela Guerra
Fria”. (Pain, 2007, p. 73-74).
Em 15 de maio entrou em vigor a suspensão das hostilidades. Logo após
formou-se a UNAVEM II14
, missão que tinha como finalidade o cumprimento dos
objetivos acordados e acompanhamento da primeira eleição presidencial em Angola,
que:
“resultou na vontade de encontrar uma solução para a guerra, mas também e
principalmente da perspectiva de que tal abertura podia mobilizar recursos e
novas fontes de rendimento, tendo de fato, aberto caminho à entrada de
fundos de ajuda internacional”. (SIMÕES, P.161, 2009).
A missão também tinha como metas a desminagem, o fornecimento da ajuda
humanitária e a expansão do poderio do governo pelo território angolano (PUREZA et
alli, 2007).
Em setembro de 1992 foram realizadas as eleições. Na votação presidencial, o
presidente do MPLA, José Eduardo dos Santos, teve 49,57% dos votos contra 40,07%
do líder da Unita, Jonas Savimbi (Pain, 2007). Um segundo turno era necessário, já que
não teve uma maioria absoluta, porém a Unita acusou o MPLA de fraudar as eleições,
dando reinício ao conflito, não havendo, portanto o segundo turno. Em 31 de outubro
estoura a guerra em Luanda, a Unita apodera-se de mais da metade do país, pegando,
principalmente as zonas de diamantes angolanas. Tal conflito marcou uma nova fase na
luta, tendo conseqüências drásticas para a população angolana: “as batalhas campais
foram substituídas por combates sangrentos com o intuito de capturar e controlar áreas
mais populosas. A guerra tornou-se uma guerra de cidades, e os civis tornaram-se os
primeiros alvos e as principais baixas” (Pain, 2007, p.76).
Enquanto possuía superioridade militar, a Unita se recusava a fazer acordos com
a comunidade internacional. O governo angolano decidiu pressioná-la utilizando como
pretexto sua legitimidade, já que havia vencido as eleições. Os EUA, fortes apoiadores
14 Para saber como se deu o processo de aplicação da UNANEM II: <http://www.un.org/Depts/DPKO/Missions/Unavem2/UnavemIIB.htm>
207
da Unita, mudavam de posição, devido a pressão internacional e a preocupação e
saturação pelo agravamento da guerra civil angolana, principalmente pela má-fé por
parte da Unita ao rejeitar as propostas do processo de paz feitas pela Troika. Em 19 de
maio de 1993, o presidente americano Bill Clinton comunica ao mundo o
reconhecimento por parte dos EUA do governo de angola15
.
O reconhecimento por parte dos EUA causou grande satisfação para o governo
angolano, dando nova vida aos seus esforços de estabelecer uma democracia no país.
Contrariamente foi a reação da Unita, considerando tal fato negativo, continuando
portanto suas ações belicistas e desestabilizadoras. O Conselho de Segurança, em
função disto, adota a resolução 843 no dia 1 de junho de 1993, condenando a Unita por
seus ataques armados, resultando no aumento das hostilidades e colocando em perigo o
processo de paz16
.
Para o governo angolano, a ONU tinha falhado pela segunda vez no
desarmamento da Unita (PAIN, 2007) na missão UNAVEM II. Assim, decidiu pegar as
finanças estatais do setor petrolífero para investir em armamento pesado para lutar
contra a Unita, enquanto o partido “Galo Negro”17
buscou por controlar parte dos
negócios de diamantes para rearmar e manter o poderio militar. Assim, “em muitos
aspectos, a luta pelo poder político, ou mantê-lo, tornou-se, sem distinção com a luta
para controlar os benefícios financeiros vindos do petróleo e do diamante” (Comerford,
2005 apud Pain, 2007, p.79).
