ROBERT ENKE Uma vida curta demais
Ronald Reng
Robert Enke - Ein allzu kurzes Leben
Traduzido do alemão por
João Henriques
17ROBERT ENKE – UMA VIDA CURTA DEMAIS :: RONALD RENG
UM
Apesar de tudo, uma criança com sorte
Certa tarde de domingo, Robert Enke dirigiu -se para a estação de
comboios de Jena e pôs -se à espera. O comboio inter -regional vindo
de Nuremberga entrou na estação, os passageiros saíram, e ele não dei-
xou transparecer qualquer tipo de desilusão ao ver toda a gente passar
por ele. Continuou à espera, e mais uma vez deixou, com encenada indi-
ferença, que os passageiros recém -chegados passassem por ele. Estáva-
mos no inverno, em dezembro de 1995. Não era propriamente a época
do ano ideal para passar metade de um domingo num estação desabri-
gada a ver os comboios chegar e partir. Decidiu ir ao cinema até à che-
gada do comboio seguinte. Vivia ainda com a sua mãe num edifício
pré -fabricado da Rua Liselotte Herrmann. Quatro meses antes tinha
completado dezoito anos, uma idade que desculpa quase todas as tei-
mosias e em que se pensa sempre que são só os outros que se compor-
tam de forma estranha.
Teresa regressava a Jena aos domingos, vinda de Bad Windsheim,
para a semana de aulas na academia desportiva. Apesar de ser já o seu
segundo ano em Jena, continuava a ir todos os fins -de -semana visitar
os pais à Francónia. Estava a pôr um pé fora da gélida estação quando
deu por Robert, sentado no banco. Sentava -se ao lado dele na escola.
Ano e meio antes, quando ela, uma bávara desconhecida, ingressara
no décimo segundo ano da academia desportiva, só havia duas cadei-
ras disponíveis na turma: sozinha na última fila ou ao lado de Robert.
Segundo ela, eles até se tinham dado bem no início. No lugar dele, só
mudaria o penteado. Desde que, para além da escola, começara a trei-
nar com a equipa profissional do Carl Zeiss Jena, usava o cabelo à moda
da equipa: curto nos lados e comprido em cima, “como se tivesse um
ninho de pássaro em cima da cabeça”.
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Robert e Teresa com a família dele após um jogo da academia desportiva de Jena contra uma seleção da Turíngia.
“Olá! O que estás aqui a fazer?”, perguntou -lhe ela na gare. Já pas-
sava das dez da noite.
“Estou à espera de uma pessoa.”
“Ah, está bem. Então boa noite.”
Teresa lançou -lhe um breve sorriso e seguiu caminho.
“Espera”, chamou ele. “É claro que é de ti que eu estou à espera.”
E tinha esperado mais de cinco horas, conforme pouco depois lhe
contou enquanto tomavam um copo no French Pub.
Ele não tinha dito a ninguém que iria simplesmente esperar por
Teresa na estação. Guardava os seus sentimentos para si e tomava as
decisões importantes sozinho. Enquanto ele e Teresa se iam aproxi-
mando, passaram semanas sem que ele contasse aos amigos o que quer
que fosse. Estes, porém, não ficaram surpreendidos com o namoro
nem com o facto de Robert ter conseguido ficar com Teresa. Torsten
Zieger, um amigo de juventude, refere que “ainda hoje dizemos mui-
tas vezes que o Robert era um miúdo cheio de luz, capaz de qualquer
coisa, sempre bem -disposto e que nada era capaz de o desnortear”. Tors-
ten mexe no copo de água que tem diante de si para não deixar que o
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breve silêncio alastre demasiado. E todos os que estão na sala de Andy
Meyer, um outro amigo desses tempos, ficam por momentos a pensar
a mesma coisa: que estranho que é pensar hoje em Robert Enke como
um jovem alegre.
A luz do dia, refletida e intensificada pela neve, atravessa a mora-
dia em Jena -Zwätzen, um bairro novo fora da cidade. É uma da tarde e
Andy acabou de se levantar. Os olhos dele apresentam ainda um resquí-
cio de cansaço. É enfermeiro e fez o turno da noite. Torsten usa calças
de ganga largas, num estilo casual. O casaco aos quadrados pequenos
e com a gola subida seria com certeza do agrado de estrelas do rock
como os Oasis. Tem 32 anos de idade, é futebolista profissional e está
de regresso ao FC Carl Zeiss Jena, atuando na terceira divisão. É um
atleta seco e esguio. Olhamos para Andy e Torsten, este último de 30
anos, e é possível sentir rapidamente o calor e o humor dos jovens de
antigamente. “Reparámos logo que tínhamos os mesmos interesses, e
acima de tudo os mesmos desinteresses”, afirma Torsten. “Ríamos mais
do que todos os outros”, acrescenta Andy.
Nesses tempos andavam sempre os quatro juntos: Mario Kanopa,
que é professor e foi colocado perto da fronteira com a Holanda, Tors-
ten Ziegner, Andy Meyer e Robert Enke, a quem os amigos chamavam
Enkus, a quem os amigos continuam a chamar Enkus, pois para eles
ele é ainda o mesmo de antigamente. “Ainda assim”, continua por fim
Andy, enfrentando corajosamente o silêncio, “sou ainda hoje da opinião
de que, apesar de tudo, o Enkus era um miúdo com sorte.”
Robert cresceu entre dois paus da roupa. Os rapazes encontravam-
-se à tarde no pátio interior e o jogo do prédio chamava -se “por cima do
pau”. Um deles ficava à baliza, entre dois paus da roupa, levantava a bola
por cima do pau que estava à frente, e do outro lado estavam os compa-
nheiros à espera da bola para a rematar na direção da baliza.
