Download - Sem Vestígios
tAÍS MoRAIS
Livro_semvestigios.indd 3 06.10.08 15:14:37
�
TAÍS MORAiS
SEM VESTÍGIOS
Copyright © 2008 by Taís Morais
1ª edição – outubro de 2008
Editor e PublisherLuiz Fernando Emediato
Diretora EditorialFernanda Emediato
Capa………
Projeto Gráfico e Diagramação Alan Maia
RevisãoMarcia Benjamim de Oliveira
Índice OnomásticoMarcia Benjamim de Oliveira
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Morais, TaísSem vestígios : revelações de um agente secreto
da ditadura militar brasileira / Taís Morais. --São Paulo : Geração Editorial, 2008.
ISBN 978-85-61501-09-9
1. Agentes secretos 2. Brasil – História 3. Comunismo 4. Ditadura – Brasil – História 5. Guerrilhas – Araguaia, Rio, Vale
6. Manuscritos 7. Militarismo – Brasil 8. Reportagem investigativa I. Título.
08-09689 CDD: 070.44932098108
Índices para catálogo sistemático
1. Brasil : Ditadura militar : Reportagem investigativa070.44932098108
GERAÇÃO EDITORIAL
ADMINISTRAÇÃO E VENDAS
Rua Pedra Bonita, 870 CEP: 30430-390 – Belo Horizonte – MG
Telefax: (31) 3379-0620Email: [email protected]
EDITORIAL
Rua Major Quedinho, 111 – 20º andarCEP: 01050-030 – São Paulo – SP
Tel.: (11) 3256-4444 – Fax: (11) 3257-6373Email: [email protected]
www.geracaoeditorial.com.br
2008Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Livro_semvestigios.indd 4 06.10.08 15:14:38
�
Esclarecimento do editor ...............................................................9
Agradecimentos ................................................................................13
Um manuscritos solto .....................................................................15
IntRodução
Refeição especial para um homem com pressa ................................. 19
Um homem e suas memórias, em total solidão ................................. 23
Vara de marmelo cortando a pele ......................................................27
Cacos de espelho na memória ............................................................30
“Minha mãe não pode saber” ............................................................. 32
Ida e volta ao inconsciente .................................................................. 35
O quartel, um país à parte .................................................................. 37
A lógica da farda ..................................................................................40
Os donos da vida e da morte ..............................................................42
Criatividade para seguir as regras ......................................................45
O providencial tampão .......................................................................47
O batismo de fogo ...............................................................................49
Segurança da autoridade máxima ...................................................... 53
O apartheid ainda mais evidente ........................................................ 55
Parte 1
DA INFÂNCIA À FORMAÇÃONO APARTHEID
Livro_semvestigios.indd 5 06.10.08 15:14:38
�
TAÍS MORAiS
Aprendendo com o inimigo ...............................................................59
Atirou no que viu e acertou no que não viu ......................................62
Discreta perseguição a Manuel ...........................................................64
Uma solene especialidade ...................................................................67
Atenção, qualidade básica de um agente ............................................69
Lábia e dinheiro para aliciar informantes .......................................... 74
A morte como “acidente” de trabalho ................................................79
Linha-dura com acessos de brandura ................................................ 83
Nos braços da jovem boiadeira ..........................................................86
Arranjos internos, sem vestígios à superfície .....................................88
Agente se dá mal, denunciando corrupção ........................................93
Jibóias incomodam muita gente .........................................................96
Sumiram com o homem, de madrugada ...........................................99
A sucuri aperta o cerco ..................................................................... 105
Perigo entre o nada e lugar nenhum ................................................. 112
Teatro burlesco, em plena missão ......................................................118
A tortura, para começo de conversa ..................................................121
Cabra corajoso, não abriu o bico ...................................................... 124
O mal cortado pela raiz, sem exceções ............................................. 128
Do sono induzido à morte .................................................................134
“Agora sou um assassino” ..................................................................138
Cremação, para evitar o culto aos mártires ..................................... 142
