Taiguara Libano Soares e Souza
A Era do Grande EncarceramentoTortura e Superlotação Prisional no Rio de Janeiro
Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Direito. Orientador: Prof. João Ricardo Wanderley Dornelles
Volume I
Rio de JaneiroSetembro de 2015
Taiguara Líbano Soares e Souza
A Era do Grande Encarceramento: Tortura e Superlotação Prisional no Rio de Janeiro
Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Direito do Departamento de Direito da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. João Ricardo Wanderley Dornelles Orientador
Departamento de Direito – PUC-Rio
Profª. Victoria-Amália de Barros Carvalho Gozdawa de Sulocki Co-orientadora
Universidade de Brasília - UnB
Prof. Salo de Carvalho UFRJ
Prof. Nilo Batista UFRJ
Profª. Vera Malaguti de Souza Weglinski Batista UCAM
Profª. Monica Herz Vice-Decana de Pós-Graduação do Centro de
Ciências Sociais – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 11 de setembro de 2015.
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.
Taiguara Libano Soares e Souza
Graduou-se Bacharel em Direito pela UFF (Universidade Federal Fluminense) em 2008. Mestre em Direito pela PUC-Rio em 2010. Integrou o Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio. Participou de diversos congressos e seminários de Direito e áreas afins. Atuou como perito do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, de 2011 a 2015. É professor de Direito Penal e Criminologia da Faculdade de Direito IBMEC-RJ e da UFF (Universidade Federal Fluminense) e Consultor do Instituto de Defensores de Direito Humanos.
Ficha Catalográfica
Souza, Taiguara Libano Soares e A Era do Grande Encarceramento: Tortura e
Superlotação Prisional no Rio de Janeiro / Taiguara Libano Soares e Souza; Orientador: João Ricardo Wanderley Dornelles – Rio de Janeiro PUC, Departamento de Direito, 2015.
1. Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito. 2 v. 375 fl; 29,7 cm. Inclui referências bibliográficas.
1. Direito – teses. 2. Sistema Penitenciário. 3.
Neoliberalismo. 4. Estado de penal. 5. Estado de exceção. 6. Superlotação prisional. 7. Tortura. 8. Rio de Janeiro. I. Dornelles, J. R. W. (João Ricardo Wanderley). II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. III. Título.
Dedico esta tese às milhões de pessoas privadas de liberdade, nos calabouços contemporâneos. Invisibilizados, silenciados, torturados, aniquilados e sequestrados nas prisões da miséria e na segregação punitiva dos cárceres.
Agradecimentos
Todo "chegar até aqui" é um junção de fatores que, como um rio que corre
jamais se repete. Manifesto primeiramente minha gratidão a Deus, em todas as
suas formas, por ter me proporcionado tão bons encontros ao longo desta breve
caminhada e por demonstrar a cada momento, mesmo diante de tantas mazelas, a
afirmação do amor e da vida.
Aos meus pais, pelo amor incondicional, por ensinar a arte de perseguir os
sonhos, por tudo que sou. Aos meus irmãos e irmã pela experiência do conviver
igualitário, pela comunhão e pela fraternidade. Ao meu irmão Apoena, pelo
maravilhoso exemplo que nos deixou e por permanecer vivo em meus sonhos e
em meu coração. Ao meu amor Vanessa, por todas as infindáveis revisões e por
partilhar ao meu lado o amor e as lutas. A todos os meus familiares por todos os
momentos maravilhosos que proporcionaram e proporcionam em minha vida.
Aos queridos companheir@s do movimento estudantil por manterem viva
a chama do socialismo democrático. Aos eternos amigos Thiago Melo, Flávio
Sueth, Carlos Eduardo, Alexandre Franco, Flávio Serafini, Carlos Lucio, Vinicius
Almeida, Vinicius Codeço e Gustavo Dantas, parceiros na luta por uma sociedade
mais justa, fraterna e igualitária. Aos estimados amigos João e Ednéia Tancredo,
por tudo que vivemos juntos. Aos companheiros do Instituto de Defensores de
Direitos Humanos.
Aos amigos na luta contra a tortura e pela afirmação dos direitos humanos,
valorosos combatentes em meio à ofensiva da barbárie punitiva. Em especial
Fabio Simas, Renata Lira, Vera Lucia Alves, Patricia Oliveira, Antonio Pedro
Soares e Isabel Mansur (companheiros no Mecanismo Estadual de Prevenção e
Combate à Tortura), Camila Freiras, Tomas Ramos, Marcelo Freixo, Débora
Rodrigues, Henrique Guelber, Tiago Joffily, Victoira Grabois, Fábio Amado,
Sandra Carvalho, Fernanda Vieira, Márcia Badaró, Newvone Costa, Felipe
Almeida, Helena Hespanhol (companheiros do Comitê Estadual de Prevenção e
Combate à Tortura), Gorete Marques, Tânia Kolker, Luciano Mariz Maia, Sylvia
Dias, Jose de Jesus Filho, Mario Coriolano, Walter Suntinger, Margarida
Pressburger, Maira Fernandes, companheiros decisivos na luta contra a tortura no
Brasil e no mundo. Aos egressos do sistema prisional que lutam contra as mazelas
das masmorras prisionais, José Carlos Brasileiro e Greg Andrade.