Lobeda, a sua terra natal e a cidade dos trabants, é ainda hoje a pri-
meira coisa que se vê quando se chega a Jena. Estava previsto que aco-
lhesse 40.000 pessoas, mais de um terço dos habitantes de Jena. Ficaram
17.000. Entre os edifícios pré -fabricados de quinze andares nas aveni-
das comunistas, erguem -se nas ruas secundárias blocos mais pequenos,
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não muito diferentes dos que encontramos em Frankfurt -Schwanheim
ou Dortmund -Nordstadt. Enquanto os dois estados alemães recorda-
vam permanentemente as suas diferenças, na década de 1980 a vida dos
jovens entre estes blocos habitacionais não era muito diferente no leste
e no ocidente. Os paus da roupa governavam o mundo de Jena -Lobeda
a Frankfurt -Schwanheim.
Segundo Andy Meyer, eles só tinham tido pela primeira vez noção
dos problemas dos adultos após o colapso da RDA. Ou talvez tivessem
sabido dos problemas quando eram crianças, tendo -os então achado
entediantes e por isso ignorado: o facto de o pai de Andy não poder
ser professor por não ser membro do partido, e o episódio de o pai de
Robert, atleta de 400 metros com barreiras, ter abandonado no início
da década de 1960 a alta competição porque recebia postais do irmão
que fugira para o ocidente.
Só interrompiam os jogos de futebol no pátio interior por motivos
de força maior, ou seja, quando tinham de ir para os treinos de futebol.
Andy Meyer, que vivia alguns prédios mais adiante, cedo tinha sido des-
coberto pelo grande clube da cidade, o FC Carl Zeiss. Ele tinha sete anos
e estava habituado a ganhar sempre com o Carl Zeiss. Daí que Andy
se recorde de uma derrota em particular. No acidentado campo Am
Jenzig, no sopé do monte de Jena, o FC Carl Zeiss perdera 1 -3 contra
o SV Jenapharm. Os grandes clubes têm a tendência de não suportar
semelhantes derrotas, mesmo nos escalões inferiores. Imediatamente
após o jogo, Helmut Müller, o treinador do Carl Zeiss, foi ter com os
pais do avançado do Jenapharm que marcara os três golos e disse -lhes
que o filho deveria mudar -se imediatamente para o Carl Zeiss. O rapaz
era Robert Enke.
Em todas as biografias desportivas há aquele momento em que uns
dizem “foi por acaso”, e outros dizem “foi o destino”. Com doze anos
de idade, roubaram a Muhammad Ali a sua bicicleta Swinn, e o polícia
que tomou nota da queixa aconselhou -o a tornar -se pugilista em vez de
andar para ali a choramingar. Na equipa de infantis do FC Carl Zeiss
Jena, na qual entretanto Robert Enke mostrava ser um atacante não mais
que razoável, o pai de Thomas, o guarda -redes da equipa, foi colocado
em Moscovo. A equipa precisou de um novo guarda -redes. “O treinador
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não fazia ideia de quem escolher”, lembra Andy Meyer. “Todos tive-
ram de experimentar à vez a posição. No meu caso o assunto foi rapi-
damente resolvido. O nosso miúdo defendeu duas bolas e tornou -se a
partir desse momento o guarda -redes.”
Robert Enke (à esquerda) no Carnaval.
Fazia tudo bem, sem que se apercebesse disso: saltava com força,
agarrava a bola com os polegares afastados no momento de a captar, e
tomava bem a decisão de sair a certos cruzamentos e de se deixar ficar
entre os postes noutros.
Descobriu um sentimento novo e fascinante. Quando voava e sen-
tia nas mãos a pressão da bola rematada com força, conhecia então o
sabor da felicidade.
Ainda que, para dizer a verdade, “ele passasse a maior parte do
tempo sem fazer nada”, recorda o seu pai. “Nas equipas jovens, o Carl
Zeiss era tão superior que o guarda -redes aborrecia -se. Mas isso era
bom para ele.” Esta recordação arranca um pequeno sorriso ao pai de
Robert Enke, proporcionando alguns instantes sem dor. “Assim não
precisava de correr tanto.”
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Dirk Enke tem o mesmo sorriso que o filho. É um sorriso estranha-
mente lento, que se espalha pelo rosto, como se pretendesse retrair -se de
forma elegante. Diz -nos que teve medo do momento de falar para a bio-
grafia de Robert, medo de que as lembranças se tornassem demasiado
intensas. É por isso que, na sua moradia da Markplatz, com vista sobre
os telhados de Jena, deixa primeiro que sejam os diapositivos a falar. Diz
que alguém recentemente lhe ofereceu um projetor para ele poder rever
os antigos diapositivos da infância de Robert, do tempo da RDA. As
três crianças a acampar durante as férias no mar Báltico, Anja, Gunnar
e Robert, sendo este último o benjamim da família, nascido nove anos
depois da irmã e sete anos depois do irmão. “Na verdade, só a partir do
quarto filho é que na RDA uma família recebia autorização para colocar
uma tenda”, conta -nos o pai, embora houvesse coisas que num estado de
vigilância pública não eram assim tão vigiadas. “Nós simplesmente sem-
pre dissemos que tínhamos quatro filhos, e ninguém ia lá conferir.” O pro-
jetor avança e mostra agora Robert com a sua terceira avó. A Sra. Käthe
era para ele a sua “avó a sério”. Era uma reformada que vivia perto deles,
que muitas vezes ficava a tomar conta dele, e cuja proximidade ele ainda
procurava quando já era adolescente. Quando era criança, dizia sempre:
“tenho uma avó gorda, uma avó magra e uma avó a sério.”
Os diapositivos acabam por chegar ao fim. Também a dada altura
as imagens bonitas foram interrompidas na vida do miúdo sortudo.
