sociologia & antropologia
volume 05 número 03 setembro –dezembro de 2015
quadrimestralissn 2236 – 7527
ppgsa programa de pós-graduação em sociologia e antropologia ufrj universidade federal do rio de janeiro, brasil
Conselho Editorial
Evaristo de Moraes Filho
(Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, Brasil)
Alain Quemin
(Université Paris 8, Saint-Denis, França)
Anete Ivo
(Universidade Federal da Bahia, Brasil)
Brasilio Sallum Junior
(Universidade de São Paulo,Brasil)
Carlo Severi
(École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França )
Charles Pessanha
(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Cristiana Bastos
(Universidade de Lisboa, Portugal)
Edna Maria Ramos de Castro
(Universidade Federal do Pará, Brasil)
Elide Rugai Bastos
(Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, Brasil)
Ernesto Renan Freitas Pinto
(Universidade Federal do Amazonas, Brasil)
Gabriel Cohn
(Universidade de São Paulo, Brasil)
Gilberto Velho (in memoriam)
(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Guenther Roth
(Columbia University, Nova York, Estados Unidos da América)
Helena Sumiko Hirata
(Centre National de la Recherche Scientifi que, Paris, França)
Heloísa Maria Murgel Starling
(Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil)
Huw Beynon
(Cardiff University, País de Gales, Reino Unido)
Irlys Barreira
(Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil)
João de Pina Cabral
(University of Kent, Reino Unido)
José Sergio Leite Lopes
(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
José Maurício Domingues
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro/IESP, Brasil)
José Vicente Tavares dos Santos
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil)
Josefa Salete Barbosa Cavalcanti
(Universidade Federal de Pernambuco, Brasil)
Leonilde Servolo de Medeiros
(Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil)
Lilia Moritz Schwarcz
(Universidade de São Paulo, Brasil)
Manuela Carneiro da Cunha
(University of Chicago, Illinois, Estados Unidos da América)
Mariza Peirano
(Universidade de Brasília, Distrito Federal, Brasil)
Maurizio Bach
(Universität Passau, Baviera, Alemanha)
Michèle Lamont
(Harvard University, Cambridge,
Massachusetts, Estados Unidos da América)
Patrícia Birman
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil)
Peter Fry
(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Philippe Descola
(Collège de France, Paris, França)
Renan Springer de Freitas
(Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil)
Ruben George Oliven
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil)
Sergio Adorno
(Universidade de São Paulo, Brasil)
Wanderley Guilherme dos Santos
(Academia Brasileira de Ciências e Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Assistente editorial
Maurício Hoelz Veiga Júnior
Secretário
Guilherme Marcondes
PRODUÇÃO EDITORIAL
Projeto gráfi co, capa e diagramação
a+a design e produção
Glória Affl alo e Helena Varella
Preparação e revisão de textos
Beth Cobra
ppgsa programa de Pós-Graduação em
sociologia&antropologia
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(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Maria Laura Cavalcanti (Editora Responsável)
André Botelho
Elina Pessanha
Comissão Editorial
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José Ricardo Ramalho
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Massachusetts, Estados Unidos da América)
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Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
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PRODUÇÃO EDITORIAL
Projeto gráfico, capa e diagramação
a+a design e produção
Glória Afflalo e Helena Varella
Preparação e revisão de textos
Beth Cobra
Com este novo número, ao completar seu quinto volume, Sociologia & Antropo-
logia reafirma a busca pelo aprimoramento do conhecimento socioantropoló-
gico em seus diversos campos temáticos e confirma sua vocação de fomento
à troca profícua entre as distintas tradições teóricas que configuram as disci-
plinas que a referenciam. O número abre com a entrevista, realizada por Cris-
tiane Lasmar e Cesar Gordon, com o antropólogo britânico Stephen Hugh-Jones,
cuja obra original se destaca no campo da etnologia indígena da Amazônia. A
originalidade e a densidade do pensamento de Hugh-Jones, por sinal, se reve-
lam plenamente em “A origem da noite: por que o Sol é chamado de ‘folha de
caraná’”, artigo no qual o autor descortina aspectos centrais da cosmologia
dos povos do noroeste amazônico com base em cuidadosa análise de um con-
junto de narrativas míticas sobre a origem da noite. Com “Space-time trans-
formations in the Upper Xingu and Upper Rio Negro”, Geraldo Andrello, Anto-
nio Guerreiro e Hugh-Jones delineiam as principais questões conceituais e
etnográficas oriundas das pesquisas empreendidas nessas duas relevantes
regiões da Amazônia. Mauro Almeida, em “Matemática concreta” examina de
modo instigante diferentes modalidades de escrita encontradas nos povos
amazônicos aproximando-as da lógica matemática. Junto com a entrevista, os
três artigos elucidam relevantes debates teóricos da etnologia contemporânea
e gostaríamos de agradecer a preciosa colaboração de Cesar Gordon, que ide-
alizou e acompanhou de perto essa realização.
Jorge Myers, em “Uma ‘Atlantic History’ avant la lettre. Transculturações
atlânticas e caribenhas em Fernando Ortiz”, realça o caráter pioneiro da obra
do intelectual cubano que já considerava o espaço geográfico e social do mun-
do Atlântico decisivo para a compreensão da história cubana e hispano-ame-
ricana. Com “Manuel Bonfim: autor esquecido ou fora do tempo?”, Lucia Lippi
Oliveira busca entender os momentos de esquecimento e de reconhecimento
do pensamento de Bonfim analisando tanto o conteúdo de suas principais
ideias como os variados contextos de recepção e difusão de sua obra. Neste
Maria Laura Cavalcanti, Elina Pessanha e André Botelho
APRESENTAÇÃO
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apresentação | maria laura cavalcanti, andré botelho e elina pessanha
ano em que se comemoram os 70 anos de morte de Mário de Andrade, um dos
expoentes do Modernismo brasileiro, o número traz também “Por uma política
da estética em Mário de Andrade: expressionismo e infância”, de Alejandra
Josiowicz, que examina imagens da infância em Mário de Andrade como um
lugar de conjunção de preocupações sociais e raciais, interesses etnográficos
e reflexões estéticas.
“The impact of nationality on the contemporary art market”, de Alain
Quemin, demonstra como a nacionalidade e o território afetam a fama artís-
tica e o mercado da arte contemporânea. “Profissionais criativos em ciências
e artes na cidade de Porto Alegre”, de Sandro Ruduit Garcia, discute as relações
entre criatividade e mercado na cidade de Porto Alegre (RS). Martín Hornes e
Mercedes Krause, por sua vez, analisam os significados e usos sociais do di-
nheiro em setores médios e populares da Área Metropolitana de Buenos Aires
na perspectiva dos estudos sociais da economia.
Juliana Portenoy Schlesinger, em “Denaturalizing culture: Sayed
Kashua’s newspaper columns on the topic of prejudice” examina as crônicas
do autor publicadas no jornal israelense Haaretz. O artigo investiga como o
cronista compreende o preconceito dos judeus contra os árabes e a maneira
surpreendente com que se expressam suas preocupações e soluções para o
problema.
“O corpo estendido de cegos: cognição, ambiente, acoplamentos”, de Oli-
via von der Weid, examina os pressupostos da noção de cognição formulada
em manuais de desenvolvimento e aprendizagem para crianças cegas. O en-
foque das práticas propostas, no entanto, faz emergir outra concepção de cog-
nição relacionada pela autora à experiência e à ação de um corpo inteiro – o
corpo estendido que abarca tanto o ambiente como os dispositivos utilizados
por pessoas cegas no seu cotidiano.
A seção Registros de Pesquisa traz “Por que chamar o século vinte de o
“século dos chefes?”, de Yves Cohen. O autor retoma e sintetiza aqui sua abor-
dagem do fenômeno do “culto ao chefe” que – tendo emergido em países situ-
ados em continentes diversos entre o final do século XIX e o século XX – ex-
pressaria um fenômeno político e simbólico revelador de uma nova maneira
de construir e de nomear o social.
O número se encerra com a resenha de Lucas Correia Carvalho sobre o
livro Sociologia no espelho. Ensaístas, cientistas sociais e críticos literários no Brasil
e na Argentina (1930-1970), de Luiz Carlos Jackson e Alejandro Blanco. Ao reto-
mar reflexivamente os principais argumentos dos autores, Carvalho sugere
também novos ângulos de leitura acerca dos sistemas intelectuais comparados.
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sociologia & antropologia
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UM ANTROPÓLOGO DA CIVILIZAÇÃO AMAZÔNICA:
ENTREVISTA COM STEPHEN HUGH-JONES
Cristiane Lasmar e Cesar Gordon
A ORIGEM DA NOITE E POR QUE O SOL É CHAMADO
DE “FOLHA DE CARANÁ”
Stephen Hugh-Jones
SPACE-TIME TRANSFORMATIONS IN THE UPPER
XINGU AND UPPER RIO NEGRO
Geraldo Andrello, Antonio Guerreiro e Stephen Hugh-Jones
MATEMÁTICA CONCRETA
Mauro W. B. Almeida
UMA “ATLANTIC HISTORY” AVANT LA LETTRE.
TRANSCULTURAÇÕES ATLÂNTICAS E CARIBENHAS
EM FERNANDO ORTIZ
Jorge Myers
MANUEL BONFIM: AUTOR ESQUECIDO OU
FORA DO TEMPO?
Lucia Lippi Oliveira
POR UMA POLÍTICA DA ESTÉTICA EM MÁRIO DE
ANDRADE: EXPRESSIONISMO E INFÂNCIA
Alejandra Josiowicz
REGISTROS DE PESQUISA
RESENHA
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THE IMPACT OF NATIONALITY ON THE
CONTEMPORARY ART MARKET
Alain Quemin
PROFISSIONAIS CRIATIVOS EM CIÊNCIAS E ARTES
NA CIDADE DE PORTO ALEGRE
Sandro Ruduit Garcia
SIGNIFICADOS E USOS DO DINHEIRO: SETORES
MÉDIOS E POPULARES DE BUENOS AIRES
Martín Hornes e Mercedes Krause
DENATURALIZING CULTURE: SAYED KASHUA’S
NEWSPAPER COLUMNS ON THE TOPIC OF PREJUDICE
Juliana Portenoy Schlesinger
O CORPO ESTENDIDO DE CEGOS: COGNIÇÃO,
AMBIENTE, ACOPLAMENTOS
Olivia von der Weid
POR QUE CHAMAR O SÉCULO VINTE DE O “SÉCULO
DOS CHEFES”?
Yves Cohen
SOBRE IDENTIDADES INTELECTUAIS E PRÁTICAS SOCIAIS
Sociologia no espelho. Ensaístas, cientistas sociais e críticos
literários no Brasil e na Argentina (1930-1970). (2014). Jackson,
Luiz Carlos & Blanco, Alejandro. São Paulo: Ed. 34, 264 p.
Lucas Correia Carvalho
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sociologia & antropologia
volume 05 number 03september – december 2015triannualissn 2236 – 7527
THE ANTHROPOLOGY OF AMAZONIAN CIVILIZATION:
AN INTERVIEW WITH STEPHEN HUGH-JONES
Cristiane Lasmar and Cesar Gordon
THE ORIGIN OF NIGHT: AND WHY THE SUN IS CALLED
“CARANÁ LEAF”
Stephen Hugh-Jones
SPACE-TIME TRANSFORMATIONS IN THE UPPER
XINGU AND UPPER RIO NEGRO
Geraldo Andrello, Antonio Guerreiro and Stephen Hugh-Jones
CONCRETE MATHEMATICS
Mauro W. B. Almeida
AN “ATLANTIC HISTORY” AVANT LA LETTRE.
ATLANTIC AND CARIBBEAN TRANSCULTURATIONS
IN FERNANDO ORTIZ
Jorge Myers
MANUEL BONFIM: A WRITER OUT OF MIND OR
OUT OF TIME?
Lucia Lippi Oliveira
TOWARDS A POLITICS OF AESTHETICS IN MÁRIO DE
ANDRADE: EXPRESSIONISM AND CHILDHOOD
Alejandra Josiowicz
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RESEARCH REGISTERS
REVIEW
THE IMPACT OF NATIONALITY ON THE
CONTEMPORARY ART MARKET
Alain Quemin
CREATIVE PROFESSIONALS IN THE SCIENCES AND
THE ARTS IN THE CITY OF PORTO ALEGRE, BRAZIL
Sandro Ruduit Garcia
MEANINGS AND USES OF MONEY: MIDDLE AND
WORKING CLASS SECTORS IN BUENOS AIRES
Martín Hornes and Mercedes Krause
DENATURALIZING CULTURE: SAYED KASHUA’S
NEWSPAPER COLUMNS ON THE TOPIC OF PREJUDICE
Juliana Portenoy Schlesinger
THE EXTENDED BODY OF BLIND PEOPLE: COGNITION,
ENVIRONMENT, LINKAGES
Olivia von der Weid
WHY SHOULD THE TWENTIETH CENTURY BE CALLED
THE “CENTURY OF CHIEFS”?
Yves Cohen
ON INTELLECTUAL IDENTITIES AND SOCIAL PRACTICES
Sociologia no espelho. Ensaístas, cientistas sociais e críticos
literários no Brasil e na Argentina (1930-1970). (2014). Jackson,
Luiz Carlos & Blanco, Alejandro. São Paulo: Ed. 34, 264 p.
Lucas Correia Carvalho
ARTIGOS
UM ANTROPÓLOGO DA CIVILIZAÇÃO AMAZÔNICA: ENTREVISTA COM STEPHEN HUGH-JONES
Cristiane LasmarI
Cesar GordonII
I Pesquisadora autônoma
II Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil
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É com muita satisfação e expectativa que apresentamos aos leitores esta
entrevista com Stephen Hugh-Jones, um dos mais interessantes e criativos
antropólogos da sua geração e um dos nomes mais importantes da etnologia
americanista. A satisfação se deve ao fato de que Hugh-Jones completa, neste
ano de 2015, seu 70º aniversário de uma vida dedicada à antropologia, em
particular aos povos indígenas da região do noroeste amazônico. A expectativa
é a de que a entrevista, juntamente com os três artigos que a sucedem, possa
ensejar novas apropriações e discussões de sua rica e variada obra, cuja rele-
vância não se limita ao círculo de especialistas em Amazônia, tendo alcance
antropológico geral.
A entrevista que se segue faz parte de uma série mais longa de conver-
sas com Hugh-Jones, iniciadas em Cambridge em 2009 e que prosseguiram em
outros encontros no País de Gales, na França e no Brasil, já em 2012. No total,
foram quase quatro horas de gravação, em que Hugh-Jones falou sempre com
o vigor e o entusiasmo de um iniciante. Uma primeira parte dessas conversas
foi publicada recentemente na R@U: Revista de Antropologia da UFSCar (volume
6, número 1, 2014) e versa sobre os anos de formação, a infância, o despertar
da vocação antropológica, as influências intelectuais, sua relação com seus
colegas britânicos e com Edmund Leach. Aqui, Hugh-Jones faz um balanço do
campo da etnologia indígena na Amazônia e do seu próprio trabalho em par-
ceria com Christine Hugh-Jones. Dialogando com alguns dos principais autores
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americanistas e melanesistas, enfatiza a necessidade de que os modelos antro-
pológicos de descrição dos povos ameríndios façam jus à complexa variedade
de suas formações sociais e cosmológicas.
Stephen Hugh-Jones nasceu a 20 de setembro de 1945 em Poole, cidade
portuária no litoral sul da Inglaterra. Em função do trabalho do pai, que era
médico, passou parte da infância na Jamaica, experiência que o marcou pro-
fundamente e contribuiu para despertar a vocação que, anos depois, o condu-
ziria à carreira em antropologia. O desejo de estudar os índios da América do
Sul foi responsável por um encontro fundamental: Edmund Leach, então pro-
fessor do King’s College de Cambridge, onde Hugh-Jones fez toda sua formação
acadêmica e posteriormente, professor e fellow, veio a lecionar. Sob orientação
de Leach, ele foi um dos primeiros antropólogos britânicos a estudar popu-
lações ameríndias, juntando-se a David Maybury-Lewis e Peter Rivière que o
antecederam de pouco, e Christine Hugh-Jones, sua mulher e companheira
inseparável de aventuras existenciais e intelectuais. Por intermédio de Lea-
ch, Hugh-Jones encontrou a segunda de suas grandes referências antropoló-
gicas: Claude Lévi-Strauss. As influências do estruturalismo lévi-straussiano
se notam desde o primeiro livro, The palm and the pleiades, publicado em 1979,
mesmo ano em que veio à luz From the milk river, de Christine, dois trabalhos
inovadores, e que se completam mutuamente, sobre organização social, ritual,
mitologia e o complexo simbolismo dos Barasana, da região do Rio Uaupés no
noroeste amazônico.
Apesar da grande dívida teórica para com o estruturalismo, o trabalho
de Hugh-Jones foi fruto também de uma inesgotável curiosidade empírica e
de uma notável abertura intelectual. Tudo isso resultou em uma antropologia
instigante e indisciplinada, que nunca se acomodou diante de teorias e mo-
delos analíticos consagrados. Pelas mesmas razões, Hugh-Jones esteve quase
sempre à frente dos principais debates antropológicos, inaugurando a inves-
tigação de muitos temas e abordagens que só posteriormente adentrariam
o mainstream da disciplina, principalmente no campo da etnologia indígena.
Entre eles, podemos mencionar os estudos sobre ritual; a atenção às diferentes
modalidades e lógicas do xamanismo; a questão da codificação mitológica das
relações entre índios e brancos; a circulação de dinheiro, consumo e trocas
comerciais interétnicas; a discussão sobre a aplicação e as implicações da
noção lévi-straussiana de casa (maison) e do rendimento da noção maussiana
de dádiva no contexto indígena sul-americano; a análise simbólica dos objetos
e da cultura material na vida indígena; a descrição sofisticada dos sistemas
onomásticos.
Agora septuagenário, Hugh-Jones está oficialmente aposentado e vive
com Christine em uma agradável casa de campo no interior do País de Ga-
les. Engana-se, porém, quem o imaginar inativo. Com extraordinária energia,
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cristiane lasmar e cesar gordon | entrevista com stephen hugh-jones
mantém plena atividade física e intelectual, escrevendo, proferindo palestras
e voltando regularmente ao campo na Amazônia, onde continua a lidar com
temas atuais e caros aos índios, além de se engajar em seus projetos políticos
e culturais.
Os três artigos inéditos que se sucedem revigoraram e avançam muitos
dos debates teóricos da etnologia contemporânea que interessam às ciências
sociais como um todo. No primeiro deles Hugh-Jones aborda a complexidade
recursiva da cosmologia do noroeste amazônico por meio da análise de um
conjunto de mitos sobre a origem da noite. No segundo, Geraldo Andrello,
Antonio Guerreiro e Hugh-Jones delineiam questões e implicações teóricas
e etnográficas que emergem da comparação entre duas importantes regiões
amazônicas: o alto Rio Negro e o alto Xingu. Finalmente, Mauro W. B. Almeida,
que teve a oportunidade de ser orientado por Hugh-Jones em Cambridge, ins-
pirado por seu professor e colega, parte de diferentes modalidades de escrita
para discutir a pertinência de se falar em matemática indígena.
Assim, esperamos que, em seu conjunto, entrevista e artigos possam
dar aos leitores uma boa amostra do trabalho de Hugh-Jones, convidando a
novos e futuros diálogos.
Cristiane Lasmar. Agora que conhecemos as origens de seus interesses an-
tropológicos, sua formação e trajetória acadêmica, gostaríamos de enfocar
questões etnográficas e teóricas da etnologia ameríndia, sua grande paixão
intelectual. Voltemos então aos índios amazônicos, mais especificamente aos
índios do Rio Uaupés e da região do alto Rio Negro. Podemos dizer que eles
ocupam uma posição específica na paisagem amazônica. Você já havia ob-
servado que a mitologia dos índios do Uaupés apresentava alguns problemas
para o grande empreendimento de análise que Lévi-Strauss realizou, e por isso
mesmo acabaram não tendo espaço em nenhum dos volumes das Mitológicas.
Como você vê essa especificidade, e quais seriam as consequências teóricas
disso no campo dos estudos ameríndios?
Stephen Hugh-Jones. Quando eu e Christine Hugh-Jones voltamos de nossa
primeira estada no campo entre os Barasana da região do Uaupés colombiano,
em 1971, participamos de seminários nos quais tivemos oportunidade de apre-
sentar a audiências britânicas parte de nosso trabalho. A resposta de alguns
estudiosos que nunca haviam tido experiência com índios amazônicos foi de
ceticismo. Disseram que tudo aquilo que relatávamos parecia uma invenção
muito inteligente, mas dos antropólogos e não dos índios. Essa era, aliás, uma
crítica que se fazia ao estruturalismo, uma das maiores críticas a Lévi-Strauss,
muito em conformidade com a tradição empirista britânica. Sua obra seria um
grande puzzle intelectual que o antropólogo jogava com a vida e o pensamento
de outros povos. Nesse tom, a crítica ao nosso trabalho, meu e de Christine,
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era a de que caíramos em uma espécie de abstratismo, ou seja, os críticos
sugeriam que nenhum índio nos havia dito nada daquilo, e que nós havíamos
juntado pequenas peças de informação para criar sistemas intelectuais e lógi-
cos um tanto inverossímeis. Vejam, porém, que ironia, quando recentemente
estive no Pirá-Paraná para a elaboração de um filme, fiquei encantado ao ver
um diagrama feito por um xamã barasana para ser usado em um programa de
etnoeducação. Esse desenho era fundamentalmente um sumário diagramáti-
co de tudo o que eu e Christine havíamos descrito em nossos livros décadas
atrás! (Hugh-Jones, C., 1979; Hugh-Jones, S., 1979). O que estou dizendo é que
aquilo que nossa audiência supunha ser uma construção artificial nossa (in-
fluenciados por Lévi-Strauss), sempre foi, e ainda é, absolutamente explícito
e consciente nas representações elaboradas pelos próprios índios do Uaupés.
C.L. Sim, isso demonstra a coerência entre a abordagem estruturalista e o
simbolismo e a cosmologia dos índios da família tukano oriental. Mas o que
dizer de certas características etnográficas da região do noroeste amazônico e
do Uaupés que, a princípio, parecem destoar de boa parte das descrições que
os antropólogos fizeram de outros povos indígenas em outras regiões amazô-
nicas?
S.H-J. É curioso que, até bem recentemente, eu me sentia numa posição um
tanto peculiar em relação a alguns de meus colegas etnólogos amazonistas.
Não que eles, diferentemente das nossas primeiras audiências britânicas, desa-
creditassem do que eu e Christine escrevemos sobre os índios do Uaupés; mas
parecia haver um certo consenso americanista segundo o qual era possível
fazer generalizações sobre os povos indígenas da Amazônia, ao passo que o
Uaupés seria uma espécie de exceção discrepante. Por exemplo, Philippe Des-
cola (2001) argumentou, não faz muito tempo, que não há na Amazônia o que
ele chama de heterossubstituição. Isso quer dizer que, apesar de encontrarmos
trocas de humanos por humanos ou de objetos por objetos – homossubstitui-
ção –, não podemos encontrar, na região amazônica, trocas em que humanos
podem ser substituídos por objetos ou animais – como no caso do preço da
noiva na Nova Guiné.1 A certa altura, Descola menciona o Uaupés como uma
região em que esse tipo de troca ocorre, mas sugere que não se trata de algo
muito explícito, aparecendo somente nas interpretações elaboradas que os
antropólogos fazem do discurso simbólico indígena. Eis um exemplo de alguém
expressando certa dúvida sobre o que descrevemos para o contexto do Uaupés.
Na verdade, essas ideias são explicitamente formuladas pelos índios, como se
pode ver em meu artigo sobre os objetos (Hugh-Jones, 2009).
Cesar Gordon. Apesar de todos os avanços nas pesquisas de antropologia ame-
ríndia, parece, então, difícil escapar a uma visão das sociedades amazônicas
como coletivos frouxamente estruturados, nos quais a diferenciação interna é
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cristiane lasmar e cesar gordon | entrevista com stephen hugh-jones
pouco marcada, há baixa produtividade sociológica dos objetos, não há riqueza
e, portanto, a noção de troca maussiana não se aplica.
S.H-J. Todo antropólogo tem como primeiro ponto de referência sua própria
sociedade e como segundo ponto de referência a sociedade que estuda. O que
vim a perceber é que, olhando, por exemplo, os trabalhos de Eduardo Viveiros
de Castro, de um lado, e os trabalhos de Joanna Overing e seus alunos, de outro,
embora saibamos que eles estão, em larga medida, em posições opostas, ambos
não deixam de ter um ponto de vista comum. Eles constroem suas generaliza-
ções sobre a Amazônia de uma mesma perspectiva, que é a de sociedades de
pequena escala, cognáticas, idealmente endógamas, que se constituem a partir
de um exterior dramático. Para Joanna Overing, esse exterior é um perigo que
se busca evitar, e para Eduardo Viveiros de Castro é uma extensão última do
socius. E neste último caso a predação é a forma prototípica da relação social
e não a produção do parentesco, como o é para Joanna Overing. Fato é, porém,
que os dois modelos partem do mesmo ponto, do mesmo perfil de sociedade
amazônica em que a segmentação ou estruturação interna é pouco relevante.
Em sua introdução a The anthropology of love and anger, por exemplo, Joanna
Overing (Overing & Passes, 2000) afirma que os índios amazônicos são iguali-
tários, não possuem riquezas. E então, quando observamos o Uaupés, nos per-
guntamos: igualitários? Ao contrário: eles são radicalmente hierárquicos, são
obcecados por hierarquia! Não têm riqueza? Vejam-se por exemplo os livros da
Coleção Narradores Indígenas,2 em que os índios traduzem consistentemente
por “riqueza” a palavra da língua barasana gaheuni ou sua variante em língua
tukano, apehuni. Note-se que se trata de conceito equivalente ao de nekrets
dos Kayapó e Xikrin (ver Lea, 1986). Ora, os índios não têm a menor dúvida
de que possuem riqueza! Então, Viveiros de Castro me parece correto quando
afirma que as relações com o exterior devem ser incluídas como parte de nos-
sas análises sociológicas. Não posso, entretanto, concordar com o fato de que
canibalismo e predação – mesmo em nível muito metafórico – sejam o que há
de mais operativo no Uaupés. Se lançamos os olhos para mitologia associada
às trocas cerimoniais – os charter-myths, como diria Malinowski (1954) – há uma
narrativa sobre canibalismo, em que a troca cerimonial falha. O mais impor-
tante charter-myth, no entanto, versa sobre as relações de afinidade entre um
sogro e um genro. O sogro ameaça comer o genro, que argumenta: “não faça
isso, eu vou trazer para você carne de animal”. O que significa “vou trazer o
meu próprio corpo, a carne da minha própria gente e oferecer cerimonialmente
a você”. E o sogro, que é um Peixe-Sucuri (fish-anaconda), isto é, o dono, mestre,
ou “pai” dos peixes, diz: “se é assim, em troca vou oferecer a você peixe”. O
que está acontecendo aqui, portanto, é o inverso do canibalismo. É muito mais
como um sacrifício. O ancestral dos Barasana oferece animais que são parte de
si mesmo, de seu corpo, de sua substância, para o Peixe-Sucuri, e este último,
em troca, lhe oferece peixe. Apesar da dimensão sacrificial, essa é a lógica da
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troca-dom e não aquela do canibalismo. Isso é exatamente o que Marylin Stra-
thern quer mostrar ao dizer que, quando uma pessoa na Nova Guiné dá sua ir-
mã em casamento, ela está dando uma parte de si. Essa mulher é um dom, ela
permanece sendo parte de seu irmão, de seu pai, daqueles que a ofereceram.
C.L. Trata-se, então, de um cenário amazônico em que há objetos, riquezas e
trocas do tipo dom?
S.H-J. Do meu ponto de vista, parecem equivocadas tanto as generalizações
sobre as sociedades amazônicas que as retratam como sociedades igualitárias,
endógamas, cognáticas, amistosas, não violentas, quanto as que as caracte-
rizam pelo canibalismo e pela predação. Mas não acho que isso seja simples-
mente uma questão de dizer “minha etnografia não bate com a sua etnografia”.
Esse tipo de observação não é interessante, porque é evidente que existe enor-
me variedade etnográfica na Amazônia. Uma das coisas que meu trabalho mos-
tra é precisamente essa variedade. E ela não diz respeito somente aos Tukano
orientais, é verdadeira também para os povos de língua jê e os Xinguano. Mas,
sobretudo, tenho a impressão de que Lévi-Strauss estava certo quando disse
que não analisaria a mitologia dos Tukano orientais por se tratar de remanes-
centes de uma civilização amazônica.
C.G. De fato, Lévi-Strauss mais de uma vez aventou a hipótese de que a si-
tuação contemporânea dos povos ameríndios era resultado de um processo
de fragmentação de civilizações mais antigas e complexas que talvez tenha
ocorrido em épocas pré-colombianas.
S.H-J. Vou dizer como vejo o estado da etnografia amazônica atualmente.
Imagine que você está estudando as ilhas britânicas depois de uma guerra
nuclear, depois de uma bomba cair em Londres. Então você vai fazer etno-
grafia na Escócia, no País de Gales, na Cornualha, ou seja, em lugares vazios,
selvagens e periféricos. Você certamente não terá uma ideia muito clara do
que foi a civilização britânica, estudando pessoas das terras altas da Escócia
e do País de Gales. Acho que as generalizações sobre a Amazônia não levam
em consideração a história. Pensemos na cerâmica marajoara e de Santarém. É
óbvio que aquela cerâmica é produto de uma divisão especializada do trabalho,
de sociedades estratificadas e que foram capazes de manter diferenciações
sofisticadas. Eu suspeito – não tenho qualquer prova, mas tenho uma intui-
ção – de que algumas características das sociedades do noroeste amazônico
podem fazer-nos vislumbrar o que eram essas outras sociedades amazônicas
no passado. Esses grandes temas sempre estiveram subjacentes ao meu tra-
balho, por exemplo, quando escrevi sobre sociedades de casa (Hugh-Jones &
Carsten, 1995) e sobre cultura material. Se pretendemos entender a Amazônia
como fenômeno histórico complexo, temos que levar essas questões a sério.
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cristiane lasmar e cesar gordon | entrevista com stephen hugh-jones
Por isso estou muito interessado em buscar as diferenças e similaridades entre
os casos dos Jê do Brasil central e dos Tukano orientais do noroeste amazônico,
porque nenhum dos dois se encaixa no modelo-padrão amazônico. Do mesmo
modo que o alto Xingu não se encaixa. Em última análise, uma vasta área, que
inclui um grande número de populações indígenas, não se deixa enquadrar
pela visão dominante, por assim dizer.
C.L. Seria útil então trazer o conceito de civilização para os estudos sobre a
Amazônia?
S.H-J. Sim e por várias razões. Primeiro porque funcionaria como um corretivo
para algumas distorções. Não apenas em alguns círculos antropológicos, mas
principalmente no senso comum, a imagem da Amazônia sempre foi tributária
de duas vertentes: de um lado, a vertente rousseauniana; de outro, a verten-
te hobbesiana. O trabalho de Napoleon Chagnon (1968, 1992) sobre os Yano-
mami, por exemplo, está no lado hobbesiano. Os grupos amazônicos seriam
guerreiros selvagens, temerários e perigosos. Mesmo pelo lado rousseuniano,
entretanto, em que se situa, por exemplo, o trabalho de Joanna Overing, que
os retrata pacíficos e gentis, eles ainda são vistos como povos muito pouco
sofisticados: não têm riqueza, não têm hierarquia, não têm troca-dom. São
sociedades simples. Essas imagens dos índios amazônicos como sociedades
simples, puras, não contaminadas tornam oportuna a noção de civilização. Se
falamos em civilização inca ou civilização asteca, podemos perfeitamente falar
em civilização amazônica.
C.L. Isso é mais ou menos o que Carlos Fausto, Michael Heckenberger e outros
sugerem, em coautoria, sobre o alto Xingu (Heckenberger et al., 2008).
S.H-J. Exatamente. Gosto muito desse artigo e acho muito interessante a com-
binação de arqueologia e antropologia que vem caracterizando o trabalho deles.
No noroeste amazônico encontramos um amplo conjunto de povos – estamos
falando a respeito dos Tukano orientais, dos Baniwa, de outros Aruak como
os Yukuna, Matapi e até os Witoto e os Tikuna –, que se diferenciam muito do
modelo-padrão amazônico. São povos que, de um modo ou de outro, possuem
linhagens, tradições intelectuais e sacerdotais elaboradas, formulações explí-
citas de hierarquia, arquitetura complexa. Esta é uma Amazônia bem diferente
daquela que serviu de inspiração ao modelo de que vimos falando.
C.G. Como você entende essa diferença entre o modelo minimalista e esse
modelo mais complexo do noroeste amazônico, do Brasil central e alto Xingu?
Ela se deve a percursos históricos distintos ou se trata de diferenças “culturais”,
quero dizer, formas diferentes de ser indígena? A história dos grupos que es-
tavam sofrendo mais diretamente o impacto da conquista pode explicar essa
diferença? Ou ela se explica por outros fatores, digamos, internos?
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S.H-J. Há dois processos em questão. Um deles é histórico. Creio que se alguém
fosse ao alto ou ao médio Rio Negro em 1300, veria um sistema social muito
mais complexo do que o de hoje. Os Tukano, os Baré, os Baniwa, e também
aqueles grupos que desapareceram, como os Manao, passaram por um processo
de desgaste nas mãos dos colonizadores, assim como os grupos tupi e os Carib
das Guianas. Acho que é uma ilusão imaginar que os Piaroa ou os Trio de hoje
são os mesmos de 500 anos atrás. Estou certo de que eles possuíam sistemas
comerciais mais complicados, e as pesquisas históricas e etno-históricas vêm
comprovando isso. Eu diria que os Piaroa tendiam a ser mais como os Tukano,
com o complexo do Jurupari, flautas etc. Se lemos os primeiros trabalhos de
Joanna Overing (1972, 1975) fica evidente que há até mesmo como falar em hie-
rarquia. De modo que a história é um fator de influência considerável. Por ou-
tro lado, creio que podemos, sim, falar em estilos radicalmente diferentes, que
operam de maneira independente da história. Não importam as razões, sejam
elas ecológicas ou resultantes de uma combinação mais complexa de fatores, há
alguma coisa diferente sobre os Xinguano, os Jê e os Tukano em relação a povos
como os Araweté, por exemplo. Vejamos os Tupinambá antigos: é perfeitamente
possível manter grandes populações e grandes aldeias sem ter o tipo de organi-
zação social do noroeste da Amazônia. Você não precisa de hierarquia e de um
sistema de especialização do trabalho para sustentar grandes populações. Há
evidências históricas e arqueológicas de grandes aldeias dos Jê há 200 anos, mas
elas certamente não estavam organizadas da mesma forma que as aldeias dos
Tukano. E não há muitos indícios de grandes aldeias tukano no passado, embo-
ra haja alguns. Os próprios Tukano ainda hoje falam da existência pretérita de
conjuntos nucleados unindo várias malocas, mas não se sabe ao certo.
C.G. Há ainda todo um programa de pesquisa em aberto.
S.H-J. Essas questões são relevantes para o nosso entendimento da história
cultural da Amazônia, e acho um tanto irônico que, no momento em que nos
tornamos capazes de respondê-las, elas fiquem fora de moda para o resto da
antropologia. Isso é lamentável. Se observarmos a história da pesquisa etnográ-
fica na Melanésia, veremos que foi precisamente nos últimos 20 ou 30 anos que
se começou a reunir uma grande massa de conhecimento. Refiro-me não só ao
trabalho de Marylin Strathern (1988), iniciado com The gender of the gift. Há uma
série de estudos comparativos que buscam sintetizar a etnografia melanésia, o
que a meu ver é muito interessante, porque tais trabalhos nos ajudam a refletir
sobre o própria natureza da comparação. Infelizmente, o que aconteceu em
relação à Amazônia foi que o debate antropológico se deslocou precisamente
no momento em que poderíamos dizer que a Amazônia está hoje longe de ser o
continente menos conhecido, como foi dito nos anos 1960. Hoje estamos numa
posição de fazer sínteses, mas a antropologia, de um modo geral, não tem inte-
resse nos índios amazônicos.
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C.L. Aproveitando o gancho, vamos passar a outro nível de comparação. No
artigo “The gender of some Amazonian gifts” (Hugh-Jones, 2001) você desenvol-
ve um experimento que denominou “troca conceitual inter-regional”. Ali você
tenta aplicar na análise dos rituais secretos masculinos no noroeste amazô-
nico a abordagem relacional de gênero desenvolvida por Marylin Strathern no
livro que acabamos de mencionar. Esse artigo foi escrito no contexto de um
projeto de comparação inter-regional que envolvia pesquisadores da Amazônia
e da Melanésia. Como você avalia os resultados desse esforço, no seu próprio
trabalho e em geral?
S.H-J. Vou começar minha resposta relatando uma experiência que tive como
estudante de graduação. Certa vez, perguntei a Esther Goody – ex-esposa de
Jack Goody – por que deveríamos estudar feitiçaria, mas não xamanismo, já
que me parecia que feitiçaria e xamanismo eram na verdade versões da mesma
coisa. A resposta dela foi: “Stephen, feitiçaria é uma instituição social, xama-
nismo é algo que aparece somente em áreas etnográficas específicas, como
a Amazônia”. Essa distinção feita por Esther Goody ficou gravada em minha
mente. Penso que parte do problema da antropologia amazônica é que muitos
antropólogos não americanistas sempre a trataram como Esther Goody, isto é,
como uma província exótica e atrasada, e não como parte da corrente principal
da antropologia. Por outro lado, acho também que, com algumas exceções, os
próprios antropólogos que estudam os povos indígenas da Amazônia também
a tratam dessa forma ou, pelo menos, insistem muito nas especificidades in-
contornáveis do mundo ameríndio. Parece simpático, mas com isso acabam
cavando a própria sepultura, por assim dizer. Eis uma das razões pelas quais
eu fico ressabiado quando autores como Philippe Descola, Eduardo Viveiros
de Castro e Joanna Overing afirmam categoricamente que não há dádiva na
Amazônia, ou que as sociedades amazônicas são sociedades de brideservice e
não de bridewealth. Esse é um tipo de categorização tipológica reducionista e
que pode levar a antropologia da Amazônia a um isolamento, a uma espécie
de gueto. Talvez essa minha tendência se deva ao fato de eu ter sido aluno de
Leach e de ter sido exposto à realidade do noroeste amazônico.
C.L. Uma curiosidade: por que, precisamente, você foi fazer os estudos de
pós-graduação com Leach e não com Peter Rivière, que era um especialista
da área?
S.H-J. Na verdade, quando me formei, eu tentei ir para Oxford a fim de estudar
com Peter Rivière, justamente porque meu objetivo era me tornar um especia-
lista em Amazônia. Mas, felizmente, quando fui entrevistado em Oxford por
Godfrey Lienhardt e por um historiador da América Latina chamado Raymond
Carr, eles me disseram: “Nós não gostamos do seu projeto de estudar os índios
da Amazônia. Estaríamos mais interessados se você quisesse estudar os povos
das terras altas sul-americanas. Os índios amazônicos não são interessantes.
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Trata-se de uma digressão romântica e irrelevante”. E eu então retruquei a Lie-
nhardt, que fizera suas pesquisas de campo com os Dinka do Sudão: “Diga-me
qual é a relevância dos Dinka para a política contemporânea séria?” Claro que,
depois desse diálogo, eu não fui selecionado. Mas o episódio ilustra perfeita-
mente essa visão dos índios amazônicos a que há pouco me referi.
C.L. Você disse “felizmente”?
S.H-J. De certa forma foi um golpe de sorte ter a candidatura recusada em
Oxford. Não por causa de Rivière, que certamente teria sido um ótimo orien-
tador. Porém, a orientação de Edmund Leach foi muito importante na minha
trajetória. Quando eu e Christine estávamos escrevendo nossas teses, Leach
nos recomendava a todo momento: “Eu não me importo com o que dizem os
especialistas em Amazônia, isto é bobagem, vocês têm é que ser convincentes”.
Nós precisávamos convencê-lo o tempo todo. E, além disso, tivemos a oportu-
nidade de manter contato com Peter Rivière e com outros colegas amazonistas.
Ganhamos dos dois lados.
C.G. Você tem insistido na vinculação da etnologia indígena amazonista ao
corpo mais geral dos debates antropológicos. E hoje parece que, de fato, o cha-
mado “americanismo das terras baixas” não se encontra tão isolado e começa
a chamar a atenção da antropologia geral. As tentativas de comparação com a
Melanésia, voltando à pergunta, não seriam um exemplo disso?
S.H-J. Se olharmos para a história da antropologia, veremos que as teorias
têm origem regional. A África nos dá o estrutural-funcionalismo, as teorias das
linhagens, a teoria da descendência, além de todo um vocabulário: feitiçaria,
bridewealth etc. Os melanésios nos deram todo o vocabulário da troca e da re-
ciprocidade que tem sido útil para repensar a própria teoria da descendência.
Quanto à Amazônia, temos, ou até bem recentemente tivemos apenas Lévi-
-Strauss, forjando uma linguagem estruturalista própria a partir do universo
mitológico indígena. Agora temos também Viveiros de Castro e Descola, por
exemplo. Mas tanto por razões teóricas quanto, talvez, pela especificidade do
caso do noroeste amazônico, sempre foi claro para mim que a antropologia
amazônica tinha que representar uma contribuição para a teoria antropoló-
gica como um todo e também estar sempre aberta à teoria antropológica ge-
ral. E foi isso o que tentei fazer no experimento sobre o gênero da dádiva na
Amazônia. Embora eu não tenha explicitado isso no texto, ali eu estava me
dirigindo a Viveiros de Castro, Descola e Joanna Overing quando afirmam não
haver dádiva na Amazônia. Tentei mostrar que, ao contrário, podemos pensar
certos fatos etnográficos do noroeste amazônico a partir da teoria do dom.
Nesse sentido, a Melanésia coloca questões importantes para nós: o que faz
com que a região seja de alguma forma tão parecida com a Amazônia e, ain-
da assim, tão curiosamente diferente? É muito interessante observar que a
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mitologia do noroeste amazônico associada ao complexo do Jurupari é quase
idêntica à mitologia das terras altas da Nova Guiné publicada por autores co-
mo Gillian Gillison (1993). Ou tomamos isso como evidência da reminiscência
de um pensamento religioso paleolítico – pois sabemos que, se houve difusão,
ela se deu há muito tempo –, ou imaginamos que as mesmas ideias brotaram
espontaneamente nos dois lugares, como sugere Lévi-Strauss quando afirma
que num nível profundo todos estão pensando do mesmo modo. Essa questão
em si, para mim, já é muito interessante.
C.G. E essas questões motivaram outras reflexões que você empreendeu, como,
por exemplo, a discussão sobre os objetos?
S.H-J. Embora eu não tivesse chegado ainda nesse estágio de minha reflexão
quando comecei a trabalhar com o tema, já me incomodava a ideia genera-
lizada de que a Amazônia era um universo pobre em termos de objetos, de
que não há representação artística de figuras humanas, ao contrário de certas
partes da Melanésia e da África em que há gravura e escultura. Assim como a
ideia de que, na Amazônia, não há domesticação de animais nem bridewealth.
Minha experiência com os índios do noroeste amazônico não corroborava essa
visão. Não se trata de um universo pobre de objetos; na verdade as pessoas
se esmeram na criação de objetos muito delicados e há evidências de que no
passado faziam objetos ainda mais sofisticados. Por razões etnográficas e tam-
bém teóricas, portanto, estive interessado em dialogar com Marylin Strathern.
C.L. Aqui temos um ponto interessante, porque o trabalho de Strathern não
enfoca simplesmente o problema da dádiva. Como você bem disse, esse é o
tema clássico da etnografia melanésia. A diferença do trabalho de Strathern
é que ela interpôs a questão de gênero na problemática da dádiva. Essa não
seria mais uma razão para aproximar a Melanésia do noroeste amazônico,
onde, sabemos, a questão de gênero é sociológica e simbolicamente relevante?
S.H-J. Certamente. No artigo que mencionamos há pouco, publicado na co-
letânea Gender in Amazonia and Melanesia, Philippe Descola também afirma
que a distinção de gênero não é muito importante na Amazônia, porque ela é
eclipsada ou abrangida por distinções mais globais como afim/consanguíneo,
estrangeiro/local etc. Ora, novamente, essa distinção talvez não seja impor-
tante em outras partes da Amazônia, mas ninguém pode nem sequer conceber
que ela não seja importante no noroeste amazônico. A experiência etnográfica
cotidiana de viver em uma maloca que possui uma porta dos homens e uma
porta das mulheres não deixa nenhuma dúvida quanto ao caráter operativo
da distinção de gênero ali. Fato é que os Tukano orientais explicitam certas
operações estruturais que outros povos podem não explicitar. Quando eu esta-
va escrevendo meu livro, havia duas coisas de que eu desconfiava fortemente,
mas não tinha coragem de afirmar com todas as letras. Uma delas era que a
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personagem mítica Romi Kumu, uma mulher-xamã, era a mesma pessoa que
Sucuri-Maniva ou Jurupari (manioc stick anaconda). Em se tratando, porém, de
sociedade tão fortemente marcada pelo gênero, parecia um absurdo dizer que
Jurupari, a quintessência do masculino, era a mesma pessoa que Romi Ku-
mu, a quintessência do feminino. Eu já havia percebido que Romi Kumu era
de certa forma uma figura andrógina, o próprio fato de ela ser chamada de
mulher-xamã era um forte indicativo dessa possibilidade, já que xamãs são
tradicionalmente do sexo masculino. Os próprios índios sugeriam, de vários
modos, que se tratava de uma personagem andrógina. Então, um dia, em 1979,
quando eu conversava com Pasico, o kumu que me ensinou tudo o que sei e
que se tornou amigo, ele me disse: “Stephen, você sabia que Romi Kumu é um
homem?” E eu disse “O quê? Eu sempre pensei isso, mas nunca tive coragem
de dizer”. E ele respondeu: “Eu tenho coragem de dizer”.
Essa experiência levou-me à compreensão de que era uma ingenuidade
achar que homens eram homens e mulheres eram mulheres. E, então, eu li Ma-
rylin Strathern que afirmava poderem, na teoria melanésia do gênero, homens
e mulheres ser do sexo masculino ou feminino. Esse tipo de pensamento se
adaptava muito bem a meu próprio material, e foi por isso, também, que resol-
vi escrever aquele artigo. Há muito tempo eu me interessava pela etnografia
melanésia e pelas possibilidades de comparação com o noroeste amazônico,
principalmente no que dizia respeito ao complexo do Jurupari. O interesse pela
Melanésia precipitou de alguma forma o desenvolvimento de minha reflexão
sobre gênero. Mas, por outro lado, eu também havia sido formado na teoria
da troca e sempre desconfiei de que havia algo que não se encaixava bem na
teoria amazônica dominante.
C.L. Você encarou dois grandes desafios: digerir Mitológicas, de Lévi-Strauss, e,
anos depois, o livro de Marylin Strathern, que não é fácil.
S.H-J. Eu já havia tentado ler The gender of the gift várias vezes e simplesmente
não havia conseguido compreender uma só palavra. Então, quando fui chama-
do a participar da conferência que deu origem à coletânea, decidi que dessa
vez iria ler com afinco. Levei dois meses para ler o livro e no final percebi o que
ela estava tentando fazer. Entendi o modo como Marylin Strathern compara
as partes leste e oeste das terras altas da Nova Guiné – a primeira com seus
cultos secretos masculinos, e a segunda com suas trocas cerimoniais, e como
as duas formas são transformações uma da outra. Eu estava trabalhando com
uma sociedade que possui tanto rituais secretos masculinos quanto trocas
cerimoniais. Então escrevi o artigo como um tributo a Marylin Strathern, como
uma forma de dizer que valeu a pena passar todo um verão lendo o seu livro.
Foi uma verdadeira revelação. Escrevi outros artigos, especialmente “Brideser-
vice and the absent gift” (Hugh-Jones, 2013), em que confronto muitos de meus
colegas amazonistas pelo fato de eles pensarem de modo tipológico e adota-
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rem o axioma de que os índios da Amazônia são sociedades de brideservice,
como sugeriu Eduardo Viveiros de Castro (1993) em seus primeiros trabalhos
sobre o dravidianato amazônico. É exatamente o que Joanna Overing também
faz. Há vários erros nessa premissa. Um deles é imaginar que todos os índios
da Amazônia são iguais; o segundo é o de pensar que se trata de um mundo
muito pobre, em que, se você é uma coisa, não pode ser outra. Esse tipo de
classificação não pode dar conta da enorme variação nos padrões de casa-
mento existentes, por exemplo, no noroeste amazônico. O tipo mais trivial e
politicamente menos interessante de casamento é o casamento relativamente
endógamo de primos cruzados. O casamento politicamente mais interessante
é o casamento distante, entre grupos que ocupam posições altas na hierarquia
regional. Se você é um homem poderoso, tentará fazer uma aliança política
estratégica com alguém que está distante. Portanto, dependendo de quem você
seja e de quais sejam suas circunstâncias políticas, você realiza um casamento
exógamo, relativamente exógamo ou relativamente endógamo. Só os homens
de baixo status cumprirão o serviço da noiva no noroeste amazônico. Só um
homem que está desesperado por uma mulher. Nenhum homem de mínimo
valor cogitaria fazer serviço da noiva. Portanto, descrever os Tukano orientais
como sociedades de serviço da noiva é uma bobagem completa.
C.G. A propósito, você acha que o fato de ter sido orientado por Leach potenciali-
zou sua capacidade de perceber essa flutuação dinâmica no nível interno de uma
sociedade? Ou seja, há diferentes regimes que coexistem e se alternam. Godelier,
evocado por Descola no artigo que comentamos, demonstra algo equivalente en-
tre os Baruya da terras altas da Nova Guiné, que conjugam dois regimes de troca.
S.H-J. Sim, ao escrever esses artigos, eu tinha em mente a ideia de que é
perfeitamente possível haver tendências contraditórias dentro da mesma so-
ciedade ou dentro do mesmo sistema social, tal como a variação gumsa/gumlao
tão bem descrita por Leach em Political systems of Highland Burma. Estou cien-
te de que não fiz muito trabalho comparativo, mas há várias possibilidades.
Tome-se, por exemplo, Marriage among the Trio, de Peter Rivière. É evidente que,
embora o ideal de casamento guianês seja endogâmico, na verdade há homens
de prestígio realizando casamentos exógamos. E o fato de haver sobreposição
dos termos para cunhado e parceiro comercial deixa muito claro que temos os
dois tipos de processo funcionando ao mesmo tempo. A percepção crucial que
levou Eduardo Viveiros de Castro ao desenvolvimento de suas reflexões tanto
sobre a alteridade potencial quanto sobre o perspectivismo é a de que aquilo
que as gerações anteriores de etnólogos viam em termos de oposições biná-
rias ou diametrais precisava, de fato, ser disposto em escala de proximidade e
distância, isto é, gradualmente. Havia, portanto, uma duplicidade de códigos
em torno do mesmo fenômeno do parentesco: uma chave diametral e outra
chave concêntrica. E elas podem ser acionadas alternadamente.
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C.G. O próprio Lévi-Strauss (1956), décadas atrás, havia percebido a alternân-
cia entre dualismo diametral, dualismo concêntrico e ternarismo nas socieda-
des dos Jê e dos Bororo, e evocava uma analogia com a Melanésia, justamente
em termos de diferenças de gênero!
S.H-J. As estruturas são dinâmicas e, de certa forma, manipuláveis e abertas
à história. Em algum lugar, Eduardo Viveiros de Castro escreveu uma nota de
rodapé provocativa afirmando que as unidades sociais concretas, on the ground,
são produto da história. Mas o curioso é que não há muita história em suas
reflexões. Há muita estrutura e pouca história. Não que isso seja um defeito,
mas é preciso analisar os fenômenos em vários níveis.
C.G. Por falar em dinamismo, você tem sido sempre um tipo de intelectual
dinâmico, que nunca se acomoda com uma teoria ou um modelo. Em suas
pesquisas, há sempre a possibilidade de novas abordagens. Além do diálogo
com Marilyn Strathern, temos, por exemplo, sua aplicação da noção de casa,
de Lévi-Strauss, no contexto do Uaupés. Você ficou satisfeito com os resultados
dessa aplicação, que aparecem no livro que editou com Janet Carsten e tam-
bém em um artigo publicado em uma edição especial de L’Homme, em que a
questão de gênero, da ambivalência e da androginia também estão presentes?
(ver Hugh-Jones, 1993, 1995).
S.H-J. Primeiramente, deixe-me esclarecer que meu modo de trabalhar se deve
a vários fatores. De um lado, houve as circunstâncias familiares, como o fato
de Christine ter seguido a carreira de médica. De outro lado, minha preguiça
em aprender uma nova língua indígena, além da barasana, para poder fazer
trabalho de campo com outro grupo indígena, em outra região. E, por fim, o
fato de os índios do Uaupés, a mim, sempre terem parecido incrivelmente
interessantes. Eles são muito instigantes, com sua sofisticação artística e in-
telectual, constituem de fato uma civilização. Considero-me muito sortudo
por ter trabalhado com essa sociedade tão rica em tantos aspectos. Tê-los
como base de minha antropologia foi o que me permitiu explorar territórios
de pesquisa tão diversos. Venho me debruçando sobre temas como arquite-
tura, noção de casa, troca, contato com os brancos, etnobiologia. Tenho um
manuscrito praticamente completo sobre cobras. Quando realizo um projeto,
costumo colocar um ponto final. Escrevo e depois me volto para outro tema.
Estou sempre em movimento. Eu e Christine tínhamos um projeto de escrever
sobre as relações com o mundo exterior. Meus trabalhos sobre o escambo e
sobre os mitos a respeito dos brancos (Hugh-Jones, 1992 e 1988, respectiva-
mente) são desenvolvimentos desse antigo projeto, no qual Christine não se
engajou porque decidiu estudar medicina. Costumo também atender a convites
de colegas. Caroline Humphrey teve a ideia de fazer um livro sobre o escambo
(Humphrey & Hugh-Jones, 1992); eu nunca tinha pensado nesse assunto, mas
resolvi tentar. Sempre tive interesse em arquitetura. Eu e Christine já tínha-
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mos também escrito muito sobre os significados e o simbolismo arquitetônico.
Cheguei a contribuir com um verbete numa enciclopédia sobre o tema (Hugh-
-Jones, 1997). Há muito tempo eu me interesso por arquitetura. Janet Carsten
chegou ao tema das sociedades de casa a partir da perspectiva das sociedades
cognáticas. Eu cheguei a partir de meu interesse pela arte e pela arquitetura.
Na verdade, foi um casamento intelectual muito feliz. Minha contribuição no
projeto do livro foi realmente trazer a arquitetura de volta às sociedades de
casa. Quando escrevemos a introdução, estávamos determinados a afirmar que
o problema da teoria de sociedades de casa de Lévi-Strauss era o fato de ele
se ter esquecido do aspecto arquitetônico e material. Na verdade, em La voie
des masques (Lévi-Strauss, 1979), que é um dos trabalhos em que ele elabora
sua tese, há fotografias maravilhosas de casas dos Tsimshian. Era óbvio que,
como uma sociedade de casas, eles estavam fazendo casas muito elaboradas;
mesmo assim, Lévi-Strauss não desenvolve esse ponto.
C.L. Além da questão de gênero, os textos sobre as sociedades de casa co-
locavam um problema para a noção de descendência no contexto do Uaupés.
Os grupos do noroeste amazônico sempre foram descritos como patrilineares.
Seus artigos, porém, indicavam uma tensão interna que os aproximava das so-
ciedades cognáticas. Nesse aspecto, o Uaupés se aproximava de muitas outras
sociedades amazônicas, afinal de contas?
S.H-J. Eu acabei percebendo que era muito fácil descrever os índios do Uaupés
como patrilineares. Era fácil porque parecia que estávamos falando a respeito
da África. Não quero criticar meus colegas, mas, por exemplo, Kaj Arhem, que
escreveu sobre os Makuna, grupo quase idêntico aos Barasana, os descreve como
um típico sistema segmentar de aliança. Creio que não se trata de fato de uma
sociedade segmentar. O famoso modelo dendrítico (ou por ramificação) da li-
nhagem africana, tal como descreveu Evans-Pritchard, não se aplica aos Tukano.
Na minha opinião, a essência da cosmologia do Uaupés é uma lógica fractal,
em que a casa é o corpo e é o Universo, ao mesmo tempo. E pode-se passar de
uma escala a outra. Todo o xamanismo depende disso; dessa possibilidade de
transitar em diferentes escalas, do micro ao macrocosmo. Tive oportunidade
de ouvir os índios comentarem que era exatamente assim que eles entendiam.
Então, embora eu os tenha descrito inicialmente como patrilineares, em larga
medida para dizer que eles não eram cognáticos (e, naquela altura, dizer que
eles não eram cognáticos implicava dizer que eram lineares), eu sempre soube
que eles eram patrilineares de um modo muito específico. Não se trata de um
idioma de substância; o que se transmite ali são nomes, objetos, línguas. É uma
transmissão espiritual, imaterial. Portanto, quando comecei a ler o trabalho de
Lévi-Strauss sobre as sociedades de casa, percebi imediatamente que havia ali
uma contradição, uma inconsistência. Ele descreve bem os sistemas cognáticos,
as sociedades de casa clássicas, na Ásia. Quando, entretanto, vai falar sobre as
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casas nobres da Europa e sobre a costa noroeste dos Estados Unidos, entramos
num território de quase linhagem, pelas razões que Lévi-Strauss aponta, isto
é, porque elas combinam aliança e descendência. Achei muito interessante
porque me parece que os clãs e as linhagens do Uaupés são de fato casas no
sentido de Lévi-Strauss. Existem grupos cujas identidade e persona são baseadas
na transmissão de propriedade. Nesse caso, porém, a transmissão é patrilinear,
ela segue uma linha. Não consigo encontrar exemplos em que a linha siga uma
esposa vinda de outro grupo. É bem consistente, nesse sentido.
C.G. Seria possível relacionar de algum modo essa análise ancorada na noção
de casa com o experimento que você fez de investigar os rituais por meio do
modelo de Marilyn Strathern em The gender of the gift?
S.H-J. Sim, eu poderia estabelecer essa relação em dois sentidos diversos.
Primeiro, temos a característica peculiar do sistema social do Uaupés, que é o
fato de os clãs e linhagens serem casas, no sentido lévi-straussiano do termo.
Em outras palavras, isso significa que a identidade dos grupos deriva da ma-
nutenção de um corpo de propriedade material e imaterial. Nesse sentido, se
eu fosse forçado a tipificar, diria que se trata de sociedades de preço da noiva.
Não diria isso de bom grado, porque acho que dizer isso é uma bobagem. Mas
eles estariam com certeza do lado das sociedades de preço da noiva. Em ou-
tras palavras, eles certamente veem a possibilidade de que objetos possam ser
pessoas e possam substituir pessoas. Trata-se de sociedades orientadas para
várias formas de troca, incluindo a troca de riqueza. Portanto, o fato de que
essas casas são grupos detentores de riqueza faz com que elas se encaixem
no modelo.
O outro sentido no qual percebo a conexão que você menciona em sua
pergunta é o seguinte. Esses grupos ou casas imaginam sua continuidade a
partir de uma inflexão de gênero. Sua continuidade no tempo se dá pela trans-
missão da propriedade, que inclui língua, sêmen, ossos, espírito, narrativas,
objetos sagrados, flautas jurupari etc., que são elementos masculinos. Todo
esse idioma masculino possui uma contrapartida feminina, que lhe é comple-
mentar. Aqui, sim, poderíamos falar em termos de substância; por exemplo, os
ossos (do gênero masculino) são envolvidos pela carne e o sangue (que são do
gênero feminino). Nesse sentido, eu tenderia a concordar com Kaj Arhem, em-
bora eu não goste da caracterização do sistema do Uaupés como um sistema
segmentar de aliança. Prefiro caracterizá-lo como sociedade de casas envolvi-
das em um sistema de aliança, de forma semelhante ao que Susan McKinnon
(1995) descreveu para as Ilhas Tanimbar na Indonésia. E, nesse caso, tratava-se
de sistemas de aliança assimétrica. Enfim, isso nos leva, em última análise, à
grande tensão na teoria do parentesco de Lévi-Strauss. Se tomarmos a teoria
clássica da aliança, veremos que ela depende simultaneamente da descendên-
cia e da aliança. Precisamos dos grupos de descendência, pois são eles que
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estabelecem e definem a aliança; e precisamos da aliança para reproduzir os
grupos ao longo do tempo. Parodiando Firth, para encurtar: na teoria da des-
cendência o casamento serve para reproduzir os grupos de descendência; e na
teoria da aliança, os grupos de descendência servem para garantir o casamento.
Pois bem, se pensarmos em termos de uma tipologia da Amazônia, a maioria
dos grupos poderia encaixar-se do outro lado da teoria da aliança, como mos-
trou Viveiros de Castro. Não o lado dos grupos de descendência e do chamado
método das classes, mas o lado do método da relações, em que não há linha-
gens ou descendência. Parece-me, no entanto, que o que vemos nas sociedades
do Uaupés é, de fato, a aliança no sentido mais clássico. Em outras palavras, e
seguindo o modelo quase evolucionista de Lévi-Strauss, começamos a sair do
terreno de sistemas elementares de aliança, para sistemas mais complexos,
ponto em que as sociedades do Uaupés parecem assemelhar-se às melanésias.
Eduardo Viveiros de Castro referiu afinidade sem aliança; Lévi-Strauss, troca
sem bridewealth. A troca cerimonial melanésia tinha ido além desse tipo de
substrato matrimonial. Parece-me que é isso, também, de certa forma, o que
ocorre no noroeste amazônico. Aí existe uma diferença entre aliança por meio
da troca de irmãs e aliança por meio da troca de bens cerimoniais. Os índios
do Uaupés se referem à troca de bens cerimoniais como aliança ancestral. E, o
que é muito interessante, eles agora estão usando essa expressão com relação
aos antropólogos que trabalham com eles em projetos, como eu mesmo e as
pessoas da Fundação Gaia. Eles nos chamam pelo termo que significa parceiro
ou aliado cerimonial. Enfim, aqui nós estamos au delà das estruturas elemen-
tares do parentesco, isto é, já começamos a entrever uma situação em que
pode haver troca não necessariamente ligada à aliança matrimonial. Então, eu
penso que, sim, é possível fazer uma articulação entre esses artigos que você
mencionou, embora eu nunca tenha colocado isso no papel.
C.G. Podemos encontrar trocas cerimoniais também em outros lugares. Entre
os Waiana das Guianas, por exemplo, há um tipo de parceria cerimonial que
não tem nada a ver com casamento. É apenas troca cerimonial.
S.H-J. Sem casamento, exatamente. Viveiros de Castro está absolutamente
certo quando afirma que a afinidade pura é a afinidade sem casamento. Na
minha opinião, porém, a afinidade pura não é necessariamente afinidade ca-
nibalística. Pode haver afinidade sem casamento de um modo relativamente
pacífico, recíproco. Isso é de fato a base dos grandes sistemas sociais que
encontramos no Xingu e no noroeste da Amazônia.
C.L. Estávamos falando sobre seu dinamismo; você é um antropólogo do tipo
inquieto, que está sempre em busca de novas perspectivas. Gostaria que você
falasse um pouco a respeito de suas reflexões acerca da questão do contato
com os brancos. Na monografia sobre os Barasana (Hugh-Jones, 1979) você
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adotou uma perspectiva tradicionalista. Uma década depois, publicou o artigo
“The gun and the bow” (Hugh-Jones, 1988), no qual você explorou a visão dos
índios do Uaupés sobre os brancos. Mais tarde, em 1992, analisou a relação
entre índios e brancos com foco no tema dos objetos. O que mudou? Os Bara-
sana ou sua própria perspectiva?
S.H-J. Para responder a essa pergunta, tenho que voltar ao meu passado hip-
pie. Embora eu ame meus pais e tenha sido influenciado de diversas maneiras
por eles, toda a minha vida tem sido de certa forma estruturada numa antítese
dialética a eles. Como eu já disse, meu pai era meio explorador como eu, mas
ele queria que eu me tornasse médico. Foi a isso que reagi (ver Lasmar & Gor-
don, 2014). Christine e eu chegamos ao Pirá-Paraná ao mesmo tempo que os
missionários, e uma das coisas que logo notamos foi que muitos dos jovens,
principalmente os homens, estavam ávidos para adotar o modo de vida dos
brancos. Queriam se vestir como os brancos, falar somente espanhol, ir à mis-
sa. Havíamos ido até lá para procurar índios verdadeiros e, no momento em
que os descobrimos, tudo o que eles queriam era deixar de ser índios verda-
deiros. Então, evitávamos a companhia dos jovens, embora fôssemos jovens. O
problema era que os mais velhos não nos levavam a sério. Hoje em dia, quando
eles me contam certas coisas e eu pergunto “Por que você não me disse isto
antes?”, eles respondem: “você ainda era muito jovem, não podíamos te con-
tar essas coisas”. Naquela época ainda nem tínhamos tido filhos, não éramos
considerados plenamente adultos. De todo modo, parte da nossa estratégia
era evitar ter contato com os mais jovens, especialmente os homens jovens, a
fim de ter acesso a elementos mais tradicionais da vida dos Barasana. Eu me
sentia culpado – como antropólogo, porque deveria pesquisar tudo; e no plano
pessoal, porque tinha consciência de que, se eu fosse um deles estaria agindo
do mesmo modo. O que eu estava fazendo? Procurando conhecer outras socie-
dades. O que eles estavam fazendo? A mesma coisa! Eles eram eu. E, mesmo
assim, eu tinha algum ressentimento romântico, pelo fato de eles estarem
dando as costas a sua própria tradição. E eu sempre me senti mal pelo fato de
não conseguir ter afinidade com esses índios mais jovens.
C.L. Então, nesse primeiro momento, você e Christine abstraíram a dimensão
da mudança e das relações com os brancos?
S.H-J. Nossos livros foram produtos de sua época. Se você estudava sociedades
tribais, você não escrevia sobre os ruídos da aculturação, mudança, contato
interétnico. Tínhamos, no entanto, consciência de que era necessário abordar a
questão da relação com a sociedade moderna. Nosso segundo trabalho de cam-
po foi explicitamente orientado para a relação entre os Barasana e os brancos.
Fomos lá para fazer pesquisa sobre o tráfico de cocaína e estivemos também
com os seringueiros em 1968 e 1971. Queríamos analisar a história dessas rela-
ções, e eles tinham muitas narrativas da interação com os patrões Baré. Nessa
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cristiane lasmar e cesar gordon | entrevista com stephen hugh-jones
altura, porém, Christine começou a cursar medicina, e o livro que projetáva-
mos sobre a relação com os brancos acabou nunca sendo publicado. Alguns de
meus trabalhos dos anos 1990 são o resultado dessas pesquisas. “Yesterday’s
luxuries, tomorrow’s necessities” é sobre cocaína e mercadorias. Outra coisa
que me intrigava era a categoria indígena “duturo”.3 No livro que nunca escrevi,
haveria um capítulo sobre a relação dos índios com os antropólogos.
Voltando à sua pergunta: a resposta é “sim” nos dois casos. Em parte,
foram os próprios índios que mudaram e continuam a mudar. E nós também.
Quando eu e Christine fizemos o segundo trabalho de campo, percebemos o
quanto havíamos nos enganado em 1968 ao supor que, se abstraíssemos os
missionários e os seringueiros que víamos diante de nós, poderíamos dizer
que os índios sempre haviam sido tal como os víamos naquele momento. Foi
apenas em 1979 que começamos a refletir sobre as implicações do fato de
eles terem começado a usar machados de aço nos anos 1930 e 1940, sobre as
implicações do fato de terem assimilado as mercadorias. Nesse sentido, é inte-
ressante comparar o caso do Uaupés com o caso Xikrin, pois os Barasana pas-
saram pelo mesmo processo descrito no livro Economia selvagem (Gordon, 2006).
Obviamente, as primeiras mercadorias que eles tiveram foram os machados
e as facas, que eram itens raros de prestígio, e também armas e ferramentas,
que os índios carregavam junto ao corpo como se fossem roupas. Todos esses,
assim como as miçangas, eram categorizados como objetos sagrados, gaheuni,
mas houve uma mudança semântica, e, agora, gaheuni designa qualquer coisa
antiga. E, assim como entre os Xikrin, para os Barasana as mercadorias que
aferiam prestígio outrora acabaram, com o passar do tempo, se tornando itens
triviais. Hoje, os objetos ocidentais realmente “sagrados” são os computadores,
portanto, eu diria que têm ocorrido mudanças importantes, e meu trabalho
me fez entender que essas mudanças são muito mais profundas e contínuas
do que inicialmente eu imaginava.
C.L. Não seria o caso de retomar o projeto do livro?
S.H-J. Outra razão pela qual eu não escrevi esse segundo livro está justamente
no fato de que ele parecia um romance. As coisas iam mudando. Christine e
eu pensávamos que iríamos estudar os seringueiros, e, quando chegamos lá, o
grande tema era cocaína. Quando voltei na década de 1980, a onda da cocaína
já havia retrocedido e se falava em prospectar ouro. Agora isso acabou, e só se
fala em projetos. O novo boom é o dos projetos de ONGs; todo mundo fala em
projetos, em ONGs e em fazer filmes. Em suma, um livro sobre mudança não
teria fim. Por outro lado, ocorre uma transformação que é, de fato, de muito
mais longo prazo do que eu havia imaginado. Embora eu ainda adore ir a luga-
res bonitos com pessoas interessantes, tempo bom e muita natureza, deixei de
ser um romântico, minha forma de pensar se alterou. Os jovens aos quais eu
virei as costas no início da pesquisa – da geração que foi educada em missões,
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homens jovens que aprendiam a ler e escrever na escola missionária e reza-
vam aos domingos na missa – são os homens que hoje controlam a sociedade
e que estão à frente da Asociación de Capitanes y Autoridades Tradicionales
Indígenas del Rio Pirá-Paraná – Acaipi. Agora me dou muito bem com eles, te-
nho grande simpatia por suas posições e seus projetos políticos e culturais. E
eles, por seu turno, têm muita afinidade comigo porque me conhecem desde
que eram crianças e sabem que eu vi coisas que alguns deles nunca viram.
Eles sabem o quanto eu aprendi ali, e por isso me respeitam. Fui iniciado por
pessoas que já morreram, kumus famosos e muito conhecidos. Por tudo isso,
temos hoje uma relação muito próxima.
C.L. Novamente, a história é importante.
S.H-J. Sim. E a minha antropologia mudou com ela. Eu agora não preciso
mais passar tanto tempo em cima de um bloco de notas, tentando arrancar
informações das pessoas. No início, eles tinham muitas suspeitas e não en-
tendiam por que aqueles dois jovens estrangeiros ficavam fazendo perguntas
altamente esotéricas sobre assuntos que não são normalmente discutidos no
cotidiano deles. Ninguém discorre publicamente sobre seu conhecimento e
certamente não fala sobre isso com estranhos. Era como extrair um dente...
Mas hoje é uma relação inteiramente diferente. Estando aposentado, não so-
fro mais as pressões para publicar, divulgar meu trabalho. Posso fazer o que
gosto e o que quero. Com tudo isso, o trabalho em cooperação com os índios
é muito recompensador para mim. A atitude deles agora é a seguinte: “bem,
se você não sabe isso, que diabos, você tem que saber; sente-se e eu vou te
explicar” ou “venha aqui, venha cantar, venha cantar, você sabe pouco sobre
nossos cantos, venha aprender a cantar melhor”. Eles me chamam dizendo:
“Você sabe dançar, vamos lá, por que você está sentado? Nós estamos dançando,
você pode dançar também”. Por outro lado, eles me perguntam coisas como:
“o que é meio ambiente? Qual a diferença entre língua e linguagem?”. E como
falo razoavelmente bem o barasana, posso explicar esse tipo de coisa para eles.
Com a experiência e o conhecimento acumulado, eu tenho segurança agora
para fazer traduções e posso explicar às pessoas da Fundação Gaia,4 por exem-
plo, por que creio que elas estejam erradas quando fazem uso da noção de
simbolismo para explicar o pensamento dos índios do Uaupés. Explico a eles
que não é certo dizer que a casa é um símbolo do universo, pois, para os índios,
sob certas circunstâncias, a casa é de fato o universo. Outro aspecto interes-
sante: às vezes os índios me dão a incumbência de explicar às pessoas de fora
certas coisas que elas querem saber. Por exemplo, certas pessoas chegam lá
falando em lugares sagrados, mas continuam perguntando o que exatamente
são lugares sagrados. E então os índios me pedem: “Stephen, você poderia ex-
plicar isso a ele?”. De modo que a minha relação atual com eles é radicalmen-
te diferente, é altamente cooperativa. Quando fui registrar seus cantos, meu
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interesse foi tanto em gravá-los quanto em ensinar-lhes a gravar. Eu deixei
isso para o fim da minha vida e da minha carreira porque eles cantam em um
língua tão complexa e metafórica, muito difícil de se produzir como fala. Essa
língua sagrada, que eles chamam de keti oka, é a última coisa que eu tentaria
aprender na minha carreira. Mas agora eu começo a compreender, e quanto
mais eu entendo o que as palavras e os cantos significam, mais sou capaz de
cooperar com eles no projeto de gravação desses cantos, de modo a ajustar
minhas operações intelectuais com minhas operações práticas.
C.G. A propósito, gostaria de fazer uma pergunta mais geral. Agora que você
está aposentado, fazendo o que gosta, e numa fase da vida em que se pode
relacionar de modo mais livre com a antropologia, e olhando retrospectiva-
mente, quais seriam, em sua opinião, as contribuições da etnologia dos índios
da Amazônia para a antropologia britânica ou para a antropologia como um
todo? Há espaço na antropologia britânica para se constituir uma etnologia
sul-americana forte, tal como se constituiu uma etnologia africana ou a etno-
logia do sul da Ásia?
S.H-J. Eu acho que a antropologia não tem mais um projeto unificado. Quando
comecei a estudar antropologia, na graduação, havia, de certa forma, um projeto
unificado, em dois sentidos: primeiro, porque era possível, assim nos ensinavam,
ler toda a boa literatura de antropologia da época. E isso era verdade, pois o
número de monografias antropológicas no mundo era relativamente pequeno.
Você podia se sair bem se se empenhasse bastante na graduação. Isso era sem-
pre um pouco tendencioso, porque as leituras não incluíam necessariamente
todos os livros escritos sobre os índios norte-americanos, por exemplo. O que
os professores queriam dizer é que era possível ler todos os livros escritos por
antropólogos britânicos, e assim obter satisfatório conhecimento etnológico.
Nesse sentido, era realmente possível dominar e dialogar com o corpo de etno-
grafias existente. Agora isso é totalmente inviável, absolutamente impossível.
Há muito mais material sendo publicado, e a antropologia se tornou altamente
especializada. Em todo caso, eu acho que a antropologia dos índios sul-ame-
ricanos está sendo lida, mais lida do que nunca, e o exemplo mais dramático
disso é o trabalho de Eduardo Viveiros de Castro (1996) sobre o perspectivismo.
Não faz muito tempo, um número especial do jornal Inner Asia foi dedicado
ao perspectivismo, e muitos pesquisadores que trabalham na Mongólia e na
Sibéria estão interessados em comparar essas regiões com a Amazônia.5 Vejo,
portanto, muito potencial para contribuições oriundas da etnologia indígena
sul-americana. Os livros sobre as sociedades de casa e sobre a troca, a respeito
dos quais já falamos, também foram influentes nesse sentido. Outro exemplo
é o trabalho de Philippe Descola, em particular o livro Par-delà nature et culture
(Descola, 2005), que traz uma reflexão sobre animismo, perspectivismo e tote-
mismo. São obras que vêm sendo muito lidas na Inglaterra e em outros países.
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Cursos sobre a etnografia da Amazônia se tornaram parte do currículo. Hoje
em dia vemos muitos anúncios de postos para pessoas que trabalham com
antropologia sul-americana, o que na minha época seria inconcebível. O ponto
importante é que o Brasil vem ocupando muito espaço no cenário internacional.
Quando comemoramos o centenário de Lévi-Strauss, muitos brasileiros voaram
para cá a fim de se juntar a antropólogos britânicos nesses eventos. Os centros
de gravidade da antropologia estão mudando. Ela deixou de ser tão centrada na
Inglaterra, na França e nos EUA, e isso é muito bom. As pessoas estão lendo os
antropólogos brasileiros, e eles se tornam conhecidos no cenário internacional.
Então, creio que os índios da Amazônia estão contribuindo como inspiração
teórica, assim como houve uma fase nos anos 1950 e 1960 em que a onda era a
África e a teoria das linhagens, e nos anos 1970 e 1980 os melanésios e a teoria
da troca. Com efeito, nos últimos dez ou 15 anos, a Amazônia veio se tornando
importante em termos tanto etnográficos quanto teóricos. Veja a contribuição
do perspectivismo ou daquela parte da etnologia amazônica que chamamos de
perspectivista. Há algumas características muito peculiares do pensamento e
da cultura dos índios da Amazônia que têm despertado interesse mundo afora,
algumas já sinalizadas por Lévi-Strauss e que agora vêm ganhando reconheci-
mento mais amplo. Os antropólogos amazonistas foram os pioneiros no estudo
do corpo, que posteriormente veio a se tornar muito popular na antropologia
geral. Os trabalhos de Terence Turner (1969, 1994, 1995), por exemplo, foram
muito influentes de um modo geral.
Então, para sintetizar, eu responderia que a etnologia amazônica atin-
giu definitivamente sua maturidade no contexto antropológico internacional
convencional. Isso é muito positivo. Eu observava a antropologia ir se tornando
decadente e fico feliz que o mundo tribal volte ao seu imaginário. Sou com-
pletamente a favor de uma antropologia eclética que seja aplicada tanto à
antropologia da ciência quanto à antropologia dos povos tribais. Leio tudo com
interesse e não creio que a antropologia deva se restringir ao mundo tribal. O
que me deixa desapontado é que, justamente no momento em que os povos
amazônicos superam a situação de risco de etnocídio, agora que têm espaço
político para sobreviver e prosperar, no exato momento em que começam a
recuperar, celebrar e usar sua própria cultura como instrumento de luta políti-
ca, uma boa parte dos antropólogos declara que eles estão acabando, que eles
estão liquidados. A celebração politicamente correta da antropologia por várias
razões se voltou contra os povos nativos, no momento em que os povos nativos
de fato deixaram de se voltar contra suas próprias culturas e poderiam cooperar
muito com os antropólogos. Há tendências na antropologia que desconsideram
o mundo tribal como sendo irrelevante, desinteressante e acabado. Não penso
nesses termos de forma alguma.
Há ainda outro ponto. Usei o termo antropologia convencional adverti-
damente, para me referir a um tipo clássico de antropologia, que vem sendo
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cristiane lasmar e cesar gordon | entrevista com stephen hugh-jones
ensinado nas universidades britânicas até recentemente. Enquanto isso, en-
tretanto, há coisas acontecendo, como a mudança climática e a destruição
ecológica, coisas muito sérias, que os antropólogos vão ter que levar em conta.
As pessoas com quem eu trabalhei na Amazônia estão na linha de frente de
debates relevantes a respeito desses temas. Sempre me intrigou a questão da
relevância, da relação entre antropologia e relevância, e do teor político dessa
relação. Que partes da antropologia são ou não relevantes? É curioso como as
pessoas fazem uso de alegações políticas para justificar seus gostos e suas
próprias posições e para denegrir posições alheias. Por vários motivos, a an-
tropologia da Amazônia me parece extremamente relevante – tanto por razões
intelectuais, pois ela pode contribuir com ideias, quanto pelo fato de termos
atingido um patamar que nos coloca em posição de compreender a civilização
amazônica. Quando lemos que uma nova tribo isolada foi descoberta no Acre
ou no Rio Javari, e vemos as imagens aéreas de uma aldeia remota, podemos
dar a devida dimensão antropológica a esse fato, coisa que não estaríamos em
condições de fazer há 30 anos, porque sabíamos muito menos do que sabemos
hoje. Saberemos que, se eles vivem no Javari, devem ser de língua pano, sabere-
mos qual é o seu sistema de parentesco, o que eles comem etc. Não precisamos
visitá-los, podemos deixá-los em paz. Do ponto de visto etnográfico estrito, as
chances de encontrarmos novidades são muito reduzidas. Se soubermos que
há índios sem contatos na Colômbia, saberemos por alto quem eles são, porque
já sabemos muita coisa sobre a civilização amazônica.
C.G. Estamos chegando ao fim da entrevista. Você gostaria de fazer um último
comentário ou reflexão?
S.H-J. Gostaria de fazer duas observações. Em primeiro lugar, vale dizer que
uma das coisas que me apraz na antropologia que pratico é o seu caráter inter-
nacional. Uma das alegrias de trabalhar na Amazônia é que tive que aprender
francês, espanhol e português. Tenho contatos no Brasil, contatos na Colômbia.
Há uma rede internacional muito ampla, e eu acho isso muito bom. Não estou
me gabando, mas eu realmente notei que essa é uma experiência bastante
específica, essa intensa relação internacional, não é assim para muitos dos
meus colegas de departamento. O segundo comentário que quero fazer remete
novamente à sua pergunta a respeito da mudança: quem mudou, os Barasana
ou eu mesmo? Não pretendo ficar aqui enfatizando o aspecto romântico de
minha experiência na Amazônia, mas devo dizer que eu mudei muito. Não vejo
o tradicional e o moderno como instâncias separadas, meu interesse é tentar
integrá-los. Muito do meu trabalho é sobre isso. Quando escrevi o artigo sobre
escambo, eu estava de fato tentando mostrar que essa divisão entre o mundo
de ontem e o mundo de hoje é incompleta, é fictícia. Recentemente escrevi um
artigo sobre os livros da Coleção Narradores Indígenas do Rio Negro (Hugh-
-Jones, 2010), e meu argumento é que os livros são transformações de objetos
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cerimoniais. Antigamente, as pessoas tornavam pública sua reputação durante
as cerimônias denominadas Dabucuris. Agora elas o fazem publicando livros,
porque não há mais Dabucuris. Os livros são objetos cheios de palavras, exa-
tamente como os objetos. Jurupari não são apenas flautas e trombetas, porque
trazem anexada a narrativa mitológica. E é por isso que o meu Jurupari é di-
ferente do seu Jurupari, assim como o meu livro é diferente do seu. Livros são
objetos com palavras dentro, e os Jurupari são objetos com palavras anexadas.
Interesso-me pelas continuidades. Então, estava usando os livros como fontes
de exemplos etnográficos para uma reflexão sobre os objetos e de repente veio
a revelação: os livros são esses objetos!
Interesso-me pela forma como a sociedade do Uaupés está se trans-
formando e nesse sentido gostei muito de ler o trabalho de Geraldo Andrello
(2006), Cidade do índio. É interessante porque Andrello mostra como as avalia-
ções de hierarquia clânica estão criteriosamente implicadas na política con-
temporânea. Da mesma forma, em De volta ao Lago de Leite (Lasmar, 2005),
vemos como a etnografia tradicional pode ser usada como ponto de partida
para o entendimento do que se passa em uma grande cidade como São Ga-
briel da Cachoeira. E novamente voltamos ao mesmo ponto. Os antropólogos
pós-modernos diriam que aquele mundo tribal está acabando, que ele não é
interessante, e que temos que estudar a modernidade. Ora, mas você pode
estudar a modernidade pela perspectiva dos índios.
E permitam-me apenas uma última observação, que traz de volta o tema
da minha infância e do meu desejo de viver com os índios. Uma coisa que me
deu imenso prazer estético foi, há bem pouco tempo, tomar um avião e voar
para o Pirá-paraná. Entrar pela porta de uma casa e saber como me comportar.
Eu me senti totalmente em casa, conhecia as pessoas, eu os conheci por toda
a vida, foi como ir ver amigos na Escócia ou algo assim. Nada é estranho para
mim, e nunca deixo de me deleitar com o fato de isso ter se tornado possível.
No Pirá-paraná deixei de ser um antropólogo, e agora sou o Stephen, foi isso o
que mudou. Posso ser absolutamente sincero com eles. Eu disse a eles que tudo
isso era muito prazerosos para mim e eles entenderam. Tenho tido conversas
intelectuais muito interessantes com os kumus. Um deles estava interessado
em entender o que eram conceitos! E eu expliquei a ele a diferença entre abs-
trato e concreto, porque ele queria adquirir uma linguagem que lhe permitisse
explicar o pensamento dos Barasana. E ele me contou duas histórias. Uma
história sobre um homem que se casou com uma mulher-estrela, caída do céu.
O problema do casal é que ela acorda ao entardecer, pois o entardecer é a sua
manhã. Mas quando ela acorda, ele está indo dormir. Tudo gira em torno do
fato de as estrelas viverem num mundo diferente. A segunda história era sobre
uma mulher cujo marido morre. Ela vai procurá-lo e o encontra no mundo dos
mortos. O marido pede que ela busque uma caçarola no rio e ela não consegue
achar a caçarola, pois no rio só consegue ver uma cobra. Ele diz a ela: “você é
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tão burra.” E vai até o rio e traz ele mesmo a caçarola. Perguntei ao kumu as
razões de ter me narrado essas duas histórias. “Porque eu quero saber como
você as chamaria, do que elas tratam?”, ele respondeu. E eu retruquei, “Isso
se chama perspectivismo, elas são sobre perspectivas”. E ele disse: “Essa é a
palavra que eu quero, essa é a palavra que eu quero! Eu queria ser capaz de fa-
lar sobre o princípio que está por trás dessas histórias”. E então eu disse a ele
que foi, para mim, um grande prazer ser capaz de vir do meu mundo, chegar
em sua casa, comer sua comida, falar sua língua, conhecendo-o tão bem, e que
isso para mim era muito gratificante. Que era como se deixasse de ser inglês
e passasse a ser barasana. Disse a ele que era como trocar de roupa. E ele me
disse: “Não, você troca é de perspectiva”! É esse nível de engajamento intelec-
tual que considero o mais interessante. Depois dessa conversa, eu trabalhei
com ele sobre benzimentos. Os índios às vezes brincavam comigo, dizendo que
eu já era um kumu, que eu conhecia várias rezas, e essas coisas. Então eu fiz
questão de dizer a ele que eu nunca usaria os benzimentos, nunca os ativaria,
pois meu interesse era exclusivamente entender como os Barasana pensam.
E então esse homem disse: “quando você vem aqui, você muda de perspecti-
va, e é por isso que você é um kumu”. Ou seja, ele usou uma ideia de Eduardo
Viveiros de Castro, que discutimos durante a nossa conversa intelectual, para
fazer piada comigo. Isso é muito divertido!
C.G. É como voltar à Jamaica, onde você passou a infância, e estar de novo
em casa.
S.H-J. Exatamente.
Concedida em fevereiro de 2009 (Cambridge) e
março de 2012 (Rio de Janeiro) | Aprovada em 16/10/2015
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Cristiane Lasmar é antropóloga, doutora pelo Museu
Nacional (UFRJ) e pós-doutora pela Fondation Maison de Sciences
de L’Homme. Tem longa experiência de pesquisa junto aos grupos
indígenas do alto Rio Negro, com quem trabalha desde 1995, tendo
atuado como assessora da Federação das Organizações Indígenas
do Rio Negro e do Instituto Socioambiental no município de São
Gabriel da Cachoeira (AM). Autora do livro De volta ao Lago de
Leite: gênero e transformação no Alto Rio Negro (2005), premiado com
a Menção Honrosa no Concurso Anpocs de Obras Científicas de
2006. Atualmente é pesquisadora autônoma atuando na área da
antropologia da infância, família e educação.
Cesar Gordon é professor do Departamento de Antropologia
Cultural e do Programa de Pós-graduação em Sociologia e
Antropologia do IFCS-UFRJ, e doutor pelo Museu Nacional (UFRJ). Em
2008-2009 foi professor convidado na posição de maître de conférence
associé do Collège de France (Paris), vinculado à cadeira antropologia
da natureza e ao Laboratoire d’Anthropologie Sociale (LAS-EHESS).
Realiza pesquisas com os índios Xikrin e Kayapó da Amazônia (Pará)
desde 1998. É autor do livro Economia selvagem: ritual e mercadoria
entre os índios Xikrin-Mebengokre (2006), premiado no concurso Anpocs
de 2007 como Melhor Obra Científica em Ciências Sociais.
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NOTAS
1 Os termos homossubstituição e heterossubstituição, uti-
lizados por Philippe Descola no capítulo mencionado na
nota anterior, foram cunhados por Maurice Godelier em
The making of great men: male domination and power among
the New Guinea Baruya, publicado em1986, e delimitam dois
regimes de troca encontrados em sociedades melanésias:
no primeiro, uma pessoa humana só pode ser trocada por
outra pessoa humana (como no caso dos intercâmbios ma-
trimoniais e na guerra); no segundo, uma pessoa humana
pode ser substituída por animais ou coisas (como no caso
em que se paga um valor material para obtenção de uma
noiva ou uma compensação econômica para desagravar
um homicídio). No artigo em questão, Descola argumenta
que este último tipo de troca (heterossubstituição) prati-
camente não ocorre nas sociedades amazônicas, nas quais
não haveria “preço da noiva” (bridewealth), e sim “serviço
da noiva” (brideservice), e um homicídio é sempre pago com
outro homicídio. A distinção entre sociedades de preço da
noiva e sociedades de serviço da noiva foi desenvolvida
teoricamente por Jane Collier e Michelle Rosaldo no bem
conhecido artigo “Politics and gender in simple societies”,
publicado em Ortner & Whitehead (1981).
2 Coleção de livros publicada pela Federação das Organiza-
ções Indígenas do Rio Negro (FOIRN) em parceria com o
Instituto Socioambiental (ISA). Cada livro apresenta uma
versão das narrativas da origem, da mitologia e da história
mais recente de um grupo particular da bacia do Rio Negro,
como os Desana, Tukano, Tariana ou Baniwa, mas sempre
do ponto de vista de um clã específico.
3 “Duturo”, corruptela de doutor, é o termo usado pelos ín-
dios do Uaupés para se referir aos brancos com alto grau
de instrução, principalmente aos pesquisadores que fre-
quentam a região.
4 Organização não governamental colombiana que trabalha
em parceria com a Acaipi.
5 Trata-se do volume 9, número 2 de 2007 da revista Inner
Asia, editado por Caroline Humphrey, Rebecca Empson e
Morten A. Edersen. Ver também Brightman, Grotti & Ultur-
gasheva (2012).
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UM ANTROPÓLOGO DA CIVILIZAÇÃO AMAZÔNICA:
ENTREVISTA COM STEPHEN HUGH-JONES
Resumo
Nesta entrevista Stephen Hugh-Jones faz um balanço
do campo da etnologia indígena na Amazônia e de seu
próprio trabalho em parceria com Christine Hugh-Jones
junto aos índios de língua tukano oriental da bacia do
Uaupés. Dialogando com alguns dos principais autores
americanistas, enfatiza a necessidade de que os modelos
antropológicos de descrição dos povos ameríndios levem
em conta a complexa variedade de suas formações sociais
e cosmológicas. Destaca as especificidades etnográficas
da região do noroeste amazônico, que considera uma
autêntica civilização, e reafirma sua confiança na vocação
da antropologia da Amazônia para produzir sínteses
teóricas renovadas e comparativas, que contemplem a
riqueza sociocultural e histórica desses povos e contribuam
para o pensamento antropológico de maneira geral.
THE ANTHROPOLOGY OF AMAZONIAN CIVILIZATION:
AN INTERVIEW WITH STEPHEN HUGH-JONES
Abstract
In this interview, Stephen Hugh-Jones takes stock of his
work, in collaboration with Christine Hugh-Jones, among
the Eastern Tukanoan speakers of the Uapés basin, and
of Amazonian ethnology more generally. In dialogue
with some of the main Americanist authors, he stresses
that anthropological models of Amerindian peoples
need to account for the complex variety of social and
cosmological forms found in the continent. He highlights
the ethnographic specificities of northwestern Amazonia,
which he considers to be a veritable civilization, and
reaffirms his conviction that Amazonian anthropology is
capable of producing renewed and comparative theoretical
syntheses which take into account the sociocultural and
historical wealth of the region’s people, hence contributing
to anthropological thought more generally.
Palavras-chave
Antropologia;
Índios;
Amazônia;
Civilização;
História.
Keywords
Amazonia;
Amerindians;
Anthropology;
Civilization;
History.
A ORIGEM DA NOITE E POR QUE O SOL É CHAMADO DE “FOLHA DE CARANÁ”
Stephen Hugh-Jones I
I University of Cambridge, Reino Unido.
INTRODUÇÃO
Em ensaio anterior sobre o significado dos ornamentos corporais no noroeste
amazônico, sugeri que a caixa em que os ornamentos são mantidos “é um
operador espaçotemporal, uma manifestação do sol, um ser vestido com uma
brilhante coroa de penas que ordena a passagem do tempo” (Hugh-Jones, 2014:
161). Meu objetivo aqui é desenvolver essa ideia, explorando o modo como os
povos do noroeste amazônico representam a alternância entre o dia e a noite
nos sons e cores dos insetos, pássaros e animais da floresta; nos materiais,
texturas e cores de suas casas e posses; no corpo humano; na música e na
dança rituais – e como utilizam tudo isto para exercer controle ritual sobre o
tempo. Para fazê-lo, baseio-me em um grande conjunto de textos publicados
sobre histórias acerca da origem da noite e temas relacionados, registrados
junto aos povos indígenas da bacia do alto Rio Negro e áreas adjacentes.
Ao mesmo tempo, espero lançar luz sobre por que, em muitas línguas
tukano orientais, os termos para “Sol” e para “Lua” parecem ser constituídos de
dois morfemas, o primeiro significando “colmo”, o segundo “folha”. Por exemplo,
em tukano a palavra é muipü, em barasana muhihü, referindo-se mui ou muhi ao
colmo e às palmeiras cujas folhas são utilizadas para cobrir as casas, e sendo pü
ou hü o termo para “folha”. Muipü / muhihü poderiam então ser glosados “folha de
colmo” ou “caraná”, termo em língua geral utilizado na bacia do Rio Negro para
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, v.0
5.03
: 659
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98, d
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, 201
5
Tradução de Bruno Guimarães
Revisão técnica de Cesar Gordon
http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752015v532
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se referir amplamente ao colmo, às folhas utilizadas no colmado e também às
palmeiras das quais derivam. Para simplificar, daqui em diante utilizarei caraná
nesse sentido genérico para me referir aos três sentidos: palmeiras, folha e colmo.
As histórias que me interessam aqui incluem algumas narrativas bas-
tante longas, bem como notas breves e fragmentos. Foram registradas entre
os seguintes grupos: os Baniwa, Baré, Kurripaco, Tariano, Kawiyerí e Yukuna-
-Matapí, falantes de línguas arawak; os Bará, Barasana, Desana, Kubeo, Letua-
ma, Makuna, Taiwano, Tanimuka, Tatuyo, Tukano e Tuyuka, falantes de tukano;
e os Kakua, um grupo falante de uma língua makua isolada. No entanto, seria
um erro supor que esses grupos representam unidades sociais discretas, cada
qual com seu próprio corpus discreto de narrativas, ou que as diferenças entre
as versões das histórias consideradas aqui refletem diferenças culturais entre
grupos. Minha abordagem adota a posição oposta: tanto em bases empíricas
quanto teóricas, trato todas essas histórias como partes do mesmo corpo de
ideias. Deixe-me explicar o motivo.
Os povos do noroeste amazônico dividem-se em vários subgrupos no-
meados, com implicações importantes para direitos sobre território, recursos,
casamentos, status rituais, relações políticas e outros assuntos. Entre os falan-
tes de línguas tukano há, além disso, uma associação geral entre grupos patri-
lineares e a língua, de modo que grupos exógamos são tipicamente unidades
linguísticas. Contudo, na prática, uma vasta cultura do noroeste amazônico
se estende para além da ideologia tukano de grupos linguísticos exógamos.
Mesmo na área tukano, a residência não obedece necessariamente às regras
patrilineares e patrilocais, e reivindicações associadas ao pertencimento ao
grupo são frequentemente alvo de disputas. Ao longo do noroeste amazônico há
uma profusão de nomes que se referem a grupos de diferentes tipos, dos quais
apenas alguns são reconhecidos por pessoas da própria unidade em questão.
Embora representações típicas dos povos do noroeste amazônico e de
suas línguas façam coincidir unidades linguísticas e sociais (ver, por exemplo,
Epps & Stenzel, 2013: 10-11), como observado acima é importante notar que
unidades linguísticas e sociais não coincidem necessariamente, que as pessoas
são tipicamente multilíngues e que nomes como “barasana”, “makuna”, “baré”
ou “baniwa” não se referem a unidades sociais ou linguísticas de mesmo tipo.
Ainda mais importante, essas unidades não são, de modo algum, como muitas
“tribos”. Todas elas fazem parte de um sistema social aberto, um conjunto de
pessoas que vivem na mesma área geral, casam entre si, trocam comida, bens
e serviços, comparecem às reuniões sociais umas das outras e compartilham
convenções sociais acerca do uso do espaço, comportamento corporal, modos
de fala e interação social. Também trocam vários tipos de informação, incluin-
do histórias e conhecimento ritual.
Nesse sentido, esses povos são, do ponto de vista sociocultural, mais ou
menos iguais. Mas a diferença também é parte integral do sistema, pois são as
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artigo | stephen hugh-jones
diferenças entre as pessoas e seus grupos, marcadas pelas diferenças nas pos-
ses rituais e propriedades imateriais, como a língua, as canções e as histórias,
que permitem a ocorrência da troca de esposas, bens e serviços.
Tudo isso tem importantes implicações para as narrativas que examinare-
mos a seguir. Por um lado, elas demonstram similaridades impressionantes, que
transcendem fronteiras linguísticas e territoriais – em termos gerais, contam a
mesma história. Por outro lado, indivíduos diferentes, pertencendo a diferentes
grupos, contam versões distintas dessas histórias. Aqui a identidade do grupo
do contador pode ser pertinente ao que ele ou ela conta, e as próprias histórias
podem até mesmo explicar a origem e a natureza da diferença entre os grupos.
A identidade de grupo, porém, é apenas um de muitos fatores que concorrem
para produzir diferentes versões de uma história. Nos demais fatores incluem-
-se: aqueles relacionados diretamente com o falante: idade, gênero, papel social
e conhecimento das histórias e outras informações relevantes; o pretexto e o
contexto social para a história ser contada; a identidade dos ouvintes e o que eles
já sabem sobre a história, o que pretendem saber e o que é permitido que saibam.