Aos caros amigos da trincheira da resistência na academia, Antonio Pedro
Melchior, André Nicolitt, Rubens Casara, Marcia Fernandes e Jadir Brito. Aos
amigos queridos amigos que foram decisivos com conselhos e ouvidos no
processo de preparação desta tese, Enzo Bello, Pedro Avzaradel, Clecio Lemos e
Mauricio Dieter. À amiga Camila pela atenciosa revisão. Agradeço especialmente
à minha querida amiga Roberta Pedrinha, por toda a parceria na academia e nas
luta pela contenção do poder punitivo. Aos meus queridos alunos do IBMEC que
contribuíram com esta pesquisa.
Aos queridos mestres que iluminam os tortuosos caminhos dos tempos de
barbárie em que vivemos. Vera Malaguti, Nilo Batista, Juarez Tavares, Juarez
Cirino dos Santos, Miguel Baldez, João Luiz Duboc Pinaud, Eugênio Raul
Zaffaroni e Gabriel Anitua.
Aos professores do doutorado na PUC-Rio, Adriano Pilatti, Bethânia Assy,
Adrian Sgarbi, Chico Guimarãens, José Ribas Vieira, Gisele Citadino, José Maria
Gòmez, Carlos Plastino e Mauricio Rocha, pelo inestimável amadurecimento
teórico que me ofertaram e por aliar criticidade e excelência em sua prática
docente. Aos meus queridos orientador e co-orientadora João Ricardo Dornelles e
Victoria Sulocki, pelas inestimáveis lições e incentivos à elaboração deste
trabalho.
Ao Programa de Pós-graduação em Direito da PUC-Rio, pela seriedade e
excelência do ensino e por cultivar o espírito público, mesmo em uma instituição
privada. Agradeço ainda especialmente aos funcionários Anderson e Carmem, por
todo carinho, paciência e atenção. Ao CNPq, pelo suporte imprescindível à
elaboração desta pesquisa.
A todos os que resistem aos massacres perpetrados nos cárceres e lutam
em defesa da liberdade, da vida e da dignidade humana.
Resumo
Souza, Taiguara Libano Soares e; Dornelles, João Ricardo Wanderley. A Era do Grande Encarceramento: Tortura e Superlotação Prisional no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015. 375p. Tese de Doutorado – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A presente tese tem por objetivo central analisar os impactos do modelo
econômico neoliberal sobre o sistema penal a partir da década de 1990, atentando
para o hiperencarceramento levado a cabo no Rio de Janeiro, bem como seus
reflexos nas eventuais violações de direitos das pessoas privadas de liberdade. A
partir de relatórios de visitas, elaborados pelo Mecanismo Estadual de Prevenção
e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, pretende-se identificar um panorama das
condições de detenção neste estado entre os anos de 2004 e 2014, avaliando em
que medida podem ser enquadradas como situação de tortura. Esta reflexão parte
da constatação da crise de legitimidade do sistema penal evidenciada, desde a
gênese da prisão, passando pelos modelos penitenciários implementados e pelas
inúmeras teorias penalógicas legitimantes. Neste sentido, à luz da Criminologia
Crítica, sobretudo dos trabalhos de Loic Wacquant, e de contribuições de Michel
Foucault e Giorgio Agamben, busca-se refletir acerca da relação entre o sistema
penal e as estruturas sociais, diante da ascensão do capitalismo neoliberal, dando
ensejo à edificação do Estado penal nos Estados Unidos e sua incorporação no
Brasil, marcado por permanências autoritárias. Deste modo, voltamos as lentes
para analisar as evidências de superlotação e tortura no sistema prisional do Rio
de Janeiro. Por fim, propõe-se apontar estratégias político-criminais, que
poderiam representar um ‘dique de contenção’ do poder punitivo na Era do
Grande Encarceramento.
Palavras Chave
Sistema Penitenciário; Neoliberalismo; Estado Penal; Estado de Exceção; Superlotação Prisional; Tortura; Rio de Janeiro.