Um deslize acaba com o Destacamento A ....................................... 146
O macabro adubo na Serra das Andorinhas ..................................... 151
A chacina da Rua Pio XI ....................................................................156
Parte 2
As PRIMEIRAs MIssõEs,NEM sEMPRE ORTODOxAs
Parte 3
CAÇADA FINAl NO ARAguAIA
Livro_semvestigios.indd 6 06.10.08 15:14:38
�
Noite avançada, “Juritis” de armas em punho ..................................163
De volta à civilização, com os mistérios de sempre ......................... 166
UM CADÁVER ENTERRADO EMBAIXO DA BANANEIRA ...... 169
Carnificina na serra de Petrópolis .....................................................172
Mucuna pruriens para os estudantes ................................................ 178
Improviso com chapéu alheio ...........................................................185
Seqüestro à altura das chanchadas da Atlântida .............................. 190
Contribuições providenciais dos empresários ................................. 197
Uma bomba explode no colo da repressão ......................................200
O casamento desmorona, também ..................................................202
Do diário de um atormentado I... ....................................................205
A terrível sina da aposentadoria .......................................................209
As descobertas, no ostracismo .......................................................... 212
Do diário de um atormentado II... ................................................... 214
Do diário de um atormentado III... ................................................. 216
Nota da autora ................................................................................... 219
ANExOs
Confidências de um coronel ............................................................. 225
A Estrutura do CIE nos anos de repressão.......................................230
As principais agências de inteligência do mundo ............................ 232
Índice Onomástico ........................................................................ 235
Parte 4
O lENTO E gRADATIvOOCAsO DO REgIME
Parte 5
O PREsENTE sEM FuTuRO
Livro_semvestigios.indd 7 06.10.08 15:14:39
2�
DA INFÂNCIAÀ FORMAÇÃO
NO APARTHEID
Parte 1
Livro_semvestigios.indd 25 06.10.08 15:14:43
2�
Carioca é, ao mesmo tempo, um brasileiro típico e uma exceção.
Exemplo claro de migrante que saiu da vida rural para a urbana. No
momento em que acontecia essa transição, o país aos poucos altera-
va o perfil de sua população. A constante migração foi transformando as
cidades em aglomerados de intenso contraste entre a riqueza mais ostensiva
e a pobreza absoluta. O trabalho, em determinados segmentos, podia fazer
diferença no destino de miséria.
Não necessariamente alçava um cidadão ao topo da pirâmide, mas ao
menos não o condenava a viver para sempre em uma favela ou cortiço, ex-
posto às piores mazelas de um ambiente hostil pela degradação social.
Foi esse o caminho traçado por Carioca. Ele nasceu em uma casinha
simples no Rio de Janeiro. Pouco recorda da sua infância, mas mantém viva
a memória mais agradável: o cheiro forte de melaço de cana misturado com
farinha, refeição básica, servida pela mãe, enquanto ele ainda não podia ma-
nejar direito a colher e a vasilha.
Seu pai foi embora quando ele completou dois anos de idade. Desapareceu
do imaginário do menino, que, em seguida, foi acolhido pelos parentes mater-
nos, enquanto a mãe recuperava-se da perda. Seu terceiro ano de vida foi marca-
do pela volta ao lar, quando seus tios trouxeram ao mundo sua primeira filha.
Mas o motivo do regresso não foi o bebê e sim o pedido da mãe — que-
ria o filho de volta. Naquele curto espaço de tempo, ela unira-se com Séba,
um trabalhador rural, empregado na fazenda de dois irmãos. O filho de um
Livro_semvestigios.indd 27 06.10.08 15:14:43
2�
TAÍS MORAiS
deles, batizado com o nome do personagem bíblico Noé, foi um dos grandes
companheiros de infância de Carioca. Brincavam construindo carrinhos
com carretéis vazios de linha de costura. O nome do amigo era um convite
à imaginação, porque as crianças ouviam histórias do livro sagrado, e o ho-
mem que construiu a grande arca, salvando animais do dilúvio universal,
Noé, assumia proporções heróicas para a molecada.
A família de Carioca logo se mudou da velha e triste casa de pau-a–pi-
que, onde ele nasceu, para as acomodações de empregados na fazenda de
um dos patrões, Nicolau, ou Lalau, como era conhecido. Foi um progresso,
mas aquele lugar ficou marcado por um acontecimento doloroso. Um dia
seu padrasto chegou em casa cego de raiva e, sem nenhuma explicação, agar-
rou o garoto e lhe deu uma surra que parecia interminável. A vara de mar-
melo cortava a pele fina da criança, quase chegando aos ossos. Uma tortura
que o menino enfrentou urrando de dor. O choro aos poucos foi se transfor-
mando em tremenda indignação, e Séba jamais foi perdoado. O fato — inex-
plicável e gratuito — marcaria a relação de ambos dali em diante.