O fato de que, em dada ocasião, um indivíduo de um grupo conte pa-
ra um determinado público uma versão de uma história que difere de outra
versão, contada em outra ocasião para outro público por outro indivíduo de
outro grupo, nos diz muito pouco sobre o que cada indivíduo sabe ou deixa
de saber. Em um sistema social aberto caracterizado pelo multilinguismo, por
intensas trocas rituais intercomunitárias e pela visitação mútua frequente, os
repertórios narrativos certamente se sobrepõem. Um indivíduo com grande co-
nhecimento tradicional está apto a contar a sequência de um mito de variadas
maneiras, incluindo breves sumários, detalhes elaborados, detalhes cruciais
escolhidos com referência a certas práticas rituais e xamanísticas, até mesmo
diferentes versões dos detalhes, aprendidas junto a outros especialistas.
Também precisamos ter em mente que missionários, linguistas e an-
tropólogos que registram tais narrativas introduzem novos níveis de diferença
arbitrária, de sorte que o material por eles publicado não fornece um guia con-
fiável daquilo que os informantes sabem ou deixam de saber. Os informantes
contam histórias, muitas vezes em espanhol ou português rudimentar, que
são moldadas para servir ao entendimento e aos interesses de forasteiros
relativamente ignorantes, que por sua vez submetem as histórias a processos
de tradução, segmentação, abreviação e outras formas de edição implicadas na
longa jornada que vai das notas de campo aos textos publicados. Esses textos,
doravante objetivados como “mitos” discretos, estão muito distantes daquilo
que o indivíduo contaria a um companheiro de seu grupo. Os diferentes povos
da região também tiveram diferentes histórias de contato. Algumas dessas his-
tórias são claramente narradas por pessoas que possuem bom conhecimento,
de primeira mão, do mundo tradicional e do ambiente natural retratado; em
outras situações, esse não parece ser o caso.
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Finalmente, uma complicação adicional consiste em saber onde uma
história termina e outra se inicia. O estudo comparativo de Blixen (2011) sobre
as narrativas sul-americanas da origem da noite delimita a análise comparati-
va a um único tópico – a noite. Porém, como se esclarecerá adiante, igualmente
relevantes para esse tópico são as histórias que não se preocupam explicita-
mente com a noite, mas que podem ser sequencialmente a elas relacionadas
ou que compartilham com elas enredo de estrutura semelhante.
Tendo isto em mente, podemos perceber de pronto que as narrativas de
origem da noite não são unidades isoladas. Elas podem ser contadas separa-
damente e são com frequência publicadas como “mitos” discretos, porém tam-
bém podem aparecer como partes de um todo maior, no qual são precedidas
por outras histórias sobre a terra, as árvores, as folhas de caraná que cobrem
o teto, ou podem ser seguidas por histórias sobre músicas, ornamentos, dança,
água, mortalidade e outros tópicos.
Por todos esses motivos, em termos puramente empíricos, a noção de
um “mito barasana” ou de um “mito tukano” sobre a origem da noite é alta-
mente problemática, assim como qualquer afirmação de que esse “mito barasa-
na” é diferente de um “mito kawiyeri” sobre a origem da noite, por exemplo, ou
de um “mito tukano” sobre a origem do caraná. Ademais, como demonstrado
há muito tempo por Lévi-Strauss em seus estudos sobre mitologia, há fortes
argumentos teóricos para rejeitarmos qualquer noção de mito como unidade
discreta e estável. Onde um mito se encerra e outro se inicia é sempre dis-
cutível. Seguindo o conselho de Lévi-Strauss (1955: 435-436) de que um mito
consiste de todas as suas variantes e que a análise será mais sólida ao levar-
mos em consideração todas as variantes conhecidas, espero demonstrar que as
histórias de nosso conjunto conferem sentido umas às outras e que detalhes
obscuros em um texto às vezes são esclarecidos por outro. Um dos objetivos
deste ensaio é simplesmente dar sentido às histórias, fornecendo comentários
que lancem luz sobre seu contexto de fundo. Tal como se apresentam para
nós no momento, as fontes disponíveis são semelhantes a fragmentos de um
mosaico danificado. Nossa tarefa é tentar compreender a imagem inteira: al-
gumas partes são suficientemente claras; em outras, porém, podemos apenas
vislumbrar seus contornos à medida que reunimos os fragmentos dispersos.
Feitas as advertências metodológicas, vejamos de perto as próprias nar-
rativas.
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artigo | stephen hugh-jones
HISTÓRIAS SOBRE A TERRA, AS ÁRVORES, AS CASAS E
O CARANÁ – UM SOBREVOO
No noroeste amazônico, as narrativas sobre a origem da noite são geralmente
contadas em uma sequência mais longa englobando as origens da terra, das
árvores, das casas e do caraná, elementos que constituem os componentes
do espaço e do tempo, e são os pré-requisitos da vida social ordenada que os
Criadores estabeleceram no início do tempo. Como os rituais sazonais tam-
bém são parte dessa ordem espaçotemporal mais ampla, não é surpresa que
as origens dos ornamentos, canções e danças também se apresentem como
parte desse conjunto.
Nessa sequência os episódios possuem, tipicamente, igual estrutura
narrativa, que, em termos gerais, se apresenta assim: percebendo a vida como
impossível sem terra, árvores, casa, caraná ou noite, um grupo de Criadores,
geralmente irmãos, dirige-se à casa de um Dono para pedir que lhes dê aquilo
de que precisam. O Dono inicialmente explica que o elemento em questão é
perigoso, pode causar vários tipos de infortúnios, além de acarretar duras res-
ponsabilidades; deve, portanto, ser tratado com respeito. Ele então fornece aos
Criadores uma série de instruções sobre como lidar com o elemento e o con-
trolar devidamente, de modo a torná-lo seguro e evitar perigos e infortúnios.
Essas instruções formam a base das magias e de outras atividades rituais que
são frequentemente chamadas de benzimentos no português brasileiro e cura-
ciones no espanhol colombiano. Apenas o irmão mais novo, o mais inteligente
e atento, protótipo do kumu ou “xamã”, segue as instruções. O Dono entrega
aos Criadores o elemento em questão dentro de um recipiente, com um grave
alerta de que não seja aberto até que cheguem em casa.
Os Criadores partem. O recipiente não apenas lhes parece ser muito
pequeno para acomodar tudo o que precisam, como também é extremamente
pesado. No caminho, os personagens são incapazes de conter a curiosidade e
decidem espiar o interior do recipiente, o que acarreta consequências desas-
trosas. O conteúdo explode e se espalha em todas as direções. Após várias
tentativas frustradas de remediar o problema, o irmão mais novo relembra as
instruções relevantes que o Dono lhes dera, e a ordem é restaurada. Do lado
positivo, materiais como a terra, as árvores, o caraná e a noite tornaram-se
completamente disponíveis, porém, por terem os Criadores desobedecido as
instruções do Dono, em vez de ser facilmente manuseáveis e livres de risco,
os materiais agora envolvem trabalho árduo, doenças e até mesmo a morte.
Os eixos centrais da variação das histórias sobre o caraná, o sono e a
noite, que são objeto de minha especial atenção aqui, incluem:
1. O número e a identidade dos Criadores ou seres primordiais
envolvidos.
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Tanto pode ser uma única pessoa, como no caso dos personagens Idn
Kamni (Silverwood-Cope, 1990) ou Nhãpirikuli (Cornelio et al., 1999; Hill, 2009;
Trupp, 1977), quanto, mais frequentemente, um grupo de dois a cinco irmãos
Criadores, o Povo do Céu, Povo do Universo ou Povo da Transformação (Fernan-
des & Fernandes, 1996; Lana & Lana, 1980) que são conhecidos como Kuwaiwa
(Correa, 1997), Diroa (Andrello, s.d.), Ümüri Masa (Fernandes & Fernandes, 1996,
Reis, 2013), Pamüri Masa (Azevedo & Azevedo, 2003; Piedade, 1997), Bahuari
Masa (Fernandes & Fernandes, 1996), Ayawa (Acaipi, s.d.; Århem et al., 2004;
Correa, 1996; Hugh-Jones, 1979; Oliveira, s.d.; Van der Hammen, 1991), Munully
(Bourgue, 1976; Correa, 1989), Imararimakana (von Hildebrand, 1975; 1984) ou
Karipú Lakena (Fontaine, 2010; 2014; Matapi & Matapi, 1984; Matapí & Matapí,
s.d.; Schauer & Schauer, 1975).
2. A identidade e as características do Dono.
Comumente do sexo masculino (ver, contudo, Andrello, s.d.; Silva, 1994),
ele é tipicamente um Sapo (Acaipi, s.d.; Århem et al., 2004; Azevedo & Azevedo,
2003; Bourgue, 1976; Correa, 1989; Correa, 1996; Fulop, 2009; Hugh-Jones, 1979;
Lana & Lana, 1980; Lana, 2009), embora possa ser um Morcego (Palma, 1991),
um Grilo (Correa, 1996) ou o Chefe dos Grilos (Schauer & Schauer, 1975). Ou-
tros Donos incluem Dainali, o Avô do Sono (Barroso Baré, 2015; Cornelio et al.,
1999; Hill, 2009; Romero Raffo, 2003), Tapurinami, Dono do Sono e da Escuridão
(Fontaine, 2010; 2014; Matapí & Matapí, s.d.; Schauer & Schauer, 1975) e Je’echú,
o Céu-Onça e Pai de Sol e Lua (Trupp, 1977).
3. A relação do Dono com os Criadores.
Ele é geralmente o avô (Acaipi, s.d.; Fontaine, 2010; 2014; von Hilde-
brand, 1975; Matapí & Matapí, s.d.; Schauer & Schauer, 1975), mas pode ser o
tio (von Hildebrand, 1975; 1984; Schackt, 2013; Van der Hammen, 1991), o sogro
(Bourgue, 1976; Cornelio et al., 1999; Correa, 1989; Correa, 1992) ou o cunhado
(Fernandes & Fernandes, 1996). Os Criadores tipicamente oferecem ao Dono
algo em troca daquilo que buscam, seja coca, tabaco, um ornamento de penas,
outros itens de valor, ou uma irmã ou filha.
4. A natureza do recipiente que o Dono oferece aos Criadores.
Esse recipiente costuma ser um vaso, cabaça, castanha ou a caixa de
folhas de palmeira que usualmente guardava cocares de penas e outros or-
namentos.
5. Se aos Criadores é oferecida a escolha entre várias durações ou gra-
dações da noite.
6. Se a noite e o sono são tratados como componentes separados.
7. Os detalhes geralmente longos sobre o que ocorre durante a extensa
noite que sucede à abertura do recipiente.
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artigo | stephen hugh-jones
Por enquanto não me preocuparei com os pontos 5 e 6 e aqui lidarei
brevemente com o ponto 7. Munido desse sumário geral, analiso primeira-
mente as histórias sobre o caraná e em seguida as histórias sobre a noite.
Antes de fazê-lo devo acrescentar duas ressalvas. Meus resumos das histórias
são aproximações operacionais, que não têm por objetivo lidar com todos os
seus vários detalhes. Minha análise não deve ser vista como uma abordagem
exaustiva desse abundante material.
CARANÁ
Donos
Nos episódios que antecederam a origem da noite, os Criadores primeiro obti-
veram a terra e as árvores, o que lhes permitiu abrir uma clareira e construir
a estrutura de uma casa, com estacas e cipós retirados das árvores da floresta.
Quando terminam, percebem que lhes faltam as folhas apropriadas para cobrir
o teto; então saem em busca junto ao Dono do Caraná.
O Dono do Caraná os alerta que ser dono e chefe de uma maloca é um
cargo que acarreta pesadas responsabilidades sociais, requer conhecimento de
muitos encantamentos xamanísticos, e que a vida na maloca envolve a recu-
sa do sono e a vigília ao longo da noite, comendo coca e discutindo assuntos
importantes (ver, especialmente, Fontaine, 2010; 2014 e Matapí & Matapí, s.d.).
Ademais, ele os adverte de que o próprio caraná contém perigos ocultos: a
terra vermelha, argilosa, que às vezes gruda nas folhas utilizadas para colmar
a casa, é um prenúncio da terra que cobre o túmulo, e quando os grilos que
se escondem nas folhas cantam na casa durante a noite é geralmente um
augúrio da morte (por exemplo, Dutra, 2011: 249; Fontaine, 2014: 66, nota 17).
Finalmente, o Dono oferece-lhes as folhas que almejam, empacotadas dentro
de uma caixa de penas (Århem et al., 2004; Correa, 1992; 1997; von Hildebrand,
1975; 1984; Rojas Sabana, 1997; Silva, 1994), de uma castanha (Århem et al.,
2004) ou de um vaso (Schauer & Schauer, 1975), e lhes diz que só devem abrir
o recipiente quando estiverem dentro da estrutura da nova maloca. Mas, co-
mo vimos, é claro que eles não lhe dão atenção: abrem a caixa no caminho
de casa, e as folhas voam em todas as direções, cobrindo o céu e tornando-o
escuro. Tivessem eles sido diligentes, as folhas de caraná seriam hoje facil-
mente encontráveis e colmar a maloca seria uma tarefa branda. Hoje, as folhas
do caraná estão aleatoriamente espalhadas pela floresta, e cobrir uma casa é
tarefa muito custosa.
Quem é o Dono do Caraná? Nas línguas tukano faladas no noroeste
amazônico, a pessoa que controla o material desejado na história é geralmente
chamada de “pai”, como em ñami hakü (barasana), “pai da noite” (Correa, 1992;
Hugh-Jones, s.d.) ou “pessoa idosa, ancião”, como em pûsua bükü (desana), “ca-
raná velho” ou ñami bükü (barasana, makuna), “velha noite” (Århem et al., 2004;
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Azevedo & Azevedo, 2003; Hugh-Jones, s.d.). Nesse contexto, os termos pai,
chefe ou ancião significam que esses Donos abrangem e encarnam a matéria-
-prima em questão como uma extensão de sua própria pessoa, de tal maneira
que são relativamente maiores e mais poderosos que as demais.
No caso do caraná, o Dono é um pássaro, um gavião (Bourgue, 1976;
Correa, 1989) ou arara (Fernandes & Fernandes, 1996), que incorpora todos
os caranás, casas e construções. Suas asas abertas são as duas vertentes do
telhado da maloca. Seus ossos são os postes e vigas da estrutura da casa.
Seus tendões e veias são as lianas e o cipó-titica utilizados para amarrar os
mastros e vigas uns aos outros. Cada tipo de pena de seu corpo – retrizes, rê-
miges primárias e secundárias, coberteiras etc. – representam um dos tipos de
folhas de caraná que podem ser utilizadas para fazer o colmado e as paredes
da casa (Bourgue, 1976; Correa, 1989; Correa, 1996; Fernandes & Fernandes,
1996; Hugh-Jones, s.d.). De um modo bem característico das tendências totê-
micas dos Tukano, quando a história é contada em detalhes, cada espécie de
caraná e cada padrão de trançado utilizado para prender as folhas às vigas
da cumeeira é dito pertencer a um grupo diferente (Correa, 1996; Hugh-Jones,
s.d.). Essa informação é um componente essencial dos encantamentos rituais,
cuja finalidade é controlar tais matérias-primas, torná-las seguras para o uso
e garantir que ofereçam proteção efetiva contra raios, chuva e vários tipos de
ataques de forças hostis.
Em sua aparência (barasana, tukano) Ñami Soda ou Ñamiri Sota, o Dono
do Caraná é também o Dono da Noite e do Sono, soda ou sota sendo o nome
de uma perereca não identificada, cujos grandes olhos dourados e pupilas
fendidas lhe conferem aparência sonolenta (possivelmente se trata de Hyla
punctata ou de algum outro pequeno hilídeo). Essa incorporação da noite e do
sono estende-se a outros atributos desse Dono. Seu nome é, por vezes, Noite
ou Noites (Fernandes & Fernandes, 1996; Galvão & Galvão, 2004; Hugh-Jones,
s.d.; Lana & Lana, 1980); ele possui um corpo feito da noite e do dia (Fontai-
ne, 2014: 100; Lana & Lana, 1980); possui pálpebras grandes e caídas; veste
o sono em sua cabeça sob a forma de um conjunto de plumas ornamentais
(Fernandes & Fernandes, 1996); é preguiçoso e dorme profundamente (Århem
et al., 2004; Lana, 2009; Matapi & Matapi, 1984), só sendo despertado quando se
coloca um caco de cerâmica incandescente em seu peito (Lana & Lana, 1980;
Piedade, 1997; Reis, 2013) ou quebrando-lhe as canelas com uma borduna ou
com o pesado pilão de madeira empregado para transformar em pó as folhas
de coca torradas (Barroso Baré, 2015; von Hildebrand, 1975; Matapi & Matapi,
1984; Matapí & Matapí, s.d.; Rojas Sabana, 1997; Romero Raffo, 2003).
Estamos lidando aqui com um exemplo da difundida figura do Dono
amazônico discutida por Fausto (2008), um ser que abrange toda uma classe
de criaturas ou objetos que são identificados a seu próprio corpo (ver também
Costa, 2010). Nesse contexto, é importante notar que as noções de dono e de
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artigo | stephen hugh-jones
propriedade também possuem implicações políticas e são uma dimensão im-
portante das responsabilidades e dos perigos inerentes às casas, aos caranás
e ao sono, tão enfatizados como temas recorrentes nas narrativas que esta-
mos analisando. O ato de construir uma maloca representa a reivindicação
de um status da parte do homem que inicia o projeto, e um reconhecimento
tácito de sua reivindicação por parte daqueles que concordam em auxiliá-lo
e que passam, então, a viver sob seu teto. Como (tukano) wiiogü, literalmente
“construtor da casa, iniciador da casa”, ou (barasana) wii ühü, “chefe da casa”,
o líder e dono da maloca é identificado com sua casa, sendo responsável por
manter vida harmoniosa e organizada para as pessoas que com ele vivem e
que ele agora representa. Eles são (barasana) wiiana, “o povo de sua casa”, e é
o dono quem determina o ritmo dos dias, conduz as conversas ao anoitecer e
os despacha para dormir. Sendo o responsável por ordenar o espaço e o tempo,
o líder da maloca participa das qualidades de Dono, do qual as casas, o caraná
e o sono derivam.
CARANÁ COMO FOLHAS, PENAS E CABELO
Em nossas histórias, Donos, corpos e recipientes desdobram-se uns nos outros
em um denso e estratificado padrão de referência recíproca. A história do cara-
ná nos conta que a maloca é um pássaro cujas diferentes penas produzem as
diferentes espécies de caraná utilizadas no colmo. Isso significa que as folhas,
as penas, e, por extensão, os ornamentos plumários, são todos uma coisa só.
Isso também é sugerido em uma história kubeo, em que a metade superior
da caixa contém folhas, enquanto a metade inferior contém os ornamentos
utilizados na dança que celebra o final da construção da casa (Correa, 1997:
154). O fato de o Dono do Caraná ter dado aos Criadores as folhas armazenadas
dentro de uma caixa – que também é usada para armazenar adornos plumários
– não apenas confirma a equação entre folhas e penas, como também adiciona
densidade a essas associações: a maloca, com seus painéis pintados em cada
um dos lados da porta que se assemelha a uma boca, reveste-se do colmo tal
qual um dançarino com o rosto pintado reveste-se do cocar de penas (ou como
um homem comum reveste-se de cabelo). A maloca é uma pessoa.
Os ornamentos de penas e o caraná também estão conectados em ter-
mos de tecnologia, aparência e função. Para produzir o caraná a partir das
folhas pinadas da palmeira Lepidocaryum tenue, o tipo de caraná preferido na
região, deve-se entrelaçar as pinas individuais de cada folha em densas ca-
madas junto com a raque, amarrada por sua vez, em muitos padrões distintos,
à viga feita de tronco de palmeira. A trama de colmo resultante apresenta
notável semelhança com as camadas de plumas de um cocar tukano. Este
último é feito a partir das camadas de coberteiras de asa de arara, cuja raque
é presa a uma faixa larga tecida com fios de fibra de palma. Por essa razão é
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que os xamãs-kumu makuna usam a frase hoa tuti (“penas em camadas”) para
se referir a uma barreira defensiva. A barreira em questão é construída por
meio dos encantamentos verbais do xamã, mas seu referente concreto são as
paredes e o teto da maloca que guardam seus habitantes.
Isso também explica os motivos pelos quais os dois autores yukuna-
-matapi resolveram começar seu livro sobre ornamentos plumários com uma
discussão sobre as palmeiras. Escrevem eles:
No caso das palmas, todos os adornos incorporados foram feitos para exprimir
uma ideia: que essas palmas ou partes complementaram os tecidos de plumagens
ou outras coisas dos adornos rituais. Foram feitos para que os novos seres viven-
tes descobrissem por si mesmos a ideia formada por Je’echú.
As novas gerações teriam que aprender a tecer. Por isso, as diferentes espécies de
árvores e bejucos têm um signo, que com sua natureza ensinam a variar sobretudo
os tecidos nas plumagens; dessa maneira, os criadores nos deixaram os poderes
sobre os tecidos, praticamente são do mundo, por isso hoje em dia os chamamos
“mundo de tecido”.
A maloca possui sua própria decoração para que possa ter sentido. Quando come-
çou a primeira construção da maloca, os avós imaginaram que a maloca simples-
mente não podia ser construída sem que tivesse sido decorada de modo apropria-
do, pois cada decoração teria seu significado. Depois que acabaram de construir
a armação começaram com os tecidos dos puis, um símbolo de decorações da
maloca (Matapi et al. 2010: 19-20, tradução editorial).
A conexão escalar entre cabelo, penas e folhas de palmeiras (semelhan-
tes a penas) também é revelada em um detalhe particular das histórias sobre
a origem da noite. Muitas das narrativas fazem questão de definir especifica-
mente o tipo de palmeira cujas folhas foram utilizadas pelos Criadores para fa-
bricar os abrigos e se proteger da chuva torrencial que acompanhou a primeira,
e catastrófica, noite. Algumas vezes, as histórias explicam, ademais, que o tipo
específico de folha sob a qual os ancestrais se abrigaram determina o tipo de
cabelo – liso, cacheado ou retorcido –, dos diferentes grupos tukano (ver Aze-
vedo & Azevedo, 2003; Fernandes & Fernandes, 1996). Não é surpresa, portanto,
que o termo makuna hoa, cujo significado é “pelo, cabelo e penas”, possa esten-
der-se semanticamente a “árvores e floresta”, porque a floresta também é uma
cobertura viva e crescente que evoca a textura e a cor escura do cabelo humano.
A caixa de penas é feita de folhas de (barasana) hēhēhē (Attalea microcar-
pa), que também são usadas para fazer as paredes da maloca; hēhēhē pertence
à classe geral de caraná como “folhas empregadas na construção de casas”.
A identidade material entre as paredes da maloca e as paredes da caixa de
penas sugere que a caixa de penas é, ela própria, uma maloca, e que os orna-
mentos que ela contém são, à sua maneira, pessoas. Ainda que nenhuma das
histórias por mim analisadas indiquem isso diretamente, a identidade entre
ornamentos e pessoas foi, em outra ocasião, explicitada em considerações de
alguns indígenas kotiria e desana durante uma visita ao Museu Etnológico de
Berlim, quando tiveram a oportunidade de ver adornos do noroeste amazônico
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artigo | stephen hugh-jones
coletados por Koch-Grünberg entre 1903 e 1905. Os índios ficaram um tanto
desconcertados ao descobrir que, em vez de manter os objetos todos juntos na
caixa de penas, os zelosos curadores, pensando na melhor forma de conser-
vação, alocaram separadamente os ornamentos de penas em um depósito na
reserva técnica exclusivo para as penas, e os ornamentos de ossos no depósito
específico de ossos. Os visitantes indígenas tinham uma visão muito diferente
de conservação: “Todos esses ornamentos são pessoas”, insistiram. “Eles se
sentirão solitários se forem separados de seus companheiros. Eles pertencem
à mesma maloca, a caixa de penas”.
Por outro lado, as histórias deixam bem claro que nos tempos primor-
diais havia apenas uma maloca, uma construção metonimicamente coextensi-
va ao universo, à terra (como o piso da maloca), às montanhas (como alicerces
da casa) e ao céu (como seu teto de caraná). Dentro dessa casa mítica, o sol
pairava inerte no céu, tal qual hoje a caixa de penas paira, inerte, no centro
da maloca, suspensa no teto por um cipó. Portanto, temos aqui uma sequência
de recipientes análogos, em diferentes escalas, um dentro do outro: universo
<—> maloca <—> caixa de penas.
Posto isso, podemos agora começar a entender por que o Dono do Ca-
raná deve ser também o Dono da Noite, pois o caraná, de fato, produz a noite.
O interior das malocas do noroeste amazônico é fresco e escuro, sensação re-
forçada quando se entra em casa vindo do claro sol equatoriano. Em contraste
com isso, a primeira coisa que se percebe a respeito da estrutura de uma casa
que ainda não recebeu a cobertura de colmo é o seu interior intensamente
brilhante – tão brilhante como o “longo dia” narrado nas histórias da origem
da noite: um mundo (maloca) sem noite (teto) no qual o sol permanecia imó-
vel no céu. Cobrir de caraná a estrutura de uma casa não apenas produz uma
abóbada protetora, como também veda a entrada da luz, tornando escuro seu
interior. Nas palavras de uma história kubeo: “então viu que vinha uma nuvem
negra, vinha a folha já tecida cobrindo a casa” (Correa, 1997: 152; Trupp, 1977:
34: uma folha de Oenocarpus bataua no vaso causa a noite). Com o tempo, e
com o desgaste natural do caraná, pontos de luz começam a brilhar através de
pequenas frestas da cobertura, destacando-se no interior escuro e fuliginoso
da maloca. Esses pontos de luz são estrelas que brilham no céu noturno (ver
também Fontaine, 2014: 79).
Podemos, então, oferecer uma resposta preliminar à questão de saber
por que o sol deve ser chamado de “caraná” ou “folha de colmado”. O colmo
da maloca é como um interruptor de luz: causa a alternância entre o claro
e o escuro ou entre o dia e a noite, tal qual o sol movente. Assim, podemos
entender por que o personagem do sapo Soda tanto pode ser o Dono da Noite,
quanto o Dono do Caraná.
O jogo entre claro e escuro é, porém, mais complexo do que isso, por-
que o próprio caraná muda de cor com o tempo. Dentro e fora, o colmado de
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uma maloca que acaba de ser feito tem a cor verde-escura das folhas novas e
“cruas” do caraná; a cor escura da floresta assimilada ao negro. À medida que
o tempo passa, o calor do sol queima o exterior das folhas, levando-as a um
tom amarelado-claro, ao passo que o calor e a fumaça do fogo interno resultam
em um vibrante tom marrom-dourado e, em seguida, um negro tisne. Simulta-
neamente, a caixa de penas reproduz uma imagem perfeitamente espelhada
desse efeito: feita com tiras sobrepostas de pinas da palma hēhēhē fervidas, a
princípio a caixa apresenta a mesmo tonalidade amarelo-solar em toda a sua
extensão mas, com o tempo, o exterior se torna escuro, enquanto o interior
retém a cor original. Então a natureza alternante do caraná não é apenas um
efeito de sua ausência ou presença no telhado, mas também uma propriedade
inerente ao material, dependendo tanto do tempo como do agente de mudança
(sol claro ou fumaça escura).1
Retornarei à caixa de penas logo adiante. Por ora, estabelecemos que a
maloca e a caixa de penas são máquinas do tempo, objetos que sinalizam e
causam a alternância de luz e breu ou de dia e noite. Os períodos alternantes
do dia e da noite são como sequências de vida e morte, algo que faz da maloca,
da caixa e dos ornamentos de penas coisas potentes, mas também fortemente
ambíguas, qualidade também compartilhada pelo caraná: a cobertura de colmo
torna a vida na maloca possível, porém, escondidos no caraná, estão manchas
de terra argilosa e grilos cantantes, os arautos da morte (ver, especialmente,
Barroso Baré, 2015: História de Pûsua bükü).
NOITE
A origem da noite
As histórias sobre a origem da noite seguem as da origem do caraná e, como
vimos, compartilham a mesma estrutura básica. Nesta seção, destacarei ape-
nas alguns detalhes que são centrais para o meu argumento.
Quando construíram sua maloca e a cobriram com o caraná, os Cria-
dores poderiam ter levado uma vida relativamente tranquila e confortável,
não fosse um grande problema. O sol pairava inerte no céu e não havia noite.
A ausência de noite significava que não havia ordem temporal, sendo a vida
uma jornada de trabalho infinda, sem momentos diferenciados para comer e
descansar, de sorte que os alimentos acabaram rapidamente. Determinados
a corrigir esse insustentável estado das coisas, os Criadores partiram rumo à
casa do Dono da Noite, a fim de obter a noite.
Quando fizeram-no saber de suas intenções, o Dono fez questão de
lhes explicar que a noite e o sono lhes custariam muito caro. Com a noite, não
haveria apenas o descanso e o sono, mas também um mundo de animais e
espíritos perigosos, intrigas, querelas, sonhos ruins e feitiçaria, gula e preguiça,
e, por fim, a morte. Por todas essas razões, ele enfatizou que a noite exigiria
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artigo | stephen hugh-jones
vigilância intensa e precauções rituais especiais, e deveria ser tratada com o
mais profundo respeito. Para evitar os perigos, eles deveriam obedecer a regras
estritas a respeito da dieta e do sexo, resistir ao sono e se manter despertos
ao máximo possível. A noite deve ser um tempo de atividades sérias – contar
histórias sagradas, aprender encantamentos xamânicos e utilizar a magia para
manejar os ciclos temporais do mundo e afastar as doenças e os infortúnios
(para um tratamento detalhado das restrições e magias associadas à noite, ver
Fontaine, 2014).
Como para enfatizar que, uma vez que os homens tivessem a noite,
teriam também o tempo e, portanto, a morte, algumas versões da história
descrevem como, antes de dar aos Criadores a noite, o Dono da Noite deu-lhes
primeiro a doença e as feridas – em algumas versões, isso ocorreu porque os
Criadores falharam em oferecer algo em troca ao Dono (Bourgue, 1976; Correa,
1989); em outras, porque este último confundiu o pedido de noite com pedido
de doenças e feridas. Em muitas línguas tukano a palavra para “noite”, ñami,
soa como kami, a palavra para “ferida” (Acaipi, s.d.; Bidou, 1972; Correa, 1992;
1997; Hugh-Jones, 1979; s.d.).
Na noite que antecedeu a partida dos Criadores de volta à casa, levando
a nova aquisição, o Dono da Noite ensinou-lhes a lidar com a noite. Antes de
abrir o recipiente em que a noite estava guardada, eles deveriam recitar os
encantamentos que o Dono ensinara, a fim de manter os perigos noturnos
afastados. Deveriam, em primeiro lugar, preparar a bebida fermentada de man-
dioca e só abrir o recipiente quando se encontrassem no interior da maloca,
de preferência no contexto de uma dança ritual. Sob nenhuma circunstância,
deveriam abrir o recipiente no caminho para casa. Deixando isso esclarecido,
o Dono forneceu ainda um conjunto de instruções detalhadas sobre como
dar um fim à noite. Os Criadores, porém, não estavam acostumados à noite e,
pouco depois que o Dono iniciou seus ensinamentos, adormeceram. Só o mais
jovem se manteve acordado para ouvir toda a lição.
Pela manhã, os Criadores partiram levando a noite em um recipien-
te. Novamente, estavam curiosos com relação ao grande peso e ao tamanho
pequeno do recipiente que, não obstante, emitia estranhos sons. Como em
breve iriam descobrir, eram os ruídos de grilos e de outros animais noturnos.
A curiosidade logo os venceu e decidiram abrir o recipiente, espiar o interior e
então lacrá-lo novamente. Mas, antes que pudessem fazê-lo, a noite escapou,
e eles foram imersos na escuridão e em forte temporal. Incapazes de enxer-
gar, eles tropeçavam no escuro, e ficaram encharcados, com frio, e também
muito cansados. Por fim, conseguiram fazer um abrigo contra a chuva e logo
sucumbiram ao sono.
Algumas histórias oriundas da porção sul do noroeste amazônico con-
tam que, enquanto os Criadores dormiam, o Dono da Noite veio em forma de
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morcego e arrancou-lhes os olhos, para assar e comer em casa, como punição
por não terem obedecido a suas instruções. Antevendo o que iria acontecer,
o Criador mais novo conseguiu proteger os próprios olhos, conseguindo em
seguida resgatar os de seus irmãos mais velhos, recolocando-os de volta em
suas órbitas (ver, por exemplo, Århem et al., 2004; Fontaine, 2014; Matapí &
Matapí, s.d.; Palma, 1994; Schauer & Schauer, 1975; Trupp, 1977).
Acordando várias vezes, os irmãos mais velhos tentaram, desesperada-
mente, se lembrar das instruções recebidas, porém sem sucesso. O irmão mais
novo interveio e, seguindo as ordens ao pé da letra, finalmente levou a longa
noite ao fim. Raiou a alvorada e a ordem foi reinstaurada.
Voltaremos a essas instruções adiante, pois, como variam em função
da substância da noite e do recipiente, observaremos primeiramente esses
aspectos.
AS SUBSTÂNCIAS DA NOITE
O que é a noite que escapa para fora do recipiente? Em diferentes versões das
histórias, a noite aparece sob várias formas que surgem em muitas combina-
ções distintas. Essa variedade se organiza em três registros principais. Primeiro,
há um registro meteorológico, em que a noite figura como uma combinação
de nuvens escuras, chuva, vento e raios: mesmo durante o dia, as tempesta-
des amazônicas, com suas nuvens carregadas e trovoadas violentas, podem
tornar o mundo bastante escuro. Em segundo lugar, a noite aparece como um
registro auditivo, principalmente com o som estridente de incontáveis gri-
los, gafanhotos e sapos, todos entoando simultaneamente suas vozes. Essas
criaturas são conhecidas como os “Velhos da Noite” (barasana ñami bükürā).
A esses, são adicionados os sons de vários pássaros noturnos, bem como os
gritos do macaco-da-noite e de outros mamíferos noturnos. O terceiro registro
é visual. Por um lado, a noite contida no vaso é comparada à terra negra ou à
pólvora preta (Fontaine, 2014; Schackt, 2013), algo similar à fuligem que adere
aos recipientes culinários e ao interior da cobertura da casa. Por outro lado, as
histórias mencionam morcegos e pássaros, especialmente os pássaros em que
predominam plumas negras. Nesse sentido, o japu-preto (Cacicus solitarius) é
alvo de atenção especial (ver Buchillet, 1983; Correa, 1992: 121; Correa, 1997: 61;
Lana & Lana, 1980: 111; Reis, 2013), em contraste explícito com os outros japus
“mais claros” (Gymnostinops yuracares, Psarocolius viridis) cujas caudas fornecem
brilhantes penas amarelas, muito utilizadas para fazer luminosas coroas e
outros ornamentos de plumas explicitamente associados ao sol.
O peso desse contraste aviário vem à baila em várias versões das histó-
rias. Em uma, ao fim da longa noite, o Criador envia o japu claro para verificar
se o dia está se aproximando, e então toma as penas desse e de outros pássa-
ros claros para tornar o dia iluminado e nítido (Azevedo & Azevedo, 2003: 191).
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Em outra história, o Dono da Noite promete aos Criadores: “se vocês abrirem a
caixa no momento certo, vocês terão as penas de papagaios e japus para fazer
ornamentos” (ver Buchillet, 1983; comparar Correa, 1997: 154, em que tanto
folhas quanto ornamentos voam para fora da caixa). A hora correta é durante
o tempo ritual da noite, não o tempo ordinário do dia, e o local correto é o
interior da maloca, não a floresta. Em outra versão os insetos que escapam da
caixa são acompanhados pelo macaco-da-noite e por pássaros cujas penas ser-
vem para fazer ornamentos – japus, araras, papagaios (Fernandes & Fernandes,
1996: 97). Em outra aparecem tanto os japus escuros como os claros (Galvão &
Galvão, 2004: 430). Finalmente, uma história nos diz que a caixa continha não
apenas pássaros, mas os próprios ornamentos de penas (Piedade, 1997). Tudo
isso é consistente com o fato de que a caixa é, simultaneamente, um recipiente
de noite e escuridão e um recipiente de dia e luz. Aqui é importante notar que,
apesar de as cores predominantes dos ornamentos de plumas tukano serem
amarelo, vermelho e branco, muitos ornamentos contrastam essas cores com
pequenos toques de preto, uma alusão discreta à alternância de noite e dia
(ver também Hugh-Jones, 2013: 75-76).
Notemos, ademais, que, embora apenas uma versão explicite que o re-
cipiente da noite também contém danças, cantos e conhecimento xamanístico
(ver Acaipi, s.d. e Hugh-Jones, 2012), a própria presença dos ornamentos de
penas implica a presença dos cantos, porque ambos são inseparáveis: canções
importantes são sempre acompanhadas por danças e pela ornamentação. O
significado do emparceiramento dos cantos com ornamentos e do contraste
entre cantos dos insetos e cantos dos humanos se tornará mais claro adiante.
Ainda no registro visual da ornamentação, a noite também assume a
forma das tinturas corporais azul-escuras (Goldman, 2004), e a alternância da
noite e do dia, assim como as qualidades da luz na alvorada e no crepúsculo,
é sinalizada por fios de miçangas pretas, brancas, vermelhas e amarelas. Em
duas versões, noite e dia são colocados em movimento ao se desatar um nó
em um cordão de miçangas que segurava um mundo inerte, semelhante a uma
cabaça, em seu suporte (Fernandes & Fernandes, 1996; Silva, 1994).
Finalmente, a noite também é retratada com a aparência de formigas
(Reichel-Dolmatoff, 1971; Trupp, 1977). Em parte porque as formigas são pre-
tas, e porque, enquanto as corpulentas e doces rainhas aladas da maioria das
saúvas voam durante o dia, aquelas de uma espécie em particular chamada
(barasana) ñamia, “aquelas da noite”, voam apenas antes do amanhecer. Muitas
formigas, porém, são criaturas venenosas, e todas elas podem alterar a pele.
Estão ligadas à mortalidade e à imortalidade, como discutiremos abaixo.
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CAIXAS E POTES: ENTRE A ESPERANÇA E O DESESPERO
Deixando de lado menções a um cesto (Cornelio et al. 1999) e a um saco (Hill,
2009), nossas histórias concordam que a noite e o sono eram armazenados em
uma cabaça (Århem et al., 2004), uma castanha (Århem et al., 2004; Fontaine,
2010; 2014), um pote (Acaipi, s.d.; Bidou, 1972; Correa, 1989; 1996; 1997; Palma,
1991; 1994; Romero Raffo, 2003; Trupp, 1977) ou em uma caixa (Andrello, s.d.;
Buchillet, 1983; Correa, 1992; 1997; Fernandes & Fernandes, 1996; Fulop, 2009;
von Hildebrand, 1975; Lana & Lana, 1980; Lana, 2009; Piedade, 1997; Reis, 2013;
Schauer & Schauer, 1975; Silverwood-Cope, 1990), costumeiramente identifica-
da como a caixa de penas. Seguindo essa pista, suspeito que a cabaça prototípi-
ca é, provavelmente, a pequena cabaça selada com cera e contendo tintura de
carajuru, rapé e outras substâncias potentes que são mantidas dentro da caixa.
Em relação à castanha, em uma versão ela é identificada como a semen-
te da palmeira Lepidocaryum tenue, a fonte preferida de caraná (Fontaine, 2014:
50, nota 8), porém, em outras versões, as castanhas parecem corresponder às
castanhas de tucum, pretas e polidas, que são utilizadas para guardar a tintura
de carajuru. Isso as incluiria, com a caixa de penas e as cabaças seladas, em
um conjunto de objetos relacionados aos adornos. Como esferas negras que
liberam a escuridão e o sono, essas castanhas apareceriam como contrapartes
das esferas brancas, os olhos e órgãos da visão que o Dono da Noite roubou
dos Criadores como punição pelo fato de eles terem desprezado seus conselhos
sobre como e onde abrir o recipiente da noite. Noite e Sono são equivalentes
a um estado de cegueira semelhante à cegueira literal dos Criadores, quando
da retirada de seus olhos pelo Dono da Noite. No instante em que os olhos
são recuperados, os Criadores conseguem enxergar novamente, justo quando
o alvorecer encerra a longa noite. Uma versão distinta desse emparceiramento
de preto e branco é encontrada na seguinte passagem de uma história tariano:
Foi com a escuridão que as pessoas adquiriram a parte preta dos olhos e passaram
a sentir sono. Os animais noturnos dormem durante o dia, durante esse período o
olho deles é todo claro – e veem o dia como noite. À noite, o olho deles é preto – e
veem a noite como dia (ver também Fontaine, 2014: 64-65).
Se cabaças, castanhas e a caixa de penas pertencem todas a um mesmo
conjunto, o que dizer dos potes? Nenhuma de nossas histórias nos dá infor-
mações sobre o tipo de vaso utilizado, mas muitos elementos indicam que
seu protótipo seja o pote de cerâmica feito para guardar veneno de curare.
Consideremos o seguinte:
O curare é uma substância preta e resinosa, ideal para a imagem da
noite como substância e, onde há a descrição, o recipiente de cerâmica da
noite é cuidadosamente selado, com uma tampa amarrada por fios, asseme-
lhando-se muito a um pote de curare. Assim como o Dono da Noite, o Dono
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artigo | stephen hugh-jones
do Veneno (barasana Rima Hino, “Anaconda Venenosa”), personagem de outro
conjunto de histórias, também tem o sono pesado, só podendo ser despertado
por cacos de cerâmica incandescentes ou golpes em sua canela. Tal como o
pote da noite, o pote de curare da Anaconda Venenosa é repleto de insetos
e criaturas relacionadas, dessa vez com ênfase no veneno. A tampa é a teia
de uma aranha venenosa, a linha que segura a tampa é uma centopeia ve-
nenosa e a espátula, a cauda de um escorpião. Na linguagem xamanística, a
frase (makuna) ñami rima oka, “o veneno da noite”, é utilizada como um termo
abrangente para se referir a todos os diferentes perigos da noite, de animais
assustadores a espíritos malevolentes, passando por intrigas e desavenças,
pesadelos e preguiça, feitiçaria, doenças, velhice e morte (Århem et al., 2004;
Hugh-Jones, s.d.). Finalmente, o pote da noite era, de fato, um pote de veneno
não só porque fora precedido por um pote cheio de chagas, como vimos, como
também pelo fato de que a aquisição da noite colocou o tempo em movimento
e, com a alternância de dia e noite, veio a alternância de vida e morte.
De modo previsível, os temas da mortalidade e da imortalidade per-
meiam essas histórias. O Dono da Noite e os Criadores que o visitam são seres
imortais que vivem, hoje, como fontes contínuas de poderes e conhecimento
xamanísticos. Porém, como resultado da estupidez dos Criadores e da raiva
do Dono, os mortais comuns estão condenados a falecer (ver, especialmente,
Matapi & Matapi, 1984).
Uma manifestação da imortalidade do Dono da Noite consiste na divi-
são do seu corpo entre noite e dia, característica já apontada. Outro exemplo é
sua habilidade de se renovar, mudando a própria pele. Quando o despertam de
seu sono profundo, ele parece velho e feio, com o cabelo emaranhado e o rosto
coberto por barba, mas, então, ele remove seu ser velho como uma pele ou
máscara, que arranca da cabeça e do rosto, pendurando-a em uma viga de sua
maloca. Em seguida, sai para se lavar e retorna limpo, novo, com o rosto pinta-
do e portando brincos e colares (Azevedo & Azevedo, 2003; Lana & Lana, 1980).
O tema da mudança de pele e da imortalidade que figura proeminen-
temente em nossas histórias nos leva novamente ao veneno e aos insetos. Os
insetos desempenham um papel central nas histórias do caraná e da noite:
o Dono da Noite é o Pai dos Grilos (Schauer & Schauer, 1975), e o recipiente
da noite contém formigas, grilos, vaga-lumes e outros insetos. Os insetos são
apropriados em virtude de sua cor preta, seus cantos e seus voos noturnos,
bem como pelo fato de também trocar suas peles, um signo de imortalidade
compartilhado com cobras venenosas e aranhas.
Tais relações evidenciam-se na história, bastante difundida na região,
de uma divindade que oferece aos ancestrais da humanidade folhas de coca
armazenadas em uma cabaça infestada por criaturas venenosas, que picam e
ferroam. Os ancestrais se recusaram a comer dessa cabaça, e, por causa disso,
hoje, todas as pessoas são mortais. Já as cobras, aranhas e insetos venenosos
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comeram da cabaça, então puderam trocar de pele e viver eternamente (ver
Fulop, 2009: 49-51 e comparar com Hugh-Jones, 2013: 238 ss.). Essa história, in-
timamente ligada à origem da noite (ver, por exemplo, Fulop, 2009), é também
uma transformação de outra história em que as mesmas criaturas venenosas
roubam seu veneno do pote de curare da Anaconda. A mudança de pele, a
imortalidade e o veneno estão claramente conectados.
O pote que guardava a noite era, de fato, um cálice envenenado, pois,
conquanto as gerações possam se suceder, umas após as outras, como o dia
e a noite, todo indivíduo está fadado a morrer. Por contraste, os ornamentos
plumários são eternos. Os primeiros seres pré-humanos eram criaturas de
espírito puro, sem substância corporal mortal, que assumiram a forma desses
ornamentos e ainda hoje neles permanecem existindo, dentro de sua maloca-
-caixa de penas. Durante os rituais que garantem a reprodução social e a
fertilidade das estações, os dançarinos que se adornam com tais ornamentos
plumários fazem um breve retorno ao estado ancestral e imortal.
Se minha hipótese sobre o pote recipiente da noite como um equiva-
lente do pote de curare está correta, podemos concluir que, ao apresentar as
caixas de ornamentos imortais e os vasos de veneno como duas alternativas de
recipiente para a noite, nossas histórias expressam a tensão entre a esperança
e o desespero ou entre a imortalidade e a morte.
Seja como for, é certo que os distintos recipientes vinculam-se a duas
formas alternativas de controlar a noite: potes e castanhas junto a barulhen-
tos e fastidiosos insetos; caixas junto a pássaros coloridos, canto e dança dos
humanos.
RUÍDOS NA FLORESTA
Como já vimos, antes de dar aos Criadores o recipiente contendo a noite, o
Dono forneceu cuidadosas instruções sobre como lidar com seus perigos. Al-
gumas instruções se referem ao local e momento certos para abrir o recipiente.
Nem todas as versões trazem detalhes, porém, quando é o caso, fica evidente
que os Criadores deveriam abrir o recipiente no interior da maloca e, de pre-
ferência, no contexto de uma dança ritual, apropriado para os encantamentos
xamanísticos que protegem as pessoas dos perigos associados à noite.2 As ou-
tras instruções dizem respeito a como pôr um fim à primeira noite e garantir
a alternância regular e bem medida entre o período noturno e o diurno.
Nas histórias em que a noite está dentro de uma castanha ou pote, as
instruções indicam que os Criadores devem reproduzir os padrões dinâmicos
dos sons dos insetos que marcam a passagem da noite, em particular o período
que vai da meia-noite ao alvorecer. Em algumas histórias, os Criadores apenas
criam ou se transformam em animais ou pássaros, que então emitem os sons
que indicam a proximidade do amanhecer.3 Porém, em outras histórias, o Dono
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da Noite fornece instruções explícitas para que os Criadores imitem os sons
dos insetos noturnos, a “Gente Velha da Noite” (kubeo tiritiriarü). Por exemplo,
em uma história kubeo (Correa, 1997), o Dono da Noite diz aos Criadores que
eles devem, primeiro, repetir “ti-ti-ti, ti-ti-ti”, depois “tiri-tiri-tira-tira, tiri-tiri-
-tira-tira”; então, “ti-ti-tira-tira, ti-ti-tira-tira”, e, assim, se fizerem tudo cer-
to, escutarão os insetos respondendo aos diferentes chamados, conduzindo
a noite para que chegue ao seu término e permitindo o romper da alvorada.4
Obviamente é muito difícil decorar tudo isso, sobretudo quando se está
tropeçando no escuro e na chuva, molhado até os ossos, mesmo que se tenha
conseguido, antes de mais nada, ficar acordado para ouvir todas instruções.
Assim, os irmãos mais velhos sempre falham, e é com muita dificuldade que
o Criador mais novo consegue, afinal, lembrar-se das instruções e levar a pri-
meira noite catastrófica ao seu fim.
CANTOS E DANÇAS NA MALOCA
Nas narrativas em que a noite estava contida na caixa de penas, as instruções
se tornam mais elaboradas. Embora uma versão incluísse ainda o episódio da
imitação dos ruídos dos insetos, no conjunto a ênfase recai na manipulação da
caixa de penas, nos atos de colocar e de retirar os adornos, nos cantos e no uso
de um chicote ritual ou de uma lança-chocalho. Observemos essas instruções
em detalhe, examinando algumas versões da história que são, evidentemente,
transformações umas das outras:
A. Antes de entregar a caixa, o Dono da Noite se adorna com enfeites plumá-
rios e então empurra a caixa pelo chão da casa com a ponta dos pés. Movendo
a caixa desse jeito, o Dono sugere que a caixa é leve. Os Criadores, porém,
descobrem, depois, que, para eles, a caixa é excessivamente pesada. A movi-
mentação da caixa pelo chão da maloca marca a passagem do tempo: cada
empurrão com a ponta dos pés significa minuto e, a cada hora, o Dono bate
na caixa com seu bastão (ou chicote) e invoca as criaturas da noite, cantando
“titi titi”, como já mencionado. Começando no crepúsculo, durante toda a noite
o Dono empurra a caixa do fundo da casa, até a porta da frente, isto é, o alvo-
recer. Ele então remove seus “adornos de sono”, entrega a caixa aos Criadores
e volta a dormir (Buchillet, 1983; Lana & Lana, 1980, Lana, 2009).
B. Em outra versão, somos informados de que, em vez de cantar ou bater na
caixa com um bastão ou chicote, o Dono usa a lança-chocalho para imitar o
som dos insetos da noite. Mais tarde, após os irmãos mais velhos terem falha-
do, o Criador mais novo consegue terminar a noite ao utilizar a lança-chocalho
para imitar os insetos, chocalhando inicialmente à meia-noite e depois quatro
vezes mais, até o amanhecer. Ainda em outra versão, os Criadores usam “varas
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de pesca” para golpear a caixa, primeiro para abri-la e ver o que ela contém,
depois para persuadir alguns dos grilos a voltar para dentro, trazendo a noite
ao seu fim (Andrello, s.d.).
C. Outra versão segue-se assim:
Ele já vinha fazendo cerimônia com seu chocalho. Por isso, hoje em dia, se escuta
no começo da noite os insetos cantando.
Essa caixa tinha todos os ornamentos e enfeites de dança. Ele empurrava a caixa
com o pé e explicava: primeiro, na caixa tem um colar de miçangas, depois tem
osso de veado, esclarecendo como cada objeto deveria ser usado depois. Mandou
deixar peneiras e colocou em cima delas. Cada vez que começava a explicar, eles
cochilavam. Depois de cada explicação, ele dançava. Disse que nos quatro pontos
há ganchos, nos quais pendia a noite. Depois da meia-noite ele ainda ensinou
como guardaria os instrumentos e ornamentos que estava usando. Primeiro, ex-
plicou como desmanchar a amarração dos ganchos – os nós que os seguram – e
guardá-los na maloca. Depois ele foi guardando os ornamentos, após um movi-
mento da dança. Firam tirando cada enfeite até amanhecer, quando fechou a caixa
e entregou para eles. Por isso, até hoje os Baya dançam durante toda a noite (ver
Århem et al., 2004: 189; ver também Trupp, 1977: 32 para uma sequência similar
de ornamentos e danças).
Na sequência, após os dois irmãos mais velhos não lograrem pôr fim à
noite, eles dão ao irmão mais novo um chicote ritual, confeccionado a partir
de um broto de árvore, permitindo que ele tente a sorte.
Sendo o último, o mais inteligente, ele se ornamentou com os colares de miçanga,
conforme havia visto na maloca, e cocares de penas de arara. Ele pronunciava o
nome de cada enfeite e ia juntando-os e ornamentando-se. À meia-noite, já esta-
va pronto, com todos os adornos que os Baya usam. Após isso, nessa hora todos
os insetos param de zoar. Ele começou a reza, desmanchando os ganchos presos
no norte, sul, leste e oeste. Também começou a tirar e guardar os ornamentos
(Århem et al., 2004: 191).
D. Uma última versão narra o seguinte:
Ñamiri começou a explicar como desmanchar o nó da corda de miçangas que
mantinha a terra presa no seu suporte, impedindo o movimento do dia e da noite.
Em primeiro lugar, disse que eles deviam pensar que, um dia, as futuras gerações
teriam um tempo reservado para dançar os cantos dos Kapiwaya, os cantos que
acompanham a tomada de caapi, e que essas danças iriam durar uma noite in-
teira. A noite equivale ao tempo de duração da dança dos Kapiwaya (Fernandes
& Fernandes, 1996: 94).
Daí, o irmão mais novo põe fim à noite: “calculando que era o tempo
do encerramento da dança dos Kapiwaya, começou a cantar a cerimônia de
dividir o tempo, desmanchando o nó da corda de miçangas” (Fernandes &
Fernandes, 1996: 98). Ele entoa um canto cujos quatro versos distintos se re-
ferem a uma sucessão de diferentes miçangas coloridas: vermelhas como o
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carajuru – crepúsculo; pretas como os insetos noturnos – noite; amarelas como
o ocre – primeira luz; então, miçangas brancas – dia; os dois primeiros versos
com o refrão “titi titi”, os últimos dois com “titi tiri sira sira sira” (Fernandes
& Fernandes, 1996: 98-100).
A LANÇA-CHOCALHO E A CAIXA DE PENAS
Muitos pontos surgem desse conjunto de variantes. Para começar, as histórias
apresentam o controle da noite em diferentes registros: um auditivo e outro
combinando o auditivo com o visual. Esses dois registros são predominantes e
associam-se não exclusivamente aos dois tipos de recipientes, a castanha ou
pote, de um lado, e a caixa de ornamentos de penas, de outro. Um conjunto
de instruções trata de insetos, e a gradação cromática se aplica apenas no
nível dos sons: os diferentes barulhos dos insetos indicam diferentes partes
da noite, mas os insetos e seus recipientes continuam negros como a noite. O
tempo noturno é uma experiência essencialmente incolor, em que o sentido
auditivo é fortemente ampliado – e a noite amazônica é preenchida por uma
extraordinária cacofonia de sons estranhos e desordenados.
O outro conjunto de instruções versa sobre os pássaros não apenas
porque a caixa é um recipiente dos ornamentos de penas, mas também porque
há aí um contraste implícito entre os ruídos dos insetos noturnos e incolores
e os cantos dos pássaros diurnos e coloridos, que fornecem a matéria-prima
e os protótipos para o canto e a dança dos homens. Os pássaros são animais
da floresta, como os insetos, porém, ao contrário destes, aqueles podem ser
domesticados e trazidos para a casa como animais de estimação e fonte de
penas. Nos mundos das aves e dos humanos, o canto e a ornamentação colo-
rida andam juntos.
As instruções associadas à caixa de penas são cromáticas em vários ní-
veis: implicam, primeiramente, colocar e retirar uma série ordenada de objetos
que são inerentemente coloridos e utilizados em uma sequência ordenada, da
parte da frente para a parte de trás da cabeça e, em seguida, no restante do cor-
po (ver Hugh-Jones, 2014). A sequência da ornamentação é intercalada com uma
sequência de diferentes versos dos cantos, sonoridade humana, organizada e
cromática, contrastante com a cacofonia indiferenciada dos insetos da floresta
e que se faz acompanhar por uma série de danças. Aqui, são o canto e as danças
dentro da casa, em vez dos ruídos da floresta, aquilo que ordena o tempo. Final-
mente, as danças rituais que ocorrem em diferentes estações do ano exigem di-
ferentes ornamentos e diferentes instrumentos musicais (Matapí et al., 2010: 36).
As narrativas em que o Dono da Noite se ornamenta, dança e canta não
são apenas sobre a origem da noite, mas também, por consequência, sobre a
origem dos adornos plumários e dos cantos e músicas que os acompanham.
Uma versão makuna afirma explicitamente que “nessa noite a palavra de co-
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nhecimento estava se originando – keti oka; nesse momento, os Ayawa não
souberam manejá-la e deixaram-na escapar. Surgiram as danças boas para
a gente, e eles também deixaram-nas escapar” (Acaipi, s.d.). A demonstração
do Dono da Noite nada mais é do que uma sessão de ensinamentos rituais, e
as narrativas refletem com precisão o que realmente ocorre durante as dan-
ças rituais no noroeste amazônico. Os adornos plumários são especialmente
associados às danças que acontecem durante a noite. O ritual, como um to-
do, consiste em uma sequência de duas danças-canções. Durante a primeira
dança-canção (barasana basa müta, “a pequena dança”), os dançarinos vestem
apenas simples diademas solares, compostos de plumas vermelhas e amare-
las. Então, no crepúsculo, a caixa de penas é aberta, conjuntos completos de
adornos são distribuídos entre os dançarinos, e a segunda dança-canção (ba-
rasana basa bükü, “a grande dança ou dança principal”) tem início e continua
até depois do alvorecer.
Conforme indicado nas narrativas, a sequência temporal da dança é
marcada por uma mudança no tipo de ornamentação e, quando a noite come-
ça, a caixa é aberta, e os ornamentos são distribuídos aos dançarinos, assim
como as folhas e os ornamentos foram distribuídos pelo mundo. A duração da
noite é segmentada por uma sequência de diferentes versos alternados com
longas sessões de cantos. Então, a partir da meia-noite, as sessões de canto
são marcadas pelo som ritmado da lança-chocalho do kumu. Ao longo da noite,
o kumu lança encantamentos sobre cabaças de coca e outras substâncias es-
peciais. Essa é a “reza” que, nas narrativas, desata os nós e mantém o tempo
em curso. Trata-se de um conjunto de procedimentos também chamado de
“curando o tempo”. Depois do amanhecer, em plena luz do dia, a dança termina,
e os dançarinos removem seus ornamentos e os guardam novamente na caixa.
Por fim, qualquer pessoa indígena que narra ou escuta as histórias so-
bre a origem da noite sabe que as danças ali referidas estão intimamente li-
gadas aos ciclos sazonais. As danças celebram a época de derrubar e queimar
as roças e a época de abundância de alimentos que resulta dos frutos sazo-
nais das árvores, bem como as formigas voadoras, a desova dos sapos e a pi-
racema, que seguem o padrão sazonal das chuvas. Elas também marcam os
eventos importantes dos ciclos temporais humano: a primeira menstruação, a
iniciação de um rapaz ou a inauguração da nova maloca de um chefe. O tem-
po que desabrocha nessas narrativas não é apenas o tempo da noite e do dia,
ou o ciclo de vida humana, do nascimento à morte, mas também é o tempo
cósmico e cíclico das estações do ano. Nem todas as narrativas o afirmam
explicitamente, mas isso se depreende de inúmeras referências à origem de
diferentes espécies e dos frutos das árvores contidas nas narrativas sobre a
primeira longa noite (ver, especialmente, Acaipi, s.d. e também Århem et al.,
2004; Correa, 1989; 1996 e Matapí & Matapí, s.d.), bem como de certos detalhes,
como quando aprendemos que os animais libertados do recipiente da noite se
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tornaram constelações celestes (Andrello, s.d.; Rojas Sabana, 1997), ou que
determinados conjuntos de estrelas são ornamentos plumários (Oliveira, s.d.).
Um segundo ponto é que as histórias evidenciam que a caixa de penas é,
de fato, o sol. A caixa é feita de palmas claras e amarelas, como o sol; contém
um conjunto de ornamentos cujas cores predominantes, amarelo e vermelho,
são as mesmas do sol; pende acima do centro da maloca, tal qual o sol pendia
antes da liberação da noite; e seu movimento atravessando o chão da maloca
marca as divisões da noite, do crepúsculo e da alvorada. Considerando que
a parte dos fundos da maloca volta-se para o oeste, e que a parte da frente
volta-se para o leste, podemos deduzir que a passagem da caixa pelo chão da
maloca representa o caminho noturno do sol pelo mundo subterrâneo, que o
leva do oeste até seu novo surgimento, no leste. Um terceiro ponto se relacio-
na com o chicote ritual e a lança-chocalho, objetos que são empregados tanto
para bater na caixa de penas como para imitar o som dos insetos, e que são,
ambos, portanto, instrumentos para controlar o tempo. Os chicotes são fei-
tos a partir de brotos finos de árvore, descascados, que também servem para
confeccionar varas de pesca. São empregados para bater nas pessoas a fim de
torná-las fortes, principalmente durante os ritos de iniciação. Porém, às vezes,
também são usados para castigar mulheres e crianças (ver Hugh-Jones, 2013).
Em algumas línguas tukano, os chicotes são chamados de “vara de tocandira”
(barasana heta waso), pois, assim como as venenosas formigas tocandira, eles
possuem uma ferroada dolorosa. Os chicotes são, portanto, associados tanto
a insetos quanto a veneno. Por fim, são também instrumentos musicais – nas
narrativas, eles são usados para acertar a caixa de penas, e, nos rituais, o kumu
os agita agressivamente para produzir um intenso ruído sibilante. A propósito,
as formigas tocandira também emitem um chiado audível.
A lança-chocalho e o chicote são, funcionalmente, equivalentes: am-
bos fazem par com a caixa de penas; ambos produzem sons relacionados aos
insetos (a lança imitando o som dos grilos, e o serpentear do chicote, usado
para bater na caixa de penas, anunciando a picada da formiga); e ambos são
armas, o chicote por razões óbvias, a lança aparecendo como arma em outras
histórias (ver, por exemplo, Galvão & Galvão, 2004: 404). Finalmente, ambos
são utilizados como alternativas para fins bastante similares, e um pode ser-
vir de substituto ao outro: em uma das versões, o Dono da Noite usa a lança
dentro de casa, ao passo que os Criadores precisam empregar um chicote
(feito às pressas para tentar repetir as instruções) na floresta. Podemos dizer
que o chicote, um mero broto descascado, pertence à floresta, já a lança, que
equivale a um chicote sofisticadamente trabalhado, pertence à casa – tal qual
o barulho dos insetos pertence à floresta e os cantos e danças humanas per-
tencem à casa.
A lança-chocalho (barasana besuwü yukü; tukano yeegü) é um instrumen-
to que parece ser exclusivo da região do noroeste amazônico. Ela consiste de
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uma haste cônica de madeira de lei, de um vermelho forte, finamente polida,
com cerca de dois metros de comprimento. A extremidade mais fina termina
em uma ponta afiada. Acima da ponta há uma dilatação oca, com fendas em
suas laterais contendo pequenos seixos de cristal. A lança é, efetivamente,
um maracá encrustado em uma haste longa e flexível. É tocada simplesmente
chacoalhando-se-a com as mãos – “titi titi, titi titi” –, ou segurando-se a ex-
tremidade mais fina com uma das mãos, e batendo na haste com a outra, ou
ainda dando-se leves pancadas contra o ombro, de modo a fazê-la vibrar em
toda a sua extensão, o que resulta no soar do chocalho – “tiriri tiriri sira sira”.
O topo da lança é ricamente decorado. Na extremidade, há dois dentes
de osso ou de presa de animal. Logo abaixo há uma seção entalhada, na qual
o baixo relevo é preenchido com giz branco. O entalhe consiste de duas figuras
semelhantes, cada uma com medalhões em lados opostos, separados por uma
forma que lembra ampulhetas. Os medalhões superiores representam o sol;
os inferiores representam a lua, e as ampulhetas são os suportes da cabaça.
Abaixo, há três penachos, o primeiro de penas pretas de mutum, o segundo de
penas vermelhas e amarelas de cauda de tucano, o terceiro de penas brancas
de abutre e outras aves de rapina. Entre esses penachos há bandas de mosai-
co, feitas a partir das pequenas e iridescentes penas azuis de uma espécie
cotinga, cada uma cuidadosamente colada à haste. Após o penacho branco, o
entalhe se repete, depois, outro penacho branco abaixo. Finalmente, quando
está sendo utilizada, uma corda de pelo de macaco, terminando em um par de
vivas penas amarelas de japu com franjas vermelhas e amarelas de penas de
tucano, é amarrada próxima ao penacho mais baixo. Esta corda de pelo parece
ecoar as “largas mechas de cabelo humano retiradas quando o objeto é vendido
a um branco” descritos por Stradelli (Biocca, 2007: 52), pois tanto os cabelos
humanos quanto os pelos dos macacos possuem conotações de periodicidade
(ver Hugh-Jones, 2014: 164). A lança é um instrumento de som e luz, com um
chocalho em uma extremidade e vivas penas celestiais na outra. O pelo ou
cabelo e as imagens do sol e da lua enfatizam seu papel como instrumento
de controle do tempo.
Esse belo instrumento é controlado pelo kumu, que cuida dos procedimen-
tos rituais coletivos, entoa os encantamentos e desempenha outros cuidados
xamanísticos a fim de proteger os participantes das ameaças da noite e dos pe-
rigos da estação à qual a dança é associada. O kumu emprega a lança para marcar
as divisões da noite, fazendo-a soar primeiramente por volta da meia-noite, e
depois periodicamente entre as sessões de canto e dança que se seguem até o
amanhecer. Tal como os Criadores imitaram os sons dos insetos para dividir a
noite, às vezes por meio da lança-chocalho, às vezes usando a própria voz.
A lança é tema de comentários elaborados, que enfatizam seu papel no
controle do tempo. Além das gravuras do sol e da lua, o topo plumado da lança
é o rosto do sol; a haste sendo sua coluna dorsal, um eixo cósmico (axis mundii),
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unindo as diferentes camadas do universo. A dilatação distal do chocalho é o
recipiente em que se guardava a noite, com suas duas incisões a representar
a divisão entre o dia e a noite, e a ponta representando a chave da caixa. A
lança também serviu como um compasso, guiando os ancestrais à medida que
viajavam do leste, rio acima na canoa ancestral, e serviu como um gnômon que
lhes permitiu encontrar a região em que agora vivem: fincado verticalmente
no solo, ao meio-dia não produz sombra (Galvão & Galvão, 2004: 29).
Por fim, a lança e a caixa são guardadas juntas, como um par, pendura-
das conjuntamente em um cipó amarrado ao teto, de um dos lados da parte
central da maloca. Oposto a elas, do outro lado do espaço central, fica o mastro
que é utilizado para iluminar a maloca durante a noite: a luz emana da queima
de uma resina colocada em seu topo ou de lascas de madeira inseridas em um
talho lateral (ver imagem 1 na pág. 686). Esse mastro e a combinação de lança-
-solar e caixa de pena são assimilados como fontes de luz. Eles também são
contrastados, de um lado com a luz metafórica de um conjunto de artefatos,
de outro com a chama luminosa de um produto flamejante da floresta.
CONCLUSÃO – O CONTROLE DO TEMPO EM UM UNIVERSO EM EXPANSÃO
Armados com essa complexa rede de informações sobre a natureza e as associa-
ções dos chicotes e das lanças-chocalho, seus papéis e suas relações com a caixa
de penas, podemos agora começar a reunir as peças do quebra-cabeça, espalha-
das nesse conjunto de narrativas, de modo a colocar em foco a imagem maior.
Ao comentar a relação entre folhas, penas e cabelo, notamos que o
universo, a maloca e a caixa de penas estão relacionados como um conjunto
de recipientes em que o universo engloba a maloca, que, por sua vez, engloba
a caixa de penas. Antes da aquisição das casas, do caraná e da noite, os Cria-
dores viviam dentro de uma única maloca, coextensiva ao universo. Porém,
dentro dessa Maloca-Universo, havia outra maloca menor, habitada por um
Dono poderoso, que controlava os materiais de que os Criadores necessitavam.
Em relação aos Criadores em sua Maloca-Universo, a maloca do Dono era co-
mo uma caixa de penas, uma fonte de penas, contida na Maloca-Universo. Do
ponto de vista do Dono, sua maloca continha uma caixa de penas ainda menor:
aquela que ele deu aos Criadores. Tudo isso é muito claro nas histórias sobre a
noite. Do lado de fora, no Universo-Maloca, havia um dia eterno e sem divisão.
Mas, dentro da maloca do Dono, a noite e o dia não somente existiam, como
transcorriam em duas escalas distintas. O Dono ensinou os encantamentos
necessários durante a noite, e indicou o momento apropriado para cada fór-
mula xamanística. Então ele deu aos visitantes a própria noite, encerrada na
caixa (ver imagem 2 na página 687).
As narrativas destacam, reiteradamente, uma situação inicial em que a
terra, as árvores, as folhas de colmo ou a noite estão confinadas em um único
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pacote ou recipiente, e uma situação final em que, sendo liberadas explosiva-
mente pelas ações tolas dos Criadores, esses materiais, doravante, distribuem-
-se aleatoriamente pelo mundo. Com a liberação das árvores e das folhas, ago-
ra é possível haver diferentes malocas individuais dentro da Maloca-Universo,
cada uma delas contendo sua própria caixa de penas como um recipiente
ainda menor dentro de si. Essa é uma mudança em escala na qual o universo
se expandiu para sua forma presente. A mudança em escala também se apli-
ca aos Criadores, pois, tão logo obtiveram os materiais de que precisavam,
tornaram-se Donos por direito. E o mesmo ocorre cada vez que um indivíduo
constrói uma nova maloca, toma posse de uma caixa de ornamentos e inicia
uma carreira como patrocinador de danças-rituais. Ele também se torna um
Dono. Esse é o fardo implicado na lição que as narrativas repetidamente en-
fatizam: a construção de uma maloca e a organização de rituais que são parte
integrante da vida na maloca são trilhas para o poder, mas também acarre-
tam pesadas responsabilidades e perigos potenciais. Tais responsabilidades e
perigos existem tanto na escala humana quanto na escala cósmica. Os rituais
na maloca – nos quais se utilizam a lança-chocalho, a caixa de penas e os or-
namentos – são, ao mesmo tempo, eventos, e posições sociais são negociadas
e ocasiões dedicadas ao controle ritual do tempo.
Podemos, agora, entender a razão pela qual o Dono da Noite tanto insistiu
para que os Criadores abrissem a caixa da noite no momento certo e no lugar
correto (quando tivessem um fogo aceso para iluminar o interior da maloca e
se tivessem preparado para a dança ritual). Embora a noite ainda não existisse
para os Criadores, eles deveriam abrir a caixa em um tempo destinado a ser o
tempo da noite. Essa é a ordem apropriada das coisas, o período em que, hoje,
a dança ritual ocorre dentro da maloca. O duplo erro dos Criadores (tanto no
tempo como no espaço), abrindo a caixa durante o dia e na floresta, causou uma
mudança de escala violenta e descontrolada entre a caixa de penas, a maloca
e o universo. Essa expansão em escala, que colocou o tempo em movimento, é
o equivalente da inversão entre interior e exterior. A noite, que estava dentro
da caixa, agora permanece fora, na Maloca-Universo, envolvendo os Criadores
(ver também Fontaine, 2014: 56, 68, 73). O que havia dentro transformou-se no
que há fora, e os conteúdos transformaram-se em continente.
Considerando a equivalência entre o universo, a maloca e a caixa de
penas, observemos com mais detalhes de que modo opera o ritual de controle
do tempo. Durante o dia, a luz do sol ilumina o interior do universo: o som
predominante é o canto dos pássaros (em geral) coloridos, e o ruído dos grilos
e de outros insetos se esvai, ao fundo. Dentro da maloca, a situação é inversa:
o exterior é iluminado pelo sol, o interior se mostra muito escuro e nenhuma
luz (solar) é emitida pelo mastro de luz ou por seu par gêmeo do outro lado,
os ornamentos de penas e a lança-chocalho. Os ornamentos estão dentro da
caixa, o topo da lança está coberto em uma bainha protetora e não há canto
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ou dança. Dentro da caixa de penas, a maloca da “gente adorno”, a situação
é, novamente, inversa: o exterior é escuro, porém o interior é de um intenso
amarelo, iluminado por ornamentos solares, pessoas à sua própria maneira
que, sem dúvida, ali cantam e dançam, pois esse é seu tempo noturno – o
mundo fora da caixa, na maloca, está na escuridão.
Na noite em que há dança ritual, todos os termos se invertem: o interior
do universo está escuro, somente se vê a luz tênue da lua e das estrelas, não há
cores visíveis, nem canto de pássaros – mas, o som dos insetos preenche o ar. O
exterior da maloca está escuro, mas o interior é iluminado por uma chama de
resina, queimando no mastro de luz. Os ornamentos são cuidadosamente reti-
rados da caixa e distribuídos entre os dançarinos – uma repetição da primeira
abertura catastrófica da caixa de penas, porém, dessa vez, sob condições me-
ticulosamente controladas, tal como foi ensinado originalmente pelo Dono da
Noite. Em vez de estarem envoltos em escuridão, os dançarinos agora vestem
os ornamentos, um a um, até que estejam adornados em trajes de luz. Eles se
tornam iguais aos Criadores e dançam ao redor da maloca, que agora se situa
em uma escala cósmica. Ao mesmo tempo, se o exterior da caixa de penas
está iluminado pela dança, seu interior está escuro, pois os ornamentos estão
ausentes. À medida que dançam junto ao corpo dos dançarinos, eles também,
os adornos, aumentam de escala. Finalmente, quando o sol se levanta no céu
e um novo dia irrompe lá fora, o ciclo recomeça, outra vez: a dança termina,
os grilos silenciam, os ornamentos são acondicionados na caixa e o interior da
maloca está novamente escuro – “noite” (ver diagrama na pag. 689).
Tudo isso me leva de volta ao começo. Vimos que a caixa de penas é, de
fato, um operador espaçotemporal, uma máquina do tempo que, como o sol,
transforma o dia em noite e a noite em dia. Mas, no percurso, aprendemos
muito mais do que isso. Explorando a relação entre o caraná e as penas, de-
monstrei como o significado da caixa se estende profundamente aos detalhes
dos materiais, cores e texturas. Também demonstrei que muito do conteúdo
simbólico da caixa reside em sua relação com outros conjuntos de objetos:
de um lado as castanhas e potes que servem como recipientes alternativos
para a noite, de outro, a lança-chocalho. Sugeri que o pote da noite poderia
ser o pote empregado para armazenar curare, mas isso, para ser devidamente
demonstrado, carece ainda de mais conversas com os indígenas da região. A
lança-chocalho me leva a um comentário final.
Em uma discussão sobre como o tempo e as estações do ano são
codificados acusticamente na mitologia sul-americana, Lévi-Strauss (1973:
361-422) estabelece uma analogia entre os sons produzidos por instrumentos
percussivos ameríndios e os badalos e chocalhos da Europa, conhecidos como
“instrumentos das trevas”, que soavam no lugar dos sinos das igrejas no perío-
do da Páscoa, ao final da Semana Santa. Fazendo referência à narrativa bem
semelhante àquelas que vimos considerando acima, na qual a noite é oriunda
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Uma lança-chocalho emparelhada
com duas caixas de penas
suspensas em posição oposta ao
mastro de luz no interior de uma
maloca.
Foto de Stephen Hugh-Jones.
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Desenho de Feliciano Lana. Publicado em
Lana & Lana (1980).
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do interior de uma noz, Lévi-Strauss observa que essa noz é um instrumento
da escuridão no sentido literal – ela contém a noite –, enquanto seus análogos
europeus somente o são em um sentido figurado. A ligação destes últimos com
as “trevas” provém da associação com a escuridão que cobriu a Terra quando
Cristo morreu, e com os antigos ritos envolvendo a extinção e a renovação
dos fogos domésticos. Contudo, apesar da ênfase na dimensão sonora, Lévi-
-Strauss não encontrou exemplos ameríndios convincentes no que diz respeito
à oposição entre os aspectos musical e visual dos instrumentos da escuridão.
Ora, as relações entre a caixa de penas e a lança-chocalho parecem-me
um exemplo perfeito do tipo de fenômeno que Lévi-Strauss tinha em mente.
Vemos que os dois objetos operam em conjunto mediante uma combinação de
registros visuais e auditivos. A caixa de penas é, ao mesmo tempo, um instru-
mento da escuridão e um instrumento da luz, pois combina a noite e o dia, sol
e lua. Dessa forma, a caixa é fundamentalmente um instrumento visual, mas,
de várias maneiras, é também musical: nela bate-se com um chicote, emitindo
sons percussivos; ela contém os adornos que são intrinsecamente ligados ao
canto e à dança; e os dançarinos que se enfeitam com os ornamentos também
usam chocalhos noturnos, cujo som é o som dos insetos noturnos. Por sua
vez, a lança-chocalho (sendo um maracá alongado) é fundamentalmente um
instrumento musical, mas também é um instrumento de luz, possuindo seus
próprios ornamentos celestiais. Quando a caixa é aberta, libera os adornos que
colocam o tempo em movimento, mas com o risco de trocar um extremo pelo
outro, uma noite longa que substitui um longo dia. O som da lança e o cantar
e dançar que a acompanham reduzem a duração da noite longa, garantindo a
alternância equilibrada de noite e dia.
Com esta conclusão, também tentei dar sentido a um grande corpus de
narrativas (que nos chegaram, algumas, em versões bastante empobrecidas,
fragmentos de outras versões maiores), procurando relacioná-las umas às ou-
tras e devolvendo o conjunto a seus contextos etnográficos. Ao mesmo tempo,
em um movimento reverso, analisei as narrativas para lançar nova luz sobre
aspectos de uma cultura comum e compartilhada em grande parte do noroeste
amazônico. Em particular, vimos como a manipulação ritual de objetos serve
como meio de controle do tempo. Foi necessário abordar o assunto em termos
bastante gerais, pois um tratamento detalhado do complexo universo ritual
me desviaria do foco deste ensaio.
Seguramente, minha explicação é muito distinta daquela que um kumu
tukano poderia fornecer. O kumu colocaria ainda mais camadas de referências
míticas e listas de propriedades perigosas e protetoras de lugares, coisas e
ações. Minha análise utiliza um tipo de estratificação bastante diferente, mas
ainda assim baseia-se nos mesmos materiais dos quais o kumu deriva sua
“curación del tiempo” [cura do tempo]. O objetivo do kumu é proteger seu povo
e garantir a continuação da ordem do mundo. Meu objetivo tem sido oferecer
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diagrama
Inversões entre exterior e interior do dia para a noite
DIA
universo maloka caixa de penas
luz escuridão luz
“dia” “noite” “dia”
NOITE
sol + lua - ornamentos - lança - fogo - ornamentos +
interior iluminado interior escuro / exterior iluminado
interior iluminado / exterior escuro
pássaros: canto + cor + dançarinos - dançarinos +
grilos: ruído - canto - ornamentos - canto + ornamentos +
universo maloka caixa de penas
escuridão luz escuridão
“noite” “dia” “noite”
lua + sol - ornamentos + lança + fogo + ornamentos -
interior escuro interior iluminado / exterior escuro
interior escuro / exterior iluminado
pássaros: canto - cor - dançarinos + dançarinos -
grilos: ruído + canto + ornamentos + canto - ornamentos -
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entendimento das histórias que sustentam esse controle ritual do tempo. Co-
mo parte do exercício, também tentei explicar por que a palavra que designa
“sol” também indica o “caraná”. À primeira vista, isso parece apenas outro caso
desinteressante de homonímia. Observando de perto, percebemos que toda
uma cosmologia está escondida sob as folhas de colmo.
Recebido em 20/09/2015 | Aprovado em 07/10/2015
Stephen Hugh-Jones é professor honorário emérito e fellow
do King’s College da Universidade de Cambridge.
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NOTAS
1 Em uma variante do tema da caixa de duas cores, uma his-
tória kubeo fornece o seguinte detalhe: após a primeira noi-
te, Odoborü, o Morcego e Dono do Dia, foi checar se a noite e
o dia estavam na ordem apropriada. Ele foi até o Grande Rio,
onde todos os rios terminam, e trouxe de volta dois tipos
de cinza, um branco e outro preto, que colocou no topo da
caixa de penas (Correa, 1992: 48; Correa, 1997: 64).
2 Na realidade, as histórias vão de versões mais “fracas” em
que os Criadores são apenas instruídos de que devem ter
lenha para produzir bastante fogo (por exemplo, Matapí &
Matapí, s.d.: 61), passam por versões “intermediárias” nas
quais são instruídos a preparar cerveja de mandioca e fa-
zer a pintura corporal, pré-requisitos do ritual (por exem-
plo, Acaipi, s.d.; Buchillet, 1983; Galvão & Galvão, 2004),
até chegar em versões mais “fortes” em que a dança é
explícita (por exemplo, Azevedo & Azevedo, 2003:188-191;
Reis, 2013: 66).
3 Aqui o foco é geralmente no contraste entre a jacutinga
de cabeça branca (Aburria pipile) e o jacu de Spix (Penelope
jacquacu), que lida com as diferentes cores e cantos dos
dois pássaros, além dos dois momentos distintos em que
estão ativos antes da alvorada. Um tratamento detalhado
desse tema está além do escopo deste ensaio, porém, so-
bre “pássaros-relógio”, ver Lévi-Strauss (1970: 204, nota 3).
4 Isso replica com certa precisão o que é contado na área
Pirá-paraná. Ver também Correa, 1992; 1996 e Trupp, 1977
e o tema mais geral do recipiente que emite sons de grilos
ou que está cheio destes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Optamos por indicar entre colchetes, e após a referência
das obras em que estão registradas, as narrativas (e suas
versões) e os respectivos grupos indígenas no noroes-
te amazônico junto aos quais elas foram obtidas. Deste
modo, preservamos a intenção do autor no manuscrito
original e ao mesmo tempo valorizamos a sua extensa
pesquisa. [N.E]
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A ORIGEM DA NOITE: E POR QUE O SOL É
CHAMADO DE “FOLHA DE CARANÁ”
Resumo
A partir da análise de um amplo conjunto de narrativas
sobre a origem da noite, obtidas junto aos povos indígenas
da bacia do Alto Rio Negro no noroeste amazônico, este
artigo explora o modo como esses povos representam a
alternância entre o dia e a noite em diferentes planos de
significantes – nos sons e cores dos insetos, pássaros e
animais da floresta; nos materiais, texturas e cores de suas
casas e objetos; no corpo humano; e na música e na dança
rituais. Este último plano nos permitirá compreender o
ritual como um mecanismo de controle do tempo. Além
disso, espero lançar luz sobre as razões pelas quais, em
muitas línguas da família Tukano Oriental, os termos para
“sol” e para “lua” significam também, respectivamente,
“colmo” e “folha”.
THE ORIGIN OF NIGHT: AND WHY THE SUN IS
CALLED “CARANÁ LEAF”
Abstract
By analysing a wide set of narratives on the origin of
night found among the Indigenous people of the upper
Rio Negro, in northwest Amazonia, this article shows
how these people represent the alternation between day
and night at different levels of meaning: in the sounds
and colours of insects, birds and forest animals; in the
material, texture and colour of their houses and objects;
in the human body; and in ritual music and dance. This
latter level allows us to understand ritual as a mechanism
for controlling time. The article also investigates why, in
many Eastern Tukanoan languages, the terms for ‘sun’ and
‘moon’ also mean, respectively, ‘culm’ and ‘leaf’.
Palavras-chave
Mito;
Origem da noite;
Ritual;
Noroeste amazônico;
Etnologia indígena.
Keywords
Myth;
Origin of night;
Ritual;
Northwest Amazonia;
Indigenous ethnology.
SPACE-TIME TRANSFORMATIONS IN THE UPPER XINGU AND UPPER RIO NEGRO1
Geraldo AndrelloI
Antonio GuerreiroII
Stephen Hugh-JonesIII
I Federal University of São Carlos (UFSCar), Brazil
II State University of Campinas (Unicamp), Brasil
III University of Cambridge, United Kingdom
I. INTRODUCTION
The multi-ethnic and multilingual complexes of the Rio Negro and the Upper
Xingu stand out from the Amazonian landscape for some common charac-
teristics that frequently emerge in the ethnographies. Consider, for instance,
their (non-trivial) ideas about descent, the centrality of hierarchy in social
organization and ritual activities, or the unequal distribution of productive and
ritual specialties and esoteric knowledge. More importantly: (a) their common
propensity to form relatively peaceful and open-ended social systems based
on the combination of a peculiar type of political leadership with a stress on
ritual and material exchange; (b) their common emphasis on conventional
codes of speech, communication, use of ritual space and inter-personal rela-
tions. These characteristics of both areas as social systems eschew facile clas-
sifications based on ‘cultural traits’, allowing us to approach these complexes
as counterparts to or consequences of shared ideas of humanity which we
will discuss in this article. The image that emerges in each case is not easily
aligned, in any simple way, with descriptions from other parts of Amazonia,
where the salience of the idiom of affinity, equality and autonomy predomi-
nate. What, if any, is the specificity of these multi-ethnic networks?
With these questions in mind, the aim of this article is to discuss what,
from the perspectives of the people of the Upper Xingu and Upper Rio Negro,
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defines collectivities and their relations within heterogeneous networks. One
way of approaching the matter is by investigating how the people of both re-
gions conceive of their own humanity and that of their neighbours as variants
of a shared form. This seems to be an important axis for investigation, because
while other large-scale regional networks, such as the Jivaro or the Yanomami
(Albert, 1985; Descola, 1993), are, in many ways, articulated by predatory alter-
ity (whether real or symbolic), both the Upper Xingu and the Upper Rio Negro
seem to stress a different dynamic, emphasizing the exchange of objects, ritu-
als, visits, food and knowledge (without thereby completely excluding actual
or magical violence). A ritual process of negotiating positions and prerogatives
seems here to take the place of the latent state of war that stamps the social
life of other Amazonian peoples – involving, in this case, both relations of af-
finity and consanguinity (we will return to this point shortly). As Hugh-Jones
notes, the exchange of food, objects and knowledge as gifts, which is char-
acteristic of these regional systems, serves to extend to those beyond local,
ethnic or linguistic frontiers, those values and practices which, among other
Amazonian peoples, tend to remain circumscribed by intracommunal life:
such exchanges assume quite elaborate proportions and form integral compo-
nents of extensive regional systems in which the values of sharing, generosity,
peace, harmony, and mutual respect that are typical of the intra-community rela-
tions in most Amazonian societies are extended well beyond the residential group
to become the foundation of inter-tribal polities (Hugh-Jones, 2013: 357).
A related point which we will address are the forms and meanings of
hierarchy in these regional polities, since they seem to differ significantly from
concepts current in the anthropological literature. While the classic Dumon-
tian definition of hierarchy as the ‘encompassment of the contrary’ evokes a
spatial and synchronic language that describes relations through the delimita-
tion of an interior and an exterior domain, hierarchies in the Upper Xingu
and Upper Rio Negro seem to make use of a temporal and, therefore, diachronic
language. A hypothesis we want to test is whether the emergence of relations
referred to as ‘hierarchical’ is inseparable from the extension of a common
human condition to ethnic collectivities that are linguistically heterogeneous.
It is interesting to add that while alterity, as classically understood in Ama-
zonia, is a relation between groups with connotations of relative equality, the
hierarchy of the Xingu and Rio Negro inverts this, introducing alterity as an
intra-group relation.
In Amazonia more generally, the idea that there exists a radical discon-
tinuity between the living and dead has become widespread. This discontinu-
ity is seen to inhibit the emergence of institutions based on ideas of ‘descent’
and the hereditary transmission of status, prestige and ritual prerogatives
(Carneiro da Cunha, 1978). The differences between the living would hence be
of secondary importance in relation to the difference between the living and
701
article | geraldo andrello, antonio guerreiro and stephen hugh-jones
the dead. Among the living, the main differences would be kinship differences,
such as that between consanguines and affines, and so on. The homogene-
ity implied by such a view has been questioned, since there appears to be a
continuum of ways of remembering or forgetting the dead, which indicates the
existence of different regimes of historicity (Graham, 1995; McCallum, 1996;
Chaumeil, 2007). What happens when a concept of humanity is distributed
among groups of disparate origins, associated with specific places and some-
times speaking mutually unintelligible languages? The opposition between
the living and dead loses some of its pertinence, since it exists alongside the
equally important differences between the living. This, in turn, may generate
differences internal to the dead themselves, as in ‘my dead’ and ‘their dead’.
All of this allows for considerations of a temporal nature (such as ‘descent’
in Upper Xingu chieftaincy, the difference between older and young brothers
in the Rio Negro, and ancestrality in both regions), which become important
in the production of distinctions within the limits of mutual recognition in
such networks. It is no coincidence that what is generally called ‘hierarchy’ in
both regions refers more to temporal difference (filiation, birth order, ordinal
positioning of ritual roles) than to the spatial geometry of encompassment.
This may be a clue through which we can pursue the correlation between
regionalism and hierarchy in both cases, without, thereby, reducing them to a
supposed ‘ontological specificity’ of ‘Arawak systems’, as suggested by other
authors (Hill & Santos-Granero, 2002).
The differences between the living that characterize both regions do not
preclude a spatial key articulating notions of time and genealogy (descent or
ascent :: transmission or connection). In what follows, we seek to synthesize,
for each region, the spatio-temporal processes that underlie the – evidently
variable – constitution of collectivities. In the conclusion of the article we seek
to identify certain elements that the two regions have in common.
II. RIO NEGRO
All of the origin narratives of the Tukanoan people of the Vaupés affirm that
the Rio Negro and its tributaries – and, more generally, all of the Amazon
basin – came into existence through the journey of an ancestral anaconda,
which travelled upriver from the water door, situated on the mouth of the
Amazon. The trajectory of the anaconda was not random, because the dendritic
structure of this river system results from the felling of a large tree which the
mythical ancestors had found there.2 A great flood ensued, after which the
travellers of the Anaconda-Canoe followed the path from east to west, which
corresponds to the trunk of this tree and its branches; in other words, they
travelled up the Amazon rivers entering its tributaries (and their tributaries)
until they found the centre of the universe. It is important to point out that
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this journey-gestation of humanity is carried out by the ancestors of all of the
present-day Tukanoan speaking groups. This journey and common ancestrality
makes all of them ‘consanguines’.
This is a highly relevant theme for all the region’s peoples, who, through
it, inscribe their origin in the natural landscape. More specifically, the pro-
cess, as it is elaborated in the narratives, establishes the fundamental asso-
ciation of human genesis and geography, revealing a social memory inscribed
in channels, waterfalls, outcrops, petroglyphs, beaches, backwaters, reaches,
floodplains and so forth – all features which one encounters when travelling
through the rivers today. It is these paths that circumscribe the movements
and cycles of the contemporary world (registered in ecological-cultural calen-
dars), and stand as evidence of the process that led to the emergence of a true
humanity in the mythical past – a process generally conceived of as a gradual
transformation or passage from the subaquatic world of the ‘fish-people’ to
the fully human world. These narratives are structured through the emergence
of the pamüri-masa, the so-called ‘transformation people’, an encompassing
category which includes all of the Tukanoan and Maku speaking peoples of the
Vaupés river – Tukano, Desana, Pira-Tapuia, Cubeo, Wanano, Tuyuka, Makuna,
Bará, Barasana, Tatuyo, Taiwano, Carapanã (Tukano, river people); Hupda, Yuh-
up, Dow, Nadeb, Bara (Maku, people of the interfluvial zone).
Each one of these people possess their own more or less detailed ver-
sion of this story, culminating in the description of their own settlement, situ-
ated in a given territory. This is generally a segment of a river occupied by a set
of exogamous and named patri-clans, which spread out from the lower to the
upper course of the river (east-west) according to a hierarchical order deter-
mined by the relative age of the ancestors. When these stories are narrated or
explained in Portuguese, the auto-designation pamüri-masa tends to be glossed
as humanidade verdadeira (true humanity); in other words, it refers to those peo-
ple who today exchange sisters among themselves or call each other younger
or elder brother, who traditionally lived in collective longhouses composed of
a group of brothers and their wives (who come from other groups), who keep
the ceremonial ornaments and instruments, with which they carry out great
initiation rituals and exchange feasts. This extensive social network is hence
the result of the saga narrated in Vaupés origin myths, through which myriad
positions come to be determined. The vantage point from which narrators tell
the story is the one that their ancestors occupied at the end of the narrative.
These narratives, while dealing with the processes of speciation – the
passage from the continuous to the discrete (Lévi-Strauss, 2004) – unfold as
the definition of the terms and conditions of the possibility of sociality and
human kinship, the latter understood as a continuous and expansive process
of self-configuration (or self-extraction) from a cosmic backdrop of non-hu-
manity. This fact is peculiar to the region, and it demands an integrated ap-
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article | geraldo andrello, antonio guerreiro and stephen hugh-jones
proach to kinship and mythical narratives.3 This can be investigated further
through an analysis of a mythical narrative of the Tukano Yeparã-Oyé clan (see
Maia & Maia, 2004). This narrative culminates in an exposition of the internal
composition of the ‘Tukana ethnic group’, divided in over forty hierarchically
ordered sibs.
An analysis of this narrative reveals a sequential scheme of cosmo-
logical differentiations, which connect the time of mythical transformation-
emergence to the histories of clan dispersal and settlement in their respective
territories (Andrello, 2006). This scheme can be deduced from an extensive set
of mythical episodes linked to the narrative of the journey of the ancestral
anaconda (referred above). The differentiations schematized in the narrative
occur before, after and during the journey-gestation of humanity (C. Hugh-
Jones, 1979; Reichel-Dolmatoff, 1971), originating in various of the exogamous
groups of the present. As a set, these differentiations, which range from the
primordial gender differentiation to those which separate close and distant
brothers-in-law, as well as younger and elder brothers, compose a relational
field for which the exchange of sisters and the dabucuri (rituals of ceremo-
nial food and artefact offerings) are the main post-mythical expressions. It
is important to note that the differentiations of mythical time are carried
through when certain material operators appear in the narrative, such as sa-
cred flutes (stolen by the first women, who thereby acquire specific reproduc-
tive capacities), ceremonial ornaments (obtained by the ancestors from the
divinities, enabling true humanity to differentiate itself from the fish and
animals), manioc beer and the caapi hallucinogen (the different varieties and
potencies of which, differentially acquired by the exogamous groups, will dis-
tinguish between them).
Narratives of this type generally provide particular versions of an ex-
tensive, shared, mythical cycle. In its final segments, the narratives become
particularized. After carefully detailing the common origin of all of the groups
in the region, narrators begin to tell the history of their own sib or clan, of how
they became established in a territory, of their dispersion and political rela-
tions. In this way, the material that we have already gathered point to a tem-
poral structure in which what we usually call ‘myth’ is in strict continuity with
‘history’. We are dealing with a sequence of sociocosmological events in which
differentiations concern both what we would usually qualify as ‘myth’ (female/
male, animality/humanity, whites/Indians) and what we would characterize
as ‘history’ (Arawak/Tukano, distant brothers-in-law, yupuri/yeperã, different
Tukano clans).4 The Tukano myth in question is hence both the ‘myth of myth’
and the ‘myth of history’ (see Gow, 2001); that is, it establishes a continuity
between the transformations that mark pre-human time and those that occur
in human time. But what do these times have in common?
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To answer this question, we must turn to Lévi-Strauss The Story of Lynx.
We are here dealing with the concept of ‘dualism in perpetual disequilibrium’,
which the author suggests is an intrinsic characteristic of the dichotomic
model of Amerindian thought, according to which the process of organizing
the world and society depends on a chain of bipartitions the resulting parts
of which are never perfectly symmetrical. Effectively, as the first bloc of op-
positions in this transformational system is linked to the second bloc, we can
observe the same principle, or mode of operation, present from top to bottom
– a state of dynamic disequilibrium (Lévi-Strauss, 1993: 60 ss.).
The figure can be divided into two blocs, each one made up of three
oppositions. Notice that first opposition of the second bloc (Arawak/Tukano) is
connected to the last opposition of the first bloc, in the same way that the op-
positions of each bloc succeed one another. In other words, the Arawak/Tukano
opposition corresponds to a division that is internal to the second term of the
opposition between whites and Indians.5 Thus all the oppositions correspond
to a bipartition of the second term of the opposition that precedes it, which
suggests an analogy between cosmological and sociological differentiation.
The diagram recalls a model proposed by Eduardo Viveiros de Castro
(2002), which adds precision and refinement to his earlier concept of ‘poten-
tial affinity’ (Viveiros de Castro, 1993). This concept was originally developed
from the concentric dualism of affinity and consanguinity, and it accounts for
a range of phenomena which are external to kinship proper, such as warfare
and cannibalism, but which are nonetheless central to the social reproduction
of Indigenous groups in the South American lowlands.6 In this model, affinity
is the central cosmological operator, the idiom for supra-local relations. In its
more recent formulation, concentric dualism has been substituted by a recur-
sive dualism, which is intimately related to Lévi-Strauss’ concept of dualism
in perpetual disequilibrium. The relation between affinity and consanguinity is
here reformulated as a relation between affinity and non-affinity, to the degree
that consanguinity – kinship – is derived from affinity by being extracted from
a virtual background of potential affinity, as expressed in myth (Viveiros de
Castro, 2002: 419). If, in the earlier model, the exterior was a condition for the
interior, now the exterior is one of its dimensions, since there is no greater
totality that can encompass both the interior and its exterior: exteriority is
itself an internal relation.
In terms of the oppositions deduced for the Tukano myth, all of the
terms that figure on the right side of the sequence of bipartitions (the down-
ward line) correspond to increasingly more local instances of kinship (pamüri-
masa; yepa-masa, yeparã-oyé: true humanity, the Tukano, a specific clan); in
the opposite direction, all of the terms on the left side of the bipartitions (the
upward line) correspond to widening spheres of alterity, the most general of
which concerns the distinction of the sexes, which is anterior even to the
705
article | geraldo andrello, antonio guerreiro and stephen hugh-jones
Figure 1
Bipartitions of the Tukano Myth
First women
Ancestors /demiurges
Fish
Baré/whites
Tariano (Arawak)
Desana Tukano
Pamîri-masa (Tukano)
Humans
Indians
Mythical transformation
BIPARTITIONS OF THE TUKANO MYTH
Historical transformation
Yu’ûpuri clan Ye’pârã clan
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differentiation of humanity from animality. At the origin of everything is the
infinite background of intensive difference, the source of all of the extensive
states of the present. Every step of the process relies on recursion, in man-
ner analogous to the step which precedes it. But there is a specificity of the
Tukano scheme that warrants attention: the constitution of the contemporary
consanguineal collectivities of the Vaupés depends on the institution (so to
speak) of effective affinity at a specific moment in the past. At the end of the
mythical era, when the final transformations of protohumanity take place,
brothers become distant brothers-in-law (Tariano, Arawak) and, later, close
brothers-in-law (Desana). This is a central feature of the human condition, for
it follows that the reproduction and growth of the groups will occur through
the exchange of sisters. Potential affinity, in turn, concerns the differentiations
of a more remote period (women, fish, whites).
Although this model frames Vaupés groups in a general way, it also points
to certain specificities. The main one of them is the fact that, in the Vaupés,
potential affinity is inscribed in the order of diachrony, which means that it con-
cerns temporal, rather than spatial or genealogical, distance. This is associated
with a set of mythical events that will determine the character of the relations
between different groups in the Vaupés at the end of the mythical era. As we
have mentioned, the relations between, on the one hand, the Tukano and, on
the other, the Tariano and Desana, are thenceforth preconceived as relations of
actual affinity: they will exchange sisters and be brothers-in-law to each other.