Robert tinha onze anos e regressava da escola à sua casa na Rua
Liselotte Herrmann. O pai estava diante da porta de mala na mão.
“Onde é que vais, Paizinho?”
Dirk Enke não conseguiu responder. Encaminhou -se para o carro
silenciosamente, com os olhos marejados de lágrimas.
A mãe engoliu em seco. “Zangámo -nos um bocadinho. O teu pai
vai mudar -se para a cabana em Cospeda.”
O pai tinha uma nova mulher na sua vida.
Durante semanas a fio, Robert perguntava todos os dias à mãe:
“Então como é que estás, Mãezinha?” Gisela Enke conseguia ver na cara
do rapaz o medo que ele tinha de ouvir uma resposta triste.
Mas os pais não queriam acreditar que o casamento deles estava
a caminhar para o fim. Continuaram a ver -se e, segundo a mãe, “não
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o fizemos apenas por causa das crianças. Estive com o Dirk durante
trinta anos, pois tínhamo -nos conhecido na adolescência”. No verão
foram juntos de férias para o Lago Balaton. Do banco de trás, Robert
disse em voz alta, ainda que casualmente, como se não estivesse a falar
para ninguém em particular: “Se isto der em reconciliação, havemos de
ir sempre para o Balaton nas férias.” Era mais uma expressão de espe-
rança do que propriamente de felicidade.
Surpreendentemente, a família voltou a ficar unida à conta de um
grande acontecimento. “A mudança de regime juntou -nos mais uma
vez”, diz a mãe de Robert. O ruído das manifestações de segunda -feira
e a excitação das grandes mudanças que se avizinhavam resultaram na
reunificação familiar antes de ter lugar a reunificação dos dois países.
Dirk Enke voltou para casa e, para assinalar as bodas de prata, fizeram
um passeio de bicicleta junto ao Reno, na zona de Koblenz.
A família Enke fazia parte daqueles que saudaram a reunificação
sem ceticismo. O pai sabia que grande parte da sua família estava do
lado ocidental da fronteira. “O meu sentimento foi: finalmente!” Por
altura da queda do muro, os rapazes que jogavam à bola nos paus da
roupa tinham doze, treze anos. Foram a última geração a viver de forma
consciente a existência dos dois estados alemães e a primeira a crescer
no país reunificado. Andy Meyer ainda se consegue lembrar de como
Robert e ele tiveram de marchar pela Avenida Löbdergraben, com a
equipa juvenil do Carl Zeiss, numa parada em honra do Erich Hone-
cker, o chefe de estado da RDA. “E o que nós adorámos é que depois
nos deram vales de ração para salsichas.” Foi da mesma forma casual que
se deram conta dos novos tempos. Simplesmente continuaram a brin-
car ao mesmo tempo que as mudanças ocorriam. Não fizeram intervalo
para a reunificação. “Para nós crianças não houve nenhuma mudança
radical”, diz Andy. Depois ri -se, ao recordar esses tempos. “Os treinos
de futebol continuaram.”
Em Lobeda, porém, o antigo sonho socialista de uma maior quali-
dade de vida via -se confrontado com um novo tipo de proletariado. As
crianças tiveram de se habituar a isso. Turcos provenientes da Alema-
nha Ocidental vieram vender tapetes porta a porta, acreditando poder
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enganar os alemães de leste no que à economia dos marcos dizia res-
peito. Jovens da cidade dos trabants começaram a agrupar -se em ban-
dos e a autodenominar -se de extrema -direita.
“Não deixes ninguém entrar em casa”, alertava a mãe ao seu filho,
que frequentemente ficava sozinho em casa depois da escola, já que tanto
o pai como a mãe trabalhavam, ela como professora de russo e de des-
porto e ele como psicoterapeuta na clínica da cidade.
Quando tocaram à campainha, Robert abriu a porta cuidadosa-
mente. Era o tio -avô Rudi, professor universitário de latim, que che-
gava de visita.
“Boa tarde. Os pais estão em casa?”
O jovem olhou para ele com uma expressão desconfiada.
“Estás a ver quem eu sou, não estás? Sou o tio Rudi.”
“Isso qualquer um pode dizer”, respondeu Robert, empurrando
para fora o perplexo professor e fechando depois a porta com força.
Numa outra ocasião, os rufias de extrema -direita fizeram -lhe uma
espera no caminho de regresso da escola. Começaram a agarrá -lo e a
empurrá -lo. Antes de lhe baterem, houve um deles que o reconheceu:
“Parem com isso; é o Robert Enke.” Tinha doze anos e ao que parece
era já conhecido por ser o guarda -redes. Deixaram -no ir.
Mas o medo ficou. Desejou ter algo que o protegesse. Foi ter com
a mãe para que esta lhe comprasse um blusão de cabedal. Desse modo,
os rapazes de extrema -direita iriam confundi -lo com um deles e deixá -lo
em paz. “Primeiro fiquei desiludida por ele querer ceder -lhes”, confessa
a mãe. “Mas depois pensei, está bem, se isso fizer com que ele deixe de
ter medo. Mas ele também só usou o blusão duas semanas.”
Quando as primeiras desilusões começaram a sentir -se na nova Ale-
manha, a reunificação perdeu também, em 1994, o poder de preservar
o casamento dos Enke.
A família estava sentada na sala num certo domingo quando o pai
tomou a iniciativa e anunciou:
“Tenho de vos dizer uma coisa.”
A mãe já sabia. A outra mulher nunca desaparecera da vida do
marido.
“Eu e a vossa mãe vamo -nos separar. Vou sair de casa.”
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Robert saltou do sofá e saiu porta fora.