A vida no interior não dava margem a muita conversa. Levar uma surra
sem saber o motivo não era lá uma raridade naquelas plagas, da mesma
forma que a independência das crianças que se viravam como podiam, sol-
tas pelos campos desde cedo. Ninguém ficava vigiando seus passos, como
acontece com as famílias da cidade. Nem queria saber dos acontecidos quan-
do a filharada estava longe de suas vistas.
Assim, o que vivia, Carioca guardava para si, com medo das conseqüên-
cias. Mesmo que fosse um acidente, por isso nunca contou em casa a tarde
em que esteve próximo da morte. Vagando pelos campos, viu um grupo de
mulas e se aproximou para conferir de perto a estrutura dos animais. Sua
memória guardou uma de cor cinza, com linha preta, que ia do pescoço ao
rabo. Ele ficou bem perto dela e, de repente, um potente coice o atingiu, por
sorte apenas de raspão. Sentiu o casco poderoso triscar sua virilha. Se pegas-
se em cheio, podia ter lhe matado. Ele, assustado, tratou de correr para casa
com o coração saindo pela boca. Ninguém soube de nada. Ele tinha pavor de
levar uma surra pela ousadia. Aos poucos aprendia a guardar seus segredos.
No futuro, esse exercício seria de grande valia...
Carioca teve uma infância sem grandes privações. A comida farta sempre
esteve à mesa. E não só arroz e feijão, também carne para a mistura. Havia
criação no quintal, mas Séba — junto com alguns conhecidos — gostava de
Livro_semvestigios.indd 28 06.10.08 15:14:43
2�
roubar galinhas e porcos em fazendas vizinhas. Quando soube disso, por
acaso, o menino entendeu a razão de tal abundância. Tinha mesmo de exis-
tir um motivo extra, porque o dinheiro do trabalho mal dava para as despe-
sas básicas: calçados, roupas, ferramentas.
Além de aliviar a vizinhança de uma ou outra criação, Séba era excelente
caçador de tatu, macaco, porco-do-mato. Usava uma arma de ripa flexível
em forma de arco, tendida por dois cordões, com uma esteirinha no centro.
Um bodoque peculiar. Certo dia, sem prestar atenção no alvo, abateu uma
macaca que carregava o filhotinho nas costas. Ao ver o animalzinho desam-
parado, sentiu pena e remorso. Levou o bichinho para casa, e ele se tornou
de estimação. Nunca mais atirou em macacos. No fundo, não era mau. Ape-
nas um sertanejo endurecido pela rotina, e que vez ou outra se enchia de
ternura pela própria natureza.
Carioca também era bom caçador. Aprendeu a armar arapucas e captu-
rar pássaros sem a culpa que atormentava seu tio Álvaro, vítima de uma
doença crônica no estômago.
Um dia, Álvaro, muito católico e martirizado pelo desconforto, fez pro-
messa: se sarasse, nunca mais abateria juriti, o tipo de pombinha que mais
apreciava em suas refeições. E não é que a tal da promessa funcionou? Foi aí
que Álvaro parou de caçar juritis, ao contrário do sobrinho, que vivia caçando
essas e muitas outras aves características daquele mundão: sabiás, bem-te-vis,
sanhaços. Matava, limpava e pendurava em cima do fogão à lenha, gostava de
comê-las bem fritinhas. Tão bom... O sabor nunca lhe saiu da memória, nem
o dos quitutes incomparáveis de sua mãe, que tirava um dia da semana para
fazer quitandas. Biscoitos de polvilho e bolos. Ah, o aroma do bolo de fubá
quentinho, servido com café coado na hora ainda habita sua memória!
Muitas vezes, os parentes vinham para um dedo de prosa na hora do
lanche. Os primos se reuniam em algazarra. Tardes cheias de delícias e ale-
gria, para quebrar a solidão e o silêncio do interior.
Livro_semvestigios.indd 29 06.10.08 15:14:43
30
TAÍS MORAiS
Até os cinco anos de idade, Carioca nunca usara sapato ou botina.
Nem sabia direito o que era aquilo, acostumado a correr pelos cam-
pos com os pés descalços, já calejados pelo trato direto com a terra.
Um dia sua mãe apareceu com um presente: um calçado parecido com as
botas dos donos da fazenda. Ao provar, ele se sentiu desengonçado, mas ex-
perimentou. Não tardou a sentir o conforto. Que maravilha estar a salvo de
ferir os pés na vegetação ou nas pedras do caminho!