Prior to this, through the long journey of the ancestral anaconda, each one of
these groups was gradually constituted as a series of siblings who will generate
their respective clans, which will be ranked hierarchically. It thus seems plau-
sible to claim that the Tukano myth develops the process of producing kinship,
determining positions in both directions: affines in different degrees of distance
and consanguines positioned along a hierarchical scale. These positions are oc-
cupied and reiterated as groups undergo a process of humanization, and they
are the very condition for their continued growth in human time.
The mythical narratives determine the terms of the continuity between
pre-humanity and humanity, but there is nonetheless a clear difference be-
tween these two times. In the first time, the ancestors emerge and gradually
acquire the force of primal life (katishé in Tukano), which they will bequeath
their descendants. Contemporary humans, however, have ceased to share the
condition that demiurges and spirit animals (in particular wa’i-masa fish-peo-
ple) had retained since mythical time: as children of the ancestral anaconda,
their ancestors were also fish. Humans are hence those who were transformed
in certain rapids of the Vaupés and they are called pamüri-masa, literally ‘trans-
formation people’. This transformation establishes a distinction between the
times, the resulting stages or conditions of which are connected through a
vital force that passes from one to the other.
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There is a spatial dimension to this which is as relevant as the temporal
dimension. It is along the course of the rivers – more specifically in the ‘trans-
formation houses’, those places where the Anaconda-Canoe stopped – that
the agnatic relations between the clans that constitute an exogamous group
are permanently actualized. This permanent process of producing kinship is
directly related to the stock of ancestral names continually recycled through
the generations. In the case of the Tukano, the origin of the names corresponds
to the successive emergence of the clan ancestors in the subaquatic houses,
each one at the origin of different collectivities. The three first ancestor-names
(Yepâra [Yepa himself], Yuupuri and Doé) appear in the far east, where the
Milk Lake is situated. A further ancestor-name will appear in the lower course
of the Rio Negro, in a place called Temendavi, an important ‘fish house’ situ-
ated just downriver from the city of Santa Izabel (Seripihi). The three other
names (Akito, Buú and Kimaro) appear on the Vaupés River, in places near the
Ipanoré Waterfall, the bedrock of which contains the Pamüri-Pee, the ‘hole of
emergence’, from where the first human beings emerged after removing their
fish clothing. These names are associated with fish or with the hydrological
regime (dry season, floods).
Since there are only seven, the names of people and collectivities are
often repeated. Individuation thus crucially depends on the attribution of a
nickname, through which the Tukano clans are more widely known. What both
names seem to share in common, is that neither of them are determined
by their bearers. Although this may seem somewhat paradoxical for a clan
system based on the ownership of names, endonymy is here modulated by
exonymy, since even those names conferred through chanting and attributed
by a kumu (shaman-chanter) from the fixed stock of names has to be ‘activated’
(so to speak) in the distant subaquatic houses situated along the path of the
Anaconda-Canoe. Nicknames, in contrast, are explicitly conferred by elder or
younger brothers (that is, from other clans) or brothers-in-law in human time
(on the contrast between endonymy and exonymy, see Viveiros de Castro, 1986;
see Hugh-Jones, 2002 on the pertinence of this opposition in the Vaupés).
Despite scarce information on the internal composition of Tukano clans,
the dynamic relation of names and nicknames makes comparison difficult,
giving rise to frequent inconsistencies (compare the data in Fulop, 1954 and
Bruzzi, 1962). However, the available sources point to an extremely variable
number of clans in the interior of each exogamic group – which contrasts
significantly with the Jê-Bororo pattern. Since Tukano clans possess emblems,
such as names, songs, narratives, ceremonial ornaments and territory as items
of wealth (material items which accompany the bipartitions traced above), they
also recall the concept of the House as defined by Lévi-Strauss (Hugh-Jones,
1995), even though this concept was originally intended for cognatic contexts.
The patri-character of these clans, however, is not automatically assured at
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conception or birth. It is not an a priori fact, but a quality propitiated by the
recycling of ancestral names. This is evident when we consider the children
of white men with Indigenous women, a trend that has been growing in the
region as a whole. In these cases, it is common for the attribution of a name,
and thereby the incorporation of the child into a clan, to be effected by the
maternal grandfather. There are also cases of whole clans adopted by the at-
tribution of a name.
Instead of a descent rule, it is perhaps more accurate to refer to the
production of ascent: that is, we are not dealing with a something given, but
with something that has to be permanently constructed.7 This disposition is
activated by the shamanic management and allocation of the originary life
force, katisehe, in the interior of bodies. The transmission of this life force
connects non-human time with human time. It is, furthermore, the regularity
of the process of recycling this life force that comes to distinguish people and
collectivities as elder or younger brothers, because the names that transmit
it are associated with these positions, even if rather loosely. Since names are
intrinsically tied to different places along the path of the Anaconda-Canoe,
they can also be distinguished according to distance: those which are farther
(and hence older) and those which are closer (and more recent). Tukano life
force thus appears with different degrees of intensity, resulting from a modu-
lation of the originary space-time. The social differences that it gives rise to
are thereby grounded in variable metric spaces and durations. The hierarchi-
cal social relations between people and collectives, so frequently reported in
the ethnographies of the people of the region, would hence only be one of the
effects of these cosmic and vital processes.
III. UPPER XINGU
The Upper Xingu provides a good example of one of the characteristics of
Amazonian regional systems highlighted by Hugh-Jones: the amplification,
on an inter-ethnic scale, of values such as generosity, peacefulness and mu-
tual respect, which elsewhere characterize intracommunal sociality. In her
approach to Kalapalo oral history, Ellen Basso also argues that the production
of Xinguano society demanded an ‘amplification of the field of moral judge-
ment’ (Basso, 1995), expanding towards enemies, usually through the medium
of people in liminal situations (affines, orphans, rejected children), modes of
relating reserved for kinspeople, especially affines. Basso specifically refers to
‘shame’ (ihütisu), an ethical disposition typical of the relations between affines
and foreigners, which is responsible for imbuing values such as generosity,
peacefulness and hospitality. The Xinguano network thus presupposes a par-
ticular concept of humanity. In a manner that recalls certain themes from the
Upper Rio Negro, this concept seems to be linked to considerations of time
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and space, which are also expressed in mytho-historical narratives about the
occupation of specific geographical areas by the upper Xingu peoples, and in
rituals that commemorate deceased chiefs (the famous Quarup).
The Kalapalo consider themselves and other peoples of the Upper Xingu
to be kuge, ‘people’. According to Bruna Franchetto (1986), the word could be
glossed as ‘we-I’. According to Acácio Piedade, true humanity for the Wauja is
qualified by the gift: their term for ‘Xinguano people’ is ‘people who exchange’
(Piedade, 2004). Those groups who do not fully share the ritual complex and
its associated ethic are called ngikogo, or simply índios (Indians) in Portuguese.
For people of the Upper Xingu, índios mesmo (true Indians) are always others,
even when they are speaking directly to the kagaiha, or caraíba, i.e. the ‘whites’.
Contemporary humanity was created by the Sun, one of the twins born
from the marriage of a tree-woman with Enitsuegü, a Jaguar-Person, chief
of all of the land animals. This woman was mortally wounded during preg-
nancy by her jaguar-mother-in-law, and the twins, removed from their moth-
ers’ womb, were raised by their father and stepmother (mother’s sister). The
Sun, first-born, was called Taugi, ‘Liar’, and spoke a Carib language; Moon,
which was born afterwards, was called Aulukumã, ‘Hyper-Fox’, and spoke an
Arawak language. The linguistic difference between the twins reproduces the
main difference in the Upper Xingu matrix, that between the Arawak groups,
settled in the western portion of the region from the 8th-9th centuries A.D.; and
the Carib speaking groups, initially settled east of the Culuene, possibly from
the 11th century (Heckenberger, 2005). Jaguar and his wife hid their mother’s
fate from the twins. When they found out, they stopped calling them ‘father’
and ‘mother’ and began calling them ‘chief’ (anetü) and ‘chieftess’ (itankgo).
Humans were created by Sun to fight against his Jaguar father and ‘his people’
(isandagü). Placing bamboo arrow shafts on the ground, Sun created all humans.
According to a Wauja version, humans were created from two types of bamboo:
a more resilient variety, which became the hereditary chiefs, and a softer va-
riety, which became ordinary people (Barcelos Neto, 2008). Sun also places an
arrow shaft close to his stepmother, in order that she become pregnant. When
she stepped over the shaft, her belly magically grew and she soon gave birth
to Kagahina (Carabina; ‘rifle’, ‘carbine’), the ancestor of the whites.
According to a well-known narrative (with variants found in other re-
gions of the Americas), Sun offered the newly created humans a choice be-
tween weapons and objects. The whites chose the rifle, thus becoming the
most dangerous enemies, moving far away and transforming into malevolent
spirits (itseke); the others chose the club, becoming Indian warriors; others,
still, chose a range of beautiful and valuable objects, both ritual and mundane,
and became peaceful. The latter would make up the ‘moral community’ of
the Upper Xingu. Despite the pan-Amazonian theme of this myth, what the
Xinguano variants share with those of the Upper Rio Negro is the fact that
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the ‘beautiful’, materialized as objects, also stands for a particular code of
‘beautiful’ conduct, founded on respect and shared values of moderation and
modesty. Just as aesthetically valued objects codify social norms, so are the
latter aesthetically valued.
The offer of objects in myth introduces three differences in the world of
humans: a dual opposition between Indians and whites; another dual opposi-
tion, this time between Xinguano Indians (pacific) and non-Xinguano Indians
(warriors); and, finally, a series of differences internal to the people of the
Upper Xingu, based on the distribution of beautiful objects. This distribution
also tends towards a form of dualism: the Kalapalo version of the myth dis-
tributes the specialities into ‘Carib objects’ and ‘Arawak objects’. On one side,
there are the Arawak people who produce ceramic; on the other, the Carib,
who produce shell belts and necklaces. The difference is also one of gender:
while the production and use of ceramics are female activities, the gathering
of shells and the production of necklaces are male activities. The gender dual-
ism also replicates a distinction in modes of sociality: one based on kinship, in
which ceramic is used to prepare food; and another based on ritual, in which
necklaces and shells are fundamental aspects of the public garments used in
ceremonies.8 It should be further noted that the opposition between Carib and
Arawak can be considered analogous to the opposition between Tukano and
Arawak in the Upper Rio Negro. In the latter case, the Arawak (Baniwa) are the
only producers of manioc graters, as well as of fine ceramics (as in the Upper
Xingu, both are objects associated with the feminine universe and the produc-
tion of food). The complementary products which the Tukano exchange, such
as carajuru (red pigment for facial painting), baskets, canoes and benches, all
have masculine and ritual connotations – just like the Carib shell necklaces.
In the Xingu, we find an open-ended ‘dualism in perpetual disequilib-
rium’, which allows for the incorporation of new elements. The Tupi speaking
Kamayurá and Aweti occupy an ambiguous position, as do the Yawalipiti, who
arrived late in the region, some time in the 18th century. Due to their warring
past, the Kamayura became owners of the finest bows in the region (also pro-
duced by the Waujá), which are held by chiefs making a speech. More recently,
the Aweti became the owners of vegetable salt, through the intervention of
a PDPI project (Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas). The Yawalapiti, be-
cause of their central role in contact with non-Amerindians and the amount
of foreign objects in their village, are seen to be the ‘owners of the things of
the whites’.
After this choice, Sun determined that they should live peacefully in the
Xingu valley, exchanging their specialties in rituals that are sponsored by (and
in honour of) their chiefs. The myth thus traces two further series of material
and sociopolitical distinctions: certain objects (the rifle and the club) would
be appropriated for warfare, while others would have the capacity to prevent
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or substitute for it through the ritual exchange of gifts. More than once during
fieldwork I heard that while other Indians have clubs and fight, the Kalapalo
have shell necklaces and engage in sporting ritual combats. From the Indig-
enous point of view, ritual, along with its sponsoring chiefs, sporting events
and exchange of specialties, ‘takes the place of war’. It should nonetheless be
stressed that the Xinguano world has not always been as peaceful as the peo-
ple of the region (and many of their anthropologists) would like (Menget, 1978).
As in the anthropology of the Upper Rio Negro, one of the pressing is-
sues in the Upper Xingu is understanding the means for constituting and ar-
ticulating collectivities. In the period in which the classical monographs of the
region were written, the ‘one people, one village’ equation was predominant,
which seemed to square with the descriptive models then in vogue. Rafael
Bastos’ (1995) study of the Kamayurá was one of the first to tackle the problem
head on, showing how what is at present called ‘Kamayurá’ is the crystalliza-
tion, in a specific place, of a more extensive and heterogeneous network of kin-
ship and marriage. In his Master’s dissertation, Mutua Mehinaku argues that
mixture is the basic condition of all people, villages, languages and knowledge
in the Upper Xingu, and that part of the ritual effort is directed at the produc-
tion of differentiations against this common background (Mehinaku, 2010).
These perspectives reveal that the Xinguano complex is not the result
of a mere ‘collection’ of peoples, nor is it a society formed from an a posteriori
reunion. On the contrary, at least some of the efforts of the people of the Upper
Xingu seems to be concentrated on the extraction of collectivities of singular
people from a situation of ‘mixture’ – one which ensures that they all mutually
recognize each other as kuge, ‘people’. A way of understanding this differentia-
tion is through the existence of the emblematic objects of each group, as defined
in mythical times. But the Xinguanos also have other thoughts on the matter.
An important moment in the passage from mythical to contemporary
time was the dissolution of a village, called Kuakutu, located at the confluence
of the Rio Culuene and Rio Sete de Setembro. This used to be the only existing
village, where all of the people of the Upper Xingu lived, each one speaking
their own language. The proximity of warring groups in the vicinity caused
fear in the villagers, resulting in their dispersion downriver, thus giving origin
to the different peoples of the Upper Xingu. The only person to remain put
was the old chief of the village, one of the main ancestors of Kalapalo chiefs
mentioned in ceremonial discourse. Kuakutu is also the name of the men’s
house. It is interesting that a village that once contained all Xinguano human-
ity should share its name with the men’s house, since the latter gathers all the
men of the village, and even, during ritual times, all people. Kuakutu village
was also situated between the two extreme points of the north-south axis of
Xinguano geography, so that it was ‘at the centre’ of their traditional territory
– just as the men’s house is at the centre of each of village.
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Each Xinguano local group is considered, by all the others, to be the
otomo of a place. Otomo is the collective term for ‘owners’. The name of the
place, followed by otomo, is how most village names are formed, and these
often become the names of ‘people’. Each village is relatively autonomous –
though not at all times nor for all things. Small villages that do not yet have a
central plaza prefer to bury their dead in villages that do have a plaza. These
villages tend to not sponsor rituals for the spirits, and those who need or want
to hold one must sponsor rituals in larger villages. Sponsorship of regional
rituals is even more complex, since in order to hold one a village must have
a chief buried in its patio. Without meeting this condition, it is impossible
to send out or receive ritual messengers. Even when the condition is met, a
larger village may question the pertinence of sponsoring a chiefly ritual in a
more recent village.
These characteristics point to the existence of forms of regional asym-
metry, centred on the idea that some villages are the ‘mainstays’ (iho) of oth-
ers. Iho is a concept that denotes asymmetrical forms that are replicated at
different scales. Iho means ‘support’ or ‘mainstay’, such as the wooden post on
which one ties a hammock. But the concept is also used to describe relations
based on care and feeding. The owner of a house is also the iho of the people
who inhabit it, for he is expected to care for his coresidents, to guide them
and organize the collective activities of the house, and to support them when
they encounter problems. A husband is also the iho of his wife and children, for
he should supply them with food and protect them. Likewise, the man of the
house is the iho of the women who live there. Iho thus designates any person
that is a protector of and provider for others. It can perhaps be said that the iho
is someone who is bound to ‘offer support’, which would be the more literal
description of the function of a mainstay.
A chief is a ‘mainstay of people’ (kuge iho) because he is a father in re-
lation to his people, who are his sons or children. He should protect, educate
and feed his sons, guiding them in the use of true speech (akihekugene), always
offering fish and manioc bread in the centre of the village and never withhold-
ing any object that others ask of him. A kuge iho should care for his village and
its residents much like the owner of the house cares for its residents. It is said
the first and second chiefs of a village are like the two central posts, also called
iho, that sustain a house. Due to their good speech and generosity, chiefs are
seen to be the reason that people live together in a village, the only reason that
a local group does not fission indefinitely. When a village starts to fragment,
the process is blamed on a lack of chiefs capable of keeping people united.
Villages can also be the iho of other villages. Whenever old villages are
spoken of, some are referred to as ‘those who were divided’ (agaketühügü) and
others as their iho, suggesting the existence of asymmetries in the regional
relations between groups resulting from the process of fissioning. For instance,
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during a long time, Kuapügü (the main village that the Kalapalo associate
with their origin) coexisted with the Kalapalo villages of Apangakigi, Angam-
bütü and Hagagikugu. These local groups were not, however, in a situation of
equal standing, because Kuapügü was considered to be the iho of the others.
A village-iho is capable of exerting a centripetal force on the villages that
originated from it, providing a limit to the fissioning process as a means for
creating new identities.
The Kalapalo say that a person’s body is their iho, just like the trunk of
a tree. The arms, in turn, are like the branches, which require a body or trunk
to stay together. A small village is considered to be the branch or arm (ĩ kungu)
of the larger village from which it originated, which is its mainstay. Likewise,
any small village which is at the origin of other villages can be seen to be
its iho, and so on. This difference is replicated in the interior of each village,
where the main chief is considered to be the iho, while the lesser chiefs are
his ‘arms’, ĩ kungu. This image is again replicated when we move to the relation
between chiefs and non-chiefs, where the first are all iho and the latter ĩ kungu.
A village with no iho is like the fallen branches of a tree.
This difference also applies to the relations between men and women:
the former are the iho of the latter, their arms/branches. Among women we find
the same opposition, with chiefs (itankgo) being treated as iho in relation to
non-chiefs. A male chief may include among his ĩ kungu all women chiefs, but
an itankgo can never be considered the iho of a male chief. In conjugal relations
it is also possible to say that a man’s first wife is his iho, while her sisters-in-
law (WZ, upahene) are her ĩ kungu. The Kalapalo explain this by saying that the
while first wife is the ‘support’ of her husband, he can also marry his sisters-
in-law. In theory, a woman may also consider her husband iho and her brothers-
in-law (HB) kungu, but she cannot decide on taking a second husband. The
symmetry between masculine and feminine views is hence only apparent.
The word for ‘root’, intsü, also has a wide semantic field. A child’s grand-
parents are its ‘roots’, intsü. Someone who takes care of something or someone
is also its intsü, such as a child’s parents. An esteemed girlfriend or boyfriend
is also one’s intsü, because, like a plant without its roots, without that person
‘we do not stand still’. In certain contexts, this term is close to the meanings of
oto, ‘owner’. The person responsible for the village tractor, for instance, is the
‘tractor intsü’, and the storytellers are also the intsü of their narratives, because
they ‘care’ for them when they narrate them well.
In sum, a certain vegetal language is widely used to think relations
of possession, property, care, responsibility and convergence. For there to be
collectivities at various scales, from conjugal nucleus to regional nexus, there
must be an asymmetrical relation between a trunk/mainstay/body that uni-
fies and supports the people that live around it. A chief is like the trunk that
sustains the growth of a body of kinspeople, just as he is a mainstay against
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which they can lean. However, instead of configuring a global hierarchy, the
iho / ĩ kungu opposition is replicated at every scale, maintaining a fractal and
non-totalizing form. There is no absolute iho, nor one that can serve as a
standard for the rest.
IV. CONCLUSION
One of the first things that stands out in this preliminary and partial presen-
tation of the two areas is how the crystallization of conceptual languages
(some Indigenous, others anthropological) in the ethnographies of each one
can either favour approximations or inhibit the perceptions of parallels on a
more abstract level (one, therefore, distant from particular ethnographic tra-
ditions). For instance, while the literature on the Upper Xingu has practically
naturalized the use of the concept of ‘shame’ to refer to the ethic of social
relations in the region (whether in inter-personal or inter-group relations),
this concept can reappear under the banner of ‘respect’ in the Rio Negro
(‘shame’ being absent from the local lexicon). Another example is the cate-
gorical claim, of both the Xinguanos and their researchers, that ‘ritual takes
the place of war’ – something which, although it is not explicitly said in the
context of the Rio Negro, nor is it an issue in the ethnographies, is certainly
applicable to the region. This seems to be the message of the origin myth of
the ceremonial exchanges of the Barasana. Furthermore, the term ‘owner’ is
common in the Upper Xingu, but practically absent from the Rio Negro. How-
ever, the ‘owner’ position and the relations that it implies, which are salient
in the ritual life of the Upper Xingu, would also be pertinent in the Rio Negro,
above all in quotidian life, such as, for example, in the role of the ‘owners of
the longhouse’ in the organization of cultivation, fishing and construction.
These agents also act in the organization of feasts, but with the aid of other
ritual specialists, such as chanters, dancers and shamans. In sum, themes
that are important in the ethnology of one region drive us to inquire into
their relevance for the other, and to shed light on the questions that, in the-
ory, may not have held the same interest in each one. One of the challenges,
then, is to relate these vast regional systems through the different narrative
styles through which they have been described since the 1960’s, and to de-
velop a conceptual language that can account for their differences and simi-
larities without, thereby, remaining stuck within the terms of one ethno-
graphic region.
In this sense, in what concerns the matter of the social units that com-
pose these systems, it is notable that both manifest similar ‘illusions’: in the
Upper Xingu, that one people can be reduced to one village; in the Upper Rio
Negro, that to each language there would correspond one people. Again, some
of these illusions have been sustained, to different degrees, by anthropologists
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as much as by the native populations. It can even be observed in the titles of
many of the available ethnographies, dedicated to ‘the Makuna’, ‘the Cubeo’,
‘the Kalapalo’ and so forth. In lieu of reifying these differences, it may be nec-
essary to reinforce and extend discussions such as that of Mutua Mehinaku:
that the common problem seems to be how to produce or maintain differences
against a backdrop of similarity (see, also, the constant interplay of similarity
and difference among the Tukano; S. Hugh-Jones, 1979). In this way, a theme
that initially seems to emerge and, hence, connect the two regions is that of
the secondary character (so to speak) of affinity/alterity in relation to consan-
guinity. The complement to the classic view of the process of ‘making kin out
of others’ (Vilaça, 2002) is here, perhaps, the problem of ‘making others out
of kin’ – an idea which evokes Wagner discussion of ‘analogic kinship’, which,
unfortunately, we are unable to develop here (see Wagner, 1977).
Let us note, first of all, that this theme is explicitly enunciated in the
Tukano origin myth. Here, the ancestors of the Tukano and Desana first ap-
pear as a pair of brothers who, later, in the moment immediately prior to the
emergence of humanity, become brothers-in-law to one another. In human
time, they are those who will exchange sisters. In a certain way, the same
could be said of the demiurge-twins who will create Xinguano humanity, since
Sun, the first of them, is associated with the origin of the Carib speaking
people, while Moon, the second, is associated with the origin of the Arawak
speaking people. In other words, we also have the origin of people who will
potentially be affines to each other. Interestingly, the original pair of Desana/
Tukano siblings are respectively associated with the sun and the moon and, as
in the Xingu, the former is initially the more prominent, being responsible for
guaranteeing the course of developments that lead to the emergence of a true
humanity. However, in both cases, things never occur as they should, mostly
because of the excessive and immoderate character of the sun. This results in
an inversion of the order of seniority, moon coming to the fore, taking it upon
himself to do those things that his brother was unable to do and which he can
because of his restrained and serene ethos.
It can thus be suggested that, for both regions, the attributes of demi-
urge and trickster (Lévi-Strauss, 1991) undergo inversions. For the Rio Negro
more specifically, the originary exchange of roles – with the ancestral Desana
taking command of the Anaconda-Canoe from the ancestral Tukano at a par-
ticular moment in the mythical narrative – seems to point to an instability that
is always present in the context of the hierarchical relations between clans
and exogamous groups. It is thus possible to imagine that these differentia-
tions hypothetically share an eminently ambiguous character – simultaneously
prescriptive and performative, given and constructed – since the attributes
associated with the ancestral pair of siblings encode both the behaviour of
chiefs and elder siblings.
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While the classic Amazonian ‘Other’ (such as the Araweté enemy-gods,
Jivaro head-supplying groups, Tupinambá tovajara brothers-in-law) is some-
one who is (and must be) like ‘us’, that is, someone who is not completely
unknown, completely different, for the peoples of the Upper Rio Negro and
the Upper Xingu shared humanity seems to have its own nuances: its internal
differentiation appears to operate on the basis of a gradient of positions, or
else along the same scale, guided by a relation that is internal to the original
and asymmetrical pair of siblings. This is evidently more prominent in the Up-
per Rio Negro, where, furthermore, the figure of the ‘included third’ (Viveiros
de Castro, 2002) is the ‘mother’s son’, a son of the mother’s sister who stands
between an actual brother and a brother-in-law. In the Upper Xingu, these
positions bring into relief the language of filiation. If in the Rio Negro it is
movement along an east-west axis in mythical times that anchors the divi-
sion between elder and younger brothers, in the Upper Xingu it is growth and
division from a centre, a village-mainstay, that bridges the gap between chiefs
and non-chiefs, central villages and satellite villages, making them analogous
to those between parents and their children. While the model of hierarchy
in the Rio Negro seems to be linear and directional, the Xinguano version of
hierarchy rests on a concentric and non-directional model (hence multicentric
– there are as many centres as there are possible iho). In both regions, however,
forms of consanguinity (such as that between elder and younger brothers), or
that recall consanguinity (such as that between parents and children, grand-
parents and grandchildren), are used to describe relations that are exterior to
the local group, but internal to each of the regional networks.
There is, furthermore, a common vegetal metaphor that seems to cir-
cumscribe a field of interiority in the Rio Negro and the Xingu: that of the
felled tree which constitutes the fluvial hydrology of the Rio Negro, according
to the Tukano origin myth, and that of the erected tree in the Xinguano mor-
tuary ritual, which takes the form of an effigy of the illustrious and honoured
dead. In the Xingu, as we have seen, the image further codifies the relations
between a chief-mainstay and his village, between the former and the lesser
chiefs and even the relations between the genders. Although the Tukanoan
peoples do not use the word ‘mainstay’ (bote in their languages) in this way, the
notion nonetheless has certain resonances in the region, specially at the level
of certain longhouses and their chiefs which emerge as political-ceremonial
centres for a set of smaller longhouses that orbit it. It also resounds with the
idea of the elder brother of a longhouse as a protector of his coresidents. In
any case, and despite the fact that the mainstays of longhouses in the Rio
Negro are frequently referred to with the names of mythical ancestors, the
Xinguano figure of the trunk-mainstay and its branches recalls, more directly,
the image of the Rio Negro fluvial network as a tree, with younger brothers
situated upriver and elder brothers downriver. The main point is that both im-
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article | geraldo andrello, antonio guerreiro and stephen hugh-jones
ages seem to feed an understanding of the internal differentiation of humanity
as based on distinctions of a temporal order, expressed, in the Rio Negro, in
age differences between siblings, and, in the Xingu, in generational differ-
ences. A hypothesis which may be pursued is that, it seems to us, the political
relations between collectivities emerge from the process of producing kinship,
particularly of constructing ascendancy – noble ascent in the Xingu, and the
connection between elder brothers in the Rio Negro.
This hypothesis may become more plausible if we consider the relations
external to each of the systems, which also display similarities. The Kalapalo
opposition, mentioned above, between kuge, ‘people’, and ngikogo, ‘Indians’,
clearly separates Upper Xingu peoples from those situated to the north and
south of their territory – that is, beyond the fluvial network of the headwa-
ters of the Xingu (namely Jê speaking peoples, such as the Xavante, Kayapo,
etc.). The same seems to occur with the term mashã, ‘people’, in the Tukanoan
languages. In this case, the Barasana, for instance, oppose this term to others,
such as gawa, applied to the whites and to Indians considered ‘wild’, such as
the Karijona. In this context, the term takes a complement, mashã-goro, ‘true
people’. From the point of view of the central Tukanoans, this notion of a true
humanity seems to be subsumed by the expression ‘transformation people’,
pamüri-mahsã (literally ‘fermentation people’), which designates all of the pas-
sengers in the ancestral Anaconda-Canoe. Significantly, the Tukano tend to op-
pose this expression to ‘people of the headwaters’, poetri-khana, a designation
which they often translated into Portuguese as os índios, ‘the Indians’.
Finally, we hope that these considerations provide a bare outline, or a
parameter, for more in-depth comparisons of these two ethnographies regions,
which have thus far resisted theoretical generalization. Our aim has not been
to refute other positions, but to try and widen the scope of the conceptual
languages forged from Amazonian ethnography, and hence contribute to our
understanding of the transformations that are ongoing within these social to-
pologies. It is an effort that requires the participation of the various research-
ers who study the themes that we have here only begun to organize.
Received 09/20/2015 | Approved 10/07/2015
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Geraldo Andrello is a Professor at the Graduate Program in Social
Anthropology of the Federal University of São Carlos (UFSCar).
Since 1990, he works with the indigenous groups of Rio Negro. He
has also worked as an advisor to the Socioenvironmental Institute
(ISA) and to the Federation of the Indigenous Organizations of Rio
Negro (FOIRN). He is the author of Cidade do Índio: transformação
e cotidiano em Iauretê (2006) and Rotas de criação e transformação:
narrativas de origem dos povos indígenas do Rio Negro (2012).
Antonio Guerreiro is a Professor of the Department of
Anthropology at the State University of Campinas (Unicamp)
and a Research Associate at the Research Center on Amerindian
Ethnology (CPEI). Since 2005, he works with the Kalapalo (Karib
speakers, Alto Xingu). His main subjects of research are ritual,
exchange and politics in Amazonia.
Stephen Hugh-Jones is a Honorary Emeritus Associate and a
Fellow of King’s College at the University of Cambridge.
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article | geraldo andrello, antonio guerreiro and stephen hugh-jones
ENDNOTES
1 This text was originally prepared for the Thematic Sym-
posium ‘Comparative approach to the regional systems of
the Upper Rio Negro and the Upper Xingu’, held in the 55th
International Congress of Americanists (San Salvador, El
Salvador), on the 14th of July 2015. Written by three peo-
ple and flirting with heterogenous questions of different
ethnographic/ethnological traditions, the article evidently
raises more problems than it can answer, and includes
many loose ends. Conceived as an attempt to guide the
debates of the Symposium, this work does not deal with
a particular ethnographic or theoretical problem, limiting
itself to pointing towards possible articulations and strate-
gies of comparison between the systems of the Upper Rio
Negro and the Upper Xingu. The names of the authors has
been arranged alphabetically according to surname.
2 Simlarly, the Kalapalo of the Upper Xingu (and the other
Carib speaking peoples of the region) narrate that the lakes
they inhabit originate from a tree opened up by a man.
3 Despite sharing the common Amazonian theme of the
passage from the continuous to the discrete, what makes
these myths differ is that they are clanic myths with a
political-genealogical character, similar to some of the
myths analyzed by Lévi-Strauss in The Savage Mind. This
point merits further development in the future.
4 The order of the terms that make up these various pairs is
not random. Those that occupy the first position of each
pair are connected, just like those which occupy the sec-
ond position.
5 According to Lévi-Strauss, it is precisely this dichotomic
model that contained a position for the whites in Am-
erindian thought. It enables the transposition of the op-
position between Amerindians and whites to a system in
which the position of the latter was, in a way, already an-
ticipated. The origin narrative of the Vaupés Amerindians
confirms Lévi-Strauss intuition, since it also included the
origin of the whites.
6 Briefly, Viveiros de Castro argues that predation has an
ontological status in Amazonia, corresponding to a ‘posi-
tive and necessary use of alterity’ (Viveiros de Castro,
1993: 162). Enemies are ‘potential affines’ – that is, they
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are those with which one does not exchange women, but
other things. Potential affines are partners in symbolic
exchanges who guarantee social reproduction, even if the
relations established involve agressions, violence and can-
nibalism. They are exchanges which translate into a move-
ment of capture and appropriation of capacities, such as
names, songs, ceremonial ornaments and even body parts,
such as Jivaro head trophies (Descola, 1993). This model
articulates local (or internal) relations with supralocal (or
external) relations, since, at the local level, consanguinity
encompasses affinity to the degree that actual affines are
consanguinized in behavioural terms, while in ever-wider
spheres consanguinity is encompassed by affinity, which,
ultimately, assumes a generic value that determines the
Other (the enemy) as an affine.
7 It is possible to speak of ‘ascent’ instead of ‘descent’, stress-
ing the little importance oconferred on notions of shared
substance, blood or lines of blood.
8 See Coelho de Souza (2002) on the differences between
kinship and ritual in Amazonia.
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TRANSFORMAÇÕES ESPAÇO-TEMPORAIS NO ALTO
XINGU E NO ALTO RIO NEGRO
Resumo
Os complexos multiétnicos e multilíngues do Rio Negro
e do Alto Xingu apresentam alguns aspectos comuns que
emergem com frequência em suas etnografias, tais como
noções sobre descendência, hierarquia na organização
social e nas atividades rituais, valorização de formas de
exogamia, ou a distribuição desigual de especialidades
produtivas, rituais e conhecimentos esotéricos. Neste
trabalho investigamos como povos de ambas as regiões
concebem sua humanidade e a de seus vizinhos como
variações de uma forma compartilhada, pois nos dois
casos processos rituais de negociação de posições e
prerrogativas parecem fazer as vezes do estado latente
de guerra que marca a vida social de outros povos
amazônicos. Buscaremos sintetizar os processos espaço-
temporais que subjazem à constituição, eminentemente
variável, dos coletivos de cada região buscando, ao final,
isolar alguns elementos em comum.
SPACE-TIME TRANSFORMATIONS IN THE UPPER
XINGU AND UPPER RIO NEGRO
Abstract
The multi-ethnic and multilingual complexes of the Upper
Rio Negro and the Upper Xingu share common aspects
that frequently emerge in ethnographies, including
notions of descent, hierarchical social organization and
ritual activities, as well as a preference for forms of
exogamy and the unequal distribution of productive and
ritual specialties and esoteric knowledge. In this article
we investigate how the people of both regions conceive of
their humanity and that of their neighbours as variations
on a shared form, since in both regions ritual processes
for negotiating positions and prerogatives seems to take
the place of the latent state of warfare typical of the social
life of other Amazonian peoples. In this article we will
synthesize, for each region, the spatio-temporal processes
that underscore the eminently variable constitution of
collectivities, seeking, in conclusion, to isolate those
elements that the two regions have in common.
Palavras-chave
Etnologia amazônica;
Sistemas regionais;
Hierarquia;
Alto Rio Negro;
Alto Xingu.
Keywords
Amazonian ethnology;
Regional systems;
Hierarchy;
Alto Rio Negro;
Alto Xingu.
MATEMÁTICA CONCRETA
Mauro W. B. Almeida I
I Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Brasil
Em recente artigo, Stephen Hugh-Jones tratou da “escrita na pedra” e da “escri-
ta no papel”, e de ambas como “diferentes modalidades indígenas de discurso e
música”. O traço fecundante dessa reflexão consiste em reunir em um mesmo
campo “formas obviamente gráficas, como petróglifos, pinturas de casas, pa-
drões de cestaria” e “características da paisagem, compreendidas em termos
gráficos como marcas ou traços dos corpos de seres ancestrais e como signos
de suas atividades, conforme foram se movendo pelo mundo”, as modalidades
da linguagem como a fala e o canto (Hugh-Jones, 2012: 139).1
Começando com o nexo entre desenho e paisagem, Hugh-Jones afir-
ma, aparentemente contra Bateson (2000: 180-185), que o território é o ma-
pa.2 Hugh-Jones acrescenta que seu foco será posto “mais na forma do que
nos conteúdos”, afirmação que deve ser entendida, à luz de sua aplicação ao
material etnográfico, como o reconhecimento de que forma e conteúdo, ou
melhor, forma e fundo, se alternam de maneira complementar (Hugh-Jones,
2012; ver Lagrou, 2007, 2012; Severi & Lagrou, 2013), mas também que por “for-
ma” devemos entender esquematismos capazes de gerar muitas formas que
correspondem a outros tantos conteúdos. Finalmente, argumenta Hugh-Jones,
há uma continuidade entre essas formas de “escrita em pedra”, escritas têxteis
(como quipus) e escritas de cestos – e a abundante escrita em papel resultante
da colaboração de brancos e índios nos anos recentes. Essa linha de pensa-
mento conecta, de um lado, as escritas concretas na pedra e na paisagem, na
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tecelagem e na cestaria, a linguagem de cantos e falas – e de outro lado, a
escrita alfabética dos livros bilíngues.3 Os temas aí envolvidos são múltiplos e
complexos. Meu ponto de vista será o seguinte: toda escrita (uma modalidade
de linguagem) pode ser vista como parte de ontologias (o que alguns chama-
riam dimensão semântica), de sociologias (ou “pragmática” segundo o mesmo
registro), e ainda como evidência da capacidade formal (“sintática”) do pen-
samento e da prática. Sob esse ponto de vista, a afirmação de Hugh-Jones de
que privilegia o ângulo “formal” justifica minha tese neste comentário: a saber,
a de que a escrita “concreta” (na pedra, em tecidos e em cestos) compartilha
com a escrita “no papel”, isto é, com símbolos arbitrários organizados sintati-
camente, a expressão de uma capacidade matemática que se manifesta, assim
como a capacidade de linguagem, em todos os povos e culturas, sob modos
diferentes, mas que preservam algo que não varia – relações e não conteúdo.
Quipus E RIOS
Stephen Hugh-Jones relaciona, de um lado, os “desenhos da cestaria yecuana,
os livros sagrados kuna, os mastros totêmicos da costa noroeste da América
do Norte e o quipu andino”; e de outro, “os cantos rituais cuja estrutura con-
siste na listagem repetitiva de nomes e várias outras formas de paralelismo”
(Hugh-Jones 2012:143; ver Severi, 2004, 2009). Quipus são fios de algodão ou de
lã nos quais são feitos nós a partir dos quais surgem outros fios nos quais são
feitos nós (ver Guss, 1989: 78; van Velthem, 2003, 2010, 2014; Grupioni, 2009;
Desrosiers, 1988, 2010). A tese de Hugh-Jones implica que quipus são mapas
com informação associada a lugares, ou seja, mapas “georreferenciados” ou,
ainda, SIGs (Sistemas de Informação Geográfica).4
A conexão entre a escrita dos cantos-mitos, a escrita das pedras-rios,
a escrita dos quipus e a escrita conceitual da lógica é exibida nas figuras 1, 2,
3, 4, 5 e 6. Na figura 1, a representação dos cantos tribais é análoga à de uma
partitura orquestral, em que a melodia (“perseguindo notas”) é exibida no eixo
horizontal e a harmonia (“amontoando notas”) é exibida no eixo vertical, uma
analogia bem explorada por Lévi-Strauss (Hugh-Jones, 2012: 146). A figura 2 é
uma variante do mapa-quipu das Casas de Transformação, com os lugares de
parada da Cobra–Canoa (Pãrõkumu & Kehíri, 1995: 80; Hugh-Jones, 2012: 153).
Na figura 3, usei a sequência de barracões no sistema de aviamento para ilus-
trar a escrita em rios: aqui, cada foz do rio principal dá origem a uma nova
sequência de barracões menores (Almeida, 1992). A figura 4 mostra a conhecida
imagem de um “contador e tesoureiro” publicada por Poman Ayala em 1615
(Urton, 1977: 206). A figura 5 é uma representação esquemática de um quipu em
que cordões são encaixados de maneira recursiva e contêm “pilhas de nomes”
em nós (não desenhados) e em cores representadas por letra com diferentes
números (Ascher & Ascher, 1981: 112). Finalmente, a Figura 6 foi retirada da
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1
2
1
Os dois eixos dos
cantos rituais. O eixo
X representa lugares
em sequência. O eixo
Y representa nomes ou
eventos (Hugh-Jones,
2012:146).
2
Variantes dos mapas-
quipu das Casas de
Transformação
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3
Rio Tejo, alto Juruá: barracões ao longo do rio.
No Rio Tejo, as letras “s” representam barracões
na foz de cada afluente. Ao longo dos afluentes,
seringais secundários com seus próprios depósitos
de mercadorias. Note-se o barracão principal “S” na
origem do rio Tejo.
4
Quipu exibido por um “contador maior e tesoureiro”.
Publicado por Poma de Ayala c. 1615.
Fonte: Urton (1977: 206).
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obra que inaugura a lógica moderna com uma notação bidimensional que pode
perfeitamente ser formulada com quipus (Frege, 1967: 31).
A intenção dessa sucessão de imagens é fornecer uma evidência visual
da tese de Hugh-Jones, a saber, que cantos-narrativas, rios (com marcas-pedras
e afluentes), quipus e a escrita conceitual fregeana são outras tantas variantes
de escrita, em um sentido generalizado que inclui mapa, arquivo, classificações
e juízos lógicos.
Em outras palavras, cantos-narrativas são sequências narrativo-musi-
cais que contêm episódios secundários que, por sua vez, podem dar origem a
episódios terciários, assim como rios-narrativas são sequências de “pedras” e
outras marcas onde se “amontoam nomes”. Marcia e Robert Ascher oferecem
a analogia com um guia rodoviário que contém informações turísticas sobre
cada um de seus pontos (Ascher & Ascher, 1981, 1991). O que há de comum en-
tre cantos-narrativas, rios, quipus e formas lógicas é que, em todos esses casos,
trata-se de ícones que mostram relações, ou de índices que resultam de eventos.5
Pode parecer estranho à primeira vista que relações e números sejam
mostrados por meio de ícones. Mas o ponto essencial é que, enquanto letras
como “a”, “b” e “c” na “escrita conceitual” de Frege são símbolos arbitrários
sem conexão com o que representam (são “depósitos de nomes”), a árvore
que conecta essas marcas imita as relações que conectam esses símbolos. Es-
se ponto foi destacado por Peirce, que afirmou que a linguagem da álgebra e
da lógica é de natureza icônica, ideia formulada em um artigo de 1885 e que
corresponde perfeitamente ao caráter-quipu da notação ideográfica de Gottlob
Frege. Assim, no exemplo da Figura 5, não sabemos o que são “a” e “b”, mas
a sucessão de cordões que podemos representar como “a → b” mostra “a” e “b”
conectados por uma relação “ → ”. Se “a” e “b” são paradas ao longo do rio, essa
notação representa um trecho de um mapa.6 Em suma, cantos, rios, quipus e
sentenças na forma algébrica são lógicas concretas, escritas em algodão, em
pedra e em diagramas no papel.
Há mais que isso, porque, em suas palavras, “[...] as ideias indígenas
sobre forma geométrica, número e ordem devem ser incluídas como uma par-
te integrante das tradições orais, da iconografia e das técnicas de memória
que estamos considerando...” (Hugh-Jones, 2012: 157). A meu ver, Hugh-Jones
está de fato formulando a noção de que tradições orais, iconografia têxtil e
trançagem, como quipus, e caminhos fluviais ou terrestres, além de serem
parte de ontologias e de terem usos práticos, são atividades matemáticas: são
matemática concreta ou matemáticas selvagens.7 Essa tese postula primeira-
mente que o “pensamento selvagem” que opera com signos concretos (ícones
e índices) é adequado para expressar conceitos complexamente articulados
e com conteúdo numérico e geométrico. Uma outra consequência é que a
ausência de numerais em línguas indígenas, ou mesmo de mecanismos gra-
maticais de natureza recursiva (ou seja, orações subordinadas), não implica
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C1 C1 C1 C1 C1 C1C3C3
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C2 C2 C2 C2 C2 C2
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C1 C1 C1 C1 C1 C1 C1 C1 C1 C1 C1 C1C2 C1 C1C3
5
6
5
Um quipu esquematizado.
O cordão principal assinala lugares em
sucessão espacial; cordões secundários
contêm informação sobre colheitas,
impostos e outros assuntos registrada
em nós (não desenhados) e em cores
representadas por letra com diferentes
números (Ascher & Ascher, 1981: 112).
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de modo algum ausência de pensamento matemático, contrariamente a teses
que atribuem a certos povos cuja língua é pobre em numerais a incapacidade
numérica e matemática.
Conforme Everett, com base na escassez de numerais entre os Pirahã:
“Não há número gramatical em Pirahã”; “ninguém aprendera a contar até dez,
e ninguém aprendera a somar 3+1, ou mesmo 1+1 e responder regularmente
“2”, pois este último evidencia o aprendizado […]” (Everett, 2005: 623-624, 626, grifos
meus). Ora, nessas passagens evidencia-se a confusão conceitual do autor para
distinguir numerais (“número gramatical”) de conceito de número, e para dife-
renciar o contar com números do contar com palavras. O mesmo ponto é tam-
bém evidenciado quando somos informados de que “não há números ordinais
em Pirahã”, mas que os Pirahã ordenam “gerações de ego, abaixo de ego e acima
de ego” (Everett, 2005: 633). A tese de Everett apoiou-se também supostamente
em experimentos de Gordon, que atestariam a incapacidade dos Pirahã para
comparar quantidades “grandes”, mas também viciados pela mesma confusão
conceitual (Gordon, 2004: 496). Contudo, em artigo publicado no mesmo número
de Science, outra equipe fazia “uma distinção entre um sistema não verbal de
aproximação aos números e um sistema de contagem baseado na linguagem
para o número exato e a aritmética” que consiste em uma “rotina” para fazer
emparelhar um-a-um objetos com “numerais” (Pica et al., 2004: 499, 503). Em
artigo publicado em 2008, Everett e os demais autores reconhecem que, contra-
riamente a Gordon, “falantes do Pirahã eram perfeitamente capazes de realizar
combinações exatas com muitos objetos, mas, como relatado anteriormente,
eram imprecisos para combinar tarefas que envolviam a memória” (Frank et al.,
2008: 819). A conclusão passou a ser a de que palavras para números (nomes
de número), “number words”, são uma “tecnologia cognitiva para apreender a
cardinalidade de grandes conjuntos no tempo, no espaço e em mudanças mo-
dais”. Contudo, os autores insistem em que essa capacidade agora reconheci-
da não atesta conceitos numéricos, mas apenas a capacidade de estabelecer
correspondências um-a-um. Repete-se, assim, a conclusão de Pica et al., com a
suposição de que essa “tecnologia cognitiva” teria que ser verbal. De fato, mes-
mo sem invocar o uso de quipus entre ameríndios – registrado apropriadamente
por Hugh-Jones entre várias outras tecnologias de memória não-verbal – vale
trazer um exemplo do noroeste amazônico também particularmente adequado.
São os convites lyen-ti que consistem em “um dispositivo para a contagem de
dias dos antigos Palikur” composto de um conjunto de varinhas artisticamente
enfeitadas, cujo uso foi descrito em 1926 por Nimuendaju: “depois de recebê-lo,
(o convidado) quebra diariamente as pontas de duas varinhas. Se sobrar uma
varinha, a festa começará no meio-dia do mesmo dia; se porém não sobrar
nenhuma, a festa começará de noite” (ver Vidal, 2007: 23).
Eis a argumentação dos autores para concluir que os Pirahã, embora
possam contar grandes quantidades, não têm “representações mentais das
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cardinalidades de conjuntos grandes”, ou seja, não possuem “conceitos” de
número além do conceito de um.
Teriam os Pirahã representações mentais das cardinalidades de conjuntos gran-
des? [...] O êxito nas tarefas de correspondência um-a-um e de correspondência
desigual requer que os participantes entendam que a adição ou subtração de
exatamente um objeto torna incorreta uma correspondência, mesmo para grandes
quantidades. Assim, os Pirahã entendem o conceito de um (embora não tenham
palavra para o conceito). Além disso, parecem entender que somar ou subtrair
um elemento de um conjunto mudará a quantidade daquele conjunto (Frank et
al., 2008: 823).
Mas em seguida, os autores respondem à pergunta: a capacidade de
contagem exata revelada pelos Pirahã não atesta a “representação mental de
grandes quantidades”, porque ela pode ser completada “com um algoritmo
simples”:
Contudo, a tarefa de correspondência um-a-um pode ser completada através de
um algoritmo simples: “ponha uma bola junto de um cilindro”. Em nenhum mo-
mento durante a tarefa os participantes têm que representar a cardinalidade do
conjunto inteiro. Eles só precisam entender que, na aplicação desse algoritmo, é
exatamente uma bola que tem que ser aplicada a exatamente um cilindro. Assim,
nosso experimento sustenta a hipótese de que o conceito de quantidade exata não
é criado pela linguagem, mas sugere, por outro lado, que a capacidade de lembrar
de cardinalidades de grandes conjuntos depende do aprendizado de palavras nu-
méricas, isto é, dos nomes dos números (Frank et al., 2008: 823, grifos do autor).
Mas essa conclusão mostra apenas que, embora reconhecendo implici-
tamente a confusão anterior entre contagem e contagem com numerais, e a
incompetência dos experimentos anteriores de Gordon com “pilhas de gravador”,
os autores ignoram a definição axiomática moderna de número natural formu-
lada por Dedekind e Peano. O que os axiomas de Peano afirmam é que 1 é um
número, e que adicionar 1 a um número resulta em um novo número, sempre
diferente de todos os anteriores. Mas é justamente isso que os Pirahã sabem se-
gundo a citação anterior! Mais precisamente, os axiomas de Peano caracterizam
os números naturais como um objeto | e como tudo que resulta de juntar | a um
número já construído previamente. O resultado desse algoritmo de construção
de números naturais é uma sequência assim: |, ||, |||, ..., ||||||, ... É irrelevante aqui
dar nomes para cada objeto da série, e uma série de palhinhas como nos convite
palikur é uma técnica de armazenamento perfeitamente adequada.
Quanto ao processo de contagem, quando conjuntos são realmente muito
grandes, isto é, infinitos, o único método para compará-los, como mostrou Cantor,
consiste em fornecer um algoritmo para exibir essa correspondência um-a-um:
se não sobrar objeto algum, os conjuntos têm a mesma cardinalidade; caso con-
trário, o conjunto em que houver sobra tem cardinalidade maior. Ora, os Pirahã
possuem os axiomas de Peano, e contam como Cantor. Quanto à exigência de
numerais como técnicas de memória para “grandes números”, o fato é que ser
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capaz de dizer “mil” não traz à minha memória uma “representação mental”
dessa quantidade, nem consigo distingui-la de “mil e um”: para isso, é preciso
um algoritmo. Mais uma vez é preciso recorrer à matemática contemporânea
para discernir esse ponto. Um algoritmo para gerar o número simbolizado pela
palavra “mil” é, por exemplo, uma sequência |||... ||| em notação unitária.8 Em vez
de traços no papel, poderíamos usar pedaços de palha como fazem os Palikur
(Vidal, 2007) e os Tuyuka (Tenório Poani & Ramos Poani, 2004).
E para transportar números através do tempo e do espaço, isto é, para
depositar números em uma memória? Contrariamente aos autores que su-
põem ser necessária a “tecnologia de numerais” como memória numérica, há
uma grande variedade de meios que foram ilustrados por Hugh-Jones. Eis um
exemplo no caso do número “mil”: formemos um cordão de dez nós (contados
pelos dedos das duas mãos como fazem os Tuyuka), sendo que de cada nós
saem outros dez cordões (contados da mesma maneira), com dez nós em cada
um desses dez cordões (sempre usando dedos de duas mãos). O contador po-
de então transportar consigo esse quipu e usá-lo para contar mil objetos (ver
novamente as figuras 1 a 6).
Mais uma vez: Gordon e Frank et al. podem ser culpados de ignorância
sobre o conceito de número, mas não os ameríndios. Matemáticos construti-
vistas declaram-se incapazes de “representar mentalmente” a cardinalidade de
números infinitos como “um conjunto inteiro” (e chegam a recusar a existência
de conjuntos infinitos completados): eles contentam-se com algoritmos para
produzir conjuntos de inteiros sempre maiores, e que operam acrescentando
uma unidade de cada vez. A “memória da cardinalidade de conjuntos grandes”
não é dada por palavras, mas por algoritmos de contagem dos quais os quipus
são exemplos especiais.
Hugh-Jones já havia demonstrado em obras anteriores profunda familia-
ridade com os conhecimentos astronômicos de povos ameríndios, e no artigo
que comentamos mostra inteira clareza sobre a competência numérica dos
“povos carentes de escrita”: “Até então, os antropólogos que estudam socie-
dades amazônicas prestaram pouca atenção à questão da numeração – por
extensão, povos ‘carentes de escrita’ seriam também carentes ou deficientes
em números e em modos de contar” (Hugh-Jones, 2012: 158).
A pergunta é: por que razão os quipus da época da invasão foram destru-
ídos sistematicamente, e porque somente no século XX os quipus sobreviventes
começaram a ser lidos como registros quantitativos e qualitativos? Marcia e
Robert Ascher, autores de inventários exaustivos dos quipus sobreviventes e de
análises detalhadas de cada um deles, invocaram como explicação a incapa-
cidade dos colonizadores para reconhecer nos quipus uma escrita sofisticada,
dada a ausência de equivalentes europeus: “[...] não havia equivalências a quipus
na cultura espanhola do século XVI e não há equivalente algum em nossa
própria experiência” (Ascher & Ascher, 1981: 3).
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Mas essa explicação não é correta, porque havia uma contrapartida
óbvia de quipus na experiência cultural dos colonizadores, que são os rosários,
ou terços em sua forma reduzida, ao mesmo tempo técnicas de contagem,
arquivos numéricos, narrativas religiosas e mapas da salvação.9 A dificuldade
estaria não na ausência de contrapartidas de quipus no Ocidente, e sim na
inquietante similitude entre uma técnica de contagem ocidental associada
à cosmologia cristã e à organização da autoridade católica, de um lado, e as
técnicas de contagem associadas ao império Inca e a sua cosmologia religiosa,
de outro. A destruição dos quipus foi parte da guerra dos colonizadores con-
tra a metafísica matemática americana, assim como a abolição da contagem
nos dedos nas escolas primárias e a ausência de sorobans (um tipo de ábaco
japonês) no ensino básico reflete a continuação dessa guerra inglória contra
a matemática selvagem em nossa própria civilização.10 Finalmente, faz parte
dessa repressão ao nosso inconsciente matemático selvagem a separação en-
tre contar e contar. E aqui cabe uma única ressalva a meu mestre Steve. Ele
chama a atenção para o fato de que em português e espanhol o verbo “contar”
aplica-se igualmente à enumeração de objetos e à narração de histórias. Mas
a verdade é que a observação de Hugh-Jones também vale para o inglês e o
alemão, bastando lembrar que a palavra teller (o contador em caixas de banco)
vem de “to tell” (narrar), ao passo que zählen e erzählen evocam a origem igual-
mente comum de enumerar e narrar: a separação entre os dois significados é
em todas essas línguas fenômeno moderno e de origem erudita.11
O grande matemático Hermann Weyl viu nos padrões decorativos que
se encontram em construções egípcias e árabes, mas também em artefatos
em pano e outros materiais em culturas sem escrita, as primeiras evidências
da “matemática avançada” na história humana (Weyl, 1952). Essa conexão foi
posta em destaque por Speiser no caso de padrões decorativos em 1937, e
por Tietze no caso de nós em 1938, data de uma palestra publicada em 1942
(Speiser, 1937; Tietze, 1942), em ambos os casos a partir da descoberta de novos
campos da matemática “avançada”, a saber, a teoria dos grupos e a teoria dos
nós. Não é preciso lembrar que André Weil, outro importante matemático mo-
derno, percebeu na década de 1940 que a compreensão de regras de parentesco
de povos australianos levavam à teoria dos grupos finitos, o que conduziu
ao estranho efeito da multiplicação de exemplos etnográficos em cursos de
álgebra abstrata.12 Pode-se falar de uma metafísica matemática embutida em
sistemas de parentesco e nos kene das tecelãs kaxinawá assim como nos kolam
nas mulheres tamil, povos que também compartilham a elegante matemática
das terminologias dravidianas.13
Recebido em 10/09/2015 | Aprovado em 03/11/2015
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Mauro W. B. Almeida é PhD em Antropologia Social pela
Universidade de Cambridge e Mestre em Ciência Política pela
Universidade de São Paulo. Foi Tinker Professor na Universidade de
Chicago em 2006, e fez pós-doutorado na Universidade de Stanford. É
professor-colaborador (aposentado) no Departamento de Antropologia
Social da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e membro
do Centro de Estudos Rurais (CERES). Participou da criação da reserva
extrativista do Alto Juruá, e do planejamento da Universidade da
Floresta (Universidade Federal do Acre – Campus Floresta). Entre suas
publicações está o livro, em co-autoria com Manuela Carneiro da
Cunha, A enciclopédia da floresta. O Alto Juruá: prática e conhecimentos
das populações (2002).
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artigo | mauro w. b. almeida
NOTAS
1 Todas as citações de obras estrangeiras foram traduzidas
por mim.
2 Com a asserção “o mapa não é o território”, Bateson ex-
pressava a distinção entre linguagem e metalinguagem
introduzida por lógicos (Bertrand Russell e Alfred Tarski)
no início do século XX. Contudo, Bateson sabia que nas
línguas naturais linguagem e metalinguagem alternam-se
em equilíbrio instável como forma e fundo na percepção
visual (Bateson, 2000: 184; Carneiro da Cunha, 2002: 358).
3 Ver Coleção narradores indígenas do Rio Negro, com oito vo-
lumes publicados pela Federação das Organizações Indíge-
nas do Rio Negro (FOIRN) e pelo Instituto Socioambiental
até a data do artigo de Hugh-Jones (2012). Ver também
“escritas em cestos” (Ricardo & Martinelli, 2001; van Vel-
them & Linke, 2010, 2014) e mapas escritos tanto “na pedra”
(IPHAN, 2007) como “em papel” (Cabalzar & Ricardo, 2011),
e a interação dessas escritas (Cabalzar, 2012).
4 Hans Tietze incluiu em brochura publicada em 1942 so-
bre a teoria matemática dos nós uma extensa nota sobre
quipus. Nela se afirma que quipus serviam como mapas e
como registros de tributos: “nos Quipus não apenas ca-
racterísticas externas como cor e tamanho dos fios, mas
também os diferentes tipos de nós eram relevantes para
o significado de um cordão-de-nós” (Tietze, 1942: 36, nota
de rodapé). Tietze afirmou também que a “escrita de nós”
(“Knotenschrift”) existia também nas Ilhas Marquesas onde
seria utilizada para registro de tributos e também para
registros genealógicos que abrangeriam mais de cem ge-
rações, dando como fonte Karl von den Steinen (Marque-
sanische Knotenschnüre, Correspondenzblatt der Deutschen
Gesellschaft für Anthropologie, Ethnologie und Urgeschichte, 34,
1903: 108 ss, conforme Tietze, 1942: 36).
5 “Eu chamo de ícone um símbolo que está no lugar de al-
go apenas por se assemelhar a esse algo. Assim são os
diagramas da geometria. Na verdade, um diagrama que
tenha um significado geral não é um puro ícone, mas no
meio de nosso raciocínio, esquecemos em boa medida es-
sa qualidade abstrata, e o diagrama passa a ser para nós
a própria coisa [...] a dedução consiste em: construir um
ícone ou diagrama cujas relações entre suas partes apre-
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sentam completa analogia com as relações entre as partes
do objeto do raciocínio; em experimentar ou testar essa
imagem em nossa imaginação; e em observar o resultado a
fim de descobrir relações ocultas ou ainda não percebidas
entre as partes (Peirce, 1933: 182 ss).
6 Como se sabe, essa é a posição de Ludwig Wittgenstein no
Tractatus logico-philosophicus: forma lógica não simboliza,
mas mostra relações entre coisas de modo figurativo (Wit-
tgenstein, 1984).
7 Trata-se do que D’Ambrosio e outros chamam de “etno-
matemática” (D’Ambrosio, 1998, 2010; Ascher, 1991, 2002).
Preferimos evitar essa expressão. Uma primeira razão é que
sua aplicação sistemática nos levaria a falar de uma “etno-
lógica” para o estudo de lógicas em “diferentes contextos
culturais”, enquanto a expressão é também entendida como
as próprias modalidades de matemática postas em práticas
em diferentes culturas. Mas a razão principal já foi exposta:
não há diferença essencial entre as matemáticas concretas
ou selvagens de quipus e ábacos, de mapas polinésios e de
silogismos mitológicos e a matemática erudita.
8 Ver Carnielli e Epstein, onde já na página 44 os autores ex-
plicam que em “notação unitária” números são representa-
dos por , , , como |, ||, ||| e assim por diante, de tal modo que
“para qualquer representação de um número na sequência,
o próximo número é representado colocando-se mais um
traço à direita do anterior” (Carnielli & Epstein, 2005: 44).
Uma excelente introdução à teoria de Cantor é Naive set
theory, o livro de Paul Halmos cuja tradução brasileira é in-
titulada Teoria ingênua dos conjuntos (Naive set theory). Foi o
que me abriu os olhos para o assunto quando trabalhava de
dia como revisor e tradutor na Editora Polígono-Perspectiva
sob a direção de Jacó Guinsburg, e estudava Ciências So-
ciais à noite. Devo ao matemático Antonio Galvez, hoje na
Universidade Estadual de Campinas, a orientação para re-
digir o verbete “Infinito” para a Enciclopédia Abril na década
de 1970 (Enciclopédia Abril, 15 vols., São Paulo: Editora Victor
Civita, 1976), em que a técnica de contagem sem numerais
é explicada para introduzir o conceito de infinito de Cantor.
9 “Para se rezar o Santo Rosário, criou-se um [...] instrumento
denominado “terço” exatamente por conter as bolinhas (ou
contas) necessárias para contar as orações recitadas, corres-
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pondentes a uma terça parte do Rosário completo original,
que continha 15 mistérios [...]. O terço é um caminho que
nos mostra a porta de entrada da salvação” (ver <http://
www.pnslourdes.com.br/rosario.htm>, 2015, grifos meus).
10 Sobre matemáticas concretas ou selvagens nas ruas, ver
Nunes, Schliemann & Carraher (1993); sobre aritméticas
indígenas, ver Ferreira (2001, 2002, 2015); sobre matemáti-
ca de donas-de-casa, ver Lave (1998), Lave & Wenger (1991),
além de uma crescente bibliografia.
11 Ver Wolfgang Pfeifer, Etymologisches Wörterbuch des Deuts-
chen (Munique: Deutschen Taschenbuch Verlag, 1995); Em-
manuèle Baumghartner & Philippe Ménard, Dictionnaire
étymologique et historique de la langue française (Paris: Le
Livre de Poche, 1996), além do Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa (Rio de Janeiro: Objetiva, 2001).
12 Exemplos pioneiros são, depois do apêndice de A. Weil às
Estruturas elementares do parentesco, Pierre Samuel (1967)
[1959] e uma inovadora introdução à matemática no nível
de colleges norte-americanos, que introduz ao lado de tópicos
sobre programaçao linear e processos estocásticos em gené-
tica duas seções sobre “regras de casamento em sociedades
primitivas” (Kemeny, Snell & Thompson, 1956: 424-433).
13 Sobre sistemas terminológicos dravidianos como cálculo
matemático, ver textos da antropológa tamil Ruth Mani-
mekalay Vaz (2010, 2011, 2014), e comentários em Almeida
(2014). Sobre os kolam de mulheres tamil e sua reescrita
como algoritmos computacionais pelos seus filhos e ma-
ridos, ver Ascher (1991, 2010, 2012).
14 É perfeitamente natural escrever proposições da lógica
matemática em quipus, embora a proposta de Frege exem-
plificada acima não tenha sido adotada por ninguém. A
sucessão de linhas verticais indica implicação lógica. As
letras representam sentenças elementares. A primeira li-
nha vertical diz que a afirmação c implica que a afirmação
b implica a (ler de baixo para cima, seguindo a ordem dos
cordões). A segunda linha vertical diz que c implica b. E
a terceira linha vertical diz que c implica a. Mas cada um
dos cordões principais implica os que vêm depois, de modo
que a proposição inteira afirma que, aceitando a primeira
linha, resulta que a segunda linha implica a terceira (Frege,
1967[1879]: 31). Na notação que veio a ser usada, o quipu
de Frege é escrito assim: (c → (b → a)) → ((c → b) → (c → a)).
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MATEMÁTICA CONCRETA
Resumo
Com base em trabalhos etnográficos, o texto examina e
reflete sobre a continuidade existente entre diferentes
formas de escrita – materializadas tanto na pedra como
na tecelagem, na cestaria, nos livros bilíngues em papel
– e a linguagem dos cantos e falas indígenas. Argumen-
ta-se que toda forma de escrita evidencia a capacidade
formal do pensamento e da prática humanos. As formas
concretas da escrita analisadas expressariam então uma
capacidade matemática que se manifesta, assim como a
capacidade de linguagem, em todos os povos e culturas,
sob modos diferentes, mas que preservam algo que não
varia – relações e não conteúdo.
CONCRETE MATHEMATICS
Abstract
The article uses ethnographic works to analyze the conti-
nuity between different forms of writing – materialized in
stone, woven in cloth or basketry or inscribed in bilingual
paperbacks – and the language of Indigenous songs and
speeches. All form of writing is evidence of the formal ca-
pacity of human thought and practice. The concrete forms
of writing analysed here would hence express a math-
ematical capacity which, like the capacity for language,
manifests itself among all peoples and cultures in differ-
ent ways, but always preserves something as invariable:
relations rather than content.
Palavras-chave
Stephen Hugh-Jones;
Quipus;
Matemática concreta;
Formas da escrita;
Linguagem.
Keywords
Stephen Hugh-Jones;
Khipus;
Concrete mathematics;
Forms of writing;
Language.
Jorge Myers I
I Universidad Nacional de Quilmes (UNQ),
Buenos Aires, Argentina
UMA “ATLANTIC HISTORY” avant la lettre. TRANSCULTURAÇÕES ATLÂNTICAS E CARIBENHAS EM FERNANDO ORTIZ
Tradução de Andre Bittencourt
O Atlântico existe por obra da guerra de conquista e da dominação escravista. Se
hoje se pode apreender como objeto legítimo do olhar do historiador uma zona
cultural (e geopolítica) denominada “o Atlântico”, isto é consequência desses dois
fatores. A irrupção para além das suas estreitas comarcas de alguns bárbaros
de pele branca e muitas vezes barbudos, homens rudes e implacáveis em sua
vontade de domínio, em direção à terra nova do Ocidente – América – e à desco-
nhecida ou mal conhecida do Sul – África – estabeleceu os fundamentos a partir
das últimas décadas do século XV, de um elaborado sistema de contatos culturais
e de padrões de dominação. Esse sistema entrelaçou em um todo – misturado e
variável ao longo do tempo – as duas costas extensíssimas do Atlântico. Hoje, vol-
ta a se consolidar na academia anglo-norte-americana a ideia de uma “Atlantic
History”, habitada pelos interesses geopolíticos do império americano, bem como
pelo interesse científico “desinteressado” (não nos esqueçamos de que a princi-
pal expressão política e militar de um conjunto de países de ambos os lados do
Atlântico continua sendo a Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN).1
Nesse novo momento, nos pareceu pertinente dirigir o olhar para um dos primei-
ros autores latino-americanos a conceber o Atlântico como um todo cultural, e a
desenvolver, para além de uma obra historiográfica dedicada a estudar aspectos
específicos de sua história, um marco teórico que permitisse uma aproximação
mais sofisticada e sutil, mais precisa, aos fenômenos de intercâmbio e de mescla
culturais que a expansão europeia pôs em movimento após 1460/1490.
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A obra antropológica e histórica de Fernando Ortiz (1881-1969) é atra-
vessada pela notável intuição de que a criação de novas formas culturais se
assentava sempre sobre atos de dominação – racial e de classe – e que, por
conseguinte, “documentava a barbárie” – como disse Walter Benjamin no mar-
co de um projeto intelectual inteiramente diferente daquele de seu contempo-
râneo europeu.2 Porém, ela é também perpassada pela esperança de que dian-
te de todo ato de barbárie uma obra de cultura pudesse emergir, permitindo
transcender o mundo de atrocidades e tentar ao menos superar alguns de seus
efeitos mais daninhos. Entre estes, a sobrevivência dos sistemas de dominação
racializada que os impérios europeus do Atlântico deixaram consolidados em
seu rastro lhe preocupava especialmente.
A independência de Cuba foi mais tardia do que a das demais repúblicas
da América-Hispânica. Lá as instituições destinadas a enquadrar uma nascente
identidade nacional estavam ainda em processo de formação e a lembrança da
escravidão africana era ainda muito recente – Cuba foi o penúltimo país ame-
ricano a abolir aquela instituição (1886). Nesse contexto, a obra de história cul-
tural desenvolvida por Ortiz assumiu particular relevância para o estudo dos
cruzamentos de cultura na zona atlântica e caribenha. Sua vida e a formação
intelectual estiveram intimamente entrelaçadas com a história republicana de
Cuba anterior à Revolução de 1959.
Filho de pai espanhol e mãe cubana, viveu na Espanha até os quatorze
anos (passou sua infância na ilha de Menorca), retornou com a família a Cuba
no exato momento em que começava a última e definitiva guerra de indepen-
dência (1895-1898), e deu início a seus estudos universitários na Universidade
de Havana durante essa estada. Entre 1899 e 1902, enquanto durou a ocupação
norte-americana da ilha, regressou à Espanha, onde obteve uma licenciatura
em Direito, em Barcelona, e um primeiro doutorado, também em Direito, em
Madri. Em 1902 – ano em que se iniciou o primeiro governo cubano após a ocu-
pação da ilha pelos norte-americanos – voltou a Cuba onde fez um segundo
doutorado na Universidade de Havana, para então ingressar no serviço diplo-
mático da nascente República – sua primeira carreira –, função que exerceu
durante um breve tempo. Ocupou cargos diplomáticos em La Coruña, Gênova e
Marselha até 1905. Foi nesta última data que decidiu se radicar definitivamen-
te em Cuba, sendo nomeado, em 1906, fiscal no Tribunal de Justiça de Havana
(a Corte Suprema da República). A partir de então e até o ano do triunfo da Re-
volução Cubana – data de sua aposentadoria – desenvolveu simultaneamente
uma intensa atividade profissional – na universidade, no fórum e na tribuna
– e intelectual – destacando-se como criminalista lombrosiano em uma primei-
ra etapa de sua carreira, como antropólogo malinowskiano em uma segunda,
enquanto paralelamente ia acumulando também prestígio como historiador e
sociólogo. Desde 1908, quando começou a exercer a cátedra de Direito Público,
esteve vinculado à Universidade de Havana. Também nesse ano se casou com
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artigo | jorge myers
sua primeira esposa (irmã de uma discípula de Ortiz, Lydia Cabrera) Esther
Cabrera – com quem teve uma filha, Isis, um ano mais tarde. Tendo enviuvado
em 1928, casou-se alguns anos depois com María Herrera, tornando-se pai de
outra filha, María Fernanda.
Entre 1917 e 1927 ocupou um assento de deputado, pelo Partido Liberal,
no Congresso Nacional de Cuba (chegando a ser vice-presidente) – sua orien-
tação político-ideológica naqueles anos esteve marcada por mudanças de uma
posição “liberal-wilsoniana” para outras mais próximas de certo socialismo
liberal. Um momento de inflexão em sua trajetória político-ideológica se pro-
duziu quando Alfredo Zayas, o presidente do partido em cujo seio militava,
ocupou a presidência de Cuba (1921-1925): a disciplina partidária que se podia
esperar dele não evitou que se convertesse progressivamente em crítico dessa
administração, com uma posição cada vez mais preocupada com a questão
social. Entre 1929 e 1933, adotou uma posição de clara confrontação com a di-
tadura de Gerardo Machado “e sua sanguinária cacocracia3”, passando por isso,
entre 1931 e 1933, ao exílio nos Estados Unidos. A revolução de 1933 permitiu
que voltasse ao país, onde retomou a vida cívica tão intensamente comprome-
tida que havia criado para si mesmo em sua terra natal. Reassumiu as distintas
instituições culturais que havia fundado ou contribuído para fundar nos anos
anteriores a seu exílio, criou novas nos anos subsequentes, e deu um renovado
impulso à sua produção científica e literária. Dedicado essencialmente, nos
anos seguintes, à pesquisa, à escrita, à docência e à gestão cultural, foi só a
partir de 1940 que sua figura intelectual começou a se projetar – com prestígio
e autoridade – fora de Cuba: consequência direta de ter proposto o conceito de
“transculturação” como ferramenta teórica fundamental para a antropologia e
para a história cultural. Inimigo da emergente ditadura de Fulgêncio Batista,
sua recusa a participar, em 1952, no Congresso Constituinte convocado para
promulgar uma nova constituição que a legitimaria, levou-o a ser relegado a
um posição pouco destacada durante os sete anos de duração desse regime
autoritário. Tendo recebido a nova ordem nascida da Revolução Cubana com
uma simpatia não livre de certo receio, chegou a ser membro da comissão or-
ganizadora da Academia de Ciências de Cuba entre 1962 e sua morte, em 1969,
apesar de ter se aposentado em 1959 de seus cargos universitários. Ainda que
em um ritmo notavelmente menor que nos anos anteriores – dada sua idade
avançada – continuou publicando esporadicamente durante a década que se
seguiu ao triunfo da Revolução: em 1959 publicou em Havana seu longo estu-
do, Historia de una pelea cubana contra los demonios, e em 1963 uma importante
segunda edição ampliada de seu Contrapunteo cubano, que recebeu ainda outra
ampliação no ano seguinte.
Não só como escritor e pensador, mas também como gestor e anima-
dor de instituições culturais, deixou uma marca profunda na vida intelectual
cubana do primeiro meio século posterior à Independência. Em 1907 ingressou
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como sócio na Sociedad Económica de Amigos del País de La Habana (uma an-
tiga instituição bourbônica, cuja origem remonta ao século XVIII), contribuindo
para sua reorganização geral, com vistas a adequá-la aos tempos que corriam:
exerceu o cargo de diretor entre 1923 e 1959, com algumas breves interrupções.
Em 1910 tornou-se diretor da Revista Bimestre Cubana – publicação oficial da So-
ciedad Económica – que, depois de uma longa ausência, foi relançada naquele
ano. Em 1923 fundou – em companhia do filólogo e estudioso da literatura José
María Chacón y Calvo – a Sociedad del Folklore Cubano, que também publicou
uma revista própria – Archivos del Folklore Cubano –, convertendo-se em diretor
de ambas (embora tenha alternado na direção da revista com Emilio Roig de
Leuchsenring e outros sócios dessa instituição). Em 1924 tornou-se vice-presi-
dente da Academia Nacional de la Historia (instituição fundada em Cuba em
1910), e mais tarde passaria a exercer a presidência da mesma. Em 1926 foi um
dos principais impulsionadores da criação da Institución Hispanocubana de
Cultura, da qual também foi diretor (1926-1939): entre seus sócios figuraram
alguns dos mais destacados intelectuais contemporâneos da Espanha, de Cuba
e do resto da América Hispânica. A Institución Hispanocubana, além de suas
Mensajes institucionais, publicou duas revistas: a efêmera Surco (1930-1931) e
a mais duradoura Ultra (fundada em 1936 e editada até 1947). Interrompidas
suas tarefas como gestor cultural devido ao seu exílio, retomou-as quando de
seu regresso a Cuba, em 1933. Nesse ano fundou uma quarta instituição em
cujo seio vislumbrava enquadrar as tarefas de pesquisa e difusão relacionadas
com sua então mais recente paixão intelectual: a Sociedad de Estudios Afrocu-
banos, cuja principal publicação foi a Revista de Estudios Afrocubanos. Todas as
manifestações do africano na cultura cubana instigavam seu interesse, desde
a sobrevivência – atávica ou não – das religiões trazidas pelos escravos de suas
diferentes regiões de origem na África, até a música, a dança, o teatro, a poesia,
as artes plásticas ou a indumentária e a sexualidade. Nada do africano lhe era
alheio porque nada transculturado lhe era. Foi como pesquisador da presença
cultural africana em Cuba e das complexas inovações culturais a que ela havia
dado lugar – mediante processos de transculturação – que Ortiz se converteu
também em pioneiro desse subcampo da história, cujo sentido aparece sinte-
tizado no termo “história atlântica”.
Em 1941, dentro do marco que lhe oferecia a Institución Hispanocubana
– já moribunda pelo efeito da Guerra Civil Espanhola e do franquismo – organi-
zou a sociedade chamada Alianza Cubana por un Mundo Libre, cujo propósito
foi apoiar desde Cuba, no contexto da Segunda Guerra Mundial, a luta contra
o fascismo. Finalizada essa batalha, contribuiu para organizar e presidiu o
Instituto Cultural Cubano-Soviético (fundado em 1945), que publicou a revista
Cuba y la U.R.S.S entre 1945 e 1948. Se um apoio tão explícito à União Soviética
era novidade, cabe enfatizar que, desde os anos 1920, Ortiz havia assumido
posições que o colocavam, sobretudo em relação à legislação do trabalho e ao
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artigo | jorge myers
combate contra o racismo, na esquerda de seu partido, o Liberal. Uma rápida
leitura do conteúdo de algumas das publicações periódicas dirigidas por ele
antes da Segunda Guerra Mundial, como a revista Ultra, permite apreciar até
que ponto ele seguia com interesse e até com certa simpatia cautelosa, na
década de 1930, os desenvolvimentos então em curso na União Soviética: o
segundo número (agosto de 1936) dessa revista abria com várias páginas de-
dicadas a informar sobre a vida e a obra de Máximo Gorki, além de reproduzir
algumas de suas reflexões, e – no contexto de um índice bastante variado de
matérias, que refletiam a grande pluralidade ideológica da publicação – apre-
sentava também a seus leitores um breve texto sobre a importância das con-
quistas de Pavlov e outro sobre Walter Duranty, que levava o curioso título de
“A liberdade progride na Rússia” (a ironia que hoje nos suscita a sobreposição
de tal título aos julgamentos de Moscou provavelmente passou inteiramente
despercebida por seu autor).
A produção intelectual de Fernando Ortiz, simultânea a sua imensa ati-
vidade organizadora e institucional, se divide em duas grandes etapas, embora
caiba enfatizar que houve muitas continuidades, às vezes não de todo eviden-
tes, entre uma e outra. Na primeira, quando seu perfil público foi essencial-
mente o de advogado e jurista especializado no campo da ciência criminalista
e interessado em temas da antropologia jurídica, as obras de Enrico Ferri e
de Cesare Lombroso constituíram sua principal referência teórico-ideológica.
Entre 1901, data de sua tese de doutorado, e sua morte em 1969, publicou – em
minorquino4, italiano e castelhano e com traduções em vida para o português,
inglês e francês – mais de 26 livros (número que se eleva a mais de 50 títulos
quando incluídas também as brochuras e separatas).5
CONTATOS CULTURAIS E POSSIBILIDADES DA MESCLA:
FERNANDO ORTIZ, DO ajiaco à TRANSCULTURAÇÃO
O conceito de “transculturação” foi proposto por Ortiz com a intenção de sinte-
tizar os argumentos sobre os contatos de cultura desenvolvidos pela corrente
liderada por Bronislaw Malinowski no campo antropológico, e de substituir o
termo – que julgava impreciso e, mais ainda, preconceituoso – de “accultura-
tion”, aculturação, defendido por um dos principais rivais de Malinowski nos Es-
tados Unidos, Melville Herskovits. Em parte por causa de seu papel neste debate,
em parte pela eloquência de sua prosa e do caráter amplamente documentado
de seus argumentos, Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (1940) – o livro
em que desenvolveu mais extensamente a ideia de transculturação lançada
no ano anterior – se converteu instantaneamente em um clássico. Nesse livro
Fernando Ortiz se propôs a realizar uma história geral dos respectivos usos do
tabaco e do açúcar (embora caiba assinalar que o protagonista indiscutível do
livro seja o primeiro, e não o segundo) no mundo e muito particularmente em
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Cuba, explorando as variadas maneiras de reinscrevê-los e ressignificá-los no
interior de culturas muito afastadas, no espaço e no tempo, daquelas que pela
primeira vez lhes haviam conferido algum uso. Se a análise da história do taba-
co se tornou uma espécie de exercício na antropologia dos objetos, a intenção
primeira do autor parece ter sido mais concretamente a de enfatizar o fato de
que o resultado final do contato de culturas não consistiu simplesmente na
substituição de uma pela outra – a dos conquistados pela dos conquistadores
no caso da Conquista da América, a originária dos imigrantes pela da população
previamente estabelecida, no caso dos Estados Unidos ou de Cuba no século XX
– senão que implicava um processo complexo de mescla e de empréstimos entre
culturas, de ressignificação de práticas e de objetos, que levava a produzir algo
que, embora pudesse ostentar alguns traços de cada cultura incorporada, era,
afinal de contas, radicalmente novo. Muito significativamente, Ortiz falava que
“transculturação” era um conceito que nascia da própria experiência histórica
americana e cubana, e que servia, por conseguinte, para iluminá-la com maior
precisão do que seria possível com outros termos afins, porém menos ajustados
à problemática cultural de que pretendiam dar conta.
O conceito de transculturação permitiria – ao mesmo tempo em que
contribuiria para renovar as ciências sociais de modo geral – iluminar aspectos
centrais da formação cultural própria dos cubanos e dos americanos (em um
sentido mais lato): e essa iluminação exigia que o Atlântico e os três conti-
nentes com os respectivos povos que através de suas águas haviam entrado
em contato fossem tematizados como um espaço cultural total. Este conceito,
originado nos extensos estudos dedicados por Ortiz à contribuição cultural dos
povos indígenas nativos e dos africanos transplantados a Cuba, no marco da
colonização europeia da ilha – e exposto em trabalhos de índole arqueológica,
antropológica e histórica –, lhe permitiu apreender a complexidade das cor-
rentes culturais que haviam circulado pelo Atlântico desde o século XV. Permi-
tiu-lhe também reconhecer que os empréstimos e cruzamentos simbólicos e
materiais não haviam seguido uma direção única – do europeu dominante para
culturas (ou raças) julgadas inferiores –, mas haviam sido pluridirecionais.
No capítulo dois adicional6 de Contrapunteo cubano, intitulado “Do fenô-
meno social da ‘transculturação’ e de sua importância em Cuba”, Ortiz havia
na verdade explicado que:
Com a vênia do leitor, especialmente se é dado a estudos sociológicos, nos per-
mitimos usar pela primeira vez o vocábulo transculturação, sabendo que é um ne-
ologismo. E nos atrevemos a propô-lo para que na terminologia sociológica possa
substituir, em grande parte ao menos, o vocábulo aculturação, cujo uso se está
ampliando atualmente (Ortiz, 2002: 254).
Um pouco mais adiante o autor elaborou com mais detalhes as razões
que o levaram a propor o neologismo:
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artigo | jorge myers
Escolhemos o vocábulo transculturação para expressar os variadíssimos fenôme-
nos que se originam em Cuba pelas complexíssimas transmutações das culturas
que aqui se verificam, sem conhecê-las é impossível entender a evolução do povo
cubano, tanto no econômico quanto no institucional, jurídico, ético, religioso, ar-
tístico, linguístico, psicológico, sexual e nos demais aspectos de sua vida. […] A
verdadeira história de Cuba é a historia de suas intrincadíssimas transculturações
(Ortiz, 2002: 254).
A reflexão sobre a identidade cultural cubana era uma de suas preocu-
pações mais antigas como jurista, historiador e etnógrafo, mas tornava-se ain-
da maior em função de seu pertencimento à primeira geração de cidadãos da
Cuba independente. Desde seu ensaio inicial, Entre cubanos, de 1913, até seus
últimos trabalhos, a pergunta pela identidade cultural, social e nacional dos
cubanos foi um leitmotiv em sua obra. Apenas alguns meses antes, na revista
dirigida por ele, a Revista Bimestre Cubana (volume XLV, número 2, março-abril
1940), Ortiz publicou uma conferência intitulada “Os fatores humanos da cuba-
nidade”, apresentada na Universidade de Havana no dia 28 de novembro de
1939, na qual propunha utilizar a comida típica cubana – o ajiaco7 – como uma
metáfora da identidade nacional cubana. Nesse uso, brincando um pouco com
a culinária cubana, apareciam já algumas das principais ideias que informa-
riam sua definição da transculturação em 1940. Respondia, então, à sua pró-
pria pergunta retórica, “O que é a cubanidade?” com a frase: “Cuba é um ajiaco”
(Ortiz, 1998: 192). Sendo este, segundo Ortiz, o guisado mais típico e mais com-
plexo da ilha e, tendo sido o guisado típico dos índios taínos, podia funcionar
maravilhosamente bem como metáfora da identidade nacional. Explicava:
A imagem do ajiaco criollo simboliza bem a formação do povo cubano. […] Primeira-
mente uma caçarola aberta. Isso é Cuba, a ilha, a panela ao fogo dos trópicos […]. E
aí vão as substâncias dos mais diversos gêneros e procedências. O índio nos deu o
milho, a batata, o cará, a batata doce, a mandioca, o ají8 que o tempera e o branco
xao-xao del casabe9 com que os bons criollos de Camagüey e Oriente enfeitam o
ajiaco ao servir (Ortiz, 1998: 193).
Os produtos que entravam na panela para produzir o ajiaco eram, por-
tanto, de procedência indígena, espanhola, africana, asiática e francesa, ao
passo que as novas tecnologias norte-americanas tinham servido para me-
lhorar as possibilidades de cocção. Para Ortiz: “O característico de Cuba é que,
sendo ajiaco, seu povo não é um guisado pronto, mas sim um constante cozi-
mento”. A identidade do povo cubano estava em processo de formação, um
enunciado cujo campo de aplicação ele estenderia depois até abarcar toda a
humanidade. O característico de toda a identidade cultural (ou étnica, ou na-
cional) era sua condição de mudança permanente.
Esta metáfora merece ser assinalada porque exemplificava uma das no-
ções mais sistematicamente desenvolvidas por Ortiz ao longo da segunda eta-
pa de sua obra (pós-1940): a de que a substancialidade das raças era um mito,
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uma enteléquia. As raças eram um “engano”, a variação somática das pessoas
era tão infinita que só se podia falar de “raças” em um sentido biológico caso
se postulassem tipos ideais, e se tais tipos ideais podiam servir para organizar
o olhar teórico sobre o mundo humano, não podiam atuar como categorias
biológicas consequentes. Não havia, portanto, nem raças puras nem raças su-
periores e inferiores; o estado “racial” de um povo em um momento dado só
podia ser efêmero, mutável. Daí que sustentava nesse mesmo texto (repetindo
posições enunciadas antes) que a desracialização da humanidade era uma
possibilidade mais atraente que a vasconceliana “raça cósmica”.10 Na verdade,
no restante de sua conferência, Ortiz celebraria o aporte de cada “raça” às
culturas cubana, indígena, africana, latina, anglo-saxônica, judia, asiática etc.
A metáfora do ajiaco informava, assim, o conceito mais formal da trans-
culturação, palavra que, apesar de ser um substantivo, designava um processo.
No segundo capítulo adicional de Contrapunteo cubano, citado anteriormente,
Ortiz descreveu a transculturação do seguinte modo:
Entendemos que o vocábulo transculturação expressa melhor as diferentes fases
do processo de transição de uma cultura para outra, porque este não consiste
somente em adquirir uma cultura diferente, que é o que a rigor indica a voz anglo-
-saxônica acculturation, mas sim que o processo implica necessariamente a perda
ou desenraizamento de uma cultura precedente, o que se poderia chamar de uma
parcial desaculturação, e, além disso, significa a consequente criação de novos
fenômenos culturais que poderiam denominar-se de neoculturação. Enfim, como
bem sustenta a escola de Malinowski, em todo abraço de culturas sucede o mes-
mo que na cópula genética dos indivíduos: a criança sempre tem algo de ambos
os progenitores, mas também sempre é diferente de cada um dos dois. Na sua
totalidade, o processo é uma transculturação, e este vocábulo compreende todas
as fases de sua parábola (Ortiz, 2002: 260).
Para surpresa de muitos contemporâneos, Malinowski não só aceitou
fazer o prólogo do livro que propunha este neologismo conceitual (o mesmo
Malinowski que em sua polêmica com a visão antropológica de Freud havia
declarado incisivamente que os neologismos – como o termo freudiano “com-
plexo” – deviam sempre ser evitados) como declarou nele que a partir de então
ele mesmo usaria o vocábulo cunhado por Ortiz em substituição a “acultura-
ção” ou a qualquer outro termo afim.
RAÇA, CULTURA, ESPAÇO ATLÂNTICO: ORTIZ HISTORIADOR
Embora Ortiz seja reconhecido fundamentalmente como etnógrafo positivista,
criminologista e antropólogo cultural, não devemos desconsiderar suas inter-
venções decisivas em outros campos da cultura cubana, como a literatura e a
história. Uma contribuição fundamental a esta última disciplina foi a direção
da importante “Colección de libros cubanos” (também chamada “Colección de
clásicos cubanos”), dedicada a reedições muito cuidadosas de clássicos do pen-
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artigo | jorge myers
samento e da historiografia de Cuba.11 Esse trabalho de colocar em circulação
fontes para o estudo da história política, social e cultural de Cuba contribuiu de
um modo decisivo para a consolidação da disciplina histórica nesse país, enten-
dida segundo padrões científicos próprios das primeiras décadas do século XX.
Por outro lado, como decorrente de sua exploração crescente de todas
as facetas da cultura africana em Cuba, Ortiz entabulou, em 1922, uma relação
direta com alguns dos escritores da modernização literária “minorista”. Tais es-
critores propunham a criação de um movimento literário “afronegrista”, como
Nicolás Guillén, Alejo Carpentier e Ramón Guirao, ou o grupo de escritores que,
em 1927, lançara a primeira revista importante da vanguarda literária dessa
nação, a Revista de Avance. Para esses poetas e narradores, os aportes etnográfi-
cos e sociológicos de Ortiz referidos à cultura africana da ilha constituíram um
insumo decisivo para a reorientação de sua própria literatura. Alejo Carpentier
deixou o seguinte testemunho a respeito:
Roldán e eu, acompanhados de uns poucos que tinham opiniões como nós, co-
nhecemos então naquela época um período de “enfermidade infantil” do afrocu-
banismo. Devorávamos os livros de Ortiz. Caçávamos ritmos na ponta do lápis.
Papá Montero e María de la O. se tornavam seres vivos e provocavam em nós uma
admiração análoga à que Sigfredo e Brunhilda provocaram na mente de Catulle
Mendès e Élémir Bourges. Eu sonhava com a criação de um museu do folclore
em que se exibissem objetos tão humildes quanto as alegrías de coco12 ofereci-
das nas vitrines das tabernas de província. Abaixo a lira, viva o bongo! […] Assim
que sabíamos que um juramento ñáñigo13 ia acontecer nas imediações de Havana,
abandonávamos qualquer compromisso, qualquer obrigação, para assistí-lo […]
(Carpentier apud Ferrer, 1998: 23).
Como indicamos acima, a trajetória intelectual de Ortiz se dividiu em
duas etapas claramente distinguíveis entre si pela orientação teórico-meto-
dológica de seu trabalho científico, ou seja, pelo marco teórico-metodológico
geral, com suas ideias preconcebidas, dispositivos discursivos e subentendidos
específicos, em cujo interior se inscreviam explicitamente suas atividades inte-
lectuais. Duas fases, pois, podem ser identificadas sinteticamente na trajetória
e na obra de Ortiz. A primeira, positivista e biologista, presidida pelas noções
deterministas de “herança” e de “raça”, cujos inspiradores tutelares foram Ce-
sare Lombroso, Enrico Ferri, Max Nordau e Quatrefages de Bréau. A segunda,
culturalista e atenta à agência exercida pelos grupos e pelos indivíduos na
elaboração de sua própria situação histórica, na qual a antropologia cultural
(principalmente funcionalista, no sentido dado a esse termo por Malinowski)
e a história cultural foram os marcos disciplinares privilegiados para a ins-
crição de seu trabalho. Cabe assinalar que esta divisão sintética se desvanece
um pouco quando um olhar investigador atento é aplicado ao conjunto de sua
obra: a presença de continuidades e de rupturas foi mais complexa e mais aci-
dentada do que sugere este esquema tão simplificadamente bipartite.
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Atravessando ambas as fases como foco supremo de sua curiosidade
científica, a natureza das práticas culturais das populações negras de Cuba
esteve sempre no centro de sua produção intelectual, quase desde o início.
Convencido de que naqueles espaços condenados à marginalidade pelos pre-
conceitos de classe e de raça, e pelos juízos científicos da época, existia um
sistema de valores (ou de contravalores) culturais sem os quais seria impossí-
vel entender o fenômeno da criminalidade e da “má vida” [mala vida] na nova
nação caribenha (e por extensão, a configuração cultural geral da nação cuba-
na), dedicou uma parte importante de seu trabalho de pesquisa a explorá-los
– mesmo na sua etapa mais ortodoxamente positivista. Esses trabalhos de sua
primeira existência intelectual – de seu primeiro “avatar” –, concebidos den-
tro de uma matriz teórico-conceitual cujos princípios derivavam do chamado
darwinismo social – com sua forte carga de racismo “científico” – e do posi-
tivismo finissecular, marcaram, no entanto, uma ruptura com as tendências
hegemônicas na cultura letrada do começo do século XX, pelo simples fato de
considerar digna de atenção minuciosa, dignas de estudo, as expressões cul-
turais da população de ascendência africana na ilha de Cuba. A relação com
o marco teórico oferecido pela criminologia lombrosiana foi, por outro lado,
mais complexa do que faria supor a utilização da carta enviada pelo cientista
italiano ao autor como prólogo a Hampa cubana: los negros brujos, onde não só
chamavam a atenção os elogios de Cesare Lombroso, como também indicavam
um futuro programa de pesquisa. A distância entre o enfoque particular que
Ortiz já começava a desenhar em 1905 a partir de seu objeto de estudo, e o
sistema teórico da criminologia lombrosiana ficou enfatizada pelo claro des-
cumprimento do programa proposto. O elogio de Lombroso identificava o ponto
de confluência entre ambas as perspectivas (a lombrosiana e a de Ortiz): “Creio
acertadíssimo seu conceito sobre o atavismo da bruxaria dos negros, mesmo
nos casos em que se observam fenômenos medianímicos, espiritistas e hip-
nóticos […]”; por outro lado, o programa indicado para uma futura pesquisa
ressalta a distância, o hiato, entre uma e outra: “Nada tenho a lhe sugerir a
respeito de seus futuros estudos de etnografia criminal, que não seja a aquisi-
ção de dados acerca das anomalias cranianas, fisionômicas e da sensibilidade
tátil em um determinado número de delinquentes e bruxos, e em um número
igual de negros normais” (Lombroso, 1973: 1). A busca de “atavismos”, entendi-
do este conceito, cada vez mais, em sentido cultural e não biológico, continuou
presente (até certo ponto, e de um modo cada vez mais diluído) na obra tardia
de Ortiz. O programa de pesquisa antropométrico sugerido por Lombroso brilha
por sua ausência. E mais: já no começo dos anos 1930 – se não antes – a an-
tropologia cultural havia deslocado por completo a antropologia física de seu
universo de referências científicas.
De qualquer forma, esses primeiros escritos das duas primeiras décadas
do século XX tematizaram a questão racial em termos de “tipos” psicológicos
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artigo | jorge myers
e étnicos “superiores” e “inferiores” – “tipos” que eram o produto da herança
biológica, entendida em termos claramente deterministas. Subordinaram a
consideração analítica dos fenômenos culturais a um forte determinismo ra-
cial, baseado em descobertas pretensamente científicas da época. Por exemplo,
ao ensaiar – em seu livro de 1906 – uma descrição do caráter específico da “má
vida” cubana, com a intenção de identificar seus elementos característicos
e que a distinguiam das sociabilidades criminais de outros povos e regiões,
postulou que:
Todos estes fatores peculiares da sociedade cubana são o que no poliedro da má
vida, destacam as arestas mais salientes. Porém, dentre todos eles, o fator étnico é
o fundamental; e não apenas produziu delinquentes especiais em cada raça, mas
também trazendo cada uma destas seus próprios vícios à má vida, foi se formando
um estrato comum a todas pela fusão de suas diversas psicologias, estrato que
constituía e que constitui a má vida (Ortiz, 1973: 19, grifos meus).
Em consonância com esta mesma perspectiva racista, considerou que
nos estratos “psicologicamente inferiores” da sociedade cubana, a fusão bioló-
gica entre brancos e negros tendia a produzir formas inferiores – consequência
necessária do aporte da “raça negra”: “Tais elementos negativos precipitavam,
como resultado de enérgica e constante reação social, formando o estrato in-
ferior de sua raça, sedimento diferenciado pela ignorância e pelo egoísmo im-
pulsivo, ou seja, pelo primitivismo psíquico. Será necessário agora recordar o
mesmo primitivismo psíquico da raça negra?” (Ortiz, 1973: 19). E mais adiante
arrematava assim seu argumento:
Porém, os elementos brancos da má vida cubana não bastam para diferenciá-la
grandemente dos que se observam nos demais países povoados pela mesma raça,
e seu fruto mais desenvolvido, o bandoleirismo, que sem solução de continuidade
remonta aos aventureiros da Conquista, pode achar-se do outro lado do Atlântico
com caracteres parecidos. […] A raça negra é a que sob muitos aspectos conseguiu
marcar mais caracteristicamente a má vida cubana comunicando-lhe suas superstições,
suas organizações, suas linguagens, suas danças etc., e são seus filhos legítimos a
bruxaria e o ñañiguismo, que tanto significam na delinquência de Cuba (Ortiz, 1973:
19, grifos meus e do autor).
Com expressão mais contundente ainda, descrevia no mesmo livro a
inferioridade “natural” da raça negra: “Porém a inferioridade do negro, a que
o prendia ao mal viver, era devida à falta de civilização integral, pois tão pri-
mitiva era sua moralidade quanto sua intelectualidade, quanto suas volições
etc. Este caráter é o que mais o diferencia dos indivíduos da má vida das so-
ciedades formadas exclusivamente por brancos” (Ortiz, 1973: 21). A situação
dos negros era deficiente desde todo o ponto de vista, concluía Ortiz em 1906:
Suas relações sexuais e familiares, sua religião, sua política, suas normas morais,
enfim, eram tão deficientes, que ficariam no conceito dos brancos por debaixo
dos mesmos indivíduos da má vida destes […]. Em seus amores eram os negros
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extremamente lascivos, seus casamentos chegavam até à poligamia, a prostitui-
ção não merecia sua repugnância, suas famílias careciam de coesão, sua religião
os levava aos sacrifícios humanos, à violação das sepulturas, à antropofagia e às
mais brutais superstições; a vida do ser humano lhes inspirava pouco respeito, e
pouco era também o respeito deles à propriedade alheia etc.… Para aumentar a
separação estavam a linguagem, o vestir, a escravidão, a música etc. O desnível
moral era agravado pelo intelectual (Ortiz, 1973: 20).