“Corre, Gunnar. Vai buscar o teu irmão!”, pediu a mãe. Gunnar
encontrou -o na rua. Robert recusava -se a falar.
Ele não queria que as pessoas se dessem conta do que quer que
fosse. Tinha -se habituado a guardar a tristeza para si.
Para os três amigos, Robert parecia incansável como o sol de todos
os dias. “O Enkus atirava um copo de água e todos ficavam molhados
menos ele. Era sempre assim”, diz Andy. Num teste de biologia, a pro-
fessora apanhou Robert a copiar. Teve negativa. Mas quando a pauta
foi lançada, ele tinha um “suficiente” a biologia. Ele era reconhecida-
mente prestável, ponderado e um guarda -redes talentoso. Esta combi-
nação comoveu claramente a professora.
Robert sabia que conseguia fazer a escola sem grande esforço e não
almejava mais que isso.
Os amigos encontravam -se agora frequentemente no quarto de inter-
nato de Mario Kanopa e Torsten Ziegner. Os dois tinham vindo com
catorze anos do campo para a academia desportiva, e os nomes dos seus
clubes de aldeia soavam ainda a um mundo rural longe de Jena: Mario
vinha do BSG Traktor Frauenpriessnitz e Torsten do BSG Mikroe-
lektronik Neuhaus/Rennweg. Zangavam -se muitas vezes um com o
outro no pequeno quarto de internato. Quando alguma coisa o inco-
modava, Torsten perdia logo as estribeiras. E era Mario quem desenca-
deava este carácter impulsivo. Robert dava -se muito bem com ambos.
Sempre que estava presente, todos se davam bem.
No átrio de entrada da academia desportiva começaram a apare-
cer cada vez mais artigos de jornal sobre eles. Em 1993, Robert Enke,
Torsten Ziegner e Mario Kanopa viajaram com uma seleção da Turín-
gia para disputar o tradicional torneio juvenil de Duisburgo. A assistir
estavam espiões dos clubes profissionais. É no torneio anual da escola de
desporto de Wedau que, pela primeira vez, jovens de 15 anos despertam
a atenção da cena futebolística como potenciais futuros profissionais.
A seleção da Turíngia começou por achar graça àquilo que se ia passando
em Duisburgo, e no fim “rimo -nos bastante de tudo aquilo”, recorda
Torsten Ziegner. Cada jogo assemelhava -se ao anterior, numa absurda
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repetição dos acontecimentos. Pareciam ser sempre a equipa inferior,
mas nunca perderam. “Era como se o Robert estivesse a jogar sozinho”,
recorda Torsten. Ia ficando cada vez maior. Defesa após defesa, pare-
cia cada vez mais enorme aos olhos dos avançados que o encontravam
pela frente. Robert atingiu o mais alto estado de espírito de um guarda-
-redes, ou seja, sentir -se invadido por uma calma absoluta no meio de
toda a tensão de um jogo. Os avançados rematam com toda a força, e o
guarda -redes acredita que a bola é sua e só sua. Sente -se invadido por
uma segurança omnipotente que o torna cada vez maior entre os pos-
tes. Os resultados do conjunto turíngio em Duisburgo foram 0 -0, 0 -0,
1 -0 e 4 -0. Ninguém lhes marcou um só golo que fosse.
A equipa de juniores do CZ Jena numa viagem à Tunísia. Robert Enke é o segundo a contar da esquerda e o seu amigo Mario Kanopa o segundo a contar da direita.
Nesse mesmo ano, o Carl Zeiss Jena atingiu a final do campeonato
nacional de juvenis, um feito que nos 15 anos seguintes nenhum outro
clube com semelhantes modestas possibilidades lograria imitar. O pre-
sidente do clube ofereceu à equipa uma coca -cola num bar chamado
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“Remate Descalço”. Perderam a final por 5 -1 contra o Borussia de Dort-
mund, mas até o jornal Frankfurter Allgemeine enviou um jornalista
para fazer um artigo sobre o internato. A diretora do internato falou
para a reportagem sobre os jogadores: “não são especialmente discipli-
nados, comem tudo, aparecem sempre juntos como equipa e têm uma
enorme autoconfiança.”
Mais tarde, os quatro amigos iriam percorrer todo o espectro daquilo
que pode acontecer com um futebolista talentoso: Robert Enke tornar-
-se -ia guarda -redes da seleção nacional alemã; Torsten tornar -se -ia um
local hero, afirmando -se como capitão e médio criativo do Carl Zeiss
na segunda e terceira divisões; Mario haveria de colocar um ponto final
na sua carreira profissional com 22 anos de idade, na sequência de uma
lesão grave, prosseguindo depois os estudos, sendo o balanço da sua car-
reia um jogo na segunda divisão e um golo. Por fim, aos quinze anos
de idade, o Carl Zeiss haveria de dizer a Andy que, por mais que lhes
custasse, o que ele tinha para oferecer já não chegava, passando ele de
futuro apenas a jogar por prazer em equipas mais pequenas.
Antes de tudo isto tinham sonhado juntos.
Com quinze anos, Robert Enke, Torsten Ziegner e Mario Kanopa
tinham jogado pela seleção alemã de juvenis contra a Inglaterra, no len-
dário estádio de Wembley. O jogo terminara 0 -0 e o Daily Telegraph,
o jornal preferido de Margaret Thatcher, noticiara: “A vitória da Ingla-
terra foi evitada por uma combinação de defesas fantásticas e remates
miseráveis.” Era uma referência a Robert Enke.
Robert estava deitado no chão, depois de ter voado para defen-
der um potente remate de Stephen Clemence, e logo depois voou de
novo para parar a recarga de Jay Curtis. Foi demasiado rápido para o
público perceber de onde tinha vindo aquela luva a defender também
o segundo remate.