Daqueles tempos, ficaram gravados poucos momentos. Em especial, os
mais dramáticos. Mesmo assim, picados como cacos de espelho. De uma
seqüência, fragmentos e sensações, como a de um mergulho no riacho frio e
turvo nas proximidades da fazenda. Ele fora a um passeio com seus tios e
primos. Para juntar-se à brincadeira dentro d’água, mergulhou... sem saber
nadar... Seu frágil corpo foi afundando enquanto ele tentava desesperada-
mente se agarrar a algo que não existia. Com olhos esbugalhados, nada en-
xergava, somente sentia a água entrando pela boca, nariz e ouvidos. Perdeu
a consciência e só acordou com a relva macia debaixo dele. Sem saber ao
certo quem o havia tirado da água, sentia um alívio misturado ao desconfor-
to do peito dolorido, e a dificuldade de respirar, mas feliz por ter seu corpo
escorado em terra firme, e o céu bem azul lá em cima. Os parentes assusta-
dos tratavam de reanimá-lo. Por pouco não partiu desta para melhor... Mal
recuperou o fôlego, pegaram o caminho de volta para casa. Uma boa cami-
nhada que, em condições normais, era uma delícia, mas com a roupa
Livro_semvestigios.indd 30 06.10.08 15:14:44
31
encharcada e a sensação de enjôo e zonzeira, virou um martírio. Bastou
entrar na cozinha, se deparar com os cheiros familiares e com a quentura
confortável do fogão à lenha, para esquecer sua desventura daquele dia.
Entre os cacos espalhados na memória, a triste lembrança dos longos
períodos de ausência da escola. Ele gostava demais daquele ambiente de car-
teiras envernizadas e do quadro negro cheio de palavras. A professora, dis-
posta a fazer os alunos decifrarem os mistérios das palavras e dos números,
apresentava-lhe um mundo novo, interessante e vasto. Tão diferente da ro-
tina interiorana. De quando em quando, para desespero do menino, era
afastado desse convívio gratificante com mestres e colegas. Sua mãe deixava
a cidade e voltava para a antiga vila natal e depois partia para outro núcleo
urbano, em idas e vindas que ele demorou a compreender: tinham a ver com
o desgaste do casamento. As relações com Séba estavam cada vez mais ten-
sas. Não tardariam a separar-se, mas, até esse triste final de caso, eram dis-
cussões diárias, observadas por uma criança impotente para prestar qualquer
ajuda à mãe.
Livro_semvestigios.indd 31 06.10.08 15:14:44
32
TAÍS MORAiS
“
”
Quando finalmente a mãe de Carioca ficou sozinha, fixou residência
em outra cidade. Ele estava entrando na adolescência e tornou-se
um sincero e dedicado praticante da religião católica. Certo de que,
ajudando nas missas, como coroinha, se aproximaria de Deus, não tardou a
ser admitido em um seminário. Tornou-se um aluno em vias de seguir a
carreira religiosa. A instituição ficava em outra cidade. Inteligente e observa-
dor, mais tarde perceberia — graças a um nefasto acontecimento — que a
garotada passava por uma lavagem cerebral. Apenas os ensinamentos ali
apresentados eram corretos. Do cerimonial complexo à obediência cega à
vontade de Deus. Todos eram obrigados a seguir rigorosamente os Dez
Mandamentos, acrescidos das normas e regulamentos estipulados pela Igre-
ja. Com a promessa de que vivendo uma vida “perfeita”, à luz dos cânones,
iriam para o céu direto, sem escalas.
Enquanto ainda se empenhava em cumprir toda a liturgia, admirava os
santos que haviam se dedicado a uma vida simples, casta e desapegada,
como Francisco de Assis, Domingos Sávio e Luís Gonzaga. Aos onze anos,
procurava praticar uma boa ação a cada dia. Ajudava os outros com aguçado
espírito de solidariedade. Não tinha dúvidas sobre aquele caminho pontua-
do pela oração e renúncia aos desejos do corpo escolhido por ele. Para um
jovem tão ingênuo, ele viveria uma tremenda decepção aos treze anos.
Certo dia machucou-se jogando bola. Por causa da dor, começou a man-
car. Dispensado do trabalho de preparação da missa, saiu em busca de ajuda.