Abstract
Souza, Taiguara Libano Soares e; Dornelles, João Ricardo Wanderley(Advisor). The Age of Mass Incarceration: Torture and Prison Overcrowding in Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015. 375p. Doctoral. Thesis – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
This thesis is mainly aimed to analyze the impacts of the neoliberal
economic model on the penal system from the 1990s, noting the prison
overcrowding carried out in Rio de Janeiro, as well as their reflections on possible
violations of rights of persons deprived of freedom. Based on visit reports made
by the Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro
it’s intended to identify a panorama of detention conditions in this state between
2004 and 2014, checking if they can be classified as torture situation. For this
reflection, we starts from the perception of the criminal system crisis of
legitimacy that is evidenced since the genesis of the prison, and is present in the
prison implemented models and the many legitimizing theories of punishment. In
this sense, from the Critical Criminology, especially the work of Loic Wacquant
and contributions from Michel Foucault and Giorgio Agamben, we seek to reflect
on the relationship between the criminal justice system and social structures, in
the rise of neoliberal capitalism, enabling the establishment of Penal State in the
United States and its incorporation in Brazil, marked by authoritarian continuities.
Thus, we turn the lens to analyze the evidences of overcrowding and torture in
Rio de Janeiro’s prison system. Finally, it is proposed to examine criminal policy
strategies that could serve as a 'dike of contention' of punitive power in the Age of
Mass Incarceration.
Keywords
Penitentiary System; Neoliberalism; Penal State; State of Exception; Prison Overcrowding; Torture; Rio de Janeiro.
Sumário
1 Introdução 18
2 A (Des)Legitimidade do Sistema Penal: crise dos modelos e
fundamentos
26
2.1. O horizonte de projeção do Sistema Penal 28
2.1.1Sistema Penal e Controle Social 28
2.1.2. Discurso e operacionalidade do Sistema Penal: (i)legalidade e
(des)legitimidade
31
2.2. Gênese e crise da prisão 38
2.2.1. Beccaria e o iluminismo jurídico-penal 39
2.2.2. Howard e a reforma penitenciária 40
2.2.3. O panóptico de Bentham 41
2.2.4. Fracasso dos movimentos de reforma e crise do projeto
ressocializador
43
2.3. Modelos de Sistema Penitenciário 45
2.3.1. Sistema filadélfico (solitary system) 46
2.3.2. Sistema auburniano (silent system) 48
2.3.3. Sistemas progressivos (mark system) 50
2.4. Fundamentos da pena: teorias acerca das (dis)funções do
sistema penal
53
2.4.1. Discursos legitimantes 56
2.4.1.1. Teorias absolutas 56
2.4.1.2. Teorias preventivas 60
2.4.1.3. Teorias mistas 67
2.4.2. Discursos deslegitimantes 69
2.4.2.1. A Criminologia Crítica como chave interpretativa 70
2.4.2.1.1 Abolicionismo penal 74
2.4.2.1.2 Minimalismo penal radical 76
2.4.2.1.3 Teoria dialética da pena 78
2.4.2.1.4 Teoria agnóstica da pena 79
3 A Era do Grande Encarceramento: Neoliberalismo, Sistema
Penitenciário e Contenção Punitiva da Pobreza
83
3.1. A economia política da penalidade: as (inter)faces dos sistemas
penais e econômicos
87
3.1.1. Punição e estrutura social: âmbito econômico-político 88
3.1.2. Vigiar e punir: âmbito disciplinar e político-ideológico 93
3.1.3. Cárcere e fábrica: âmbitos político-econômico e ideológico-
disciplinar
95
3.2. O advento do estado penal: neoliberalismo e sistema penal 99
3.2.1. A gênese do campo burocrático neoliberal 99
3.2.2. Do Estado de Bem Estar Social ao Estado penal 104
3.2.3. O Leviatã neoliberal: o grande encarceramento nos EUA 110
3.3. A globalização do Estado penal: biopolítica e sociedade de
controle
120
3.4 Estado penal no Brasil: o controle biopolítico da pobreza no
capitalismo periférico
127
3.4.1. As permanências autoritárias 128
3.4.1.1. Do genocídio colonial ao autoritarismo imperial 129
3.4.1.2. O entulho autoritário da ditadura civil-militar de 1964 131
3.4.1.3. Desenvolvimento econômico nos marcos do capitalismo