Tinha sido descoberto. Foi considerado o jovem futebolista alemão
do mês e mereceu uma reportagem de página inteira na revista Kicker. A revista Stern dedicou -lhe um perfil num suplemento sobre jovens,
retratando -o como protagonista da sua geração. “Não penso muitas vezes
sobre o mundo”, disse Robert Enke à Stern, num comentário tipicamente
adolescente, “mas às vezes tenho a sensação de que se está a afundar.”
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Dirk Enke estava sentado na tribuna do estádio de Wembley, jun-
tamente com outros pais de jogadores de seleção. Para o pai, o futebol
era a linha de contacto com o filho.
Desde que saíra de casa, procurava ir a todos os jogos. Obser-
vava os outros pais e via como muitos deles gritavam com os filhos
quando estes faziam erros. E quando os miúdos conseguiam fazer
alguma coisa, continuavam a gritar: chuta agora, passa a bola, mais
rápido, chuta! Dirk Enke ficava sentado na bancada sem dizer nada,
atento ao jogo. Para ele era assim que deveria agir. “O Dirk era um
óptimo pai”, diz Gisela. “Mas depois da separação a relação dele com
os filhos tornou -se difícil.”
Pai e filho falavam depois do jogo.
Boa defesa.
Obrigado.
Consegues sair muito bem à bola nos pontapés de canto.
Quase não conseguia. A bola vinha com tanta força que as pontas
dos dedos quase se dobraram.
E o Torsten outra vez. Esse rapaz é louco!
Já sabes como ele é.
Já para o fim eu pensei: tu és maluco, Torsten? Um adversário vai a
passar por ele e ele simplesmente derruba -o, atira -se de frente contra ele.
E fez isso três vezes! Em teoria teria de ter levado três cartões vermelhos.
Tenho de ir para o vestiário, Paizinho.
Sorriam um para o outro na esforçada tentativa, típica de mui-
tos pais e filhos, para garantir a proximidade por meio do desporto, de
superar a incapacidade de conversar que entre eles existia. “O Dirk e o
Robert só muito raramente conversavam a sério”, diz a mãe. “Eu tam-
bém não me sentia capaz de discutir na família, de dizer qualquer coisa
de negativo. E penso que o Robert também não conseguia. Houve sem-
pre na nossa família uma reserva polida.”
Ainda que por vezes lhe faltassem as palavras, o pai percebia bem
o que se passava na família. Enquanto durante dias a mãe acreditou de
boa -fé que o filho mais velho Gunnar se tinha esquecido da sua gui-
tarra em casa de um amigo, o pai reparou que o filho andava esquisito,
descobrindo depois que tinha vendido o instrumento.
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Do mesmo modo, o pai também reconheceu a expressão de tensão
no rosto de Robert quando ele teve de jogar pela primeira vez na equipa
de juniores, com os rapazes de 18 anos. Ele só tinha 16. O treinador
colocou -o no escalão superior para que ele pudesse ser posto realmente
à prova, já que era demasiado bom para os da sua idade. Também na
equipa júnior esteve irrepreensível, embora não lhe tenha ficado essa
impressão.
Para um miúdo de 16 anos, os rapazes de 18 são os crescidos.
A maior parte dos guarda -redes de 16 anos que tem de jogar com os
mais crescidos tem medo, uma vez que, em última instância, um guarda-
-redes é sempre avaliado pelos seus erros. E como é possível não cometer
qualquer erro quando os avançados adversários são tão fortes e grandes?
Que diriam os grandes e fortes da sua equipa se ele falhasse?
Sozinho com o pai depois do jogo, Robert chorava e dizia que
não queria jogar mais na equipa júnior. “Olha, Paizinho, tu não fica-
vas zangado comigo se eu desistisse do futebol, pois não?”, perguntou
o jovem Robert.
Os amigos não conhecem este Robert. “Nos escalões inferiores
havia sempre uns malucos que gritavam com os mais fracos, e de cer-
teza que o Enkus também foi alvo dessas coisas”, conta Torsten. “Mas
era impossível deitá -lo abaixo. Pelo contrário. Nós nesse tempo tínha-
mos a impressão de que nada o desestabilizava. Com 17 anos ele tinha
já uma postura soberana na baliza, algo que os outros só conseguem
após dez anos de carreira profissional.”
Relativamente a esse jogo com a equipa de juniores, a mãe tem uma
recordação bem diferente da do pai. “Ainda me lembro de que ele se
levantou da mesa depois do jantar e disse que tinha de sair para escla-
recer uma coisa.” Robert apanhou o elétrico para o estádio Ernst Abbe
e disse a Ronald Prause, o treinador dos juniores, que queria voltar a
jogar pelos juvenis. Ali estava um rapaz de 16 anos com confiança e
encanto suficientes para dizer ao autoritário treinador aquilo que quer.
Mas Dirk Enke é psicoterapeuta e tem uma opinião diferente.
A mãe conta -nos que chegou a maldizer os psicólogos, quando durante
uma visita dos cunhados, também eles psicólogos como Dirk, “os três
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começaram a querer explicar -me a minha personalidade. Mas o Dirk
sempre teve um nariz para a coisa.”
Na sua casa de Marktplatz, o pai pousa a faca e o garfo na mesa e
esfrega as palmas das mãos nas coxas. Depois diz: “Nessa altura pus-
-me a pensar: o que é que se passa? Será que tem problemas com os
colegas de equipa? Não. Rapidamente percebi que alguma coisa se pas-
sara dentro dele. Era o medo de falhar que o apoquentava, a ideia de
que: se não sou o melhor, então sou o pior. Deve ter sido nessa altura,
na equipa de juniores, que começou o tormento dele.”
Não fora porém apenas um momento isolado, um breve instante de
medo, algo que acontece centenas de vezes com os jovens guarda -redes?