A consequência dessa desigualdade hereditária, racialmente determi-
nada, foi que: “Em Cuba toda uma raça entrou na má vida” (Ortiz, 1973: 20). A
transição dessa vinculação inicial ao “racismo científico” para posições con-
tundentemente antirracistas se deu de um modo complexo e até certo ponto
tortuoso desde começos da década de 1910. Enquanto em certos textos, como
aqueles dedicados a polemizar com as posições teóricas e historiográficas do
“neoimperialismo” espanhol, chegou a sustentar que se devia falar de “civiliza-
ções” e não de “raças” (afirmação dirigida especificamente contra a promoção,
pela Espanha, da celebração do dia 12 de outubro na América Hispânica como
o “Dia de la raza” [“Dia da raça”]), em outros continuou utilizando o instrumen-
tal teórico-metodológico do biologismo positivista, embora com reticências e
qualificações cada vez maiores. Do mesmo modo, se seu livro sobre “os negros
bruxos” de 1905/1906, apesar de estar enquadrado dentro dos parâmetros do
racismo “científico” da época, havia apresentado à comunidade científica o
melhor estudo realizado até aquela data sobre as crenças e práticas religiosas
de origem africana em Cuba. Em 1916 o segundo tomo desse estudo, Hampa
afrocubana: los negros esclavos, realizou um estudo amplamente documentado
sobre o comércio de escravos entre África e Cuba e sobre as condições sub-
-humanas próprias da instituição escravista na ilha. Se certos preconceitos
acerca da inferioridade racial da população negra seguiram presentes ao longo
de suas páginas, o centro de seu argumento já começava a se deslocar para os
condicionantes sociais, econômicos e culturais que haviam colocado a popula-
ção afro-cubana em situação de desigualdade frente aos brancos. A história e
a cultura, silenciosamente, começavam a substituir o determinismo biológico.
Pouco a pouco, durante o transcurso da década de 1920, o conceito de “cultura”
– utilizado inicialmente em referência a seus estudos dedicados ao folclore de
Cuba – foi substituindo o de “raça” como dispositivo teórico decisivo dentro de
seu aparato intelectual.
Nesse período de transição de sua obra entre paradigmas científicos
diferentes e até certo ponto opostos, aparece plenamente tematizada a ques-
tão de uma rede de intercâmbios culturais que atravessavam o Atlântico: rede
densa que nos portos de ambos os lados do oceano produziam intensos con-
tatos entre as populações e as culturas dos três continentes comunicados por
essa extensão aquática. Em Hampa afrocubana, publicado dez anos depois do
livro que havia merecido os elogios de Lombroso e de Ferri, o vínculo entre
África e América (e entre os escravos africanos e seus senhores europeus) foi
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artigo | jorge myers
situado no centro do estudo. Já no segundo capítulo, depois de apresentar de-
talhadas estatísticas demográficas, tomadas dos principais censos da época
colonial (a série com dados completos se estendia desde 1768 até 1907), tentou
estabelecer, também a partir dessa base, não apenas a proporção demográfica
historicamente desenvolvida entre as diferentes “raças” e suas mesclas em
Cuba, mas também registrar minuciosamente as etnias ou nações de origem
dos africanos chegados à ilha. Este último esforço era praticamente inédito
naquela época nos estudos dedicados à história da escravidão africana, já que
o próprio conhecimento da África por parte dos europeus era imperfeito (em
1916 em muitas zonas formalmente anexadas a metrópoles europeias e gover-
nadas desde estas, o processo de exploração concreta seguia em curso): Ortiz
buscou não apenas apresentar a seus leitores uma longa lista dos diferentes
apelativos étnicos que figuravam na documentação cubana, como também
identificar com certa precisão o lugar de origem no “continente negro”. Uma
pequena seleção tomada de sua longa lista indica etnias como os Abayá da
nação Ibó, os Achanti ou Ashanté, os Angola, os Apapá de língua haussa, os
Bambará, os Benín, os Bondó, os Congo, os Dahome (ou Dajomé), os Epa (sugere
que seja corruptela de Akpá ou Apá), os Fanti de Guiné, os Fula ou Mandingas,
os Iolof, os Lucumí, os Matumba, Mayombe, Mobangue, os Quisiama, os Zape.
Esta é uma seleção muito pequena da lista completa oferecida por Ortiz de
nomes de povos/etnias/nações que figuravam na documentação cubana. Em
relação a cada nome, Ortiz buscou distinguir nomenclaturas baseadas no lugar
ou cidade de origem (Cabinda, Luanda, Mombasa etc.) daqueles que provinham
dos nomes africanos originais para designar povos ou nações, e, em ambos os
casos, tentou, com paciência e tenacidade de filólogo, se desvencilhar dos er-
ros de pronúncia e de grafia ocorridos no registro documental realizado pelos
letrados espanhóis, recuperando o sentido original e autêntico desses nomes.
Ao esforço por elaborar um mapa mais completo do continente de origem dos
escravos, Ortiz acrescentou – nos capítulos VII, VIII e IX de seu livro, funda-
mentais como antecedente de sua teorização da transculturação e precursores
dos estudos que agora mesmo se estão escrevendo sobre o comércio escravista
ou sobre o navio negreiro – um estudo detalhado (algo difícil de obter nas con-
dições arquivísticas da época) do tráfico de escravos: desse tráfico que atraves-
sava o Atlântico com sua carga humana. Com base nos relatos de testemunhas
presenciais, analisou as distintas fases do tráfico, desde a captura até a venda
em Cuba, passando pelas caravanas de escravos desde o interior africano às
feitorias da costa, a vida nas próprias feitorias, as condições nos navios que
transportavam esses cativos para o Novo Mundo, o desembarque, registro e
venda. Se o registro documental cotejado por Ortiz foi um pouco conturbado,
desprovido da maior sistematicidade que hoje pode alcançar o historiador gra-
ças à maior disponibilidade de fontes (e à sua melhor organização), se pecou
até certo ponto pelo impressionismo próprio do ensaio, tentou ser, entretanto,
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o mais amplo possível e – ainda hoje em dia quando as fronteiras linguísti-
cas, às vezes, definem o limite estreito da monografia acadêmica – segue por
isso parecendo impressionante o esforço por incorporar registros de todas as
nações europeias implicadas no tráfico de escravos. No restante do livro tra-
çou um panorama das condições diferenciadas da escravidão rural e urbana,
dedicando capítulos específicos para estudar os castigos e as doenças típicas
de que padeceram os escravos; estudou a resistência dos escravos e suas rebe-
liões; e apresentou finalmente um esboço de análise da condição jurídica dos
mesmos. Ainda que o registro geral da análise – mesmo quando a denúncia da
instituição escravista se perfilava em termos inapelavelmente contundentes
– continuasse sendo aquele que na época oferecia o “racismo científico”, nada
próximo à noção de transculturação, nem por isso deixou de ser este livro um
importante marco no caminho da formulação dessa ferramenta conceitual. Por
um lado, deslocou quase sub-repticiamente o aspecto causal de sua análise da
herança racial para as condições socioeconômicas próprias do regime escravis-
ta: se o negro em Cuba, se o afro-cubano, mostrava – segundo acreditava então
Ortiz, em sintonia com o sentido comum da década de 1910 – uma propensão
inevitável para o crime e a vida dissoluta, isso era consequência não tanto de
alguma deficiência em sua herança racial, mas do modo cruel e mutilador com
que havia sido plasmada sua personalidade, sua herança cultural, através do
acontecimento escravista. Após uma passagem em que discutia os efeitos da
escravidão sobre a vida sexual dos africanos transplantados a Cuba, citava o
ilustrado José de la Luz Caballero: “O mais negro da escravidão não é o negro”
(Ortiz, 1996: 185). Mais adiante, depois de descrever o costume de arrenda-
mento do serviço do escravo a terceiros no entorno urbano, concluía de modo
similar: “O leitor pode considerar os desastrosos resultados morais que na raça
negra havia de produzir uma condição social tão abjeta, ainda mais quando se
tem em conta o predomínio da população de cor sobre aquela livre […]” (Ortiz,
1996: 192).
Outro marco no caminho para uma teoria da transculturação e uma
história cultural explicada a partir dela foi o breve ensaio que publicou em
1933, imediatamente depois de seu regresso do exílio em Washington, D.C.: La
clave xilofónica de la música cubana. Ao longo da década de 1920, Ortiz ia mos-
trando, em suas resenhas e comentários de livros cubanos e do exterior, uma
progressiva e cada vez mais radical reorientação teórica em seus estudos da
cultura cubana e mais especificamente da afro-cubana – reorientação que teve
uma primeira exteriorização no impulso que buscou dar ao estudo científico
do folclore. Entretanto, após seu retorno a Cuba, em 1933, a questão da con-
tribuição afro-cubana à cultura da ilha se tornou central. Cabe salientar que o
enfoque nesse livro – um dos primeiros a explorar a história da música cubana
– colocou a questão da existência de uma trama cultural atlântica no centro de
seu olhar. A clave xilofônica cubana teria nascido da confluência de distintas
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artigo | jorge myers
culturas musicais cujo encontro se produziu pelo mar e pelo caldeirão ofereci-
do pelos portos de seu litoral: e, sobretudo, nesse caldeirão tão importante que
soube ser Havana. A reprodução fiel do argumento complexo de Ortiz neste
ponto requer uma citação extensa:
Permitam-nos apontar uma hipótese para explicar a origem da clave cubana, como
nascida em Havana, pelos séculos em que esta foi a chave das Índias, ou a clave,
poderíamos dizer, jogando com vocábulos14, de toda a estrutura do comércio colo-
nial das Espanhas. O cais de Havana foi por aqueles séculos (XVI ao XVIII) centro
de toda a atividade da urbe, razão de suas fortalezas e guarnições, e da vinda
anual e por meses inteiros das frotas carregadas nas férteis Índias. E nas ribeiras
da baía acharam diversões ruidosas e abundantes de vícios, não só os escravos do
arsenal e os soldados de La Fuerza, e depois a dos três castelos e dos demais que
foram construídos, como também a chusma numerosíssima das galés da frota e
daqueles marinheiros que sem estar submissos à servidão faziam a vida do mar;
todos eles chegavam a Havana oprimidos pelas longas travessias a vela e aqui
davam vazão a suas alegrias de “marinheiros em terra”. Havana foi durante sécu-
los a Sevilha da América e, como esta, pode merecer o título de Babilonia e Finibus
Terrae da picardia. Havana, capital marinha das Américas e Sevilha, que a foi dos
povos da Ibéria, trocaram anos após anos por três séculos suas naves, suas gentes,
suas riquezas e seus costumes, e com elas seus pícaros e suas picardias e todos
os prazeres de suas almas regozijadas, dadas ao gozo de viver a beleza terrena e
humana que lhes coube por sorte. Todo navegante que cruzou os mares de Colom-
bo e todo sanguinário que remou nas galeras deve ter se banhado nesta enseada
de São Cristóvão de Havana, esperado aqui com sua embarcação o resto da frota
abarrotada, refugiado-se em seu porto contra os furacões antes de passar à fatídi-
ca Bermuda, que tanto impressionava os marinheiros, Shakespeare e Cervantes, e
baixado terra por dias, semanas e meses, para desentorpecer o espírito e espantá-
-lo das nostalgias que corroíam seu ânimo […]. Porém, outros povos derramaram
suas paixões, gozos e artes, os do calor das selvas equatoriais, nos formigueiros
de Sevilha e de Havana. Para uma e outra margem branca do Atlântico se tiraram
das entranhas da África, também durante séculos, caudalosas torrentes de força
muscular e de impetuosidade espiritual, que foram dando aqui e lá mais ardor
aos ânimos e amargura às carnes. Havana foi, como sempre tem sido todo porto
marítimo muito frequentado, famosa por suas diversões e libertinagens, na qual
em suas longas estadas a gente do mar e arrivistas da frota se juntavam com os
escravos desordeiros e as mujeres del rumbo15, nas tabernas das negras mondongue-
ras16, nas casas de jogos postas por generais e almirantes para a trapaça, e nas
paragens, ainda menos santas, pelas choças e casas de barro, dentro e fora das
muralhas, pelo Manglar, os Sitios e Carraguao. Nessas confortabilíssimas estadas
em Havana foram parte principal dos deleites com as negras e mulatas de rumbo
a aguardente de cana, o tabaco de Havana, as rodadas de apostas de cartas e os
bailes e canções de três mundos, ao som da música mais sensual, excitante e livre
que as paixões desenfreadas conseguiam arrancar da entranha humana. Cantos,
bailes e músicas foram e vieram de Andaluzia, da América e da África, e Havana
foi o centro onde se fundiam todas com maior cor e mais espectros policrômicos
(Ortiz, 1984: 73-75).
O porto e o mar – Atlântico mais que Caribe – foram o leito em cujo
interior se operavam as fusões culturais, as transformações em usos e formas
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que seis anos mais tarde Ortiz batizaria com o nome de “transculturações”. E
nesta longa passagem, como se pode apreciar, é evidente que o marco geográ-
fico da história cultural que propunha Ortiz, mesmo quando seu foco fosse
Cuba ou mesmo só Havana, era o Atlântico inteiro: a sua história cultural foi
atlântica muito avant la lettre. A conclusão de Ortiz neste estudo, tendo in-
vocado testemunhos de Quevedo, Cervantes e Federico García Lorca em seu
apoio, foi que a clave cubana nasceu de uma fusão, de uma mescla radical e
refundição a partir dos elementos mesclados: os palitos sonoros trazidos em
sua espartana bagagem cultural pelos negros escravos vindos da África e as
tejoletas17 da música popular andaluza, trazidas pelos marinheiros que proce-
diam dessa região.18
O racismo de sua primeira formação era difícil de ser abandonado total-
mente: nesse mesmo texto, no qual já se enfatizava a capacidade musical da
população afro-cubana, inscrita num registro cultural muito rico, apareciam
algumas ilustrações do músico negro de traços físicos exagerados e evidente-
mente pejorativos, e muitas obras de antropologia física ou de arqueologia de
orientação racista seguiam aparecendo nas notas de pé de página. A ênfase e
o espírito de sua escrita já eram, contudo, outros em 1933. Durante a década
de 1920, Ortiz informava em seu prolífico labor de resenhista nas revistas diri-
gidas por ele – como a Revista Bimestre Cubana – e em muitas outras do mundo
editorial cubano – Carteles, Bohemia, Social ou Diario de la Marina – de suas lei-
turas extensas e meticulosas, voltadas para uma crescente recepção da antro-
pologia cultural, da nova produção intelectual do “renascimento do Harlem”, e
em geral do novo discurso crítico dos racismos, tanto do “científico” quanto do
mais prosaico e vulgar. Franz Boas, para Ortiz (como para Gilberto Freyre ape-
nas alguns anos antes), foi uma leitura decisiva, mas não foi a única: Ildefonso
Pereda Valdés (o estudioso uruguaio da cultura africana na América Latina),
Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Mário de Andrade, Oneyda Alvarenga, Francisco
Curt Lange, Jean Price Mars, Oswaldo Orico, Joaquim Ribeiro, Blaise Cendrars
e muitos outros autores integram o registro de suas leituras científicas entre
1920 e 1950. Para dar uma ideia deste aspecto da evolução do pensamento de
Ortiz, reproduzimos in extenso a seguinte resenha de uma obra do narrador
francês Paul Morand, Magie noire (1930):
Eis aqui um livro produto de um francês que observou o negro, que sai junto com
outro livro de A. Gide. Fora a nacionalidade dos autores e o assunto por eles trata-
do, o vínculo se rompe bruscamente. Andrés Gide escreve nas primeiras páginas
de seu notável Viagens pelo Congo: “Quanto menos inteligente é o homem branco,
mais estúpido julga o negro”. É de se lamentar que P. Morand não tivesse esta
simples declaração sobre sua mesa quando escreveu Magia negra.
Para Morand, não obstante sua ostentação de ter viajado trinta mil milhas
percorrendo vinte e oito países negros (países nos quais vivem negros), teria sido
mais proveitoso ter empregado todo o seu tempo e energia antes de começar a
escrever, observando um negro e aprendendo quais são realmente os pensamen-
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tos e as reações desse negro. Morand estudou muito superficialmente as camadas
mais extensas da mentalidade negra; o resultado foi uma divertida e, às vezes,
bem escrita série de esboços de como Morand crê que ele teria reagido se tivesse
sido negro. O grau inferior da crítica literária prevalente (sic) nos Estados Unidos,
foi expresso pelas revistas que aplaudiram o “admirável destaque” e o “frio realis-
mo objetivo” de Morand, e as declarações de que a obra de Morand é “a primeira
verdadeira descrição de nossos negros”.
Em que consiste esta descrição? Oito curtas narrações […]. A tese de todas
é que os negros, qualquer que seja sua educação, meio ambiente, posição econô-
mica, desenvolvimento mental, caráter ou mistura de sangue branco, mostram sua
primitiva selvageria assim que se raspa sua cultura superficial. […]
Os desenhos por Aaron Douglas, constituíram soberbos acréscimos ao li-
vro. O trabalho desse jovem negro, que chamou consideravelmente a atenção em
“God’s Trombones”, de James Wheldon (sic) Johnson, está amadurecendo com tal
delicadeza e serenidade, que merece ser considerado um dos mais distinguidos
artistas norte-americanos.
Nota-se mais a superficialidade de Morand depois de se terem lido meia
dúzia de páginas da lúcida prosa de Gide. Viagens pelo Congo é uma anotação diária
de paisagens, cheiros, sons e reações durante uma viagem por parte da África pou-
co conhecida dos brancos. Gide não é apenas um profundo escritor de admirável
prosa, mas também, ao mesmo tempo, um observador de aguda percepção, que
escreve sobre o que vê e ouve, e não o que noções preconcebidas pudessem fazê-lo
crer que vê ou ouve. Mesmo tendo Gide feito sua viagem com caráter semioficial,
não parece que esta circunstância lhe tenha impedido de criticar rudemente as
Companhias francesas e seus agentes que iniquamente exploram os nativos da-
quelas colônias francesas. Em certo lugar, ao ver os grandes campos de manioca
(sic) e ricino sem ceifar, nos explica a razão: é que “todos os homens estão colhen-
do o látex, ou na prisão, ou mortos ou feridos” (Ortiz, 1930: 151-153).
Após uma concentração quase exclusiva na pesquisa etnográfica de to-
dos os aspectos da cultura africana presentes em Cuba – pesquisa que contou
desde cedo com o apoio de uma crescente equipe de discípulos, como, dentre
outros, Lydia Cabrera (desde os anos 1930) e, depois do período que aqui abor-
damos, Argeliers León (a partir de meados da década de 1950) – Ortiz formulou
sua teoria da transculturação (1939/1940), passando a explorar o seu alcance
com base em estudos de instâncias concretas de “transculturação”, centrados
basicamente nos dois cultivos emblemáticos de Cuba no mundo, o açúcar e o
tabaco, e na produção artística mais associada (também) com Cuba na imagi-
nação mundial, a música. Ao mesmo tempo, lançava uma embasada crítica à
noção mesma de raça. Em seu livro El engaño de las razas, de 1945, rechaçou
contundentemente a definição somática de “raças” humanas, com base no du-
plo argumento de que: a) as variações físicas do rosto, do corpo e da pigmenta-
ção da pele nos seres humanos são quase infinitas, sendo assim contraditório
postular um “tipo ideal” que se supusesse empiricamente demonstrável a par-
tir dessas variações; e b) os comportamentos humanos, os traços psicológicos
discerníveis em indivíduos ou em grupos, derivavam mais da transmissão de
práticas, valores, crenças de natureza cultural, que de qualquer herança gené-
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tica que se pudesse postular. Este afastamento de seu desenvolvimento ideo-
lógico foi a culminância natural de todo o seu trabalho crítico da antropologia
física e dos discursos racistas elaborado entre os anos 1920 e o fim da Segunda
Guerra Mundial, mas esteve animado também pela paixão que lhe infundiu
o horror diante do Holocausto judeu perpetrado pelo Nacional Socialismo na
Alemanha e nos países conquistados por ela. Neste posicionamento concor-
dou com a política oficial da Unesco, que naqueles anos propiciaria toda uma
gama de estudos dedicados a combater cientificamente os resíduos do racismo
herdados do mundo pré-bélico (Michel Leiris no Caribe francês, Roger Bastide
e Florestan Fernandes em São Paulo e tantos outros estudos que poderiam
ser citados em relação às consequências concretas e de longa duração desta
política oficial das Nações Unidas). Mais ainda, sua preferência pelo campo so-
viético nesses mesmos anos pareceu motivada em grande medida pela percep-
ção – compartilhada por destacados intelectuais afro-norte-americanos, como
Paul Robeson ou W. E. B. DuBois – de que ali o racismo havia sido superado,
enquanto nos Estados Unidos seguiam manifestando uma força institucional
tão poderosa quanto antes.
à GUISA DE CONCLUSÃO
Após formulada sua teoria, Ortiz empregou esse marco teórico para realizar em
sua obra mais conhecida, Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar, um estudo
da história cultural desses dois cultivos fundamentais na história econômica
da ilha de Cuba. Pesquisa modelar, Ortiz não deixou de pesquisar praticamente
nenhum aspecto da produção física original (agrícola), da elaboração fabril, ou
dos usos e das significações e ressignificações culturais recebidas em Cuba e
no mundo pelo tabaco e pelo açúcar que adoçava o chá e o café, e que – magia
da fermentação – ressurgia transfigurado na aguardente cubana por excelência,
o rum. Na trilogia dedicada à etnografia histórica da música cubana publicada
nos anos 1950, aplicou o mesmo aparato teórico à música popular produzida
em Cuba desde a época colonial em diante: sua conclusão foi a de que esta era
o produto de uma fusão entre música europeia e africana, ou transculturação
desta última por seu contato forçado com a primeira. Entender a história cul-
tural dessa música exigia – pelos próprios imperativos empíricos da pesquisa – a
adoção de uma perspectiva atlântica: mesmo sabendo quão difícil podia resul-
tar, quão provavelmente incompleta permaneceria qualquer indagação desta
natureza, o pesquisador devia, estava obrigado a pesquisar simultaneamente
a história cultural da África, da Europa (ou ao menos, no caso específico de
Cuba, dos dois países ibéricos), e do caldeirão geográfico que foi a América, se
pretendia lançar alguma luz nova sobre a matéria. Repetidamente apareceria
enfatizado nos três tomos desta obra tardia de Ortiz, repetidamente já nas pá-
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ginas do primeiro tomo, La africanía de la música folklórica cubana, o papel dos
portos e do mar. Não se podia compreender a história da música cubana se não
se conhecesse também a história da música de raiz africana em toda a Améri-
ca: no Haiti, na Venezuela, em portos como o de New Orleans no Sul dos Esta-
dos Unidos, no México, no Brasil; tampouco se não se conhecesse a história da
herança musical islâmica e judia na Espanha e no Portugal do Renascimento,
se não se tivesse alguma noção da presença africana na própria Ibéria desde
muito tempo antes da expansão ultramarina. Realizar uma história cultural
precisa, cientificamente válida, da música popular de um só país, Cuba, exigia
um trabalho histórico que tomasse também os três continentes que costeiam
o extenso oceano Atlântico como espaço contextual necessário para sua pes-
quisa. Às dúvidas e críticas que a nova “Atlantic History” levantou o projeto
intelectual de Ortiz pode oferecer uma via possível de resposta. O Atlânti-
co estudado por Ortiz não era uma massa amorfa de águas, portos e gentes,
vinculados pela seleção arbitrária efetuada pelo historiador: era um Atlântico
concebido desde um ponto específico no mapa, Cuba, e era desde essa pers-
pectiva única, privilegiada com sistematicidade pelo historiador cultural, que
as interconexões precisas e empiricamente verificáveis que davam forma a
um sistema atlântico emergiam. As leis da perspectiva clássica conduzem, isso
era uma certeza para Ortiz, tanto o historiador como o pintor paisagista de-
dicado a produzir uma arte não abstrata nem afastada do mimético: definir
o ponto de olhar com clareza levava a definir com igual clareza o panorama
mais amplo – neste caso, o Atlântico como espaço e como objeto da história
cultural – que se desejava retratar e analisar. Concordamos neste ponto com
uma observação feita por Rafael Rojas (2005) acerca da obra de Ortiz: esteve
habitada sempre por um intenso nacionalismo cubano, mas esse nacionalismo –
matiz que Rojas não apontou – era entendido por Ortiz como necessariamente
cosmopolita. Na interseção da perspectiva solidamente cravada no solo único
da nação, da pátria pequena, e a outra perspectiva mais vasta do mundo outro,
produtor de “cosmopolia” (perdão pelo neologismo), reside a possibilidade de
uma história atlântica que seja ao mesmo tempo ampla e capaz de abarcar ple-
namente a multiplicidade contida em seu objeto e precisamente delineada em
seus contornos e em seu espaço interior. A história atlântica pode ser múltipla
e concreta ao mesmo tempo: esta é a lição de Fernando Ortiz.
Recebido em 11/12/2014 | Aprovado em 06/07/2015
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Jorge Myers é professor titular e pesquisador no Programa de História
Intelectual da Universidad Nacional de Quilmes, pesquisador do CONICET e
foi editor da revista Prismas. Formado pela Universidade de Cambridge e pela
Universidade de Stanford, é especialista em história intelectual e cultural da
Argentina e da América Latina nos séculos XIX e XX. Publicou, entre outros,
Orden y virtud: el discurso republicano del régimen rosista (1995). É editor de
Historia de los intelectuales en América Latina. Volumen I. La ciudad letrada, de la
conquista al modernismo (2008).
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artigo | jorge myers
NOTAS
1 Acrescento esta crítica (construtiva) às cinco enumeradas
por Jack P. Greene e Philip D. Morgan na “Introduction” à
sua recente compilação de ensaios acerca do estado da
questão, uma contribuição importante para uma área de
estudos que em pouquíssimos anos passou de certa margi-
nalidade (nos anos 1980, falar de uma perspectiva “atlânti-
ca” incluía quase nenhuma bibliografía para além daquela
de Jacques Godechot) a uma espécie de “boom” editorial,
que inclui nomes tão prestigiosos quanto os de Bernard
Bailyn (2005) ou os de Greene & Morgan (2009: 5-7).
2 Sobre a obra de Ortiz, consultar a seguinte bibliografia
secundária: Arévalos, 1999; Arroyo, 2003; Díaz-Quiñones,
2006; Di Leo, 2001; Ferrer, 1998; Font & Quiroz, 2005; Gon-
zález, 1996; Hernandéz, 2011; Izquierdo, 2004 e Le Riverend,
1973.
3 Trata-se de um neologismo grosseiro que quer dizer algo
como “governo de merda”.
4 Refere-se ao dialeto da língua catalã falado na ilha de Me-
norca, onde Ortiz cursou seus estudos primários. [N.E.]
5 Dentre estes livros, alguns dos mais importantes foram:
Hampa Afrocubana. Los negros brujos (Apuntes para un estu-
dio de etnografía), Madrid, 1906; La reconquista de América.
Reflexiones sobre el panhispanismo, Paris, Ollendorf, 1911;
Historia de Santiago de Cuba (compuesta y redactada a la vista
de los manuscritos de José M. Callejas, inéditos y originales de
1823 y precedida de un prólogo), Havana, 1912; La identifica-
ción dactiloscópica (Ensayo de policiología y derecho público),
Madrid, Daniel Jorro Editor, 1916; Entre cubanos (Rasgos de
psicología criolla), Paris, Ollendorf, 1914; La filosofía penal de
los espiritistas (Estudio jurídico), Havana, 1915; Hampa afrocu-
bana. Los negros esclavos, Havana, 1916; La crisis cubana. Sus
causas y sus remedios, Havana, 1919; Los cabildos afrocubanos,
Havana, 1921; Historia de la arqueología indocubana, Hava-
na, 1922, Catauro de cubanismos, Havana, 1922; Glosario de
afronegrismos, Havana, 1922; En la tribuna, Havana, Impren-
ta el Siglo XX, 1923 (uma compilação de seus discursos
parlamentares e políticos, com prólogo do intelectual “mi-
norista” e futuro comunista Rubén Martínez Villena); Los
negros curros. Ni racismos ni xenofobias, Havana, 1929; José
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Antonio Saco y sus ideas cubanas, Havana, 1929; El cocorícamo
y otros conceptos teoplásmicos del folklore afrocubano, Havana,
1930; La clave xilofónica de la música cubana, Havana, 1933;
Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar, 1940; El engaño
de las razas, Havana, Editorial Páginas, 1945; El Huracán. Su
mitología y sus símbolos, México, Fondo de Cultura Econó-
mica, 1947; Fray Bartolomé de las Casas, Havana, 1949; La
sinrazón de los racismos, Havana, 1950; Las visiones del mula-
to Lam (sobre a obra do pintor Wifredo Lam), Havana, 1950;
La africanía de la música cubana, Havana, 1950; Los bailes y el
teatro de los negros en el folklore de Cuba, Havana, 1951; Los
instrumentos de la música afrocubana (obra monumental, em
cinco grandes tomos), Havana, 1952; Historia de una pelea
cubana contra los demonios, Havana, 1959.
6 A primeira edição do livro, publicada em 1940, esteve a car-
go da editora de Jesús Montero em Havana e continha um
prólogo, uma introdução e um ensaio, que era acompanhado
de um conjunto de 25 capítulos, denominados “capítulos
adicionais” a partir da segunda edição revista e ampliada
pelo próprio autor. Durante o ensaio inicial Ortiz introduz
entre parênteses os números dos capítulos que desenvol-
viam as ideias apresentadas ali de maneira esquemática.
7 Ajiaco é o nome dado a um tipo de sopa ou guisado carac-
terístico de vários países da América Hispânica, preparado
com diversos legumes, tubérculos e carnes picadas, como
se verá na descrição do próprio Ortiz adiante. [N.T.]
8 O ají é um tipo de pimenta muito usada nas Américas e
também o molho feito com essa pimenta. [N.T.]
9 Xao-xao é uma torta feita com casabe (tapioca) confeccio-
nada pelos índios desde o século XVI. [N.T.]
10 Referência ao mexicano José Vasconcelos, autor do ensaio
La raza cósmica (1925). [N.T.]
11 Dentre seus 28 “clássicos” reeditados merecem ser desta-
cados, nos anos 1920 e 1930, a publicação em três tomos
da Historia de la isla de Cuba, de Pedro J. Guiteras (obra do
século XIX), acompanhada de uma biografia do historia-
dor redigida pelo próprio Ortiz; Contra la anexión, em dois
tomos, do liberal do século XIX José María Saco (também
com uma biografia por Ortiz), mais as duas Historias de la
esclavitud (dos índios e dos negros africanos) escritas pelo
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mesmo autor; os Artículos de costumbres, de Luis Victoriano
Betancourt; as Poesías e o Ideario de José Martí, em tomos
próprios (o primeiro com um importante prólogo de Juan
Marinello), mais o Epistolario do poeta-patriota; os Escritos
(em dois tomos) do liberal Domingo del Monte; em tomos
separados, as poesias de Julián del Casal e de Plácido (o
poeta afrocubano da época romântica); ou a tradução do
livro de M. R. Harrington, Cuba antes de Colón, que apareceu
acompanhada pela primeira edição da Historia de la arque-
ología indocubana, de Ortiz.
12 Doce típico de muitos países das Américas, feito normal-
mente com coco, água e açúcar mascavo ou melado da
cana, mel e canela. [N.T.]
13 Náñigo faz referência aos membros de uma sociedade se-
creta masculina (Abakuá) cubana que remonta ao século
XIX. [N.T.]
14 Há aqui um jogo com a palavra “clave” que, para além de
seu sentido musical, pode também significar “chave” [lla-
ve]. [N.T.]
15 Mulheres normalmente de classes sociais baixas e costu-
mes morais libertinos. [N.T.]
16 Mulheres negras que animavam os bailes nas tabernas e
que durante a estada dos navios ofereciam bebida, dança
e cama aos marinheiros. [N.T.]
17 Tejoleta é um tipo de castanhola feita de telhas de barro.
[N.T.]
18 Ao final de seu ensaio invocaria também referências de
Lafcadio Hearn, Alejo Carpentier (1946), Emilio Ballagas
(1946), e Raúl Valdés Plana, e cotejaria a musicalidade da
clave cubana com as marimbas empregadas por Saint-
-Säens em sua Danse macabre.
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Palavras-chave
Fernando Ortiz;
Transculturação;
História atlântica;
História cultural;
Cuba.
Keywords
Fernando Ortiz;
Transculturation;
Atlantic history;
Cultural history;
Cuba.
UMA “ATLANTIC HISTORY” avant la lettre.
TRANSCULTURAÇÕES ATLÂNTICAS E CARIBENHAS
EM FERNANDO ORTIZ
Resumo
Este artigo aborda a produção científica do intelectual
e cientista social cubano Fernando Ortiz em sua faceta
de historiador. Considerando a proposta historiográfica
recente de uma “Atlantic History”, ou “história atlântica”,
o trabalho examina como, décadas antes disso, Ortiz
havia sido pioneiro de uma história cultural que tomava
o espaço geográfico e social do mundo Atlântico como
marco necessário para a interpretação do passado cubano
e hispano-americano. O trabalho esboça a trajetória
geral do autor tomando por base sua obra tardia. A
teoria da transculturação proposta por ele nega tanto o
determinismo racial como a definição somática de raça.
Tal teoria é central para a maneira como Ortiz examina a
contribuição africana para a cultura cubana – e, de modo
geral, para a cultura de todo o litoral ocidental do oceano
Atlântico – no contexto de sua busca de uma história
cultural latino-americanista construída à luz das ciência
sociais.
AN “ATLANTIC HISTORY” avant la lettre.
ATLANTIC AND CARIBBEAN TRANSCULTURATIONS
IN FERNANDO ORTIZ
Abstract
This article concerns the scientific writings of the Cuban
intellectual and social scientist Fernando Ortiz, in what
pertains to his facet as a historian. Considering the recent
historiographical proposal for an ‘Atlantic History’, the
article examines how, decades before, Ortiz had pioneered
a cultural history that set the interpretation of the Cuban
and Hispano-American past against the backdrop of the
geographical and social space of the Atlantic world. The
article outlines Ortiz’s career, focusing on his later work.
The theory of transculturation proposed by the author
denies both racial determinism and the somatic definition
of race. This theory is central to the way Ortiz examines
the African contribution to Cuban culture, and, more
generally, to the culture of the western Atlantic seaboard
in the context of his search for a Latin-Americanist
cultural history anchored in the social sciences.
Lucia Lippi OliveiraI
I Fundação Getúlio Vargas, Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil
(FGV-RJ/CPDOC), Brasil
MANUEL BONFIM: AUTOR ESQUECIDO OU FORA DO TEMPO?
Parto da concepção de que analisar a recepção da obra de um autor envolve
circunscrevê-la no tempo e no espaço. É o que vou tentar fazer aqui a propósito
de Manuel José do Bonfim tomando principalmente sua obra América Latina:
males de origem, publicada em 1905. Quero acompanhar como Manuel Bonfim
tem sido lido desde que lançou seu primeiro livro e procurar entender como
seu esquecimento tem sido interpretado.1
Manuel Bonfim nasceu em Sergipe em 1868 e morreu no Rio de Janeiro
em 1932. Filho de um bem-sucedido comerciante de Aracaju, seu universo não
era aquele da casa-grande açucareira como foi comum a outros intelectuais
e literatos pertencentes à elite nordestina. Vai estudar medicina em Salvador
e se muda em 1888 para o Rio, onde se forma pela Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro. Na capital da República atuou como jornalista, professor
e diretor do Instituto de Educação, além de ocupar outros cargos no campo
da educação; foi também deputado federal por Sergipe. Em 1902, vai estudar
psicologia experimental em Paris, onde fica por oito meses. Lá escreveu A
América Latina: males de origem, publicado em 1905. Além desse livro inaugural,
vamos aqui mencionar outras obras, tais como: O Brasil na América: caracteri-
zação da formação brasileira (1929); O Brasil na história: deturpação dos trabalhos,
degradação política (1930); O Brasil nação: realidade da soberania brasileira (1931).
E principalmente vamos registrar a recepção que tais obras tiveram e discutir
o “esquecimento” que teria acompanhado o autor.
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manuel bonfim: autor esquecido ou fora do tempo?so
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Para avançar na análise da obra de um autor é preciso mencionar os
temas abordados, as teses apresentadas, as explicações, o tipo de argumenta-
ção e os conceitos usados. E também o tipo de retórica usada para demonstrar
uma tese, divulgar suas ideias ou convencer/converter seus leitores. Assim
como é necessário conhecer a obra, é igualmente relevante conhecer o autor,
ou seja, saber quem fala. Aqui os dados biográficos são importantes para nos
informar que posição ele ocupa na estrutura social. Por fim, deve-se dar aten-
ção à posição ocupada pelo autor no campo intelectual de sua época. Ou seja,
onde estudou? Quais foram seus contemporâneos? Quem pertence à mesma
geração? De quais instituições fez parte? Com quem polemizou ou divergiu?
Quem o resenhou? Assim, é preciso examinar a teia de relações para levar
adiante a análise sociológica de uma obra e de seu autor.
Todos esses elementos nos ajudam a entender o sucesso ou o esque-
cimento de um autor ou de uma obra para além do possível valor intrínseco
de seu conteúdo. Estou querendo ressaltar que a recepção, a aceitação ou o
reconhecimento de um autor depende não só das qualidades de suas ideias e
de seu texto, mas também de variáveis relacionadas ao campo intelectual exis-
tente e do qual o autor faz parte. Assim, quando acompanhamos a recepção
da obra ou do autor, temos também que prestar atenção em quem a edita ou
reedita, quem faz a crítica da obra, quem a cita em seus textos, quem escreve
prefácios e introduções.
Vale também lembrar que o processo de recepção de uma obra não
segue uma linha reta e sem oscilações. Autores muito reconhecidos em um
tempo podem ser esquecidos ou rejeitados em outro momento. Autores e seus
temas fazem parte de um jogo de lembranças e esquecimentos que caracteriza
tanto a construção da memória quanto um panteão de autores relevantes do
pensamento social. E, é bom lembrar, isso vale para todos, tanto para autores
ilustres quanto para desconhecidos. Já fiz um ensaio explorando a fortuna
crítica de Oliveira Vianna, autor que oscila entre ser esquecido e lembrado, e
mais, quando lembrado o é ora valorizado positivamente, ora negativamen-
te (Oliveira, 1993). Gilberto Freyre também teve recepção altamente elogiosa
quando publicou Casa-grande & senzala nos anos 1930, padeceu de rejeição e es-
quecimento nos anos 1960 e foi novamente recuperado a partir dos anos 1980.
PARA COMEÇAR...
Gostaria de mencionar que fui apresentada a Manuel Bonfim pelo livro de
Flora Süssekind e Roberto Romano, História e dependência: cultura e sociedade
em Manuel Bonfim (1984). Ali os autores escrevem uma importante introdução
ao autor, além de publicar uma seleção de trechos de sua obra contemplando
os temas centrais presentes nos livros de Bonfim. Estava à época pesquisando
autores que pensaram a questão nacional ao longo da Primeira República, tema
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artigo | lucia lippi oliveira
de minha tese de doutorado que veio a ser publicada em livro (1990). Ele e mui-
tos outros intelectuais estavam completamente esquecidos, eram os grandes
ausentes dos programas dos cursos de pós-graduação no Brasil nos anos 1980.
O livro de Aluizio Alves Filho (1979) e o artigo de Darcy Ribeiro (1984)
expressam e sinalizam exatamente o silêncio em torno de Manuel Bonfim
que marcava os anos 1970 e 1980. Para Alves Filho, a omissão teria a ver com
a própria reflexão de Bonfim, que se centrava no povo e não na elite. Darcy
Ribeiro, por outro lado, vai destacar a originalidade de seu pensamento que
estaria muito à frente do que aqui se escrevia sobre o país, principalmente se
olharmos seu livro sobre a América Latina. A leitura de Darcy Ribeiro a res-
peito de Bonfim pode ser relacionada ao processo de redemocratização que se
operou nos diversos países da América Latina, após décadas de ditadura. Um
dos pontos muito debatidos à época foi o peso da dívida externa contraída
pelo Brasil, e que estaria na base das dificuldades do país. Nessa linha inter-
pretativa o capital estrangeiro seria um “parasita” a sugar a energia brasileira.
É preciso igualmente lembrar que Darcy Ribeiro vai ser vice-governador de
Leonel Brizola, político que sempre batia na tecla das “perdas internacionais”.
Manuel Bonfim foi também abordado em tese de doutorado de Ronaldo
Conde Aguiar na Universidade de Brasília (UnB), publicada em 2000. O autor
vem sendo abordado em dissertações de mestrado e em artigos publicados em
revistas acadêmicas a partir dos anos 1990. Pode-se indagar se parte dessa re-
cuperação atual das obras de Bonfim teve lugar a partir das reedições de seus
livros pela Editora Topbooks. Essa mesma editora publicou em livro o trabalho
mencionado de Ronaldo Conde Aguiar, que trata da trajetória biográfica de
Bonfim. Aguiar é também quem escreve a Introdução à reedição de O Brasil
nação (1996).
José Mário Pereira, editor da Topbooks, esclarece que teve “a curiosidade
despertada pela obra do Manuel Bonfim primeiro por um livrinho editado pela
Achiamé [Pensamento político no Brasil: Manoel Bomfim, um ensaísta esquecido, de
Aluizio Alves Filho] e depois, trabalhando com Darcy Ribeiro, ele voltou a me
falar desse com entusiasmo, sugerindo que lesse A América Latina, males de
origem”. E continua:
Quando comecei a editora tratei logo de editá-lo, com prefácio do Darcy (na ver-
dade um ensaio que ele antes publicara na Revista do Brasil), e orelhas assinadas
pelo dr. Evaristo de Moraes Filho.
Essa minha edição provocou muito interesse, dado que significou a volta do Bon-
fim às livrarias e ao sistema intelectual.
A seguir publiquei O Brasil nação, e O Brasil na América.
Agora está saindo aqui O Brasil na história, esgotado há mais de 70 anos.
Também publiquei a biografia de Bonfim, Manuel Bonfim, o rebelde esquecido, de Ro-
naldo Conde Aguiar (Informações fornecidas pelo editor por e-mail em 10/7/2013).
Se ele foi esquecido durante muito tempo, é possível dizer que hoje
isso não parece mais ser verdade. Bonfim vem sendo mencionado e estudado
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em obras recentes que objetivam construir um painel, um panteão de obras
e autores que explicam o Brasil. Lembro que o livro Introdução ao Brasil: um
banquete no trópico (2001), organizado por Lourenço Dantas Mota, traz um texto
de Roberto Ventura sobre Bonfim. O historiador José Carlos Reis, na obra As
identidades do Brasil 2 (2006), dedica um capítulo ao nosso autor. Outro livro
que apresenta um panorama de obras significativas, intitulado Um enigma cha-
mado Brasil (2009), organizado por André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz, traz
importante texto de André Botelho, autor que trabalhou sobre Bonfim em seu
livro Aprendizado do Brasil: a nação em busca dos seus portadores sociais (2002).
Coroando essa listagem de obras que recuperam Manuel Bonfim, pode-
-se citar que, por ocasião dos 500 anos de Descobrimento do Brasil, o autor
passa a fazer parte do panteão de autores nacionais organizado por Silviano
Santiago, ao incluir o seu livro A América Latina, com introdução de Flora Süs-
sekind, no volume Intérpretes do Brasil (2000).
OS MALES DE ORIGEM
Com a ressalva mencionada, ou seja, de que ele não se encontra tão esqueci-
do nos dias de hoje quanto parecia estar nos anos 1980, vamos tomar ainda
como guia deste artigo a premissa de que o esquecimento do autor não faria
jus à qualidade e relevância de sua obra. Assim, cabe perguntar: por que foi
esquecido? Que lugar ocupou no campo intelectual de seu tempo? Quais foram
seus temas?
Nascido em 1868 em Sergipe, como já foi mencionado, veio para o Rio de
Janeiro, onde se formou como médico. Situado no contexto do fim do Império
e início da República, ele fazia parte do grupo geracional que à época rejeitava
os cânones de uma tradição e adotava princípios considerados científicos para
entender e corrigir o país. Partindo do campo da medicina, ele se torna um
autor escrevendo sobre o Brasil, tentando explicar o atraso do país. Se isto é
comum a muitos intelectuais republicanos, a partir daí começa a se delinear
uma diferença específica de Manuel Bonfim em relação a seus pares, igual-
mente compromissados com a tarefa de salvar o país.
No primeiro contexto no qual ele escreve – o fim do século XIX e início
do XX, a mudança do Império para a República –, como se explicava o atraso do
país? Engenheiros, médicos e educadores compõem as principais categoriais
de uma nova elite que examinou os males do Brasil na virada do século XIX
para o XX e produziu seus diagnósticos. Entre eles, o discurso médico ganhou
grande destaque ao propor “higienizar e educar” como caminhos para tirar
o país do atraso. Assim, a ideia de que é necessário produzir diagnósticos e
prognósticos torna-se muito comum. Os procedimentos da medicina extra-
vasam o campo médico e vão aparecer nos ensaios políticos que buscam dar
sugestões para se alcançar o progresso, para se fazer parte do mundo civilizado.
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artigo | lucia lippi oliveira
Desse modo, o vocabulário médico invade outros campos, inclusive a literatura
(Herschmann, 1996).
As elites no Brasil de então desejavam que o país estabelecesse uma
sintonia com países da Europa. Para reformar a sociedade entendia-se ser
necessário substituir o romantismo pelo naturalismo, desenvolver um saber
secular, “científico”, capaz de desvendar a natureza tropical e as raças forma-
doras do Brasil. A natureza tropical deixa de ser apenas uma inspiração (como
no Romantismo) e passa a ser princípio central de explicação da nação. O
Brasil se apresenta como um enigma a ser decifrado já que a ciência da época
considerava a impossibilidade de se construir uma civilização nos trópicos.
Além do clima, a raça era mobilizada para explicar a indolência do
brasileiro e a incapacidade de se alcançar o progresso. Muitos diagnósticos
registram a mestiçagem como uma bagagem a ser vencida para que fosse
possível superar o atraso. Muitos aceitam como solução a imigração europeia,
vista como capaz de minimizar a “fatalidade da inferioridade” racial do país.
Daí a tese do “branqueamento” para fundamentar a vinda de mais brancos
como caminho para, mediante a mestiçagem, exatamente “embranquecer” o
povo brasileiro.
O papel e a atuação dos médicos na capital da República são objeto da
dissertação de mestrado de Micael Herschmann (1996). Observa ele que, ao
medicalizar a sociedade brasileira, a medicina diversifica sua atuação e vai
criar diversas especializações tais como Criminologia, Medicina Legal, Higiene,
Saúde e Psicologia, que se fazem presentes nas duas instituições de formação
médica existentes no país. Na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro predo-
mina a atuação, sob influência francesa, de combate às doenças (epidemias)
atentando para o fator do clima. Ali Oswaldo Cruz foi um pioneiro no desenvol-
vimento da Saúde Pública e Higiene, e Miguel Couto (1865-1934) foi, por assim
dizer, um herdeiro dessa linha de investigação. A Faculdade da Bahia, por outro
lado, torna-se campo experimental para patologia e bacteriologia, prevalecen-
do uma orientação alemã e italiana. Essa Escola teve Nina Rodrigues como
figura exponencial e nela se prestou atenção ao doente e às características
transmissíveis de forma hereditária. Foi ali que mais se desenvolveu o campo
da Medicina Legal. A chamada Escola Nina Rodrigues teve como discípulos
Afrânio Peixoto e Arthur Ramos, este último figura fundamental que a tornou
conhecida e reconhecida como matriz da antropologia no Brasil (Corrêa, 2001;
Schwarcz, 1993).
Para além da diferenciação entre escolas e linhas de investigação da
medicina, o ideário moderno foi assumido pelos “homens de ciência” tornando
a medicina um modelo a ser seguido por todos aqueles que queriam transfor-
mar a sociedade. Retornando ao ponto central: tanto cientistas quanto literatos
passam a fundamentar seus discursos em princípios da ciência. E os cientistas
do campo da medicina se voltam para uma atuação no mundo social. Assim os
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médicos se organizam institucionalmente e constroem sua identidade como
“missionários do progresso”.
Como solucionar os problemas nacionais? Como curar os “males do
país”? Diante do diagnóstico de insalubridade, ignorância, atraso da sociedade,
produzem-se prognósticos voltados para regenerar a sociedade, encontrar re-
médios para o corpo e o espírito, impedir a proliferação de “casos patogênicos”
que ameaçavam o “organismo social”.
Os médicos como “missionários do progresso” vão oferecer ao Estado
um novo caminho para o país chegar ao mundo civilizado. O Estado republi-
cano, tendo à sua disposição tais missionários, declara o fim da autonomia
da família e vai tentar estabelecer normas para a sociedade aumentando o
controle social. Tudo isto se faz vinculado às ideias racistas e evolucionistas,
consideradas científicas. Intervir, curar, sanear, educar, ou melhor, educar e
higienizar resumem as principais metas para resolver a situação de ignorância
na qual se encontrava o povo brasileiro e erradicar as epidemias que contri-
buíam para desmoralizar a capital da República perante as capitais europeias.
A Campanha da Vacina Obrigatória e a chamada Revolta da Vacina na capital
da República exemplificam um momento intenso e tenso dessa relação entre
medicina, governo e povo.
É neste contexto que Bonfim aborda as causas do atraso assumindo um
procedimento similar ao adotado pelo médico ao examinar seu paciente: ele
precisa conhecer o passado do paciente (anamnese) para chegar a um diagnós-
tico e poder estabelecer o tratamento (Ventura, 2001). Escreveu A América Latina
enquanto estava em Paris estudando psicologia, para onde foi em 1902 em
uma espécie de exílio, fazendo um caminho típico do intelectual de país de-
pendente que lá fora “pode descobrir a si mesmo, como um outro, até mesmo
bárbaro” (Botelho, 2002: 69). O livro teria como motivação uma reação à visão
negativa que europeus tinham da América do Sul e que pode ser exemplificada
por Arthur de Gobineau, representante francês no Brasil e correspondente de
D. Pedro II, para quem a população do país era totalmente mulata, viciada no
sangue e no espírito.
Manuel Bonfim vai então publicar esse seu primeiro livro A América
latina: os males de origem em 1905 pela editora Garnier. Ele pode ser considera-
do seu livro mais importante e mais polêmico, já que ali ele se contrapõe às
explicações hegemônicas daquela época, que atribuíam os males do Brasil e
dos países da América Latina às raças inferiores, às populações mestiças e ao
clima tropical. Bonfim, como diz Roberto Ventura (2001), ao contrário, vai falar
da exploração das colônias pelas metrópoles e dos escravos pelos senhores. E
faz isso recorrendo a uma noção tirada da biologia: o parasitismo. Nesta obra
combate o racismo, o evolucionismo e o positivismo. Vai contra a explicação
racial em voga, contra a hierarquia entre as raças que, segundo ele, servia para
justificar o domínio dos fracos pelos fortes. Ataca ideias e visões consideradas
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artigo | lucia lippi oliveira
científicas à época e que se faziam presentes de diferentes modos em autores
importantes como Silvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha.
Citei esses três autores só para deixar claro contra quem Bonfim estava
se posicionando. Talvez isso possa nos ajudar a entender por que nos livros,
artigos sobre intelectuais, instituições e cientistas das gerações do fim do
século XIX e início do XX Bonfim não é citado.
Silvio Romero recusa as explicações, as teses de Bonfim. Ele escreve 25
artigos, que depois foram reunidos no livro A América Latina: análise do livro
de igual título do dr. Manoel Bonfim (1906), contestando Bonfim. Tais artigos são
considerados de pouco valor, já que se dedicam a desacreditar as qualidades
intelectuais de Bonfim. O livro-resposta de Silvio Romero serve para demons-
trar que o livro A América Latina não passou em branco. Esse livro-resposta
com comentários em estilo polêmico e violento de Silvio Romero ataca a obra
de Bonfim considerando-a cheia de erros, malfeita e falsa. Silvio Romero ataca
também o que nomeia como “socialismo de colegial” e “reacionarismo negris-
ta e caboclizante contra as raças superiores”. Mas esse tipo de comentário,
é bom que se note, não alterou a fama de Silvio Romero. Ele é considerado
figura fundadora do campo literário ao escrever sua história da literatura no
Brasil. Seu papel e sua relevância são reforçados com o passar do tempo. Isso
pode ser percebido quando Antonio Candido, outra figura-chave do campo da
literatura, toma Silvio Romero como objeto central de um dos seus primeiros
livros (Candido, 1988). Nina Rodrigues, valorizado por Afrânio Peixoto e por
Arthur Ramos, é considerado pai da antropologia brasileira (Corrêa, 2001). E,
por fim, Euclides da Cunha, um dos heróis do pensamento brasileiro, cuja
obra Os sertões, publicada em 1902, causou impacto marcante e cujo autor foi
considerado, por figuras como Alceu Amoroso Lima, o fundador de um tipo de
explicação sociológica do Brasil.
Bonfim, como já foi mencionado, produz um discurso antirracista con-
tra a corrente dominante à época e pretende explicar os males da América
Latina por meio da exploração das colônias pelas metrópoles. Ao mesmo tem-
po produz um discurso antiamericano: atacou o imperialismo dos Estados
Unidos, também contra uma corrente pan-americanista que procurava escapar
da influência política europeia e da qual faziam parte Rio Branco, Rui Barbosa,
Joaquim Nabuco e até Silvio Romero, que valoriza a atuação política norte-
-americana já que essa permite proteção diante do perigo alemão representado
no Brasil pelas colônias do Sul do país.
Neste sentido, Bonfim poderia ser aproximado de Eduardo Prado em
seu antiamericanismo. Aproximação, entretanto, limitada já que eles diferiam
em suas análises do passado colonial. Prado valoriza o passado português
enquanto Bonfim o recusa. O antiamericanismo de Eduardo Prado em A ilusão
americana (1893) diferencia não só o Brasil dos Estados Unidos, mas também
o Brasil dos países ibéricos que optaram pelo regime republicano no processo
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de independência. Para Prado, o Brasil tinha tido um desenvolvimento peculiar
com a monarquia e não deveria copiar as instituições norte-americanas, como
fizeram os países hispânicos da América, e que estavam sendo transplantadas
pela República para o Brasil (Oliveira, 1999).
O antiamericanismo, é bom que se diga, tem longa duração no pensa-
mento social e na cultura brasileira. Ele se mantém ao longo do século XX e,
de tempos em tempos, retorna tomando princípios advindos de razões econô-
micas (anticapitalismo), razões políticas (anti-imperialismo) e razões culturais
(antiprotestantismo). O nacionalismo no Brasil está quase sempre tangencian-
do tais razões. Assim, o nacionalismo e o antiamericanismo de Bonfim têm
oferecido razões suficientes para várias de suas redescobertas.
O antilusitanismo teve destaque no passado com a proclamação da
República no Brasil e a crise dos primeiros anos do regime republicano na
virada do século, quando a colonização portuguesa passa a ser rejeitada como
responsável pelo atraso do país. O português é identificado como colonizador
e explorador da população brasileira e passa a ser atacado principalmente
na capital da República. Assim, a visão de Bonfim encontra aceitação e pode
ser aproximada no campo da literatura a Lima Barreto, quando este desenha
o nacionalismo de seu personagem no livro O triste fim de Policarpo Quaresma.
A discussão sobre os males, as deficiências, o atraso da nação brasileira,
que se acirra na virada do século, ganha novamente força em torno dos anos
da Primeira Guerra Mundial, quando a condenação da colonização portuguesa
retorna. Ela é vista como um dos problemas do país, já que foi sob o domínio
português que se implantaram tanto a escravidão quanto a intolerância para com
os descendentes mestiços. Tal interpretação se faz presente, por exemplo, na obra
A política no Brasil ou o nacionalismo radical, de Álvaro Bomilcar (1920), autor que
vai ter importância para um pensamento católico nacionalista no Brasil. Nessa
mesma época, por outro lado, o francófilo Olavo Bilac reafirma a positividade da
herança do mundo português e reforça o valor da lusitanidade e da latinidade,
das quais o Brasil faz parte por ter sido colonizado pelos portugueses.
O antirracismo, o antiamericanismo, o nacionalismo de Manuel Bonfim
(e sua posição em relação à colonização portuguesa) o colocam como figura
disponível a ser acessada ora por um pensamento de direita como no integra-
lismo, ora pela esquerda que o vê como um socialista.
Entre os comentaristas do autor, certamente Flora Süssekind e Roberto
Ventura (1984) inauguram um novo patamar ao colocar Manuel Bonfim no
espaço da análise e do debate acadêmico. Ao mesmo tempo interpretam a
posição de esquecimento do autor na história intelectual brasileira como re-
sultante de uma ambiguidade, já que ele “move-se entre uma linguagem ve-
lha e uma ideologia nova”. A apresentação aos textos de Bonfim é intitulada
“Uma teoria biológica da mais-valia?”, ou seja, para os autores Bonfim explica
a produção e apropriação do valor do trabalho no nível interno das relações
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artigo | lucia lippi oliveira
entre classes e no nível internacional pelas relações de dependência entre
colônias e metrópoles. O parasitismo é como que uma causa primeira, já que
produz exploração predatória e gosto pela vida sedentária, é um mal que se
abate sobre explorador e sobre explorado, é, assim, causa da decadência e da
degradação. Esta perspectiva “marxista” do autor foi apresentada usando con-
ceito biológico em sua análise histórica, embora Bonfim refutasse a homologia
entre biologia, zoologia e sociologia.
Süssekind e Ventura voltam a analisar Bonfim em artigos posteriores
centrados na obra A América Latina. Ventura (2001) retorna ao tema ao tratar o
parasitismo, conceito da botânica e da biologia que Bonfim adapta às relações
sociais, e que permite analisar a apropriação de riquezas produzidas pelos ín-
dios e africanos. Os parasitas na colonização foram o clero e os agentes da ad-
ministração colonial. Bonfim criticou também o Estado brasileiro, considerou a
vida política republicana uma democracia de fachada, servindo para perpetuar
o poder das elites. Para combater e vencer os males do país, Bonfim vai propor
um programa de educação, a instrução popular. Isso faz Ventura compará-lo
à figura do argentino Domingos Sarmiento em seu livro Educação popular. Vale
notar, entretanto, que Sarmiento não foi somente um intelectual, mas foi tam-
bém um político que na presidência da República derrotou o caudilhismo das
províncias argentinas e instalou a educação pública como política de Estado.
Flora Süssekind (2002) também vai retomar Bonfim destacando a impor-
tância do livro A América latina: males de origem como forjador de uma consciên-
cia latino-americana. Süssekind continua fazendo uma aproximação de Manuel
Bonfim com outros autores que na mesma época estão refletindo sobre o conti-
nente sul-americano em sua história colonial, sua independência e construção
do Estado nacional. O uruguaio José Enrique Rodó e o cubano José Martí estão
entre aqueles que também enfatizam as tensões entre os Estados Unidos e a
América Latina e criticam o pan-americanismo e a chamada “Doutrina Monroe”.
A reflexão de Bonfim sobre a mistura das raças e o elogio da mesti-
çagem configura uma certa “utopia híbrida” que está presente também no
mexicano José Vasconcelos (La raza cósmica, 1925) e mais tarde marcará a obra
de Gilberto Freyre. Flora Süssekind aponta um diálogo direto de Freyre com
Bonfim que pode ser acompanhado pelas referências ao autor em Casa-grande
& senzala. Nesta obra, é preciso lembrar, Freyre também aciona outros autores
tais como Alberto Torres, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral para diferenciar,
dialogar e explicar seus argumentos.
A reprodução do modelo parasitário, segundo Bonfim, se faz presente
mesmo com mudanças do regime político de monárquico para republicano.
As classes dirigentes se encarregam de impedir que as coisas se transformem.
Tais classes seriam compostas por aqueles que, uma vez no poder, impedem
quaisquer reformas significativas. Como isso pode ser rompido? Esta é a per-
gunta de Manuel Bonfim. Aí vai entrar a pedagogia para educar os parasitados,
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o povo. A instrução popular é apresentada como caminho para solucionar tal
impasse. Entre a hereditariedade que determina inferioridades inabaláveis
segundo as leis da natureza e a educação capaz de alterar tais leis, Bonfim
fica com a educação. Até aqui é a educação que alavanca a mudança social.
Só a partir de O Brasil nação, de 1928 e publicado em 1931, é que Ma-
nuel Bonfim vai mencionar outro remédio, uma revolução. Uma revolução que,
segundo Flora Süssekind, deveria ser contra a classe dirigente, quando a con-
quista do poder seria realizada por uma nova classe que nunca o ocupara e que
seria capaz de impor um novo padrão de valores. Vale lembrar que o livro de
Sergio Buarque, Raízes do Brasil (1936), também traz um último capítulo sobre
a revolução necessária para que país rompa os males de seu passado.
A JORNADA EDUCATIVA OU “UMA ILHA DE LETRADOS
NUM MAR DE ANALFABETOS”
A reflexão erudita de Manuel Bonfim a respeito da história e da política da
América Latina e do Brasil, em conflito com seus pares intelectuais na virada
do século, não o faz abandonar uma visão missionária, só que agora ela se
explicitará no espaço da educação, da pedagogia. Podemos dizer que, depois
desse enfrentamento com sua geração, Bonfim, que já tinha abandonado o
campo estrito da medicina migrando para a psicologia, vai dar uma trégua na
escrita de livros interpretativos sobre o continente e o Brasil. Ou melhor, pelo
menos até o fim dos anos 1920, várias de suas obras, como Lições de pedagogia:
teoria e prática da educação (s/d) e Noções de psicologia (1917), abordam o campo
que julgava possível resolver os males do Brasil: a educação. Assim ele vai
continuar sua militância, só que no campo da educação. Vai se somar a outros
intelectuais que apostam na educação e que vão compor uma geração de edu-
cadores que comunga da ideia de que sem ensino, sem escola de qualidade,
não existe república nem nação.
Assim, uma das soluções para sanar os males do Brasil leva a um amplo
projeto pedagógico que ocupa grande espaço durante a Primeira República. O
analfabetismo reinante no país na segunda metade do século XIX (cerca de
80%) torna a ação da elite letrada muito limitada. A Carta de 1891, ao restrin-
gir o voto do analfabeto, consagrou a exclusão política de extensas camadas
populares do exercício democrático. Por outro lado, a Constituição de 1891
institui a laicidade, a gratuidade e a obrigatoriedade do ensino. Diretrizes im-
portantes, mas que tiveram que enfrentar enormes dificuldades para serem
implementadas tendo em vista o modelo federativo que descentralizava o
ensino primário pelos estados.
Bonfim milita para que o ensino popular seja de fato implementado
pela República, já que a sociedade moderna supunha alfabetização universal.
A difusão do processo educacional se torna, assim, eixo central da moderniza-
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artigo | lucia lippi oliveira
ção do Brasil. E para isso era fundamental a efetivação da responsabilidade do
Estado na área educacional (Botelho, 2002). Os educadores defendem a escola
e não mais a família como a instituição a ser responsável pelo ensino. Propu-
nham que a escola deveria seguir padrões específicos de espaço, de métodos
de ensino, de conteúdo curricular e de tipo de atividades pedagógicas. Até os
equipamentos da sala de aula deveriam ser uniformizados, o mobiliário seria
adequado ao tamanho da criança, a ventilação e a iluminação do ambiente
deveriam seguir padrões e preceitos higiênicos. Todas essas normas se faziam
presentes no que se entendia como uma educação republicana e os currículos
deveriam exibir os cuidados com o corpo, com os gestos, com roupas e sapatos
(uniformes) dos alunos (Gomes, 2002). A valorização do ensino levava à valori-
zação do professor, daí a importância e o cuidado com as Escolas Normais res-
ponsáveis pela formação dos professores nos mais avançados métodos de ensi-
no. O professor primário era considerado mesmo a chave da escola republicana.
Pois bem, a atuação de Manuel Bonfim toma forma dentro de tais pre-
missas e é com elas que ele registra seu desconforto diante da situação de
desconhecimento sobre as condições do ensino no país. Diz ele: “[...] O que
não conheço é país onde o governo central se despreocupe, tão absolutamente,
da instrução primária como entre nós; não sabendo se o povo aprende nem
se há escolas, nem o que nelas se ensina” (Educação e Ensino, 1/2, p. 142-144
apud Bomeny, 2005: 11).
Se Bonfim se defrontou com Silvio Romero a propósito das interpre-
tações do atraso brasileiro no livro A América Latina, ele vai se somar a outro
importante crítico literário, José Veríssimo, que em 1890 publica o ensaio A
educação brasileira em que defende a necessidade de reforma moral dos brasi-
leiros, um programa de reforma do sistema escolar e dos currículos. Para José
Veríssimo, o que une os povos e cria as nações são o sentimento do passado, o
rico legado de tradições e o desejo de viver juntos. O ensino da história pátria
torna-se então instrumento de uma educação cívica que é fundamental à mo-
dernização da sociedade e à criação da nação brasileiras. A proximidade entre
Bonfim e Veríssimo também se acentua quando se registra a condenação que
José Veríssimo faz das ciências morais e filosóficas ensinadas no Brasil – e que
deu origem à cultura bacharelesca – como herança cultural negativa da Ibéria.
A descentralização do ensino pelas unidades da federação produziu um
ensino diferenciado e precário que se expressava em altíssimas taxas de anal-
fabetismo e em crianças em idade escolar que não frequentavam a escola. A
consciência dessa situação leva, a partir dos anos 1920, intelectuais e políticos
a se unirem em um movimento chamado Escola Nova, que faz estudos e rea-
liza experiências de reforma educacional em alguns estados como São Paulo,
Minas Gerais, Pernambuco, Bahia e Distrito Federal. Anísio Teixeira, A. Carneiro
Leão, Fernando de Azevedo e Lourenço Filho, entre outros, são os “intelectuais
reformadores” do movimento de reforma do ensino primário e normal, e do
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“manifesto dos pioneiros da Educação Nova” que vai ser divulgado em 1932
(Bomeny, 2001). Possivelmente, a idade e/ou a doença de Bonfim no fim de sua
vida o impediram de fazer parte desta nova geração que está se organizando
para mudar os rumos da educação no Brasil.
A militância dos educadores da “Escola Nova”, entretanto, não deve
ofuscar ou nos fazer negar o esforço dos educadores do início da República
em sua luta pela reforma da educação primária, ainda que não tenham sido
capazes de obter grande sucesso. Sabemos que a crítica à Primeira República a
partir dos anos 1920 reúne matrizes político-ideológicas de variado teor, de Oli-
veira Vianna a Manuel Bonfim, passando pelos modernistas. Sabemos que os
primeiros anos do século XX mereceram o epíteto de “República dos Conselhei-
ros” ou de “República Velha” e foram marcados por seus intelectuais descrentes,
desiludidos com o novo regime político. Ao sinalizar isso quero registrar que
esse tempo enfrentou uma grande “batalha de memória” que o tornou pouco
conhecido e reconhecido. Isso vem sendo alterado e a Primeira República está
merecendo a atenção de historiadores, valendo citar, entre outros, o trabalho
de Eliane Dutra sobre o Almanaque Brasileiro Garnier (2005). O Almanaque foi
um instrumento pedagógico que buscou promover a nacionalidade brasileira,
o regime republicano e inserir o Brasil na modernidade europeia. Assim, ainda
que a educação entendida como ensino primário tenha merecido pouca ação e
obtido resultados precários ou tenha tido pouco êxito no processo de moder-
nizar o país, outros instrumentos de atuação se fizeram presentes.
A educação como a redenção do atraso, como viabilização da moderni-
dade valoriza a escola primária, a instrução como indutora de virtudes públi-
cas. Ao mesmo tempo se explicita uma controvérsia sobre o tipo de educação
e de disciplinas que devem ser priorizadas na escola – as humanidades ou as
científicas –, e que produzem bacharéis ou engenheiros. Até os modernistas
de 1922 trataram indiretamente do tema da educação ao combater o chama-
do “lado doutor” da formação cultural brasileira. O lado opulento, decorativo,
ornamental do ideário parnasiano estaria encarnado na figura do bacharel, o
que explicita o anacronismo da educação brasileira de matriz jesuítico-bacha-
relesca (Botelho, 2002).
Após a publicação de seu primeiro livro, como já mencionamos, Manuel
Bonfim escreveu livros de pedagogia e de psicologia, além de atuar em insti-
tuições voltadas ao ensino. Fez parte também da linhagem de autores que se
dedicou a produzir textos para crianças, transmitindo lições de português, de
história e de geografia, mas, acima de tudo, valores fundamentais de amor à
nação brasileira. Nessa categoria Bonfim escreveu, junto com Olavo Bilac, um
dos mais interessantes livros na categoria que hoje pode ser chamada de obra
paradidática. Através do Brasil (narrativa) traz na capa a explicação: “Livro de
leitura para o curso médio das Escolas Primárias” e “Livro de uso autorizado
pelo Ministério da Educação”, o que esclarece a recepção memorável e que
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garantiu ter tido 67 edições conhecidas até 1962. A documentação da Editora
Francisco Alves informa que o livro, impresso em Paris em 1910, teve tiragem
de 4 mil exemplares e que, em 1913, houve uma segunda edição (Lajolo, 2000).
Através do Brasil combina ficção e história e apresenta uma “jornada
educativa” na qual as personagens se formam à medida que se ligam à coleti-
vidade. O livro transmite um tipo de catecismo cívico capaz de constituir um
novo sentimento nacional para todos aqueles que estão sendo alfabetizados
pela escola. Assim, tal livro pode ser considerado um exemplo muito bem-
-sucedido da literatura escolar nacional, um gênero que teve destaque nos
primeiros anos da República.
Marisa Lajolo, consagrada pesquisadora de literatura infantil em geral e
de Monteiro Lobato em particular, autora da Introdução à reedição de Através
do Brasil pela Companhia das Letras em 2000, nos esclarece um pouco mais ao
nos informar que o livro é uma espécie de “versão brasileira” de um best-seller
escolar francês, La tour de la France par deux garçons, assim como de outro livro,
Cuore, com a mesma função na Itália recém-unificada. E também nos lembra
que, além de sua conhecida e reconhecida obra poética, Bilac foi também tra-
dutor da obra de Wilhem Bush, intitulada no Brasil como Juca e Chico: história
de dois meninos em sete travessuras. Para Mariza Lajolo, Através do Brasil está
inscrito em duas matrizes fortes. Aquela do cânone da literatura infantil e di-
dática e a do gênero da literatura de viagem herdeira do primeiro documento
oficial de nossa descoberta, a Carta de Caminha.
É preciso registrar que Bilac e Bonfim se tornaram amigos desde a che-
gada deste último em 1888 ao Rio. Bonfim passa a participar do círculo intelec-
tual e boêmio de Bilac que frequentava redes de sociabilidade variadas como
rodas literárias, redações de jornais, de revistas, cafés, confeitarias e livrarias
da cidade. Bonfim e Bilac partilhavam da convicção do papel transformador
da educação e estiveram presentes em instituições dedicadas à promoção da
educação pública como Pedagogium, criada em 1890, e a Secretaria de Instru-
ção Pública do Distrito Federal. Bonfim foi diretor da Pedagogium de 1897 a
1905 e de 1911 a 1919. Criou a Revista Pedagógica e também a revista Educação e
Ensino, o primeiro laboratório de psicologia experimental do Brasil. Foi diretor
da Escola Normal e também diretor de Instrução Pública do Rio de Janeiro de
1898 a 1900. Criou escolas profissionais e técnicas.
Para além do que coube a cada um dos autores, ou seja, a divisão do tra-
balho entre os dois, Manuel Bonfim e Olavo Bilac foram, segundo André Botelho
(2002), artífices de uma nova modalidade de narrativa inaugurada com Através
de Brasil em 1910. Eles já tinham publicado em 1899 o Livro de composição para o
curso complementar das escolas primárias e, em 1901, o Livro de leitura para o curso
complementar das escolas primárias, ambos compilação de textos de outros au-
tores. Olavo Bilac também se associará a Coelho Neto escrevendo A terra flumi-
nense (1898), Contos pátrios (1904), Teatro infantil (1905) e A pátria brasileira (1909).
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No caso da produção conjunta – Olavo Bilac e Manuel Bonfim –, pode-se
dizer que Bonfim também ficou em uma posição subalterna, ficou esquecido
ou foi apagado, neste caso, pelo tamanho e prestígio de seu parceiro. Olavo
Bilac, escolhido de modo consagrador “príncipe dos poetas brasileiros” em
concurso promovido pela revista Fon-Fon, em 1913, é um dos autores que re-
afirmam suas ligações com o mundo latino e português. Poeta com amplo
reconhecimento como representante da belle époque, como defensor da heran-
ça portuguesa e latina que nos unia à França por ocasião da Primeira Guerra
Mundial, Bilac vai se colocar como missão a difusão do ensino primário, a
expansão do ensino profissionalizante e a defesa do serviço militar obrigatório.
Bilac, de “príncipe dos poetas” se torna “operário da nação” ao se engajar em
campanhas cívicas pela instrução primária e mais tarde pelo serviço militar
obrigatório e pela criação da Liga de Defesa Nacional. O alto prestígio de Bilac
faz sombra sobre Bonfim e, depois, o desprestígio de Bilac como exemplo má-
ximo da poesia parnasiana tão combatida pelos poetas modernistas dificulta
qualquer recuperação de Bonfim.
Tanto Manuel Bonfim quanto Olavo Bilac entendiam e defendiam a educa-
ção como redenção do atraso. Eles estão preocupados e ocupados com a reforma
moral da sociedade, com a construção da nação e com a formação dos portadores
sociais do projeto de modernização. Ao definir assim seu trabalho, acabam por
definir uma identidade social dos intelectuais no Brasil (Botelho. 2002).
Mas não foi só isso. Manuel Bonfim esteve ligado à fundação e à direção
da revista O Tico-Tico, criada pelo empresário e deputado mineiro Luiz Barto-
lomeu de Souza Silva (1866-1932). Luiz Bartolomeu também fundou e dirigiu
outras publicações como as revistas O Malho e Ilustração Brasileira.
O Tico-Tico, revista semanal cujo primeiro número circulou em 1905, che-
gou no ano seguinte a uma tiragem de 100 mil exemplares por semana. Ânge-
lo Agostini desenhou o logotipo da revista onde crianças nuas brincam com
as letras. J. Carlos também se fazia presente na revista. E o que apresentava?
Passatempos, mapas educativos, literatura juvenil, informações sobre história,
geografia, ciências, artes e civismo. Suas seções eram: “Por que me orgulho de
ser brasileiro”, “Quadros de nossa história”, “Decálogo de deveres”, “Gavetinha
do saber”, “Museu escolar”, entre outras. O Tico-Tico apresenta também jogos de
armar e heróis nacionais que povoam as mentes de crianças e jovens, lendas e
personagens do folclore regional e popular, cantigas e contos. E mais. Apresen-
tava história em quadrinhos para um público infantil, entre elas a turma Reco-
-Reco, Bolão e Azeitona, desenhados por Luiz Sá. Em depoimentos em que falam
sobre suas infâncias, Dorival Caymmi, Érico Veríssimo, Carlos Drummond de
Andrade, Lígia Fagundes Telles, José Lins do Rego, Jorge Amado e Câmara Cascudo
mencionam que tiveram contato com o mundo da fantasia e das letras, tiveram
noções de cidadania e de patriotismo lendo a revista O Tico-Tico (Gonçalo Jr., 2005).
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Assim, revistas como O Malho e O Tico-Tico, o Almanaque d’O Malho e o
Almanaque Brasileiro Garnier, entre outras, tiveram papel fundamental no sen-
tido de ensinar princípios de civilidade e de cidadania para uma população
que se queria moderna e civilizada. Esses foram, na ausência de um sistema
escolar abrangente, por assim dizer, instrumentos de uma cultura de massa
na Primeira República.
Além de ter dirigido a revista O Tico-Tico, Bonfim exerceu cargos públi-
cos ligados à atividade educacional no Rio de Janeiro. Sua inserção no campo
educacional o fez participar do Conselho Superior de Instrução Pública e ser
relator de concurso para escolha do livro de história da América a ser adotado
nas escolas de formação de professores. Assim vai avaliar a obra A história da
América (1899), de Rocha Pombo, cujos males são apresentados como resultado
do passado colonial funesto. Este autor, assim como o historiador português
Oliveira Martins, em sua História de Portugal (1879), fala da decadência ibérica.
Passado colonial funesto e decadência ibérica são marcas de visão historio-
gráfica de Bonfim. O autor, para falar sobre o parasitismo ibérico, lança mão
principalmente do relato de Oliveira Martins sobre o caráter predatório da
colonização portuguesa. Para ele, o conservadorismo das oligarquias ibéricas
é fruto do parasitismo. Tudo isso faz o Estado se tornar “órgão de opressão” a
serviço da elite. Estes temas e tais influências vão reforçar sua interpretação
sobre o país e vão se fazer presentes no livro O Brasil na história, cuja primeira
edição é de 1930 (Gontijo, 2003).
A TRILOGIA SOBRE O BRASIL
Quer seja nesse livro anteriormente citado, assim como em O Brasil nação,
Bonfim interpreta a história do Brasil como cindida entre duas forças, duas
tradições: uma que expressa, desde o século XVII, a alma brasileira republicana
e democrática – a verdadeira nação; outra ligada à monarquia portuguesa que
domina o Estado que explora e oprime a nação. A historiografia também se
divide em duas correntes: a oficial, bragantina, antipatriótica, portuguesa, e a
outra, patriótica, republicana, revolucionária, brasileira. A primeira tem Var-
nhagen como um de seus expoentes; Capistrano de Abreu seria um represen-
tante da segunda e acabaria se tornando o “patrono” de uma suposta história
social. O poder bragantino vai se colocar contra o povo que se unificou cedo e
criou o espírito nacional, uma unidade profunda. As revoluções frustradas (a
Independência, a Abdicação, a Abolição e a República) marcam a permanência
da opressão do poder bragantino que também forma a mentalidade das elites
dirigentes e dos intelectuais em sua cópia do pensamento europeu. O que ca-
racteriza sua visão da história do Brasil, segundo Reis (2006), é que para ele os
verdadeiros heróis são os derrotados, enquanto os poderosos são os bandidos.
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Vale ressaltar que aqui já estamos em outro momento histórico, quando
Bonfim vai publicar três livros que o fazem entrar no panteão de intelectuais
brasileiros: O Brasil na América Latina: caracterização da formação brasileira (1929);
O Brasil na história: deturpação dos trabalhos, degradação política (1930) e O Brasil
nação: realidade da soberania brasileira (1931). Tais obras foram publicadas pela
Editora Francisco Alves.
Neste terceiro momento o contexto já é outro, estamos no final dos
anos 1920 e início dos anos 1930. No primeiro livro, O Brasil na América Latina,
ele retorna ao tema do livro A América Latina, agora com olhar mais focado
no Brasil; no segundo, O Brasil na história, ele disserta sobre a história escrita
sobre o Brasil mesmo sem fazer parte do “pequeno mundo dos historiadores”
(Gontijo, 2003); e, por fim, O Brasil nação (1931) vai se centrar mais na conjun-
tura da República no século XX.
Vale lembrar que, nos anos 1930, no bojo da Revolução, tem-se o surgi-
mento de novas editoras que abrem espaço para discutir, interpretar, publicar
livros que mais uma vez querem decifrar os males do país. Vale citar Alcindo
Sodré, com A gênese da desordem; Martins de Almeida, com Brasil errado: ensaio
político sobre os erros do Brasil como país; e Virgínio Santa Rosa, com A desordem:
ensaio de interpretação do momento e O sentido do tenentismo. Tais livros foram pu-
blicados entre 1930 e 1932, editados pela Editora Schmidt, compondo a chamada
Coleção Azul. Para mencionar outros autores daquela época dentro do mesmo
espírito, vale citar Vivaldo Coaraci, Problemas nacionais (1930); Hermes Lima,
Problemas do nosso tempo (1935), e Azevedo Amaral, Ensaios brasileiros (1930).
Assim, quando Bonfim publica a sua trilogia em 1929, 1930 e em 1932,
vários outros autores também estão produzindo obras sobre os males do Brasil
e propondo soluções para enfrentar os problemas nacionais.
A influência do pensamento de Manuel Bonfim, por exemplo, sobre Aze-
vedo Amaral pode ser percebida em diferentes temas e análises. José Antonio
Azevedo Amaral também faz uma releitura da história brasileira e dos impas-
ses a serem enfrentados. Em seu livro Estado autoritário e a realidade nacional,
de 1938, ele apresenta uma crítica ao Império e ao seu parlamentarismo, total-
mente inaplicáveis às condições brasileiras. Diferentemente de vários autores
dos anos 1930, ele não vê o Império como um modelo de centralismo a ser
imitado. O império se caracteriza, não pelo centralismo, mas pelo controle do
mando por uma classe parasitária (prenúncio das análises sobre o controle do
estamento burocrático como em Raymundo Faoro?). Azevedo Amaral também
assumiu uma perspectiva evolucionista, lançando mão de um certo modelo
de interpretação da sociedade como organismo (Oliveira, 1982). E ele também
padeceu de certo esquecimento ou discriminação na medida em que foi um
dos importantes ideólogos do Estado Novo.
Vale lembrar que será Azevedo Amaral quem escreve o “prefácio” da se-
gunda edição de A América Latina: males de origem (Rio de Janeiro: A Noite, s/d).
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A terceira edição de A América Latina: males de origem (Rio de Janeiro: Topbooks,
1993) tem apresentação de Darcy Ribeiro e de Franklin de Oliveira e ali também
é republicado o prefácio da segunda edição, de autoria de Azevedo Amaral.
A perspectiva nacionalista do nosso autor foi ressaltada nos anos 1930.
Ela teria feito Manoel Bonfim ser reverenciado e lido, como pode ser reco-
nhecido no livro de Bonfim O Brasil, organizado em 1935 por Carlos Maul e
que integrou a Coleção Brasiliana, número 47. Fazer parte de tão importante
coleção não é trivial, não significa exatamente estar esquecido, contudo a
percepção de esquecimento teve continuidade. O que teria contribuído para
isso? Temos então que olhar para a posição de Maul, jornalista como tantos
outros intelectuais da época que garantiam sua subsistência na imprensa. Mas
outros jornalistas conseguem galgar posições mais altas, alcançar postos em
instituições de maior prestígio tais como o Instituto Histórico Geográfico Bra-
sileiro (IHGB), a Academia Brasileira de Letras (ABL), ter seus livros publicados
por casas editoras como a Francisco Alves, a José Olympio, a Editora Nacional.
Não é o caso de Maul, que poucos conhecem ou sabem quem foi.
Carlos Maul (1887-1974), jornalista, redator de jornais da capital federal
e literato, tem curta atuação na política em 1930 quando se elegeu deputado
estadual no Estado do Rio de Janeiro, fazendo parte de um dos grupos descen-
dentes da liderança de Nilo Peçanha. Em 1937 integrou comissão responsável
pelas publicações da Biblioteca do Exército. Foi membro das academias carioca,
fluminense e petropolitana de letras e publicou cerca de 60 livros.
Ou seja, pode ser classificado como “intelectual de província”, ainda que
circule na capital federal. É Maul quem escreve a “Nota Introdutória” do livro
O Brasil, volume 47, que integra a famosa Coleção Brasiliana. Ali ele nomeia
Manuel Bonfim como “mestre”. E esclarece: Bonfim tinha programado fazer
uma obra de síntese, de divulgação de suas ideias, para mostrar o que fomos
e o que somos como parcela da humanidade. Esta reunião estaria presente no
volume agora publicado onde ele (Maul) teria sintetizado o fundamental na
trilogia já editada.
O livro expõe seu pensamento e conceitos sobre o Brasil, a organização
da sociedade, a expansão econômica, a vida política do Brasil Colônia, Império
e República até 1930 e fala do futuro do país tendo em vista as reformas sociais
em curso no mundo e que influenciam o Brasil. Bonfim fez revisão de nossa
história e principalmente expôs as bases do estudo para o conhecimento da
constituição da nacionalidade. Ressalta Maul, Bonfim fez a defesa da atividade
de nossa gente, das virtudes do indígena e do preto, das vantagens do cruza-
mento do lusitano com eles para alcançar o grau de civilização. A longa doença
impediu Bonfim de realizar o sonho de divulgar suas análises, entretanto sua
vontade pôde ser realizada.
Foi Maul quem selecionou e reuniu nesse volume o que seria funda-
mental na trilogia mantendo as próprias palavras (sem o peso das citações)
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de Manuel Bonfim. Ao adotar uma seleção e justaposição de textos a partir
das três obras, sem fazer referência à fonte dos trechos selecionados, Maul
acaba por esvaziar seu propósito. Afinal, pode-se perguntar, o livro é mesmo
de autoria de Manuel Bonfim ou uma leitura de Carlos Maul sobre Manuel
Bonfim? O questionamento a tal procedimento foi apresentado pela primeira
vez por Süssekind e Ventura em seu livro de 1984, que, ao contrário do de Maul,
transcreve integralmente partes de capítulos dos livros de Bonfim, assim como
as notas do texto original informando qual a fonte e as páginas originais, obe-
decendo aos procedimentos que a norma acadêmica prescreve. O livro O Brasil
inclusive não costuma ser listado entre as obras de Manuel Bonfim, nem entre
as obras de Carlos Maul, ficando assim em uma espécie de limbo de autoria.
O historiador José Carlos Reis (2006), ao contrário, vai dizer que Bonfim
se tornou mais popular com a publicação da coletânea O Brasil, contrariando
a visão de Süssekind e Ventura (1984) e de Aguiar (2000). Em sua análise, diz
que vai fazer uso do livro O Brasil como sua principal fonte, já que a obra
organizada por Maul teria contribuído muito para a popularização de Bonfim.
Considera mesmo que as resistências à coleção de Maul nada mais seriam do
que um “pedantismo acadêmico”. Considera que Maul, admirador de Bonfim,
foi fiel ao autor e o tornou mais acessível.
Reis considera, entretanto, que a seleção realizada por Maul teria ressalta-
do Bonfim como defensor de um “nacionalismo fascista”, integralista, enquanto
outras leituras o veriam mais como socialista. Nessa linha, Bonfim é visto como
um marxista brasileiro precoce, original, anterior à própria criação do Partido
Comunista do Brasil (PCB) em 1922. Aguiar, seu biógrafo, o veria como um anar-
quista socialista tendo em vista suas leituras de Proudhon, Bakunin e Kropotkin.
Cada um retira de seus livros trechos que podem ser interpretados de um modo
ou de outro. Seu nacionalismo foi, assim, recuperado à direita e à esquerda.
Vale lembrar que nos anos 1910, 1920 e 1930 o nacionalismo estava
mais próximo a movimentos de direita já que o socialismo à época era uma
bandeira internacionalista. Assim, o nacionalismo de Bonfim foi recuperado
originalmente à direita e só mais tarde à esquerda. É que
o tema da nação não estava presente na ideologia marxista original. O processo de
incorporação da questão nacional pelo movimento comunista tem a ver com a cha-
mada implantação do socialismo num só país e as condições que se estabeleceram
à época. [...] O tema do nacionalismo trouxe para o interior do movimento socialis-
ta uma valorização muito grande da dimensão do Estado (Vianna, 2005: 209-210).
Para além das diversas leituras interpretativas, Reis vai reforçar as ra-
zões para se ler Manuel Bonfim. Ele nos ensinou a recusar o “olhar dominado”
que nos caracteriza; foi contra teorias raciológicas; pensou o Brasil no contexto
latino-americano; combateu a história oficial; denunciou a destruição do meio
ambiente (que não era tema presente à época). Se ele tem todas essas qualida-
des, é preciso voltar à pergunta inicial: por que foi tão esquecido?
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artigo | lucia lippi oliveira
Segundo Reis, o texto de Bonfim é prenhe de emoção e intuição, a sua
linguagem é passional, furiosa mesmo, e a redundância de sua argumentação
acaba fazendo o discurso perder o rigor. Além desses problemas relativos à sua
retórica, Reis vai apontar outra questão de ordem política: seu discurso não
tinha destinatário. Se o remédio para a formação do povo brasileiro dependia
de uma educação popular, esta só seria capaz de ser implementada por um no-
vo Estado, então era preciso instaurar uma nova ordem política. E para tal era
preciso um movimento revolucionário vindo de baixo. E quem seria o sujeito
revolucionário, o protagonista social capaz de fazer tal mudança? Ainda segun-
do Reis, o exemplo mais próximo a ser seguido seria o modelo da revolução
mexicana (1910-1917) já que Manuel Bonfim não reconhecia valor no modelo
de Partido proposto pelas internacionais comunistas. Aqui também Bonfim se
manteve como um rebelde solitário!
Avançando em outra explicação, que não pretende se contrapor às an-
teriores e sim se somar a elas, gostaria de chamar a atenção para outro dado.
Para tentar entender os altos e muitos baixos na recepção do autor, é possível
registrar o longo espaço de tempo no qual ele produz e é publicado. Seu livro
primeiro é editado em 1905. Seus últimos três livros foram publicados em
1929, 1930 e 1931. Sobre o livro de 1935, o de Carlos Maul, paira uma dúvida
de autoria... Manuel Bonfim ainda teria outro livro, Cultura e educação do povo
brasileiro, obra que teria sido ditada a Joracy Camargo, que, publicada após sua
morte, foi premiada pela Academia Brasileira de Letras em 1933. Ou seja, ele
pode ser caracterizado como autor de grande longevidade, publicando em um
espaço de tempo de cerca de 30 anos. Como já mencionamos, entre a publica-
ção do primeiro e dos três últimos livros aqui mencionados ele publica livros
sobre pedagogia, psicologia e sobre a importância da educação popular, além
do livro de literatura infantil e didática.
Os autores que publicam em torno de 1900 não são os que estão publi-
cando em torno de 1930. Para relembrar: Manuel Bonfim nasce em 1868, morre
em 1932. Entre seus contemporâneos de publicação, ou seja, que estão escre-
vendo e publicando em torno de 1900, estão: Eduardo Prado (1860-1901); Silvio
Romero (1851-1914); Alberto Torres (1865-1917); Euclides da Cunha (1866-1909);
Nina Rodrigues (1862-1906). Ou seja, a maioria deles não sobreviveu à Primeira
Guerra nem acompanhou as transformações dos anos 1920. Os autores que
estão escrevendo e publicando em torno de 1930 são de uma geração mais
nova, vale citar como exemplos: Azevedo Amaral (1881-1942), Oliveira Vianna
(1883-1951) e Roquette-Pinto (1884-1954). O mesmo pode ser dito dos intelec-
tuais voltados para a educação. Bonfim faz parte dos que estão militando no
campo no início da República, não faz parte do movimento da Escola Nova.
Este texto busca ressaltar o quanto a leitura de um autor segue não
só atributos referentes ao conteúdo de seus livros (suas qualidades internas),
mas também a certas variáveis externas relativas aos pares que recebem a
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obra, que fazem sua crítica positiva ou negativa, que a divulgam. Os contex-
tos político, histórico e cultural também interferem na recepção de uma obra.
Na década de 1930 são publicados dois livros de autores que irão marcar
profundamente, a partir de então, as interpretações do Brasil até hoje. Casa-
-grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio
Buarque de Holanda. Diante dessas duas obras e figuras exponenciais, muitos
autores foram deixados de lado.
Por outro lado, há pontos semelhantes entre vários intérpretes do Brasil.
Cabe registrar que em Oliveira Vianna, em Manuel Bonfim, em Gilberto Freyre
e em Sérgio Buarque as explicações sobre o Brasil do século XX vão ser busca-
das no Brasil Colônia, a chamada América Portuguesa. Os males ou os traços
característicos do país, a cultura coletiva que teria brotado da casa-grande ou
do latifúndio, a personalidade coletiva lida como “cordialidade”, o clientelis-
mo, tudo isso teria derivado do tipo de colonização. Esse mergulho na história
colonial funcionaria no Brasil da mesma forma como o retorno à Idade Média
para a historiografia europeia.
RECAPITULANDO...
Os pontos centrais que ressaltamos: Manuel Bonfim fez parte da geração de
médicos chamados “missionários do progresso”, ocupados com a salvação do
país, embora discordasse da vertente hegemônica dessa época. Foi um dos
que recusou a vertente racialista de explicação dos males do Brasil. Defendeu
as qualidades do povo mestiço no início do século XX, bem antes da obra de
Gilberto Freyre nos anos 1930. Foi antiamericano quando os Estados Unidos se
apresentavam como alternativa à dominação europeia e ressaltou a semelhan-
ça do Brasil com os demais países da América Latina, quando historiadores
procuravam diferenciar o Brasil das “republiquetas” latino-americanas. Fez uso
da categoria de “parasitismo” para dar conta dos males da colonização. Ser
contra a corrente tem um custo (ser desacatado por Silvio Romero) que Bonfim
aceitou pagar ou teve que enfrentar! Segundo Aguiar (2000), Manuel Bonfim se
manteve afastado, teve um distanciamento crítico em relação a instituições
do campo intelectual de seu tempo. Rejeitou até mesmo o convite de Macha-
do de Assis para ser um dos fundadores da ABL. Andava, por assim dizer, na
contramão das tendências do seu tempo. Foi afastado ou se manteve afastado?
Passou a se engajar no campo educacional participando tanto da burocra-
cia de Estado quanto escrevendo obras sobre pedagogia e psicologia. Escreveu
também um livro com Olavo Bilac, de divulgação para crianças de suas ideias
sobre o Brasil e, nesse caso, acabou sendo apagado pela imensa visibilidade de
seu parceiro. Participa da criação e dirige a revista O Tico-Tico, tipo de empreendi-
mento que demorou muito a ser reconhecido pelo mundo intelectual e acadêmico.
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artigo | lucia lippi oliveira
Escreve livros que sintetizam suas ideias e expressam sua erudição na
virada da década de 1930. Aqui a figura que está escrevendo na mesma época
e pode ser considerada seu “seguidor” é Azevedo Amaral (que, como já foi
mencionado, escreveu o prefácio da segunda edição de A América Latina: males
de origem, s.d: VII-XIII), autor também “esquecido” pela geração que vai explicar
o Brasil a partir de Gilberto Freyre e de Sérgio Buarque de Holanda.
Pode-se pensar em diferentes linhagens de recuperação de Manuel Bon-
fim: a da crítica literária, que tem Silviano Santiago, Flora Süssekind e Roberto
Ventura como expoentes; a da antropologia interpretativa da América Latina,
que teve Darcy Ribeiro como figura máxima; e, por fim, a linhagem sociológica
que ganha visibilidade a partir do livro de Aluísio Alves Filho e que também se
fez presente em Octavio Ianni e André Botelho. É nesta última que se encon-
tram aqueles que vão lembrar e valorizar a participação de Bonfim em ativida-
des ligadas à educação popular. Sua integração ao grupo que, sob a liderança
de Elysio de Carvalho, cria, em 1904, a Universidade Popular de Ensino Livre
ligada ao Partido Operário Independente, com intelectuais como Evaristo de
Moraes, Fábio Luz, Felisberto Freire, José Veríssimo, Pedro Couto e Rocha Pombo.
Entre esses intelectuais de esquerda no início do século XX está, por exemplo,
Antonio Evaristo de Moraes (1871-1939), que em 1890 participou da criação do
Partido Operário, primeira organização de caráter socialista no Brasil. Em 1902
funda também o Partido Socialista, que se filia a uma internacional socialista.
Evaristo de Moraes foi também cofundador da ABI em 1908; em 1910 defendeu
os marinheiros rebelados na Revolta da Chibata sendo advogado de João Cân-
dido. Especializou-se na defesa dos trabalhadores, o que o fez participar do
Ministério do Trabalho no governo Vargas e colaborar na elaboração das Leis
do Trabalho na década de 1930.
Essa militância socialista a favor do povo ou do operariado, que aconte-
ce antes da existência de um partido comunista no Brasil, também não costu-
ma ser muito lembrada e, principalmente, valorizada. Bonfim está mencionado
na História das ideias socialistas no Brasil, de Vamireh Chacon (1965), mas, como
já foi mencionado, até essa data ainda não tinha conseguido ser incorporado
ao panteão de autores nacionais.
E a relação de Caio Prado Júnior com Bonfim? Pode-se dizer que o seu
“sentido da colonização” compartilha com Bonfim a ideia do peso da coloniza-
ção sobre o rumo a ser trilhado pelo Brasil depois da dita independência. Por
outro lado, podemos imaginar que Caio Prado Júnior também não se sinta con-
fortável quando se defronta com o uso, por parte de Bonfim, da categoria “para-
sita” e do conceito de “parasitismo” que migra do campo biológico para o social.
Foi necessário que outras vozes nos anos 1980 começassem a reler o
pensamento social no Brasil e recuperassem a originalidade das análises de
Manuel Bonfim, valorizassem o pioneirismo de sua argumentação, principal-
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Lucia Lippi Oliveira é doutora em Sociologia pela Universidade
de São Paulo (USP). Atualmente, é professora associada do Programa de
Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais do CPDOC/FGV-RJ.
Realizou pesquisas no campo de pensamento social no Brasil e sobre as
origens da sociologia no Rio de Janeiro. Pesquisou sobre o papel da fron-
teira na construção da identidade nacional no Brasil e nos Estados Unidos
e estudou as relações entre a cultura nacional e a cultura dos imigrantes.
Dedica-se a desenvolver projetos sobre patrimônio, cultura e identidade
regional. Foi bolsista da Capes/Fulbright para pós-doutoramento na Bro-
wn University em 1993-1994, foi coeditora da revista Estudos Históricos do
CPDOC e tem bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq.
mente no livro publicado no início do século XX no qual ele recusa a explicação
racialista e se apresenta como um precursor de um nacionalismo “materialis-
ta”. O papel dos críticos literários Flora Süssekind e Roberto Ventura foi fun-
damental, já que não partiam para uma defesa ideológica do autor e sim para
a valorização de seus argumentos analíticos vis-à-vis os contemporâneos de
Bonfim. Esse processo só pôde avançar quando se tornou possível ter acesso
facilitado aos textos do autor. E isso só aconteceu quando suas obras foram
reeditadas a partir de 1993 pela Editora Topbooks.
Em junho de 2013, ao ver os diferentes comentários a respeitos dos
movimentos das ruas no Brasil, encontrei uma entrevista com o sociólogo
catalão Manuel Castells na qual ele fala dos políticos como “burocratas pregui-
çosos” e menciona a rápida circulação das mensagens nas redes sociais como
“distribuição viral”. Se traduzirmos “burocratas preguiçosos” por “parasitas” e
considerarmos o uso da categoria “vírus”, veremos que, ontem e hoje, o mun-
do biológico, bactérias e/ou vírus, assim como a genética, são centrais como
modelos científicos ou como metáforas em nossa forma de explicar o mundo,
inclusive o social.