15 “(…) tenho o prazer de anunciar hoje o reconhecimento pelos Estados Unidos da América do Governo
de Angola. Esta decisão reflete a grande prioridade que a nossa Administração dá à democracia. Em
1992, depois de anos de uma amarga guerra civil, o povo de Angola viveu eleições multipartidárias que
os Estados Unidos, as Nações Unidas e outros fiscalizaram, e consideraram livres e justas. Depois de
assumir as minhas funções, a 20 de Janeiro, tentei usar a possibilidade de o reconhecimento, por parte dos
Estados Unidos da América, ser uma alavanca para a promoção do fim da guerra civil e das hostilidades e
também da participação de todos os grupos relevantes no Governo de Angola. Infelizmente, a UNITA, o
partido que perdeu as eleições, recomeçou a guerra antes que o processo eleitoral fosse completado, e agora recusou-se a assinar o acordo de paz que está neste momento na mesa das negociações. O Governo
de Angola, ao contrário, concordou em assinar este acordo de paz, deu posse à Assembléia Nacional
democraticamente eleita e ofereceu a UNITA a sua participação no Governo a todos os níveis. Hoje, ao
reconhecermos estes fatos, estamos a reconhecer o Governo de Angola. Tenho esperança que a UNITA
venha a aceitar um acordo negociado e passe a fazer parte do Governo. Pretendo continuar a trabalhar
estreitamente com o Governo de Angola e com a UNITA para que se alcance em Angola uma paz
duradoura e em democracia”. Em JOVETA, “Política Externa de Angola de 1992 até os Dias Atuais”.
Disponível em: <http://sec.adtevento.com.br/anpocs/inscricao/resumos/0001/TC0069-2.pdf>. Acessado
em: 30/11/2009, as 20:23h. 16 Em JOVETA, “Política Externa de Angola de 1992 até os Dias Atuais”. Disponível em:
<http://sec.adtevento.com.br/anpocs/inscricao/resumos/0001/TC0069-2.pdf>. Acesso em: 30/11/2009. 17 Facção de dissidentes do Unita. Possui este nome devido ao símbolo da bandeira do partido.
208
Em 20 de novembro de 1994 foram concluídas as negociações do Protocolo de
Lusaka, que tinha como objetivo o término das hostilidades entre as tropas do governo e
da Unita, marcando uma nova etapa no processo de paz em Angola. Tal protocolo
consistia em documentos relacionados a um tema da agenda de palestra de paz, sendo
estas: jurisdições, assuntos militares, políticos, assim como o papel da ONU18
.
Havia, no entanto, vários registros de violações militares e de direitos humanos
de ambas as partes, e as sanções impostas pela ONU à Unita de nada adiantavam, já que
esta se abastecia de armas através do comércio ilegal de diamantes, enquanto o governo
se armava com a venda adiantada do petróleo (PAIN, 2007).
A partir do Protocolo de Lusaka dá-se o início da UNAVEM III, através de uma
recomendação ao Conselho de Segurança feita pelo secretário-geral no dia 8 de
fevereiro de 1995. Tal recomendação consistiu na criação da UNAVEM III, assumindo
o lugar da UNAVEM II, sendo esta nova missão com o objetivo de restauração da paz e
reconciliação nacional. No dia 8 de fevereiro o Conselho de Segurança autoriza a
missão19
.
De acordo com Pain (2007), o acordo de Lusaka trouxe três anos e meio de paz
em Angola, período no qual os civis chamaram de “nem paz, nem guerra” devido as
várias violações de cessar-fogo de ambas as partes. Em 1998 há novamente o reinício
dos conflitos: a Unita conseguiu recuperar vários territórios que tinham sido entregues
durante o processo de paz ao governo. As conseqüências foram: a quebra dos diálogos e
negociações por parte do governo com o líder da Unita, Jonas Savimbi, que acabou por
gerar sanções pesadas por parte da comunidade internacional ao movimento,
ilegalizando qualquer comércio até haver a retomada do diálogo com a Unita.
Em 30 de junho de 1997, o Conselho de Segurança decide criar a MONUA
(Missão de Observação das Nações Unidas em Angola), a fim de substituir a UNAVEM
III como novas fórmulas de missão. Porém, com a força militar extremamente reduzida
da MONUA, a missão não era capaz de enfrentar a crítica situação militar e humanitária
de Angola, logo não tendo de evitar o conflito aberto, como afirma Pureza et alli (2007).
Tanto o governo quando a Unita pressionavam a retirada da ONU de Angola: um
18 Retirado em: <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unavem_p.htm> acessado em
17/11/2009, as 20:30h. 19 Idem.
209
exemplo disto foi desaparecimento de seis aeronaves da ONU sobre o território
controlado pela Unita20
em dezembro de 1998 e janeiro de 1999.
Com as violações do acordo de cessar-fogo cometidas por ambas as partes, em
fevereiro de 1999 termina a missão, com o argumento de que não há paz para ser
mantida: a missão “deu por encerradas suas atividades depois de ser forçada a retirar
quando as últimas esperanças de paz de desvaneceram” (Pain, 2007, p.80).