“Sim, só que a alma recorda sempre estas experiências -limite.”
Com 17 anos de idade, ainda na escola e com uma autorização
especial da Federação Alemã de Futebol, Robert Enke assinou um
contrato com o Carl Zeiss Jena para jogar na segunda divisão. Os pais
acompanharam -no à sede do clube, onde eram esperados pelo diretor
Ernst Schmidt e pelo treinador Hans Meyer. O seu jeito especial de do-
minar imediatamente uma conversa com os seus cómicos pontos de
vista haveria mais tarde de transformar Meyer num entertainer do cam-
peonato alemão. Uma vez no escritório do clube, pôs -se logo a contar
coisas ao jovem de 17 anos acerca do mítico guarda -redes do Jena da
década de 1950. “Harald Fritzsche esteve aqui mais de dez anos e não
teve culpa num só golo”, contou Meyer. “Pelo menos era o que ele dizia
quando lhe perguntavam.”
O pai de Robert ouvia atentamente. Conheceria Meyer o modo
agonizante como o jovem se autorrecriminava pelos erros cometidos?
Estaria a querer dizer -lhe para não levar aquilo demasiado a sério?
Robert Enke dividia agora a sua vida. Tinha aulas individuais
na escola de modo a poder treinar de manhã com a equipa, na quali-
dade de guarda -redes suplente. Era agora atleta profissional, com toda
a seriedade e exigência que a profissão implicava. E ao mesmo tempo,
começava aos domingos, na estação de comboios de Jena, uma vida des-
preocupada com Teresa.
Dormiam num colchão na sala da casa da mãe, alegando que tinham
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de estudar para o exame final do liceu. Por vezes saíam à noite e Robert
era capaz de beber uma cerveja com limão. “Eu dançava em cima das
mesas”, conta Teresa, o que provavelmente não deve ser tomado à letra.
Ainda assim ele sentia que ela conseguia exteriorizar melhor a alegria
de viver.
Teresa conseguia exprimir tudo com facilidade: a afabilidade, a
curiosidade, a capacidade de tomar decisões. Robert acreditava que ela
era muito mais forte do que ele.
“Nunca aprendi a divertir -me como tu”, dizia -lhe, como se tivesse
de se defender. Ela gostava precisamente do seu charme gentil e reser-
vado. Ele tinha um rosto de infindável ternura.
Teresa tinha crescido com dois irmãos mais velhos numa aldeia da
Francónia e o pai tinha transmitido a todos os filhos a sua paixão pelo
pentatlo moderno, que é constituído pelas modalidades de natação,
esgrima, hipismo, tiro e corrida. Em casa, no quarto dos brinquedos,
Teresa e o irmão disparavam secretamente a pistola de pressão de ar
contra bonecos Playmobil. “Viste? Se lhes acertas no peito, eles partem-
-se em mil bocados”, dizia -lhe o irmão, orgulhoso da descoberta. Ofi-
cialmente, foi por causa do desporto que Teresa veio para Jena estudar.
O que ela não podia dizer era que tinha sido também para fugir do
sistema educativo bávaro, com o seu maldito latim. “Não vistas roupa
de marca, para não pareceres uma ocidental com a mania que é boa”,
aconselharam -na os amigos. “E depois vi no primeiro dia de aulas que
toda a gente vestia roupa de marca”, recorda Teresa.
Os opostos este e oeste, que naquele tempo toda a gente gostava
de identificar, não significavam nada para ela. Eram apenas um pos-
sível pretexto para rirem juntos. Quando Robert foi passar a noite de
Natal a casa da família de Teresa, mostrou algumas lacunas relativa-
mente à história da Natividade, à conta da educação ateísta que rece-
bera na RDA: “José era quem, afinal?”
Teresa interessava -se pouco pela sua carreira de futebolista. Para
ela o futebol era sinónimo de frustrantes noites de sábado, “quando eu
estava em casa e queria ver a série Beverly Hills 90210, e não podia por-
que os meus irmãos tomavam de assalto a televisão por causa das emis-
sões desportivas.”
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Também foi por isso que ele quase não lhe falava dos seus primei-
ros jogos como profissional, até ela muito mais tarde começar a fazer
perguntas. Ele achava que falar daquilo por iniciativa própria era estar
a gabar -se.
O Carls Zeiss Jena portou -se consideravelmente bem na pri-
meira volta da época 1995/96. No meio -campo, destacava -se por
vezes pela sua elegância um jovem de 21 anos de nome Bernd
Schneider, que mais tarde haveria de ser considerado o melhor fute-
bolista alemão do ponto de vista técnico. A equipa tinha -se fixado na
primeira metade da tabela classificativa, quando no Outono sofreu
duas derrotas pesadas seguidas: 4 -1 em Duisburgo e 0 -4 contra o
Bochum. O guarda -redes Mario Neumann já tinha vivido melhores
dias. No dia 11 de Novembro de 1995 o Carl Zeiss jogava fora con-
tra o Hannover. Costuma dizer -se que os bons guarda -redes preci-
sam acima de tudo de experiência, e Robert Enke tinha 18 anos de
idade. O treinador Eberhard Vogel escolheu -o pela primeira vez para
jogar à baliza de início.
O mais impressionante foi o estádio estar quase vazio. Os 6.000
adeptos estavam dispersos num estádio com capacidade para 56.000.
Os singulares postes de iluminação faziam -se notar ainda mais, como
escovas de dentes gigantes apontadas para o céu. Era como se fosse
no tempo em que o futebol ainda não se tinha tornado um aconte-
cimento público, uma festa para o povo.
O jogo decorria e Robert Enke esperava. A luta disputava -se a
meio -campo, mas ele mantinha -se concentrado, já que de um momento
para o outro o adversário poderia aparecer na sua grande -área.