Livro_semvestigios.indd 32 06.10.08 15:14:44
33
A pessoa certa a procurar era o admirado monsenhor Marcos, responsável
pelas verbas públicas que alimentavam o Colégio Monfort e o Seminário
Menor dos Irmãos de São Gabriel. Ele pediu que o garoto lhe mostrasse
onde doía e que seria preciso fazer um curativo. Estranhamente, não na en-
fermaria, mas no quarto do padre. Tão logo ficaram sozinhos, com a porta
fechada, a volúpia incendiou os olhos daquele homem. Começou a tocar o
pênis do menino, que, apavorado e tomado pelo asco, repeliu a investida e
saiu às pressas da cela, que antes era tida como um santuário.
A partir daquele momento, nada mais foi como antes. Comungar tor-
nou-se uma experiência demoníaca. Ele olhava os colegas e, sabendo que
muitos aceitavam o assédio com medo de falar a respeito, pediu para ir em-
bora. Nunca mais voltou e nem deu explicações sobre sua saída.
De volta à terra natal, e ao convívio com a mãe, passou a trabalhar como
servente de pedreiro. Tinha de ajudar nas despesas da casa e cuidar do seu
próprio sustento. Era uma tarefa penosa. Ficava com os pés e as mãos corro-
ídos pela cal. Quando não agüentava mais a dor das chagas abertas, se afas-
tava até sarar, vivendo de suas economias. À procura de uma tarefa menos
sofrida, acabou mudando para uma cidade no interior de São Paulo, traba-
lharia como lavrador. O salário era bem melhor e o primeiro foi todo gasto
em roupas, sapatos, meias, loção de barbear e até perfume. Resultado: ne-
nhum tostão até o próximo pagamento.
Certo dia resolveu fazer as malas e voltar. Não sabia que sua mãe se muda-
ra para uma vila próxima àquela em que haviam morado. Depois de um tem-
po sozinha, encontrara um novo amor. Seu companheiro a ajudava muito,
inclusive na obtenção de trabalho. Mas a relação não foi muito duradoura, e
depois de separar-se dele, sem jamais contar o porquê, ela voltou para a antiga
casa e nunca mais quis ter outro namorado. Perdera o interesse pelo amor?
À margem das vivências de sua mãe, aos 16 anos Carioca já sabia bastan-
te sobre a vida, mas não estava totalmente preparado para todas as surpresas
vindouras. Como o episódio que tratou de manter em segredo. Por compai-
xão, e a pedido de sua mãe, foi visitar uma amiga da família que andava se
queixando muito de solidão e de uma doença. Ao entrar na casa, encontrou
um ambiente lúgubre e pesado. Os poucos cômodos eram pintados de um
azul descontínuo, manchado. A tinta estava descascada, aqui e ali. Enquanto
atravessava aquele lugar sombrio, quase arrependido da gentileza, ia sentin-
do um peso estranho, quase asfixiante, pena da solidão e decadência do local.
Livro_semvestigios.indd 33 06.10.08 15:14:45
3�
TAÍS MORAiS
Até mesmo para ele que vivia em condições tão pobres, aquilo pareceu triste
demais. Era muito jovem para entender certas coisas, estava diante do des-
conhecido e do imponderável.
Devagar, e tentando abafar o ruído dos próprios passos, aproximou-se
da cama onde a mulher — ainda mais pálida pelo contraste da pele com os
cabelos escuros espalhados no travesseiro — parecia dormir, com a respira-
ção alterada. Ele ouvia nitidamente o arfar do peito. Sentou-se com todo o
cuidado ao lado dela, pronto para confortá-la de alguma maneira. Sem uma
única palavra, mas com um gesto rápido e decidido, ela puxou o garoto para
si. Surpreso, ele se deixou abraçar, acariciar, apertar e despir. Nada fez para
detê-la. Entregou-se submisso e inebriado. Entre a excitação e a culpa, sua
primeira experiência sexual. O cheiro asfixiante daquele quarto nunca mais
se apagou da sua memória. Nem os fragmentos captados de relance, como o
revelador espelho de cristal da penteadeira, repleta de vidros de perfume e
batons. Não se recorda como se preparou para ir embora, certamente a rou-
pa fora vestida às pressas. Mas a sensação sim, essa ficou. Saiu dali flutuando,
e com uma única frase na cabeça: “Minha mãe não pode saber”.