No mesmo ano, após o encerramento da MONUA, foi criada uma pequena
representação da ONU em Angola, a UNOA (United Nations Office in Angola -
Escritório das Nações Unidas em Angola), através da resolução 1268 do Conselho de
Segurança. Possuía trinta funcionários e tinha como meta explorar medidas eficazes
para restabelecer a paz, ajudar o povo angolano na área de capacitação, assistência
humanitária, na promoção dos direitos humanos, assim como coordenar outras
atividades21
.
Seqüencialmente, em agosto de 2002, após a assinatura do Memorando de Luena
em fevereiro do mesmo ano, a resolução 1433 do Conselho de Segurança estabeleceu a
MNUA (Missão das Nações Unidas em Angola), substituindo a UNOA. Esta missão
tinha como responsabilidade presidir à Comissão Conjunta reinstalada, colocando trinta
militares observadores para monitorar áreas de aquartelamento e coordenar as ações
humanitárias das agências da ONU (PUREZA et alli, 2007). Os fracassos por parte da
ONU nas missões anteriores impediram seu desenvolvimento em estabelecer um papel
importante em Angola, restringindo-se ao papel de observador.
Em qualquer Operação de Manutenção da Paz feita pela ONU tem como
objetivo a produção de uma paz estável num território conturbado (PROENÇA
JÚNIOR, 2003). As missões da ONU em Angola não obtiveram êxitos: desde seu início
podem ser consideradas um fracasso. Segundo Pureza et alli (2007), foram a soma de
diversos fatores que causaram este insucesso: no nível interno, sempre se deu
preferência para as opções de soluções através de meios militares e não por políticas
devido a constante desconfiança entre o MPLA e a Unita. Nos Acordos de Bicesse e
Lusaka foram ignorados a divisão da riqueza nacional, principalmente o petróleo e
diamante. No nível internacional, as grandes potências influenciaram fortemente as
20 Retirado em: <http://www.un.org/Depts/DPKO/Missions/Monua/monuab.htm> Em: 17/11/2009, as
22:03h. 21 Idem.
210
ações da ONU de acordo com seus interesses econômicos, “nomeadamente no
abandono gradual das tentativas de negociação, que deram lugar à opção militar como
única solução” (Messiant, 2004 apud Pureza et alli, 2007, p.15).
Simões (2009) aponta a influência dos EUA na UNAVEM II, e sua vontade de
colocar no poder um governo “amistoso” – a Unita. Devido a esta vontade, concedeu
um mandato limitado na missão UNAVEM II, já que é membro permanente do
Conselho de Segurança, colocando “meios patéticos a seu dispor, e em um calendário
eleitoral totalmente irreal para a conclusão de todas as tarefas necessárias” (Messiant,
2004 apud Simões, 2009, p.163).
Angola passava por uma guerra civil a mais de 15 anos e as partes beligerantes
não estavam disponíveis em fazer concessões. Mesmo com este fator, os meios
humanos e financeiros disponibilizados pela ONU nas missões em Angola eram
inferiores se comparados aos mandatos de missões em outros países no mesmo período,
como no caso da Namíbia e do Camboja. Isto é pelo fato da ONU ter utilizado Angola
como espécie de laboratório: “adotando uma postura minimalista em relação ao país e
querendo apresentar um exemplo de administração pós-conflito de baixo custo, à
semelhança do que tinha acontecido na Namíbia” (Simões, 2009, p.163).
Outro fator é a questão da ONU nunca ter incluído a sociedade angolana tanto na
negociação quanto na implementação dos acordos de paz por ela desenvolvidos,
também não lidando com as causas estruturais da violência e do conflito armado
(Simões, 2009, p.164).
Na década de 1990, Angola recebeu, de acordo com Simões (2009), mais de
US$ 3,6 trilhões da comunidade internacional de doadores em ajuda oficial ao
desenvolvimento. Não há como negar a grande ajuda que salvou milhões de vidas de
civis angolanos durante o conflito, mas esta ajuda também trouxe conseqüências
negativas ao país, a partir do momento em que criou uma situação de dependência,
destruindo mecanismos de sobrevivência em nível comunitário, e por fim substituindo o
papel do Estado, ao invés de complementá-lo.
Em 3 de abril de 2002 o Parlamento angolano aprova a lei de anistia a todos os
crimes contra a segurança do Estado cometidos durante o conflito armado. A Anistia
Internacional condenou tal lei com base nos direitos humanos, com o argumento que as
duas partes cometeram crimes horríveis pelos quais seus atores deveriam ser julgados
(Hernandez, 2005).