Recebido em 11/03/2015 | Aprovado em 14/09/2015
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NOTAS
1 Cabe desde já uma primeira observação sobre a grafia do
seu nome. Os textos mais antigos conservam a grafia ori-
ginal, os mais recentes a atualizam e aparece como Ma-
nuel Bonfim, outros ainda Manuel Bomfim. Vou atualizar
a grafia.
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artigo | lucia lippi oliveira
Palavras-chave
Manuel Bonfim;
Interpretação do Brasil;
Antilusitanismo;
Ensino da história para
criança;
Recepção da obra;
Keywords
Manuel Bonfim;
Interpretations of Brazil;
Anti-Lusitanism;
Historical education
for children;
Reception.
MANUEL BONFIM: AUTOR ESQUECIDO
OU FORA DO TEMPO?
Resumo
O artigo analisa a recepção da obra de Manuel Bonfim
circunscrevendo-a no tempo e no espaço. Para fazer
isso, acompanho como Manuel Bonfim tem sido lido
desde o lançamento de seu primeiro livro em 1905
e procuro entender os momentos de esquecimento
e de reconhecimento de seu pensamento. A postura
nacionalista do autor, sua análise sobre a América Latina,
sobre o parasitismo ibérico, a defesa do ensino da história
pátria são capítulos da trajetória de Bonfim. Para entender
o sucesso ou o esquecimento de um autor ou de uma obra
deve-se atentar à sua recepção para além do possível
valor intrínseco de seu conteúdo. Assim, a aceitação
ou o reconhecimento de um autor depende não só das
qualidades de suas ideias e de seu texto, mas também de
variáveis relacionadas ao campo intelectual existente e do
qual o autor faz parte.
MANUEL BONFIM: A WRITER OUT OF MIND
OR OUT OF TIME?
Abstract
The article analyses the reception of the work of Manuel
Bonfim, circumscribing it in time and space. I follow the
readings of Manuel Bonfim’s works since his first book was
published in 1905, and I seek to understand the periods
in which his work was either forgotten or remembered.
His nationalist posture, his analysis of Latin America,
of Iberian parasitism, the defence of teaching national
history – all of these are chapters in the career of Bonfim.
In order to understand the success or neglect of an author
or work, we must look beyond intrinsic value and pay
attention to reception. The acceptance or recognition of
an author thus depends not only on the quality of his or
her ideas and of his texts, but also on variables related
to the prevailing intellectual field in which the author is
implicated.
POR UMA POLÍTICA DA ESTÉTICA EM MÁRIO DE ANDRADE: EXPRESSIONISMO E INFÂNCIA
Alejandra Josiowicz I
I Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de
Janeiro, Brasil
Este artigo propõe considerar a cena da infância1 em Mário de Andrade a partir de
dois níveis ou esferas de atuação distintos: por um lado, em sua intervenção polí-
tico-cultural e, por outro, em sua produção literária. Em ambos os níveis, examina-
-se em Mário de Andrade uma “política da estética”: uma conjunção de preocupa-
ções sociais e raciais, interesses etnográficos e reflexões estéticas em torno da in-
fância.2 Em primeiro lugar, no nível de sua atuação político-cultural, Mário de An-
drade se relaciona com os reformadores sociais de seu tempo, os quais pensaram
a criança como receptora de políticas médicas, sociais ou jurídicas, e como núcleo
da formação da cultura brasileira. Ao mesmo tempo, se diferencia de outros artis-
tas e escritores de vanguarda porque, dadas as suas investigações de etnografia e
de arte infantil, concebe a expressão estética da criança não de modo puramente
pulsional, transgressor e inconsciente, mas como um artista expressionista, que
intervém nas leis da representação através de uma força poético-mítica própria,
a partir da qual seria capaz de criar uma arte brasileira futura. Em segundo lugar,
no nível de sua produção literária, Mário de Andrade faz da cena de infância e
adolescência um modo de intervenção na linguagem estética e na hermenêutica
do social: o infantil implica a incorporação de temas e linguagens populares e de
outros considerados banais ou vulgares e, por sua vez, aponta para as hierarquias
raciais, sociais e de gênero que estruturam o social. Em seus múltiplos níveis
estético-políticos, a infância em Mário de Andrade revela a marca do excluído e se
orienta à transformação das hierarquias estéticas e da representação.
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“Piá não sofre? Sofre” – relato que Mário de Andrade publica primeiro em 1926
e reelabora em 1944 como parte da seleção que intitula Os contos de Belazar-
te3 – conta a história de Paulino, criança de quatro anos, filho de um mulato
e de uma imigrante italiana, que vive em um bairro industrial da periferia de
São Paulo. Preso seu pai, sua mãe, lavadeira, sem dinheiro, o entrega à avó
paterna, que não consegue dissuadi-lo do vício adquirido: comer terra, o que
o deixa cada vez mais doente e o “aniquila”. Numa tarde, sentado na calçada
vendo passar os operários que saíam da fábrica, reconhece sua mãe, vestida
com elegância, maquilada e penteada, e a chama, exaltado: “Mamma!”. A mãe
corre para abraçá-lo e chora: a imagem do filho, negligenciado e doente, a faz
titubear – deixá-lo novamente com a avó ou levá-lo consigo –, mas se conven-
ce de que seria impossível continuar com a vida que leva, que seu filho está
bem como está e decide ir embora, “para não pensar nele nunca mais”. Dá-lhe
um beijo na boca cheia de muco por causa do catarro, “Figliouolo”, diz a ele,
e parte. Paulino a vê desaparecer na distância, sentado no degrau da calçada:
“As cores da tarde iam cinzando mansas. Paulino encostou a bochecha na pal-
minha da mão e meio enxergando, meio escutando, numa indiferença exausta,
ficou assim. Até a gosma escorria da boca aberta na mão dele. E depois pingava
na camisolinha. Que era escura para não sujar” (Andrade, 2008b: 114). A figura
da criança doente, sentada sozinha, olhando o horizonte com ar ausente, pen-
sativo, consequência do abandono moral e material da mãe prostituída, quero
propor, revela o dilema estético-político da representação, a “política da esté-
tica” em Mário de Andrade. A citação mostra Paulino em um plano ampliado,
cinematográfico, apoiando a bochecha na mão, no crepúsculo do bairro indus-
trial paulista. O conto, poder-se-ia pensar, funciona como uma ferramenta de
visibilizacão daquilo que ficou fora de foco, excluído do laço social. O conto
viria a ser uma reparação simbólica do abandono que sofre a criança, denúncia
e impugnação do desamparo por parte da mãe, que se convence de que está
bem como está e decide partir para não pensar nele nunca mais. No entanto, o
foco final na saliva mucosa (“gosma”), caindo primeiro sobre a mão de Paulino
e depois sobre a camisolinha, revela que existe um nível de análise adicional.
O líquido é um sintoma de seu padecimento – produto da tosse que o vem
aniquilando lentamente, tal como o tifo que matou seu irmão pequeno –, mas
o catarro cai sobre a roupa de Paulino sem deixar marcas, dada a opacidade da
superfície da camisola, intencionalmente escura “para não sujar”. Ao assinalar
a intenção de ocultar o sintoma, o texto ressalta sua “política da estética”: não
se trata simplesmente de visibilizar um referencial excluído, mas sim, mais
radicalmente, de intervir na partilha mesma do sensível, na relação entre o
percebido e o dito, e nas interpretações do social. “Piá não sofre? Sofre” faz da
criança pobre não um referencial passivo, mas um modo de reconfigurar as
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artigo | alejandra josiowicz
formas de perceber e experimentar o social, politizando ao mesmo tempo o
visível, sua visibilidade e os próprios sujeitos participantes destes processos.
Se Peter Bürger já havia sugerido que a obra de arte vanguardista, de-
finida por sua não organicidade, se propunha devolver à experiência estética
sua função social, superando assim a dicotomia entre arte pura, autônoma, e
arte política (Bürger, 1984: 91), o conceito de “política da estética”, do teórico
Jacques Rancière, leva estas elaborações ainda mais além. A “política da es-
tética”, segundo Rancière, implica a intervenção da estética na “partilha do
sensível”: no recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, do
falado e do escrito (Rancière, 2011). Trata-se de uma reconfiguração da expe-
riência e da hermenêutica do corpo social, que consiste no enfrentamento de
um novo regime de expressão – que desestabiliza a hierarquia entre lingua-
gens nobres e baixas – e um princípio democrático que considera a promoção
social e política dos seres “ordinários”. Essa democratização ao mesmo tempo
política e estética determina a ruptura da relação hierárquica entre formas e
conteúdos, e inaugura “uma nova relação entre o ato da palavra, o mundo que
este configura e as capacidades daqueles que povoam esse mundo” (Rancière,
2011: 29). Desse modo, delimita o sentido mesmo da comunidade, as formas
de sua visibilidade e de sua organização, revelando quem pode participar do
comum (Rancière, 2006).
Porém, são os debates e elaborações ao redor do expressionismo4 que
permitem dar conta do sentido da “política da estética” em Mário de Andrade.
Em um debate sobre o expressionismo que mantiveram, por volta de 1938, na
revista Das Wort, Marc Bloch, Georg Lukács e Bertold Brecht, os teóricos discuti-
ram a relação entre vanguarda, realismo e crítica social, isto é, o papel históri-
co da vanguarda na modernidade. Enquanto Lukács denuncia o expressionismo
por sua “estética decadente” – uso não referencial e puramente expressivo
das palavras, perspectiva subjetivista microscópica, uso “atávico” do folclore,
demolição do real, caos e montagem – que resultaria em uma mistificação da
realidade, parasitária da ideologia burguesa (Bloch et al., 2002), Bloch o defende
como um modo de conciliar o substrato popular, folclórico – da arte “bárbara”
das crianças, dos presos, dos doentes mentais e dos analfabetos – com a elabo-
ração formal da arte moderna (Bloch et al., 2002). Nesses mesmos anos, Brecht
também recupera o legado do expressionismo como resolução do dilema entre
arte experimental de vanguarda e arte popular, conectado com as massas e
aliado do realismo (Bloch et al., 2002).
Atraído pelo idioma alemão, assim como por suas leituras de revistas
como Der Sturm (1924-1924) ou da francesa Europe (1923-1929) e por antologias
literárias, Mário de Andrade se interessou pelo expressionismo (Mello e Souza,
1980: 265), em relação com as discussões sobre o realismo e a busca de uma
nova expressividade estética.5 No artigo “Questões de arte”, afirma que para
evitar os vícios de uma arte institucionalizada, intelectual e individualista, o
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expressionismo deve partir de um realismo “deformado” – não orgânico –, as-
sim como de uma exploração do “elemento social”, “popular”, para recuperar
força expressiva e conseguir uma “sensorialidade mais legitimamente plástica”
(Andrade, 1995: 386). Na mesma direção, no artigo “Oswald de Andrade: Pau
Brasil, sans pareil, Paris, 1925”, afirma: “Dadá é niilista e abandona a realida-
de pela imagem. Expressionismo é universalista e gigantiza a realidade pela
deformação. Pau Brasil é nacionalizante e realista, une a imagem à realidade
tornando aquela compreensível e sem deformar expressionistamente esta”
(Andrade, 2003: 79). Se a estética realista de Pau Brasil une a imagem à reali-
dade sem deformá-la, resultando em uma estética intelectual, compreensível,
“nacionalizada”, o expressionismo agudiza a relação com o real, a intensifica,
através de uma estética deformada e universal.
Por outro lado, como afirmou Alfredo Bosi, o expressionismo represen-
ta, em Mário de Andrade, um modo de transcender a rigidez dos gêneros: o
realismo positivista, infestado de clichês, com sua psicologia de tipos, ou o
regionalismo romanesco da República Velha e a retórica neoparnasiana (Bosi,
2003). Fundamentalmente, tal como argumentou Telê Porto Ancona Lopez, o
expressionismo implica a união do sentido estético com a crítica social: pro-
porciona uma estética do periférico, voltada para o imigrante, o operário, as
vidas minguadas ou medíocres, o analfabeto, o marginal e a criança, aqueles
que descobrem em sua condição de “eterno inconsciente” uma visão “inocen-
temente poética do drama social do Brasil popular” (Lopez, 1996: 32).
Inspirado por um artigo de arte expressionista que lê em 1919 em Deutch
Kunst und Dekoration onde aparecem reproduções de arte infantil (Lopez, 1988)
e por seu interesse na bibliografia teórica sobre o desenvolvimento do senti-
do plástico das crianças – lê Georges Rouma, Le langage graphique de l’enfant
(1913), e Georges Luquet, Le dessin enfantin (1927) e L’art primitif (1930) –, Mário
de Andrade investigou o expressionismo da visão estética da criança. Além
disso, como parte de sua investigação etnográfica mais ampla, se interessou
pela cultura popular oral infantil: compilou, recebeu de outros e cotejou com
suas próprias memórias canções de ninar e cantigas provenientes do Norte,
Minas Gerais, São Paulo, e Rio Grande do Norte, assim como outras de origem
portuguesa.6 Dada sua conjunção de uma perspectiva estética com uma social
e etnográfica, Mário de Andrade dialogou, ainda que sem nomear diretamente
seus interlocutores, tanto com os outros escritores do modernismo brasileiro
que experimentaram com uma estética infantil, como com os médicos, psi-
quiatras, juristas e outros reformadores sociais que se preocuparam com a
infância como realidade social do Brasil daquelas décadas.
Oswald de Andrade, como afirmou Haroldo de Campos, propôs “uma
espécie de jardim de infância da expressão” (Campos, 1981: 11), e em seu Pri-
meiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, de 1927 – cuja capa é um
desenho naïf que representa diferentes estados do Brasil feito por Tarsila do
803
artigo | alejandra josiowicz
Amaral – simulou a caneta desajeitada, tartamuda e lúdica da criança, para
construir uma sátira da geografia política e da história nacional brasileiras. A
criança-aluna enunciadora de Oswald de Andrade transgride normas escolares
e cânones literários, satiriza os símbolos pátrios e põe em cena – através do
rabisco, da oralidade dialetal da linguagem imigrante e do erro ortográfico – a
experimentação com a infância como signo do lúdico, do inconsciente e do
anárquico (Antelo, 1991). Por sua vez, Flávio de Carvalho, como membro do
CAM (Clube dos Artistas Modernos), organiza em 1933 a “Semana dos loucos e
das crianças”, que chama a atenção do meio artístico e cultural de São Paulo
para a relação entre arte moderna, crianças e sujeitos alienados. Diz Flávio
de Carvalho:
Os verdadeiramente grandes artistas se parecem com as crianças nas suas in-
venções, possuem uma espontaneidade inconsciente em cor e forma, sem a pre-
ocupação dos trucs dos prestidigitadores das escolas de belas artes. A função dos
professores de desenho e de escolas de belas artes tem sido quase sempre abafar
ou matar qualquer surto de originalidade que aparece na fantasia da criança. In-
divíduos quase sempre medíocres, estes professores gostam de impor a criança a
sua personalidade gasta e empoeirada (Carvalho apud Coutinho, 2002: 29).
A criança aparece aqui como artista anárquico, inconsciente, espon-
tâneo, alheio a toda educação técnica. Segundo Carvalho, o influxo da escola,
dos docentes e dos cânones seria indefectivelmente repressor e daninho, res-
tringindo a originalidade da criança, impondo clichês e estereótipos. Tanto
Oswald de Andrade quanto Flávio de Carvalho se diferenciam da exploração da
infância em Mário de Andrade, para quem a criança constituía não um princí-
pio anárquico de espontaneidade, mas o depositário e partícipe da criação de
uma nova cultura brasileira.
Por outro lado, desde a proclamação da República e do início do século
XX no Brasil, a chamada “causa da salvação das crianças” do “abandono mo-
ral e material” se tornou parte de uma missão patriótica, de uma verdadeira
cruzada empreendida por reformadores a partir da sociologia, da psicologia,
da psiquiatria e da antropologia, em busca das causas da criminalidade, do
abandono e da mortalidade infanto-juvenil (Rizzini, 2002: 173). A partir da
década de 1920, com o surgimento do movimento da escola nova no Brasil e,
mais tarde, com as políticas instituídas pelos governos de Getúlio Vargas, a
categoria jurídica e penal da “menoridade” (na qual a criança pobre era es-
tigmatizada, considerada uma ameaça para a ordem social) cedeu espaço a
uma caracterização social que apostou na educabilidade da natureza infantil,
abandonou as características deterministas da “anormalidade” e deu lugar a
uma visão otimista da educação como regeneração de populações antes con-
sideradas não aptas (Carvalho, 1997). Esse processo foi acompanhado por um
movimento mundial e hemisférico a favor dos direitos da criança: em resposta
à Primeira Guerra Mundial e à depressão econômica mundial de 1929, os países
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latino-americanos promulgaram seus Códigos de Menores – Brasil em 1927,
Uruguai em 1934, Argentina em 1932 – e organizaram congressos nacionais,
internacionais e interamericanos para a proteção da infância, nos quais se
colocou uma ênfase específica nas responsabilidades dos Estados nos cuidados
com as crianças (Guy, 1998: 272). A centralidade da infância nos debates sobre
a nacionalidade e a questão social a tornou objeto de interesse para um inte-
lectual como Mário de Andrade que, no entanto, concebeu de modo particular e
específico o papel da população infantil em uma cultura brasileira em gestação.
II
Para o grupo de intelectuais que atuaram no Departamento de Cultura e Re-
creação da Prefeitura de São Paulo entre 1935 e 1938, durante a gestão do
Prefeito Fábio Prado, o desenvolvimento de políticas culturais, iniciativas ar-
tísticas e educacionais teve um lugar central.7 Como a crítica já assinalou, o
Departamento de Cultura e Recreação de São Paulo, assim como a atuação do
próprio Mário de Andrade nele, formaram parte de um processo mais amplo
de reconfiguração de forças econômicas e políticas, tanto a nível nacional
quanto estadual.8 Nesse cenário de radicais transformações político-sociais,
esses intelectuais conceberam a política cultural como um modo de interven-
ção social e de formação da cidadania. Conscientes do caráter inovador do
projeto de construção institucional, eles se apoiaram no aparato estatal como
instrumento de mudança sociocultural.
Como Diretor do Departamento de Cultura e Chefe da Divisão de Expan-
são Cultural da Prefeitura de São Paulo, Mário de Andrade efetuou uma série
de políticas públicas orientadas ao desenvolvimento artístico infantil e iniciou
uma investigação etnográfica e sociológica das crianças paulistas.9 Os Parques
Infantis, um dos programas no qual a presença de Mário de Andrade foi mais
destacada, eram áreas de recreação instaladas na proximidade de fábricas,
escolas ou bairros populares, onde as crianças filhas de operários levavam a
cabo práticas esportivas, recebiam assistência médica, higiênica e nutricional,
e participavam de eventos artísticos, exibições de cinema educativo, concertos,
espetáculos e concursos de arte dramática.10 Na “Ata de Criação” dos Parques
Infantis, enumera-se entre seus objetivos: “propagar a prática de brinquedos
e jogos nacionais, cuja tradição as crianças já perderam ou tendem dia a dia
a perder”, “promover a prática de todos os jogos que, pela experiência univer-
sal, forem dignos de ser incorporados ao patrimônio dos jogos inspirados nas
tradições locais e nacionais” e
promover, com a colaboração do corpo docente das instituições escolares muni-
cipais, estaduais e particulares, um inquérito permanente de pesquisas “folklóri-
cas”, e, mais geralmente, etnológicas, entre a população escolar, recolhendo assim
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as tradições de costumes, superstições, adivinhas, parlendas, histórias, canções,
brinquedos etc., sendo os resultados desses inquéritos devidamente selecionados,
organizados e catalogados em seções distintas, e publicados na Revista do Depar-
tamento (Andrade apud Faria, 2002: 139).
Trata-se de uma tríplice tarefa: em primeiro lugar, difundir entre as
crianças a cultura popular nacional e regional que se considera perdida ou
esquecida; em segundo lugar, incorporar as tradições “universais” trazidas
pelos filhos de imigrantes; e, em terceiro, investigar, desde um ponto de vista
etnográfico, as crianças como sujeitos portadores de cultura oral popular – de
superstições, adivinhações, canções, jogos e histórias. A criança aqui aparece
como um dinâmico portador de cultura, receptor, herdeiro e depositário cul-
tural, que reatualiza um substrato cultural tradicional e é ao mesmo tempo
portador e beneficiário da construção de uma nova cultura brasileira.11
Nessa direção, no discurso comemorativo do dia de fundação de São
Paulo, Andrade afirma:
Nos jardins [de São Paulo] encontrareis recintos fechados com instrutoras, dentis-
tas, educadoras sanitárias dentro. São os parques infantis onde as crianças prole-
tárias se socializam aprendendo nos brinquedos o cooperativismo e a consciência
do homem social. [...] As tradições ressurgem e com elas os costumes do passado.
São crianças tartamudeando em torno duma Nau Catarineta de vime as melodias
que seus país esqueceram, e nos vieram de novo da Paraíba, do Rio Grande do
Norte e do Ceará (Andrade, 1936b: 273).
Os Parques Infantis aparecem aqui, por um lado, como âmbito de prepa-
ração e formação dos sujeitos de uma ordem social futura e, por outro, como
espaços de reatualização da cultura popular brasileira regional, encenada no
corpo e na voz das crianças. Mário de Andrade se refere aqui à representa-
ção do bailado tradicional de origem portuguesa “A Nau Catarineta”, realizada
pelos filhos de imigrantes “italianos, espanhóis, russos, húngaros” do Parque
Infantil Pedro II, por ocasião do I Congresso da Língua Nacional Cantada, para a
qual se utilizou material folclórico pertencente ao acervo da Discoteca Pública,
adaptado para a encenação infantil. O significativo do evento é que atualiza
o papel da criança como receptora, portadora e sujeito da construção de uma
cultura brasileira nova que incorpora a cultura urbana, cosmopolita e regional.
Assim, fundamenta em uma entrevista para O Estado de S. Paulo:
Não será esse o mal maior do Brasil? Essa ausência de um “homem brasileiro”,
de um ser uno e coletivo que persista dentro de todos nós e reja a nossa unidade
nacional? O Departamento não pode ficar indiferente a esse problema capital, que
deve ser problema capital para todos os organismos oficiais do país. E o traba-
lho só pode ser feito na argila das crianças e dos moços. Bater no bronze duro é
querer transformar Pinheiro Machado em Carlos Gomes. Mas infelizmente é 3As
crianças e os jovens aparecem como depositários da possibilidade de construção
de uma nova cultura brasileira, “argila” de criação de um “ser uno e coletivo” que
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oriente a unidade nacional. Dada a “ausência de um ‘homem brasileiro’”, a crian-
ça se torna um núcleo fundamental da constituição de uma nova coletividade.
A representação do bailado tradicional revela-se como um modo de reativar, de
trazer ao presente, no corpo das crianças, a cultura brasileira regional popular e
transformá-la em elemento ativo de construção cultural.
Como Diretor do Departamento de Cultura, Mário de Andrade também
organizou um concurso de desenho entre as crianças frequentadoras dos Par-
ques Infantis e da Biblioteca Municipal, dando orientações muito precisas às
instrutoras de que não deveriam interferir com sugestões ou “muito menos”
correções nos desenhos, e que deveriam evitar as cópias.12 Com os desenhos
resultantes do concurso, somados a outros que compilou ou foram entregues
por amigos, Andrade organizou uma verdadeira coleção de arte infantil com
mais de 2.000 desenhos provenientes de todo o Brasil.13 Mais tarde, devido à
reconfiguração do horizonte político posterior ao golpe de 1937, teve que deixar
seu posto no Departamento de Cultura e se mudou para o Rio de Janeiro, onde
ofereceu um curso de Filosofia e História da Arte na recém-criada Universida-
de do Distrito federal (UDF), no marco do qual teorizou sobre a capacidade de
expressividade plástica da criança, através de uma teoria de inspiração antro-
pológica (filo e ontogenética) da arte, em paralelo e contraste com o primitivo.14
Nessas aulas, após um balanço da bibliografia teórica sobre o desen-
volvimento das possibilidades artísticas da criança, Andrade refuta a teoria
da espontaneidade e originalidade da arte infantil, dada a sua natureza “an-
titécnica”, “ocasional”, “imitativa” e seu caráter rotineiro e repetitivo. Ainda
que fosse sensível à contemplação estética, a criança não desenvolveria uma
verdadeira capacidade artística até os 8 ou 9 anos de idade, quando a educação
e imitação do adulto estimulam o desenvolvimento da técnica de reprodução
realista. Se estas reflexões, de caráter psicológico e etnográfico, pareciam re-
futar toda relação entre arte moderna e desenho infantil, Andrade passa então
a uma análise detida dos desenhos provenientes do concurso organizado por
ele. Começa com uma comparação sociológica entre os desenhos feitos pelas
crianças das diferentes camadas sociais da população paulista, a partir da qual
reflete sobre a relação entre origem social e capacidade estética de expressão
nos diferentes grupos. E, logo depois de descrever em detalhe suas caracterís-
ticas artísticas, afirma que a arte da criança deve ser pensada em relação com
o expressionismo:
O expressionismo... expressivo é o domínio legítimo da arte desenhística infantil.
O seu realismo é de natureza expressionista. É por este seu expressionismo de
realização que o “realismo visual” da criança já artista persevera na realidade de
um “idealismo”, o que Luquet chamou de “realismo intelectual”. A criança, mesmo
artista, já obedecendo à perspectiva e outras leis do realismo visual, jamais copia
a natureza. A sua tendência à imitação é sempre coada através de um sentimento
lírico, ou milhor (sic), mítico, das coisas, antirrealista por essência, e que a tudo
reveste de uma violenta e inocente poesia (Andrade, 1966: 76).
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Este paralelo entre arte infantil e arte expressionista se funda no fato
de que, inclusive na etapa de culminação da capacidade artística infantil – o
“realismo visual”, dado pelo uso da perspectiva e da intenção imitativa do real
–, perseveraria na arte da criança um sentimento lírico, mítico, antirrealista. A
arte da criança expressionista quebra as leis de um realismo orgânico ou refle-
xo, e agudiza o efeito do real através de uma perspectiva subjetivista, poética,
mítica, dado que “a tudo reveste de uma violenta e inocente poesia”.
Por outro lado, nas crônicas que escreveu para o Diário Nacional entre
1927 e 1932, Mário de Andrade, conhecedor de experiências como as “escolas
ao ar livre” desenvolvidas no México por José Vasconcelos,15 orientou suas
pesquisas estéticas em direção a suas preocupações sobre a cultura brasileira,
refletindo sobre os meios pedagógicos mais adequados para estimular a ex-
pressão estética infantil (Andrade, 1976). Assim, na crônica “Pintura Infantil”,
sobre uma exposição de pinturas infantis das turmas dirigidas por Anita Mal-
fatti,16 sublinhou a importância da formação do sentido estético das crianças,
concluindo que:
Mesmo que não atinjamos os resultados perfeitamente extraordinários do ensino
plástico japonês ou das escolas ao ar-livre mexicanas, e não me parece impossível
igualá-las, todo e qualquer ensino tendente a desenvolver a imaginação criadora
tem de ser sistematizado muito entre nós. [...] Pouco me interessa a criação de
gênios individuais. Mas tudo nos leva a sermos um povo de artistas (Andrade,
1976: 279).
O desenvolvimento da “imaginação criadora” nas escolas de arte cons-
tituiria uma tarefa central para a constituição de uma cultura não de “gênios
individuais”, e sim de criadores coletivos, “povo de artistas”. É neste sentido
que se deve entender o expressionismo da arte da criança em Mário de Andra-
de: como uma conjunção de interesses estéticos, etnográficos e sociais, nos
quais a infância aparece como eixo de uma renovação sociocultural.
III
Mário de Andrade também indagou a cena da infância em sua obra literária.
Assim, o herói sem caráter de Macunaíma (1928), protagonista mítico, quase in-
dígena, é uma versão monstruosa da criança: com sua “aura de espontaneidade
polimorfa”, Macunaíma nasce feio, se nega a falar até os seis anos, é grosseiro
e pornográfico, tem constante apetite sexual e carece de todo sentido de res-
ponsabilidade e de coesão moral (Bosi, 2003: 202). Além disso, em seus relatos,
a infância encena realidades muitas vezes opostas, mas convergentes entre
si: enquanto em “Piá não sofre? Sofre” (1926, 1934, 1943, 1944), Paulino for-
ma parte da paisagem social da periferia paulista – das vidas marginalizadas,
dos imigrantes, dos operários e das prostitutas – em “Tempo da camisolinha”
(1939-1943), a criança aparece através de uma estrutura de ficção autobiográ-
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fica, como objeto autorreferente do eu que rememora a iniciação traumática
no âmbito de uma família da próspera burguesia paulista. Porém é em Amar,
verbo intransitivo (1927-1944) onde a cena de infância ou adolescência adquire,
de modo ainda mais premente, o caráter de uma “política da estética”: o texto
transforma o enredo banal da iniciação sexual do filho de uma família burgue-
sa em uma revelação paródica das hierarquias culturais, sociais e raciais e dos
mecanismos de exclusão no interior da sociedade brasileira.
Amar, verbo intransitivo, ao mesmo tempo sátira psicológica e “idílio”
experimental, ocupa um lugar de destaque dentro da prosa de Mário de An-
drade que realiza uma pintura sarcástica da família burguesa. O texto tem um
narrador cujo tom é o de um investigador interessado na sociologia e na psi-
cologia brasileiras, que interpreta os acontecimentos e os personagens, ainda
que com um resultado digressivo, ambivalente e metafórico. O texto incorpora
o “material” linguístico brasileiro, como diz Mário de Andrade no “Posfácio”,
não com um propósito realista ou referencial, e sim “num sentido translato,
metafórico”: “A apropriação subconsciente das palavras para que elas tenham
realmente uma função expressiva e caracteristicamente nacional” (Andrade,
2008a: 151). Como no método psicanalítico freudiano, a língua coloquial falada
funciona como uma revelação do subconsciente nacional, com suas fantasias,
seus atos falhos, seus “lugares-comuns modismos brasileiros expressionais”
(Andrade, 2008a: 153).
Se, como argumentou a crítica, a forma experimental do “idílio”, em ce-
nas que não se estruturam em capítulos nem respeitam uma hierarquia mais
além do fragmento, segue modelos expressionistas (Lopez, 2008a: 162),17 tam-
bém o liga ao expressionismo o trabalho com o subconsciente brasileiro a partir
do vocabulário tanto urbano quanto rural – “erros diários de conversação, idio-
tismos brasileiros e sobretudo psicologia brasileira” (Moraes, 2001: 137) –, o inte-
resse no folclore, o uso não referencial da linguagem, a perspectiva subjetivista
e a paródica reavaliação da psicanálise. Mais além das referências explícitas a
esse estilo ao longo do texto, a estética expressionista determina seu caráter
de literatura falida, passageira, voltada para o presente – segundo diz Mário de
Andrade em carta a Manuel Bandeira (Moraes, 2001: 137). Trata-se de um texto
intransitivo, no sentido de uma ruptura com as regras da gramática e das leis da
representação, como indica o título e como foi elaborado por Jacques Rancière:
A literatura ou a pintura intransitivas significam, antes de mais nada, uma forma
de literatura ou de pintura que se libertou de sistemas de expressão que tornam
um tipo particular de linguagem, um tipo particular de composição, ou possi-
velmente um tipo particular de cor apropriados para a nobreza ou banalidade
de um tema específico […] Na literatura, isso começou com a ideia de que não
era necessário adotar um estilo particular para escrever sobre nobres, burgueses,
camponeses, príncipes ou valetes. A igualdade dos temas e a indiferença relativa
aos modos de expressão precede a possibilidade de abandono de qualquer tema
em prol da abstração (Rancière, 2006: 53-54, tradução minha).
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artigo | alejandra josiowicz
Como texto intransitivo, Amar se libera das hierarquias da representa-
ção que fazem corresponder a banalidade ou a nobreza de certos temas a de-
terminados estilos de expressão e põe uma temática banal em pé de igualdade
com um estilo radicalmente experimental. Dita, assim, um regime de indife-
rença nos temas que se orienta, inclusive à abstração. O foco microscópico na
vulgaridade dos costumes, na psicologia e na fisiologia da família paulista, os
Sousa Costa, se conjuga assim com uma linguagem densamente experimental,
oral, subconsciente e antirrealista. Assim, Carlos Sousa Costa, o adolescente
de 15 anos para cuja iniciação sexual se contrata a Fräulein Elza, a governanta
alemã, é o epítome do “individuo normal”, incapaz de modificar seu destino,
pura sensação fisiológica, “ele não conseguirá ser mais do que uma simples
reação fisiológica” (Andrade, 1927):
Carlos não passa de um burguês chatíssimo do século passado. Ele é tradicional
dentro da única cousa a que se resume até agora a cultura brasileira: educação
e modos. Em parte enorme: má educação e maus modos. Carlos está entre nós
pelo incomparavelmente mais numeroso que inda tem no Brasil de tradicionalis-
mo “cultural” brasileiro burguês oitocentista. Ele não chega a manifestar o estado
bio-psíquico do indivíduo que se pode chamar de moderno. Carlos é apenas uma
apresentação, uma constatação da constância cultural brasileira. E se não dei
solução é porque meus livros não sabem ser tese. Não se consegue tirar do Amar,
verbo intransitivo mais que a constatação de uma infelicidade que independe dos
homens (Andrade, 1927: 9).
Como “constatação da constância cultural brasileira”, Carlos revela o
caráter insípido, vulgar, tradicional dos “modos” e da educação brasileira, sin-
toma do imobilismo da cultura brasileira geral. Carlos é um sujeito pré-mo-
derno, incapaz de modificar sua realidade: a vacuidade do enredo e das ações
do personagem – “todo o sucedido para o menino foi absolutamente inútil” –,
unido ao estilo modernista experimental, reforçam o caráter intransitivo do
texto, que põe em cena os indivíduos em sua imanência e vulgaridade.
Por outro lado, como adverte Mário de Andrade em um artigo de 1927,
a investigação da iniciação sexual de Carlos responde à sua leitura dos Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), de Sigmund Freud, em um experi-
mento paródico com a linguagem freudiana:
O livro está gordo de freudismo, não tem dúvida. E é uma lástima os
críticos terem acentuado isso, quando era uma coisa já estigmatizada
por mim dentro do próprio livro. Agora o interessante seria estudar a
maneira com que transformei em lirismo dramático a máquina fria de
um racionalismo científico. Esse jogo estético assume então particular
importância na página em que “inventei” o crescimento de Carlos, se-
guindo passo a passo a doutrina freudiana (Andrade, 1927: 9).18
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A exploração ao mesmo tempo literária e psicanalítica de Carlos fun-
ciona como uma sátira da concepção tragicamente cindida da subjetividade
– tanto da psicanálise freudiana e seu discurso científico sobre o eu, como da
autoanálise proustiana. O texto se refere ao freudismo como uma “criancinha”,
um bebê recém-nascido, incomodado e revolucionário da paz do lar – “mamava
que nem as outras, berrava sonoramente e trocava os dias pelas noites para
dormir” (Andrade, 2008a: 58) –, que revela a não concordância dos sujeitos con-
sigo mesmos, seu caráter de “misturas incompletas, assustadoras incoerências”
(Andrade, 2008a: 58), assim como seu “hermafroditismo anatômico” (Andrade,
2008a: 59). Isto se verifica no desenvolvimento sexual de Carlos, que aparece
como “perverso polimorfo”. Seguindo as observações de Freud nos Três ensaios,
a sexualidade quase infantil de Carlos aparece inicialmente como não orien-
tada a um único objeto sexual, nem condensada em uma única zona erógena:
todas as partes de seu corpo têm igual propensão à erotogeneidade, está domi-
nada pelo instinto da crueldade, é oral, canibal, sadomasoquista, exibicionista
e anal (Freud, 2000: 58). Carlos brinca violentamente com suas irmãs pequenas,
bate, empurra, aperta e incomoda, enquanto elas, por sua vez, o denunciam
com grunhidos e o mordem até fazê-lo sangrar. Seguindo a doutrina de Freud,
segundo a qual uma das fontes fundamentais do prazer infantil consiste na
excitação mecânica e lúdica em que as crianças se balançam, vibram e são
arremessadas violentamente, estimuladas pela velocidade, atividade muscular
e disputas verbais (Freud, 2000: 66), na família Sousa Costa as crianças cantam
e bailam constantemente, e entram em brigas físicas ou verbais. As meninas
aparecem sob uma sexualidade histérica, marcada pela sedução passiva e pela
debilidade, enquanto Carlos se atira pelas escadas como um filhote no cio:
— Mamãe! Mamãe! Olhe Carlos! O menino agarrara a irmã na boca do corredor.
Brincalhão, bem disposto como sempre. E machucador. Porém não fazia de propó-
sito, ia brincar e machucava. Cingia Maria Luísa com os braços fortes, empurrava-
a com o peito, cantarolando, bamboleando no picadinho. Ela se debatia, danando
por se ver tão mais fraca. Empurrada, sacudida, revirada. “Tatu subiu no pau...”
— Mamãe! Mamãe! Me largue, Carlos! Me laargue! Sacudida revirada, tiririca, socos.
— ... “Lagarto lagartixa / Isso sim é que pode ser” (Andrade, 2008a: 22).
O efeito rítmico, onomatopéico do texto emula a oralidade infantil e
caseira, das explosões corporais e emotivas das crianças. Trata-se de uma lin-
guagem antirreferencial, cheia de gerúndios e particípios, de verbos físicos,
de movimento e exclamações, que funciona por acumulação e repetição. A
linguagem coloquial, plena de conotações sexuais, revela o subconsciente da
família burguesa paulista e o coloca em relação com a cultura popular regional,
através do vocabulário da fauna e flora brasileiras e das referências à música
popular.19 Estas referências regionais e populares aparecem deformadas, tra-
balhadas de modo lúdico, despojadas de toda intenção realista, como formas
onomatopéicas que revelam uma carga inconsciente: “— Tu, turututu! parente
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artigo | alejandra josiowicz
do tatu e do urubu, pronto! — Então se eu sou parente do tatu e do urubu, você
é tatua misturada com urubua. [...] Mamãe, ahn... mamãe! — Que foi, Aldinha!
— Ahn... Carlos me chamou de tatua misturada com urubua...” (Andrade, 2008a:
77). A transposição literária da língua falada e o uso deslocado, metafórico, da
língua regional e popular buscam revelar, de modo satírico, as pulsões animais,
selvagens, incivilizadas da família paulista.
Além disso, Carlos, epítome do brasileiro, aparece como um sujeito em
muitos sentidos indefinido, como revela a seguinte “ficha pessoal”: “Carlos
Alberto Sousa Costa. Nacionalidade: Brasileiro. Estado Social: Solteiro. Idade:
Quinze (15) anos. Profissão: (um tracinho). Intenções: (um tracinho). Observa-
ções extraordinárias: (um tracinho) “REGISTRO DO AMOR SINCERO”” (Andrade,
2008a: 47). Apesar de ser um “amante sincero”, Carlos não tem profissão, nem
intenções, nem personalidade – no sentido em que Macunaíma é o “herói sem
nenhum caráter” –, e se define exclusivamente pelo fato de amar, de um modo
carente de qualquer proveito ou utilidade social:
Se alguém bota a mão no ombro, retira o corpo instintivamente. Se uma das irmãs,
irmãs nem tanto, camaradas, que Carlos não bate em mulheres, lhe dá a mão,
aperta até machucar. Aliás não corresponde ao aperto de mãos de ninguém. Aos
de alguma superioridade que estendem a mão pra ele, entrega dedos sem contato,
inertes, retos, que não se curvam pra apertar. Paralisia infantil. Nunca! Paralisia
de Carlos. E doença particular. Quero mostrar, com o caso de ombro e o da mão,
que ele não goza (nem mesmo as percebe) com as pequenas e mais ou menos
mascaradas sensualidades que entretêm as fomes amorosas de todos, da aurora
ao se deitar (Andrade, 2008a: 48).
Em parte por sua juventude – sua sexualidade ainda não completa-
mente desenvolvida –, mas também por sua própria personalidade, Carlos é
esquivo, lábil, tímido ou excessivo em suas reações. Se furta ao contato mas-
culino e adulto ou responde a ele com apatia e indolência. É completamente
indiferente às ânsias e desejos comuns, às ambições do homem adulto, hete-
rossexual, e não chega a afirmar sua personalidade social: “não corresponde
ao aperto de mãos de ninguém”. Sem um posicionamento social claro e sem
os desejos que corresponderiam ao homem adulto, Carlos se consome em um
amor intransitivo, quase ridículo, infantil em sua puerilidade. O paralelo, uma
vez mais, é com Macunaíma, que, como assinalou Alfredo Bosi, tem “alguma
coisa de visceralmente infantil, uma aura de espontaneidade polimorfa que
parece situá-lo em um espaço aquém da consciência entendida como respon-
sabilidade ou coesão moral” (Bosi, 2003: 202). Como Macunaíma, Carlos é um
ser infantilizado, espontâneo, “polimorfo”, sujeito que se consome em seu
próprio desejo, incapaz de agência social.
É por isso que, inclusive quando já desenvolvido sexualmente, Car-
los resiste à praticidade regulamentada do amor alemão, tal como o concebe
Fräulein: “divaga”, se detém, “ondula”, tem “preferências brasileiras”: “Criança
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ainda é desajeitado, embonecava nele o homem latino, vocês sabem: o ho-
mem das adivinhações” (Andrade, 2008a: 124). Essa qualidade “brasileira” do
amor de Carlos se alia com um elemento mítico, selvagem, subconsciente: “E
a gente então, os brasileiros misturados... [...] Entretanto tantanam no fundo
do mato… Negros pesados dançando o cateretê. Silêncio grosso de cheiros de
cernes, folhas, flores, terra, carnes, queimados pelo sol. Olhos relampeando
na escureza da noite sem sono. Então a imaginativa trabalha” (Andrade, 2008a:
125). O substrato da cultura brasileira indígena e negra se reatualiza na sexu-
alidade indisciplinada de Carlos, na qual “a latinidade se confunde com os
índios songamongas e a negralhada relumeante” (Andrade, 2008a: 126). Com
sua sexualidade “divagante”, “corrosiva”, Carlos transgride o desenvolvimento
sexual tal como traçado pela teoria freudiana. “Minha vingança é que Freud
não pode ter sensações de tantãs no fundo do mato. Nem pode sentir índios
pesados, com dinamismos de ritual, dentro das gâmbias. Aliás nem Fräulein.
Por isso é que falando de Carlos fui poeta, inventei” (Andrade, 2008a: 126). As
danças, a sexualidade pulsional, o mito e o rito indígenas e afro-brasileiros
provocam a ruptura da norma sexual europeia, revelando assim a duplicidade
inerente ao imaginário cultural do Brasil em sua condição periférica.
Visto desde a perspectiva racista e hierárquica de Fräulein, esse caráter
mestiço, que une o indígena e o negro com a herança portuguesa, é claramente
uma marca de inferioridade: “Os negros são de raça inferior. Os índios também.
Os portugueses também. [...] E então os brasileiros misturados? Também isso
Fräulein não podia falar” (Andrade, 2008a: 38). Porém a mistura de raças define
não apenas Carlos, mas também o gado bovino de que é proprietário Sousa
Costa, motivando uma comparação que atravessa o texto. Carlos, diz o texto:
não é magro, desraçado, apenas isso. O que sucede com as raças muito apuradas?
A carne é bem cotada no Mercado, por ser muito mais macia. Pra conservar tais
excelências a Inglaterra proíbe a intromissão do boi zebu nas marombas dela. [...]
Ora no Brasil entrou o boi zebu. Entra o durhan também, e já pasta o curraleiro e
principalmente o caracu. Porém ainda não se apurou coisa que valha. Será falta
de carnes nestes membros possantes? Nem tanto, os ossos é que ainda não dimi-
nuíram. Delírios da seleção! (Andrade, 2008a: 76).
A mescla de raças, tanto do gado quanto do homem brasileiro, deter-
mina a percepção da inferioridade econômica e cultural, sua condição vulgar,
não seleta. Esta relação metafórica entre a reprodução do gado e a sexualidade
do filho, ambas sob o potentado patriarcal e administrativo de Sousa Costa, é
central no texto: está na base de seu foco intrafamiliar, intradoméstico, e é a
causa da atenção quase obsessiva que os Sousa Costa dedicam à proteção e
ao controle da sexualidade e saúde da prole.
Assim, quando Aldinha e Maria Luísa brincam “de família”, emulam a
obsessão de seus pais pela saúde e o corpo de seus filhos. Isto se coloca em
evidência quando Maria Luísa adoece de gripe:
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uma linda união familiar. Brasileira. Portanto registremos com largueza: estão
consternados com a doença de Maria Luísa: Sousa Costa pai, dona Laura, Carlos,
Laurita, Aldinha. Não: Fräulein também. E Tanaka e a criada de quarto. A cozi-
nheira e o motorista. Nem assim o rol se completa. O próprio lar, paredes, janelas,
vocês reparam como as luzes vivem menos impetuosas agora? as plantas, a comi-
da. Consternação geral (Andrade, 2008a: 101).
Nessa paródia do discurso familiar, não apenas os pais tomam parte
no sofrimento dramático pela gripe da filha, mas também os outros filhos, os
empregados e inclusive os objetos e elementos inanimados: todos participam
humoristicamente do desespero pela saúde de Maria Luísa.
A família moderna como estrutura fechada e celular, segundo análise
de Michel Foucault, se funda nesta verdadeira obsessão com o bem-estar dos
filhos, na necessidade de vigiar o comportamento sexual e a saúde da prole:
O corpo da criança vigiada, cercada em seu berço, leito ou quarto por toda uma
ronda de parentes, babás, serviçais, pedagogos e médicos, todos atentos às mí-
nimas manifestações de seu sexo, constituiu, sobretudo a partir do século XVIII,
outro “foco local” de poder-saber (Foucault, 1988: 94).
Além disso, como analisou Anne Laura Stoler para as sociedades colo-
niais e pós-coloniais, o controle e a vigilância do contato das crianças de famí-
lias brancas com os outros de raça e classe fez parte de uma verdadeira “missão
civilizadora”, de custódia diante da possibilidade de degeneração, contamina-
ção e contágio, maneira de assegurar uma linhagem saudável de descendência
e de proteger a própria identidade social e racial (Stoler, 1995: 144-145). A con-
tratação de Fräulein, portadora de símbolos de superioridade racial e cultural
(“ela é tão instruída”, diz a mãe) (Andrade, 2008a: 62), para a iniciação sexual
de Carlos, tem como objetivo, por um lado, reafirmar a autoridade patriarcal
do pai – “Souza Costa é um excelente pai-de-família. Pater familias” (Andrade,
2008a: 97) – sobre a sexualidade do filho, que fica assim enclaustrada no lar e,
por outro, responde a uma vontade profilática, de “prevenir os inexperientes
da cilada das mãos rapaces. E evitar as doenças” (Andrade, 2008a: 37), isto é,
de evitar o contato com a alteridade social e racial, com “as ‘meretrizes’ que
chupam o sangue do corpo sadio. O sangue deve ser puro” (Andrade, 2008a:
38), afirma Fräulein.
Essa ameaça torna-se ainda mais premente em um espaço urbano em
pleno processo de modernização, como é São Paulo naquelas décadas. Como
diz o senhor Sousa Costa:
Você sabe: hoje esses mocinhos... é tão perigoso! Podem cair nas mãos de algu-
ma exploradora! A cidade... é uma invasão de aventureiras agora! Como nunca
teve! COMO NUNCA TEVE, Laura... Depois isso de principiar... é tão perigoso! Você
compreende: uma pessoa especial evita muitas coisas. E viciadas! Não é só bebi-
da, não! Hoje não tem mulher-da-vida que não seja eterômana, usam morfina...
E os moços imitam! Depois as doenças!... Você vive na sua casa, não sabe... é um
horror! Em pouco tempo Carlos estava sifilítico e outras coisas horríveis, um per-
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dido! É o que te digo, Laura, um perdido! Você compreende... meu dever é salvar
o nosso filho... Por isso! Fräulein prepara o rapaz. E evitamos quem sabe? Até um
desastre!... UM DESASTRE! (Andrade, 2008a: 54-55).
Em contraposição com a segurança do lar burguês, a cidade aparece
como um espaço ameaçador, que foi “invadido” pelas alteridades culturais – os
imigrantes estrangeiros, assim como os imigrantes internos (o texto menciona
italianos, belgas, árabes, polacos, russos, mulatos e cafuzos [Andrade, 2008a:
81]). A figura da amante viciada, “morfinômana”, “eterômana”, “cocainômana”
que seduz o filho, o contagia de vícios e doenças e o transforma em um joga-
dor e num “perdido”, concretiza a ameaça latente na cidade: a degeneração,
o vício, a doença, a corrupção moral, que comprometem a possibilidade da
concretização de uma linhagem saudável de descendência.
Nesse ponto, é o próprio senhor Sousa Costa quem, uma vez mais, traça
um paralelo entre a administração da sexualidade do filho e o gado de que é
proprietário: “Ao menos eu salvava a minha responsabilidade. Depois não é
barato, não! tratei Fräulein por oito contos! Sim senhora: oito contos, fora a
mensalidade. Naturalmente não barateei. Mais caro que o Caxambu que me
custou seis e já deu um lote de novilhas estupendas (Andrade, 2008a: 62). O
“preço” que se paga pela iniciação sexual de Carlos é comparado com o preço
do touro e sua rentabilidade, revelando a “responsabilidade” – isto é, a autori-
dade ao mesmo tempo econômica e moral – do patriarca na administração de
ambos. No final, a própria Fräulein é expulsa seguindo essa lógica, dado que
o pai decide reatualizar seu “direito de propriedade”:
Sousa Costa queria muito bem o filho, é indiscutível, porém isso de amores escan-
dalosos dentro da própria casa dele lhe repugnava bastante. Não é que repugnasse
propriamente... fazia irritação. Está certo: irritava Sousa Costa. O filho era dele,
lhe pertencia. Que se entregasse a uma outra e ele sabendo, teve ciúmes, confesso.
Se sente como que corneado! Tal era a sensação inexplicável de Sousa Costa pai
(Andrade, 2008a: 127).
O pai busca recuperar o controle da circulação dos corpos no interior do
lar, da administração do filho e seu comportamento sexual. Assim, confunde
autoridade patriarcal, a economia de recursos, a sexualidade e o amor filial.
Fräulein passa de símbolo do prestígio cultural e racial a representar a invasão
da tão temida alteridade no lar. E Carlos, como futuro homem brasileiro que,
já iniciado ao mundo adulto e heterossexual, seguirá seu destino de formar
uma família, revela a instituição familiar como máquina de exclusão de toda
alteridade – de raça, de classe, de gênero.
De fato, se é verdade que o texto privilegia a representação do núcleo
familiar burguês urbano, em uma digressão sobre a sociabilidade brasileira
sobressai a seguinte descrição: “... já se conhece bem a fotografia: A mãe está
sentada com a família menorzinha no colo. O pai de pé descansa protetora-
mente no ombro dela a mão honrada. Em torno se arranjam os barrigudinhos.
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A disposição pode variar, mas o conceito continua o mesmo. Vária disposição
demonstra unicamente o progresso que nestes tempos de agora fizeram os fotó-
grafos norte-americanos” (Andrade, 2008a: 24). A fotografia da família burguesa,
epítome da respeitabilidade e da honradez – mãe sentada, pai de pé, filhos ao
redor – aparece deslocada pelo uso de um vocabulário regional, proveniente do
Norte e do Nordeste, “a família menorzinha no colo” “os barrigudinhos”, que
denota a indigência, a falta de recursos de parte da população rural. O comen-
tário sobre a reprodutibilidade da pose-padrão torna ainda mais pungente o
efeito satírico, sugere que ambas se repetem e evoca o fantasma da exclusão
social que se esconde por detrás da pretensão de respeitabilidade burguesa.
Através de sua investigação ao mesmo tempo estética, sociológica e
psicológica da infância no personagem de Carlos – sua linguagem, suas pul-
sões sexuais, assim como as hierarquias sociais e raciais que regem a circula-
ção de seu corpo –, Amar verbo intransitivo chama a atenção para o silenciado,
excluído e reprimido pela cultura brasileira tradicional, com seu imobilismo,
sua banalidade e seu terror endógeno ao contágio social. Funciona, assim, no
sentido de uma “política da estética”, que intervém na partilha do sensível,
reconfigurando os modos de perceber e experimentar o social, e desloca o
sentido mesmo da comunidade.
Recebido em 14/05/2015 | Aprovado em 19/10/2015
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Alejandra Josiowicz é mestre e doutora em Língua e Cultura
Brasileira e Hispano-Americana pela Princeton University. Foi
professora assistente na Rutgers University. Atualmente realiza pós-
doutorado na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) com bolsa PAPD da
FAPERJ. Suas pesquisas situam-se na área da sociologia da cultura e
do pensamento social, debruçando-se no tema da infância. Publicou
recentemente, entre outros artigos, “Estética y política de la infancia
en Mário de Andrade” (2014) e “La escritora que mató a los peces.
Escritura, género y mercado en Brasil (1967-1978): un estudio de la
literatura infantil de Clarice Lispector” (2013).
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NOTAS
1 Uso “cenas” em um sentido similar ao desenvolvido por
Jacques Rancière: a cena inscreveria o evento estético em
uma constelação variável de modos de percepção, afetos
e modos de interpretação, e constituiria a comunidade
sensível e intelectual que torna possível essas relações
(Rancière, 2013: 11).
2 A infância, como estudos históricos e sociológicos já
apontaram, é antes uma categoria sociocultural do que
um estado biológico, que se constitui durante os séculos
XVIII e XIX na Europa e nos Estados Unidos, a partir da
emergência do Estado moderno, no momento em que se
fortalecia o núcleo familiar burguês e se restringiam os
laços familiares tradicionais de parentesco. Entre os es-
tudos pioneiros, sobressai o de Philippe Ariès, Centuries of
childhood: A social history of family life (1962).
3 O livro foi publicado com o titulo de Belazarte em 1934. Em
1944, Mário de Andrade prepara o último manuscrito cor-
rigido, o qual deu origem à última edição de Os contos de
Belazarte publicada em forma póstuma em 1947 (Marques,
2008: 19).
4 O expressionismo, primeira versão das vanguardas na mú-
sica, literatura e artes alemãs, emergiu a partir de uma
série de grupos de artistas da pré-guerra (Die Bleue Reiter e
Die Brücke, dentre outros) e chegou até os anos 1920 com
as primeiras obras de Bertolt Brecht (Macey, 2002).
5 Para um estudo da recepção do expressionismo em Mário
de Andrade, ver a tese de Rosângela Asche de Paula, O
expressionismo na biblioteca de Mário de Andrade: da leitura à
criação (2007).
6 Encontram-se no IEB/USP, Fundo Mário de Andrade. Em
suas pesquisas do folclore infantil paulista, Florestan Fer-
nandes retoma os estudos da cultura oral infantil de Mário
de Andrade, considerados por ele modelos e predecessores
de sua própria pesquisa, coincidindo em muitas de suas
conclusões (Fernandes, 2004: 313).
7 Como observou Antonio Candido, o objetivo era “não ape-
nas a rotinização da cultura, mas a tentativa consciente de
arrancá-la dos grupos privilegiados para transformá-la em
fator de humanização da maioria, através de instituições
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planejadas” (Candido, 1985: 14). Para a bibliografia sobre o
tema, ver Barbato Jr. (2004), Raffani (2001), Williams (2001)
e Abdanur (1992).
8 Para estudos nessa direção, ver Barbato Jr. (2004), Miceli
(2012) e Berriel (1990).
9 As crianças que participavam dos distintos âmbitos do
Departamento de Cultura de São Paulo foram objeto de
pesquisas sociológicas, etnográficas, higiênicas, médicas
e nutricionais, publicadas na Revista do Arquivo Municipal
entre 1935 e 1938.
10 Para a bibliografia sobre os Parques Infantis, ver França
Abdanur (1994) e Goulart de Faria (2002).
11 Alguns trabalhos têm insistido no aspecto autoritário das
políticas públicas do Departamento de Cultura que, segun-
do essa visão, buscavam integrar os imigrantes à naciona-
lidade e preparar aos operários para as novas formas de
trabalho surgidas na industrialização (Raffani, 2001). Sem
negar o caráter biopolítico das iniciativas, assim como seu
propósito de integrar diferentes grupos sociais à nacionali-
dade, é importante ressaltar que, nas políticas analisadas,
a construção cultural partiu de componentes heterogêne-
os – tradições eruditas e populares, urbanas, rurais e cos-
mopolitas, trazidas pelos imigrantes – e que as diferentes
camadas sociais foram consideradas como portadoras de
cultura e potenciais sujeitos de expressão estética.
12 Estabeleceu, ainda, que as crianças deveriam assinar com
seus nomes, deixando clara a nacionalidade de seus pais
e a sua idade, e que a instrutora deveria adicionar se se
tratava de uma criança branca, negra ou mulata. É por isso
que os desenhos, que constam no IEB/USP, têm no verso
a legenda “foi respeitada a expressão da criança quando
disse o que fez”, junto com seu nome, idade, nacionalidade
dos pais e descrição racial. Sobre o tema, ver Gobbi (2002:
187-188).
13 Sobre o tema, ver Coutinho (2002).
14 Também constam no IEB/USP, Fundo Mário de Andrade, as
anotações de suas aulas sobre o desenvolvimento estético
infantil.
15 Mário de Andrade possuía em sua biblioteca a Monografia
de las escuelas de pintura al aire libre (1926), de José Vascon-
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celos, que, também como Diretor do Departamento de Cul-
tura, havia lançado um programa artístico para crianças
proletárias.
16 Professora e pioneira da arte-educação, Anita Malfatti cola-
borou com Andrade ilustrando o catálogo “Parques infantis” e
providenciando desenhos de sua aula de artes para crianças.
17 Sobre o tema, ver também Cruz (2012).
18 Segundo Telê Ancona Lopes, em sua edição de 1923 dos
Três ensaios, de Freud, principalmente no capítulo 3, “As
transformações da puberdade”, haveria notas de estudo
para a construção de Carlos Sousa Costa (Lopes, 2008: 173).
19 A canção que Carlos canta faz referência a um samba de
carnaval inspirado no folclore rural, famoso naqueles anos
“Tatu subiu no pau / é mentira de mecê / lagarto ou lagar-
tixa / isso sim que pode sê” (Cruz, 2012: 45).
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artigo | alejandra josiowicz
POR UMA POLÍTICA DA ESTÉTICA EM MÁRIO DE
ANDRADE: EXPRESSIONISMO E INFÂNCIA
Resumo
Este artigo propõe considerar a cena da infância em Mário
de Andrade a partir de dois níveis ou esferas de atuação
distintos: por um lado, em sua intervenção político-
cultural e, por outro, em sua produção literária. Em ambos
os níveis, examina-se uma política da estética: uma
conjunção de preocupações sociais e raciais e reflexões
estéticas em torno da infância. Em seus múltiplos níveis
estético-políticos, a infância em Mário de Andrade revela
a marca do excluído, reconfigura os modos de perceber
o social, e se orienta à transformação das hierarquias
estéticas e da representação.
TOWARDS A POLITICS OF AESTHETICS IN MÁRIO DE
ANDRADE: EXPRESSIONISM AND CHILDHOOD
Abstract
This article considers the childhood scene in Mário de
Andrade’s work, focusing on two main levels or spheres
of actualization: on the one hand, his politico-cultural
interventions and, on the other, his literary production.
For both levels, it examines a “politics of aesthetics”
in Mário de Andrade: a combination of social and
racial preoccupations and aesthetic reflections around
childhood. Through its multiple aesthetical and political
levels, childhood in Mário de Andrade’s work reveals that
which has been excluded, reconfiguring ways of perceiving
social life and pointing towards the transformation of the
hierarchies of representation.
Palavras-chave
Infância;
Mário de Andrade;
Expressionismo;
Literatura;
Sociedade.
Keywords
Childhood;
Mário de Andrade;
Expressionism;
Literature;
Society.
THE IMPACT OF NATIONALITY ON THE CONTEMPORARY ART MARKET
Alain Quemin I
I Université de Vincennes – Paris 8, Institut d’Etudes Européennes (IEE),
Saint-Denis, France
The sociology of art emerged in its present conception in 1960s France in the
form of a double tradition, influenced by two leading authors who developed
substantial empirical research in the area: Raymonde Moulin (Moulin, 1987),
who studied the art market, and Pierre Bourdieu and his collaborators (Bourdieu
et al., 1997), who provided a major contribution with their innovative and sem-
inal studies of visitors. Empirical research has since enabled the sociology of
art to develop in remarkable fashion, first in France and then internationally
(Villas Bôas & Quemin, 2015). But although globalization began to attract con-
siderable attention from social scientists in the 1990s (Bartelson, 2000; Ther-
born, 2000), the theme did not really take hold in the sociology of art at first,
and empirical analyses remained limited for many years before expanding sig-
nificantly (Bellavance, 2000; Quemin, 2001, 2002a, 2006, 2013a, 2013b; Van Hest,
2012, Velthuis, 2013). In this article,1 I study the impact of nationality and ter-
ritory – the artist’s country of residence – on artistic success (Bowness, 1989)
and the process of consecration, utilizing empirical data on artists and the
players who promote them. This will allow me to show that even at a time
when globalization is supposed to be the rule in the art sector, national entities
still matter and a strong hierarchy still exists between nations. In my research
I have conducted more than 100 formal interviews and also identified and an-
alyzed a dozen different ‘indigenous’ rankings of the most famous/visible/rec-
ognized artists, some of which have been published for decades now, meaning
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the impact of nationality on the contemporary art marketso
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that 70 different editions of rankings relating to contemporary art were ana-
lyzed in total.2 In this article, however, I focus on just three major rankings –
two lists of artists: the Kunstkompass and the Capital Kunstmarkt Kompass;
and one listing of the most powerful players from the international contempo-
rary art world: the ArtReview Power 100 – in order to illustrate the extremely
uneven distribution of success and power between different countries in the
contemporary art domain and try to understand what might explain this situ-
ation. Finally, a number of other economic rankings are mentioned in order to
compare their results with those of the previous lists.
I. THE FIRST RANKING OF ARTISTS AND CONTEMPORARY ART
AS A CATEGORY
From early lists to rankings in art history
As soon as art history emerged as a discipline, authors had to evaluate the
aesthetic value of works and decide who the most important ‘visual artists’
were (i.e. painters and sculptors at that time). In The Lives of the Most Excellent
Painters, Sculptors and Architects (1550), Italian artist, art critic and historian
Giorgio Vasari selected dozens of artists,3 yet never attempted to rank them,
much less attribute marks in order to quantify or objectify aesthetic quality.
Later in history, French art critic Roger de Piles in his Cours de peinture par
principes (1708) selected 57 dead or living significant artists to comment on their
works and award them marks – out of 20 – on four criteria: composition, draw-
ing, colors and expressivity. However, although this quantification would have
enabled the artists to be compared and ranked had each of their marks been
added up, it never occurred to him to do so.
Things changed radically in 1970 with the first ever ranking of artists to
be published on a yearly basis, the Kunstkompass (the ‘art compass’ in Ger-
man). The rankings were published by Willy Bongard, an economic journalist
with a strong interest in art, in the German economic magazine Capital (Verger,
1987; Rohr-Bongard, 2001). One fact should be stressed: the first ranking of art-
ists appeared simultaneously with the emergence of contemporary art as a
category4 at the historical and seminal exhibition When Attitudes Become Form,
curated by Harald Szeemann at Bern Kunsthalle in Switzerland, in 1969. It
seems that with the emergence of the new form of art, or ‘contemporary crea-
tion,’ it immediately became necessary to reduce the uncertainty concerning
its value.5
From 1970 until 2007, the Kunstkompass was published regularly on an
almost yearly basis in Capital before moving in 2008 to another German eco-
nomic journal, Manager Magazin, which also published the list annually. Capital
did not stop publishing a ranking of contemporary artists, though, as it devel-
oped a partnership with a firm, Artfacts, to publish a second ranking of con-
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article | alain quemin
temporary visual artists, also on a yearly basis: Capital Kunstmarkt Kompass! The
lengthy existence of the Kunstkompass, combined with the more recent appear-
ance of a competing ranking, the Capital Kunstmarkt Kompass, are a clear sign of
the strong and persistent social demand for such rankings of living artists, de-
signed to reduce the uncertainty over value in the contemporary art scene (Moulin
& Quemin, 1993).6
The Kunstkompass methodology
In any kind of ranking, the results depend directly on the methodology used, which
in turn reflects a particular view of the way that the art world works. A brief pres-
entation is therefore required of the method used by these two major rankings to
compile the list of the top 100 visual artists in the world each year. Since its crea-
tion in 1970, the Kunstkompass has been based on a system of points allocated to
different kinds of artist visibility. The system has evolved slightly over time and is
not entirely transparent. It has only been made public on a handful of occasions.7
Nevertheless, it can be summarized schematically as follows. Artists receive points
on three major occasions:
— Solo-exhibitions in museums or contemporary art centers: the more pres-
tigious the institution, the greater the number of points. A solo show at
MoMA in New York City, for example, or the Tate Modern in London, or the
Centre Georges Pompidou in Paris, will yield a very high number of points,
whereas other solo shows in other less important but still significant insti-
tutions will generate fewer points.
— Participation in collective exhibitions such as biennials or in collective
shows in museums or contemporary art centers. Once again, the more pres-
tigious the institution, the higher the number of points (for instance, par-
ticipation in the most prestigious biennials such as Venice’s in Italy or the
Kassel Documenta in Germany will yield a very high number of points,
whereas other significant biennials organized in other cities will also qual-
ify, but with fewer points). Since a solo show gives more visibility to artists
and plays an even greater role in their consecration process (Quemin, 2013b,
2013c), the most important solo shows weigh more than participation in the
most prestigious collective exhibitions.
— Reviews in the most influential contemporary art magazines such as Flash
Art, Art in America and Art Forum.
A certain number of points are allocated to each previous occasion of visi-
bility and at the end of the year the points are totaled, allowing the Kunstkompass
team to publish its annual ranking of the top 100 contemporary (living) artists in
the world.
It is important to mention here that almost since its inception, the Kunst-
kompass has been criticized for showing a strong bias in favor of Germany (over-
representing German institutions among certifying ones and attributing them
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coefficients often deemed too high relative to their real weighting in the inter-
national contemporary art world; I return to this point later) and, to a lesser
extent, in favor of neighboring countries within its cultural zone of influence
(such as Austria). Nonetheless, the ranking has existed for more than 40 years
now and its general methodology has remained essentially the same.
The Artfacts methodology
Unlike the team responsible for compiling the Kunstkompass, Artfacts uses a
much broader range of certifying institutions and, in particular, includes many
events associated with the art market: private contemporary art galleries, pub-
lic institutions (with or without a collection of their own: that is to say, muse-
ums and contemporary art centers), biennials and triennials, other spaces for
temporary exhibitions, contemporary art fairs, auctions, art hotels, art reviews,
journals and magazines, art books, art schools, festivals, non-profit organiza-
tions, and even art management institutions and private collections. Although
it cannot be completely exhaustive, this extremely wide survey of information
limits the risk of certain biases.
Whereas some institutions are crucial to the consecration process, oth-
ers appear to be more secondary or even marginal. It is thus important that the
coefficients attributed to each of the different institutions reflect this differ-
ence. With this in mind, Artfacts has created an algorithm that determines the
weight of each institution based on the fame of the artists associated with it.
In essence ‘network points’ are allocated. All artists collected by museums and
represented by galleries receive points which are then allocated to the institu-
tions collecting or representing the same artists: these ‘network points’ thus
reflect the reputation of the institution concerned. An artist receives points for
each exhibition in a museum or gallery. Although from a logical viewpoint it
may seem surprising that artists and institutions mutually influence each oth-
er’s weighting and hence the position of artists in the ranking, sociological
analysis has shown that in the world of contemporary art, not only artists and
galleries (and gallery owners) mutually influence each other’s reputations, so
do artists and institutions (Moulin, 1992; Moulin & Quemin, 1993). This is pre-
cisely one of the major interests of the method elaborated by Artfacts: the at-
tempt to reflect this peculiarity of the contemporary art world. Unlike other
methodologies, such as Kunstkompass’s, in which subjectivity plays an impor-
tant role in determining coefficients and generates very significant biases
(leading, as we shall see, to an overrepresentation of German artists), the coef-
ficients used by Artfacts are not effectively set once and for all, or only very
occasionally reconsidered, as is the case with the Kunstkompass. Instead they
are constantly actualized – that is, every week – by the algorithm, taking into
account the certifying power of the institutions, based in turn on the reputation
of the artists associated with them. Moreover, the scope of the database is a
829
article | alain quemin
key aspect, with no less than 100,000 ranked artists in March 2014 and 300,000
more referenced in the database without any ranking! As we shall see, even in
this second ranking the presence of Western artists is overwhelming. This can-
not be explained only by the fact that they or their galleries are unaware of the
existence of Artfacts and thus fail to let the company know about artists’ ac-
tivities. It seems that most information is collected indirectly by Artfacts and
not transmitted directly by artists or their galleries. Hence, the more connect-
ed to the core of the art world a gallery or an artist is, the more likely artists
are to appear in the database and to receive a high score. All artists whose
positions in the art world are more or less peripheral – whether because they
are non-Western and/or are represented by a non-Western gallery, or because,
although they belong to the Western world, they occupy a somewhat marginal
position on the contemporary art scene – will have limited visibility in the
contemporary art world. Besides, it would be somewhat naive to believe that
non-Western artists or galleries are simply unaware of the existence of Artfacts
because of their geographical peripheral position. While doing fieldwork in both
Brazil and the United Arab Emirates I was able to see how gallerists were per-
fectly aware of the existence of Artfacts and even used it in my presence when
I mentioned artists that they did not know or when they tried to objectivize the
visibility of their own artists during our discussions.
As a private firm, Artfacts does not publish or even provide on request
the construction mode for its algorithm, which is protected by industrial se-
crecy. This fact is frustrating for any social scientist wishing to evaluate the
rigorousness of the methodology used. However it was possible to reconstitute
some of the coefficients used, which revealed its high level of efficiency and
relevance. The internationally recognized Austrian-French gallery Thaddaeus
Ropac, for example, weighed over 3 times more than the French-Swiss-Luxem-
bourgian gallery Bernard Ceysson. Although the main ranking is based on the
number of points accumulated since the indicator was first created in 1999, the
ranking is not much different – at the top of the list – from the one that would
be produced by considering only the number of points accumulated over the
previous twelve months: success generally begets success, comprising a good
illustration of Robert Merton’s Matthew effect (Merton, 1968).
II. THE IMPACT OF NATIONALITY AND COUNTRY OF RESIDENCE
ON ARTISTIC SUCCESS
For many years now, I have used the ‘indigenous’ Kunstkompass indicator to
study globalization in contemporary art (Quemin, 2001, 2002a, 2002b, 2006,
2013a, 2013b, 2013c). As early as 2000, with the aim of studying globalization in
the visual arts sector, I began calculating each country’s share of the total
points allocated by Kunstkompass each year – although the ranking is indi-
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itself. Since then, the method has regularly produced similar results year after
year and has given rise to what could be likened to a ‘social law,’ in Durkheim-
ian terms, revealing a strong hierarchy among countries that has evolved very
little over time, once again reflecting that success generally begets success,
both individually and nationally. This can be explained by the strategies devel-
oped by various players from the contemporary art world, whether these strat-
egies are conscious or not: for museum directors and curators, the prestige of
their institutions will directly benefit the status of the artists being shown –
which, in turn, as my data shows, is connected to their country of origin or
residence. This produces a path-dependency, in which the reputation of institu-
tions can gradually rise, in turn impacting on the local artists that they ex-
hibit, and vice-versa. For collectors, their investment in art is safer if they
choose artists whose prices may increase, which is more often the case – or at
least thought to be more often the case – for American and German artists, for
instance (Quemin, 2002). As we shall see, prestigious contemporary art auctions
show a very strong concentration of American, German and British artists, and
auctions play a major role in pushing up record prices. Hence the national
concentration effects that, among other factors, reflect these choices.
The first point to be observed in the table I is the number of countries
appearing from 2007 to 2012. To these we can add the figures for the period
running from 1994 to 2006 in the Table 2.
Despite the widespread idea that today’s contemporary art world has
become globalized – and notwithstanding a slight increase (from 16 to 23) in
the number of countries represented from the mid-1990s to the start of the
2000s – the number of countries participating in the international contempo-
rary art scene has been fairly stable since the beginning of the millennium9 and
remains very limited given that the world has between 190 and 200 different
nations.
Furthermore, the weight of the few countries that appear in Table 1 is
very uneven. The USA and Germany come far ahead of all other nations with
around 30% of total contemporary international artistic production for each of
them. They are followed by the United Kingdom with a share that is situated
around 9 or 10% each year. Then come France, Switzerland, Italy and Austria,
at a marked distance from the three preceding leading nations, as the share of
the four following countries is situated around 2,5 to 4% only. The percentage
of all other countries appearing in Table 1 is lower still and generally due to a
single artist. This makes the presence of these countries on the international
contemporary art scene particularly insubstantial.
What changes if we now ‘correct’ the Kunstkompass data listing the
artists’ nationalities by focusing instead on countries of residence?
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article | alain quemin
Year 2007 2008 2009 2010 2011 2012
Countries
USA 30.0 28.6 26.6 31.2 30.4 30.5
Germany 31.6 32.0 30.5 31.7 29.0 30.1
UK 9.1 10.1 9.3 10.7 10.1 9.1
France 4.0 3.8 0.8 3.7 3.9 4.0
Switzerland 3.8 3.2 3.9 3.7 4.5 4.2
Italy 3.1 2.7 4.4 2.0 2.0 2.8
Austria 2.6 2.5 1.7 2.7 3.0 2.9
Canada 1.9 2.5 0.9 1.7 1.8 1.8
Belgium 1.8 1.8 1.2 1.8 1.9 2.0
Netherlands 1.6 1.5 0 0.9 1.5 1.5
Denmark 1.4 1.5 2.4 2.1 2.2 2.1
South Africa 1.3 1.4 1.5 1.4 1.4 1.3
Russia 1.1 1.1 0 1.1 1.0 1.0
Iran 1.1 1.0 0 1.0 1.0 1.0
Mexico 1.0 0.9 0 0.9 0.9 0.9
Greece 0.9 0.8 0 0.8 0.8 0.9
Serbia 0.8 0.8 0.8 0.8 0.8 0.8
Thailand 0.8 0.8 0 0.7 0.7 0.8
Cuba 0.8 0.7 0.6 0 0 0
Spain 0.7 0.7 0 0 0 0
Ireland 0.7 0 0.7 0 0 0
Brazil 0 0 0.8 0 0 0
Japan 0 0.7 1.0 0.7 0.7 0.7
Albania 0 0.7 0 0 0 0
Romania 0 0 1.2 0 0.7 0
Bulgaria 0 0 1.1 0 0 0
Poland 0 0 1.8 0 0 0
Czech Republic 0 0 0.7 0 0.7 0
Algeria 0 0 1.1 0 0 0
Israel 0 0 1.5 0 0 0
Argentina 0 0 0.8 0 0 0
India 0 0 0.8 0 0.8 0.7
Pakistan 0 0 0.7 0 0 0
Hong Kong 0 0 0.7 0 0 0
China 0 0 2.7 0 0 2.7
Table 1
Visibility of artists from the various countries represented
in the Kunstkompass: 2007-20128
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Year
Number of countries in
the Kunstkompass
1994 16
1995 17
1996 17
1997 16
1998 17
1999 19
2000 22
2001 23
2002 23
2003 22
2004 22
2005 22
2006 21
2007 21
2008 22
2009 27
2010 19
2011 21
2012 21
Table 2
Number of countries represented in the
Kunstkompass ranking from 1994 to 2012
833
article | alain quemin
Country Nationality Residence
USA 30.5 36.3
Germany 30.1 30.5
UK 9.1 9.9
Switzerland 4.2 3.2
France 4.0 4.0
Italy 2.8 2.5
Austria 2.9 2.9
Denmark 2.1 2.1
Belgium 2.0 2.0
Canada 1.8 1.8
Netherlands 1.5 1.5
South Africa 1.3 1.3
Russia 1.0 0
Iran 1.0 0
Mexico 0.9 0.9
Greece 0.9 0
Serbia 0.8 0
Thailand 0.8 0
Japan 0.7 0.4
India 0.7 0
China 0.7 0.7
Table 3
Visibility of artists from different countries in the Kunstkompass in 2012:
comparison of results by nationality and country of residence
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Residence
Graph 1
Country share in the Kunstkompass in 2012
Graph 2
Top set of countries in the Artfacts ranking in
2012: nationality and residence
835
article | alain quemin
Country
Nationality
(top 7 countries) Residence
USA 37.1% 46.2%
Germany 18.2% 18.0%
UK 7.6% 8.3%
France 4.4% 5.8%
Austria 5.0% 5.0%
Switzerland 4.9% 4.0%
Italy 1.7% 1.6%
Canada 2.0%
Belgium 1.9%
Netherlands 1.6%
South Africa 1.4%
Denmark 1.3%
Japan 1.3%
Mexico 1.0%
Sweden 0.8%
Table 4
The Artfacts ranking in terms of nationality and country
of residence in 2012
The most important result to highlight is that the number of countries
shown in Table 3 and illustrated in Graph 1 drops from 21 countries to… just
15! The weight of the various countries does not vary particularly except in the
case of the most ‘marginal,’ ‘peripheral’ and ‘exotic’ nations whose direct con-
tribution to the international contemporary art scene often vanishes complete-
ly. Those of their nationals who make it on the international art scene fre-
quently live precisely in the USA. Thus the share of the latter country in the
Kunstkompass data increases very significantly from 30.5% when nationality
is considered to no less than 36.3% when country of residence is taken into
account instead.
We can undertake the same procedure with the Artfacts ranking, first calculat-
ing the share of each country – in terms of artist nationality – in the total
points for the top 100 artists and then the number of artists residing in each
country and their ranking in the hierarchy. The top of the list of represented
nations is as indicated in Table 4.:
The first thing to observe is that although the Kunstkompass and Capital
Kunstmarkt Kompass use very different methodologies to identify the most
visible international artists, the two lists display very similar results in terms
of the most important countries concentrating the highest number of these
leading artists (cf. Van Hest, 2012). Not only are the top 7 countries identical in
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both cases, but the top 3 countries in 2012 are also ranked in the same order.
Although differences exist in the order of the next four countries, their share
of the total for each indicator is very close in the two rankings, making it un-
likely that the order would have been identical.
Unlike in the case of the Kunstkompass ranking, the United States comes
far ahead in the Artfacts data (37.1%), far above Germany (18.2%) since the latter
does not benefit from the strong bias affecting its results in the previous case. It
still comfortably outdistances the United Kingdom (7.63%), though, followed by
Austria (5.0%) and Switzerland (4.9%), which are slightly ahead of France (4.4%).
Although Italy occupied strong positions on the international contemporary art
scene in the 1970s, sustained by the renewed vigor of the trans-avant-garde dur-
ing the 1980s, its influence is today very limited with only 1.7% of the Artfacts
indicator. Considering this ranking of the top 100 visual contemporary artists,
the top 7 countries on the list, all belonging to Western Europe and North Amer-
ica, concentrate almost 80% of the indicator!
Although the ideology of globalization with its mixing of different cul-
tures and the supposed erasure of national borders has been very popular in
the contemporary art world for the last two decades (Quemin, 2001, 2002a,
2002b, 2006), and even though most actors from the art world love to believe
that an artist’s nationality does not matter, my analysis shows a very different
reality. The international contemporary art world remains highly territorialized
and hierarchized between countries, whatever source we turn to in the attempt
to objectivize the phenomenon.
Already extremely pronounced in the previous Artfacts data, the phe-
nomenon of concentration is even more extreme if we consider the different
countries of residence, since artists from the ‘periphery’ of the international con-
temporary art world (Quemin, 2002b) tend to migrate to the more central coun-
tries in order to become consecrated. To study this phenomenon, I decided to
‘correct’ the data published by Artfacts by once again considering the country
of residence and creation rather than nationality. A certain lack of precision is
inevitable since artists – especially those still receiving state support and/or
funding from their country of origin – do not generally want to publicize the
fact that they have moved to another country in order to boost their interna-
tional recognition. However, the results obtained are substantial enough to be
identified here and any existing inaccuracy would be insufficient to affect the
general trends that emerge.
Before presenting the table, the first and most important fact to empha-
size is that, even in an era of so-called globalization, a huge majority of the
world’s most celebrated artists – those who are most likely to travel and leave
their countries of origin – still live and create in the countries where they were
born: 80% of them in fact10 (cf. Van Hest, 2012). Endless artistic wanderlust ap-
pears to be a myth – and no artist lives in more than two countries over the long-
837
article | alain quemin
term. Even today, creative activity is still very much embedded in a given terri-
tory (Quemin, 2006, 2013c). When artists travel abroad for a project, they still keep
a base as their home (generally the country in which they were born). Of the top
100 most visible artists in the world, no less than 96 live and create in just one
country on a long-term basis, and only 4 in two countries! Moreover, if we exam-
ine the artists’ countries of residence rather than their passport, a change occurs
in just 19 cases. This figure is far from negligible but the phenomenon concerns
a clear minority, and even when artists tend to move to an important interna-
tional center for artistic creation and recognition, they sometimes continue to
live and create part of the time in their home countries. As a matter of fact, those
artists whose presence in the rankings is most unlikely due to their ‘exotic’ na-
tionality have often settled for many years in the ‘center’ of the international
contemporary art scene – that is to say, the USA, and New York in particular – and
have contributed to the vitality of the American scene while boosting their
chances of acquiring wider recognition in the international art world.
If we once again consider the share of each country in the total points
received by the top 100 artists in the Artfacts ranking, this time taking the coun-
tries of residence into account, the results are as appear in Table 4 and as illus-
trated in Graph 2. Once again, the USA comes first with nearly 10 more points
than when nationality is considered: 46.2%, close to half of all international con-
temporary artistic production! This provides perfect illustration of the country’s
central role in today’s international contemporary art scene. The USA thus comes
far ahead of its usual challenger, Germany (18.0%), itself a fair distance from the
United Kingdom (8.3%), followed by France (5.8%), Austria (5.0%), Switzerland
(4.0%), Belgium (1.9%), the Netherlands and Italy (1.6% each), Denmark (1.3%),
Sweden (0.8%), Canada (2%), Mexico (1.0%), Japan (1.3%), and South Africa (1.4%).
Once more, it should be underlined that Western European countries (in actual-
ity, a very small number of them) and North America account for nearly all the
indicator (96.5%!) – that is to say, almost all of contemporary artistic production
at its highest level of visibility and success. Hardly any space is left either for
non-Western countries or indeed for the vast majority of Western countries out-
side the dozen nations shown in the previous table.
Additionally, it should not be underestimated that the flows of interna-
tional migrations are very specifically oriented and strongly determined by the
various positions occupied by the different countries in the art world, some being
extremely attractive to artists. In the end, no actual globalization exists in the
contemporary art world (Quemin, 2001, 2002a & b, 2006) if we take the term to
mean that all parts of the world are homogenously concerned and that homog-
enous fluxes are not affected by uneven exchanges or by forms of domination.
So what else can we learn from these two main rankings designed to
objectively measure artistic success – the Kunstkompass and the Capital Kun-
stmarkt Kompass – by concentrating on either the nationality of the artists or
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their countries of residence? Although the national or territorial factor is typ-
ically denied by actors from the art world (Quemin, 2001, 2002a), in fact, as the
preceding tables all clearly demonstrate, it plays a major role in the consecra-
tion process in the contemporary art world. The US always comes first, gener-
ally followed by Germany, then the United Kingdom, and, at a further distance,
a small group of other nations, generally consisting of France, Italy and Swit-
zerland. All other countries – especially, though not exclusively, those not be-
longing to the Western world – form a vast periphery. As already mentioned
above, the result first discovered some twelve years ago tends to constitute a
‘social law,’ in Durkheim’s terminology, and is still found today in most sectors
of the contemporary visual arts field.
III. THE CERTIFICATION POWER AMONG COUNTRIES:
AN UNEVEN DISTRIBUTION
I shall now show that the predominance of some nationalities in one of the
rankings – the Kunstkompass, whose entire methodology is made public oc-
casionally – is similar to the share of the various countries in the construction
of the indicator. In particular, the very limited inclusion of non-Western insti-
tutions in the elaboration of the ranking helps explain the equally limited pres-
ence of non-Western artists in its results. Certification power is still in the
hands of a very limited number of countries, a fact often questioned in the
contemporary art world but that has not changed significantly in recent years.
I limit my analysis here to two years, 2001 and 2008, which are the only
recent years for which I was able to obtain the methodology used by the Kun-
stkompass, including the lists of institutions yielding points. This information
provided an insight into the rankings and their coefficients. Once again, I
calculated each country’s weight in the construction of the rankings by adding
up all coefficients for all institutions from the same country and dividing the
figure obtained by the sum of coefficients for all the institutions in the world
as a whole that year.
Once again, the most striking result is that at a time when globalization
and the disappearance of national borders are supposedly dominating the con-
temporary art world, the certifying institutions that enable artists to receive
points in the Kunstkompass are located in a very small number of countries.
In 2008, certifying institutions attributing points in the Kunstkompass were
limited to just 21 countries (out of somewhere between 190 and 200 nations in
the world!). Moreover, although globalization is supposed to be on an ever up-
ward trend, it is ironic to note that the number of countries was actually slight-
ly higher in 2001, reaching a total of 24. Once again this shows how empirical
data can be useful in questioning social representations that may differ a great
deal from objective reality.
839
article | alain quemin
Country
Weight in the Production of
the KK in 2008
Weight in
2001
Germany 31.1% 37.3%
USA 24.2% 16.2%
France 5.7% 6.2%
UK 5.7% 7.4%
Italy 5.2% 4.4%
Austria 4.8% 3.7%
Netherlands 3.2% 3.9%
Switzerland 3.1% 7.0%
Spain 3.0% 4.8%
Japan 2.1% 1.1%
Belgium 1.6% 1.4%
Canada 1.2% /
China 0.9% /
Greece 0.9% 1.1%
Denmark 0.8% 0.9%
Sweden 0.7% 1.6%
Ireland 0.6% /
Luxemburg 0.4% /
Poland 0.4% 0.2%
Czech Republic 0.4% 0.5%
Russia 0.4% 0.2%
South Korea 0.4% /
India 0.4% /
Brazil 0.3% /
UAE 0.3% /
Turkey 0.3% 0.2%
Finland 0.3% /
Portugal 0.3% 0.5%
Mexico 0.3% /
Ukraine 0.3% /
Thailand 0.3% /
South Africa 0.3% /
Australia / 0.4%
Norway / 0.3%
Argentina / 0.3%
Denmark / 0.2%
Slovenia / 0.2%
Table 5
Contribution of countries to the construction of the
Kunstkompass in 2001 and 2008
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Furthermore, just as in the other tables already discussed in this article,
the share of the various countries is very uneven. Germany comes far ahead of
all other countries in terms of contributing to the calculation of the Kunstkom-
pass and the country’s weight seems to be highly exaggerated. It accounted for
no less than 31.1% of the indicator in 2008 and as high as 37.3% in 2001. Con-
sidering the fact that, in most countries, national institutions tend to present
more national artists than international, it is little wonder that German artists
are ranked so highly in the Kunstkompass list. Unsurprisingly the country with
the second highest weighting in the calculation of the Kunstkompass – at a
clear distance from Germany, but still far ahead of the third place – is the USA.
Its share in the construction of the indicator was 16.2% in 2001 but this figure
rose markedly to 24.2% in 2008. Interestingly enough, the decline in Germany’s
share benefited its only challenger in the construction of the ranking and not
any of the other countries, including the most peripheral. At a clear distance
from the USA comes a group of four countries whose contribution in the elab-
oration of the indicator is fairly similar: the UK, France, Italy and Austria. Al-
though the differences between the four nations were a bit more marked in
2001, ranging from 7.4% for the United Kingdom to 3.7% for Austria, in 2008,
the gap between the same two nations at each end of the group was much
closer, 5.7% and 4.8% respectively. For the remaining countries, the share of
those outside Western Europe, the USA and Canada is extremely low in terms
of calculating the Kunstkompass: 3.1% only in 2001 and 6.5% in 2008! As we can
see, the share of non-Western countries tended to rise at the beginning of the
millennium but still remains extremely limited.
To illustrate the link between the weight of the various countries in
calculating the Kunstkompass and the presence of their artists in the eventual
results of the rankings, I decided to present the figures for the two recent years
for which information was available on the construction of the indicator. Very
often the same countries are represented through their institutions and thus
impact on the designation of artists at international level. As a consequence,
their national artists appear in the result of the ranking. This may be because
the countries concerned offer a vibrant contemporary art scene that includes
both highly successful artists and art institutions with international influence,
or because their presence in the calculations for the indicator favors their art-
ists’ appearance in the final list. Neither explanation excludes the other, of
course.
841
article | alain quemin
Calculation Result Eff. Coeff Calculation Result Eff. Coeff
Countries 2001 2001 2001 2008 2008 2008
Germany 37.3% 27.0% 0.72 31.1% 32.0% 1.03
USA 16.2% 34.9% 2.15 24.2% 28.6% 1.18
France 6.2% 3.7% 0.60 5.7% 3.8% 0.67
UK 7.4% 6.3% 0.85 5.7% 10.1% 1.77
Italy 4.4% 4.4% 1.00 5.2% 2.7% 0.52
Austria 3.7% 2.8% 0.76 4.8% 2.5% 0.52
Netherlands 3.9% 0.7% 3.2% 1.5% 0.47
Switzerland 7.0% 4.1% 0.59 3.1% 3.2% 1.03
Spain 4.8% / 3.0% 0.7%
Japan 1.1% 2.1% 1.91 2.1% 0.7%
Belgium 1.4% 0.7% 1.6% 1.8% 1.13
Canada / 1.9% 1.2% 2.5% 2.08
China / / 0.9% /
Greece 1.1% 1.0% 0.91 0.9% 0.8%
Denmark 0.9% 0.7% 0.8% 1.5%
Sweden 1.6% / 0.7% /
Ireland / / 0.6% /
Luxemburg / / 0.4%
Poland 0.2% / 0.4% /
Czech Rep. 0.5% / 0.4%
Russia 0.2% 1.7% 0.4% 1.1%
South Korea / 1.3% 0.4%
India / / 0.4% /
Brazil / / 0.3% /
UAE / / 0.3% /
Turkey 0.2% / 0.3% /
Finland / / 0.3% /
Portugal 0.5% / 0.3%
Mexico / 0.8% 0.3% 0.9%
Ukraine / / 0.3% /
Thailand / 0.8% 0.3% 0.8%
South Africa / 1.0% 0.3% 1.4%
Australia 0.4% 0.7% / /
Norway 0.3% / / /
Argentina 0.3% / / /
Denmark 0.2% / / /
Slovenia 0.2% / / /
Serbia / 0.7% / 0.8%
Iran / 0.9% / 1.0%
Iceland / 1.0% / /
Cuba / 0.7% / 0.7%
Albania / / / 0.7%
Table 6
Share of each country in the calculation mode of the Kunstkompass in 2001 and 2008, result in terms of
the share of artists of each country in the indicator and the ‘efficiency coefficient’ in 2001 and 2008
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the impact of nationality on the contemporary art marketso
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Although there is already a general link between the presence of a coun-
try in the calculation mode of the Kunstkompass and the representation of
artists in the ranking, the link itself would be even stronger were country of
residence taken into account rather than – as in the case of the Kunstkompass
– nationality. For instance, it is no surprise that Serbia is represented in the re-
sults of the Kunstkompass both in 2001 and 2008, even though the country had
no certifying institutions in the ranking for either of two years, since its only
‘national’ artist then was Marina Abramovic, who lived for decades in the Neth-
erlands and now lives in the USA, two countries that were both represented in
the calculation mode of the Kunstkompass both in 2001 and 2008. The same can
be said for Albania, represented solely by Anri Sala who lived in France at the
time, as well as Iran – with Shirin Neshat living in the USA – and Iceland and
Cuba. Generally speaking, when the weight of the countries is significant in the
calculation mode of the Kunstkompass, the presence of national artists in the
ranking appears to be quite systematic, but when it is low, the favorable effect
linked to the presence of national artists in the ranking seems to decline.
Still, despite this general tendency, the fact that the link between na-
tional contributions to the calculation mode of the ranking and presence of
national artists in the resulting top 100 is not entirely systematic can also be
illustrated by the uneven efficiency – that is to say positive influence – of the
presence of the various countries in the elaboration of the ranking. For all those
countries whose contribution to the calculation of the Kunstkompass is higher
than 1% or whose artists account for more than 1% of international artistic
production as synthesized in the ranking, we calculated an efficiency ratio by
dividing the weight of artists of a given country by the weight of the same coun-
try in the calculation mode of the indicator. The results show extremely marked
differences between nations. In 2001, Germany showed a counter-performance
(an efficiency ratio of 0.72 only) with its artists doing less well than might be
expected were we to consider the country’s share in the calculation mode of
the Kunstkompass. However, the situation evolved strongly and by 2008 the
result of German artists had become proportional to the presence of Germany
in the elaboration of the indicator (1.03) – that is to say, somewhat overrated
given the still excessive contribution of German institutions to calculating the
Kunstkompass.
In 2001, the efficiency coefficient of the USA was excellent: 2.15. It fell
to a more subdued performance of 1.18 ‘only’ – still positive though – in 2008,
probably because more foreign artists joined the American art scene and these
are still considered foreigners by the Kunstkompass. This tends to lessen the
American performance, which would otherwise be much better. The very sat-
isfactory score achieved by the USA is a clear sign of the strong legitimacy of
American artists – and artists living in the USA – on the international contem-
porary art scene.
843
article | alain quemin
In 2001, the efficiency coefficient of the United Kingdom was below 1
(0.85), which showed some weakness, but rose to 1.77 in 2008, a sign of the
strengthening of British artists on the international art scene during the first
decade of the millennium.
By contrast, the situation is worrying for Italy and France. In 2001, the
presence of Italian artists in the Kunstkompass was proportional to the contri-
bution of the country in the indicator (1.0), but it degraded heavily in less than
a decade to reach just 0.52 in 2008, a sign of the decline in the Italian artistic
presence internationally over recent years. France also faces a worrying situa-
tion with efficiency rates of 0.60 and 0.67 only in 2001 and 2008, revealing that
its artists do far worse than what might be expected given the influence of
French institutions in the international contemporary art scene. As I have
shown in previous works, France and Italy have experienced a declining vital-
ity in this area since the beginning of the 1970s. This is probably due to bad
strategic choices with each of the countries reinforcing its connections – for
example in terms of artists being exhibited in its main museums – with the
other country at a time when both were encountering a certain decline on the
global scene and becoming more peripheral, thus accentuating their mutual
decline. Moreover, France’s loss of its central position on the art market, which
was long concentrated in the country but shifted away from it in the 1960s, had
devastating effects for the French scene and artists. Hence, while success gen-
erally begets success (Merton, 1968), at least in the short term, in the longer
term, evolutions among countries are perfectly possible, as shown by Germa-
ny’s progress in the 1980s, the UK’s in the 2000s, and the slow decline experi-
enced by France and Italy since the 1970s.12
IV. THE artrevieW POWER 100
After studying the share of the different countries in the construction mode of
the Kunstkompass, I now turn to a third indicator: the ArtReview Power 100.
This list aims to objectively identify the most influential or powerful actors in
the contemporary art world – that is, the players who can influence the very
uneven success and consecration of artists examined earlier.
Analyzing the weight of the various countries in the construction of
the Kunstkompass reveals a homology (Bourdieu, 1989) between the share of
the different nations in the construction of the indicator through their certify-
ing institutions and the share of their national artists in the list. Is this finding
corroborated by the analysis of another indicator, the Power 100? The Power
100 ranks the alleged 100 most powerful figures in the contemporary art world
in a list that, unlike the previous two analyzed earlier in this article, extends
far beyond artists to include collectors, gallerists, museums directors, curators,
critics and so on.
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The methodology
Once again, I quickly need to present the methodology of the Power 100 before
analyzing this indicator from a sociological perspective. It may be worth stress-
ing here that the methodology used to elaborate the Power 100 seems to be
rather loose. The authors state that they ask experts from the art world to name
who they consider to be the most powerful personalities in the contemporary
art domain. However it seems that the authors mostly ask the journal’s col-
laborators and there are no indications to the identity (or even general charac-
teristics) of the respondents, or even how many there are. Although this is
somewhat frustrating for the social scientist who wishes to know more about
these features, it should be emphasized that the rankings are plausible enough
for the Power 100 to have been published for 12 years now and still retain le-
gitimacy in the art world. Besides, one of the findings of my work on fame in
the art world (Quemin, 2013b) has been that, when it comes to consecration,
the impact of methodologies is rather limited. Despite the very different meth-
odologies used by the Kunstkompass and the Capital Kunstmarkt Kompass, for
instance, with the use of a much more substantial methodology by the second
indicator, when it comes to the top of the rankings, the differences between
the two lists are very small. It is as though consecration imposes itself on ana-
lysts whatever methodology is used and whatever its complexity. Moreover, like
all rankings that possess a high visibility and legitimacy in the contemporary
art world, the Power 100 plays a performative function and partly creates the
reality that it is merely supposed to reveal.
The Power 100 was first published in 2002 in a British magazine, The
ArtReview, and has been published on a yearly basis ever since. Although it is
only supposed to show who the most important players of the art world are
each year, its repeated publication also offers a valuable observation tool for
determining the extent to which power is stable over time. Furthermore, as the
names of the art figures listed in the Power 100 are accompanied by a short
biography, it is also possible to analyze the characteristics of the major players
from the contemporary art world: for instance, in terms of activity (gallerist,
collector, artist…), gender (Quemin, 2013b) or nationality (or country of resi-
dence), and how these characteristics have evolved over time.
In all these domains, the Power 100 enables us to test Bourdieu’s hypoth-
esis of a homology (1989) between the characteristics of the judges and those
being judged – in terms of gender (Quemin, 2013b), for example, but also in
terms of nationality, the topic that interests us in this article.
First of all, I analyzed the nationalities of all personalities listed in the
Power 100 between 2006 and 2012. In all, 239 different players appear on the
lists between these two dates with many of them staying for several or indeed
many years (Quemin, 2013b).