Realmente, nunca soube. Carioca jamais tocou no assunto. Ambos, sem-
pre estavam em busca de trabalho, com pouco lazer, e sem o hábito de con-
versar amenidades. Para ganhar um dinheirinho a mais, aceitava qualquer
emprego. Trabalhou no bar da rodoviária, em uma pensão e até em uma
oficina de recapeamento de pneus.
Em 1962, Carioca aceitou o convite para trabalhar como frentista num
posto de gasolina. Logo foi promovido, de tão esperto que se mostrava. Em-
bora desse plantão nas bombas, uma noite por semana, passou a comprar
combustíveis também. Naquelas longas madrugadas, conheceu duas prosti-
tutas que faziam ponto nas proximidades. Elas, enquanto aguardavam o
aparecimento de algum interessado em seus serviços, gastavam as horas
conversando com o jovem. Falavam sobre anseios, mágoas, tristezas, alegrias
e dificuldades. Quando amanhecia, elas se despediam. Vez por outra, uma
delas seguia com ele para seu quarto de pensão. Era sempre a jovem Marli,
uma índia Carajá de cabelos negros e lisos, corpo firme e moreno. Ele gosta-
va de estar ao lado daquela mulher. Não era bem um namoro, e sim um
alívio para a solidão de ambos. Durou alguns meses, mas ela foi embora da
mesma forma como havia aparecido. Sem aviso nem despedida. Jamais a
veria novamente. Apenas em suas lembranças.
Livro_semvestigios.indd 34 06.10.08 15:14:45
3�
L ogo Carioca mudou-se para Niterói. Arranjara um emprego de re-
cepcionista em um hotel. Além de cuidar da entrada e registro de
hóspedes, administrava as refeições para assegurar que tudo corres-
se bem. Não raro, conversava com os hóspedes. Assim, conheceu um médico
especializado no inconsciente. Sempre disposto a falar a respeito do tema
que o apaixonava, discursou para aquele jovem atento e inteligente. Carioca
sorvia os ensinamentos como se fosse água fresca da nascente.
O doutor dizia, com uma certeza contagiante, que a capacidade intelec-
tual do ser humano é ilimitada. E que é possível — para qualquer pessoa
— alcançar as profundezas dos outros. Para provar, uma tarde chamou a
esposa, que o acompanhava na viagem, e, diante de Carioca, disse:
“Vem cá, vou te hipnotizar.”
“Não, pelo amor de Deus, não faz isso agora”, ela sussurrou, praticamen-
te suplicando, com olhos tristes e uma expressão de medo no rosto.
“Vou fazer, sim”, ele afirmou, sem dar a ela nenhuma margem de
contestação.
No mesmo instante, com uma seqüência de frases ele a hipnotizou. Ela,
obviamente estava condicionada a entrar em transe com aquela seqüên-
cia-chave de palavras. Ele fez a esposa dançar com uma vassoura como se
ele a estivesse conduzindo. Ela se entregou aos movimentos com uma ele-
gância ímpar, como se deixasse conduzir pelo parceiro ao ritmo de uma
trilha imaginária. Assim permaneceu pelo tempo que ele quis, e só saiu
Livro_semvestigios.indd 35 06.10.08 15:14:45
3�
TAÍS MORAiS
daquele estado quando o marido ordenou que voltasse ao normal, com
outra série de palavras.
A cena ficou gravada na mente do jovem de forma completa, e não como
um quebra-cabeças. A partir daquele momento ele decidiu conhecer tudo
sobre o inconsciente; um exercício que o acompanharia por toda a vida. Lia
tudo que lhe caísse nas mãos, e tratava de experimentar qualquer coisa que
tivesse a ver com o controle da mente, fosse por instrumentos pouco orto-
doxos, como a ioga, ou por duvidosas apresentações de mágicos dispostos a
provar que podiam usar a hipnose coletiva com absoluto sucesso. Aos pou-
cos foi aprendendo como funcionavam os processos de convencimento.
Descobriu que se conseguisse invadir o inconsciente de uma pessoa, ob-
teria dela o que quisesse, contudo, ao mesmo tempo, havia quem fosse mais
facilmente hipnotizável e não impunha barreiras para deixar-se persuadir.
Leu em algum estudo que cerca de dez por cento dos seres humanos, ao
contrário da maioria, são imunes à sugestão. Usaria esse arcabouço de co-
nhecimentos em sua vida profissional, mais tarde, para obter as mais terrí-
veis confissões. Com sucesso.
Livro_semvestigios.indd 36 06.10.08 15:14:45