211
Conclusão
A segunda guerra civil angolana pós-independência foi entremeada por acordos
de paz sem sucesso. Apesar da construção das idéias da proteção dos direitos humanos e
do Direito Internacional Humanitário, a prática é falha em vários aspectos.
A construção valorativa da Proteção dos Direitos Humanos como do DIH
possuem suas bases no indivíduo e seu bem-estar. Teve sua origem na Europa, local de
referência para os valores ocidentais.
Apesar deste fator, todos os países colonizadores europeus, especialmente na
África, adotaram um esquema político cruel, podendo ser comparado com barbárie em
relação ao tratamento dos indivíduos nativos que habitavam os países no ultramar.
Tanto durante a exploração na África quanto em suas colonizações – que eram também
formas de exploração, os europeus agiram pensando somente na lucratividade e
rendimento que as terras africanas trariam em suas economias, independente da forma
de como este lucro era obtido.
A idéia da possível liberdade que os movimentos revolucionários tiveram após a
Segunda Guerra Mundial, foi auxiliada pelos financiamentos das superpotências da
Guerra Fria, estes que continuaram após a saída dos portugueses de Angola, acabando
por “colonizar” de outra forma os cidadãos do país, trazendo guerras civis intermináveis
após a independência.
Durante os processos de Acordo de Paz, esses três países acima citados
(Portugal, EUA e URSS) estiveram presentes, como já dito, na condição de
observadores, o que gerou certa ironia, se pensar em todas as influências que estes
tiveram para o desencadeamento da longa guerra civil angolana. Os objetivos da Troika
nestes Acordos não era apenas promover a paz, e sim interesses econômicos, devido às
vastas riquezas naturais de Angola, particularmente o petróleo e os diamantes. Não há
como implantar um sistema de Proteção dos Direitos Humanos quando o aspecto do
ganho econômico em cima de uma guerra está acima da proteção e dos direitos
humanos dos indivíduos.
A contradição existente é a de que Angola sofreu com o interesse externo, porém
precisa dele para tentar se organizar, a partir das missões das Nações Unidas
acompanhadas pelos países envolvidos, por possuir um sistema institucional fraco para
212
governar e manter a ordem no próprio país. Esta falta de estrutura vem desde a
revolução, com a saída dos portugueses que mantinham as instituições públicas em seus
cargos, deixando para uma sociedade que não tinha acesso a estudo e recursos, que
acaba por não conseguir estruturar governança no país.
A segurança humana não tem como ser garantida pelo Estado Angolano por ser
fraco: ele próprio se configura uma ameaça para a população por sua falta de
comprometimento com os Acordos de Paz criados pela ONU durante suas guerras civis,
por não proteger seus indivíduos ao promover guerras utilizando os lucros do petróleo
para financiá-las, enquanto a população empobrecia cada vez mais. O governo apenas
agiu através de seus interesses, não cumprindo sua tarefa como governo perante a
população angolana e seu desenvolvimento.
Angola foi um país extremamente explorado em todas suas fases, desde a
chegada do português branco no século XV até no pós Guerra Fria com os EUA e a ex-
URSS, o que acarretou enormes conseqüências na construção da identidade da
população.
Uma ordem expressa da ONU, bem como a vontade real dos atores internos de
Angola em assumir um compromisso na implementação dos Acordos de Paz que
assinaram seria um caminho para o sucesso das medidas. Há que se refletir sobre como
a ONU observa os Acordos e de que maneira monitoram e denunciam os abusos de
direitos humanos, já que deve responsabilizar os infratores dos Acordos. A ONU possui
a obrigatoriedade de assumir uma abordagem de construção de paz abrangente e de
longo prazo (Pureza et alli, 2007). Para alcançar a paz duradoura e sustentável, a
população deve ser envolvida no processo, as mediações e acordo de paz devem
abranger as comunidades locais a partir de suas perspectivas de como encaram o
conflito, obtendo novas propostas para a paz em Angola.
Em uma perspectiva construtivista, a sociedade é formada por interações entre
agentes, ou seja, das relações sociais. A partir do momento que há uma identidade
coletiva consolidada, há a construção dos interesses alternativos, levando então a
formulação de preferências alternativas (Messari, 2003). A ONU, ao não considerar a
sociedade angolana em seus acordos, em não dar atenção em suas considerações, falhou
em formar uma identidade coletiva nesta sociedade, que poderia ser capaz de agir
através de uma nova identidade com interesses novos, ou seja: a paz em Angola.
213
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