Estava já meia hora decorrida quando, de repente, o jogador do
Hannover Reinhold Daschner cabeceou para a baliza. Até mesmo
um estádio quase vazio se conseguiu fazer ouvir. Robert Enke estava
lá, no sítio onde a bola foi cair, e agarrou -a com segurança.
Não tinham passado sequer dois minutos depois da sua pri-
meira ação digna de nota e Robert Enke sofreu o primeiro golo da sua
carreira profissional. O jornal Ostthüringer Zeitung usou de palavras
muito pouco comuns para vir em sua defesa: “Robert Enke não teve
33ROBERT ENKE – UMA VIDA CURTA DEMAIS :: RONALD RENG
qualquer influência no 1 -0 para o Hannover, mas sim o defesa do
Jena Dejan Raickovic”.
Robert continuou a fazer as pequenas coisas que cabem a um
guarda -redes, como neutralizar cantos e bater pontapés de baliza para
o sítio certo. Conseguiu ainda por uma vez arrancar uma reação ao
estádio, ao deter um remate de Kreso Kovacec. O resultado final foi
um empate a uma bola, num jogo que os espectadores começavam já
a esquecer à medida que iam abandonando o estádio. O jovem e feliz
guarda -redes apanhou ainda um susto no acesso para as cabinas. Sen-
tiu o teto de plexiglas do túnel troar por cima dele. Era o pai que, sus-
penso da vedação da tribuna, batia orgulhosamente no teto do acesso
dos jogadores para lhe dizer: bravo, rapaz!
É claro que ele iria continuar a ser o guarda -redes da equipa.
No sábado seguinte, a mãe tinha ido passear para as montanhas
em redor de Jena com uma amiga e trazia o rádio ligado. “Fiquei mal-
disposta”, recorda Gisela Enke.
O comentador relatava: “O Lübeck ataca pelo flanco direito, cru-
zamento de Behnert, Enke sai à bola, agarra -a… e deixa -a escapar por
entre as mãos! Golo do Lübeck! Um erro crasso do guarda -redes!”
Era em momentos como este que Andy Meyer via confirmada a sua
opinião de que Enkus era um rapaz sortudo, já que mesmo quando ele
errava, o que em todo caso quase nunca acontecia, a sua equipa ganhava
e nunca mais ninguém falava sobre o erro do guarda -redes.
O Jena venceu o Lübeck por 3 -1.
Se Robert fizesse um esforço, conseguia perceber o que Andy que-
ria dizer: o erro dele tinha sido insignificante. Mas mais tarde, passa-
dos muitos anos, confessou como realmente encarava esses erros, como
jovem guarda -redes que era: “Eu não conseguia perdoar a mim próprio
um erro cometido”. Os colegas diziam que não tinha importância, o
treinador dizia que aquilo acontecia a todos, que a vida continuava no
sábado seguinte e que ele naturalmente continuaria na baliza, só que
“eu fiquei a semana inteira a rever o erro mentalmente, sem conseguir
tirá -lo da cabeça”.
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Robert Enke, guarda -redes do CZ Jena, atuando no campeonato alemão de juvenis.
Faltou à escola toda a semana seguinte, com a desculpa de que
estava doente.
Esse é o tormento dos guarda -redes: a insuportável exigência
que impõem a si próprios de não cometer um erro que seja. Nenhum
guarda -redes consegue esquecer um erro cometido, mas tem de con-
seguir ultrapassá -lo. Caso contrário, chega o jogo seguinte e abate-
-se sobre ele.
O Carl Zeiss tinha de se deslocar a Leipzig para jogar o dérbi.
Na tribuna, o pai de Robert encontrou uma conhecida dos antigos
tempos de atletismo e os dois sentaram -se lado a lado. Ela torcia pelo
Leipzig, mas no terceiro minuto de jogo até ela gritou em tom de
comiseração: “Oh não!”
Robert tinha deixado passar debaixo do corpo um remate de vinte
metros, com pouco efeito e nem sequer muita força.
É nestes momentos que um guarda -redes deve agir como se nada
se tivesse passado.
35ROBERT ENKE – UMA VIDA CURTA DEMAIS :: RONALD RENG
Aos 34 minutos de jogo, o avançado do Leipzig, Ronny Kujat,
isolou -se. É em alturas como essa que o jogo parece desenrolar -se em
câmara lenta. O guarda -redes regista cada movimento de pés do avan-
çado e o público fica especado, de boca aberta. O guarda -redes espera
pelo avançado, pregado ao chão. Não deve mexer -se. Quem agora fizer o
primeiro movimento (Robert, a mão, e o avançado, o pé) perderá prova-
velmente o embate, já que o outro pode perceber a sua manobra. Kujat
rematou e Robert voou para a bola, defendendo -a. Foi a melhor defesa
da sua ainda curta carreira, mas ele não desfrutou disso.
Desesperado, pediu ao treinador ao intervalo que o substituísse.
“Há sempre uma altura em que isso acontece”, diz o pai de Robert.
Mas isso é coisa que um profissional não faz. Um profissional não
conhece qualquer fraqueza.
Durante o intervalo em Leipzig, o treinador Eberhard Vogel res-
pondeu a Robert Enke para ele deixar de dizer disparates e manteve -o
na equipa até ao apito final. Depois disso nunca mais o pôs à baliza.
A mãe reparou que ele já mal falava em casa e que depois de comer
ia fechar -se no quarto. “Mas isso era algo que eu também já conhecia do
Dirk, depois de uma prova de estafetas lhe correr mal.”