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article | alain quemin
USA 35.0%
Germany 13.0%
UK 12.3%
Switzerland 6.2%
France 5.4%
Italy 2.9%
Eastern Europe 3.8%
Canada 0.6%
Latin America 3.5%
Asia 5.6%
Middle East 3.6%
Oceania 0.4%
Africa 0.4%
Table 7
Breakdown of personalities in the ArtReview Power
100 from 2006 until 2012 by country or groups of countries
Once again, power in the contemporary art world seems to be concen-
trated in the hands of a small group of countries. This result is very different
from the usual discourse on globalization and the erasure or disappearance of
borders in the contemporary sphere. Moreover, these countries are the same
as those encountered when I tried to objectively determine the most successful
countries in terms of artistic fame. As in nearly all cases, the USA comes first,
a considerable distance from its usual challengers, Germany and the United
Kingdom. It should be pointed out here that since the Power 100 is elaborated
by a team of British journalists, the influence of British players in the contem-
porary art world seems to be overestimated, just like the influence of German
institutions has tended to be overestimated by German journalists elaborating
the Kunstkompass. The USA, Germany and the United Kingdom, which respec-
tively concentrate 35.0%, 13.0% and 12.3% of all personalities listed in the Pow-
er 100 between 2006 and 2012, dominate all other countries, as frequently reg-
istered earlier in this article. These are followed by a group of three countries
also often encountered together and whose positions tend to be quite similar:
Switzerland accounts for 6.2%, France for 5.4% and Italy for 2.9%. Combined
these six countries account for no less than three-quarters of the power in the
international contemporary art world. The share of other Western European
countries is limited to 6.4%, Eastern Europe to 3.8%, Asia 5.6%, the Middle East
3.6%, Latin America 3.5%, and Africa and Oceania just 0.4% each. Of course, it
could be argued that the concentration on the Western sphere is partly due to
the fact that the ranking is produced in a Western country. Still, this does not
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concern all Western countries indifferently but rather always the same leading
nations in the same region of the world. A vast majority of Western countries
also occupy a peripheral position on the international art scene. Even though
China – to take just one example of an important non-Western country – has
become a key player in the international contemporary art market, it has not
even tried to develop a ranked list of the most powerful or influential players
in the contemporary art world that could rival the one elaborated and pub-
lished by the ArtReview team.
One surprising trait of the Power 100 is that – unlike the previous rank-
ings of artists explored earlier in the article, which proved very stable over time,
reflecting that success generally begets success (Merton, 1968) – the turnover of
personalities listed in the Power 100 is especially high. In contrast to the Kun-
stkompass, where turnover is generally around 5% from one year to the next,
the turnover rate in the Power 100 can be as high as 30%! Even so, a downward
trend was noted to the rate, which reached 28% in 2007 and as high as 35% in
2008, but fell to 24% in 2011 and ‘just’ 17% in 2012 (Quemin, 2013b). It may be
considered surprising that players who are supposed to hold the power in the
contemporary art world and who are listed as such in the Power 100 do not
appear in the ranking on a permanent basis. Given the high turnover to the
Power 100, I decided to elaborate a new ‘ranking of the rankings’ by compiling
the information for the years 2006 to 2012, taking into account the number of
appearances of each actor from the contemporary art world during those seven
years and calculating the average rank of all players appearing between one and
seven times. I then decided to focus on the top 100 personalities from the new
ranking and study their characteristics. Here I shall focus on their nationalities.
The main difference when comparing the nationalities of the top players
from the contemporary art world with all the actors listed at least once in the
ArtReview Power 100 listings is that the United Kingdom share increases very
significantly from 12.30% to 20.30%, which probably illustrates the bias in favor
of British actors remarked upon earlier. Otherwise the overall lines of the pre-
vious analysis remain unchanged. When we compare the nationalities of the
personalities that appear in the ranking with those of the artists who are se-
lected, focusing simultaneously on the most frequently represented countries
and on the non-Western world, a strong correlation emerges. This offers a good
illustration of Bourdieu’s hypothesis of homology (Bourdieu, 1989) between
those who label (Becker, 1982) works as contemporary art and consecrate art-
ists, on one hand, and those who become consecrated, on the other, when we
take into account the national or territorial factor. In terms of artistic consecra-
tion, certification power is still concentrated in the hands of a small number
of institutions and players, nearly all Western: they still mostly promote West-
ern artists belonging to a very limited number of countries with strong concen-
tration effects on the United Kingdom, Germany and especially the USA.
847
article | alain quemin
Country Top players (At least one appearance)
USA 35.70 % 35.00 %
United Kingdom 20.30 % 12.30 %
Germany 13.00 % 13.00 %
Italy 6.00 % 2.90 %
Switzerland 5.80 % 6.20 %
France 4.00 % 5.40 %
China 2.50 % 3.10 %
Russia 1.30 % 1.40 %
Mexico 1.30 % 1.40 %
Austria 1.00 % 0.80 %
Sweden 1.00 % 0.80 %
Greece 1.00 % 0.80 %
Poland 1.00 % 0.80 %
Canada 1.00 % 0.60 %
Serbia 1.00 % 0.40 %
Ukraine 1.00 % 0.40 %
Japan 1.00 % 0.40 %
Venezuela 1.00 % 0.40 %
South Africa 1.00 % 0.40 %
Rest of the world / 14.90 %
Table 8
Breakdown of the top 100 most powerful players from the international contemporary
art world from 2006 to 2012 in the ArtReview Power 100 (and comparison with the
breakdown of countries of the 239 players appearing at least once in the lists)
V. WHAT ABOUT THE MARKET?
Finally we can analyze whether the star artists – as they are called – listed
in the rankings are the same as the most successful artists on the art
market, or whether, at least, they share similar characteristics in terms of
nationality. First this enables us to test Raymonde Moulin’s hypothesis that
art value is created where the art institutions and the art market converge
(Moulin, 1992). For this purpose, I compared the first two rankings, the
Kunstkompass and the Artfacts Kunstmarkt Kompass, with two indicators
of success on the art market. Since private transactions between the walls
of art galleries and their booths at art fairs remain discreet, we had to
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concentrate on data relating to auctions. We chose two sources, the rank-
ing of the 500 top selling artists annually published by Artprice for the
contemporary sector (Artprice, 2012) and the artists most present in Chris-
tie’s and Sotheby’s prestige May and November contemporary art sales,
held in both London and New York City. As a matter of fact, in both cases,
the link between success or visibility in institutions measured by the Kun-
stkompass and Artfacts Kunstmarkt Kompass, on one hand, and market
indicators, on the other, is rather weak and tends to invalidate Raymonde
Moulin’s theory, at least in relation to top artists and recent years (Quemin,
2013b). Lists of star artists for the market and for institutions tend to di-
verge considerably. This is all the more noticeable in the case of the Art-
facts ranking where some elements connected to the market – presence
in art galleries and gallery shows – are used in the calculation mode of this
indicator.
In particular, the sudden explosion of China on the auction market
from 2007 onwards (Quemin, 2014d) resulted in a strong disconnection
emerging between star artists as they are identified and produced by in-
stitutions – the most central of which are still overwhelmingly located in
the Western world – and the most successful artists on the art market.
Although no less than 45% of living contemporary artists fetching the
highest prices at auctions in 2012 were Chinese, the presence of Chinese
artists in rankings that exclusively or primarily express institutional vis-
ibility remained extremely limited. In 2012, Chinese artist Ai Weiwei13 was
ranked 89th in the Kunstkompass and there was no Chinese artist in the
top 100 living artists from the Artfacts ranking. Unlike real superstars such
as Gerhard Richter, Andreas Gursky or Jeff Koons, who generally combine
institutional success and record prices at auctions, Chinese artists, even
when they achieve tremendous success on the market, still encounter dif-
ficulties in being included on the programs of the most prestigious (West-
ern) contemporary art institutions. Furthermore, while the tremendous
market success of Chinese artists very significantly opened up the field to
non-Western artists, it was limited to the market and mostly just one seg-
ment of it, namely the auctions (revealingly enough, there are no impor-
tant Chinese contemporary art galleries).14 In addition, this spectacular
breakthrough did not make a huge difference in terms of opening the field
to other non-Western countries. Aside from the major success of Chinese
artists at art auctions, mostly organized in China and aimed at Chinese
buyers, the most successful artists on the ‘real’ international art market
remain American, German or British, once again confirming the central
positions of these countries in the contemporary art world.
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CONCLUSION
Although actors in the contemporary art world generally tend to deny it,
nationality and territory have a major effect on fame and on the artistic
consecration process. This is true when we consider an indicator like the
Kunstkompass but also when referring to others with much more complex
methodologies – and probably with less biases, notably in terms of nation-
alities – such as the Capital Kunstmarkt Kompass elaborated by Artfacts.
Far from being present anywhere on the surface of the planet or coming
from any region or continent, the most recognized artists generally belong
to a very small number of countries that are all Western and among which
the United Kingdom and Germany, but even more so the USA, take the li-
on’s share. A similar phenomenon of concentration among a very small
number of leading nations in the contemporary art sector can be found,
with the same countries playing the central roles, when we turn to study
the most influential art institutions – through the Kunstkompass method-
ology – or the most powerful players in the contemporary art world,
through the personalities listed in the ArtReview Power 100. The most fa-
mous international artists belong to a very select number of countries and
likewise the players who elect them, whether these are institutions or
individual actors. Moreover, these countries are quite systematically the
same, forming the core of the contemporary art world. As far as the market
is concerned, at least its auction sector, the field has been massively
opened to the non-Western world with the sudden explosion of Chinese
art in 2007. However, this has not really opened up the international art
scene to other countries and the presence of Chinese artists at the most
prestigious contemporary art sales organized by Christie’s and Sotheby’s
remains extremely scarce, showing that even in this sector, territorial fac-
tors continue to play a central role.
Received 05/05/2015 | Approved 08/16/2015
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Alain Quemin is Professor of Sociology (exceptional class) at the Univer-
sité de Vincennes – Paris 8/Institut d’Etudes Européennes and a researcher
at Labtop-CRESPPA, based at the French National Center for Scientific Re-
search (CNRS). He is also an honorary member of Institut Universitaire de
France, former president of Research Committee 37 (Sociology of the Arts)
for the International Sociological Association, and former vice-president
of the Sociology of Arts Research Network of the European Sociological
Association. His specialization is in the sociology of art markets and insti-
tutions, globalization and the arts, and artistic fame and consecration.
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ENDNOTES
1 This article has been adapted from Quemin 2013c.
2 I found about 70 rankings that can be analyzed sociologi-
cally in order to understand how fame is constructed in the
contemporary art world and how it works, and to empiri-
cally test theories that seek to explain artistic careers and
artistic value (Quemin, 2013b).
3 It seems that the first edition of the book covered the lives
and works of just 29 dead or living artists. In later versions
of the publication, the number of artists rose markedly.
4 In this article, contemporary art is taken to be defined as
such by the informal academies that control the contem-
porary art world (Becker, 1982). Some chronological criteria
are generally adopted, usually works from 1945 or 1970 on-
ward. More fundamentally, though, not all the art works
produced within this time range are held to be contempo-
rary and informal academies have to agree on what is re-
ally contemporary (Moulin, 1992; Quemin, 2001).
5 In fact, prior to the creation of the Kunstkompass in 1970,
the first real ranking of artists was published by French art
magazine in 1955 (the journal itself was founded in 1952).
Only 5 rankings were published, however: in 1955, 1961,
1966, 1971 and 1976. The methodology was also rather
loose and involved consulting ‘experts’ in the art world
(Verger, 1987). It should be mentioned here that although
museum directors and curators tend to consider 1970 as
the date of birth for contemporary art as a category, art
historians adopt a different convention, identifying the
year 1945. In both cases, the emergence of contemporary
art as a category is more or less simultaneous to the crea-
tion of artist rankings.
6 A similar profusion of rankings can be observed in many
other domains of social life (Nelson Espeland & Sauder,
2007) dating from the 1970s: “In the past two decades, de-
mands for accountability, transparency and efficiency have
prompted a flood of social measures designed to evaluate
the performances of individuals and organisations” (p. 1);
“The proliferation of quantitative measures of performance
is a significant social trend” (p. 2); “All trends suggest that
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organisational rankings will spread and become more en-
compassing” (p. 8).
7 Although in theory the methodology is available on de-
mand, our requests have generally been ignored.
8 The figures for the period from 1994 to 2006 can be found
in Quemin, 2013b.
9 With the exception of 2009 when the Kunstkompass meth-
odology was probably redesigned, which caused huge – but
only temporary – changes in the results (see Quemin,
2013b).
10 Two artists divide their time between their country of birth
and another.
11 The lists of institutions included in the construction of the
Kunstkompass in 2001 and 2008, together with the corre-
sponding coefficients, can be found in Quemin, 2013b.
12 More marked evolutions such as the rise and fall of coun-
tries over the longer term are analyzed in Quemin, 2002,
including an analysis of the different factors that may help
explain these phenomena.
13 It may be useful to point out that Ai Weiwei lived for many
years in the Western world before returning to China. His
familiarity with the American contemporary art world and
its norms may have facilitated his access to international
success.
14 Although some of the most successful Chinese artists are
represented by prestigious European and American galler-
ies, including Gagosian, Pace or White Cube, they always
constitute a minority in their rosters, and indeed only rep-
resent a tiny part of them, especially when their numbers
are compared to American or even German or British artists.
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O IMPACTO DA NACIONALIDADE NO MERCADO DE
ARTE CONTEMPORÂNEO
Resumo
A nacionalidade e o território afetam grandemente a fama
artística, embora os atores no mundo contemporâneo da
arte tendam a negar o fato. Os artistas mais reconhecidos
geralmente pertencem a um seleto número de países oci-
dentais entre os quais o Reino Unido e a Alemanha, mas
também os Estados Unidos, e ganham a parte do leão. Isso
se reflete na representação desigual dos países na elabo-
ração de classificações como a Kunstkompass, utilizada
para objetivar a fama e visibilidade dos artistas. O número
muito pequeno de países que concentram os artistas mais
famosos também indica a homologia com a nacionalidade
dos mais poderosos atores do mundo artístico contempo-
râneo, tal como relacionado na ArtReview Power 100. Na
conclusão, mostro que, ao menos para os anos recentes
dos principais artistas, as nacionalidades daqueles mais
evidenciados em instituições e daqueles mais bem suce-
didos no mercado divergem.
THE IMPACT OF NATIONALITY ON THE
CONTEMPORARY ART MARKET
Abstract
Although actors in the contemporary art world tend to
deny the fact, nationality and territory have a major ef-
fect on artistic fame. The most recognized artists gener-
ally belong to a very select number of countries that are
all Western and among which the United Kingdom and
Germany, but even more so the USA, take the lion’s share.
This reflects the uneven representation of countries in
the elaboration of rankings, like the Kunstkompass, used
to objectivize the fame and visibility of artists. The very
small number of countries concentrating the most famous
artists also shows a homology with the nationality of the
most powerful players from the contemporary art world,
as listed in the ArtReview Power 100. In concluding the ar-
ticle, I show that, at least for top artists over recent years,
the nationalities of the most visible artists in institutions
and those of the most successful artists on the artists on
the market diverge.
Palavras-chave
Mercado de arte;
Reputações;
Fama;
Hierarquias;
Globalização.
Keywords
Art market;
Reputations;
Fame;
Rankings;
Globalization.
Sandro Ruduit Garcia I
PROFISSIONAIS CRIATIVOS EM CIÊNCIAS E ARTES NA CIDADE DE PORTO ALEGRE1
A expansão mundial de uma nova economia baseada no conhecimento e na
criatividade instiga o questionamento sobre as relações entre criatividade e
mercado (Comissão Europeia, 2010; UNCTAD, 2008, 2010; Unesco, 2013). As an-
tigas e influentes formulações sobre as indústrias culturais denunciaram, com
base na observação de sociedades industriais de massa, a impossibilidade
da criação autêntica sob as condições alienantes do mercado e da tecnologia
(Adorno & Horkheimer, 1985). O processo de acumulação capitalista mercanti-
lizaria a ciência e a arte, corrompendo seus propósitos críticos. Em contraste,
os conceitos derivados das formulações sobre indústrias criativas (economia
criativa, classe criativa, cidade criativa) destacam a recente centralidade ad-
quirida pela criatividade no processo econômico, em razão de mudanças na
tecnologia, no direito e na sociedade (Caves, 2003; Florida, 2011; Howkins, 2013;
Landry, 2011). Neste caso, as instituições e regras da economia atual propicia-
riam mais liberdades e recursos para a expressão de talentos e habilidades de
agentes individuais. Em alternativa, a proposta deste artigo é tentar oferecer
uma compreensão sobre a complexidade do processo de criação de artefatos e
de sua transformação em bens e serviços com valor mercantil, indagando: Que
tipos de interesses e de interações sociais sustentam as atividades de criação
de profissionais das ciências e das artes?
O estudo utiliza-se da abordagem da sociologia econômica, especial-
mente a perspectiva compreensiva e multidimensional de Max Weber (2003;
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5I Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
Departamento de Sociologia, Brasil
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2004; 2006). Esse approach pode oportunizar um novo ângulo de observação
dessa realidade, ainda pouco investigada pela sociologia como fenômeno eco-
nômico. Estudos recentes em sociologia econômica têm apontado para os ga-
nhos científicos em se buscar uma abordagem mais processual e relacional das
atividades de criação que se traduzem em inovações nos mercados. Segundo
Swedberg (2006), os estudos sobre indústrias criativas poderiam encontrar na
sociologia clássica elementos para pensar a integração entre economia, arte
e empreendedorismo, identificando os contornos de um “empreendedorismo
cultural”. Outros (Hütter et al., 2010) chamam a atenção para o fato de que a
criação da novidade, em geral, e da inovação, em particular, dependeria da
combinação entre cognição, condições técnicas e constelações culturais, sendo
mais adequadamente concebida como processo sociomaterial e pela cognição
distribuída. O processo criativo requereria, na contribuição de Ramella (2013),
a confluência de diversos fatores, como a inteligência e motivação individual,
a dinâmica empresarial e setorial, os recursos e ativos territoriais, e o enrai-
zamento social.
Neste artigo, argumento, em resumo, que as atividades de criação dos
agentes dependem de uma complexa combinação entre diferentes interesses
e interações sociais, exprimindo-se sempre de forma contextual. Os profis-
sionais criativos em ciências e artes tendem a se interessar não apenas pela
busca de bem-estar material, mas também pelo reconhecimento pessoal e pelo
sentido ético do que fazem, criando artefatos com valor econômico e com a
atribuição de significado social, aspirando à conciliação entre crescimento na
carreira e qualidade de vida, e construindo trajetórias e redes de interações
diversificadas que lhes permitem acessar recursos relevantes. Neste sentido,
a criatividade não seria uma substância contida em mentes isoladas no labo-
ratório ou no ateliê, nem o resultado estrito da racionalidade econômica. Esse
tipo de atividade amparar-se-ia nas possibilidades de uma nova materialidade
tecnológica e na legitimação de ideais, como a sustentabilidade e a qualidade
de vida, demarcando lógicas de ação distintas do mundo industrial.
O pressuposto da análise é que a ação socioeconômica seria, predo-
minantemente, movida por interesses materiais e ideais, orientando-se para
a geração de utilidades (bens e serviços) e para o comportamento de outros
agentes. O costume e as emoções podem, secundariamente, constituir motivos
para a ação socioeconômica. Nesse sentido, os fenômenos econômicos seriam,
complexa e probabilisticamente, condicionados: a) por variadas combinações
(e “pesos”) entre interesses materiais (racionalidade formal/ instrumental) e
interesses ideais (racionalidade substantiva/de valor); b) por costumes (mo-
do tradicional) e emoções (modo afetivo); e c) por sentidos atribuídos pelos
agentes nas interações (passadas, presentes e como expectativas futuras) com
outros agentes (Weber, 2004). Esse pressuposto é desenvolvido de forma inte-
grada com formulações mais recentes em sociologia econômica – em especial,
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o enfoque relacional da chamada nova sociologia econômica – no que se refere
às dimensões: a) das combinações entre interesses diversos dos agentes eco-
nômicos; e b) das atividades econômicas e arranjos de interação dos agentes.
A discussão é conduzida com base na experiência de profissionais das
ciências e das artes na cidade de Porto Alegre. A cidade tem sido destacada
como polo de criatividade, detendo duas importantes universidades do pa-
ís, e hospedando diferentes incubadoras e parques criativos e tecnológicos.
Agentes empresariais, educacionais e governamentais têm se esforçado para
transformar a cidade em referência em tecnologias da informação e comuni-
cação (TICs). Ao mesmo tempo, pode-se constatar importantes iniciativas de
criação de conhecimentos e inovação requeridos para a exploração pelo país
dos recursos energéticos relacionados ao pré-sal. Ademais, a cidade é reconhe-
cida como um dos polos culturais do Mercosul, e uma das sedes da Copa do
Mundo de Futebol de 2014 no Brasil, ensejando movimentações nas indústrias
de comunicação, design, arquitetura, entretenimento e gastronomia. Tudo isso
indica a existência de curiosas dinâmicas econômicas em torno de pequenos
empreendimentos e universidades, consultorias e agências culturais, consti-
tuição e crescimento de empresas de tecnologia, envolvendo profissionais já
consolidados e ingressantes nas suas carreiras em ciências e artes.
O objetivo central do artigo é, portanto, compreender e analisar con-
dicionantes das atividades de criação de profissionais em ciências e artes na
cidade de Porto Alegre, considerando-se, como dimensões de análise, as dife-
rentes combinações de interesses que os movem e os arranjos e interações
estabelecidas pelos mesmos nesse processo (além das próprias atividades de
criação). O processo de amostragem orientou-se pela representatividade teó-
rica dos dados empíricos, com a intenção de alargar a amplitude de interesses
e de arranjos de interações dos agentes. Foram acessados profissionais em ci-
ências e artes na cidade que se implicaram na geração de artefatos singulares
transacionados em mercados de produtos. A partir de investigação exploratória
na Internet, contataram-se casos de interesse, privilegiando-se aqueles que
atuassem em universidades – centro de criatividade e trocas de conhecimentos
entre profissionais de excelência – e, ao mesmo tempo, prestassem serviços
para empresas, assim como em diferentes tipos de pequenos empreendimen-
tos, observando-se significativos e variados segmentos de atuação e momentos
na carreira.2
O corpus de pesquisa alcançou certa diversidade, envolvendo dados so-
bre a experiência de doze profissionais criativos em diferentes momentos da
carreira: seis atuantes em universidades (no caso, a Universidade Federal do
Rio Grande do Sul – UFRGS), sendo três seniores e três juniores; e seis atuantes
em ateliês, agências, estúdios, editora e start up, sendo também três seniores
e três juniores. Consideram-se seniores os profissionais cuja formação e ex-
periência se acham consolidadas; juniores são os profissionais que aspiram
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complementação na sua formação e experiência na área de atuação. Os entre-
vistados pertencem a distintas profissões: quatro pesquisadores em geologia,
três designers, um artesão, um músico, um profissional da publicidade, um
profissional da literatura e um arquiteto. A pesquisa de campo foi realizada
entre abril e novembro de 2013, mediante entrevistas individuais semiestru-
turadas em profundidade que se pautaram pelas dimensões de análise acima
indicadas. As entrevistas ocorreram nos locais de atuação dos profissionais,
sendo gravadas, transcritas e codificadas para análise.
Seguem-se exposição de aspectos relevantes da literatura especializada;
caracterização dos profissionais e produtos criativos investigados; e análise,
em diferentes seções, dos interesses dos profissionais (cientistas e artistas),
e dos arranjos e interações em que os entrevistados se acham envolvidos no
processo de criação.
CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS
O fenômeno econômico em discussão neste estudo se traduz nas atividades
de criação de produtos (bens e serviços) pelos profissionais de setores liga-
dos à economia baseada no conhecimento e na criatividade, tentando melhor
conhecer aspectos de alguns dos seus condicionantes. Esse debate ganhou
ímpeto em torno do que se tem chamado de economia criativa. Sem entrar em
detalhes sobre a construção, origens e críticas ao conceito,3 vale mencionar,
sucintamente, algumas das principais contribuições ao mesmo, sublinhando
a sua íntima relação com a nova economia e suas diferenças em relação ao
mundo industrial de massa (Flew & Cunningham, 2010; Pine & Gilmore, 1998).
A economia criativa consistiria, para Howkins (2013), em transações mer-
cantis de produtos considerados criativos, em razão de sua novidade ou origina-
lidade. A fonte de riqueza seria a criação de ideias e conteúdos simbólicos trans-
formados em produtos no mercado, destacando que a criatividade floresceria,
igualmente, nas ciências e nas artes. Tais produtos (bens e serviços) tenderiam
a ser protegidos por direitos de propriedade intelectual (patentes, marcas, dese-
nhos e, em especial, direitos autorais).4 Florida (2011) identifica a constituição de
uma classe criativa, no contexto da economia e sociedade atuais. Essa tenderia
a priorizar a criatividade, a individualidade e o mérito, demarcando um ethos
distinto do mundo industrial. O profissional criativo seria aquele propenso a se
envolver na concepção de “produtos criativos”, sendo, hoje, o principal fator de
atração de empresas de alta tecnologia e, com isso, de promoção do crescimento
econômico de uma região.5 O estudo em tela refere-se estritamente ao núcleo
da economia criativa (atividades de concepção de artefatos).
Os processos de criação seriam expressos em diferentes fases – como a
descoberta/construção de um problema, a análise da situação e identificação
de alternativas e o desenvolvimento de solução original – traduzindo-se em
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termos de unicidade (ideia sem precedentes) ou de novidade (ideia com novo
caráter pela combinação de ideias já existentes) (Amabile, 1998; Ramella, 2013).
Essas atividades podem resultar em artefatos que proporcionam realização
pessoal (conceber e dar forma a um objeto), ou gerar, além disso, produtos
associados a um mercado e a um aparato legal (inovação). A criatividade por si
só não teria valor econômico, dependendo de diretrizes sobre leis e contratos,
de convenções e normas sobre razoabilidade dos negócios e de existência de
mercados (Howkins, 2013). Em qualquer caso, as atividades no processo de
criação dependeriam da combinação de habilidades dos agentes (estilos cog-
nitivos, conhecimentos, motivação) e condições ambientais (tecnologias, nor-
mas e convenções, reconhecimento) (Amabile, 1998). Mais do que isso, pode-se
conjecturar sobre a criatividade como um processo sociomaterial e distribuído,
envolvendo um conjunto de relações heterogêneas que, no caso de bens e ser-
viços, perpassam o mercado (Callon, 1986; Hütter et al., 2010).
Como antes mencionado, entende-se que o curso da ação socioeconô-
mica seria movido por interesses plurais, correspondendo a um contexto de
significados (Weber, 2004). Os agentes sociais não realizariam “atos gratuitos”
ou desinteressados, sustentando-se sempre por uma complexa lógica das prá-
ticas sociais: “interesse é ‘estar em’, participar, admitir, portanto, que o jogo
merece ser jogado e que os alvos engendrados no e pelo fato de jogar mere-
cem ser perseguidos” (Bourdieu, 1996: 139). Os interesses seriam as forças que
movem a conduta dos agentes sociais, justificando-se a relevância sociológica
em tentar compreendê-los e situá-los em contextos de ação (Swedberg, 2005),
pois “os interesses são sempre socialmente construídos e podem apenas se
concretizar tipicamente por meio de relações sociais” (Swedberg, 2004: 26).
Quanto aos profissionais criativos, especialistas têm discutido o pe-
so que estes agentes atribuem às oportunidades econômicas e ao estilo de
vida, na escolha de um lugar para viver e trabalhar, constatando, em maior
ou menor medida, a relevância de atributos não econômicos nas suas esco-
lhas sobre a condução das carreiras (Eikhof & Haunschild, 2006; Florida, 2011;
Golgher, 2011; Tremblay & Darchen, 2011). Bendassolli e Borges-Andrade (2011)
abordam, com base numa amostra de profissionais das artes e da cultura, os
significados do trabalho para esse tipo de profissional no Estado de São Paulo.
Constatam que esses indivíduos atribuem grande importância ao trabalho em
suas vidas, sugerindo forte comprometimento afetivo dos mesmos com suas
carreiras. Isso se refletiria, sob certo aspecto, nos fatores associados a um tra-
balho que tenha significado para esses indivíduos, pela ordem, a possibilidade
de aprender e se desenvolver pelo trabalho, sua utilidade social, a oportuni-
dade de identificação e de expressão por meio do trabalho, autonomia, boas
relações interpessoais e respeito às questões éticas. Ademais, pesquisas recen-
tes (Novy & Colomb, 2013) apontam envolvimentos políticos de profissionais
criativos em ações coletivas, constatando, no contexto das cidades de Berlim
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e Hamburgo, crescente participação de membros da “classe criativa” (no caso,
produtores culturais e trabalhadores artisticamente criativos) em movimentos
sociais urbanos, tornando-se forças sociopolíticas capazes de influir no curso
de políticas de desenvolvimento no âmbito local. Portanto, tais estudos aju-
dam a pensar sobre os interesses desses profissionais, extrapolando a estrita
racionalidade econômica.
Como antes indicado, o estudo concebe o curso da ação socioeconômica
não apenas como sendo movido por combinações de interesses materiais e
ideais, mas também orientado, de forma relacional, para o comportamento de
outros agentes, tornando-se crucial a compreensão do sentido das interações
do agente com o contexto social. Afirma Ramella: “A análise da atividade, ao
contrário, necessita de uma perspectiva integrada, capaz de perceber a inven-
ção como o resultado de um processo complexo de construção social” (Ramella,
2013: 79, tradução minha). Caberia explorar o papel de processos de sociali-
zação (relações passadas) e suas implicações na construção de disposições e
interesses nos indivíduos, podendo favorecer ou dificultar o desempenho em
atividades de criação (Lahire, 2006). Isso leva a indagar sobre a relevância de
trajetórias educacionais e profissionais como condicionantes de atividades de
criação de artefatos/utilidades.
Sabe-se que os profissionais criativos teriam melhor desempenho no
contexto de ampla disponibilidade de tecnologias da informação, de diversi-
dade cognitiva e de conhecimentos, e de organizações flexíveis que lhes possi-
bilitem liberdade e autonomia para o trabalho de invenção/inovação (relações
presentes) (Powell & Snellman, 2004). Empresas com procedimentos rígidos
e burocratizados, com excessiva especialização de tarefas e com comandos
autoritários, representariam condições desfavoráveis à criatividade, ao passo
que empresas mais flexíveis, com reconhecimento e estímulo às novas ideias
e diferentes tipos sociais, e com liberdade e autonomia de ação, tenderiam a
gerar condições mais propícias ao processo de criação (Alencar, 1998; Florida,
2011). As pequenas empresas tenderiam a reunir essas condições favoráveis
mais facilmente do que as grandes organizações (Almeida, 2012; Howkins,
2013; Reis, 2008).
Ademais, o processo de criação apoiar-se-ia em redes de colaboração
diversas, que extrapolam o empreendimento em que se dá forma ao produto,
falando-se em novos modelos de negócios para sustentar o processo de criação
e comercialização desse tipo de produtos (Almeida, 2012). Esses modelos de
negócios em setores da economia criativa estariam envolvendo não apenas
esquemas de financiamento amparados em capital de risco, mas também no-
vas estratégias de distribuição de resultados financeiros em face da gestão e
distribuição de direitos de propriedade intelectual (Barrier, 2011; Cunningham,
2008). Outros analistas (Comunian, 2012; Glaeser, 2011) chamam a atenção
para o papel desempenhado por redes de interação e sociabilidade urbana na
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artigo | sandro ruduit garcia
construção e expressão de diferentes e novos estilos de vida e de culturas de
vanguarda. A literatura aponta maiores chances nas cidades para interação
arte-ciência-negócios, para oferta de lazer e cultura e para disponibilidade
de infraestrutura de comunicação e tecnológica, estimulando a formulação
e combinação de ideias e produtos (Eikhof & Haunschild, 2006; Markusen &
Gadwa, 2010).
Essas considerações brevemente referidas acima consistem em balizas e
conjecturas para a análise dos dados empíricos sobre os interesses e interações
sociais dos profissionais criativos em Porto Alegre feita a seguir.
PROFISSIONAIS E PRODUTOS CRIATIVOS
O perfil dos profissionais entrevistados envolve atuação em setores dinâmi-
cos da nova economia baseada no conhecimento e na criatividade, na cidade
de Porto Alegre (arquitetura, publicidade/design de música, mercado editorial,
design gráfico e digital, design de moda, pesquisa e desenvolvimento, e arte-
sanato). Esses profissionais têm alto grau de escolaridade comparativamen-
te ao conjunto da economia e do mercado de trabalho: foram entrevistados
três doutores (Geociências, Paleoclimatologia e Informática na Educação –
dois realizaram estágio de pós-doutorado), dois doutorandos (Engenharia da
Produção e Geociências), dois mestrandos (Música e Geociências), dois gradu-
ados (Arquitetura e Jornalismo) e três profissionais com graduação incompleta
(um em Nutrição e dois em Publicidade e Propaganda). Trata-se de quatro
entrevistados do sexo feminino e de oito do sexo masculino, sendo seis em
fase de ascensão/consolidação na carreira (júnior) e seis já consolidados e
com ampla experiência profissional nas suas áreas de atuação (sênior). Como
supramencionado, os entrevistados são vinculados a universidades (seis pro-
fissionais) e a ateliês, estúdios, agências e start ups (seis profissionais), na con-
dição de servidores públicos (quatro profissionais), empreendedores (quatro
profissionais), autônomos (três profissionais) e assalariados (um profissional).
Todos trabalham na cidade de Porto Alegre, residindo predominantemente
nesta capital (apenas um entrevistado tem residência na cidade vizinha de
Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre). Quase todos os profissionais
entrevistados detêm algum tipo de direito de propriedade intelectual sobre
artefatos produzidos (direitos autorais, patentes, marcas e desenho industrial):
excepcionalmente, o artesão não detém registro de propriedade intelectual. As
características e o perfil dos entrevistados são esquematizados no Quadro 1.
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Entrevistados Setor Vínculo Organização
Estágio da
Carreira
Propriedade
Intelectual
Entrevistado 1
(Masculino; Doutorando) Arquitetura
Funcionário
Público Universidade Júnior
Direitos autorais,
projetos de edificações
e artigos
Entrevistado 2
(Masculino; Graduação)
incompleta) Publicidade Empreendedor
Agência de
publicidade Sênior
Direitos autorais, peças
publicitárias
Entrevistado 3
(Masculino; Graduação)
Editorial/
Literatura Empreendedor Editora Sênior Livros
Entrevistado 4
(Masculino; Graduação) Gráfico Empreendedor Estúdio Sênior Logomarca
Entrevistado 5
(Feminino; Doutoranda) P&D Autônoma
Universidade/
empresa Júnior
Direitos autorais
artigos
Entrevistado 6
(Feminino; Mestranda) P&D Autônoma
Universidade/
empresa Júnior
Direitos autorais
artigos
Entrevistado 7
(Feminino; Doutorado) Moda
Funcionária
Pública
Universidade/
Ateliê Sênior
Direitos autorais,
coleções e artigos
Entrevistado 8
(Masculino; Graduação
incompleta) Artesanato Autônomo Ateliê Júnior NA
Entrevistado 9
(Masculino; Mestrando) Publicidade
Empregado
Assalariado
Agência
publicidade Júnior
Direitos peças
publicitárias
Entrevistado 10
(Masculino; Graduação
incompleta) Gráfico Empreendedor Júnior Sinalização urbana
Entrevistado 11
(Feminino; Doutorado) P&D
Funcionária
Pública
Universidade/
empresa Sênior Artigos
Entrevistado 12
(Masculino; Doutorado) P&D
Funcionário
Público Universidade Sênior Artigos
Fonte: Pesquisa de campo, Porto Alegre, abril-novembro de 2013.
Quadro 1
Características dos profissionais entrevistados
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artigo | sandro ruduit garcia
Os profissionais entrevistados criam, com apoio em TIC, diferentes tipos
de produtos cuja novidade ou singularidade tende, nas convenções e diretrizes
atuais sobre a transformação da criatividade em produto, a se traduzir em
direitos de propriedade intelectual (Howkins, 2013). Cabe apresentar, breve-
mente, tais produtos. Entre os seniores em universidades, os profissionais da
geologia desenvolvem, em seus respectivos laboratórios/parcerias/projetos,
modelos sobre as condições das rochas que geraram e das que armazenam
petróleo na camada do pré-sal da costa brasileira, resultando na produção de
conhecimentos e de tecnologias mais adequados ao acesso e ao processamen-
to da commodity (entrevistados 11 e 12). O profissional do design de moda cria,
entre a universidade e o ateliê, peças e coleções de vestuário voltadas para a
singularidade do artefato, predominando a concepção e confecção de peças
únicas que não se replicam (entrevistado 7).
O profissional da publicidade desenvolve o som de campanhas/peças
de propaganda para televisão e rádio, requerendo a formulação do conceito
do produto com base em linguagens de comunicação ora de âmbito nacional,
ora de âmbito regional (em menor medida, o profissional também desenvolve
produtos para o mercado internacional: Espanha e Mercosul) (entrevistado 2).
O profissional da literatura escreve, predominantemente, romances, crônicas e
narrativas históricas. Ademais, trabalha na editoração/publicação/divulgação/
circulação de obras de terceiros (entrevistado 3). O profissional do design gráfico
e digital concebe artefatos de comunicação visual tais como logomarcas, emba-
lagens, folhetos, encartes e sinalização/comunicação de lojas (entrevistado 4).
Os entrevistados juniores (em universidades e em “empresas”) envol-
vem-se, igualmente, com artefatos que expressam novidade ou singularidade.
Os profissionais da geologia têm realizado estudos e investigações sobre ma-
peamento sísmico e sobre condições do paleoclima, relacionados às rochas que
armazenam petróleo na camada do pré-sal, permitindo acesso mais preciso ao
recurso natural (entrevistados 5 e 6). O profissional da área de arquitetura tem
trabalhado na criação de softwares para modelagem gráfica de edificações e na
concepção de modelos e softwares aplicados à circulação e mobilidade urbana
(entrevistado 1). O profissional do artesanato desenvolveu, no ateliê familiar,
uma técnica de tratamento e recomposição de papel que se combina com a
prospecção de formas, imagens e fotografias pelas tecnologias da informação,
produzindo artefatos de uso e decoração doméstica e comercial (por exemplo,
porta-copos) (entrevistado 8). O profissional da música compõe, arranja e grava
melodias para peças publicitárias em rádio e televisão (entrevistado 9). O pro-
fissional do design gráfico cria marcas e sistemas de sinalização urbana, como
a indicação de roteiros turísticos e de transporte público (entrevistado 10).
Cabe referir um achado de pesquisa no que tange à percepção dos en-
trevistados sobre direitos de propriedade intelectual. Estes são considerados
relevantes entre profissionais da publicidade e literatura (entrevistados 2, 3 e
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9). Porém, parte dos profissionais entrevistados parece atribuir relativamente
pouca importância aos mesmos (em especial, no design: entrevistados 1, 4, 8
e 10), percebendo-os, inclusive, em alguns casos, como uma dificuldade no
processo de circulação de conhecimentos e produtos (em especial, pesquisa-
dores: entrevistados 11 e 12). Para um dos profissionais, seria um equívoco,
hoje, focar a estratégia empresarial na obtenção de patentes em razão de que
“a propriedade intelectual deixou de ser um grande vetor da economia” nos
setores de rápida inovação (como no caso do design). Justifica sua conclusão
pela percepção de que “o que vale hoje é velocidade e abrangência, ganhar
adesão do usuário e ser rápido” (entrevistado 10). Cumpre notar as diferen-
ças percebidas por alguns profissionais sobre o comportamento de empresas
nacionais e estrangeiras usuárias dos conhecimentos em relação aos direitos
autorais: é comum que empresas parceiras nacionais avoquem direitos e im-
peçam a divulgação e caracterização de resultados de pesquisa, ao passo que
uma empresa parceira estrangeira não reivindica direitos sobre a produção
intelectual, estimulando a publicação de resultados pelos pesquisadores (en-
trevistados 11 e 12).
Assim, parte dos entrevistados parece, paradoxalmente, cumprir os re-
quisitos legais sobre direitos de propriedade intelectual, em cada caso, mais
como uma imposição da legislação do que como estratégia para integrar-se ou
para auferir lucro nos mercados. Caberia pensar se tais achados exprimiriam
a dificuldade dos agentes em manejar os condicionantes legais e burocráticos
da propriedade intelectual no país (Reis, 2012), ou expressariam uma tendência
global entre certos setores econômicos e grupos sociais a eles relacionados
de conceber o conhecimento e seus artefatos como bem público global que se
difunde pela lógica de compartilhamento proposta na Internet (Kaul, Grunberg
& Stern, 2012).
Portanto, os profissionais das ciências e das artes selecionados para
a pesquisa têm envolvimento com atividades baseadas em conhecimento e
criatividade na cidade de Porto Alegre, concebendo novos artefatos (bens e
serviços) e detendo, via de regra, algum tipo de direito de propriedade inte-
lectual. De maneira geral, as atividades de criação dos artefatos, sucintamente
caracterizados acima, requer uma complexa amarração entre investigação e
concepção, interação com materiais e suas surpresas, e manuseio de TIC e suas
possibilidades. Segundo os depoimentos colhidos nas entrevistas, o projeto e a
concepção dos artefatos dependem de um ativo trabalho de pesquisa sobre re-
cursos/insumos envolvidos e sobre necessidades/expectativas do usuário que
se traduz seja em práticas de laboratório (entrevistados 1, 5, 6, 7, 11 e 12), seja
em estudos sobre linguagens/orientações culturais e tradições comunitárias
(entrevistados 2, 3, 8 e 9), seja, ainda, em diagnóstico de demandas e tendên-
cias de mercado (entrevistados 4 e 10). Cabe, pois, saber sobre as dimensões
de análise propostas na investigação.
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artigo | sandro ruduit garcia
INTERESSES PROFISSIONAIS
Os interesses que movem os profissionais das ciências e das artes entrevista-
dos podem ser expressos pelo exame dos significados atribuídos aos artefatos
que resultam das atividades de criação, das avaliações que são feitas sobre o
mercado e sua inserção na atividade econômica e sobre o local de moradia, e
do grau de satisfação com trabalho e carreira.
No que se refere ao significado do produto das atividades de criação,
os entrevistados tendem a revelar uma dupla preocupação em relação ao pro-
cesso de prospecção, concepção e consecução dos artefatos, combinando-se a
avaliação sobre a viabilidade e retorno financeiro do bem ou serviço, e a identi-
ficação de acréscimos de conhecimentos e experiências relevantes na sua car-
reira e de significado “social” dos artefatos (como sustentabilidade ambiental,
qualidade de vida, novos conhecimentos e tecnologias, crítica e sensibilização
pública sobre temas considerados importantes na agenda da comunidade ou
do país). Isso se aproxima das constatações propostas em estudos recentes
(Bendassolli & Borges-Andrade, 2011; Florida, 2011; Golgher, 2011).
Entre os profissionais seniores, isso se expressa de diferentes formas.
Os cientistas que atuam na universidade destacam não apenas o prazer da
“descoberta” e da identificação do dado novo, mas também a importância da
integração dos conhecimentos que estão produzindo e dos recursos humanos
que estão formando ao desenvolvimento da cadeia do petróleo e gás no país
(entrevistados 11 e 12). O profissional sênior do design de moda que também
atua na universidade busca imprimir conceitos e valores críticos ao “consumis-
mo” nas suas atividades de criação (preço justo, sustentabilidade e contracul-
tura de consumo). O entrevistado refere, por exemplo, o desenvolvimento de
uma parceria entre seu ateliê e o banco do vestuário (da cidade de Caxias do
Sul, no interior do estado). O banco do vestuário consiste em uma parceria en-
tre indústria têxtil e artesãos daquela cidade, fornecendo resíduos de tecidos
ao ateliê de Porto Alegre que retribui com a prestação de serviços de consul-
toria e de treinamento de artesãos envolvidos. Esses são, sob outra forma, os
casos do publicitário e do designer gráfico e digital, que buscam, nos projetos
de produção de campanhas e desenvolvimento de logomarcas, escapar às con-
venções estéticas do setor, propiciando não apenas inovações na empresa que
lhes permitem acessar novos clientes e mercados, mas também o regozijo pro-
fissional e pessoal pela criação de produtos que consideram como relevantes
(entrevistados 2 e 4). Ademais, o profissional da literatura e edição recusa-se
a trabalhar em publicações destituídas de sentido, no contexto da sua carreira
e valores, embora pudessem representar retorno financeiro. O editor/escritor
deixa, por exemplo, de publicar textos considerados como do gênero autoajuda,
assim como escreve seus textos com base na seleção de histórias percebidas
como identificadas com a preservação da memória e da cultura locais e como
de relevância ao debate público (entrevistado 3).
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Entre os profissionais juniores, pode-se identificar, a exemplo dos senio-
res, diversos interesses que movem suas atividades de criação. Os profissionais
juniores da pesquisa em geologia destacam o prazer em pesquisar e em produ-
zir novo conhecimento (entrevistados 5 e 6). É igualmente significativa, sobre
isso, a experiência do profissional da arquitetura e professor que direcionou
seus projetos e atividades para a criação e aplicação de softwares de mode-
lagem gráfica para edificações, acreditando que a área de arquitetura perdeu
sua identidade e pouco contribui na formulação de soluções para demandas
da sociedade avaliadas como importantes pelo entrevistado (entrevistado 1).
O profissional júnior do design gráfico identifica uma nova área de atuação no
setor a partir da formulação de uma concepção sobre o uso do espaço público
urbano em que reflete, criticamente, sobre a “poluição visual” das cidades no
país. Isso implicou a criação de novos produtos em design e sinalização urbana,
que encontrou resistências no empreendimento anterior ao qual o profissional
se manteve associado, partindo disso a motivação para o estabelecimento da
start up atual (entrevistado 10). O profissional da música que atua em agência
de publicidade refere sua orientação em integrar ao produto uma dimensão
artística, empenhando-se na criação dos artefatos pela aplicação de elementos
eruditos da música contemporânea (sua área de formação, pesquisa e interesse
atuais) (entrevistado 9). O profissional do artesanato foca suas atividades de
criação em produtos inéditos cujo significado é encontrado na observação da
vida urbana cotidiana (o profissional vale-se também da fotografia), empre-
gando a técnica de tratamento do papel e o uso de TICs. O entrevistado avalia
criticamente o artesanato que se repete, seja pela produção em escala, seja
pela simples reprodução da tradição (entrevistado 8).
Quanto às avaliações sobre mercado, vínculos com a vida econômica e
local de moradia, os profissionais entrevistados tendem a perceber o merca-
do mais como um meio para veicular sua produção do que como empecilho
à expressão ou distorção de suas ideias em ciências e artes. Entendem, no
mais das vezes, como viável a compatibilização entre satisfação profissional
e competição no mercado, embora expressem reiteradamente pressão das de-
mandas do trabalho sobre a vida pessoal e familiar. Os entrevistados tendem
a dar certa prioridade para sua qualidade de vida em face das demandas do
trabalho, empenhando-se com a delimitação do tempo de trabalho e com o cul-
tivo das relações familiares (por exemplo, almoçar com a família, acompanhar
os filhos) e de atividades de lazer e entretenimento (como literatura, filmes,
exposições, esportes, culinária, viagens, amigos). Desse modo, as indicações
acima parecem compatíveis com a hipótese sugerida pela literatura de que
profissionais criativos empenham-se em conjugar progresso e perspectivas na
carreira com qualidade e estilo de vida, embora a concepção sobre o que seja
isto possa variar entre contextos culturais (Eikhof & Haunschild, 2006; Florida,
2011; Golgher, 2011; Tremblay & Darchen, 2011).
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Os profissionais entrevistados mostram-se interessados em viver em
Porto Alegre, embora alguns juniores tenham assinalado a possibilidade de vi-
ver em cidades economicamente mais dinâmicas do país – Rio de Janeiro e São
Paulo (entrevistados 1 e 6). Identificam limitações na dimensão dos mercados
em Porto Alegre, mas acreditam que seu estilo de vida seja incompatível com
cidades do interior do estado, justificando sua permanência pela qualidade
de vida encontrada na cidade e pela manutenção de afetos. As tecnologias
de informação e comunicação favorecem as trocas à distância, tornando-se
desnecessária a mudança de cidade para realizar seus projetos profissionais.
Alguns entrevistados mostram-se críticos em relação ao que consideram certo
conservadorismo na cultura empresarial e no mercado de Porto Alegre e do in-
terior do estado, que criaria, em certos casos, obstáculos a produtos inovadores
que são bem aceitos em outros mercados (entrevistados 1, 2, 4 e 10).
Quanto ao grau de satisfação e às expectativas futuras destes profis-
sionais, pode-se identificar, em geral, interesse em prosseguir na carreira, em
ambientes organizacionais em que se percebam reconhecidos, em permanecer
na cidade (em especial, seniores), e em privilegiar o que consideram como qua-
lidade de vida. Os profissionais entrevistados tendem a expressar satisfação
com a carreira e perspectivas positivas em relação às oportunidades nas suas
áreas de atuação (juniores e seniores), declarando-se, em geral, satisfeitos
com a carreira. É frequente entre entrevistados a percepção de expansão das
chances de trabalho e carreira, destacando-se oportunidades criadas pela Copa
do Mundo, pelos Jogos Olímpicos e pela exploração de petróleo na camada do
pré-sal. Entendem, em geral, que os seus vínculos e organizações atuais lhes
permitem desenvolver atividades significativas e prazerosas, embora o entre-
vistado 1 mostre-se crítico em relação ao ambiente encontrado na universidade.
Caberia mencionar um achado de pesquisa que se refere à propensão
dos entrevistados em envolverem-se em ações coletivas e em questões perce-
bidas como importantes para a comunidade: criação de museu, fundações para
a manutenção de museu e memorial, criação de sindicato, associações pro-
fissionais e de classe, atuação em divisões de Ministérios do Governo Federal,
qualificação e formação profissional, comissões de avaliação profissional, e
partidos políticos. Os profissionais entrevistados expressam, em maior ou me-
nor intensidade, interesse em atividades políticas, assumindo, em alguns casos,
posições de liderança que revelam inserção no debate público e influência na
vida da comunidade, aproximando-se de resultados sugeridos em outros estu-
dos (Novy & Colomb, 2013). Isso contraria a ideia de que profissionais criativos
não se perceberiam como agentes políticos (Florida, 2011).
Em suma, o que se tem, no conjunto dos dados, é uma orientação pro-
fissional em criar bens e serviços não apenas com valor econômico, mas tam-
bém com a afirmação de significados sociais e de posições sociopolíticas dos
profissionais. Isso os situa no “jogo”. Outro traço comum é a diversidade de
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experiências nas trajetórias sociais, representando acúmulos de conhecimen-
tos e de redes de interação socioprofissional que são mobilizadas nos agen-
ciamentos envolvidos no processo de criação dos artefatos. Observa-se, entre
os entrevistados, empenho em conciliar crescimento na carreira, autonomia
intelectual e qualidade de vida.
ARRANJOS ENTRE INTERAÇÕES SOCIAIS
O curso de atividades de criação desenrola-se em meio a complexos arranjos entre
interações sociais para o agenciamento de ideias, lugares e materiais (Callon, 1986;
Hütter et al., 2010) por profissionais seniores e juniores no contexto de universi-
dades e de empreendimentos diversos (ateliê, estúdio, agência, editora, start up).
Essas interações oferecem, em muitas situações, novas possibilidades
de concepção original de bens e serviços. É oportuno notar que o projeto inicial
dos artefatos é frequentemente alterado em face das exigências e surpresas
oferecidas, por exemplo, pelos materiais empregados. Esse é o caso do pro-
fissional do design de moda que refere o “diálogo com os materiais, com os
resíduos”, identificando as diferentes “reações” dos tecidos aos tratamentos
de superfície, às técnicas de colagem, à lavagem e aplicação de tintas: “cada
material age de uma maneira”. Os profissionais indicam surpresa diante das
consequências imprevistas da complexa combinação e do trabalho de experi-
mentação com os insumos e recursos utilizados no processo de criação.
Uma implicação disso é a percepção sobre a inadequação (e mesmo a
rejeição pelos profissionais) da prescrição no processo de criação, expressa,
por exemplo, na crítica, de alguns entrevistados, aos modelos de gestão ba-
seados em programas de qualidade e produtividade com vistas à obtenção de
certificação. Segundo entrevistados, esse tipo de estratégia tolhe a criação e
a inovação, na medida em que estas envolvem, sempre, erro e risco. Os entre-
vistados mostram-se, pois, ciosos de sua autonomia intelectual e profissional.
As TICs adquirem centralidade entre os profissionais estudados não
apenas porque possibilitam a integração e mobilização de capacidades distri-
buídas no tempo e no espaço (funções, empresas, profissionais, informações e
conhecimentos), mas também porque geram novas possibilidades de ação, co-
mo novos tipos de produtos e mesmo nichos de mercado (Markusen & Gadwa,
2010; Powell & Snellman, 2004). É recorrente o relato entre os profissionais
seniores de que as suas áreas – design, publicidade, edição e pesquisa – foram
“revolucionadas” por essas tecnologias, reduzindo o custo de equipamentos e
instrumentos nas atividades de criação. Ademais, os profissionais entrevista-
dos tendem a desenvolver habilidades de gestão e de indução à colaboração
entre capacidades envolvidas no processo de criação dos seus produtos.
Podem-se identificar, ainda, aspectos relevantes quanto aos lugares,
materiais e agentes associados às atividades de criação dos cientistas e artis-
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tas estudados, destacando-se o grau de complexidade implicado nas mesmas.
As Tecnologias de Informação e Comunicação permitem não apenas integrar
agentes e recursos em ambientes cognitivos e organizacionais diversos, mas
também acelerar e vislumbrar novas possibilidades no processo de criação
de bens e serviços (Almeida, 2012; Hütter et al., 2010). Neste caso, o domínio
dessas ferramentas tecnológicas tende a significar antecipação em relação à
concorrência no mercado e mesmo a prospecção de mercados inexplorados.
Há clara utilização não apenas de dispositivos de interação cognitiva e social
a distância, mas também de trocas de ideias e conhecimentos em situações
de copresença. No mais das vezes, entrevistados indicam que o trabalho em
equipe e multidisciplinar requer a interação presencial no local de trabalho,
em razão de que possibilita a discussão mais ágil e abrangente de problemas
e o encaminhamento mais rápido de decisões. O entrevistado 9, por exemplo,
refere-se à importância da linguagem corporal no trabalho musical, embora
também trabalhe com colaboradores a distância; o entrevistado 1 refere a
importância da copresença no trabalho interdisciplinar em face da necessi-
dade de ajustamento e comunicação entre diferentes linguagens e conceitos
envolvidos na criação dos artefatos. Outro traço marcante dessa complexidade
é a diversidade e complementaridade de agentes envolvidos. São sobejamente
apontadas as necessidades de trocas entre conhecimentos especializados em
artes, negócios, tecnologia e ciências (entrevistados 2, 3, 4, 7, 8, 9 e 10) e entre
disciplinas científicas e tecnológicas (entrevistados 1, 5, 6, 11 e 12).
O complexo agenciamento de capacidades (tecnológicas, materiais e
cognitivas) parece, pois, levar os profissionais a circular por diferentes ambien-
tes organizacionais e sociais. Os depoimentos colhidos revelam uma complexa
identificação e integração de recursos no processo de criação, requerendo do
profissional a aquisição e aplicação não apenas de conhecimentos que lhes
permitam conceber, ajustar e mesmo reformular projetos no curso de sua
execução, mas também de habilidades de gestão e indução à cooperação entre
múltiplos agentes neste percurso (Almeida, 2012; Amabile, 1998).
Essas atividades de criação sustentam-se em arranjos que podem ser
expressos pela combinação entre formas organizacionais e trajetórias educa-
cionais e profissionais dos agentes entrevistados. No que se refere à organi-
zação das atividades, constatam-se características comuns nos ambientes de
criação dos artefatos. A despeito de se tratar de tipos díspares de organizações
(grande universidade pública e pequenos empreendimentos), há tendências
comuns nesses ambientes que se associam ao processo de criação, conside-
rando-se a percepção dos profissionais entrevistados. Segundo os depoimentos
colhidos, as atividades de criação tendem a exigir a combinação de funções e
conhecimentos diversos que se desenvolve, especialmente, pelo trabalho em
equipe. Isso oferece complementaridades e estímulos à criação. Outra tendên-
cia se refere à percepção de relativa autonomia e expressão no processo de
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criação, bem como de reconhecimento ao produto do trabalho (Almeida, 2012;
Howkins, 2013). De modo geral, os entrevistados buscam ambientes que lhes
conferem possibilidade de expressão e tomada de decisão sobre o curso das
atividades de criação.
Cabe assinalar, adicionalmente, que os projetos de criação tendem a
envolver algum tipo de financiamento público (exceto entrevistados 2 e 4) e,
como se esperaria, atendimento a diferentes legislações, requerendo atenção
às exigências do controle e a aquisição de habilidades para operar na buro-
cracia estatal (Barrier, 2011).
Ao mesmo tempo, os profissionais entrevistados apontam diferentes
tipos de dificuldades e críticas em relação às organizações em que se acham
envolvidos. Por exemplo, o profissional júnior da arquitetura que atua na uni-
versidade ressente-se da falta de titulação (o entrevistado estava com dou-
torado em engenharia em curso no momento da entrevista) e das barreiras
departamentais para a realização de atividades interdisciplinares que, a seu
juízo, são cruciais na produção de conhecimentos aplicados na sua área de in-
teresse e atuação (entrevistado 1). Um dos profissionais da geologia identifica,
também na universidade, o paradoxo de que a geologia experimenta momento
de expansão de oportunidades de carreira e pesquisa, porém, isso tende a
se concentrar em áreas relacionadas ao petróleo, em detrimentos de outras
possibilidades de expansão na especialidade (entrevistado 12). O profissional
do design gráfico e digital chama a atenção para que o uso de horário flexível
– outra tendência identificada entre os entrevistados – depende de relações de
confiança entre os agentes envolvidos e de disciplina e capacidade de gestão
do tempo, requerendo conhecimento mútuo e aprendizado (entrevistado 4).
O profissional do design gráfico iniciou as atividades de sua start up em um
escritório de trabalho colaborativo (co-working), em razão dos menores custos,
da disponibilidade de infraestrutura adequada e da possibilidade de intera-
ção com agentes e profissionais diversos nesse tipo de ambiente. Entretanto,
o alto grau de flexibilidade e a excessiva circulação e demandas por trocas
profissionais tornaram, na sua avaliação, o ambiente dispersivo, reduzindo o
desempenho e a produtividade de suas atividades de criação (entrevistado 10).
Igualmente, o profissional do artesanato destaca a necessidade de disciplina
e compromisso com o trabalho que precisam ser adquiridos pelo iniciante
(entrevistado 8).
Esses registros parecem se aproximar das hipóteses sobre uma “cog-
nição distribuída” e sobre o papel de “coletividades de pesquisa”, pois as ati-
vidades de criação parecem envolver a mediação e conciliação não somente
entre funções, conhecimentos, legislações e exigências diversas, mas também
entre tecnologias, linguagens, instrumentos e insumos que se influenciam
mutuamente (Almeida, 2012; Callon, 1986; Hütter et al., 2010).
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Em relação às trajetórias educacionais e profissionais, os entrevistados
revelam algumas convergências nos seus percursos, em especial, a formação
em universidades de reconhecida qualidade e a diversidade de experiências
profissionais, com passagem anterior em grandes organizações no caso dos
seniores (Amabile, 1998; Alencar, 1998; Glaeser, 2011). Trata-se de experiências
profissionais em diferentes organizações (assalariados em grandes e peque-
nas empresas, serviço público, organizações sem fins lucrativos, autônomos
e empreendedores – as combinações variam conforme o caso). Essa tendên-
cia verificada de experiências plurais suscita a hipótese sobre uma combina-
ção entre disposições para acúmulos de novas capacidades e habilidades, e a
constituição de redes sociais, que são mobilizados no processo de criação dos
artefatos (Comunian, 2012). Ao mesmo tempo, esse tipo de percurso relativiza
formulações sobre capital humano que reduzem a aquisição de competências
à trajetória escolar, chamando a atenção para a disposição desse tipo de profis-
sional por buscar uma experiência plural, que representa acúmulos cognitivos
e de redes sociais, refletindo-se no processo de criação.
Cabe mencionar um achado de pesquisa que se refere ao fato de que
parte dos profissionais entrevistados tem origem social e familiar nas classes
médias e, parte, nas classes populares, experimentando trajetória de ascen-
são social. O dado aproxima-se de formulações mais recentes que concebem
o patrimônio de disposições adquiridas pelos indivíduos como tendências de
conduta aplicadas ativamente a contextos de ação, relativizando-se dicotomias
e automatismos na reprodução dos interesses e gostos de classe (Lahire, 2006).
Como ilustração, pode-se mencionar o caso do publicitário cuja origem se si-
tua no interior do Estado do Rio Grande do Sul, em família de operários sem
frequência a curso superior (entrevistado 2). Diferentemente, o editor-escritor,
que é natural de Porto Alegre, tem, na sua família, jornalista e poeta/cronista
premiados por suas obras (entrevistado 3). Em qualquer caso, parece haver
um traço comum nessas trajetórias: o apoio familiar que se pode transformar
em autoestima e perseverança no percurso profissional. Isso mereceria novos
estudos e aprofundamento da análise.
Como apontam especialistas (Hütter et al., 2010; Ramella, 2013;
Swedberg, 2006), o processo de criação de inventos ou de inovações ocorre-
ria mediante esforços individuais que, no entanto, se realizam no contexto
de interações dos agentes com condições técnicas, com organizações e com
sistemas sociais e territoriais. Numa palavra, interações passadas, presentes
e como expectativas futuras tornam-se relevantes fontes de criatividade para
os agentes nesse tipo de processo.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como inicialmente posto, o estudo apoia-se no princípio sociológico de que a
ação socioeconômica seria, predominantemente, movida por interesses ma-
teriais e ideais, orientando-se para a geração de utilidades (bens e serviços) e
para o comportamento de outros agentes (Weber, 2004 [1921]). Desse prisma,
aborda-se o significado das relações entre criatividade e mercado em face da
ascensão de uma nova economia que se baseia na criatividade e no conheci-
mento, inquirindo sobre os tipos de interesses e de arranjos de interações dos
agentes que sustentam as atividades de profissionais criativos.
Os profissionais criativos (em ciências e em artes) estudados na cida-
de escolhida envolvem-se em atividades de concepção de produtos originais,
requerendo complexa amarração entre investigação e concepção (práticas de
laboratório, pesquisa de linguagens e identidades comunitárias, diagnósticos
de tendências e nichos de mercado), manuseio de TIC e suas possibilidades, e
interação com ativos diversos. Tais profissionais se notabilizam não apenas
pelo alto grau de escolaridade, mas também pelo nível de especialização nos
seus conhecimentos em ciências ou em artes. Isso se combina com disposições
adquiridas pela trajetória de apoio afetivo de suas famílias (seja nas classes
médias, seja nas classes populares), pela formação em universidades de reco-
nhecida qualidade e pela diversidade de experiências profissionais (Lahire, 2006).
Nas atividades de criação, os agentes tendem a conjugar a preocupação
sobre a viabilidade e retorno financeiro do artefato com a identificação de
experiências relevantes, em termos de acréscimos de conhecimentos ou de
significado “social” do produto; mostram-se, ainda, empenhados em conciliar
crescimento na carreira, autonomia intelectual e qualidade de vida, expres-
sando certa seletividade nas suas escolhas de trabalho e na defesa de posi-
ções sociopolíticas. O agenciamento desses ativos depende de autonomia, de
flexibilidade e de experiências plurais, envolvendo a mediação e conciliação
entre conhecimentos, tecnologias, insumos, funções, linguagens e legislações
(Hütter et al., 2010; Ramella, 2013; Swedberg, 2006).
Entre as dificuldades encontradas no processo de desenvolvimento des-
sa economia, merece destaque a relativa limitação do mercado para esses pro-
fissionais em Porto Alegre, que tentam superar com apoio nas comunicações e
interações a distância, tendo em vista preservar a boa qualidade de vida e de
trabalho que consideram ter na cidade. Cabe ressaltar que os dados obtidos
referem-se ao núcleo da economia criativa, e sua interpretação requer parci-
mônia. Por exemplo, pouco se sabe sobre diferentes elos/setores da economia
criativa, no país.
Portanto, as atividades econômicas criativas ocorreriam em meio a com-
plexas e particulares combinações de diferentes tipos de interesses e arran-
jos de interações de agentes (Swedberg, 2005). Tais atividades se desenrolam
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não apenas em meio às novas condições tecnológicas de comunicação e de
conhecimento, mas também no momento em que ideais em torno da susten-
tabilidade e da qualidade de vida ganham força. Os resultados alcançados
na pesquisa (que não aspiram generalização) contribuem ao questionar não
apenas a concepção sobre o desinteresse do gênio do cientista no laboratório
ou do artista no ateliê, que se achariam corrompidos sob as condições de
mercado, mas também relativizam as formulações que enfocam regras formais
capazes de estimular respostas e induzir comportamentos reflexos de talentos
individuais autointeressados.
Finalmente, cumpre notar que o fenômeno merece novas investigações
desde diferentes abordagens e metodologias. As formulações sobre indústrias
culturais contribuíram ao apontar a instrumentalização da ciência e da arte no
mundo da produção em massa. No entanto, as recentes teses sobre indústrias
criativas avançam ao chamar a atenção para as rupturas tecnológicas, econô-
micas e institucionais no mundo atual. O tema vem ganhando destaque no
debate público e acadêmico internacional e a perspectiva multidimensional e
relacional da sociologia econômica mostra-se frutífera, ao permitir compre-
ender aspectos, mais contextuais, que escapam às formulações anteriores. O
debate e a crítica científica poderão contribuir para melhor conhecer e precisar
os contornos dessa economia e seu alcance num mundo em transformação.
Recebido em 10/05/2014 | Aprovado em 15/04/2015
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Sandro Ruduit Garcia é Doutor em Sociologia pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor adjun-
to no Departamento de Sociologia e no Programa de Pós-Graduação
em Sociologia desta mesma Universidade. Atua, principalmente, na
área de Sociologia Econômica, dedicando-se ao estudo das indústrias
criativas, da inovação e das relações entre agentes globais e locais.
É autor, entre outras publicações, de “Pequena empresa inovadora e
desenvolvimento: indústria naval em Rio Grande” (2014).
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artigo | sandro ruduit garcia
NOTAS
1 O artigo baseia-se em resultados da pesquisa “Nova econo-
mia do conhecimento: agentes criativos e arranjos sócio-
organizacionais em Porto Alegre”, realizada com financia-
mento CNPq – Edital Universal. A pesquisa foi coordenada
pelo autor, contando com o pesquisador Luís Fernando
Santos Corrêa da Silva (UFFS), com os estudantes de pós-
graduação Alexandre P. Karpowicz e Rodrigo C. Dilélio, e
com a bolsista IC-Fapergs Gabriela R. de Freitas.
2 Os profissionais selecionados para estudo pertencem a
setores significativos nas trocas internacionais, situando-se
entre os cinco principais em termos de exportações mundi-
ais em indústrias criativas: para dados de 2008, os produtos
de design representaram 40,87% das exportações das indús-
trias criativas; em seguida, arquitetura, 14,38%; produtos
editoriais, 8,15%; produtos de artesanato, 5,46%; e serviço de
pesquisa e desenvolvimento, 5,25% (UNCTAD, 2010).
3 O leitor encontra em Corazza (2013) uma boa resenha de
alguns dos principais estudos sobre o tema. Para uma
interessante apresentação e comparação de diferentes
classificações de setores da economia criativa, ver Valiati
(2013). Para uma crítica ao uso da noção de economia cria-
tiva como categoria de análise, ver Alves & Souza (2012).
4 A UNCTAD (2010) classifica as indústrias criativas em gru-
pos: a) Patrimônio (sítios culturais e expressões culturais
tradicionais); b) Artes (visuais e performáticas); c) Mídia
(publicações e audiovisual); e d) Criações funcionais (design,
serviços criativos e novas mídias). As indústrias criativas
seriam definidas como “os ciclos de criação, produção e
distribuição de produtos e serviços que utilizam a cria-
tividade e capital intelectual como insumos primários”
(UNCTAD, 2010: 8). Essa classificação tem sido amplamente
utilizada (inclusive no Brasil), permitindo a comparação de
estudos e resultados entre diferentes países.
5 O autor identifica um “centro hipercriativo” no conjunto
de ocupações da classe criativa, envolvendo profissões
ligadas à computação e matemática, à arquitetura e en-
genharia, às ciências biológicas, naturais e sociais, à edu-
cação, treinamento e biblioteconomia, e às artes, design,
entretenimento, esportes e mídia.
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Palavras-chave
Economia criativa;
Profissionais criativos;
Cientistas e artistas;
Porto Alegre;
Sociologia Econômica.
Keywords
Creative economy;
Creative professionals;
Scientists and artists;
Porto Alegre;
Economic Sociology.
PROFISSIONAIS CRIATIVOS EM CIÊNCIAS E ARTES
NA CIDADE DE PORTO ALEGRE
Resumo
O artigo discute as relações entre criatividade e mercado,
no contexto da chamada economia criativa. O argumento
é o de que as atividades de criação dos agentes dependem
de uma complexa combinação entre diferentes interes-
ses e interações sociais, exprimindo-se sempre de forma
contextual. Os profissionais criativos em ciências e artes
tenderiam a se interessar não apenas pela busca de bem-
-estar material, mas também pelo reconhecimento pessoal
e pelo sentido ético do que fazem, construindo trajetórias
e arranjos de interações diversificadas que lhes permi-
tem acessar recursos relevantes. A discussão é conduzida
com base na experiência de profissionais das ciências e
das artes que, atuando em universidades e em pequenos
empreendimentos na cidade de Porto Alegre, estão ligados
a setores da nova economia baseada no conhecimento e
na criatividade.
CREATIVE PROFESSIONALS IN SCIENCES AND ARTS
IN THE CITY OF PORTO ALEGRE, BRAZIL
Abstract
The article discusses the relationship between creativity
and market in the context of so-called creative economy.
The argument is, in short, that the activities of creation of
the agents depend on a complex combination of different
interests and social interactions, expressing themselves
always in a contextual way. The creative arts and science
professionals tend to be interested not only by the search
for material well-being, but also for personal recognition
and the ethical sense of what they do, building paths and
arrangements of diverse interactions that allow them to
access relevant resources. The discussion is conducted
based on the experience of professionals in the arts and
sciences related to sectors of the new knowledge-based
and creative economy, working in universities and small
businesses in the city of Porto Alegre.
Martín Hornes I
Mercedes Krause II
I Universidad Nacional de San Martín (UNSAM), Buenos Aires, Argentina
II Universidad de Buenos Aires (UBA), Argentina
SIGNIFICADOS E USOS DO DINHEIRO: SETORES MÉDIOS E POPULARES DE BUENOS AIRES
Assistimos à emergência de um novo campo de estudos sociais que transcende
a “grande divisão” disciplinar pretendida pela economia perante as demais
ciências sociais ao longo do século XX (Florence Weber, 2009: 30; Neiburg, 2010:
230). Trabalhos recentes propõem abordar desde a problematização da deno-
minada economia solidária (Motta, 2010), como a própria noção de mercado
(Lorenc Valcarce, 2012; Callon, 1998) e os considerados mercados “alternati-
vos” ou de escambo (Luzzi, 2005). Pode-se assinalar também estudos sobre o
consumo (Figueiro, 2013; Miller, 1998), a proliferação dos sistemas de créditos
e as novas tecnologias financeiras (Müller, 2014; Wilkis, 2014), os processos
inflacionários (Neiburg, 2005, 2007, 2008) e, inclusive, as crises econômicas
locais e internacionais (Théret, 2007; Lapavitsas, 2009).
Estas indagações têm sido acompanhadas pelo desafio de reabilitar os
significados do dinheiro para além do restrito âmbito econômico e de sua
capacidade como meio de mudança, forma de pagamento e reserva de va-
lor (Théret, 2008). Desde a metade do século XX, a literatura antropológica
e sociológica tem demonstrado os usos múltiplos do dinheiro e seu caráter
irredutível a apenas uma esfera social – o mercado – e a um tipo de vínculo
social – as relações mercantis (Polanyi, 1957; Dalton, 1967; Bohannan, 1967). A
antropologia econômica indicou de modo pioneiro que as transações mediadas
pelo dinheiro ultrapassavam os espaços sociais denominados como “mercado”.
Observa-se atualmente um campo de estudos consolidado em torno de uma
soci
olo
gia
&a
ntr
opo
log
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rio
de
jan
eiro
, v.0
5.03
: 883
– 9
10, d
ezem
bro
, 201
5
http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752015v5310
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significados e usos do dinheiro: setores médios e populares de buenos airesso
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socioantropologia do dinheiro (Bloch & Parry, 1989; Dodd, 1994; Guyer, 1994,
2004; Weber & Dufy, 2009; Maurer, 2012; Zelizer, 2009, 2011). Os trabalhos de
Zelizer (2009, 2011) marcaram o início das reflexões sobre os significados so-
ciais do dinheiro demonstrando que, longe de ser um elemento homogêneo,
impessoal e afetivamente neutro, seus sentidos são construídos a partir dos
diferentes pontos de vista dos atores sociais em determinados contextos de
interação e de transações específicas. Suas análises destacam a inconsistência
de supostos “mundos hostis” (Zelizer, 2011: 45) que separam a economia das
relações pessoais e íntimas, e nos convidam a observar as transações mone-
tárias considerando os valores morais, pessoais e familiares que intervêm na
construção dos significados do dinheiro (Wilkis, 2013).
A perspectiva predominante no campo dos estudos sociais da economia
nos aproxima do tema central deste artigo: analisar os significados e usos
sociais do dinheiro em setores médios e populares da Área Metropolitana de
Buenos Aires. Interessa-nos reconstruir as categorias e os sentidos mobiliza-
dos pelos atores para se referirem aos significados e usos sociais do dinheiro,
a partir da observação de suas práticas econômicas ordinárias (Weber, 2002).
Longe de qualquer perspectiva utilitarista, evocamos as definições propostas
por Neiburg (2008: 94) e Florence Weber (2002: 152) sobre “práticas e ideias or-
dinárias” ou “cálculos ordinários” respectivamente, para examinar o conjunto
de “racionalidades ou sentidos práticos” que os agentes mobilizam para definir
seus orçamentos familiares, negociar os significados do dinheiro e avaliar suas
respectivas origens e destinos.1
Em consonância com as perspectivas interpretativas desse campo de
estudos e dos possíveis enfoques teóricos sobre as classes sociais, elegemos
o enfoque weberiano sobre os comportamentos e práticas sociais e a inter-
pretação dos sujeitos sobre sua própria realidade.2 Max Weber (1964) define a
análise sociológica como a compreensão e interpretação do sentido subjeti-
vo que os atores atribuem a suas respectivas ações. Ao mesmo tempo, farão
também parte de nosso esquema analítico as noções de situação biográfica
(Schutz, 2003) e habitus econômico (Bourdieu, 2000, 2003). Retomando a tradi-
ção da fenomenologia social, ambos os autores coincidem na necessidade de
interpretar as decisões e ações dos sujeitos dentro de seus próprios marcos
de interpretação sobre o mundo social, com base nos esquemas adquiridos
com as experiências vividas e levando em consideração a avaliação de suas
expectativas ou oportunidades sobre futuros desejados ou possíveis.
O texto resulta do encontro da pesquisa qualitativa de tipo biográfica
com a pesquisa etnográfica e aborda distintos grupos familiares no interior de
dois grupos sociais também diferentes – setores médios e populares.3
A pesquisa qualitativa de tipo biográfica se insere na área de estratifi-
cação social, e se dirige ao estudo das práticas cotidianas de classe a partir de
uma perspectiva fenomenológica, focalizando dois temas-chave para a repro-
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dução social: a educação e a saúde familiares. O trabalho de campo dividiu-se
em duas etapas: a primeira, entre setembro de 2009 e fevereiro de 2010, e a se-
gunda, durante janeiro e fevereiro de 2013. Realizamos entrevistas biográficas
semiestruturadas com os pais ou mães de vinte famílias de diferentes estratos
de classe média e completamos suas árvores genealógicas utilizando-as como
ferramenta de análise e produção de dados.4 Analisamos seus relatos seguindo
as pautas da análise temática (Boyatzis, 1998), com um software especializado
para a análise de dados qualitativos.
O trabalho de campo se realizou durante três anos em um bairro popu-
lar do Município de Avellaneda, localidade situada ao sul da Cidade de Buenos
Aires.5 A entrada no campo estava garantida desde 2008 mediante o contato
com distintos agentes estatais e trabalhadores sociais pertencentes a um pro-
grama de Transferências Monetárias Condicionadas (TMC) destinado a ado-
lescentes em situação de vulnerabilidade social (Hornes, 2014). O desenvolvi-
mento de diferentes pesquisas nos manteve vinculados ao acompanhamento
econômico de mais de 20 lares beneficiários de diversos programas de TMC.
Em uma primeira parte, descreveremos os orçamentos de diferentes la-
res de setores médios e populares observando como seus membros organizam,
distinguem e classificam o dinheiro. Em uma segunda parte, analisaremos as
avaliações morais feitas sobre as origens do dinheiro, e demonstraremos como
distintas tipificações e juízos morais incidem sobre seus usos. Nas conclusões
refletiremos sobre os significados do dinheiro ao analisar como os esquemas
diferenciados de percepção e apreciação iluminam sentidos e usos plurais do
dinheiro nos setores médios e populares.
ORÇAMENTOS, EQUAÇÕES E USOS DO DINHEIRO
Silvia, 45 anos, analista de contratos no setor privado, duas filhas.
A família de Silvia é monoparental, do bairro portenho de Congreso. Ela tem 45
anos e trabalha em Retiro; é analista de contratos em uma empresa privada do
ramo da saúde. Casou-se em 1995 com um companheiro de trabalho e se divor-
ciou em 2003. Desse matrimônio tem duas filhas, de 9 e 14 anos. Atualmente,
está preocupada com a questão do Facebook e o acesso à Internet das filhas
adolescentes. Durante a entrevista falou de sua preocupação com “o social”,
dentro do qual incluiu tanto os roubos e a insegurança quanto “a noite”, o ál-
cool e as drogas, bem como as “amizades que não estudem ou que não pensem
no futuro”. Suas filhas frequentam uma escola privada de dupla jornada, já
que a organização da casa é um tema delicado para Silvia: “[minha filha] entra
no colégio às sete e meia e sai às seis e quinze, se eu conseguir chegar para
buscá-la”. Como em outras famílias de setores médios, Silvia considera altos os
gastos em educação e saúde. Embora não explicite se somente ela arca com os
pagamentos ou se os divide com o ex-marido, inclui como gastos na educação
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e saúde das filhas tanto a escola privada quanto o lazer, o clube e outros. No
entanto, não os menospreza perante outros tipos de consumo:
— Os gastos da família na saúde e educação são altos?
— Tranquilamente. Levarão... [risos] e eu diria a você que 60% podem levar, hein!
60% da renda seguramente, seguramente, porque falamos da educação, isto da
educação, lazer, tudo, sim. Sim. Sim, sim.
— É algo que você cortaria?
— Não. Não. Cortaria internet, cortaria a tv a cabo, cortaria toda uma série de coisas,
mas não. A não ser que eu fique sem... obviamente esteja no limite e fique sem
trabalho, obviamente, mas não... Não, eu creio que [é] o melhor investimento que
posso dar às minhas filhas, certamente. Não, isso não cortaria.
Igualmente, Silvia considera que contar com serviço doméstico “é
absolutamente fundamental”, ainda que por ora isso não possa acontecer. Não
conta com a ajuda de seu ex-companheiro a não ser nos dias previamente
ajustados, por isto, em caso de emergências recorre a sua mãe. Normalmente,
o trabalho familiar cotidiano recai sobre ela, o que implica deixar de lado as
próprias necessidades, “porque isto que te digo também tem um custo. Tudo
isto de oferecer um clube, de oferecer isto… custo, horários [...] e chega um
momento que giro em torno delas de verdade [risos]. A vida passa a ser elas
[se refere às suas filhas]”.
Andrea, 45 anos, publicitária autônoma sem empregados, dois filhos.
A família de Andrea experimentou uma forte queda do seu nível de vida du-
rante os últimos anos, e um descenso intergeracional entre diferentes estratos
da classe média. Andrea, de 45 anos, vem de uma família de classe média ca-
tólica, seus pais eram donos e vendedores de uma livraria-loja de brinquedos
no bairro de Flores. Agora vive em uma casa, onde também trabalha de forma
autônoma, a poucas quadras da estação de Constitución, Cidade Autônoma de
Buenos Aires (CABA). Ela e o marido têm sua própria empresa de publicidade
e propaganda desde 2001, quando perderam seus respectivos empregos.6 Além
disso, desde então se encontram sem seguro de saúde pois não podem arcar
com um plano particular.
Andrea vê diferença entre escolher o que se prefere e projeta e ter que
optar por uma única alternativa. No que diz respeito à saúde e à educação da
família, “optar” significa aceitar a falta de dinheiro e utilizar os serviços pú-
blicos de que desconfia, o que implica o risco de entregar ao destino e “cruzar
os dedos”. Depois de explicar esta distinção com um exemplo referido ao pla-
nejamento político, Andrea nos conta como a queda do nível de renda familiar
obrigou-os a “optar” entre o acesso à saúde e o acesso à educação privadas,
dois setores que consideram prioritários:
Por ora não tenho orçamento para cobrir essa questão [a cobertura médica do
plano de saúde]. Ou seja, nos colocaram na decisão de se “seguro saúde ou educa-
ção?” “Educação” [risos]. Aí sim, optei. [...] [Em] uma época tivemos seguro saúde
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e, depois já não se pôde manter e optamos por seguir adiante com a questão edu-
cacional dos meninos, [...] e o outro [é] cruzar os dedos [para que nada aconteça].
De seu relato se destaca que, embora em situação de crise econômica
familiar, ela segue valorizando a saúde e educação privadas, mas dando prio-
ridade à educação para que seus filhos não percam o círculo de pertencimento
e relações sociais já construídas. O contrário acontece no caso de outra mãe de
classe média, que, diante de uma crise econômica familiar, optou por mudar
seus filhos para um colégio público, mas não deixou “nem o plano de saúde,
nem o clube, (...) mesmo nos piores momentos”.
Nancy, 32 anos, beneficiária de distintos programas de TMC.
Mãe de cinco filhos.
No início de 2011, Nancy tinha uma obra em andamento em sua casa. Havia
terminado de construir a laje, mas as placas de isopor e algumas estruturas de
ferro ainda estavam aparentes. A porta de entrada, de chapa galvanizada bran-
ca, brilhava como nova, ainda sem o batente. A casa contava com uma pequena
cozinha com um quarto contíguo, de seis metros quadrados, com duas camas
beliche, e um banheiro em construção no fundo da casa. As paredes estavam
sem tinta e em algumas partes faltava o reboco. As instalações eram muito
precárias, alguns móveis eram novos e outros estavam caindo aos pedaços.
Nancy tinha uma economia bastante ajustada, apoiada em sua criati-
vidade para as práticas econômicas (Gaggioli, 2014). Suas atividades laborais
eram variadas: desde fazer faxina em casas de família até vender roupa íntima
por catálogo. Também recebia diferentes rendimentos por ser beneficiária de
programas de TMC. Costumava trabalhar várias vezes por semana limpando a
casa de uma pessoa conhecida do bairro: “às vezes me chama todos os dias, e
me convém, porque me paga 13 pesos a hora, por agora… porque é uma casa
muito simples e não me mato. É uma senhora aqui da Igreja”. Por outro lado,
Nancy vendia roupa íntima masculina e feminina por catálogo e encomenda
nas zonas próximas ao centro da Cidade de Buenos Aires:
Trabalho muito com as pessoas [que fazem o serviço] da limpeza. As pessoas do
edifício “Condor”, toda essa parte daí. Eu lá na favela [villa] 31 tenho a família
do pai dos meninos, compro ali e levo a revista, e depois do trabalho passo para
oferecer. No Retiro tenho quase todos os clientes, eu levanto de 40 a 50 pedidos.
Desde o mês de agosto de 2010, Nancy faz parte do programa Ingreso
Social con Trabajo “Argentina Trabaja” (Renda Social com Trabalho “Argentina
Trabalha”).7 Também recebe a Asignación Universal por Hijo para la Protección
Social – AUH (Subsídio Universal por Filho para a Proteção Social)8 devido à
idade e à escolarização de seus 5 filhos, desde o mês de dezembro de 2009.
Ela sempre mostrava preocupação com os filhos, um incansável cuidado
para que não “lhes falte nada” e “poder deixar- lhes algo”. Para ela, resolver
sua situação habitacional era a prioridade:
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Eu quero tudo, mas o orçamento não dá. Quero comprar um jogo de sofás, e depois
digo: para quê? Se ainda tenho que levantar o andar de cima, comprar a cerâmica,
e tenho que fazer a escada. Penso: O que é que eu faço? A escada ou a parte de
cima? Não sei, é uma confusão na cabeça.
Para resolver as preocupações relacionadas ao término da casa e a seus
rendimentos econômicos, Nancy recorre a todo tipo de movimentação com o
dinheiro. Da quantia proveniente do programa “Argentina Trabaja”, ela utiliza
a maior parte para o financiamento da compra de móveis usados ou alguns
eletrodomésticos para a casa. Recorre sempre ao mesmo lugar de venda de
artigos usados e financiados em prestações graças à apresentação de distintos
comprovantes da sua situação de beneficiária de um plano ou programa social:
Desde que comecei a receber o PEC (Programa de Empleo Comunitario) [Programa
de Emprego Comunitário] que ele vai todo diretamente para comprar no “Tano
Muebles”, aqui na [Avenida] Centenario. Eu comecei com o recibo do plano de
150, isso e o DNI [Documento Nacional de Identificação]. Me davam… comprei
primeiro um nebulizador... Depois uma bicicleta para eles, depois os armários de
roupa, os colchões, depois a tv, depois a geladeira, o fogão, e assim. Máquina de
lavar, máquina de secar, tudo tirei a crédito.
O crediário é para Nancy talvez a única possibilidade de acesso a tais
bens: “senão não vou ter nada , porque eu, queira ou não, tenho que pagar
[através ] de crédito”.9
A AUH ocupa outro lugar no orçamento de Nancy: “o primeiro que eu
faço, tiro o dinheiro e depois vou comprar. Tudo o que houver”. Ainda que não
costume utilizar o dinheiro para conseguir crédito porque “não serve para cré-
dito”, era habitual que comprasse alguns materiais de construção ou alguma
divisória ou esquadria para a obra da casa.
Patrícia, 38 anos, beneficiária de distintos programas de TMC, duas filhas.
Atualmente Patrícia convive com seu namorado, Marcelo, sua sogra, de uns 70
anos aproximadamente, e duas filhas, de 8 e 5 anos de idade. A casa de Patrícia
e Marcelo localiza-se na zona do bairro denominado pelos vizinhos como “os
depa”, oriundo de uma urbanização do Plan Federal de Viviendas [Plano Federal
de Moradias]10 realizado há aproximadamente 11 anos. “Os depa” é, portanto,
a categoria nativa utilizada pelos vizinhos do bairro para se referirem a um
setor no qual foram construídos apartamentos.
O orçamento da família é composto de rendimentos variados com forte
participação do dinheiro proveniente de diferentes programas de TMC. Patricia
trabalha três vezes por semana como empregada doméstica em uma casa de
família, recebendo 360 pesos por mês, “ou seja… nada”, ela afirma. Também
recebe a AUH por suas duas filhas menores, e o Plan Más Vida [Plano Mais Vi-
da] ou “os 80 [pesos] dele” [se refere ao dinheiro transferido pelo plano], como
costuma mencionar Marcelo.11 Marcelo, além disso, é beneficiário do programa
“Argentina Trabaja”, pelo qual recebe uma transferência condicionada de 1.200
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pesos mensais, e trabalha cerca de 4 horas diárias nas imediações do bairro.
Por último, sua mãe ganha uma pensão de aproximadamente 700 pesos. Como
costuma afirmar Patrícia: “com isso nos remediamos”.
“Remediar” para Patrícia significa disputar com Marcelo os usos do di-
nheiro pertencente ao orçamento da casa. Ela sempre quer “se dar um prazer”
– isto é, consumir algum bem por prazer e sem um fim específico – ou “arrumar
a casinha”, mas Marcelo insiste em “lidar com cuidado com o que se ganha
com o suor do rosto”. Então, Patrícia é quem “controla” o orçamento da casa,
já que “sabe o que faz falta… sabe mais ou menos o que se necessita na casa”.
Esse “controle” implica considerar os detalhes dos rendimentos de que ela
pode dispor e ir distribuindo o dinheiro entre a alimentação, os impostos, o
cuidado com suas filhas, e o sonhado embelezamento da casa. Patrícia separa
os distintos destinos do dinheiro do orçamento porque sabe que “Marcelo
guarda em uma latinha, e quando chega o fim da semana ele gosta de tomar
sua cerveja por aí”. Ela vê nisso a possibilidade de negociar o uso do dinheiro
proveniente da AUH e reclamar sua posse:
O cara sai às 5 da tarde e não volta até a uma da madrugada. Pense, se acontece
algo nesse trajeto, eu, como me viro? Isso é o que ele não entende, não, [eu digo:]
você quer para gastar! Não, imagina, Deus não permita que aconteça uma desgra-
ça, e eu tenha que sair às carreiras pedindo dinheiro aos vizinhos.
Ao separar certos “dinheiros” Patrícia pode fazer algumas coisas às es-
condidas ou na ausência de Marcelo: “eu digo para ele: querido, vamos, vamos,
Marcelo. Mas não adianta. Eu sei que as coisas não estão para se ficar dando
prazeres mas, bom, compra alguma coisa para você. Eu aproveito quando o pa-
trão não está para comprar alguma coisinha, comer um iogurte com as meninas”.
Quer se trate de “investimentos” ou de “escolhas”, para “deixar algo”
para os filhos ou poder “ter um prazer” com eles, em todos os casos descritos
nos deparamos com diferentes categorias por meio das quais os setores mé-
dios e populares falam dos distintos dinheiros que compõem seus orçamentos.
Trata-se daquilo que Zelizer reconheceu como formas de marcação do dinhei-
ro através “das quais as pessoas identificam, classificam, organizam, usam,
segregam, produzem, desenham, guardam e inclusive decoram o dinheiro, à
medida que vão enfrentando seus múltiplos vínculos sociais” (Zelizer, 2011: 13).
Interessa-nos identificar a presença destas diferentes formas de marca-
ção do dinheiro em setores médios e populares para demonstrar como os ato-
res organizam seus orçamentos com categorias de senso comum. O dinheiro é
assim classificado segundo sua origem e destino, diferentes representações ou
práticas a ele associadas, formas diversas de denominá-lo, distintos vínculos
pessoais ou familiares.
Os registros de entrevista dos setores médios indicam como esses gru-
pos enfatizam o dinheiro e percebem sua relação com o acesso a distintos
setores e serviços de saúde e educação, vistos como socioeconômica e geografi-
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camente estratificados. Os serviços públicos de saúde e educação são gratuitos
na Argentina, e assim o significado do dinheiro aparece conjuntamente com
uma tomada de consciência acerca das necessidades próprias e de outros, co-
mo um indicador de quais serviços estão ou não ao alcance de suas famílias.
De algum modo, estas famílias interpretam a oferta de qualidade nos serviços
de saúde e educação como desigualmente apropriada segundo a posição de
classe e a renda de cada família. O dinheiro lhes oferece liberdade de escolha
e de acesso, sua falta se manifesta como incerteza. Assim, assume um sentido
de potencialidade ao permitir a apropriação de oportunidades – “investir”, “es-
colher” ou “optar”. Nesse sentido, Hout (2008) afirma que mais renda significa
mais opções.
Esse aspecto introduzido por Hout nos aproxima das reflexões sobre
os significados do dinheiro nos setores populares. Nos registros de pesqui-
sa relativos a esses setores, a carência econômica impacta suas avaliações e
os obriga a resolver situações de maior urgência (alimentação, moradia e a
aquisição de bens móveis) do que aquelas que preocupam os setores médios.
Entretanto, as formas de marcação do dinheiro não desaparecem, mas, sim,
se adaptam às suas racionalidades práticas e ao conjunto de oportunidades
atuais e expectativas de futuro. Apesar de nos lares dos setores populares
predominarem os baixos e instáveis rendimentos ou jornadas de trabalho in-
formais, seus membros administram seus dinheiros, poupam, investem e se
endividam enquanto lutam com graves problemas como a subsistência diária,
os empréstimos, favores e ajudas dadas a, ou recebidas de, familiares (Guérrin,
2014; Villareal, 2010).
Portanto, as lógicas que organizam os significados do dinheiro e es-
truturam os orçamentos dos setores médios e populares não se reduzem à
quantidade, mas dizem respeito também às situações biográficas (Schutz, 2003)
ou aos habitus econômicos (Bourdieu, 2000, 2003) através dos quais os atores
decidem e realizam equações monetárias e avaliações morais. Apesar de dis-
tintas condições materiais incidirem sobre tais cálculos e juízos, vemos um
denominador comum entre os setores estudados: seja para “investir” na edu-
cação dos filhos, seja para finalizar a casa e poder “deixar-lhes algo”, ambos
fazem uso de uma forma de “dinheiro cuidado” (Wilkis, 2013). Trata-se de um
dinheiro que organiza seus pontos de vista e que, resguardando os valores
morais familiares, se destina a gastos relacionados com a reprodução familiar.
Como assinalava Simmel, “quando alguém possui dinheiro, não só dis-
põe da propriedade deste [...], como também lhe é assegurada a posse de mui-
tas outras coisas” (Simmel, 2010: 22). Desta perspectiva, o dinheiro possibilita o
acesso “àquilo que a pessoa deseja ou crê positivo para si mesma e sua família”
(Sautu, 2001: 65). O “dinheiro cuidado” que identificamos nos orçamentos de
setores médios e populares nos permite afirmar que suas ações significativas
e decisões econômicas resultam de avaliações monetárias e morais que va-
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riam conforme as condições do grupo social de pertencimento. Certamente
encontramos orçamentos mais estáveis e folgados nos dois primeiros relatos
de famílias de classe média. No entanto, em nenhum caso faltaram referên-
cias a desejos que gostariam de realizar futuramente, como contratar uma
empregada doméstica, obter um plano de saúde, ou desfrutar de um iogurte
com os filhos. Existem também pequenos prazeres decididos em função de
um orçamento familiar e de um contexto social restritivos. Apesar disso, o
“dinheiro cuidado” nos permite observar como cada grupo familiar busca cuidar
de suas finanças e bens materiais sem negligenciar os valores pessoais, morais
e familiares que desejam transferir entre gerações, afirmando a relevância de
cuidar da saúde, do lazer, da educação e da moradia, ao mesmo tempo em que
se permitem pequenos prazeres ocasionais.
Na seção seguinte analisaremos as tipificações e juízos morais sobre as
origens e os destinos do dinheiro em diferentes setores sociais.
TIPIFICAÇÕES E JUÍZOS MORAIS SOBRE O DINHEIRO
Manuel, 48 anos, presidente de uma empresa de transporte, três filhas.
A família de Manuel é uma família biparental de classe média alta que reside
no bairro de San Isidro, ao norte da conurbação.12 Em sua empresa, Manuel
tem aproximadamente cinquenta pessoas sob seu comando. Sua esposa tem
46 anos e trabalha no ramo imobiliário. Vivem com suas três filhas, de 14, 16
e 18 anos. As duas menores estão cursando o ensino médio em um colégio
bilíngue de período integral em San Isidro, enquanto a mais velha, vinda do
mesmo colégio, estuda arquitetura na Universidade de Buenos Aires.
A entrevista foi feita no seu local de trabalho, em janeiro de 2013. Jus-
tamente no dia anterior Manuel tinha sido assaltado ao voltar do centro finan-
ceiro de Buenos Aires, onde comprou reais para viajar para o Brasil com sua
família. Também lhe roubaram os documentos do automóvel que acabara de
comprar para a filha mais velha, era uma “surpresa para quando voltasse das
férias”. Mostrou-se preocupado com a insegurança e os roubos, que relaciona
com a corrupção e a “parte desonesta que temos todos os argentinos”. No
entanto, ao interpretar a própria trajetória laboral, Manuel ressaltou seu com-
promisso com o trabalho e o esforço como explicativo de uma mobilidade
intrageracional ascendente e de longo alcance: “eu trabalho desde os 14, 15
anos. Trabalhava limpando terrenos baldios, trabalhei de garçom, trabalhei de
sorveteiro, vendi estampitas [santinhos] de porta em porta. E aqui comecei co-
mo aprendiz”. Considerando o seu esforço para ganhar dinheiro, vemos apa-
recer uma ideia de meritocracia, valorizada como modelo de ordem social:
aqueles que mais se esforçam deveriam obter reconhecimento econômico e
status em suas ocupações. Entretanto, a realidade impõe outros critérios: “ou-
tro grande problema que nós argentinos temos é: se castiga o que se esforça
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no trabalho. [...] Um garoto que trabalha bem merece um salário maior do que
aquele que trabalha mal. Mas hoje, tudo, tudo, tudo protege o que trabalha
mal”.
Manuel considera que há valores morais como o “esforço” e o “trabalho”
que definem as formas legítimas de transferência de dinheiro. Ao falar da vida
cotidiana das camadas populares, associa estes valores com a história de uma
concorrente em um programa de televisão:
Houve uma moça que se apresentou, muito humilde, da zona de José C. Paz, a
garota vende chipa na estação de trem de José C. Paz e com isso vive, ou seja,
realmente é ter vontade de viver e de se alimentar porque... O que acontece é que
você sustenta as pessoas no limite, tem os catadores, uma coisa destroçada, não?
Ou com o salário dado, não? Creio que o trabalho é ensinar a trabalhar.
Este exemplo lhe serve para desaprovar fortemente o “salário dado” que
“sustenta” gente “destroçada”, em contraposição ao “dinheiro ganho” com “von-
tade”, com “trabalho”, com “esforço”. Assim tipifica os dinheiros transferi-
dos por políticas sociais, aludindo à falta de interesse e responsabilidade, ao
desperdício, em resumo, uma atitude econômica que na medida em que não
está dirigida ao investimento não é saudável. Compara os presentes para seus
filhos com os subsídios e planos sociais e, em ambos os casos, justifica sua
restrição como um processo educativo:
Não se pode dar tudo a eles porque se cai em uma situação que… o mesmo em
certa medida o Governo dá aos que não têm trabalho, ou acesso ao trabalho, dizem.
Deveriam dar a eles acesso ao trabalho, não? Não dar-lhes planos que é um pouco
o que… se tudo chega com um esforço, e tudo com um esforço é valorizado. Se não
o valorizamos, não se chega lá. É como ganhar o dinheiro na loteria ou realmente
trabalhando. Quando se ganha o dinheiro na loteria, 80% você estoura em uma
semana ? É isso, você vai ao cassino, ganha, você convida para comer todos os
amigos, você detona o dinheiro em um minuto. Agora, quando é com esforço você
pensa duas vezes, não? Você pensa um pouco melhor, e como investi-lo. Com os
filhos é o mesmo, você tem uma questão de que eles têm que ganhá-lo. Ter uma
responsabilidade com o estudo, ter uma responsabilidade com a família.
Deste ponto de vista, tanto Manuel quanto sua mulher vão medindo e
limitando os presentes em dinheiro a seus filhos sob a premissa de que o di-
nheiro deve ser ganho com “responsabilidade”, marcando uma origem que
deve condizer com as atividades e prioridades culturais da classe média. Esses
usos o ajudam a construir juízos de valor sobre as decisões econômicas dos
motoristas da empresa na qual trabalha (tipificados como gente de “baixa edu-
cação”):
Tratamos de orientá-los para que comprem sua casa, para que façam os filhos
estudar, entende? É gente que ganha um salário muito bom, hein... de modo que…
bom, me parece um desperdício realmente que, que... Porque essa gente... você vê
que a baixa educação, eles torram o dinheiro.14
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Seguindo este modelo meritocrático de organização social que observa-
mos nas apreciações de Manuel, podemos voltar aos relatos de Andrea, uma de
nossas entrevistadas de classe média, apresentada na parte anterior.
Nos registros da entrevista de Andrea, a “gente dos países limítrofes”,
i.e. os imigrantes, ocupa um lugar especial. Ela aponta sua presença no bairro
de Constitución, que vê deteriorado, e também se mostra incomodada por eles
se aproveitarem das oportunidades na cidade, como a utilização dos serviços
públicos e gratuitos de saúde e educação: “há toda uma transmigração de
gente, igual às pessoas do interior. Não é que querem vir para cá por diversão.
Vêm para cá porque estão buscando oportunidades, então se as tivessem em
seu [país], em sua província de origem, não sofreriam”. Da mesma forma, seu
relato explicita outras tensões relativas aos imigrantes. Andrea explica as di-
ficuldades que encontra para se classificar como membro da classe média já
que sua pauta de consumo e sua carga laboral e tributária não estão de acordo
com as expectativas relacionadas com o seu nível educacional universitário.15
Atualmente, ela se percebe como socialmente desclassificada e vive isto com
sofrimento. Certos indicadores relativos ao consumo lhe servem para compa-
rar sua situação com a de seus pais durante sua juventude, como o serviço
doméstico, a cobertura de saúde, as férias e o automóvel:
A mim [meus pais] me disseram, me informaram, que eu era classe média com
aspirações… hoje ficaram as aspirações, como a nível país. […] em relação a eles
[meus pais] tenho duas questões: uma, minha mãe, digamos, nem sempre [mas]
tinha uma pessoa que regularmente a ajudava, pelo menos semanalmente, nas
tarefas domésticas. E, depois, principalmente, tinham cobertura de saúde… e ou-
tra coisa que perdi, que a qualquer momento estou para recuperar [risos] são as
férias porque realmente, ou seja, este ano me permiti ir por uma semana a San
Clemente del Tuyú e… [risos] patético. […] Outra coisa também que a qualquer
momento recupero … o automóvel! O automóvel. Não eu, porque não dirijo, [mas]
meu marido… ele sente mais falta do carro do que eu [...]. Com relação a meus
pais, meus pais tinham automóvel, meus pais tinham cobertura de saúde, iam de
férias, ainda que a cada dois ou três anos, ou seja …, evidentemente não é uma
questão minha, há outras pessoas que estão na mesma situação.
Segundo Andrea, seus pais lhe teriam transmitido a ideia de que a
aquisição de credenciais educacionais garantiria o acesso a ocupações não
manuais relacionadas com um status e capacidade de consumo maior que o
atual. Assim, Andrea vive uma situação pessoal contraditória ao ver que sua
condição financeira não corresponde ao ideal meritocrático recebido de seus
pais. Um maior nível educacional, um trabalho mais qualificado e uma maior
carga tributária não lhe proporcionaram mais dinheiro nem qualidade de vida
melhor do que a de seus vizinhos imigrantes. Vejamos o caso de Oscar, 38 anos,
pedreiro e pai de três filhos, e beneficiário de distintos programas de TMC:
[...] trabalho de segunda a segunda [risos]. Ou seja, eu não me situo em nenhum
lugar, ou seja a nível cultural e a nível de estudos poderia dizer universitário
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completo, seja a letra fria. Mas pelo lugar onde vivo e pela vida que levo e tudo
mais, poderia dizer que sou de classe baixa. (...) essas classes estanques que em
determinado momento foram criadas, ficaram... ficaram no tempo. Aqui há pes-
soas que não se sabe a que se dedicam e passam com camionetes 4x4 que custam
mais de130.000 pesos, então, o que é? Classe alta ou classe baixa? Trabalho não
têm, pagam impostos? Não. Então, é relativo.
Oscar vive com sua mulher Naty, de 35 anos, e seus três filhos: Natalia
(6), Matías (4) e Román (1). Atualmente está reformando sua pequena casa de
tijolo sem reboco, telhado de chapa metálica e de apenas um ambiente, lo-
calizada no “beco dos tucumanos”, como costumam chamá-lo os vizinhos da
Favela Asunción. Essa denominação guarda uma estreita relação com o lugar
de origem da maioria dos vizinhos que ali residem: a província de Tucumán,
ao norte da República Argentina.
O orçamento familiar é composto, na sua maioria, por rendimentos
oriundos de programas de TMC. Sua mulher é beneficiária da AUH por causa
dos seus três filhos, enquanto Oscar faz parte do programa “Argentina Traba-
ja” há aproximadamente quatro anos. A somatória dessas diferentes receitas
de dinheiro por transferência direta das políticas sociais deve chegar a 2.600
pesos aproximadamente. Ademais, se destaca o ganho que Oscar considera
como “forte”: “os bicos na construção”.
Oscar classifica e distingue os recursos de seu orçamento da seguinte
maneira. Como já mencionamos, “o ganho forte” vem dos trabalhos que faz
“por fora, na construção”: “agora estou pegando um trabalhinho de ampliação
em cima de uma funerária. Cobrei 5 lucas [5.000 pesos] por todo o trabalho”.
Esse ganho resulta “forte” em oposição ao dinheiro proveniente dos programas
de TMC: “a concessão (AUH) é dinheiro para a malaria. Eu digo à Naty que o
guarde para chegar ao fim do mês… para a malaria,16 para quando você não
tem um mango,18 para comprar alguma comida que falte no fim do mês”. Por
outra parte, ao se referir ao dinheiro proveniente do programa “Argentina Tra-
baja”, Oscar faz avaliações similares às de Manuel:
Por um lado, é pouco dinheiro… 1.500 mangos [pesos] para as pessoas não serve
para nada e o Governo sabe, mas se fazem todos de distraídos. Mas não é só esse
o problema… eu já estou cansado, não me irrito mais. São todos vagabundos,
ninguém quer trabalhar, só se preocupam com que chegue o dia cinco de cada
mês e que tenham o dinheiro depositado no banco. Depois gastam a rodo na noite,
compram bobagens.
Ao longo dos quatro anos de trabalho, Oscar estabeleceu diversos conta-
tos pessoais a partir do programa “Argentina Trabaja” e sonha “ser empregado
municipal”. Iniciou uma relação de estreita proximidade com um empregado
municipal de certa hierarquia em uma das principais administrações do distri-
to: “agora estou falando com Santillan, da administração de Domínico. Talvez
consiga que me efetive no município o ano que vem”. Suas expectativas guar-
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dam relação com o dinheiro a que poderia chegar a ter acesso como empregado
municipal, e as oportunidades que tais somas significariam:
O do plano por 1.500 [pesos] já foi. Santillan trabalha cinco ou seis horas por dia
e uma vez por semana nem aparece na repartição. Além disso, anda o dia todo
no carro que lhe dão aqui, com ar condicionado, supervisionando os trabalhos.
Imagina… você nunca vai vê-lo sujo, sempre com uma camisa diferente. Deve
receber 8 ou 9 lucas [8.000 ou 9.000 pesos], agora vai quinze dias para a costa. Eu
vou fazer o possível para que ele me coloque lá dentro.
Otilia, 51 anos, casada e mãe de quatro filhos, beneficiária de distintos pro-
gramas de TMC.
Otilia é oriunda da Província de Chaco, ao Norte da Argentina. Está casada há
mais de 25 anos com Carlitos, 52, e tem quatro filhos: Ezequiel (22), Erick (17)
Richard (11) e Tiziana (6). Carlitos há dezessete anos trabalha em uma fábrica
de plásticos a uns dez quarteirões do bairro. Há aproximadamente quatro
meses Otilia se incorporou ao programa “Argentina Trabaja”: “agora que co-
mecei a trabalhar meu salariozinho é uma ajuda […] há tantos anos que não
trabalhava”, costumava dizer Otilia.
Até meados do ano de 2005, ela e sua família viveram em um dos be-
cos da Favela Asunción, talvez o mais significativo, conhecido pelos vizinhos
como “o beco do T” em referência à sua forma de letra “T”. Atualmente resi-
dem em uma das novas moradias sociais construídas durante o processo de
urbanização. Otilia recorda “a favela” como um lugar marcado pela pobreza e
a privação material:
Eu digo para os meninos que há que cuidar da casinha: Você sabe como vivíamos
lá? Dormíamos todos em um quarto, com colchões que, depois, pela manhã, eram
levantados para virar mesa de jantar, não tínhamos nem para um móvel. E houve
épocas, como em 2001, que interrompiam o trabalho de Carlitos constantemente
na fábrica e tinha que ir ao mercado central onde catava fruta e verdura.
Nos encontros e conversações com ela, reaparecem constantemente
histórias relacionadas a sua vida na província do Chaco e, posteriormente, à
“vida na favela”:
Eu digo a eles que têm que estudar, ter seu futuro. Eu lá no Chaco não pude
continuar estudando, você não sabe quanto me dói. Tive que trabalhar desde
muito pequena com a cana de açúcar, vim trabalhar jovenzinha em casa de fa-
mília em Buenos Aires. Aqui pudemos ter uma cama, mesas, cadeiras, um fogão,
geladeira, tudo isso conseguimos ter.
O relato de seu progresso econômico e social inclui a preocupação com
a possibilidade de que seus filhos “possam desfrutar”: “agora, aqui, com o
dinheiro há que investir. Agora, como digo a eles: isto é tudo para vocês” ? Ela
mostra um claro interesse por poder transmitir a seus filhos valores morais
correspondentes com a possibilidade de um futuro econômico próspero:
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Aqui há muitos jovens que não têm nada em casa para comer, mas andam super
bem vestidos. Eu sempre digo a eles, quando terminamos de comer: “vão economi-
zando, vão juntando, no dia de amanhã vocês podem comprar um terreno e podem
também construir sua casinha, e já não vão mais precisar morar comigo. Quando
já tenham seu marido e mulher, quando já estejam no que é deles”. Ontem estava
falando com Ezequiel “querido, você vai se livrar das contas agora”,18 porque está
de férias agora. “Economiza”, digo a ele, “mesmo que sejam 200 ou 300 pesos já
podem poupar”. Ou olha um terreno “bom, eu gosto daqui”, e começa a pagar a
prestação, assim no dia de amanhã você faz a sua casinha.
Otilia tenta transmitir a seus filhos determinados significados e usos do
dinheiro que, em certa medida, os diferenciem de outros próximos no espaço
social e os aproximem das expectativas de progresso e crescimento econô-
mico dos setores médios: “porque, por mais pobre que sejam, eles aspiram,
anseiam, sonham ter, e isso é bom. Isso te ajuda muito, te dá muito alento
ver que não esbanjam o dinheiro. Se esforçam e é bom saber que vão ter no
dia de amanhã”.
Simmel se referia à “falta de caráter” como uma qualidade muito posi-
tiva do dinheiro: “no âmbito dos fenômenos, só o dinheiro se libera de tudo a
ponto de passar a estar completamente determinado por sua quantia” (Simmel
apud Poggi, 2006: 121). No entanto, os relatos anteriores nos mostram vários
exemplos de como se atribuem sentidos e valores ao dinheiro de acordo com
suas origens e usos, mais do que por sua quantia.
Ao nos determos nos setores médios, os relatos de Manuel e Andrea
ressaltam o valor de um “dinheiro ganho” (Wilkis, 2013) baseado no “trabalho”
e na “responsabilidade”, em detrimento do dinheiro proveniente de subsídios
e transferências monetárias. Em função dessas diferentes origens do dinheiro,
Manuel tipifica também diferentes destinos do dinheiro: enquanto o dinheiro
ganho é investido na casa e no estudo, o dinheiro dado àqueles que não se
esforçam se torra, se desperdiça. Esta marca distintiva da classe média remete
tanto às suas histórias de origem, bem como às suas credenciais de educa-
ção e outras conquistas conseguidas por mérito próprio. Porém, como vemos
no relato de Andrea, suas conquistas educacionais e seu esforço laboral não
resultaram para ela em renda maior. Aborrece-se ao ver que seus vizinhos,
que não trabalham nem pagam impostos, têm nível de vida superior ao dela.
Assim, dá a entender que a origem desse dinheiro é ilegal e, portanto, seu
destino, ilegítimo.
Nos registros etnográficos de Otilia e Oscar observamos situações bio-
gráficas marcadas pela carência e pela precariedade, por nível educacional
baixo ou inclusive sem estudos formais e inserção subordinada na estrutura
ocupacional. Estas situações biográficas implicam a emergência de outras ne-
cessidades e origens do dinheiro mais heterogêneas, bem como destinos mais
imediatos em sua vida cotidiana. Em suas variadas fontes de ganhos familia-
res depreendemos o esforço para “não ter tempos economicamente mortos”
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(Wikis, 2013: 106) e em seu horizonte de expectativas de futuro desponta o “ir
poupando” ou “juntando”, economizando paulatinamente, já que os grandes
investimentos da classe média não estão ao seu alcance.
Suas práticas econômicas e os usos que fazem do dinheiro se contra-
põem à “falta de caráter” que indicava Simmel; antes, se aproximam da ideia
do dinheiro como uma lupa através da qual os diferentes grupos sociais se
observam e observam seu entorno (Sautu, 2001: 52). Os significados associados
ao dinheiro e as apreciações sobre suas origens e seus usos permitem a seto-
res médios e populares tipificar suas práticas e as de outros, bem como emitir
juízos e avaliações morais sobre atores que ocupam posição mais ou menos
próxima no espaço social.19 Os registros das classes médias são construídos
sobre certa desvalorização dos setores populares, reproduzindo representações
da própria classe de pertencimento e ideais meritocráticos. Nos setores popu-
lares, os registros dão conta de uma hierarquização das próprias decisões e
práticas econômicas com base numa depreciação daqueles mais próximos na
escala social, que, embora ganhando dinheiro da mesma maneira, escolhem
para este outros destinos menos valorizados como “andar bem vestido” ou
gastá-lo “a rodo na noite”. Com isso queremos assinalar que, quando falam
de dinheiro, tanto as classes médias quanto os setores populares dizem algo
sobre a ordem social.
CONCLUSÕES
Neste artigo pudemos observar que as famílias de setores médios e setores
populares dão conta razoavelmente, no sentido schutziano, de sua situação
biograficamente determinada.20 Isso fica evidente tanto no estudo sobre os
significados do dinheiro proveniente das políticas sociais quanto no estudo
sobre o senso comum e as práticas cotidianas da classe média no que concerne
a educação e saúde. Em diferentes populações, ambos os estudos abordaram
o dinheiro como um poderoso instrumento de desigualdade, para além dos
interesses e moralidades de cada família e setor social de pertencimento. Os
rendimentos funcionam como limitantes das possibilidades que as famílias
têm frente a suas necessidades. Sua capacidade econômica lhes impõe mar-
gens de comportamentos. Assim, o dinheiro é uma das maneiras com que os
entrevistados interpretam o alcance de suas ações, definindo contextualmente
um mundo acessível para si e para suas famílias.
No entanto, há as valorações normativas. Os relatos acerca dos orça-
mentos familiares, gastos e decisões se encontram carregados de valores e
símbolos herdados e compartilhados. Em setores populares vimos que resolver
e/ou melhorar a situação habitacional é uma prioridade, é o melhor investi-
mento que podem deixar para seus filhos. Em troca, a prioridade conferida
às questões de saúde e educação nas famílias de classe média resulta em um
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elemento fundamental de sua posição de classe, pois sua situação habitacio-
nal já se encontra resolvida desde gerações anteriores e, portanto, é dada por
assegurada até segunda ordem.
Além disso, observamos que tanto as famílias de setores médios quanto
as de setores populares estabelecem diferença entre “bons” e “maus” gastos,
em termos de tipificações de valores, atitudes e comportamentos relacionados
ao dinheiro. Estas tipificações em relação aos diferentes significados e usos
do dinheiro medeiam sua reflexão acerca da sociedade. Com suas decisões
econômicas e práticas cotidianas, utilizam estas noções de senso comum para
demarcar limites entre Nós e Outras famílias. Em ambos os setores sociais, os
entrevistados associam o dinheiro ao esforço cotidiano para reproduzir ou me-
lhorar sua posição de classe e também a sua responsabilidade pelo futuro de
seus filhos. Os pais e mães de classe média asseguram não estarem dispostos
a arriscar o futuro por gastos imediatos com o consumo e o entretenimento.
Em vez disso, planejam seus gastos prioritários e orientam os esforços fami-
liares para a consecução de metas relacionadas com a saúde e a educação de
sua família. Os pais e mães de setores populares também distinguem entre
gastos imediatos e investimentos para o futuro. Associam os primeiros com o
consumo de bens secundários e indumentária, enquanto hierarquizam suas
próprias práticas de investimento no equipamento da moradia a partir do aces-
so a créditos e pagamentos a prestação e, de maneira secundária, as pequenas
poupanças de seus filhos pensando no “dia de amanhã”.
Em ambos os estudos, o dinheiro serve aos entrevistados para explicar
experiências e decisões da vida cotidiana; e também para realizar juízos e
avaliações morais sobre os Outros. Seus discursos e suas tipificações estão
carregados de valores e símbolos através dos quais se diferenciam e hierar-
quizam. Desse modo, o dinheiro “arrasta com ele hierarquias morais, desenha
uma ordem social onde os sujeitos se situam” (Wilkis, 2013: 28).
Por último, estes resultados se baseiam em pesquisas realizadas a partir
de uma perspectiva qualitativa, para compreender a posição, os sentimentos, as
experiências e a cosmovisão dos atores sobre a realidade social (Patton, 2002).
Essa perspectiva teórico-metodológica nos permitiu colocar em diálogo os re-
sultados obtidos a partir do uso de diferentes métodos (entrevistas biográficas
e etnografia) provenientes de diferentes tradições disciplinares (sociologia e an-
tropologia social). A etnografia possibilitou a análise minuciosa dos orçamentos
familiares e da multiplicidade de tensões e negociações existentes nos lares em
torno do dinheiro. Ao mesmo tempo, as entrevistas biográficas nos permitiram
relacionar práticas cotidianas e trajetórias familiares de classe em diferentes
gerações. Como se sabe, estas decisões sobre o método e a seleção dos casos
a serem examinados não só está sujeita aos outros elementos do desenho de
investigação, como também a uma contínua negociação e reflexividade entre
o pesquisador e seu universo de estudo (Maxwell, 1996). Neste sentido, as
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entrevistas biográficas resultavam mais adequadas para a população de clas-
se média que, preocupada com uma sensação de insegurança (Kessler, 2009),
demonstrava maior reticência a abrir as portas de seus lares e franquear-nos
informação sobre seus orçamentos familiares, bem como os nomes de insti-
tuições e pessoas com as que se vinculam em sua vida cotidiana. O fato de
termos pesquisado o mesmo bairro anteriormente fez com que pudéssemos
contar também com o recurso à etnografia realizada àquela época.
Finalmente, ambas as pesquisas conseguiram captar a percepção e juí-
zos de valor de pessoas de diferentes setores sociais acerca dos significados
e usos do dinheiro. Ao ressaltar que este diálogo interdisciplinar não foi ape-
nas produtivo para complementar e comparar os resultados obtidos em dife-
rentes populações da Área Metropolitana de Buenos Aires, seguindo Denzin
(1970), defendemos seu potencial de ampliação do conceito de triangulação
metodológica para além da medição, de modo a incluir também uma contínua
triangulação de dados, de pesquisadores, de teorias e de metodologias a fim
de produzir o conhecimento objetivo sempre problemático.
Recebido em 23/02/2015 | Aprovado em 22/06/2015
Martín Hornes é doutorando em Sociologia na Universidad
Nacional de San Martín (UNSAM) e bolsista do Consejo
Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas
(CONICET) com sede no Instituto de Altos Estudios Sociales,
UNSAM, Buenos Aires, Argentina.
Mercedes Krause é doutoranda em Ciências Sociais na
Universidad de Buenos Aires (UBA) e bolsista do Consejo
Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas
(CONICET) com sede no Instituto de Investigaciones Gino
Germani, UBA, Buenos Aires, Argentina.
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NOTAS
1 Em seu livro intitulado El significado social del dinero, Vivia-
na Zelizer fala de uma noção de orçamentos organizada
em torno da “marcação do dinheiro” no interior dos lares.
A categoria de marcação alude a um conjunto de represen-
tações e práticas sobre o dinheiro – restrições sobre seu
uso, ordenamento, modos de controle, lugares de dispo-
sição, rituais para sua apresentação ou delimitação para
usos específicos – que atuam construindo o orçamento e
“onde cada categoria possui regras próprias para o gasto
dos fundos” (Zelizer, 2010: 47).
2 Partimos do pressuposto de que as classes sociais estabe-
lecem condições básicas de existência ao abarcarem o po-
der de apropriação dos recursos materiais, o conhecimen-
to e os direitos e privilégios que se dirimem no mercado
(Marx, 1980; Weber, 1964; Wright, 2005). As classes sociais
são construções coletivas com consequências sociais e
individuais (Sautu, 2011), já que condicionam a vida das
pessoas, suas decisões e práticas cotidianas e, finalmente,
seu destino.
3 Para salvaguardar a identidade e confidencialidade das
pessoas que participaram de nossas respectivas pesquisas,
os nomes próprios que utilizamos são fictícios.
4 Embora não discutido na análise, a classe média é uma
categoria heterogênea, composta por três posições de clas-
se: “Classe média profissional e managers”, “Mediana e pe-
quena burguesia” e “Classe média técnico-comercial-admi-
nistrativa” (Sautu et al., 2007). Os dados sobre as famílias
foram proporcionados pelas enquetes sobre Estratificação e
mobilidade social aplicadas pelo Centro de Estudios de Opi-
nión Pública (CEDOP-UBA) em 2004, 2005 e 2007. Baseando-
nos em estudos quantitativos anteriores (Otero, 2008; Dalle,
2009; Rodríguez, 2009), selecionamos famílias com filhos
menores e jovens e que tiveram ao menos um membro
da geração anterior com inserção ocupacional na classe
média, a fim de obter uma perspectiva ao mesmo tempo
sincrônica e diacrônica dos mecanismos de reprodução
social.
5 A Área Metropolitana de Buenos Aires (AMBA) está confor-
mada pela Cidade Autônoma de Buenos Aires (CABA) e 24
municípios que compõem a conurbação, e conta com um
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total de 9.910.282 habitantes. O município de Avellaneda
é o primeiro município localizado no sentido sul, limítrofe
com a Cidade Autônoma de Buenos Aires. Ele possui uma
superfície total de 54 km2, e uma população estimada em
350.000 habitantes, segundo o último censo populacional
realizado pelo Instituto Nacional de Estadísticas y Censos
(INDEC, 2010).
6 Em 2001, a Argentina sofreu uma grande crise como conse-
quência da reestruturação neoliberal e a saída, em dezem-
bro de 2001, do regime de conversão entre o peso argentino
e o dólar estadunidense. Seguiram-se vários anos de uma
recessão econômica que afetou tanto os setores médios
quanto os setores populares. Para mais informação sobre a
discussão sobre as crenças e valores da classe média e suas
condições empobrecidas de existência, ver Svampa (2000),
Sautu (2001), Minujin & Anguita (2004), Kessler & Di Virgilio
(2008) e Visacovsky (2010). Para mais informação sobre os
altos níveis de pobreza e desocupação nos setores popu-
lares, assim como a recuperação dos salários familiares
através de programas de TMC, ver Panigo & Chena (2011)
7 Trata-se de um programa de TMC dependente do Minis-
tério de Desenvolvimento Social da República Argenti-
na criado no ano 2008 e dirigido à população vulnerável
maior de 18 anos que se encontre desocupada. Consiste
em uma transferência de dinheiro líquido que atualmen-
te chega a 1.600 pesos, condicionada ao cumprimento de
uma contraprestação de serviços em alguma dependência
municipal de governo. Para mais informação, consultar:
<http//:www.desarrollosocial.gob.ar/argentinatrabaja>
8 Inspirado em outras TMCs da região, como é o caso do pro-
grama Bolsa Família no Brasil, a AUH é uma transferência
mensal de dinheiro dirigida aos trabalhadores informais
ou precários que adquire condicionalidades similares às
concessões familiares das quais gozam os trabalhadores
pertencentes ao sistema contributivo (controles sanitários
e assistência escolar). Para mais informações ver Hornes
(2015).
9 Para distintas etnografias econômicas centradas em finan-
ças e endividamento dos setores populares, consultar o nú-
mero especial da revista de Antropologia Social, Desacatos,
nº 44 “Las deudas de los oprimidos en el imperio de la li-
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quidez”, editada pelo Centro de Investigaciones y Estudios
Superiores en Antropología Social (CIESAS). Disponível em:
<http://desacatos.ciesas.edu.mx/index.php/Desacatos>. Pa-
ra o caso argentino, consultar Wilkis (2014).
10 O Plan Federal de Vivienda é a política de alcance nacional
da área de moradias, sob alçada do Ministerio de Plani-
ficación Federal, Inversión Pública y Servicios da Nação
Argentina. Os programas de urbanização, obra pública e
infraestrutura são executados de forma descentralizada
pelas distintas províncias (e os municípios), atuando o or-
ganismo nacional como controlador fiscal e de certifica-
ção e avanço de obras. Informação disponível na página
<http://www.minplan.gov.ar>.
11 Desde sua criação, em 1994, o Plano Más Vida consistia
numa intervenção nutricional materno-infantil, baseada
na entrega diária de leite e uma cesta de alimentos entre-
gue pelas trabalhadoras vizinhas (mais conhecidas como
“manzaneras” e “comadres”). A partir do mês de março de
2008, o Plano Más Vida “introduz um sistema de pagamento
de um subsídio não remunerado às famílias beneficiárias
através da entrega de um cartão eletrônico destinado ex-
clusivamente à compra de alimentos” (Dallorso, 2010: 142).
12 O município de San Isidro é o segundo município no sen-
tido norte da Grande Buenos Aires, a uns 20 km da Cidade
Autônoma de Buenos Aires. Ele tem uma superfície total
de 48 km2, e uma população estimada em 300 mil habitan-
tes, segundo o último censo populacional realizado pelo
Instituto Nacional de Estadísticas y Censos (INDEC, 2010).
É uma área que reflete a polaridade entre setores de alto
status social e econômico e a favela La Cava, que se es-
tende por uma área de uns 19 hectares e conta com uma
população aproximada de 8.500 pessoas.
13 Na Argentina se conhece como “estampitas” as imagens
devocionais impressas sobre cartolina.
14 “La plata la quema” é uma gíria originada nas principais
cidades do país que, neste caso em particular, assinala
certo desperdício ou mau uso do dinheiro por parte dos
setores populares.
15 Essa dificuldade de autoidentificação dos setores médios já
havia sido marcada por Germani com base em uma enque-
te realizada em 1960, sobre uma amostra aleatória de 2.000
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famílias da Área Metropolitana de Buenos Aires (AMBA).
Ao analisar as correlações entre Nível Econômico Social
(média ponderada de indicadores de ocupação, salário,
moradia e nível de consumo, e educação) e autoafiliação
a classe, encontra que uma “proporção considerável” dos
que registram NES médios, possuem indicadores “incon-
gruentes” como altos níveis em educação e baixos níveis
de renda. Nesses casos, a proporção de “desviados” com
respeito à sua autoafiliação “adequada” tendia a se elevar
(Germani, 2010c: 233).
16 Expressão que também remete ao lunfardo (linguagem po-
pular) argentino. “Para la malaria” assinala a presença de
um dinheiro de pouca quantidade, quase sem valor mo-
netário, destinado a gastos menores de fim de mês.
17 Expressão do lunfardo argentino utilizada para se referir
ao dinheiro.
18 As “cuentas” ou “encuentarse” são categorias nativas que
se referem à aquisição de um crédito pessoal, geralmente
destinado à compra de algum bem móvel ou mobiliário pa-
ra o lar. Entre esses créditos se destacam os empréstimos
das casas de vendas mais reconhecidas das localidades
ou dos circuitos comerciais, como por exemplo: Credifácil,
Corefín, Efectivo Sí etc. As palavras de Otilia também in-
troduzem as representações morais negativas ligadas ao
crédito, em contraposição a uma prática virtuosa da pou-
pança nos setores médios, ambos os aspectos abordados
por Luzzi (2013).
19 Está fora do escopo deste trabalho abordar o debate emer-
gente sobre uma sociologia e antropologia das moralida-
des. Para uma revisão da temática, ver Didier Fassin (2009).
Para dois trabalhos etnográficos que indagam sobre as
construções morais associadas ao universo da pobreza e
dos beneficiários de seguros de desemprego, ver Tebet Ma-
rinis (2014) e Dubois (2014).
20 Segundo a fenomenologia social, as práticas do mundo da
vida cotidiana respondem a uma sorte de lógica racional
no plano de seu senso comum. Não é racional no sentido
objetivo, mas, sim, no sentido subjetivo: “a ‘ação racional’,
no plano do senso comum, é sempre ação dentro de um
marco inquestionável e indeterminado de construções de
tipicidades” (Schutz, 2003: 59).
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SIGNIFICADOS E USOS DO DINHEIRO: SETORES
MÉDIOS E POPULARES DE BUENOS AIRES
Resumo
O artigo analisa significados e usos sociais do dinheiro
em setores médios e populares da Área Metropolitana de
Buenos Aires na perspectiva dos estudos sociais da econo-
mia. Resulta do diálogo entre dois trabalhos de pesquisa
empírica realizados entre 2009 e 2014. Primeiro, identifica-
mos formas de marcação do dinheiro para mostrar como
os distintos atores organizam seus orçamentos a partir
das categorias do senso comum. Em seguida analisamos
as avaliações morais feitas pelos participantes de ambos
os estudos sobre as origens do dinheiro, demonstrando
como distintas tipificações e juízos morais incidem sobre
seus respectivos usos. Na última parte, concluímos como
os esquemas diferenciados de percepção e apreciação nos
permitem observar sentidos e usos plurais do dinheiro em
setores médios e populares. Refletimos também sobre a
potencialidade da integração interdisciplinar de metodo-
logias e dados para a investigação nas ciências sociais.
MEANINGS AND USES OF MONEY: MIDDLE AND
WORKING CLASS SECTORS IN BUENOS AIRES
Abstract
The article analyzes the meanings and social uses of mon-
ey in popular and middle classes of the metropolitan area
of Buenos Aires, from the perspective of economic social
studies. It is the result of the dialogue between two em-
pirical researches conducted between 2009 and 2014. First,
we identify ways of labeling money to show how common
sense typifications used by different actors organize their
budgets. Second, we analyze the moral evaluations that
participants in both studies performed on the origins of
money, showing how different appreciations and moral
judgments affect their uses. In a final section, we con-
clude on the existence of different schemes of perception
and appreciation as well as plural uses of money in popu-
lar and middle classes of Buenos Aires. We also reflect on
the potentiality of interdisciplinary integration of meth-
odologies and data in social research.
Palavras-chave:
Senso comum;
Significados e
usos do dinheiro;
Classes sociais;
Transferências Monetárias
Condicionadas;
Argentina.
Keywords:
Common sense;
Uses of money;
Social classes;
Conditional cash transfers;
Argentina.
Juliana Portenoy SchlesingerI
I University of São Paulo (USP), Brasil
DENATURALIZING CULTURE: SAYED KASHUA’S NEWSPAPER COLUMNS ON THE TOPIC OF PREJUDICE
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On February the 19th 2009, Sayed Kashua wrote a column in Israel’s leading Haaretz
newspaper in which he himself was not directly the target of discrimination.1
Avigdor Lieberman, Israel’s newly incumbent Minister of Foreign Affairs, had
announced a proposal to make it compulsory for non-Jewish citizens of Israel
to declare their loyalty to the Jewish country or else lose their citizenship. The
plan and its slogan ‘No Loyalty, No Citizenship’ caused a huge furor among the
Jewish Israeli left, who condemned the proposal as racist and discriminatory.
In his column, Sayed Kashua, the I-columnist,2 tells his readers that he had
been interviewed by a German journalist who had first learnt about ‘Israeli
Arab citizens’ because of Lieberman’s plan. Adopting a highly satirical tone, the
I-columnist simulates a situation of discrimination in which a neighbor – actu-
ally his friend, as Kashua lets his readers know – rang the bell of his apartment
and invited him to watch a movie together.3 “My neighbor, who’s a really great
guy, was standing there. He wanted to know if I felt like catching a movie with
him. ‘Sure,’ I said. ‘Let me just get rid of this German woman and I’m ready
to go.’” Sitting across from the journalist, the I-columnist pretends he is the
victim of a discriminatory attack: “Every day it’s the same story. He knocks on
the door and I open it. He spits on me and then walks away” (Kashua, 2009;
also see Schlesinger, 2012).
In his same Haaretz column of August 16th 2013, Sayed Kashua describes
how the I-columnist and his wife were always waiting for invitations during
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vacations that included their children: “The thing is, all our friends have disap-
peared. I don’t know if it’s because we’ve become a large family – because when
you come down to it, who really wants to invite a family of five? Or maybe, in
the spirit of the time, they have all turned racist” (Kashua, 2013g).
Sayed Kashua was born in 1975 in the little Arab village of Tira, situated
in a region of Israel known as the Triangle, which straddles the Green Line sepa-
rating the country itself from the occupied Palestinian territories. At the age
of 15, Kashua left his hometown after being accepted in a well-known Jewish
boarding school in Jerusalem for gifted students, the Israel Arts and Science
Academy. Kashua was educated there in Hebrew and all his work is written
in the language. He has written three critically acclaimed novels that have
subsequently been translated into various languages: Dancing Arabs (2002), Let
It Be Morning (2004) and Second Person Singular (2012). In 2004, Kashua won the
Prime Minister’s Prize for Literature. Sayed Kashua is also screenwriter for the
program Avoda Aravit (Arab Labor), now in post-production for its fourth season.
Avoda Aravit is one of the top five Israeli comedies of all time and the only show
on Israeli television to feature leading Arab characters and dialogue mainly
in Arabic. Since 2005, Kashua has written a weekly column in Haaretz, Israel’s
most important Hebrew newspaper, which also publishes an English version.
Sayed Kashua’s work is renowned for its use of unusual humor, sarcasm
and self-irony in work that evokes a deeply fragmented society.4 In an article
entitled “The outsider”, the Foreign Policy magazine journalist Debra Kamin
(2013) writes that Israel is “a nation plagued by xenophobia and casual racism.”
In fact, discrimination has been condemned as a huge problem for Israeli society
even by the government itself. In one of his columns (Kashua, 2014a), Sayed
Kashua describes a public service commercial broadcast on Israeli television:
We see two children, one black, the other white, having fun in a playground that
otherwise looks totally white. The white mother quickly pulls her son away from
the black boy […]. In the same commercial, an Arab woman wearing a head covering
gets into a bus with her little daughter. A blonde woman with a nasty look in her
eyes spots the Arab woman heading for the empty seat next to her and quickly
places her handbag there to prevent her from sitting down […]. A caption appears
on screen: ‘Yesterday, they didn’t make a place for me, today they’re refusing to rent
me an apartment.’ It ends with the following message on the screen: ‘Discrimina-
tion is a violation of the law. Together we are fighting it.’ Electric guitars that are
playing ‘Hatikva’ get stronger, and then a line from the Israeli national anthem
flashes on the screen: ‘Our hope is not yet lost.’ The sponsor is the Justice Ministry.
Sasson-Levy (2013) discusses just how ethnically fragmented Israeli
society is. Ashkenazim – that is, Jews whose families migrated to Israel from
Europe and America (singular: Ashkenazi) – are seen within Israel and in the
West as representative of the middle and upper classes of Israeli Jewish society.
They enjoy the highest socioeconomic ranking, a fact reflected in house price
values, family income and educational levels. Their presence in the higher
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echelons of politics, university faculties, the economic elite and the media is
likewise much higher in percentage terms than their share of the population.
Ethiopian immigrants are discriminated against on both racial and religious
grounds since the authenticity of Ethiopian Judaism is still a matter contested
by some rabbinical institutions in Israel. Another group suffering discrimina-
tion in Israel are immigrants from the former USSR. Yelenevskaya and Fialkova
(2004) report that they still feel just as underprivileged as they did when living
as a minority in the USSR, but this time as newcomers and as ‘Russians’ who
can be treated unfairly and exploited. At the bottom of the social structure are
Israeli Arabs, excluded by powerful social and symbolic boundaries in terms
of areas of residence, land ownership, labor market participation, housing and
political representation. “A clear hierarchy has been institutionalized in Israeli
society in general and in the labor market in particular whereby Ashkenazim
are at the top of the socioeconomic ladder, Mizrahim (Asian, Middle Eastern, or
North African descent of Jews, so called Oriental Jews) are in the middle, and
the Arab citizens of Israel are at the bottom,” the authors write (Yelenevskaya
& Fialkova, 2004: 32).
Israeli society is witnessing racist episodes and declarations at a growing
rate. “The society is increasingly fraught with racism,” says Seth J. Frantzman
(2014), opinion editor of the The Jerusalem Post, who talks about a society which
is “[s]tereotyping against citizens who are not considered European-origin ‘sa-
bras,’” referring to the Ashkenazi-origin ideology predominant in the Zionist
Movement in the nineteenth century. Frantzman (2014) argues that this racism
is anti-African, anti-Russian, anti-Sephardic (against Jews of Middle Eastern
descent), anti-Oriental Jews, and indeed hostile to any group of immigrants
who threaten the “demographic composition of the Jewish people.” To this list
we can add racism aimed at Arab Israelis, a population descended from the
160,000 Palestinians who remained in Israel after the 1948 War and became
Israeli citizens. Today they constitute 20% of the total local population of Mus-
lim, Christian and Druze origin.
The Chief Rabbinate of Israel, a court holding jurisdiction over many
aspects of Jewish life in Israel, including personal status issues, including mar-
riage and divorce, burials, conversion to Judaism, and dietary law, has played
an increasingly significant role in spreading discrimination and racism in Is-
rael. In 2010, 39 municipal rabbis called on Jews to avoid renting or selling
apartments to Arabs and the ostracizing of those Jews who failed to heed this
call. In 2013, the Ashkenazi Chief Rabbi of Israel,5 David Lau, was shown on a
video telling an audience of young male students that they should not watch
European basketball games in public. “Why do you care whether these kushim
[a derogatory term used in Hebrew for black people] who are paid in Tel Aviv
beat the kushim who are paid in Greece?” (Haaretz, Jul. 30 2013). Similar state-
ments were made by the Sephardic Chief Rabbi, Yitzhak Yosef, who accused
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the Treasury of financing “kushim in basketball” at the expense of synagogues
and mikvehs.6
Open manifestations of discrimination are easily found. In December
2011, a choir of Christians was singing Christmas songs in the entrance of an
open mall next to the Old City of Jerusalem when a group of young teenagers
dressed as orthodox Jews jumped on them and shouted “get out of here.”7 In
2012, several dozen Israeli Jewish teenagers — some reports state as many as
50 — assaulted four Palestinian youths in the center of Jerusalem, an attack
that the Jerusalem police labeled as an attempted ‘lynching.’ The young people
shouted “death to Arabs” as they chased down and beat the Israeli Arabs (Has-
son, 2012). That same year, hundreds of supporters of Beitar Jerusalem Football
Club entered Jerusalem’s Malha Mall, hurling racial abuse at Arab workers and
customers, and chanting anti-Arab slogans (Rosenberg, 2012). A year later, they
protested against the team’s decision to hire two Muslim players (Prusher, 2013).
Kashua also blames the media for the growing intolerance in Israeli
society. In one column (Kashua, 2014e), the I-columnist reports that he was
watching a Channel 1 news report showing
a 18-year-old Arab from Taibeh who had been sentenced to life imprisonment
(who) reenacted for the police, at length, how he had planted a bomb on a bus
in Bat Yam. The anchorwoman took a long, meaningful breath in the wake of the
report before proceeding to the next item: the death of the legendary fighter Meir
Har-Zion.8 Har-Zion was a reconnaissance man, Har-Zion loved the land, Har-Zion
fought for the homeland. Occasionally he committed murder, occasionally he blew
up buildings with civilians inside, occasionally he was let off instead of being tried,
but they didn’t say that on the news – because there are some things you don’t say.
“Is some killing more humane than other kinds?” asks the I-columnist in
another article (Kashua, 2013h) where he argues that Israeli society discriminates
between the country’s population according to ethnic or religious background.
During an intensification of violent physical attacks on the Arab popu-
lation in Israel, Kashua wrote the column “The warning Sayed Kashua didn’t
give his daughter” (Kashua, 2013c). Here the I-columnist recounts how he had
advised his daughter on how to protect herself before she embarked on a trip.
I wanted to tell her that we’re experiencing a difficult period, to remind her of
the woman who was beaten up at the light rail station in Jerusalem because she’s
an Arab, to tell her about the gang of young men who mercilessly beat an Arab
sanitation worker from Jaffa. I wanted to make sure that she doesn’t get confused,
that she knows that no matter how she dresses, speaks, what music she listens
to and which school she attends9, that she still knows she’s different, and that
she can never be sure.
Much of the self-deprecating humor involves situations in which Arabs
pretend to be Jews. Sayed Kashua has written a lot about Jewish ways of dress-
ing and speaking, a Jewish kind of music. In his novels, as well as his columns
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article | juliana portenoy schlesinger
and the Arab Labor sitcom, Sayed Kashua’s characters are always keen to look
like Jews as a way to avert prejudice. As writes in one column:
As we approached the security guard at the entrance to the car park, I turned up
88FM [a Jewish radio station], as I always do, and put on my biggest smile. “Hello,”
said the guard, peering in the car window. “Everything okay?” “Everything’s good,”
I replied (…). “Go right ahead,” said the guard. “Yes!” shouted my son as we started
to move forward, because again we’d won our little game and the guard hadn’t
asked to look inside the glove compartment or the trunk. “We did it!,” exulted my
son (Kashua, 2012a).
Doubt and uncertainty are a hallmark of the I-columnist’s Israeli Arab
speech when it comes to the future of the Arab population in the State of Israel.
In one column (Kashua, 2014f) in which the I-columnist declares he is in favor
of a boycott against Israel,10 he states:
Believe it or not, ladies and gentlemen, I am in favor of the boycott, because,
despite the sometimes unforgivable injustices done and the fact that the state is
liable not to consider me a citizen, and even though it is threatening to get rid of
me and my family by means of plans of one kind and another11 – I am in favor of
the boycott because I love that screwed-up, dumb country and wish it only well.
The I-of the-columnist’s appreciative comment concerning his feeling
towards Israel is found in the 2013 Index of Arab-Jewish Relations in Israel (not
yet published) conducted by Professor Sammy Smooha (see Solomon, 2014).12
Smooha also perceived a weakening of the tendency for Israeli Arab’s to express
a negative opinion of Israel13 along with an improvement in Arab perceptions
of the Jewish state. In 2013, 64 percent thought that Israel was a good place
to live, compared to 59 percent the year before. Already in the 2012 research,
Smooha noticed a growing desire among Israeli Arabs for greater integration
into Israeli society (Smooha, 2012). As for the Jewish public, 74 percent of Is-
raeli Jews in 2013 recognized the right of Arabs to live as a minority in Israel
with full civil rights, compared to 75 percent in 2012. According to Smooha
on the findings of the 2013 Index, “contrary to popular belief, Jews’ opinions
about Israeli Arabs are not undergoing radicalization but demonstrate long-
term stability” (Solomon, 2014).Despite this comparative statement, the 2013
study found that a very high percentage of Israeli Arabs (71 percent) still fear
serious harm to their rights.
Over the last couple of years, Sayed Kashua has virtually stopped writ-
ing about the prejudice from his own Israeli Muslim community against the
Israeli Jewish population, and has turned to express his concern about the
prejudice shown by Jews against Arabs in Israel. Self-criticism has always been
a remark of Sayed Kashua’s work so this shift effectively points to a change
in the columnist’s perception of his own society, what he calls the “spirit of
the time” (Kashua, 2013g).
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Plenty of Sayed Kashua’s columns report this fear of being considered
suspicious by Israeli Jewish society. In the article “What exactly is this thing
the Jews call ‘Arab Mentality’?” (Kashua, 2013a), the I-of the-columnist reports
this fear very clearly.
I passed through the checkpoint slowly, careful not to make any movement that
might be deemed suspicious, and without unnecessary acceleration, trying to
intimate that I’m still here, if anyone there is having second thoughts.
The same feeling appears in another column (Kashua, 2013i):
I saw a green, new-looking knapsack lying on the pavement between two cars
parked opposite mine. I looked around in the hope of seeing someone who was
looking for it. […] But in vain. […] Should I ignore it? After all, it wasn’t a suspi-
cious object […]. But what if a security guard should appear, notice the knapsack
and ask, “Yours?” “No,” I would reply, and he wouldn’t be able to understand how
I could stand so close to an abandoned bag and not feel the need to report it. Two
questions from the guard and he would realize that I am an Arab, and I might
find myself the main suspect. And if, heaven forbid, it were to turn out that […]
(it) really was booby-trapped, that would be the end for me. I would probably be
released in 30 years and the radio announcer would say I was a terrorist murderer.
Rekhess (2014: 191) explains: “The feeling of distrust, suspicious, and fear
on both sides (Jewish and Arab) heightened the mutual tension following the
October 2000” events [referring to the beginning of the Second Intifada] . Despite
the fact that Israeli Arabs and Palestinians have had different allegiances in the
wars in which Israel has been involved since its declaration of independence
in 1948, the Israeli Arabs are considered part of the larger hostile Palestinian
community and all events in the wider context of the Israeli-Palestinian conflict
influence Jewish-Arab relations in Israel. In the political sphere, Israeli Arabs
also react to these wider events, as in the case of the publication of the Future
Vision Document14 in 2006. Although an insignificant number of Israeli-Arab
citizens have been involved in violent events against the Jewish population dur-
ing the First and also the Second Intifada, the very tense situation which saw
an escalation in Palestinian terror attacks and the rise of Hamas and suicide
bombings led to a perceptibly growing fear of the Arab population among Jews.
Many consider this fear to be the main cause of discrimination. Others argue
that this discrimination is connected to the very nature of the State of Israel,
which tries to combine a Jewish and democratic State. A third possible source
for the discrimination against Arabs in Israel is the growth of the Israeli Arab
population, seen as a threat to the State’s Jewish majority.
Although Israel’s declaration of independence grants all citizens individual
political, economic, legal and religious rights assured by the State, including
freedom of speech and political organization, the right to vote and security, the
fact that Jewish interests are embedded in the concept of security means that
the state simultaneously reinforces its Jewish identity and emphasizes the Jew-
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article | juliana portenoy schlesinger
ish population’s separateness from non-Jews inside the country (Rouhana, 1997).
Arabs citizens claim that Israel, as a Jewish state, fails to uphold its democratic
values by neglecting to provide them with the same advantages extended to
Jews, a situation reflected in the unequal allocation of socioeconomic resources,
the laws of citizenship based on ethnicity, their lack of cultural autonomy, and
the absence of any rights as a homeland minority. Ghanem (2001: 9) believes
that “Israel has a maximum ethnic component and a limited democratic one”.
The author adds that Israel did not want – nor has it made any attempt – to
integrate or absorb the Arab population into the Jewish community.
Discrimination is also seen in the field of language. A non-equal status
is attributed to Hebrew and Arabic, though they are both official languages in
Israel. In an article published in Haaretz, Chassia Chomsky Porat and Azar Dakwar
(2014) discuss the prejudice expressed in Israeli society against literary works
written in Arabic by Jewish and non-Jewish authors alike. The authors write:
“authors who write in Arabic, both Arabs and Jews, are in effect excluded from
the monetary prize [referring to the Sapir Prize15] and public exposure.” They
add: “Arabic literature in Israel would receive exposure to and recognition by
the non-Arabic reading public. It would also provide writers with an incentive
to write works in Arabic – books that certainly enrich the cultural life of the
society in Israel in general.” They also recommend the translation of works
written in Hebrew into Arabic.16
Despite the considerable disparity between Arabs and Jews in Israel,
many Israeli Jews argue that Israeli Arab citizens should be thankful that they
are living in Israel rather than an Arab country. As Kashua puts it:
…the formula imposed by Israel, according to which we have to be thankful that
we are not in Syria and not in Cairo. True, the average Israeli will admit: You are
not equal, but you still don’t have anything to worry about. The fact is you’re not
being slaughtered in the streets. As long as the killing in Syria and Egypt contin-
ues, it’s okay for Beitar Jerusalem fans to demand racial purity (Kashua, 2013a).
In another column, the I–columnist, trying to reassure his wife when she
mentions their children’s fears of sleeping alone, tells her that their security
is guaranteed so long as they stay in Israel: “As long as it’s within the 1948
lines [referring to the border defined in the 1948 War], my children can sleep
wherever they want” (Kashua, 2014c), satirically assuming that their Israeli
citizenship gives them protection.
Generalization is another form of discrimination that appears in Sayed
Kashua’s columns. Listening to a radio news report on the release of terrorists,
the I-columnist writes:
What kind of person would not be appalled by a despicable murder, not to men-
tion by celebration of the release of those human beasts involved in bloodthirsty
barbarism? (…) So why the hell did his [the commentator’s] comments strike me
as so militant and provocative that I preferred to turn off the radio? Maybe because
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of the implicit generalization that these terrorist murderers were Arabs. That Ar-
abs are the ones who are sick in the head, and only Arabs are capable of dancing
on blood and of seeing the prisoners’ release as a sign of victory (Kashua, 2013h).
In a column already mentioned earlier, “What exactly is this thing the
Jews call ‘Arab mentality’?” (Kashua 2013a), the I-columnist questions the in-
tention to generalize and naturalize Arab people’s behavior.
[…] it is all a question of mentality, the Israeli will say, for, after all, every half-
wit knows that the Arab will forever return to his village; it’s part of his culture.
Really? […] Is it the Arab culture to always live near one’s parents? Isn’t that a
culture that is coerced?
Israeli Arabs have been intimidated by the rise of the Jewish right over
the last few years. Rekhess (2014: 192) explains: “[In 2009] Anti-Arab legislation
introduced in the Knesset was a major factor in the Arabs’ increased sense of
estrangement and fear and also reflected Jews’ distrust of them”. Discrimina-
tory bills include the Citizenship and Entry into Israel Law,17 the Loyalty Oath
(discussed by Sayed Kashua in the aforementioned column ‘No Loyalty, No Citi-
zenship’), the Nakba Bill,18 the Admission Committees Law,19 and the initiative
currently under discussion: ‘Israel: the Nation State of the Jewish People.’20 In
2010, Sawsan Rahami declared the Eighteenth Knesset (Parliament) the most
racist since the establishment of Israel in 1948, when the number of racist
bills aimed at depriving Arab citizens of their rights had reached a new high
(Rahami, 2010). Twenty-one such draft bills had been submitted to the Knesset
members for consideration (compared to eleven in 2008). According to Rahami,
all of these laws sought to demote the status of Arab citizens and reduce their
rights, while posing a continual threat to the legitimacy of their presence in
Israel. At the start of 2014, the 19th Knesset approved a law proposing to dis-
tinguish between Muslim and Christian Arab citizens. Critics blame the law
as an attempt to ‘divide’ the Israeli Arab population (Lis, 2014). Sayed Kashua
(2014d) wrote about the ‘Governance Law’21 in his Haaretz column.
Most of these bills have not been passed in the Knesset or are still being
discussed. Nevertheless, their consequence is a “growing mutual alienation of
Arabs and Jews in Israel” (Rekhess, 2014: 190). The bills erode the already fragile
relationship between the populations, increase Arab frustration and rage, and,
at the same time, augment Jewish fears and concerns about the loyalty of the
Arab population to the Jewish State.
Sayed Kashua the columnist dreams of Israel becoming a country for all
its citizens, although nowadays the government is doing the exact opposite:
“it is trampling it, reasserting that Jews are Jews and Arabs are Arabs” (Kashua,
2014d). Today still, when registering for an Israeli ID Card, people have to fill
out a form indicating their ‘nationality’ (where, for Arabs, the single option
is ‘Arab’). Applicants from minority populations also have to indicate their
grandfather’s name.
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article | juliana portenoy schlesinger
Ironically, Israeli Arabs – as Israeli citizens – often experience prejudice
from the outside world as they can been seen as partners of the Israeli govern-
ment: “[…] since Arabs have Israeli passports, they can be seen as ‘collabora-
tors’ with regards to a boycott seen in American university against Israel due
to the occupation of Palestinian territories” (Kashua, 2014f), not to mention
the perceived dual loyalty of Israeli Arabs families who stayed in the Israeli
territory after the 1948 war and received Israeli citizenship in contrast to those
who did not.
A recent Sayed Kashua column (Kashua, 2013i) expresses this conflicting
identity of the Israeli Arab and how Israeli citizenship can be seen as a betrayal
by some while for others it may mean nothing. After realizing that when mov-
ing to the United States for a sabbatical year the I-columnist family would be
seen as Arab Muslim, Kashua declares that “it won’t help to start explaining
that, yes, we really are Arabs, but we have Israeli citizenship. No one there will
give two hoots about our passport. If our Israeli citizenship is meaningless over
here (in Israel), is it going to prove useful in the United States of America? Not
a chance!” – suggesting that the Israeli Arab would always be caught in a trap.
In the column mentioned earlier in which the I-columnist describes the
public service commercial against prejudice, shown on Israel television and
sponsored by the Justice Ministry, Kashua asks:
Really? Discrimination is a violation of the law and this is how the Justice Ministry
is fighting it? Are the apartment owners, real-estate agents and builders who don’t
sell or rent apartments to Arabs, Ethiopians or Russians punished for perpetrating
discrimination? Are the municipal rabbis who explicitly call for discrimination
against Arabs removed from their posts? And where is the law when it comes to
admission committees for communities, family unification, allocation of resources,
the establishment of new towns? (Kashua, 2014a)
In the columnist’s view, discriminatory laws and the failure to punish
discrimination go beyond the legal sphere and implicate the most day-to-day
interactions between people. This is spread in the difference in language sta-
tus, in the business sphere and in the media. But still Israeli Arabs, as well
as facing discrimination within their own country, are forced to deal with the
prejudice directed against them by people from others countries, who think
of them as Israeli citizens and thus Jewish themselves, since they have Israeli
citizenship, or as citizens with a supposed dual loyalty, since they may have
close relatives who did not receive Israeli citizenship.22 And still these Arabs
must be thankful to Israel because they have their rights assured by the state
despite the social situation of discrimination in which they find themselves.
In fact it is notable that Kashua has almost ceased writing about his
own prejudices in the last few years. A growing sense of detachment from
Israeli society can be perceived in his columns. Kashua himself told me that
it is getting harder and harder to laugh in Israel. Living abroad has started to
occupy his mind (Kashua, 2013d):
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I must help my children understand that Israel is not the end of the world − that
if, God forbid, they don’t succeed there and they feel ostracized, different, suspect,
or when the reality blows up in their faces, they’ll know that there are other op-
tions. It’s true that they’ll be different, but in a different way. They’ll be immigrants,
and maybe they’ll have an accent, and they’ll feel a little strange. But they’ll be
strangers in a strange land, and not in their homeland.23
In the column “Price tag: Sayed Kashua will do anything for a good
night’s sleep” (Kashua, 2012b), the I-columnist recounts an episode in which
he and his wife were in a mattress store when the salesman revealed a speech
impediment.
“Pleased to meet you,” he said, still smiling, and revealing a slight speech problem.
He spoke very slowly, emphasized each letter and nodded his head after every
word. “Yo...u kn...ow ab...out th..is matt...ress?” he asked, naming a brand that
every child in Israel is familiar with. ‘Y...e...s,’ I replied in the same vein out of
politeness, so he wouldn’t think, God forbid, that my fast speech was meant to
mock him, “We’ve he...ard of th...at matt...ress.” After some minutes, the sales-
man went away to answer the cell phone that was ringing in his pants pocket.
“Hello,” he answered with a speed that left me and my wife amazed. “Moshe, I’ll
get back to you in 15 minutes. Yalla, bye,” he hung up. “So wh...ere we...re we?” he
continued slowly, while nodding. I looked at my wife, who looked back at me. “Ah,
yes, th...e matt...ress.” “Listen,” I said to him at top speed. “We know what this
damned mattress is, do you understand?” “Yes,” he answered in panic. “But why are
you angry?” Because we may be Arabs,” I answered irritably, “but we aren’t idiots.”
This salesman apologizes and says “I didn’t intend to insult you,” but
the I-columnist takes him to be a “racist idiot.” Not long after this article, in
the column “Sayed Kashua: Racist, but polite” (Kashua, 2013e), the I-columnist
puts himself in the same place of this “racist idiot” when he himself speaks
deliberately slowly to a stranger. He recognizes his own prejudices: “Okay, I’m
a racist. Last Friday, I realized that I’m both an idiot and a racist.”
The column tells of a picnic organized to celebrate the birthday of a
boy from his son’s class. The boy’s mother compliments the I-columnist for
his son’s politeness. “I’ve always liked to get compliments from Ashkenazim,”
recognized the I-columnist. As he is about to leave his son at the party, having
arranged to pick him up later, he sees Amir, another of his son’s friend, whose
parents are Ethiopian.
“Shalom,” I found myself saying with a broad smile to Amir’s parents, whom I had
never met. I introduced myself and mentioned my son’s name. […] “They are very,
very close friends,” I said, speaking slowly, emphasizing the letters, almost using
sign language. I couldn’t control myself, and I couldn’t wipe the dumb smile off my
face. “Ex-treme-ly close.” […] “Your son is lovely,” I told the two, and they smiled
with pride. “He’s so polite,” I added.
The I-columnist is self-consciousness about the fact that he felt a need
to compliment Amir for his politeness but did not feel the same about Tomer,
whose mother is Ashkenazi.
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Did I not expect a black kid to be polite? Damn! They must have been insulted,
I thought to myself. What have I done? Now they’ll probably think I’m a racist,
trying to hide behind the compliments I’m heaping on their son. But that’s not
the case − he really is a lovely boy, and I love him, even though he’s an Ethiopian.
Damn! Why “even though”? What the hell is happening to me?
The I-columnist recognizes that there are preconceptions one cannot
avoid and that in practice these become prejudiced behaviors. In this case, the
prejudice happens to be directed against black people.
At this same party, the I-columnist is introduced to a woman who, as
soon as she realizes that she is having a conversation with an Arab, says: “Ex-
treme-ly pleased.”
It seems that the columnist deals with prejudice and racism in two
different ways. Where the discrimination is shown by Israeli Jewish society
against Israeli Arabs, the fear of the other is highlighted, a fear mainly related
to physical violence. On the other hand, the I-columnist is able to consider
discrimination as a point of view and almost a ‘natural’ behavior in dealing
with the different and the other.
In the column “Sayed Kashua racially profiles his own kids and gets a
shock: Ahead of his sabbatical in Chicago, the Haaretz columnist concludes he
is both a non-white and a racist” (Kashua, 2013h), the columnist realizes that
racism is all a question of one’s point of view.
I am nothing but a backward racist. This is an insight that waylays me every so
often and always finds me totally unprepared − because deep down I am convinced
that I am an enlightened liberal and in no way driven by stereotypes and prejudices.
This I-columnist usually sees enlightened liberal people as archetypes
of non-prejudiced individuals. Translated as ‘Ashkenazim,’ these enlightened
folk are the ones who built the modern State of Israel and have been the most
powerful section of Israeli society ever since.
The desire to be white can be found in a large number of Sayed Kashua’s
articles. Looking for a school where his children can study during his sabbati-
cal year in the United States, the ‘I-of-the-columnist’ concludes: “…schools
[in Chicago] with the highest proportion of ‘white students’ must be the most
highly regarded institutions” (Kashua, 2013h).
The desire to be Ashkenazi is also often found in his columns: “I’ve de-
cided that I am Ashkenazi” (Kashua, 2013h), I-columnist informs the reader in
relation to a form that he was meant to fill out. In the column “Sayed Kashua’s
youngest has an Ashkenazi condition” (Kashua, 2014f), the I-columnist rejoices
when he learns that his son has celiac disease, an illness common among
Ashkenazi Jews.
I’m a little ashamed to admit it, but I smiled. I felt that celiac, which I’d never
even known existed, was a much more fitting illness for our family rather than
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thalassemia, which is a disease common among Mizrahim and with quite similar
symptoms.
In the column “Sayed Kashua is surprised to discover he’s white” (Kashua,
2014g), the I-columnist tells the story of his family applying to obtain a visa
for the USA. Asked to fill in the forms, he writes that:
Going through the visa forms beforehand, I had been thrown by the ‘race’ rubric. I
looked for Arab but could find no such category. There was white, black, Hispanic
and Asiatic, but no Arab. I looked on the Internet to find out what we are and
discovered that in the United States, people coming from the Middle East or North
Africa are considered whites. That really surprised me, because I never considered
myself white. I now remember the moment when I checked the ‘white’ box on
the forms: I grinned with a leer and knew that I was going to be a racist – and
how I was going to be a racist! Especially after 40 years24 of experience with this.
Although the columnist talks about ‘de-generalizing’ and denaturalizing
mentalities, behavior and pre-judgment, he confesses his own desire for revenge.
As soon as he no longer perceives himself as the victim of prejudice, all he
can see is himself as the tormentor, as though a relation between two parties
is always going to be based on exploitation: there will always be a persecutor
and there will always be someone who is oppressed.
This turning point in Sayed Kashua’s work – where in the past he used
irony and self-deprecating humor to express prejudice, nowadays he talks di-
rectly about discrimination – can be seen as a more mature way of observing
his society, a view that denaturalizes culture25 and sees it as a coerced creation
of the strongest side. Sayed Kashua is not ashamed to speak out loud against
the prejudice directed at Arabs in Israeli society. At the same time, neither is
he too ashamed to admit that this character himself has preconceptions or
that his fervent wish is to be Ashkenazi.
In “Sayed Kashua’s pride and prejudice” (Kashua, 2012a), the I-columnist
writes about his daughter telling him of her humiliation one afternoon when
she was playing and accidentally bumped into a boy from her after-school class.
The boy had exclaimed: “Oh, gross, the Arab touched me!” The I-columnist
himself felt ashamed and had no words to comfort his daughter. Would he be
able to tell her that he would say the same if he was the boy?
Received 11/18/2014 | Approved 06/08/2015
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Juliana Portenoy Schlesinger is a postdoctoral researcher at the University
of São Paulo (USP) with a scholarship from FAPESP. She received her PhD in
Hebrew Literature from USP with a thesis on Sayed Kashua’s novel Aravim
Rokdim, which focuses on the identity conflicts experienced by Israeli
Arabs. She completed her master’s degree in Anthropology at the Hebrew
University of Jerusalem and holds bachelor’s degrees in Social Sciences (USP)
and Journalism (Pontifical Catholic University of São Paulo/PUC-SP).
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ENDNOTES
1 The categories of discrimination and prejudice have been
subject to much debate. Kohler-Haussmann (2011) proposes
that the sociological study of discrimination can be divided
into two lines of inquiries: one that sees discrimination as
a social phenomenon to be explained, and one that takes
discrimination as an explanation for other observed social
phenomenon (Kohler-Haussmann, 2011). On the Israeli
context, Kimmerling (2008), for instance, argues that it is
through torture, detention without trial, expulsions and
collective punishment against Arabs as a collective group
that Israel continues to practice ‘ethnic discrimination.’
Kashua (personal communication, Jerusalem, 2009) says
that discrimination in Israel involves the categorization
of its people irrespective of their own self-categorization.
Yiftachel (2000) sees discrimination in Israel as an intrin-
sic part of its ‘ethnodemocracy.’ In this article, I approach
discrimination as a social process.
2 Simon (2011) proposes the expression ‘eu do cronista,’ the
‘I-columnist’ to detach the column’s author from the situ-
ations described in the texts. In this article, I use the term
with the same meaning, even when the columnist is identi-
fied as Sayed Kashua. In a recent work (Schlesinger, 2012)
I also discuss the ‘new literary paradigms’ and the tools
used to study newspaper columns as literary texts.
3 Though originally written in Hebrew, all of Sayed Kashua’s
columns cited here have been published in the English
version of Haaretz.
4 For more on Sayed Kashua´s sense of humor, see Schlesinger,
2009.
5 The Chief Rabbinate of Israel is the supreme Jewish legal
and spiritual authority on matters concerning the Jewish
people in Israel. The institution consists of two Chief Rab-
bis: an Ashkenazi rabbi, who represents Eastern European
Jews, and a Sephardic rabbi, who represents Jews coming
from the Arab countries, Portugal and Spain.
6 Ritual bathing pools intended for the Jewish rite of purifi-
cation.
7 Witnessed by the author in Jerusalem, December 2011.
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article | juliana portenoy schlesinger
8 Meir Har-Zion (1934-2014) was a member of the Israeli mili-
tary elite.
9 The Israeli public education system is organized into three
levels: ‘Jewish General schools,’ ‘Religious-Jewish schools’
and ‘Arab schools.’ In the Jewish sector, the language of
instruction is Hebrew, while in the Arab sector Arabic is
used. The three sectors are governed and pedagogically
administered by the Israeli Ministry of Education. Jewish
schools are considered better than their Arab equivalents
since the number of teachers per student is higher and they
are better equipped. Students of Arab origin can be found
studying at Jewish schools, as in the case of the daughter
of I-columnist. In 1997 bilingual and binational Hebrew-
Arabic schools were established in Israel (Schlesinger, 2011).
10 The boycott of Israeli products has mostly been evident
among US consumers and is designed to pressurize Israel
into leaving the Palestinian territories. In this column, the
I-columnist defends the action since it is “necessary to
compel Israel’s leaders to get their act together and strive
for an agreement that will put an end to the occupation
and the discrimination” (Kashua, 2014f).
11 In 2004, Avigdor Lieberman launched the ‘Populated-Area
Exchange Plan.’ This plan proposed the transfer of part
of Israel’s Arab population to a newly created Palestinian
state in return for evacuation of Israeli settlements in the
West Bank. In general, Israeli Arabs are opposed to the plan,
condemning it as racist. The Israeli left opposes the plan
too and legal experts have cast doubt on its legality under
Israeli and international law. See <http://www.haaretz.com/
news/diplomacy-defense/lieberman-presents-plans-for-
population-exchange-at-un-1.316197>.
12 To gather data for the Index, Smooha and other researchers
spoke to 700 Arabs and 700 Jews across the country. The
Index was launched in 2003 and is published annually.
13 Smooha believes the weakening of the tendency for Israeli
Arabs to have a negative opinion of the country might have
been due to the ongoing peace talks at the time and the
release of Palestinian prisoners. He also suggests that it
reflects Arab disappointment with the Arab Spring, which
demonstrated the benefits of living in Israel.
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14 The Future Vision Document was launched by the Arab
Israeli intellectual elite. The Israeli Arab and Jewish elites
read it in two different ways. The former believed that the
document declared the right of Jews to govern their own
statehood and their own desire to remain in the Jewish
state, but they condemned their low status as citizens and
the lack of laws safeguarding their rights as a collective
political, cultural and social group. Meanwhile, the Jewish
elite believed that the document demanded a change to
the Jewish character of the country. “A sense that Israeli
Arabs are being discriminated against may have been the
incentive for writing this document, but let us not confuse
this with the demands that are being made. Discrimination
is a subject that needs to be dealt with, also for the sake
of the Jewish and democratic character of the state. But to
demand a change in the Jewish character of the country is
something else entirely. That issue is not up for discussion”
(Schiff, 2007).
15 Sayed Kashua was among the authors shortlisted for the
Sapir Prize in 2011. As mentioned earlier, Kashua won the
Prime Minister’s Prize for Literature for Hebrew writers in
2004.
16 In Israel, languages are important symbols of loyalties and
were a controversial subject even before the establishment
of the Israeli State. Hebrew became a major component of
Zionist ideology and Jewish nationalism in Israel, as well as
in the diaspora, and Jewish identity has become inextricably
bound up with the language, just as Arabic is a major source
of identity and a cultural framework for Palestinians and
Israeli Arabs. Arabic and Hebrew are both official languages
in Israel, although Hebrew has acquired a privileged status
among Israeli Arab citizens too (Schlesinger, 2015).
17 The ‘Citizenship and Entry into Israel Law’ places restric-
tions on Palestinians from the West Bank and Gaza who
may be Israeli citizens (Rekhness, 2014).
18 The ‘Nakba Bill’ prohibits groups financed by the state from
sponsoring activities related to remembering Nakba Day
(‘Day of the Catastrophe,’ which annually commemorates
the displacement of Palestinians before and after Israel’s
declaration of independence). See Rekhness, 2014.
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19 The ‘Admission Committees Law’ establishes a system
through which admissions committees accept or reject can-
didates requesting to settle in areas of the Neguev Desert
and Galilee with fewer than 400 families. These commit-
tees cannot refuse candidates on the basis of race, religion,
nationality or physical disability (Rekhness, 2014).
20 This initiative was abandoned in June 2013. Its proposals
included dropping Arabic as an official language, requir-
ing the state to devote resources specifically towards the
establishment of Jewish settlements in the territories oc-
cupied in the 1967 War, and instituting Jewish law as the
basis for Israel’s legal system (Rekhness, 2014).
21 The Governance Law implies that Israeli parties with less
than 4 seats would be out. In this case, the Arab parties
would have to merge to survive.
22 In the United States, Israeli Arabs are still seen to be just
like any other Arabs and their Israeli citizenship fails to
protect them from the suspicions directed towards Arabs
(Kashua, 2013i).
23 Sayed Kashua wrote a column in which he declares he
will leave Jerusalem and would never come back (Kashua,
2014h).
24 Sayed Kashua was himself 40 years old in 2014.
25 Lughod (1991) argues that power is embedded in every relation
with the other and sees culture as a place of inconsistency,
empowerment and judgment.
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Palavras-chave
Sayed Kashua;
Árabe-israelense;
Crônica;
Discriminação;
Sociedade israelense.
Keywords
Sayed Kashua;
Israeli Arab;
Columnist;
Discrimination;
Israeli Society.
DESNATURALIZANDO A CULTURA: AS CRÔNICAS DE
SAYED KASHUA SOBRE O PRECONCEITO
Resumo
A discriminação é um tema recorrente na obra do escritor
árabe-israelense Sayed Kashua. Nos últimos anos, Sayed
Kashua praticamente parou de escrever sobre o preconceito
percebido em sua própria comunidade israelense muçulma-
na e dedicou-se a expressar suas preocupações sobretudo
com relação ao preconceito dos judeus contra os árabes em
Israel. A auto-crítica sempre foi uma característica da obra
de Kashua, e tal fato indica uma mudança na percepção do
cronista acerca de sua sociedade. Baseado na abordagem
de tópicos sobre a sociedade israelense, tais como a lei, o
sistema educacional, e a língua, e na revisão de autores que
percebem a alienação mútua de árabes e judeus em Israel,
este artigo analisa diversas crônicas recentes de Sayed
Kashua publicadas no jornal israelense Haaretz. Investiga
também como o cronista compreende o preconceito e, em
uma maneira particular e surpreendente, expressa suas
preocupações e soluções para o problema.
DENATURALIZING CULTURE: SAYED KASHUA’S NEWS-
PAPER COLUMNS ON THE TOPIC OF PREJUDICE
Abstract
Discrimination is a recurrent topic in the work of the Is-
raeli-Arab writer Sayed Kashua. In the last couple of years,
Sayed Kashua has moved away from writing about the
prejudice expressed by his own Israeli Muslim community
towards the Israeli Jewish population to focus his attention
instead on the prejudice shown by Jews against Arabs in
Israel. Self-criticism has always been a hallmark of Sayed
Kashua’s work so this shift indicates a significant change
in the columnist’s perception of his own society. Based on
a survey of various issues relating to Israeli society, such
as the law, the educational system and language, as well
as a theoretical review of authors who observe a mutual
alienation of Arabs and Jews in Israel, this article analyses
several of Sayed Kashua’s recent columns in the Israeli
newspaper Haaretz. It also investigates how the author
understands prejudice and, in a singular and surprising
way, expresses his concerns and solutions to this problem.
Olivia von der WeidI
I Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP)
O CORPO ESTENDIDO DE CEGOS: COGNIÇÃO, AMBIENTE, ACOPLAMENTOS
Na questão da cegueira, a relação entre teoria e prática parece se atualizar em
diferentes níveis. As teorias sobre os processos de desenvolvimento cognitivo,
conhecimento e aprendizagem produzidas por cientistas ou especialistas vão
informar os manuais e a prática de outros profissionais. Estes, por meio de
sua atuação com as pessoas cegas nos serviços de reabilitação e nas atividades
escolares, constituem certo “corpo teórico-prático”, que vai orientar o aprendi-
zado e o desenvolvimento de modos de estar no mundo de pessoas cegas. E fi-
nalmente, as próprias pessoas cegas e suas formas de percepção, suas próprias
habilidades, modos de ser, de fazer, de estar no mundo, com o espaço para
aquilo que digerem e geram nessas interfaces. A cegueira atravessa fronteiras
disciplinares e está irremediavelmente relacionada a concepções de corpo.
Considerando essa malha (Ingold, 2011), busca-se, neste artigo, atentar
para teorias que servirão de base para pedagogias e práticas educativas. A for-
ma como se entende o corpo cego pelos diversos campos científicos envolvidos
fundamenta modos de atuação com pessoas cegas e o desenvolvimento de téc-
nicas, objetos, intervenções, pedagogias específicas que guiam sua percepção
de mundo. Pretende-se, em um primeiro momento, explicitar os pressupostos
de uma noção de cognição presente em manuais de desenvolvimento e apren-
dizagem para crianças cegas e algumas de suas consequências conceituais.
Em um segundo momento, volta-se a atenção para métodos, didáticas
ou mecanismos adaptativos sugeridos em tais manuais para uma pedagogia
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da cegueira. As práticas propostas fazem emergir outra concepção de cognição,
implícita em tais manuais, relacionada à experiência e à ação de um corpo
inteiro em um ambiente. Trata-se aqui, finalmente, de um conhecimento prá-
tico e de um saber-fazer desenvolvido por pessoas cegas e profissionais nos
atendimentos de reabilitação que corroboram uma compreensão da cognição
e do próprio corpo como estendidos, ao enfatizar o papel do ambiente e dos
dispositivos no cotidiano de pessoas cegas.
Para tanto, são analisados manuais de Estimulação Precoce e Orienta-
ção e Mobilidade produzidos pelo Ministério da Educação (MEC) e material de
campo realizado no Instituto Benjamin Constant.1 No material de campo en-
contram-se entrevistas com profissionais do Instituto, observação participante
em atendimentos da área de reabilitação (mais especificamente Habilidades
Básicas e Atividades da Vida Diária), material do curso de formação em técnico
de Orientação e Mobilidade, de 40 horas, realizado em abril de 2012, além de
entrevistas com pessoas cegas.
Múltiplas cegueiras são acionadas – nos termos de Mol (2002), de difícil
tradução, enacted – em diferentes práticas: no diagnóstico médico oftalmoló-
gico, em artigos das ciências cognitivas e da neurociência, em manuais sobre
práticas educacionais e pedagógicas para crianças cegas, em atendimentos em
centros de reabilitação realizados por profissionais especializados (psicólogos,
terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, entre outros), na vida cotidiana de
pessoas cegas. O conhecimento pode ser tratado não mais como um referencial,
ou como uma série de declarações sobre a realidade, mas como uma prática
que interfere em outras práticas, que participa na realidade.
As definições de cognição e cegueira que entram em jogo em textos
e manuais têm efeitos de realidade. A maneira como a cegueira é definida
– como uma falta, como algo a ser superado, como uma forma de estar no
mundo, por exemplo – faz diferença para a maneira como a própria cegueira
será percebida pelas pessoas que vivem essa realidade. E não é só a realidade
da cegueira que está em jogo. Muitas outras realidades estão aí envolvidas. A
cegueira não vem sozinha, ela traz consigo os modos e modulações de outras
definições – corpo, (a)normalidade, (d)eficiência, autonomia, visualidade, para
mencionar apenas algumas.
OS MANUAIS DE DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM DE
CRIANÇAS CEGAS
Quatro dos manuais analisados foram desenvolvidos no Brasil por iniciativa da
Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação (MEC) e um deles
pela Secretaria de Educação a Distância, também do MEC. Além dos manuais,
foram selecionados textos que tratam especialmente do que se convencio-
nou chamar de programas de “estimulação precoce”, “intervenção precoce” ou
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artigo | olivia von der weid
“estimulação essencial”. De acordo com Navarro, Fontes & Fukujima (1999), a
estimulação precoce seria uma intervenção terapêutica educacional e social
utilizada por uma equipe multidisciplinar para habilitar deficientes visuais
por meio da exploração de outros canais perceptivos.
A primeira questão que emerge da leitura dos manuais gira em torno da
palavra remanescente que, segundo o dicionário Aurélio, significa: Resto, sobra,
sobejo; o que fica de um todo depois de retirada uma parte. A aplicação sistemática
desta palavra ou mesmo da expressão “resíduo visual”2 para indicar o uso que
se faz da visão por pessoas cegas ou com baixa visão, em vez de remeter a um
todo completo, a algo que se tem ou se é, nos remete ao que falta, ao que se
perdeu. Ainda que o sentido visual nunca tenha estado, como no caso de cegos
congênitos, o que se tem – todos os outros sentidos – é o resto, é aquilo que
sobra, remetendo a uma perda irremediável do que nunca se teve. Mesmo que
a parte não tenha sido retirada, esse todo não é considerado inteiro.
O incômodo com o uso recorrente da palavra “remanescente” levou a
uma busca simples pela palavra nos cinco manuais de deficiência visual ana-
lisados, e ela foi encontrada 23 vezes. Como fator de comparação e analogia,
procurou-se pela mesma palavra em quatro manuais, todos eles desenvolvidos
também pelo MEC,3 sobre deficiência auditiva. Sendo esta uma deficiência tam-
bém sensorial, a hipótese foi a de que a visão, o tato, o olfato, a propriocepção,
seriam considerados os sentidos remanescentes do indivíduo que nasce com
deficiência auditiva. Entretanto, nos quatro manuais pesquisados não foi en-
contrada nem uma única vez a palavra “remanescente”.
Esse destaque dado à ausência, perda ou falta em pessoas cegas pode ser
associado à predominância que se dá à visão na hierarquização dos sentidos.
Essa preponderância, que também aparece nos artigos das ciências cognitivas
(Hatwell, 2003), é reforçada nos manuais sobre a educação de crianças cegas e
textos sobre estimulação precoce, a partir da afirmação de que 80% das informa-
ções que recebemos do ambiente nos chegam pela visão:4 “a visão exerce papel
fundamental no conhecimento, controle e adaptação ao meio. É sabido que a
visão transmite com rapidez e precisão, antecipa e coordena os movimentos e
ações e responde por 80% do relacionamento do indivíduo com o mundo” (Bra-
sil, 2001). Esse pressuposto, apresentado sem problematização ou controvérsia
e que poderia ser relacionado à “caixa preta” de Latour (2001), foi criticado por
diversos autores5 que questionam a origem de tal afirmação, já que em nenhum
dos estudos em que aparece se designa a fonte ou o método de pesquisa aplicado.
Podemos encontrar nos manuais um dos pressupostos das ciências cog-
nitivas na sua vertente cognitivista computacional – a separação entre interno
e externo e o processo cognitivo como resultado de uma operação que se inicia
pela transmissão de informação por meio dos canais perceptivos. No caso da
cegueira, não existindo a principal via de transmissão de informação – a visão
– coloca-se a necessidade de uma estimulação mediada dos outros sentidos:
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“para que o aprendizado seja completo e significativo é importante possibilitar
a coleta de informação por meio dos sentidos remanescentes. A audição, o tato,
o paladar e o olfato são importantes canais ou porta de entrada de dados e
informações que serão levados ao cérebro” (Brasil, 2007).
Um dos principais pontos que se destaca na comparação feita nos ma-
nuais entre o desenvolvimento do bebê considerado normal e o de um bebê
cego é uma sobreposição do processo de desenvolvimento cognitivo humano
ao processo de maturação da capacidade visual do organismo. O processo de
desenvolvimento do bebê vidente é justaposto ao desenvolvimento das duas
principais funções medidas para a classificação médica oftalmológica de uma
pessoa como cega: a acuidade e o campo visual. A capacidade visual é que
impulsionaria o movimento e o bebê cego, na ausência da visão, não teria
motivação para explorar um ambiente que não pode ser visto, seu mundo
ficaria restrito (Rodrigues & Macário, 2006); teria um contato limitado com o
ambiente (Brasil, 2007); não teria o estímulo visual para despertar o interesse
pelo deslocamento ou movimento (Figueira, 2000; Carletto, 2008); não teria
interesse pelo mundo exterior (Ochaita & Rosa, 1995); seu mundo se tornaria
pobre e ele se manteria ocioso e passivo diante do mundo que o cerca (Rodri-
gues & Macário, 2006).
Como possível consequência do “reinado soberano da visão na hierar-
quia dos sentidos” (Brasil, 2007), o predomínio do visual acaba tendo um efeito
de naturalização, como se a capacidade de ver também não fosse fruto de
estímulo e aprendizado. Numa aparente confusão entre inato e adquirido, a
capacidade visual vai se tornando equivalente à natureza, e o seu uso, a for-
ma natural do desenvolvimento cognitivo. Ter um desenvolvimento cognitivo
considerado normal por meio do uso dos outros sentidos – ou seja, equiva-
lente ao de pessoas que enxergam e medido de acordo com seus parâmetros
– é considerado absolutamente possível sem a visão, mas apenas alcançável
através de aprendizado, de cultura. Conhecer o mundo por meio dos outros
sentidos, ao contrário do imediatismo e facilidade da visão, é uma habilidade
a ser estimulada, ensinada e aprendida.
A justaposição da capacidade de enxergar com a habilidade de ver tem
um efeito de apagamento do processo de educação da atenção aos estímulos
visuais, como se apenas os outros estímulos sensoriais fossem aprendidos.
Compreender o mundo pela visão já não é mais aprendizagem, mas um proces-
so automático, natural, imediato: “tudo que as outras crianças aprendem natu-
ralmente deve ser ensinado passo a passo, pouco a pouco, desde o nascimento,
nas diferentes situações de vida, a uma criança cega” (Farias, 2004); ou ainda:
“A descoberta sobre as propriedades dos objetos que a criança vidente realiza
de forma automática e espontânea, ao observar e relacionar as diferenças de
cores, formas, tamanhos, proporções, pesos e encaixes dos objetos, a criança
com deficiência visual não faz” (Brasil, 2006).
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Nessa oposição entre natureza e cultura, inato e adquirido, visão e ce-
gueira, e com o apagamento do processo de aprendizagem de mundo da criança
que enxerga, vai se constituindo um quadro em que o desenvolvimento de uma
criança cega, ao ser comparado ao de uma criança vidente, tem a propensão
“natural” de ser considerado “atrasado”, “empobrecido” e tendendo à “passivi-
dade”, caso não haja uma intervenção da “cultura” – estímulo, trabalho, ensino.
Tudo se passa como se o interesse pelo mundo só pudesse ser despertado pela
visão e o que fica apagado nesse jogo de naturalização do ver é o quanto a so-
ciedade se organiza fundamentalmente em torno da visão – os brinquedos, as
brincadeiras, os jogos, os estímulos são centrados basicamente em sua visua-
lidade. Ao transformar em inatismo uma habilidade também aprendida – a de
enxergar – transveste-se de natureza a desvantagem da deficiência.
Como lembra Wagner (2010), se desejamos levar a invenção a sério, de-
vemos estar preparados para abandonar muitas de nossas suposições sobre o
que é real e sobre por que as pessoas agem como agem. Os vários contextos
de uma cultura obtêm suas características significativas uns dos outros, por
meio da participação de elementos simbólicos em mais de um contexto. Eles
são inventados uns a partir dos outros, e a ideia de que alguns contextos reco-
nhecidos em uma cultura são “básicos” ou “primários”, representam o “inato”
ou de que suas propriedades são de algum modo essencialmente objetivas
ou reais é, para o autor, uma ilusão cultural. Wagner considera que todos os
nossos procedimentos de treinamento e educação, as teorias de desenvolvi-
mento infantil e as expectativas que despertam não são outra coisa além de
máscaras para a invenção coletiva de um eu “natural”; invenção que não se
limita à infância ou à educação, mas se estende a um vasto leque de controles.
Não se está colocando em questão aqui a necessidade e a validade da
intervenção para uma criança que nasce cega, mas, sim, o ponto de onde se
parte (visão inata, outros sentidos aprendidos) e o fim que se busca alcançar
(equivalência, aproximação ou substituição de uma experiência de mundo vi-
sual). Com a reprodução sistemática de uma norma hierárquica dos sentidos
que privilegia a visualidade, o que se perde é a possibilidade de compreensão
de experiências outras de mundo e o caráter múltiplo da realidade.
PRÁTICAS DE DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM E SUA
APROXIMAÇÃO COM UMA CONCEPÇÃO DA COGNIÇÃO INCORPORADA
Tudo que a criança vidente compreende automaticamente pela visão, a criança
com deficiência visual necessita vivenciar com seu próprio corpo, de forma inte-
grada (Brasil, 2001).
À ausência da visão, os outros sentidos passam a existir e a serem esti-
mulados na criança cega. A apreensão do mundo acontece fundamentalmente
pela dimensão da experimentação, que é considerada essencial para o seu
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desenvolvimento. Se nos manuais o aprendizado pela visão é percebido como
inato, natural, imediato, a aprendizagem de quem é cego precisa de experi-
ência, de mediação, de atribuição de significado. A falta da visão acarretaria
uma “escassez de informação” que só poderia ser compensada por meio de
vivências diversas e significativas. Nos manuais destaca-se a necessidade de
estimular o bebê, desde os primeiros meses de vida, ao movimento, ação e
exploração do ambiente. Enquanto o bebê que enxerga apreende o mundo “de
fora” basicamente por suas propriedades visuais e, motivado por elas, se lança
à ação, o bebê cego precisa estar em contato com o mundo com o corpo inteiro.
“Para a criança com deficiência visual o contato pele-pele e o diálogo corporal
são formas primárias de comunicação e interação; são fronteiras vitais para a
construção do eu e do outro e motivador essencial para despertar o desejo de
busca das pessoas e objetos” (Brasil, 2001).
A construção das noções de permanência do objeto, antecipação de
movimento, sucessão e comportamento de busca também são referências para
o desenvolvimento de crianças cegas, mas o caminho para alcançá-las, como
não pode ser estabelecido pela visão, é relacionado a uma “vivência corporal
significativa”, que está vinculada à ação. No desenvolvimento de crianças ce-
gas também se atribui um papel destacado ao ambiente que, para ser favorável,
deve ser estimulante para a criança, deve incentivar o comportamento explo-
ratório com o corpo todo, a observação através da pesquisa de suas caracte-
rísticas táteis, sonoras, cinestésicas.
A criança cega inicia suas próprias descobertas no ambiente, onde objetos e pes-
soas se fazem necessários e a riqueza dos estímulos auditivos e táteis seja uma
constante. É da percepção e ação da criança sobre o ambiente que se forma a
representação mental da realidade (Farias, 2003).
Quando se analisam as práticas propostas pelos manuais e textos que
tratam do desenvolvimento cognitivo e aprendizagem de crianças cegas, a im-
portância que se atribui à ação em um ambiente, à exploração, à variabilidade
de experiências e ao movimento para incentivar seu processo de desenvolvi-
mento, estaria mais próxima da concepção da cognição como enação [enaction],
proposta por Varela, Thompson & Rosch (1993), como uma ação incorporada.
Varela, Thompson & Rosch (1993) propõem inverter a atitude represen-
tacionista tratando o saber dependente do contexto não como um artefato
residual que pode ser progressivamente eliminado pela descoberta de regras
mais sofisticadas, mas como, de fato, a essência mesma da cognição criati-
va. O conhecimento dependeria de um estar no mundo que é inseparável do
nosso corpo, língua, ou história social – em resumo, da nossa incorporação. A
concepção de cognição proposta pelos autores não seria a de recuperação de
um mundo externo previamente dado (realismo), nem a de projeção de um
mundo interno previamente dado (idealismo), mas a de uma ação incorporada.
A cognição dependeria, então, de tipos de experiência que advêm de se ter um
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corpo com suas diferentes capacidades sensório-motoras. Tais capacidades, in-
dividuais, estão elas mesmas embutidas em um contexto biológico, psicológico
e cultural mais abrangente.
O interessante é que o argumento de que o conhecimento de mundo se
desenvolve a partir da experiência e da ação de um corpo inteiro em um am-
biente, que também forma a base de uma teoria da corporeidade que entende
o corpo como sujeito da cultura (Csordas, 2008) ou da teoria da cognição incor-
porada (Varela, Thompson & Rosch, 1993), não pressupõe, nos manuais e textos
analisados, o abandono da noção de representação do cognitivismo. Por falta
de input visual é que a criança cega será incentivada à exploração corporal do
ambiente, para ter acesso a informações de outros tipos, outros inputs táteis,
auditivos etc., a fim de integrá-los para formar uma representação mental.
Mantém-se no material analisado a dicotomia entre indivíduo/interno X meio/
externo. Varela, Thompson & Rosch, ou ainda outros autores que desenvolvem
uma abordagem da cognição que supera a noção de representação, vinculando-
-a ao ambiente por meio da ação e da prática (Clark & Chalmers, 1998; Ingold,
2010), não são mencionados nem uma única vez em tais manuais.
Devido à contingência da falta da visão, o aprendizado de crianças ce-
gas ocorrerá de uma maneira aproximada à abordagem enativa [enactive], da
cognição como ação incorporada. Entretanto, ocorrerá num contexto onde se
pressupõe um ponto final do desenvolvimento cognitivo, dado pelo processo
de aprendizagem de crianças que enxergam. Afirma-se que o processo cogniti-
vo da criança cega precisa se desenvolver a partir da ação de um corpo em um
ambiente, mas, ao mesmo tempo, se mantém a noção de que o conhecimento
se dá por meio do processamento de informações de um mundo previamente
dado pela mente interna de um indivíduo. O que se busca, a partir das noções
de exploração, movimento, ação no ambiente, é dar oportunidade à criança que
não enxerga de colher o máximo de informações possíveis, auditivas, táteis
etc., para construir internamente uma representação do mundo aproximada
ao máximo de como ele “realmente” é. Nos manuais e textos analisados a cog-
nição incorporada de cegos permanece submetida ao cognitivismo de videntes,
entendido como o formato mais adequado para compreender uma realidade
que está lá – aquele que vai gerar uma representação mental interna dessa
realidade (fundamentalmente visual).
ORGANIZAÇÃO E AMBIENTE
Viu-se nas práticas de ensino para crianças cegas recomendadas nos manu-
ais que a falta da visão provocaria outro modo de aprendizagem, segundo o
qual o corpo inteiro precisa estar implicado no processo de conhecimento. A
reformulação da aprendizagem através de outros estímulos, a necessidade de
desenvolvimento de técnicas corporais não visuais, desvenda, nos próprios
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manuais, uma concepção de cognição que se distancia do modelo cognitivis-
ta da representação. Ainda que não apareça de modo explícito, ela emerge
das práticas. Ao descrever, a seguir, a partir do trabalho de campo realizado,
práticas e conhecimentos de pessoas com cegueira, gostaria de reforçar uma
concepção da cognição como enação, como educação da atenção, em que o
ambiente está fundamentalmente implicado no processo de percepção e co-
nhecimento do mundo.
A composição do ambiente tem uma importância fundamental no coti-
diano de pessoas cegas. Dizer isto não significa que todas as pessoas cegas se-
jam necessariamente organizadas, mas, sim, que a organização externa, aquilo
que está fora do corpo, interfere na organização interna.
Caetano, um dos entrevistados, diz que deve haver um mínimo de or-
ganização em casa, para quando for buscar alguma coisa saber onde ela está.
Embora não se considere uma pessoa muito organizada, diz que muitas vezes
coloca as coisas de qualquer jeito, achando que vai encontrá-las depois, mas
quando procura não se lembra onde colocou. Deu o exemplo da bengala: quando
chega em casa, um dia a deixa em um lugar, outro dia, em outro lugar. No dia
anterior à entrevista disse que procurou uma bengala para sair e não encontrou
a que queria. Quando morava com outras pessoas ainda podia perguntar “viu
minha bengala por aí?”, mas, agora que mora sozinho, ele mesmo tem que pro-
curar. Acha que precisa se organizar um pouco mais, até porque não tem mais
de quem reclamar “tiraram isso daqui, caramba!”. Diz que às vezes cego bota a
culpa nos outros e a culpa é dele mesmo. Agora vai passar a fazer assim: quan-
do estiver em casa deixará as duas bengalas que tem sempre no mesmo lugar.
Já Dora conta que sua casa também fica bagunçada, mas diz que exis-
tem diferentes tipos de bagunça. A dela é uma bagunça organizada:
A bagunça da minha casa, ela não é ostensiva. Bagunça ostensiva é aquelas casas
que você não pode se mexer, porque onde você se mexer vai derrubar coisa. Ou
por bagunça ou porque as pessoas colocam mesmo muita coisa. Geralmente são
as duas coisas. Me dá falta de ar aquilo, não pode abrir os braços, não pode se
movimentar. Isso eu chamo de ostensivo, isso eu não gosto não. A bagunça da
minha casa ela é diferente, é assim, você abre uma gaveta, ela pode estar bagun-
çada, o armário pode estar bagunçado. Está dentro da onde tem que estar, mas
está bagunça. É uma bagunça setorial. Meu quarto você entra, você anda, pode
passar o aspirador. É uma bagunça, mas é uma bagunça organizada. As minhas
bagunças são desse porte.
A importância da organização do ambiente vai se tornando mais ex-
plícita em práticas cotidianas, como as estratégias para cozinhar, a forma de
organizar a geladeira, o jeito de lavar a louça. Jair conta que é ele quem faz
a comida em casa, mas para cozinhar tem que estar sozinho na cozinha. Se
alguém quiser entrar para beber água ele pede para a pessoa esperar na porta
e ele mesmo leva o copo d’água até lá. Se alguém mexe, desorganiza. Quando
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faz compras no mercado é ele mesmo quem arruma. Sabe tudo o que está na
geladeira porque coloca tudo organizadamente. Tempera a carne, corta e divide
em saquinhos. Coloca uma parte embaixo e outra parte no congelador; organi-
za as coisas nas prateleiras; escolhe um lado para a carne, outro para o frango,
carne seca no meio. Diz que hoje em dia quem mora com ele não tira mais as
coisas do lugar, porque ele pede muito. Até o chamam de chato por causa disso.
O que a princípio poderia parecer chatice, na verdade é um ponto pri-
mordial na vida de uma pessoa cega. Segundo me disse a profissional de Terapia
Ocupacional (TO), a organização é fundamental para a segurança, para a proteção
no dia a dia, para saber onde as coisas estão. É importante que a própria pessoa
organize ou esteja junto quando alguém estiver arrumando as coisas dentro de
casa, acompanhe o lugar onde colocou, diga de qual jeito prefere. Se mudar algo
de posição, tem que avisar para que lugar mudou. Nesse ponto, ela conta que de-
ficiente visual que mora sozinho consegue viver melhor do que aquele que mora
com muita gente. Ele mesmo põe as suas coisas no lugar que achar melhor, orga-
niza como quer, sabe dar o seu próprio jeito. Quando se mora com muita gente, as
coisas nunca estão no lugar que estavam, ainda mais em casa onde tem criança.
Enquanto a TO discorre sobre o assunto, a reabilitanda que está junto
conosco entra na conversa e diz que naquela mesma semana a pessoa que
trabalha em sua casa tinha arrumado a cozinha e mudado todas as coisas de
lugar, até o lugar de colocar os talheres. Contou que ela, quando entrou na
cozinha, ficou arrasada; não encontrava nada, ficou nervosa e até chorou. Disse
que “essas coisas ‘piram’, o sistema nervoso fica abalado, aí mesmo é que eu
perco tudo, esbarro em tudo, quebro coisa”.
Podemos entender a dramaticidade do último relato se levarmos a sério
o que já dizia Bateson (1989) a respeito da separação artificial entre mente e
matéria. O autor considera monstruoso tentar separar o intelecto das emoções
e igualmente monstruoso querer separar a mente externa da mente interna,
ou a mente do corpo. Para Bateson, o mundo mental, a mente, é um mundo de
diferenças e de processamento de informações que não se limita pela pele. As
vias de mensagens que estão fora da pele devem, junto com as mensagens que
transportam, ser incluídas como parte de um sistema mental. O autor sugere
que a flexibilidade do ambiente deve ser incluída na flexibilidade do organis-
mo, pois a unidade mínima de sobrevivência é o organismo-em-seu-ambiente.
A mente individual é imanente, mas não só ao corpo. É imanente tam-
bém às vias de mensagens que se dão fora do corpo. O autor sustenta a ideia
de mente que se expande ao que é externo ao corpo; as fronteiras do “eu”, para
Bateson, foram equivocadamente traçadas.
Clark & Chalmers (1998) são autores que seguem um questionamento
parecido – onde é que termina a mente e o resto do mundo começa? Defendem
uma resposta para essa pergunta a partir do que chamam de externalismo ativo,
conceito baseado no papel ativo desempenhado pelo ambiente na condução
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de processos cognitivos. Os autores acreditam que o organismo humano pode
se vincular a uma entidade externa, criando um sistema acoplado que pode
ser visto como um sistema cognitivo. Todos os componentes desse sistema
desempenham um papel causal ativo, e eles conjuntamente governam o com-
portamento da mesma forma que a cognição usualmente faz. Se removermos
o componente externo – ou, trazendo para a questão da organização do am-
biente para pessoas cegas, se mudarmos as coisas de lugar sem avisá-las –, a
competência comportamental do sistema acaba. A tese que os autores defen-
dem é a de que esse tipo de processo de acoplamento equivale a um processo
cognitivo, seja ou não realizado inteiramente na cabeça. Quando Jair cozinha,
os aspectos externos relevantes estão ativos, e desempenham um papel crucial
no aqui e agora.