Passada uma semana, Robert Enke recuperou timidamente o sor-
riso e dirigiu -se à estação de comboios. Ele nessa altura não pensou
nisso, não viu qualquer relação, mas nos seis meses seguintes, durante
os quais voltara a ser o jovem guarda -redes suplente de quem ninguém
esperava nada, Robert recuperou a alegria e o equilíbrio. Pensava que
era seguramente por influência de Teresa.
O treinador comentara publicamente o incidente de Leipzig.
“O miúdo tem falta de confiança. Queria que eu o tirasse ao inter-
valo. Mas as coisas não são assim tão simples”, afirmou Vogel aos jor-
nalistas desportivos imediatamente após o jogo.
Dez anos mais tarde, isso de cometer um erro de principiante e
implorar para abandonar o jogo ao intervalo poderia significar o fim de
carreira para um guarda -redes.
A notícia circulara na Internet, e fora difundida nos programas de
desporto das televisões alemãs e em inúmeros outros meios de comu-
nicação que gostam de dar importância a jogos da segunda divisão.
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Na cena futebolística sedenta de escândalos ter -se -ia cimentado em rela-
ção a Robert a reputação de jogador instável, mas no Ostthüringer Zeitung
a história foi relegada para uma notícia secundária de dezasseis linhas.
Os clubes da primeira divisão que haviam reparado nele à conta das
suas notáveis exibições nos jogos regionais das camadas jovens continuaram
a interessar -se por ele. Nos anos anteriores, alguns desses clubes tinham
contactado os pais de Robert, entre eles um senhor do Bayer Leverku-
sen que se anunciara como sendo Reiner Calmund e depois, sem ponto
nem vírgula, desbobinara dez frases em quarenta segundos. Quem deixou
melhor impressão foram os emissários do Borussia Mönchengladbach,
uma vez que, ao contrário do Leverkusen ou do Estugarda, o clube enviara
não só o diretor desportivo mas também o treinador de guarda -redes.
Os pais tinham -no proibido de sair para outro clube antes de aca-
bar o liceu, mas agora aproximava -se o verão de 1996 e com ele o fim
dos tempos de escola.
Teresa pôs -se a pensar em voz alta para que universidade pode-
riam ir os dois juntos estudar. Pensava em estudar para ser professora
ou matricular -se em medicina veterinária.
“Que pensas de Würzburg?”
“Mas eu vou continuar a jogar futebol.”
“Então mas isso é assim tão importante? Pronto, está bem. De cer-
teza que Würzburg também tem uma equipa.”
“Não estás a perceber. Eu vou seguir uma carreira profissional.
Tenho algumas propostas.”
“Então?”
“O salário que oferecem não é dos piores. Em Mönchengladbach
poderia ganhar 12.000 marcos por mês.”
Teresa pensou para si própria que tinha soado um tudo -nada ingé-
nua, graças à sua ignorância em matéria de futebol.
Poucos dias depois de Robert e o pai se terem encontrado pela pri-
meira vez em Mönchengladbach com os responsáveis do Borussia, tocou
o telefone de Dirk Enke.
Era Norbert Pflippen, agente de jogadores como Günter Netzer,
Lothar Matthäus, Stefan Effenberg e Mehmet Scholl. “Posso ajudar
o seu filho.”
37ROBERT ENKE – UMA VIDA CURTA DEMAIS :: RONALD RENG
Habitualmente, um agente desportivo firma um contrato com um
jogador e depois encarrega -se de lhe procurar um clube. Mas antiga-
mente as coisas eram muitas vezes bastante mais cómodas para os pou-
cos agentes que dominavam o mercado. Através de informadores que
tinham nos clubes da primeira divisão, ficavam a saber sempre que um
clube queria contratar um jovem jogador que ainda não tivesse agente,
e depois iam oferecer -se ao jogador. Era assim que as coisas se faziam
com Norbert Pflippen e o Borussia de Mönchengladbach nas décadas
de 1980 e 1990.
Pflippen, também conhecido por Flippi, tinha um ponto forte a
seu favor: tinha sido o primeiro a aparecer no negócio. Durante déca-
das teve a reputação de ser um dos melhores.
Flippi visitou a família Enke em Jena. Era um homem de braços
carnudos e pouco polido, cheio de histórias de como tinha levado o
Günter para o Real Madrid e o Lothar para o Inter de Milão. Naquela
altura quase nenhum jovem jogador tinha um agente, e ali estava aquele
homem a oferecer -se a Robert Enke, saído das mais altas esferas do fute-
bol. E era bem simpático, o Flippi, naquele seu jeito bem -humorado.
Ignoraram o facto de que por vezes ele podia ser um pouco rude. “Se
chegarmos a acordo”, murmurou ele para o pai de Robert, “ofereço -lhe
um telefone com faxe incorporado.” Depois virou -se para Robert: “E
tu recebes um carro.”
Ainda antes da prova oral de geografia para a conclusão do liceu,
cujo tema era “rochas”, Robert Enke assinou em Maio de 1996 um con-
trato de três anos com o clube da primeira divisão Borussia Mönchen-
gladbach, contrato esse que lhe havia sido apresentado pelo seu agente
Norbert Pflippen.
Pouco tempo antes, na autoestrada A2 perto de Dortmund, em
direção ao leste do país, o motor de um pequeno Peugeot tinha gripado.
Tinha começado a sair fumo de debaixo da capota. O serviço de assis-
tência em viagem da família Enke disse que esta tinha corrido perigo
de vida ao viajar com um veículo naquelas condições, já sem óleo e sem
refrigerante, e com as válvulas entupidas. Torsten Ziegner e Mario
Kanopa estavam também no veículo, de regresso de um jogo de junio-
res em Bocholt.
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Flippi disse que não podia fazer nada quanto ao facto de o carro
usado que ele havia comprado a Robert Enke se encontrar naquele estado.