A organização da geladeira de Jair ou da cozinha da reabilitanda, com
os lugares específicos para água, copo, talheres, carnes, todos esses elementos,
mesmo que Jair ou a reabilitanda não estejam diretamente interagindo com
eles num determinado momento, estão acoplados aos seus organismos, tendo
um impacto direto neles e em seus comportamentos. Juntos, podem ser con-
siderados sistemas acoplados, como sugerem Clark & Chalmers. Os aspectos
externos de um sistema acoplado desempenham um papel não eliminável –
se mantivermos a estrutura interna, mas alterarmos os aspectos externos, o
comportamento pode mudar completamente.
Ver a cognição como estendida não é tomar uma decisão meramente
terminológica, faz uma diferença significativa para a metodologia da inves-
tigação científica. Clark & Chalmers indicam uma expressiva consequência,
moral e social, quando se leva a sério esta concepção que, para pessoas cegas,
parece absolutamente pertinente: em alguns casos, interferir no ambiente de
alguém pode significar o mesmo que interferir na sua pessoa.
Uma vez que a hegemonia da pele e do esqueleto seja ultrapassada, os
autores sugerem que poderemos ver a nós mesmos como criaturas do mundo,
criaturas que formam sistemas estendidos: acoplamentos de organismos bio-
lógicos e recursos externos.
O CORPO ESTENDIDO DE CEGOS: ACOPLAMENTOS,
MEDIADORES, RECURSOS
Como poderia ser ameaçado pelas máquinas? Ele as criou, transportou-se nelas,
repartiu nos membros das máquinas seus próprios membros, construiu seu pró-
prio corpo com elas. Como poderia ser ameaçado pelos objetos? Todos eles foram
quase-sujeitos circulando no coletivo que traçavam. Ele é feito desses objetos,
tanto quanto estes são feitos dele. Foi multiplicando as coisas que ele definiu a
si mesmo (Latour, 1994: 136).
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Em 1991, antes da disseminação generalizada de computadores, Inter-
net, tablets, celulares com câmeras digitais e inúmeras outras invenções e
tecnologias que redimensionam a ideia de acoplamento organismo-máquina,
problematizando fronteiras como natureza e cultura, Haraway (1991) já escre-
via sobre as tecnologias de comunicação e as biotecnologias como ferramentas
cruciais no processo de remodelação de nossos corpos. Para a autora, no final
do século XX já éramos todos quimeras, híbridos – teóricos e fabricados – de
máquina e organismo; já éramos todos ciborgues.
Clark (2003) também defende que somos todos ciborgues, não mera-
mente no sentido superficial de combinar carne e ferro, mas no sentido mais
profundo de sermos simbióticos humano-tecnológicos: sistemas de pensamen-
to e razão cujas mentes e corpos estão espalhados por cérebros biológicos e
circuitos não-biológicos. Para o autor seres humanos são ciborgues desde o
nascimento. Nos dias atuais é difícil imaginar corpos que não sejam já mar-
cados, equipados e estendidos por dispositivos.
A proliferação de objetos híbridos que não podem ser considerados nem
totalmente sociais, nem totalmente naturais, foi apontada por Latour (1994)
como efeito colateral de um paradigma que já não mais se sustenta – a sepa-
ração radical entre natureza e cultura, humanos e não-humanos. A teoria do
ator-rede considera a sociedade, as organizações, os agentes e as máquinas,
todos como efeitos gerados por redes de diversos materiais, não apenas hu-
manos. Como indica Law (1992), essa teoria entende que qualquer agente pode
ser visto como um produto ou efeito de uma rede de materiais heterogêneos.
As redes são compostas não apenas por pessoas, mas também por máquinas,
animais, textos, dinheiro, arquiteturas – quaisquer materiais.
Law insiste que quase todas as nossas interações com outras pessoas
são mediadas por objetos. Utilizando a comunicação como exemplo, o autor
aponta o computador, o livro (na comunicação autor-leitor), o telefone, a car-
ta, como alguns dos objetos mediadores que participam da interação. Para a
teoria do ator-rede essas várias redes participam do social, elas o moldam. E,
de forma mais fundamental, elas são necessárias para diversos tipos de rela-
cionamentos sociais.
A intenção, neste momento, é considerar algumas hibridizações locais
dos organismos com objetos e técnicas em relações cotidianas da cegueira.
Apesar de existirem outros dispositivos, tão diferenciados quanto marcadores,
softwares leitores de voz, gravador, óculos escuros, entre outros, focarei em
um objeto específico: a bengala. É também nas interações com objetos, técni-
cas e recursos que (d)eficiências são criadas, atuadas, deslocadas, adaptadas,
transformadas.
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BENGALA: OBJETO-CORPO PERCEPTIVO
A bengala, o bastão ou a vara são objetos que serviram como auxiliares de
movimento para cegos e deficientes visuais ao longo da história. No início do
século XX a bengala começa a ser usada da forma como a conhecemos hoje, na
cor branca, como um símbolo para alertar os outros para o fato de que aquele
indivíduo é cego.6
O desenvolvimento de um método de uso sistemático da bengala branca
para locomoção é associado ao esforço do médico oftalmologista americano
Richard Hoover para auxiliar veteranos da Segunda Guerra Mundial que ha-
viam ficado cegos. O treinamento para o uso da bengala para detectar objetos
e prover proteção é uma fase importante no processo de reabilitação ou na
formação de uma pessoa cega.
A técnica do toque com a bengala foi desenvolvida por Hoover como
um método seguro e eficiente de locomoção para os cegos. Quando executada
corretamente fornece proteção contra objetos situados na calçada; transmite
características da textura das superfícies em contato com sua ponta ao con-
duzir as vibrações para o dedo indicador, a mão e os ouvidos; alerta o usuário
para mudanças verticais na superfície, tais como aclives, buracos, declives.
Qualquer omissão ou desvio na execução prescrita da técnica do toque reduz
a sua efetividade, pondo em risco a segurança do indivíduo.
A bengala branca é descrita não apenas como uma ferramenta ou um
dispositivo que pode ser utilizado por cegos para alcançar independência, mas
também como um símbolo da cegueira. Esse duplo papel – funcional e sim-
bólico – coloca o objeto numa posição liminar e ambígua de pureza e perigo
(Douglas, 1991). Pureza porque o seu uso organiza a locomoção de cegos, a sua
incorporação promove a autonomia, a liberdade de ir e vir. Perigo porque ao
mesmo tempo o seu uso contamina a identidade social do indivíduo, marcan-
do-o como cego e imediatamente acionando os estigmas e preconceitos sociais
relacionados à cegueira. Nesse artigo enfatizo o caráter humano deste objeto
e o processo de sua inscrição como corpo.7
A introdução e as técnicas de uso da bengala longa são apresentadas
para a pessoa cega nos treinamentos de Orientação e Mobilidade (OM). No caso
da criança que nasce cega é indicado desde cedo o desenvolvimento de ativida-
des conhecidas como “pré-bengala”, que envolvem experiências preliminares
com o objetivo de facilitar a compreensão do uso e a posterior manipulação
eficiente da bengala. Dentre essas atividades encontram-se, principalmente,
brinquedos de empurrar – carrinhos de boneca, bastão com rodinhas na pon-
ta, banquinhos e cadeirinhas, raquete grande feita com bambolê, carrinho
de feira, vassouras etc. –, os quais exploram posições do braço e do punho, o
deslocamento com o auxílio de um objeto e a relação entre o chão, o objeto e
o corpo durante o movimento.
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Bateson (1998) propõe pensar a conduta de locomoção de um cego com
uma bengala como um sistema cibernético, em que a bengala é a via ao longo
da qual se transmitem informações de diferenças do caminho. Para o autor, a
pergunta sobre o limite do “Eu” – se estaria na fronteira da pele ou situado em
algum lugar no meio da bengala – não faz sentido, sendo necessário levar em
conta o sistema como um todo – a rua, a bengala, a pessoa, a rua, a bengala,
e assim sucessivamente.
Para alcançar o funcionamento ótimo desse sistema é preciso que a
pessoa passe por um treinamento sistemático. Por meio do aprendizado de
uma série de técnicas e de sua repetição com o acompanhamento de um pro-
fissional, a bengala e o corpo vão aos poucos se tornando uma mesma entidade
no processo de locomoção. As técnicas da bengala longa tem a finalidade de
habilitar pessoas com deficiência visual a se locomoverem com segurança, efi-
ciência e independência, tanto em ambientes familiares como desconhecidos.
A TO que acompanhei diz que alcançar a mobilidade independente e segura é
o objetivo máximo dos atendimentos de OM, nem sempre possível para todas
as pessoas cegas. O sucesso depende de uma série de fatores, mas o principal
é se a pessoa consegue se adaptar corporalmente à bengala e incorporar as
técnicas relativas ao seu uso.
O primeiro passo, a forma como se segura a bengala. Duas maneiras
possíveis são utilizadas para diferentes movimentos e finalidades: (a) em-
punhadura de lápis: segura-se o cabo da bengala como se segura um lápis, a
bengala fica em posição vertical; (b) empunhadura de toque: o cabo da bengala
é apoiado sobre a palma da mão, o dedo indicador se estende sobre o corpo da
bengala. Os dedos polegar, médio, anular e mínimo se fecham contornando o
punho da bengala.
Com a bengala em lápis, a pessoa deve erguer a ponta da bengala a
poucos centímetros do solo, realizando esporadicamente alguns toques no
chão para verificar a distância entre o solo e a ponta da bengala. É utilizada,
por exemplo, para medir a altura de degraus ao subir escadas, ou checar a
altura de um meio-fio.
A técnica da varredura proporciona à pessoa uma exploração imediata
e completa do solo na área próxima ao corpo. Desliza-se a ponta da bengala à
frente, verticalmente, e retorna-se até a linha dos pés descrevendo semicírcu-
los. A TO diz que quando o reabilitando tem muito medo de cair em buracos
na rua, por exemplo, ela logo ensina a técnica da varredura para que ele possa
detectar o buraco e se sentir mais seguro.
A principal técnica para a locomoção com a bengala, e que vai garantir
maior segurança no caminhar, é a técnica do toque, originalmente desenvol-
vida por Hoover. O objetivo desta técnica é permitir que a pessoa cega detecte
diferenças de níveis e objetos que se encontram no plano do solo à linha da
cintura, em ambientes internos e externos, familiares ou desconhecidos. Du-
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rante este procedimento, segura-se a bengala com a empunhadura de toque:
o dedo indicador apoiado no corpo da bengala, como se ela fosse a sua exten-
são, a mão inclinada à frente da linha média e afastada do corpo, e o dorso da
mão voltado para fora. O movimento da bengala é determinado pela ação do
punho, não se deve mexer o braço. Desta maneira, o toque será feito no solo
com uma amplitude de aproximadamente cinco centímetros além de cada
ombro. Ao deslocar a bengala de um lado para o outro, a ponta da bengala
deve ficar rente ao solo.
Um dos pontos mais difíceis desta técnica, ao mesmo tempo fundamen-
tal para sua correta execução, é a coordenação pé-bengala (ou toque-passada).
Ao caminhar, a pessoa deve sempre deslocar a bengala para o lado oposto do
pé que está em movimento. Deve estabelecer um ritmo, sincronizando o toque
da bengala no solo com a passada do pé do lado oposto à bengala. A coorde-
nação pé-bengala é a única garantia de que o chão está sendo pré-rastreado
antes de a pessoa pisar, o que previne o esbarrão com algum objeto ou a queda
em um buraco. Quando precisar ter mais informações sobre o solo à frente, a
pessoa deve fazer a técnica da varredura.
A TO diz que no começo é muito difícil a coordenação entre pé e ben-
gala, exigindo extrema concentração e muitas correções. Aos poucos, com a
repetição e a prática, a técnica começa a fluir. Aprender a utilizar a bengala
é uma readaptação fisiológica. Não se costumava andar o tempo inteiro com
um objeto nas mãos. A bengala interfere em tudo – na tomada de direção, na
postura, no posicionamento. Muda o ponto de equilíbrio.
A bengala, um quase-objeto mudo que, no entanto, articula muitas coi-
sas. Sobre ela se diz que torna-se um prolongamento do corpo, do braço, do
dedo. É ela que diz que há espaço e que ali se pode andar, que o caminho à
frente está livre. Renata conta que andar com ela dá a segurança de que, “antes
de você esbarrar, a bengala vai ‘ver’ o obstáculo”. Camila diz que se alguém le-
vanta a bengala de um deficiente visual na rua é a mesma coisa que colocar, de
repente, uma venda nos olhos de quem enxerga. É uma interrupção que inter-
fere diretamente no coletivo híbrido corpo-bengala-caminho, interrompendo
a percepção. A reação imediata, segundo Camila, é de não se saber mais onde
está, a pessoa fica perdida, o que pode provocar nervosismo e instabilidade.
A bengala, no caminhar do cego, faz parte do seu espaço corporal, é como se
fosse uma extensão da pele ou do órgão perceptivo do tato. Interferir numa
bengala em pleno uso, na comparação de Camila, é cortar uma experiência
sensorial e perceptiva que estava em andamento.
Para Latour (1994), o humano só pode ser captado e preservado se devol-
vermos a ele esta outra metade de si mesmo – a parte das coisas. Deveríamos
falar em morfismo. São suas alianças e suas trocas como um todo que definem
o antropos. Camila, quando chega a um local onde vai ficar por algum tempo,
fecha a bengala e escolhe um lugar para colocá-la, sempre à mão. Se está con-
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versando e alguém muda a sua bengala de lugar sem avisá-la, quando coloca
a mão para procurar e ela não está lá, fica inquieta. Pede ajuda para encontrar,
começa a procurar em todos os lugares. Antes os amigos riam, diziam para se
acalmar, comentavam que parecia que ela entrava em pânico. Ela explicava
“gente, não é pânico, é que se eu não estiver com ela na minha mão eu não
saio daqui. Eu vou para onde sem bengala, vocês podem me dizer? Se vocês
me largarem aqui, eu sem bengala, saio por aí dando cabeçada”. Acostumou-
-se a andar com a bengala, a estar com ela na mão e hoje em dia sem ela não
sai do lugar, até na cadeira da dentista fica com a bengala dobrada na mão.
O processo de incorporação da bengala é resultado do treinamento, mas
Camila acha que não é só isso. A bengala se tornou parte inseparável de si a
partir da experiência de andar sozinha e descobrir que com ela poderia ir a
qualquer lugar, trouxe liberdade e sem ela não vive: “Deus me livre” – comenta.
A bengala já a livrou diversas vezes de cair em buraco. Antes de começar a usá-
-la tinha horror de descer qualquer degrau, mesmo que tivesse só 2 cm. Hoje
em dia vai com a bengala – “ela ‘vê’ para mim a altura do degrau” – e desce
direitinho, diz que não tem mais dificuldade nenhuma.
A bengala, em uma metáfora perceptiva, é comparada ao prolongamento
do braço e das mãos, ao sentido do tato – as oscilações, interrupções e varia-
ções do caminho são transmitidas pela ponta e pelo cabo da bengala às mãos
do cego e, através dela, é como se o seu tato se estendesse ao chão.8 Mas a
bengala também recebe, nessa articulação antropomórfica, habilidades “visu-
ais” privadas ao indivíduo que a manipula – ela “vê” o obstáculo, “vê” a altura
do degrau. Para que se chegue até lá, para que esse híbrido corpo-bengala
adquira tais capacidades, é preciso passar por um processo de treinamento
físico, de incorporação, no qual é fundamental aprender técnicas e segui-las,
desenvolver uma habilidade. Mas é necessário, ainda, desenvolver uma rela-
ção de confiança corpo-dispositivo: descobrir, pela prática e pela experiência
pessoal, que essa hibridização pode ser útil. Como lembra Vandenberghe, o ser
humano é feito daquilo que ele inventa: são os óculos, os marca-passos, os
computadores, as bengalas que fazem o homo sapiens: “Jamais fomos humanos”
(Vandenberghe, 2010: 220).
Nem todos os acoplamentos são bem-sucedidos, nem todas as experi-
ências são de libertação. Pedro acha que a bengala tem um problema: ela não
ouve nem fala. Diz que no Instituto Benjamin Constant se exalta muito a ben-
gala, mas a pessoa pode bater o rosto em um orelhão, mesmo com a bengala
na mão, situação já vivenciada por ele. Se a pessoa vem andando batendo a
bengala na parte baixa do chão, ela vai detectar o espigão do orelhão, mas a
altura do rosto bate direto na cúpula. Experiência comum a muitos cegos, o
orelhão tornou-se um dos principais inimigos da mobilidade independente e
segura. Outra coisa que incomoda Pedro em relação à bengala é estar sempre
com uma das mãos ocupada.
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Outro pesquisado deu o seguinte depoimento sobre o seu processo de
incorporação à bengala: “quando comecei a usar a bengala achei que todos os
meus problemas estavam resolvidos. Até que um dia, caminhando por uma
rua, pisei numa poça d’água. Aí descobri que a bengala não resolve todos os
nossos problemas – ela não ‘enxerga’ a água”.
Winance (2006) indica que o processo de ajuste da pessoa com um dis-
positivo é ambivalente – é um movimento duplo de abertura e fechamento do
mundo de uma pessoa. O ajuste produz uma materialidade comum que, ao
mesmo tempo, é o que capacita e descapacita, permite e proíbe. No caso de
pessoas cegas, a incorporação da bengala em sua materialidade viva faculta
independência na locomoção, mas também impede a livre movimentação dos
dois braços e das mãos. Outros efeitos físicos resultantes da incorporação da
bengala relatados pelos pesquisados são a modificação da postura, dores no
punho ou nos ombros, além do efeito de estigmatização social que o uso do
objeto carrega. É pela experimentação e pela prática, a partir de um processo
de treinamento sistemático, que se descobre as capacidades perceptivas e as
limitações desse novo híbrido locomotivo.
SUBSTITUTOS SENSORIAIS OU SUPLANTAÇÃO PERCEPTIVA?
Se o uso da bengala é percebido como uma extensão do corpo e, mais funda-
mentalmente, de capacidades sensoriais – tátil e visual – alguns dispositivos
vêm sendo criados especificamente com esse fim. Um dos mais célebres foi
desenvolvido no final dos anos 1960 pelo neurocientista americano Paul Bach-
-y-Rita (1972): uma prótese perceptiva conhecida como sistema de substitui-
ção tátil-visual (TVSS). O TVSS transforma estímulos visuais em estímulos
elétricos com o auxílio de uma matriz de estimulação tátil. Segundo Kastrup
(2013), o dispositivo é composto por quatro elementos: 1) uma câmera que
capta o sinal visual; 2) um computador; 3) um conversor que transforma a
energia luminosa em sinais elétricos; e 4) uma matriz de estimulação elétrica
ou mecânica sobre a pele. Em um primeiro momento, a câmara se encontra
fixa, imóvel. Nessas condições o usuário do dispositivo adquire somente ha-
bilidades muito limitadas de discriminação do estímulo recebido. Quando é
dada a ele a oportunidade de segurar a câmara e manipulá-la, realizando di-
versos movimentos, ele se torna capaz de perceber o objeto com o dispositivo.
Depois de um período de treinamento com o TVSS o usuário passa a não ter
mais a experiência de uma imagem tátil em sua pele, mas atribui diretamente
a causa dos estímulos a um objeto distante. Conforme indica Kastrup, os pa-
drões estimulados na pele formarão imagens que são percebidas no exterior,
na frente do percebedor, como uma espécie de visão. Ao aprender a usar o
dispositivo, o sujeito passa a ver uma imagem na sua frente, o que a autora
chama de uma imagem tátil distal.
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As experiências com esse dispositivo vão constituir, posteriormente, um
forte questionamento ao modelo computacional de cognição, ao demonstrar
que a percepção é indissociável da ação. Lenay (2006) propõe uma concepção
enativa [enactive] da percepção espacial, tanto para a localização quanto para
o reconhecimento de formas. Para o autor, os dispositivos incialmente cha-
mados de substitutos sensoriais são sistemas de acoplamento sensório-motor
que modificam o próprio corpo, definindo os repertórios de ação e sensação
acessíveis ao sujeito. Defende uma concepção de percepção espacial que não
é nem externalista, nem internalista, uma vez que o espaço perceptivo e seus
conteúdos são constituídos no acoplamento entre o organismo vivo e seu meio.
Auvray & Myin (2009) argumentam que a necessidade da ação para a per-
cepção com o dispositivo de Bach-y-Rita e com outros dispositivos de substitui-
ção sensorial desenvolvidos posteriormente revela que o acesso à informação
visual através de estímulos táteis não é imediato. Perceber por meio desses dis-
positivos não corresponde a uma transferência passiva de informações de uma
modalidade sensória a outra, mas requer aprendizado perceptual-motor. Os au-
tores rejeitam a suposição de que a percepção após a substituição sensória seja
equivalente a uma percepção que ocorre em uma modalidade já existente (tato
para visão, ou audição para visão). Ao invés disso, defendem que os dispositivos
de substituição sensorial (SSD) na verdade transformam e estendem nossas
capacidades perceptivas. Congruentes com uma visão mais ampla de que a
cognição pode ser aprimorada por meio de dispositivos externos (por exemplo,
Clark, 2003), propõem que em vez de substitutos sensoriais, tais dispositivos
sejam chamados de extensão, suplantação ou transformação sensorial.
A crescente ativação do córtex visual de usuários cegos treinados no
uso de SSDs pode sugerir que a percepção com o dispositivo se torna visual.
Entretanto, como apontam Auvray & Myin, essa visão implica a suposição de
que as mesmas regiões anatômicas de cegos e de videntes desempenham a
mesma função, ou seja, que o córtex visual necessariamente sustenta uma
função visual. Estudos da neurociência demonstram que o córtex visual de
cegos é acionado no desempenho de atividades de estimulação tátil, como
a leitura do Braille, o que originará uma experiência tátil (Cattaneo & Vecchi,
2011). Auvray & Myin colocam que a experiência associada com dispositivos
visuo-táteis de substituição sensorial, por outro lado, não pode ser considera-
da exclusivamente tátil porque os conteúdos espaciais dessa experiência têm
características que são típicas da experiência visual – os objetos percebidos são
sentidos pelos usuários do dispositivo como estando localizados à distância,
tal como na experiência visual e ao contrário da experiência tátil.
A interpretação de Auvray & Myin (2009) sobre o uso dos SSDs se baseia
na ideia de adição, aumento ou extensão das nossas capacidades perceptivas.
Os SSDs devem ser vistos como ferramentas que estendem a percepção para
modalidades inteiramente novas. Acreditam que o caminho da novidade tem
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estado ausente ou sido insuficientemente desenvolvido pelas interpretações
existentes. Os autores propõem que os SSDs pertencem à categoria chama-
da por Clark (2003) de “ferramentas que ampliam a mente” [mind-enhancing
tools], onde entrariam computadores ou mesmo cadernos de anotação. Tais
ferramentas, e a cognição proporcionada por elas, não podem ser reduzidas
a algo que já estivesse disponível antes de seu uso. Da mesma forma, SSDs
proporcionam novas maneiras de interagir com o ambiente que não podem
ser reduzidas à percepção em uma das modalidades sensoriais tradicionais.
Como aponta Clark (2003), uma ferramenta que aprendemos a utilizar de uma
maneira fluida se torna transparente. A transparência se refere ao fato de
que, depois de um ciclo de treinamento com a nova ferramenta, os usuários
passam a se sentir imersos na atividade que a ferramenta permite, em vez
de permanecerem conscientes de estarem manipulando a própria ferramenta.
Nesse sentido podemos também pensar a bengala como um instrumento que
expande não somente a mente ou a percepção, mas o próprio corpo, incluindo
suas capacidades cognitivas e perceptivas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Aparece nos manuais de educação para crianças cegas a necessidade de de-
senvolver formas de seguir o que os outros fazem não baseadas em modelos
visuais de repetição. Sendo esta última a forma mais comum de imitação, a
ponto de ser descrita como automática ou natural, no desenvolvimento de
crianças cegas o aspecto da mediação se torna mais proeminente, assim como
no processo de reabilitação de uma pessoa que fica cega. O que ocorre é a
criação de formas de imitação que não passam pela visão, mas que são tão
mediadas quanto as visuais. O aprendizado pelo corpo adquire, então, um
papel fundamental para pessoas cegas, que precisam entender os gestos, os
movimentos, as funções dos objetos, por meio de ações práticas, da realização
e repetição de atos corporais.
A reformulação da aprendizagem via outros estímulos, a necessidade de
desenvolvimento de outras técnicas corporais, não visuais, vai ao encontro, nos
próprios manuais, de uma concepção de cognição que se distancia do modelo
cognitivista da representação e se aproxima da enação [enaction], da cognição
incorporada, da educação da atenção.
Entretanto, permanece um contraste nos manuais e textos de educa-
ção analisados, que pode ser entendido como a manutenção da concepção de
cognição via a abordagem do cognitivismo clássico no caso de videntes, e a
adoção, nas direções de práticas de ensino e desenvolvimento de cegos, de
uma concepção da cognição incorporada, fruto da ação orientada de um or-
ganismo em um ambiente. O paradoxo que surge daí é a manutenção de duas
concepções de cognição – uma explícita em pressupostos, a outra implícita em
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práticas – contraditórias entre si e que parecem ancoradas em mecanismos de
naturalização do ver e de culturalização da cegueira.
Outro ponto paradoxal do discurso sobre a cegueira formulado nos ma-
nuais de educação é uma aparente resignação à ideia de uma normalidade
como meta ou parâmetro, que acaba por reinstituir relações de poder entre
corpos eficientes e deficientes. É essa normalização que fornece a proporção
da autonomia e da independência, medida que determinados corpos, por mais
treinados que estejam para se aproximar dela, estão fadados a nunca atingir
– ou pelo menos não pela maneira “natural” de que nos fala Foucault (2002),
quer dizer, da norma.
Como lembra Wagner (2010), todo empreendimento humano de comu-
nicação, toda comunidade, toda “cultura”, encontra-se atada a um arcabouço
relacional de contextos convencionais. O autor considera que a comunicação
só é possível mediante o compartilhamento de associações derivadas de certos
contextos convencionais por aqueles que desejam se comunicar. Para que um
ator possa testar e estender as regras por meio da construção de um mundo
de situações e particularidades às quais elas se aplicam, para que possa “fa-
zer as coisas do seu próprio jeito”, ele precisa ao menos conhecer o contexto
convencionalizado. Para Wagner, os significados convencionais, coletivos, do
homem e de sua socialização, são aspectos implícitos ou explícitos da ação
humana e, portanto, da própria invenção.
Em vez de uma normatização como fim, seria interessante se o apara-
to cognitivo de manuais e programas de estimulação precoce pudessem ser
entendidos e postos em funcionamento como espécies de ferramentas para a
mediação e tradução do universo de videntes para quem não enxerga; uma ma-
neira de traduzir contextos convencionalizados para que a própria invenção se
desenvolva. Como sugere Wagner, a invenção só pode resultar em expressões
efetivas e dotadas de significado quando sujeita às orientações da convenção.
Com o que foi apresentado a respeito da suplantação perceptiva e de
mecanismos de ampliação da mente, pode-se entender a bengala como um
veículo que permite uma nova forma de locomoção pelo mundo para pessoas
cegas. Quando se torna transparente o usuário para de pensar na coordenação
pé-bengala ou na empunhadura. Quando o movimento se torna fluido a benga-
la se torna membro, se torna corpo; o próprio chão ou os obstáculos passam a
ser percebidos diretamente – a altura do degrau, o caminho livre ou obstruído.
Clark & Prinz (2004) colocam que qualquer conhecimento que nos diga
como as coisas se parecem pode potencialmente ser usado para conduzir a
ação. As informações perceptivas fornecidas pela bengala carregam disposi-
ções motoras. Entender a bengala como corpo estendido de cegos é uma pos-
sibilidade de apresentá-la partindo dos usos que são feitos dela.
Com uma análise da literatura feminista, Haraway (1991) identifica uma
transformação liminar presente no movimento de se reconhecer como ser
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plenamente implicado no mundo, sem necessidade de privilegiar um retorno
à inteireza. Para tanto, ela considera mulheres e outros ciborgues do tempo-
-presente, que recusam os recursos ideológicos da vitimização de modo a ter
uma vida real. Esses ciborgues da vida real, por meio da incorporação de ben-
galas, marcadores, softwares leitores de tela, ou quaisquer outros recursos ou
acoplamentos criativamente desenvolvidos em práticas cotidianas, nas rela-
ções que se estabelece em um ambiente, estão ativamente reescrevendo os
textos de seus corpos e sociedades.
Recebido em 24/03/2014 | Aprovado em 11/11/2014
Olivia von der Weid é doutora em Antropologia Cultural pelo
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ). Suas pesquisas abordam gênero,
sexualidade, corpo, percepção, deficiência, cegueira. É autora de, entre outras
publicações, Swing, o adultério consentido: um estudo antropológico sobre troca
de casais (2015), “‘A Urca é o paraíso dos cegos’: mobilidade urbana, acesso
à cidade e territorialização” (2015) e “Habilitar corpos e pessoas: práticas e
conhecimentos de vidas com cegueira” (2014).
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NOTAS
1 O Imperial Instituto dos Meninos Cegos, antigo nome do
Instituto Benjamim Constant, foi criado na cidade do Rio
de Janeiro, pelo Imperador D. Pedro II no ano de 1854 e foi
a primeira escola do país destinada à educação de pessoas
cegas. Atualmente é um centro de referência nacional para
questões da área de deficiência visual.
2 “O que resta. O que resta de substâncias submetidas à
ação de diversos agentes”, segundo o Aurélio.
3 Foram consultados os seguintes manuais: Série Atuali-
dades Pedagógicas: Educação Especial – deficiência au-
ditiva (1997); Saberes e Práticas da Inclusão – Desenvol-
vendo competências para o atendimento às necessidades
educacionais especiais de alunos surdos (2006); Educação
infantil: saberes e práticas da inclusão: dificuldades de
comunicação e sinalização: surdez (2006); Atendimento
Educacional Especializado – pessoa com surdez (2007).
4 Outros manuais ou artigos que utilizam o mesmo percen-
tual: Brasil (2001), Figueira (2000) e Lima & Silva (2000).
5 Kastrup, Carijó & Almeida (2009), Batista & Enumo (2000),
Monteiro (2009), Batista (2005), Moraes & Arendt (2011), são
alguns deles.
6 As informações sobre o histórico da bengala branca estão
no relatório da conferência “The cane as a mobility aid for
the blind” (1972).
7 A bengala é um objeto que possui importância central para
uma reflexão sobre identidade social e o estigma relacio-
nado à cegueira (Goffman, 1975). Nesse momento, devido
ao enfoque da discussão proposta, privilegiarei os usos e
articulações que se fazem com o objeto.
8 De acordo com Bach-y-Rita (2002), uma pessoa cega quan-
do usa uma bengala experimenta a estimulação na ponta
da bengala, em vez de em sua mão, onde o estímulo tátil
é recebido.
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O CORPO ESTENDIDO DE CEGOS:
COGNIÇÃO, AMBIENTE, ACOPLAMENTOS
Resumo
A maneira como diversos campos científicos entendem
a cegueira fundamenta modos de atuação com pessoas
cegas e o desenvolvimento de técnicas, objetos, inter-
venções específicas que guiam sua percepção de mundo.
Neste artigo pretende-se, primeiramente, compreender os
pressupostos de uma noção de cognição formulada em
manuais de desenvolvimento e aprendizagem para crian-
ças cegas e algumas de suas consequências conceituais.
Em seguida, volta-se a atenção para métodos, didáticas ou
mecanismos adaptativos sugeridos em tais manuais para
uma pedagogia da cegueira. Chega-se, finalmente, a um
conhecimento prático e um saber-fazer desenvolvido por
pessoas cegas e profissionais em atendimentos de reabi-
litação que corroboram uma compreensão da cognição e
do próprio corpo como estendidos, ao enfatizar o papel do
ambiente e dos dispositivos no cotidiano de pessoas cegas.
THE EXTENDED BODY OF BLIND PEOPLE:
COGNITION, ENVIRONMENT, LINKAGES
Abstract
Modes of proceeding with blind people and the develop-
ment of techniques, objects and specific interventions
that guide their perception of the world are based in the
way different scientific fields understand blindness. This
article intends to understand the assumptions of a con-
cept of cognition that appears in manuals about the devel-
opment and learning of blind children and some of their
conceptual consequences. It then focus on the methods,
didactic or adaptive mechanisms suggested by these man-
uals for a pedagogy of blindness. Finally, it discusses the
practical knowledge and know-how developed by blind
people and professionals in a rehabilitation care system
that corroborate an understanding of an extended body
and cognition while emphasizing the role of the environ-
ment and assistive devices in everyday life of blind people.
Palavras-chave:
Cegueira;
Corpo;
Cognição;
Práticas;
Ambiente.
Keywords:
Blindness;
Body;
Cognition;
Practice;
Environment.
REGISTROS DE PESQUISA
Yves CohenI
POR QUE CHAMAR O SÉCULO VINTE DE O “SÉCULO DOS CHEFES”?
I École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris, França
UM FENÔMENO DO SÉCULO VINTE
Uma coisa que me surpreendeu quando eu comecei a trabalhar sobre os quatro
países da minha pesquisa (Cohen 2013) – a França, a Alemanha, os Estados Uni-
dos e a União Soviética –, foi que eles haviam conhecido o mesmo fenômeno
mais ou menos no mesmo momento. Em cada um deles formou-se, no final do
século dezenove e início do século vinte, um novo discurso sobre o comando,
sobre o chefe, sobre a autoridade, sobre o domínio das massas, acompanhan-
do a construção de formas hierárquicas novas em todos os domínios. Longe
de envolver apenas países totalitários ou autoritários, a emergência dessas
práticas, formais e operacionais em alguns casos, e discursivas em outros,
ocorreu igualmente nos países liberais e capitalistas. Não se trata apenas da
questão da autoridade dos grandes chefes, mas do aumento do valor opera-
cional e simbólico de todos os títulos intermediários de portadores de alguma
parcela de autoridade, mesmo nos níveis mais baixos das fábricas, exércitos,
administrações ou mesmo da família e da escola. Trata-se de uma maneira de
construir e de nomear o social no século vinte.
Uma mudança linguística ocorre em cada um dos países estudados:
nos Estados Unidos, a palavra leadership mal existia no final do século XIX.
É só nesse novo momento que o termo começa a ser usado na política, na
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educação, na indústria, na ação moral e na psicologia. Woodroow Wilson, um
jovem professor de direito e futuro presidente estadunidense tenta, nos anos
1890 conceitualizar o termo leadership em política. Em 1904, o primeiro autor
americano na área de psicologia da “liderança” considera ser este o problema
crucial da economia. Em 1915 um economista vê a administração dos negócios
como sendo “a arte de manejar os homens” (the art of handling men) pela qual
se formar em leadership (Collins, 1910; Jones 1915; Wilson, 1952; Terman, 1904).
Desse ponto de vista, a palavra leadership é menos uma palavra da língua in-
glesa do que uma palavra estadunidense. De modo ainda mais surpreendente,
a velha palavra alemã Führer era usada, ainda no final do século dezenove,
apenas para funções menores como a de guia turístico ou de condutor de má-
quina. O modelo de autoridade é o modelo monárquico. Os primeiros manuais
de gerenciamento industrial, na mesma época, dizem que o empreendedor
sozinho deve reinar. A partir do começo do século vinte isso se inverte. É o
Kaiser que deve ser um bom Führer, o Führer do desenvolvimento. Em 1913, um
historiador liberal declara o seguinte a respeito do Kaiser: “Nós reivindicamos
um Führer pelo qual atravessaríamos o fogo” (Emminghaus, 1868; Kohlrausch,
2005). Os autores russos também colocam em prática antigas palavras para
lhes dar um sentido moderno e mais geral, como vozd, que significa guia ou
chefe, e que não deve mais servir apenas para o tzar ou os grandes generais,
mas para toda a escala de dirigentes políticos. Mesmo do lado do movimento
socialista, escuta-se Lenin exigir em 1902 que o partido social-democrata seja
“uma organização de chefes” na qual cada militante seja ele mesmo um che-
fe (Lenin, 2006; Pobedonostsev, 1898). Em francês,a palavra chef assume tam-
bém um valor geral no início do século vinte. Antigamente ela se referia ape-
nas aos ocupantes do topo das instituições: presidentes, monarcas, generais,
empreendedores etc. Sem deixar de funcionar nesse sentido, chef torna-se uma
palavra que designa os portadores de autoridade em todos os níveis das ad-
ministrações e das organizações (Fayol, 1916; Foch, 1903; Saint-Fuscien, 2011).
Assim, nas línguas de quatro países diferentes nota-se a busca seme-
lhante de uma nova linguagem hierárquica que permita pensar mais ampla-
mente a sociedade. Ora, em cada um desses países, a passagem para o século
vinte é marcada pela afirmação de uma revolução industrial, a instalação de
empresas cada vez maiores que empregam um corpo de funcionários cada vez
mais numeroso e a formação de sindicatos, eles próprios, de massa. Instala-
-se uma política de massa organizada por partidos que, às vezes, porém, não
detêm mais eles próprios o controle sobre as multidões que amedrontam as
elites. A guerra se torna ela mesma de massa, como é já o caso da guerra civil
americana, mas, sobretudo, da Primeira Guerra mundial, que conta com um
número inaudito de mortos e engaja a “mobilização total” dos diferentes paí-
ses (Mosse, 1990). A escolaridade obrigatória faz da escola uma administração
de numerosas parcelas da população. Trata-se de controlar as multidões, de
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registros de pesquisa | yves cohen
fazer com que as massas obedeçam, de orientá-las na boa direção no plano
político, no plano produtivo e na guerra, diante de armas de uma potência
jamais vista. Faz-se um imenso esforço para convencer as multidões e as mas-
sas de que elas têm necessidade de chefes. Este problema é comum a Lenin,
a Woodroow Wilson e a Gustave Le Bon, o autor francês de um best-seller
internacional publicado em 1895, A psicologia das multidões. Na França, surge
o projeto de reunir as “qualidades dissociadas” dos chefes para “perceber em
sua unidade o tipo humano: chef”. Quem o propõe é o fundador da ergonomia
francesa e o autor de uma primeira “Psicologia do chefe”, em 1916. Ele se faz
ouvir por gerentes que também tinham o projeto de “esboçar a fisionomia
dos chefes”. Não existem chefes antigos e um chefe moderno. O chefe, como
figura simbólica e social, um título oferecido a quem queira se promover em
direção aos altos níveis hierárquicos, é um dos traços da modernidade do sé-
culo vinte. Le Corbusier, um dos principais criadores da arquitetura moderna,
era um grande amador de chefes (Cohen, 1987). Henry Ford é considerado um
dos mais importantes líderes estadunidenses do século vinte (Bogardus, 1924).
O chefe como figura sociossimbólica vem preencher o vazio deixado
desde fins do século dezoito pela desvalorização irresistível da aristocracia
como classe natural de comando e também do rei como modelo de governan-
te. Nos Estados Unidos e nas democracias europeias, não se pode comandar
cidadãos como se comandavam servos. No exército, a ameaça de punição não
é mais suficiente para manter na linha de fogo as massas de recrutas (Lyautey,
1891). Nas empresas, o gerenciamento à mão de ferro passa a ser desconsi-
derado também, como mostra o desenvolvimento do taylorismo (Taylor, 1957).
Empreendem-se programas de educação dos operários para a revolução. O
comando se torna uma ciência.
PSICOLOGIA, SOCIOLOGIA
A psicologia é sem dúvida a ciência social que participa mais ativamente desse
movimento. A questão da multidão e do chefe está no fundamento da psico-
logia social. A obra de Le Bon sobre a psicologia das multidões é imediata-
mente traduzida em numerosas línguas, inglês, alemão, russo, português (Le
Bon, 1895). O ímpeto de transformar as formas de comando e desenvolver
o discurso do leadership e do chefe é um fenômeno multiplamente nacional.
Mas é também um fenômeno transnacional e de circulação: circulação entre
os países, mas, também, entre os domínios de atividade e de saber (Raj, 2007;
Cohen, 2010). Le Bon é adaptado a todas as situações possíveis. Quem entre os
responsáveis em todos os domínios não foi um leitor de Le Bon no início do
século vinte? A leitura de A psicologia das multidões é fortemente perceptível
na segunda parte da obra Que fazer?, de Lenin. Diz-se que Hitler ofereceu a
primeira edição de A psicologia das multidões a Mussolini quando ambos se
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encontraram pela primeira vez. Louis Renault, o fundador da empresa automo-
bilística de mesmo nome, tinha a obra como livro de cabeceira (Rhodes, 1970:
63-64, 73 e 146). De Gaulle escreveu desde os anos 1920 artigos sobre o chefe
muito inspirados em Le Bon, cujo salão parisiense ele frequentava (De Gaulle,
1998). Circulando, este livro se torna a fonte de uma linguagem internacional
sobre o condutor e a multidão. Mas não é apenas a psicologia social que cir-
cula. A psicologia experimental também atravessa o Atlântico, da França em
direção aos Estados Unidos.
O primeiro artigo do mundo sobre psicologia da liderança foi escrito por
Lewis Terman em 1904: “A preliminary study in the psychology of leadership”.
Para construir um teste que permita detectar o líder de um pequeno grupo de
crianças escolarizadas, Terman toma emprestado o teste de sugestionabilidade
do psicólogo francês Alfred Binet, que publicou em 1900 um livro que deu o
que falar sobre A sugestionabilidade (Terman, 1904; Binet, 1900). Emprestando
este teste, Terman o transforma, tal como é de praxe em todo fenômeno de
circulação. O teste se torna então um teste de liderança; ao invés de serem
designados previamente como fazia Binet, os líderes aparecem ao longo do
estudo; os grupos são de quatro e não de três crianças; mas Terman coloca o
mesmo número de questões, inclusive sob a forma de armadilha. Ainda que
tenha sido importado nos Estados Unidos, o trabalho de Binet já havia sido ele
mesmo produzido na França numa relação com a psicologia americana. Binet
serve-se, em seu livro, da palavra inglesa leader para designar os chefes desses
grupos. Ele é, ademais, membro do comitê de redação de uma revista america-
na, The Psychological Review. A circulação faz de fato um movimento circular:
dos Estados Unidos em direção à França e de volta aos Estados Unidos. Binet
pensa, aliás, sua psicologia experimental como uma psicologia também social,
já que a considerava a primeira forma de psicologia dos grupos.
A sociologia também se engaja profundamente na fabricação da figura
do chefe do século vinte. É nessa conjuntura de grande preocupação com a
questão da autoridade e do chefe que Max Weber e Émile Durkheim formulam
os fundamentos de suas sociologias. Essa questão está no centro de suas con-
cepções daquilo que faz uma sociedade. Weber começa a formular sua socio-
logia da dominaçãoantes da guerra de 1914 a 1918. Em 1917, no momento em
que o Kaiser Guilherme Segundo demonstra sua profunda insuficiência como
chefe de guerra, Weber entra na política de maneira sistemática. Ele torna-se
quase ministro da constituição republicana no final de 1918. Sua reflexão é
ao mesmo tempo a reflexão de um sociólogo e a de um político muito preocu-
pado com o destino da Alemanha (Weber, 2009, 2011). Pode-se dizer que sua
sociologia da dominação tenha sido fortemente influenciada por isso. De um
lado, Weber temia muito o império que a burocracia poderia assumir sobre os
negócios públicos. De outro, ele era profundamente um democrata, mas des-
confiava muito da democracia alemã, e mais precisamente de sua capacidade
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registros de pesquisa | yves cohen
de selecionar os chefes de que a Alemanha tinha grande necessidade naquele
momento. É nessa conjuntura que Weber concebe a idéia de um presidente
eleito diretamente pelo povo e que fosse dotado “das qualidades carismáticas
profundas que fazem os chefes” (Weber, 2011). Ainda que tenha sido publi-
cada quando Weber ainda era vivo e também após sua morte, sua teoria do
chefe carismático ficou um tanto quanto restrita à Alemanha e ao domínio
da sociologia até o final dos anos 1930, quando suas obras passam a ser dis-
seminadas por sociólogos alemães, frequentemente judeus, que se dispersam
pelo mundo e particularmente nos Estados Unidos. Vê-se bem que essa teoria
só pode ser plenamente compreensível no seu tempo, mas também que ela é
plenamente atuante nesse período (Bendix, 1956; Michels, 1911).
Para as ciências durkheimianas, da mesma forma, a autoridade está no
princípio do social. Trata-se de uma “autoridade moral” que se exerce sobre ca-
da ato individual e que se exerce, entre outras formas, através das ordens. Esta
autoridade provém das “crenças” e das “práticas sociais” constituídas que “se
impõem” a cada um. Este é, para Durkheim, o problema central da sociologia.
Como ele afirma em As formas elementares da vida religiosa: “O problema socio-
lógico – se é que podemos dizer que existe um problema sociológico – consiste
em buscar nas diferentes formas de coerção exterior as diferentes formas de
autoridade moral que a elas correspondem, e em descobrir as causas que de-
terminaram estas últimas”. E essas forças morais falam ao homem, segundo
ele, “no tom do comando” (Durkheim, 1990: 298).
Essas ciências sociais alimentam e reforçam, portanto, uma visão hie-
rárquica da sociedade na qual uma das formas principais do vínculo social é
a obediência de uns às ordens ou às prescrições dos outros.
Nos Estados Unidos, é toda uma nova disciplina universitária e profissio-
nal que se forma desde os anos 1920 para avaliar as qualidades ou os traços da
personalidade dos melhores líderes (Van Fleet & Yukl, 1989). É surpreendente,
contudo, notar a dispersão desses estudos. Desde 1930 levantam-se dúvidas
sobre a capacidade da psicologia de identificar de maneira certeira as qualida-
des que fazem os bons chefes (Metcalf, 1931: 4). Como se constata, até mesmo
a inteligência, que é objeto de muitas pesquisas, não chega a se tornar um dos
critérios mais importantes. O líder é apenas um pouco mais inteligente do que
a média do grupo. Se não se podem selecionar os líderes por suas qualidades,
será que seria possível fazê-lo pelo seu comportamento? O behaviorismo ganha
espaço com o fracasso da psicologia dos traços da personalidade, sem conseguir
se mostrar mais convincente segundo seus especialistas (Jago, 1982: 315). A
partir dos anos 1930 diz-se que a qualidade da liderança não depende tanto do
líder, mas dos seguidores e também da situação (Metcalf, 1931: 3). A liderança
seria então um triângulo formado pelo encontro entre os líderes, os seguidores
e a situação. Para alguns, trata-se de um fenômeno objetivo; para outros, a de-
finição da situação por seus participantes faz parte da situação e, mais do que
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isso, ela contribui para constituí-la (Case, 1933: 510-513). É surpreendente que
o mesmo discurso tenha se mantido vigoroso mesmo depois que o behavio-
rismo e a teoria da situação colocaram em cheque a existência de qualidades
universais da liderança. Pode-se supor então que uma das razões fundamentais
desse discurso não é o estudo científico, mas sim o reforço dos líderes. O que
importa é lhes dizer que eles são líderes e que têm razão em sê-los.
Não estamos, pois, diante de uma liderança objetiva, antiga ou a-his-
tórica, mas de uma liderança construída deliberadamente desde o início do
século vinte como objeto de estudo, de discurso e de práticas organizacionais
e sociais (Grint, 1997, 2000). A sociedade inteira está envolvida uma vez que o
social é formado por hierarquias de todos os tamanhos animadas em todos os
níveis por chefes e por líderes. Nesse quesito Lenin partilha da mesma repre-
sentação dos ideólogos da liderança. Para defender sua concepção do partido
contra os comunistas alemães que criticam “a ditadura dos chefes”, o dirigente
bolchevista generaliza sua proposição em 1920 na obra Esquerdismo: doença
infantil do comunismo: “Todos sabem que as massas se dividem em classes [...];
que as classes são, geralmente e na maioria dos casos (pelo menos nos países
civilizados modernos), dirigidas por partidos políticos; que os partidos políti-
cos são dirigidos, via de regra, por grupos mais ou menos estáveis de pessoas
que reúnem o máximo de autoridade, de influência, de experiência, alçadas
pela via da eleição aos cargos de maior responsabilidade e chamadas de chefes
[a palavra utilizada em russo é vozd no plural]” (Lenin, 1920: s.p.). Todavia, são
os Estados Unidos e a Alemanha de Weimar os principais países nos quais se
desenvolve uma psicologia da liderança. Já a Alemanha nazista, inspirada por
seu Führer único, não tem nada a fazer de uma psicologia. A União Soviética,
por seu turno, desconfia dos círculos de psicólogos ligados aos debates trava-
dos no estrangeiro. Além do mais, ela espera que a teoria marxista responda a
todas as necessidades do pensamento. Na França, a psicologia das multidões
impediu a formação de uma psicologia especializada do chefe e do comando.
Esta ganhará força somente depois da Segunda Guerra Mundial.
TRAJETÓRIAS NACIONAIS
Como se pode notar, cada país vê se desenvolver uma trajetória nacional para
esta preocupação com a questão do comando e do chefe. Todos têm em comum
uma mesma fórmula que é dita da mesma maneira em todas as línguas em
jogo: nós temos necessidade de chefes (Cohen, 2012). Mas há variações entre
os países: depois da derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, ouve-se
um “grito em direção ao Führer” (“ein Schrei nach dem Führer”). Um autor pró-
ximo dos nazistas diz no início dos anos 1930: “A guerra só pôde terminar em
1918 do jeito que terminou porque nos faltou um grande chefe político” (Geyer,
1926: 10; Grabein, 1933: 5). Mais do que a necessidade de Führers no plural, é a
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registros de pesquisa | yves cohen
necessidade de um Führer no singular que se exprime. Mas há que se precisar
que a discussão começou antes que existisse um partido nacional-socialista:
é antes um debate da sociedade alemã com ela mesma, como é também o ca-
so em outros países. Assim, no mundo industrial, desenvolvem-se formações
sobre como conduzir dos homens. Os empregadores estabelecem centros de
formação para os engenheiros e também para os operários qualificados. Trata-
-se de ensinar técnicas de condução dos homens, tanto no plano psicológico
quanto no plano técnico ou no plano administrativo. Os testes da psicotécnica
são introduzidos nas fábricas para selecionar e orientar os operários e os téc-
nicos. Todo um debate muito vivo se desenvolve na Alemanha para saber até
que ponto a psicologia poderia servir diretamente aos interesses do capital ou
como ela poderia ser um instrumento justo de regulação do trabalho (Nolan,
1994; Rabinbach, 1995). Quando Hitler chega ao poder, essas formações de
Menschenführung são reorganizadas no quadro do novo regime. Cada fábrica
deve ter o seu Führer. O Führerprinzip deve reinar ao mesmo tempo na socie-
dade e na economia. Mesmo se se observa certa resistência nas empresas da
parte dos empreendedores e gerentes, o Führerprinzip se instala. Ele não vale
senão para os alemães de raça. Cada alemão pode se tornar um Führer, nem
que seja dirigindo o trabalho de judeus e outras sub-raças, como se passará
durante a guerra. Mas mesmo para os alemães, a condição para participar do
Führerprinzip é de se subordinar inteiramente ao Führer supremo. Este não
pode senão ser Hitler, que não é o representante do povo, mas o próprio po-
vo (Jouanjan, 2006: 148-149; Neesse, 1940: 54). A Alemanha se torna uma nação
de chefes: todos devem a eles obedecer e, com a condição de serem alemães,
todos devem comandar.
A trajetória soviética é marcada por uma tensão entre a democracia e o
governo dos chefes. Na realidade, a democracia foi uma fachada, seja o centra-
lismo democrático decretado pela Terceira Internacional em 1919 para todos
os partidos comunistas do mundo ou a constituição dita “democrática” de
1936 na qual o partido comunista é reconhecido como força dirigente do país,
escapando assim a todo controle democrático. Desde 1922 quadros do partido
vêm à Moscou unicamente para obedecer às ordens de Stalin. Eles estão “nas
mãos de Stalin”, como disse um deles (Khlevniuk, 2008). Quando a desordem
reina numa organização, diz-se que é porque “não há um chefe” e que tudo
iria melhor se houvesse um secretário geral (que é o título de Stalin) (Pascal,
1982: 11). A língua russa tem uma palavra para se referir ao guia equivalente a
de Duce ou Führer. Lenin faz uso dela para dizer que todo membro do partido
social-democrata deve ser um vozd. Depois a palavra é utilizada de maneira
muito intensa pelo próprio Lenin. Mesmo se os bolchevistas dizem recusar
todo poder pessoal, é bem ele que se instala desde 1917 com a preeminência
não disputada de Lenin sobre todos os seus outros camaradas. Mas é sobretudo
pela tomada de todos os poderes por Stalin em 1928 e 1929 que a atribuição
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do título de Vozd passa a ser feita sistematicamente (Davies, 1997). Aliás, hie-
rarquias de toda ordem se desenvolveram no país 1917. Na economia e tam-
bém no aparelho administrativo do partido e do Estado, vê-se desdobrar uma
“organização funcional”, imitando as empresas americanas. Esta organização
multiplica as funções de conselho que não têm um papel hierárquico direto.
O partido exerce, aliás, cada vez mais seu papel dirigente. Outras hierarquias
(o controle do Estado, a polícia política e a justiça) se inserem ainda no seio
das instituições sociais. O conjunto das hierarquias paralelas se torna tão
complexo que o governo stalinista suprime a organização funcional em 1934
e declara a necessidade de se apoiar sobre “os chefes”, o “nachal’stvo” (Shearer,
1996). A partir de então, a palavra nachal’nik se espalha por toda a sociedade.
Nos filmes soviéticos dos anos 1930 e depois, ouve-se frequentemente “Da,
tovarichtch nachal’nik”, “Sim, camarada chefe”. Tudo se mede a partir de agora
em função da subordinação às ordens de Stalin.
Nos Estados Unidos o desenvolvimento do leadership se tornou progres-
sivamente um assunto de profissionais. O primeiro colóquio mundial consa-
grado unicamente ao leadership ocorre em 1927. Mais orientado à liderança
industrial, ele reúne gerentes, especialistas do gerenciamento, oficiais supe-
riores, representantes das grandes escolas de comércio, especialistas de edu-
cação e psicólogos. Isso marca o caráter multidisciplinar da pesquisa sobre a
liderança, colocando lado a lado universitários e representantes da economia
e do exército; mas marca, mais ainda, o interesse amplamente suscitado pelo
aparecimento dessa noção que parece oferecer uma chave de interpretação da
sociedade e ao mesmo tempo um meio de ação (Moore, 1927). A propósito, uma
grande parte dos estudos de psicologia e de sociologia sobre a liderança faz-se
no contexto escolar. Com efeito, uma idéia amplamente difundida é a de que
o ensino deve permitir selecionar líderes desde a infância e formá-los para a
liderança, ao mesmo tempo em que para serem úteis. Detectar crianças-líderes
torna-se uma aposta nacional (Russel, 1930: 314). Mais amplamente, nos es-
tudos de psicologia, a criança é considerada como o modelo do adulto. A pro-
dutividade dessa nova cultura da liderança é marcada por um acontecimento
em escala nacional, que é a eleição de Franklin Roosevelt à presidência dos
Estados Unidos em 1932, no momento mais dramático da Grande Depressão.
Muito mais do que seus predecessores, em seu pronunciamento inaugural
Roosevelt se apresenta como o salvador em quem o povo americano confiou a
liderança do país. Em doze minutos, a palavra “leadership” aparece sete vezes.
Primeiro presidente americano a ser acompanhado por um conselheiro em re-
lações públicas, Roosevelt é também o inventor de “bate-papos ao pé da lareira”
(“fireside chats”), que ele pratica regularmente ao longo de suas presidências.
Trata-se de falar com cada um e não a todos. A operação depende de técni-
cas de comunicação. Roosevelt coloca um dente falso antes de cada gravação
para evitar que se ouça um ligeiro assobio devido à falta de um dente em sua
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registros de pesquisa | yves cohen
dentição. Sabendo que sua voz de bate-papo é diferente de sua voz ordinária,
ele impede a difusão radiofônica de alguns de seus discursos naturais (Schi-
velbusch, 2006: 56-58). Em todo caso, essa deliberada apresentação como líder
é uma maneira de conciliar a liderança e a democracia, como na proposição
weberiana, mas ao contrário da versão nazista para a qual o advento do Führer
supõe a destruição da democracia (Weber, 2011).
A preocupação com o chefe e o comando na França não é menos pro-
funda que nos três primeiros países evocados, mas ela é sem dúvida mais di-
fusa, menos estrondosa e menos encarnada. Reformar o comando no exército
e na fábrica, refletir sobre o papel do presidente do conselho em relação ao
parlamento, desenhar a figura do chefe em geral e aquela do grande chefe em
particular, proclamar que as hierarquias são naturais são atos que ocupam
cada vez mais o mundo a partir dos anos 1890 (Barthélemy, 1906). Duas figuras
se destacam, primeiro aquela de Gustave Le Bon, de quem já falei, que era um
personagem público, diretor de uma célebre coleção de literatura científica,
polígrafo que escrevia sobre todos os assuntos, inclusive o átomo, organizador
de um salão frequentado pelas elites da Terceira República. Edepois aquela
de Hubert Lyautey, marechal da França em 1921, cuja influência foi imensa e
quem para muitos franceses foi o grande exemplo do Chefe (Tarde, 1959). Um
pequeno livro de Lyautey, publicado em 1891, marcou, na França, os primórdios
dessa reflexão moderna sobre o chefe e o comando. Trata-se do Papel social do
oficial: tendo em vista o então recente alistamento obrigatório no serviço mi-
litar, pelo período de três anos, Lyautey pede que os oficiais conheçam melhor
os seus homens do que os seus cavalos. Ele pensa na batalha, mas, também,
no papel de pacificação social que cabe ao exército. Esta obra é imediatamente
seguida de outras de mesmo título e de muitas do tipo “O papel social do en-
genheiro” – veja-se, por exemplo, Cheysson (1897), Ebener (1901), Donop (1908),
Foulon (1908) e Lamirand (1932). O “papel do chefe” é discutido tanto na em-
presa quanto no Estado, no exército como na escola. Após a Primeira Guerra
Mundial, ser um chefe torna-se uma honra social invejada por alguns, mas
também motivo de zombaria para os que desprezam as formas de autoridade.
A atmosfera se torna mais tensa na França e em outros países a partir de 1933
e 1934, como se se tratasse de um fenômeno mundial. Em 1934, manifestações
de extrema direita inquietam todo o espectro político. A Frente Popular de
esquerda ganha as eleições em 1936. Após um grande movimento de greve, a
temática do chefe, bastante defendida pelos liberais,se reforça nas fábricas e
em política. Tudo isso termina na guerra. Esta é uma história de populações
mobilizadas, de territórios ocupados, de mortes de massa, de genocídios, de
bombardeamento de civis, e é também uma história de chefes: na França, o
Chefe de Estado francês, o marechal Pétain, opõe-se ao chefe da França livre,
o general de Gaulle.
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O ESTUDO DAS PRÁTICAS
Toda a primeira parte de meu livro é consagrada à exposição da emergência
dessa nova cultura, dessas práticas discursivas e dessas novas práticas hierár-
quicas. O conjunto se enquadra bem no período entre 1990 e 1940, mas traça
também uma trajetória que, pode-se dizer, vai até os anos 68, isto é, até 1968
e os anos seguintes. Desde o início do século vinte, uma crise da autoridade é
diagnosticada nesses países, desencadeando sempre a mesma resposta: mais
chefes. E, efetivamente, o enquadramento hierárquico das empresas, das admi-
nistrações e, em geral, das organizações muito se intensificou, multiplicando
aquilo que em francês chamamos de os “quadros superiores” (Barnard 1938,
1997; Boltanski 1982). O fenômeno do século vinte não é, portanto, apenas o
que apareceu mais fortemente, isto é, o culto do chefe, com suas formas extre-
mas na Alemanha, na Itália e na União soviética. É também uma modalidade
de transformação do social em todos os domínios de atividade.
As práticas dos chefes se transformam também no decorrer deste sé-
culo. A segunda parte do livro é baseada nos arquivos que se mantêm o mais
próximo das pessoas a fim de seguir suas ações em detalhes. Três capítulos
dizem respeito à gestão industrial. Os dois capítulos franceses acompanham o
diretor das fábricas Peugeot durante os anos 1930. Eles são escritos a partir dos
arquivos pessoais deste engenheiro: notas de serviços, a correspondência em
que justifica e explica sua ação em particular à família Peugeot, manuscritos
de conferências, várias autobiografias profissionais inéditas. Este diretor é um
dos grandes engenheiros tayloristas na França, um dos primeiros organizado-
res da linha de montagem dos automóveis (Cohen, 2001). Ele conduz sua ação
em função de planos. Ora, o plano é em geral o assunto por excelência do chefe,
ele detém uma autoridade na medida em que é concebido para mobilizar os
esforços de cada um em vista de um projeto comum. Esses arquivos permitem,
portanto, uma boa exploração do que é conceber planos e trabalhar em função
deles. Há outro aspecto que é objeto de outro capítulo. Estamos no início da
era dos gerentes (Berle & Means, 1932; Burnham, 1941; Rizzi, 1976). A gestão
industrial se faz cada vez mais à distância. Ora, este engenheiro não cessa de
proclamar que o diretor da produção deve conservar uma “prática de ateliê”
e permanecer em contato permanente com todos os participantes, desde os
operários até os quadros superiores. A reflexão sobre o interesse e as técnicas
do comando à distância é uma das características desta época.
Um primeiro capítulo russo é baseado numa fonte frequentemente en-
contrada nos arquivos soviéticos, mas pouco encontrada em outros lugares: os
estenogramas das reuniões entre os quadros dirigentes. Pode-se seguir então
quase ao vivo a ação que consiste na troca de argumentos para orientar a ação
nos escritórios e nos próprios ateliês. Ora, uma parte desses estenogramas é
produzida justamente a partir das discussões sobre o que é ser um chefe na
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construção do socialismo. Podemos então acompanhar essas discussões na fá-
brica Putilov de Leningrado, uma grande usina de mecânica fundada na época
dos tzares. Os estenogramas utilizados são centrados no ano de 1930, ao longo
do qual é possível perceber dois fenômenos: de um lado, os efeitos do ataque
de Stalin aos engenheiros ditos “especialistas burgueses”, por terem sido for-
mados sob o antigo regime, e de outro, o esforço dos quadros dirigentes da
fábrica para se tornarem gerentes eficazes, se inspirando nos Estados Unidos,
só que em meio às condições extremamente difíceis da União Soviética.
O último capítulo é centrado em Stalin. Ele é baseado em seus arquivos
de trabalho, suas cartas manuscritas de comando no início dos anos 1039, suas
notas, seus rascunhos, seus rabiscos quando ele estava refletindo sobre algu-
ma coisa, todo o seu material de informação em suma. Stalin não era apenas
o objeto de seu próprio culto, mas um chefe praticante muito experimentado,
um mestre do comando indiferente a qualquer preocupação democrática. Em
primeiro lugar, Stalin ensinava a seus próximos companheiros como ser um
chefe. Podemos seguir todo o seu trabalho de ensino da ação através das suas
cartas e daquelas que ele recebia de seus amigos, em particular a partir de
uma inspeção que ele faz na Sibéria em janeiro de 1928 para retirar à força a
farinha dos camponeses. O coração dos seus ensinamentos é a política que
se diz da “preferência repressiva”, isto é, aquela segundo a qual a solução dos
problemas que sempre é favorecida é a de uma repressão orientada ao mesmo
tempo contra uma fração da população e contra os membros do partido que
hesitam frente a esta política. O capítulo segue assim outras ações conduzidas
por Stalin, como a concepção de uma lei que, em plena onda de fome no sul
da Rússia e da Ucrânia, condena à morte ou a no mínimo dez anos de campo
de concentração aqueles que violam a propriedade socialista: nenhum mí-
nimo é indicado por quantidade roubada. Como os camponeses famintos se
serviam de sua própria produção, eles foram presos em função desta lei que
se chamou “a lei das três espigas de milho”. Examino ainda como Stalin dirige
pessoalmente o terror de massa dos anos 1937 e 1938.
Este livro é, portanto, um estudo da fabricação ativa da sociedade como
reunião de hierarquias dirigidas por chefes. Esses chefes são quase que total-
mente homens. Todo esse discurso é dito estritamente no masculino, como se
ser chefe fosse um atributo normal da virilidade. Pouquíssimos livros associam
a liderança às mulheres ou contêm capítulos a respeito - Espey (1915) foi o
único livro que pude identificar a este respeito nos quatro países estudados.
Quando se considera o comando exercido por mulheres, ele é exclusivamente
pensado como se exercendo apenas sobre outras mulheres e não sobre ho-
mens (Tead, 1935). É o que já ocorria nas fábricas têxteis francesas no século
XIX com as “contramestras”. O mundo dos chefes é aquele em que as relações
se dão entre pessoas do mesmo sexo. E, a propósito, a frequência de assédio
sexual entre chefes e subordinadas é bem documentada nas recomendações
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de reserva e de contenção encontradas em diversos manuais (ver, por exemplo,
Pezeu, 1920: 133).
Uma idéia subjacente é a de que a hierarquia é natural, ainda que a
antropologia tenha mostrado que as sociedades mais arcaicas trabalhavam
ativamente para evitar a formação de hierarquias perenes. Os chefes não de-
veriam procurar se instalar definitivamente como chefes (Clastres, 2007). O
século vinte acentuou fortemente uma via contrária, como se todo grupo social,
independentemente de qual fosse o tipo de agrupamento, não pudesse não ter
o seu chefe. A psicologia social disse às multidões que elas tinham necessi-
dade de mestres, de chefes, de condutores. Com exceção de alguns libertários,
tal discurso foi retomado por todos, desde o campo político até os empreen-
dedores e gerentes. Atualmente esse discurso é bem mais difícil de ser sus-
tentado. O século vinte não teria efetivamente terminado? Não encontramos
hoje em dia novamente o esforço para que não se criem chefes? Num certo
número de países, as empresas buscam, como elas mesmas dizem, “esmagar
as hierarquias”, isto é, reduzir a quantidade de níveis hierárquicos. Mas são
especialmente os movimentos sociais que experimentam novas formas de ação
e de sociabilidade militante horizontal. Numerosos movimentos de protesto
buscam antes de qualquer coisa a cooperação e a igualdade. Podemos acom-
panhar essa busca desde pelo menos 1968. Ela está presente no movimento
antiglobalização, por exemplo, quando de sua intervenção no fórum mundial
de Porto Alegre. Eu assisti à greve da USP em 2009: a reitoria ficou muito in-
quieta com o fato de não existir alguém com quem falar. Em nível mundial,
uma nova etapa foi percorrida com o movimento democrático na Tunísia em
2010, seguido da “primavera árabe” e de todos os outros movimentos. Nesse
sentido, as Jornadas de Junho no Brasil foram uma experiência emblemática.
Tratou-se de se dirigir ao poder através da presença na rua, de apresentar
demandas precisas, recusando não apenas partidos e chefes, mas também
toda vontade de tomar o poder. Além disso, esses movimentos são urbanos,
têm características estéticas de apresentação corporal comuns e se apoiam
em técnicas de comunicação que favorecem a horizontalidade e a agilidade.
Ou seja, mesmo que o apelo ao chefe não tenha desaparecido completamente,
poderíamos pensar que entramos num século que não será como o século
vinte, isto é, um século de chefes.
Recebido em 24/11/2014 | Aprovado 23/06/2015
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Yves Cohen é historiador e professor na École des Hautes Études en
Sciences Sociales, em Paris. Publicou em 2013 Le siècle des chefs: une histoire
transnationale du commandement et de l’autorité (1890-1940), uma história
das práticas de autoridade, da figura do chefe e do leadership como cultura
e discurso na França, Alemanha, União soviética e Estados Unidos. A
sua pesquisa atual é sobre uma história transnacional das práticas da
influência e sobre os movimentos sociopolíticos dos anos 2010.
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registros de pesquisa | yves cohen
POR QUE CHAMAR O SÉCULO VINTE DE O
“SÉCULO DOS CHEFES”?
Resumo
Este texto aborda o fenômeno da chefia entre o final do
século XIX e século XX na França, a Alemanha, os Esta-
dos Unidos e a União Soviética. Trata-se do surgimento de
um novo discurso sobre o comando, sobre o chefe, sobre
a autoridade, sobre o controle das massas. Tal discurso,
que emerge do diagnóstico de uma crise da autoridade
nesses países, não se expressou apenas no culto ao chefe,
que emergiu em suas formas extremas no totalitarismo.
Trata-se de um fenômeno político, operacional e simbó-
lico que expressa uma nova maneira de construir e de
nomear o social no século vinte que abrangeu também
países liberais e capitalistas. Buscamos descortinar uma
modalidade de transformação do social em todos os do-
mínios de atividade.
WHY SHOULD THE TWENTIETH CENTURY BE CALLED
THE “CENTURY OF CHIEFS”?
Abstract
This article concerns the phenomenon of chieftaincy in
the later 19th and early 20th centuries in France, Ger-
many, the United States and the Soviet Union. It focuses
on the emergence of a new discourse of command, the
chief, authority and control of the masses. This discourse,
which emerges from the diagnosis of a crisis of authority
in these countries, was not only expressed in the cult of
the chief, which assumed its more extreme forms in to-
talitarianism. It is a political, operational and symbolic
phenomenon that expresses a new way of constructing
and naming the social in the 20th century, which also
included liberal and capitalist countries. The article seeks
to reveal a modality of the transformation of the social in
all domains of activity.
Palavras-Chave
História da autoridade;
Culto do chefe;
Liderança;
História das práticas;
Transformação social.
Keywords
History of authority;
Cult of the chief;
Leadership;
History of practices;
Social Transformation.
RESENHA
Lucas Correia Carvalho I
I Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil
SOBRE IDENTIDADES INTELECTUAIS E PRÁTICAS SOCIAIS
Sociologia no espelho. Ensaístas, cientistas sociais e críticos literários no Brasil e
na Argentina (1930-1970). (2014). Jackson, Luiz Carlos & Blanco, Alejandro. São
Paulo: Ed. 34, 264 p.
intelectuales en América Latina, coorde-
nados por Carlos Altamirano, e Van-
guardas em retrocesso, de autoria de
Sergio Miceli (resenhada nesta revis-
ta no volume 3, número 6, 2013). Está
prevista, ainda, a publicação da co-
letânea de Retratos latino-americanos,
organizada por Jorge Myers e Sergio
Miceli, sobre a memorialística nos
dois países.
Sociologia no espelho toma como
marco comparativo os momentos
iniciais do longo processo de ins-
titucionalização da sociologia nos
dois contextos nacionais, circunscri-
tos entre as décadas de 1930 e 1970.
A escolha da Argentina e do Brasil
é justificada com base no avançado
grau de institucionalização atingido
pela disciplina nesses países graças a
soci
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, v.0
5.03
: 985
– 9
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bro
, 201
5
O livro Sociologia no espelho. Ensaístas,
cientistas sociais e críticos literários no
Brasil e na Argentina (1930-1970) de
Luiz Carlos Jackson e Alejandro Blan-
co é um dos mais novos resultados
de um empreendimento coletivo que
propõe a comparação de sistemas in-
telectuais nos dois países e vem pro-
porcionando o fluxo de pesquisadores
e o fortalecimento de vínculos entre
instituições acadêmicas brasileiras e
argentinas. No Brasil, a coordenação
cabe a Sergio Miceli, na Argentina, a
Carlos Altamirano com o grupo da re-
vista Prismas, no Centro de História
Intelectual da Universidade Nacional
de Quilmes. Este intercâmbio, como
registra a seção “Agradecimentos”, já
rendeu importantes publicações, co-
mo os dois volumes de Historia de los
http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752015v5314
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sobre identidades intelectuais e práticas sociais so
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iniciativas nacionais. Esse aspecto se
destaca quando se comparam outras
experiências latino-americanas, co-
mo a do Chile, onde empreendimen-
tos internacionais, como a Faculdade
Latino-Americana de Ciências Sociais
(FLACSO), tiveram papel proeminente.
No caso do Brasil, são adotados no li-
vro como momentos representativos
a fundação da Escola Livre de Sociolo-
gia e Política (ELSP), em 1933, e da Fa-
culdade de Filosofia, Ciências e Letras
da Universidade de São Paulo (FFCL/
USP), em 1934. Na Argentina, havia,
desde 1898, o Instituto de Sociologia
da Faculdade de Filosofia e Letras da
Universidade de Buenos Aires (FFyL/
UBA), vinculado a cursos de direito e
filosofia, embora a disciplina tenha se
tornado autônoma somente em 1958,
na mesma universidade. Em ambos
os países, justificam os autores, seria
possível identificar uma cultura in-
telectual afinada com certos padrões
científicos (trabalho em equipe, uti-
lização de uma linguagem científica,
esforço em aliar rigor teórico e fun-
damentação empírica) que foram,
aos poucos, eleitos como critérios
de desempenho profissional na área.
Considerando seus contextos locais
específicos, os autores demonstram
nessa reconstituição de que maneira
diversos “gêneros” – ensaio, sociologia
científica e crítica literária –, em su-
as relações recíprocas, contribuíram
para o aprofundamento dos respecti-
vos processos de institucionalização.
Para tanto, a principal via analítica
percorrida foi classificar as diferen-
tes identidades intelectuais – aqueles
que se definem e são definidos como
“ensaístas”, “sociólogos profissionais”
e “críticos literários” – e as práticas
sociais que as alicerçam – trajetória
familiar, relações profissionais, posi-
ções e oposições acadêmicas.
O leitor é advertido que o trabalho
de comparação apresentado se cir-
cunscreveria inicialmente às figuras
que melhor teriam assumido o feitio
da moderna sociologia latino-ameri-
cana: o ítalo-argentino Gino Germani
e o brasileiro Florestan Fernandes.
Contudo, a pesquisa se ampliou, de
modo a abarcar tanto as tradições
intelectuais pretéritas que se imiscu-
íram nesse processo de institucionali-
zação, quanto as repercussões ou vín-
culos da sociologia com outras áreas,
especificamente a crítica literária.
A relação entre identidades intelec-
tuais e práticas sociais que embasa
a comparação é profícua para o en-
tendimento desse processo. Porém, a
análise levada a cabo pelo livro sobre
a diferenciação das áreas de conhe-
cimento e dos gêneros citados, no
momento mesmo em que eram pos-
tos em tensão por seus praticantes,
não inclui de modo mais sistemático
a produção textual como dimensão
fundamental das práticas intelectu-
ais. Isso permitiria nuançar a relação
entre os gêneros destacados e seus
contextos locais, além da comparação
propriamente dita.
O primeiro capítulo, intitulado
“A batalha dos gêneros”, apoia-se
na constatação de que, diferente do
que ocorrera na Argentina, no Brasil
certo conjunto de temas e formula-
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resenha | lucas correia carvalho
ções de pesquisa foram legados pe-
lo ensaísmo à sociologia acadêmica.
Na Argentina, o ensaísmo de feição
política precedeu a formação de um
campo literário, processo que acom-
panhou intimamente sua conturbada
história, que desde a Independência,
em 1810, ficou marcada pelo enlace
decisivo entre os intelectuais e a po-
lítica. Processo inverso se realizou no
Brasil. Aqui, desde a Independência, –
proclamada pacificamente em 1822 e
marcada pela continuidade do regime
imperial –, a literatura, sobretudo a
poesia e o romance, antecedeu o en-
saísmo político. Estas características
peculiares a cada sistema intelectual
– embora já apresentassem influxos
importantes – teriam seus sentidos
invertidos com o ensaísmo dos anos
1930, momento em que mudanças
políticas de monta, como a reação à
política oligárquica no Brasil e a in-
terrupção da experiência de demo-
cratização dos governos radicais na
Argentina, desencadearam atitudes
distintas entre os intelectuais, com
tom otimista, no primeiro caso, e
pessimista, no segundo. Tudo isto te-
ria repercussão direta na forma pre-
ponderante assumida pelo ensaísmo
em cada sistema intelectual: no caso
argentino, este tendeu cada vez mais
à literatura, enquanto no país vizi-
nho, dado “um certo grau de abertura
política” (p. 40), ressaltou-se seu ca-
ráter sociológico. Postos lado a lado,
os processos de formação do sistema
intelectual em cada país explicariam
aquela constatação inicial, eviden-
ciando ainda como o perfil do ensaís-
mo brasileiro da década de 1930, mo-
mento em que a sociologia começava
a se definir como disciplina acadêmi-
ca, teve como correlato a forte reação
dos sociólogos àquele gênero.
Gino Germani e Florestan Fernan-
des, próceres da sociologia em seus
moldes modernos, teriam forjado su-
as identidades intelectuais justamen-
te em contraposição ao ensaísmo, ao
impulsionarem a pesquisa empírica
e monográfica. Tal reação, segundo
Jackson e Blanco, seria ainda mais
marcada pelas experiências sociais
ensejadas pelas duas metrópoles, São
Paulo e Buenos Aires. Neste particu-
lar, os autores retomam alguns dos
marcos comparativos já explorados
em trabalhos reunidos em História das
ciências sociais no Brasil (Sumaré/An-
pocs, 2001), ao chamarem a atenção
para a particularidade da institucio-
nalização da sociologia em São Paulo
– configurada por experiências acadê-
micas com alta adesão aos padrões
científicos –, em relação à do Rio de
Janeiro – onde os constrangimentos
políticos teriam limitado uma situa-
ção análoga. Buenos Aires condensa-
ria, todavia, estas duas experiências,
a paulista e a carioca: desfrutava de
um sistema universitário há muito
estabelecido, ao mesmo tempo que
as constantes intervenções políticas
nas universidades não impediram a
proeminência de Gino Germani nem
arrefeceram o ímpeto que ele repre-
sentava em relação às pesquisas em-
pírica e teórica. Interessante notar,
contudo, que o lugar ocupado por
Buenos Aires na comparação efetu-
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sobre identidades intelectuais e práticas sociais so
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ada pelos autores permite repor em
outros termos a relação entre ciência
e política, sem que a força de uma
implique a fraqueza da outra. Isto
poderia ser demonstrado, por um
lado, nos casos tidos como adversos
aos modernos padrões cognitivos das
ciências sociais, como o Rio de Janei-
ro, onde, não obstante, emergiu uma
figura com extremo rigor acadêmico
como Luiz Costa Pinto; e, por outro
lado, em relação a São Paulo, onde a
relativa fraqueza da pressão política
sobre o sistema educacional não im-
pediu que os sociólogos inscrevessem
na vida pública seus temas e debates.
No terceiro e último capítulo, inti-
tulado “Terrenos da crítica”, Jackson
e Blanco demonstram como a crítica
literária, a partir da década de 1950,
utilizou-se dos instrumentos socioló-
gicos para se legitimar como disciplina
científica. Na Argentina, as mudanças
no mercado cultural, sobretudo com
a criação de revistas literárias, acir-
raram as disputas entre, de um lado,
os críticos literários, em sua maioria
descendentes de imigrantes, e, de
outro lado, os escritores de extração
social criolla, cujo maior expoente era
Jorge Luis Borges. Esta polarização te-
ria efeitos diretos nos debates inte-
lectuais, já que os críticos literários
profissionais passaram a questionar
o monopólio da exegese de textos rei-
vindicado pelos escritores. Os embates
daí decorrentes se deixariam ver na
trajetória do crítico argentino Adolfo
Prieto, descendente de imigrantes es-
panhóis e com formação acadêmica
em letras, que incorporou a sociologia
como modo de interpretação externa
aos textos. No Brasil, a crítica literária
entraria na universidade tardiamente
em comparação ao caso argentino, e
teria na figura de Antonio Candido o
principal articulador dessas áreas dis-
ciplinares em São Paulo. Diferente de
Pietro, Candido, que era descendente
de uma família tradicional e graduado
em ciências sociais pela USP, migrando
posteriormente para o curso de letras,
reivindicava a autonomia relativa do
texto, meio pelo qual construiria sua
identidade intelectual como crítico li-
terário e se afastaria da sociologia. A
diferença dos estilos de crítica entre
Pietro e Candido se explicaria também
pelo fato de este último não ter lidado
com disputas análogas àquelas trava-
das no campo intelectual argentino.
Embora esta seja uma questão da
própria matéria que cabe aos autores
analisar, isto é, que se inscreve no
universo dos objetos, pode-se pergun-
tar se a perspectiva institucionalista
adotada na análise das identidades
intelectuais não tende a minimizar as
tensões entre texto e contexto e as
ambiguidades das relações da socio-
logia acadêmica com as tradições en-
saísticas. Se os autores alertam para a
continuidade de temas e proposições
do ensaísmo na sociologia institucio-
nalizada – em menor medida no caso
argentino –, deixam, entretanto, de
notar aspectos da crítica dos sociólo-
gos que não se referiam somente ao
caráter pré-científico daquele gênero,
a exemplo do embate entre Florestan
Fernandes e Gilberto Freyre. Isto por-
que, para além do diletantismo inte-
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resenha | lucas correia carvalho
lectual de que Freyre era acusado, as
ideias se constituem em forças so-
ciais que informam e são informadas
por diversos agentes, e revelam dinâ-
micas reais da sociedade, como, ade-
mais, apontava Fernandes em pesqui-
sas sobre a integração social do negro
e o papel deletério desempenhado
pela ideologia da democracia racial.
Do mesmo modo, os próprios autores
fornecem elementos importantes pa-
ra se pensar como dois dos principais
livros de Antonio Candido, Os parcei-
ros do Rio Bonito (1954), tese de douto-
ramento cujo intento era analisar a
relação entre literatura e sociedade, e
Formação da literatura brasileira (1959),
jogam luz um no outro pelo modo
como apresentam uma interpretação
da formação da sociedade brasileira
(p. 213-215). Por sinal, como o pró-
prio Jackson já o fizera em seu livro
A tradição esquecida (2002). Contudo,
os autores não tratam os livros de
Candido como uma variável forte, ao
lado da trajetória acadêmica, capazes
de explicar o perfil de crítica literária
praticada pelo autor.
Importante dizer que foi justa-
mente Antonio Candido, no clássico
“A sociologia no Brasil”, quem viu
no “sincretismo” uma das principais
características de nossa sociologia,
fruto de uma tenaz resistência dos
nós que amarram aqueles diferen-
tes gêneros indicados no livro. Esta
característica, quando posta lado a
lado com aquela de outros sistemas
intelectuais, como o fazem Jackson e
Blanco, perde seu traço de obviedade
e pode surpreender pelas questões
que a envolvem e que nos dizem res-
peito ainda hoje.
Recebida em 24/04/2015 | Aprovada em 27/05/2015
Lucas Correia Carvalho é doutor em Sociologia pelo Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com período sanduíche na École des
Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS). Atualmente é professor
substituto no Departamento de Sociologia da UFRJ. Suas pesquisas
situam-se na área do pensamento social brasileiro e da história das
ciências sociais e seus projetos de pesquisa.
INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES
ESCOPO E POLÍTICA EDITORIAL
Sociologia & Antropologia busca contribuir para a divulgação, expansão e
aprimoramento do conhecimento sociológico e antropológico em seus diversos
campos temáticos e perspectivas teóricas, valorizando a troca profícua entre
as distintas tradições teóricas que configuram as duas disciplinas. Sociologia &
Antropologia almeja, portanto, a colaboração, a um só tempo crítica
e compreensiva, entre as perspectivas sociológica e antropológica, favorecendo
a comunicação dinâmica e o debate sobre questões teóricas, empíricas,
históricas e analíticas cruciais. Reconhecendo a natureza pluriparadigmática
do conhecimento social, a Revista valoriza assim as oportunidades de
intercâmbio entre pontos de vista convergentes e divergentes nesses diferentes
campos do conhecimento. Essa é a proposta expressa pelo símbolo “&”, que,
no título da revista Sociologia & Antropologia, interliga as denominações das
disciplinas que nos referenciam.
Sociologia & Antropologia aceita os seguintes tipos de contribuição em
português e inglês:
1) Artigos inéditos (até 9 mil palavras incluindo referências
bibliográficas e notas)
2) Registros de pesquisa (até 4.400 palavras). Esta seção inclui:
a. Apresentação de fontes e documentos de interesse para a história das
ciências sociais
b. Entrevistas
c. Notas de pesquisa com fotografias
d. Balanço bibliográfico de temas e questões das ciências sociais
3) Resenhas bibliográficas (até 1.600 palavras).
A pertinência para publicação será avaliada pela Comissão Editorial no
que diz respeito à adequação ao perfil e à linha editorial da revista e
por pareceristas ad hoc no que diz respeito ao conteúdo e à qualidade
das contribuições. Serão aceitos originais em língua estrangeira desde
que o autor se responsabilize por sua tradução. Excepcionalmente será
concedido auxílio financeiro.
A revista funciona sob o princípio do duplo anonimato: os artigos serão
submetidos a dois pareceristas ad hoc e, em caso de pareceres
contraditórios, uma terceira avaliação será requerida. Sendo
identificado conflito de interesse da parte dos pareceristas, o texto será
reencaminhado para avaliação. Os artigos serão avaliados de acordo
com os critérios de qualidade e rigor dos argumentos, validade dos
dados, oportunidade e relevância para sua área de pesquisa, atualidade e
adequação das referências.
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A revista encaminhará, em prazo estimado de aproximadamente (6) seis
meses, uma carta de decisão sobre o artigo recebido, anexando, de acordo
com cada caso, os devidos pareceres.
O periódico segue as diretrizes dos Códigos de Ética do Committee on
Publication Ethics (COPE) (http://www.publicationethics.org/), do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (http://
www.cnpq.br/web/guest/diretrizes) e da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo(http://www.fapesp.br/boaspraticas/).
NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE COLABORAÇÕES
Forma e preparação de textos
O texto deverá ser preparado num mesmo arquivo na seguinte
sequência: artigo de até 9 mil palavras (incluindo referências
bibliográficas e notas); nota biográfica (de até 90 palavras) incluindo
formação, instituição, cargo, áreas de interesse, principais publicações
e e-mail; notas substantivas (de fim de texto) em algarismos arábicos;
referências bibliográficas; título do artigo, resumo (entre cem e 150
palavras) acompanhado de cinco palavras-chave, em português e inglês;
e, quando for o caso, os créditos das imagens utilizadas.
Desenhos, fotografias, gráficos, mapas, quadros e tabelas devem conter
título e fonte, e estar numerados. Deverão, ainda, estar em condições
adequadas à reprodução e impressão fidedignas e de qualidade P&B. Além
de constarem no corpo do artigo, as imagens deverão ser encaminhadas em
arquivo separado do texto, em formato .tiff (de preferência) ou .jpg e em
alta resolução (300 dpi), medindo no mínimo 17 cm (3.000 pixels) pelo lado
maior. No caso de imagens que exijam autorização para reprodução,
a obtenção da mesma caberá ao autor.
Os textos deverão ser escritos em fonte Times New Roman, tamanho 12,
recuo padrão de início de parágrafo, alinhamento justificado,
espaçamento duplo e em páginas de tamanho A4 (210x297 cm), numa
única face.
As notas devem vir ao final do texto, não podendo consistir em simples
referências bibliográficas. Estas devem aparecer no corpo do texto com
o seguinte formato:
(sobrenome do autor, ano de publicação),
conforme o exemplo: (Tilly, 1996)
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No caso de citações, quando a transcrição ultrapassar cinco linhas deverá
ser centralizada em margens menores do que as do corpo do artigo;
quando menor do que cinco linhas, deverá ser feita no próprio corpo do
texto entre aspas. Em ambos os casos a referência seguirá o formato:
(sobrenome do autor, ano de publicação: páginas),
conforme os exemplos:
(Tilly, 1996: 105)
(Tilly, 1996: 105-106)
As referências bibliográficas em ordem alfabética de sobrenome devem
vir após as notas, seguindo o formato que aparece nos seguintes
exemplos (os demais elementos complementares são de uso facultativo):
1. Livro
Pinto, Luis de Aguiar Costa. (1949). Lutas de famílias no Brasil: introdução ao
seu estudo. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
2. Livro de dois autores
Cardoso, Fernando Henrique & Ianni, Octávio. (1960). Cor e mobilidade social
em Florianópolis: aspectos das relações entre negros e brancos numa comunidade do
Brasil meridional. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
3. Livro de vários autores
Wagley, Charles et al. (1952). Race and class in rural Brazil. Paris: Unesco.
4. Capítulo de livro
Fernandes, Florestan. (2008). Os movimentos sociais no “meio negro”. In: A
integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Globo, p. 7-134 (vol. 2).
5. Coletânea
Botelho, André & Schwarcz, Lilia Moritz (orgs.). (2009). Um enigma chamado
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.
6. Artigo em coletânea organizada pelo mesmo autor
Gonçalves, José Reginaldo Santos. (2007). Teorias antropológicas e objetos
materiais. In: Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Rio de
Janeiro: IPHAN, p. 13-42.
7. Artigo em coletânea organizada pelo autor em conjunto com outro
Villas Bôas, Glaucia. (2008). O insolidarismo revisitado em O problema do
sindicato único no Brasil. In: Villas Bôas, Glaucia; Pessanha, Elina Gonçalves da
Fonte & Morel, Regina Lúcia de Moraes. Evaristo de Moraes Filho, um intelectual
humanista. Rio de Janeiro: Topbooks, p. 61-84.
8. Artigo em coletânea organizada por outro autor
Alexander, Jeffrey. (1999). A importância dos clássicos. In: Giddens,
Anthony & Jonathan Turner (orgs.). Teoria social hoje. São Paulo: Ed. Unesp,
p. 23-89.
9. Artigo em Periódico
Lévi-Strauss, Claude. (1988). Exode sur exode. L’Homme, XXVIII/2–3,
p. 13-23.
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10. Tese Acadêmica
Veiga Junior, Maurício Hoelz. (2010). Homens livres, mundo privado:
violência e pessoalização numa sequência sociológica. Dissertação de
Mestrado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.
11. Segunda ocorrência seguida do mesmo autor
Luhmann, Niklas. (2010). Introdução à teoria dos sistemas. Petrópolis:
Vozes.
Luhmann, Niklas. (1991). O amor como paixão. Lisboa/Rio de Janeiro:
Difel/Bertrand Brasil.
12. Consultas on-line
Sallum Jr., Brasílio & Casarões, Guilherme. (2011). O impeachment de
Collor: literatura e processo. Disponível em <http://www.acessa.
com/gramsci/?page=visualizar&id=1374>. Acesso em 9 jun. 2011.
995
ENVIO DE CONTRIBUIÇÕES
Sociologia & Antropologia não assume responsabilidade por conceitos
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Revista Dados – 2010 – Vol. 53 no
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1ª Revisão: 06.01.2011
Cliente: Iuperj – Produção: Textos & Formas
Preâmbulo. O valor e os benefícios provenientes da pesquisa dependem essencialmente da sua inte-gridade. Embora haja diferenças entre países e entre disciplinas na maneira pela qual a pesquisa éorganizada e conduzida, há também princípios e responsabilidades profissionais comuns que sãofundamentais para a integridade da mesma, onde quer que seja realizada.
PRINCÍPIOSHonestidade em todos os aspectos da pesquisa.Responsabilização na condução da pesquisa.
Respeito e imparcialidade profissionais no trabalho com outros.Boa gestão da pesquisa em benefício de outros.
RESPONSABILIDADES1. Integridade: Os pesquisadores devemassumir a responsabilidade pelaconfiabilidade de suas pesquisas.2. Cumprimento com as regras: Ospesquisadores devem estar cientes das regrase políticas de pesquisa e segui-las em todas asetapas.3. Métodos de pesquisa: Os pesquisadoresdevem utilizar métodos de pesquisaapropriados, embasar as conclusões em umaanálise crítica das evidências e relatar osachados e interpretações de maneira integrale objetiva.4. Documentação da pesquisa: Ospesquisadores devem manter documentaçãoclara e precisa de suas pesquisas, de maneiraque sempre permita a averiguação ereplicação do seu trabalho por outros.5. Resultados: Os pesquisadores devemcompartilhar seus dados e achados pronta eabertamente, após assegurarem aoportunidade de estabelecer a prioridade epropriedade sobre os mesmos.6. Autoria: Os pesquisadores devem assumirplena responsabilidade pelas suascontribuições em todas as publicações,solicitações de financiamento, relatórios eoutras representações de suas pesquisas. Alista de autores deve sempre incluir todosaqueles (mas apenas aqueles) que atendam oscritérios de autoria.7. Agradecimentos na publicação: Naspublicações, os pesquisadores devemreconhecer os nomes e papéis daqueles quefizeram contribuições significativas à pesquisa,inclusive redatores, financiadores,patrocinadores e outros, mas que não atendemaos critérios de autoria.8. Revisão de pares: Ao participar daavaliação do trabalho de outros, ospesquisadores devem fornecer pareceresimparciais, oportunos e rigorosos.9. Conflitos de interesse: Os pesquisadoresdevem revelar quaisquer conflitos de interesse,sejam financeiros ou de outra natureza, quepossam comprometer a confiabilidade de seutrabalho nos projetos, publicações ecomunicações públicas de suas pesquisas,
assim como, em todas as atividades derevisão.10. Comunicação pública: Os pesquisadoresdevem limitar seus comentários profissionais àsua própria área de especializaçãoreconhecida quando participarem emdiscussões públicas sobre a aplicação erelevância de resultados de pesquisa, e devemdistinguir claramente entre comentáriosprofissionais e opiniões baseadas em visõespessoais.11. Notificação de práticas de pesquisairresponsáveis: Os pesquisadores devemnotificar às autoridades competentes qualquersuspeita de má conduta profissional, inclusivea fabricação e/ou falsificação de resultados,plágio e outras práticas de pesquisairresponsáveis que comprometam aconfiabilidade da pesquisa, tais comodesleixo, inclusão inapropriada de autores,negligência no relato de dados conflitantes ouuso de métodos analíticos enganosos.12. Resposta a alegações de práticas depesquisa irresponsáveis: As instituições depesquisa, assim como as revistas,organizações profissionais e agências quetiverem compromissos com a pesquisa emquestão devem dispor de procedimentos pararesponder a alegações de má conduta e outraspráticas de pesquisa irresponsáveis, assimcomo proteger aqueles que, de boa fé, tenhamdenunciado tais comportamentos. Quando forconfirmada a má conduta ou outra prática depesquisa irresponsável, devem ser tomadas asmedidas cabíveis prontamente, inclusive acorreção da documentação da pesquisa.13. Ambientes de pesquisa: As instituições depesquisa devem criar e sustentar ambientesque incentivem a integridade através daeducação, políticas claras e normas razoáveispara o progresso da pesquisa, ao mesmotempo em que fomentam ambientes detrabalho que apóiem a integridade da mesma.14. Considerações sociais: Os pesquisadorese as instituições de pesquisa devem reconhecerque têm uma obrigação ética no sentido depesar os benefícios sociais contra os riscosinerentes apresentados pelo seu trabalho.
A Declaração de Singapura sobre Integridade em Pesquisa foi desenvolvida como parte da II Conferência Mundial sobre Integridadeem Pesquisa, realizada de 21 a 24 de julho de 2010, em Singapura, como guia global para a condução responsável de pesquisas. Nãoé um documento regulatório, nem representa as políticas oficiais dos países e organizações que financiaram ou participaram na Con-ferência. Para informações sobre políticas oficiais, normas e regras na área de integridade em pesquisa, devem ser consultadas asagências nacionais e organizações apropriadas. A Declaração original em inglês está disponível em: <http://www.singaporestatement.org>.
SUMÁRIO
ARTIGOS
O lado sombrio da estrada: vitimização, gestão coercitiva e percepção de medo nos roubos a ônibus interubanos Eduardo Paes-Machado e Silvia Viodres-InoueCabelos ambíguos: beleza, poder de compra e “raça” no Brasil urbano Mylene MizrahiTrajetórias educacionais de jovens residentes em um distrito da periferia de São Paulo Mariana BittarPatroas e adolescentes trabalhadoras domésticas: relações de trabalho, gênero e classes sociais Paulo Eduardo Angelin e Oswaldo Mário Serra TruzziVoto estratégico e coordenação eleitoral: testando a lei de Duverger no Brasil (1995-2008) Fernando Guarnieri O nó da reforma tributária no Brasil (1995-2008) Murilo de Oliveira JunqueiraAutoempreendedorismo: forma emergente de inserção social pelo trabalho Cinara Rosenfield A intertextualidade e sua teia: da etnografia ao romance e do romance ao filme José Hildo de Oliveira Filho Cáculo econômico e mobilidades sociais cruzadas em terras gaúchas: estudo sobre mudança da morfologia do patronato rural Marcos Botton PiccinLa configuración de los nuevos movimientos sociales frente a la crisis de lo social Carlos Mejías Sandia e Pablo Suárez Manriquez
RESENHAS Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma, de Marcos Nobre Marcelo MoreiraA política pública como campo multidisciplinar, de Eduardo Cesar Marques e Carlos Aurélio Pimenta de Faria Renata Bichir Autonomia e desigualdades de genêro: contribuições do feminismo para a crítica democrática, de Flávia Biroli José Swako Economia camponesa nas fronteiras do capitalismo: teoria e prática nos EUA e na Amazônia brasileira, de Francisco de Assis Costa Luiz Cláudio Moreira Melo Jr.
Revista BRASILEIRA
DE CIÊNCIAS SOCIAISvolume 30
número 89outubro de 2015
publicação quadrimestralASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E
PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS ISSN 0102-6909
Av. Professor Luciano Gualberto, 315Cidade UniversitáriaCEP 05508-010 São Paulo - [email protected]
ISSN 0011-5258
Vol. 58, nº 4, 2015
EditorBreno Bringel
Metamorfoses da Questão Geracional: O Problema da Incorporação dos Jovens naDinâmica SocialAdalberto CardosoTerritório e Desigualdades de Renda em Regiões Metropolitanas do BrasilMarcelo Gomes RibeiroEncontros Globais e Confrontos Culturais: O Pentecostalismo Brasileiro à Conquistada EuropaAri Pedro Oro e Daniel AlvesValores para mi País: Evangélicos en la Esfera Política Argentina (2008-2011)Marcos CarbonelliFacciosismo, Rachas Intrapartidários e Capacidade Decisória na Democracia Brasileirade 1946Jaqueline Porto ZuliniInteração Estratégica e Concursos Públicos: Uma Etnografia do Concurso daMagistratura FrancesaFernando de Castro FontainhaIdentificações Coletivas e Gestão da Diversidade Étnico-Cultural: Dinâmicas SociaisContrastantes entre Portugal e o BrasilNuno OliveiraOrganizar a Desordem: Raízes do Brasil em 1936Luiz Feldman
DADOS REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAISÉ uma publicação trimestral editada no Instituto de Estudos So-ciais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Ja-neiro (UERJ).
REDAÇÃO E ASSINATURAS: Rua da Matriz, 8222260-100 – BotafogoRio de Janeiro – BrasilTel.: (21) 2266-8300Redação: [email protected] online: www.iesp.uerj.br ewww.scielo.br/dados
DADOS
DADOS
revista de cultura e política
LUA NOVA
é uma revista quadrimestral publicada pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC) e orientada para o debate dos aspectos socioculturais e políticos de questões controversas do mundo contemporâneo.
Brasil: Anual R$ 50,00 (3 números)
Bienal R$ 90,00 (6 números)
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Bienal US$ 101.00 (6 números)
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