tardio
133
3.4.2. O empreendimento neoliberal no Brasil 134
3.4.3. Forjando o Estado penal brasileiro 139
3.4.3.1. Bolsa Família: dispositivo de workfare? 141
3.4.3.2. Política criminal com derramamento de sangue 144
3.4.3.3. O grande encarceramento no Brasil 148
4 Nas Entranhas do Leviatã Prisional: Análise do Encarceramento
Massivo no Rio De Janeiro
156
4.1 A trajetória histórica da prisão no Rio de Janeiro: os caminhos da
dor
157
4.2 O Rio de Janeiro como laboratório biopolítico da penalidade
neoliberal
167
4.3 Cartografia do Sistema Penitenciário fluminense: abrindo a
caixa de pandora
172
4.3.1 Superlotação prisional 173
4.3.2 O perfil da população privada de liberdade 177
4.3.2.1 A seletividade punitiva 177
4.3.2.2 A banalização da prisão cautelar 184
4.3.3 Regime e classificação 187
4.3.3.1Panorama das unidades prisionais 187
4.3.3.2 Regimes prisionais 191
4.3.3.3 Classificação dos internos 193
4.3.4 Agentes e técnicos penitenciário 194
4.3.5 Assistência e direitos do preso 197
4.3.5.1 Assistência à saúde 197
4.3.5.2 Assistência material 200
4.3.5.3 Assistência familiar 205
4.3.5.4 Assistência jurídica 209
4.3.6 Atividades no cárcere 210
4.3.6.1 Atividades laborativas 210
4.3.6.2 Atividades educacionais 213
4.3.6.3 Banho de sol e outras atividades 216
4.3.7 Castigos e violência no cárcere 217
4.3.7.1 Sanções disciplinares 217
4.3.7.2 Tortura e maus tratos 220
5 Tortura e Sistema Penitenciário: O Cárcere Como Exceção
Permanente
226
5.1 Direitos Humanos e Sistema Penitenciário 229
5.1.1 Parâmetros Protetivos Internacionais 229
5.1.1.1 Instrumentos Universais 229
5.1.1.2 Instrumentos Regionais 232
5.1.1.3 Padrões Internacionais Não-vinculantes 233
5.1.2 Parâmetros Protetivos Nacionais 236
5.1.3 O divórcio entre o binômio normatividade-realidade no Sistema
Penal
239
5.2 Tortura e pena privativa de liberdade 241
5.2.1 O enfrentamento à tortura 243
5.2.2 Definindo o conceito de tortura 245
5.2.3 Ampliando o conceito de tortura 247
5.2.4 A tortura no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro 251
5.3 Prisão e exceção permanente 258
5.3.1 A prisão no paradigma do campo 259
5.3.2 O preso como homo sacer 262
5.3.3 O modelo penitenciário na Era do Grande Encarceramento 265
5.3.4 As (dis)funções da pena na Era do Grande Encarceramento 270
6 Estratégias de Contenção do Grande Encarceramento:
Contribuições da Criminologia Cautelar
276
6.1 Por uma Criminologia Cautelar 278
6.2 Estratégias de contenção do Encarceramento Massivo 280
6.2.1 Mecanismos de Prevenção À Tortura 280
6.2.2 A tese do Estado de Coisas Inconstitucional 288
6.2.3 Responsabilidade civil do Estado por superlotação e
Condições degradantes de encarceramento
295
6.2.4 Audiência de Custódia 301
6.2.5 Penas alternativas e alternativas penais 307
6.2.6 Outros dispositivos redutores do hiperencarceramento 314
6.3 Entre o Minimalismo e o Abolicionismo Penal: sobre a
controvérsia tática-estratégia
322
7 Conclusão 328
8 Referências Bibliográficas 333
Listas de Figuras
Figura 1: População Prisional EUA (1920-2006) 113
Figura 2: Comparativo Internacional de Letalidade Policial (2008) 147
Figura 3: População Prisional Brasil (1990-2014) 150
Figura 4: População Prisional EUA (1990-2014) 151
Figura 5: Comparativo entre as 4 maiores populações prisionais do
mundo (1995-2014)
152
Figura 6: População Prisional - Rio de Janeiro-Nova Iorque (2005-
2014)
175
Figura 7: Total de Presos por Gênero no Rio de Janeiro (2009-
2014)
178
Figura 8: Comparativo de população presa e livre por cor, raça e
etnia 2014
179
Figura 9: Total de presos por faixa etária - Rio de Janeiro e Brasil
(2014)
180
Figura 10: Total de presos por nível de escolaridade - Rio de
Janeiro e Brasil (2014)
182
Figura 11: Total de Presos por Tipo Penal (Brasil - 2014) 183
Figura 12: Presos Provisórios - Rio de Janeiro e Brasil (2004-2014) 185
Figura 13: Presos por regime e natureza da privação da liberdade -
RJ (2009-2014)
192
Figura 14: Presos em Atividades Laborativas (RJ - 2004/2014) 211
Figura 15: Presos em Atividades Educacionais (RJ - 2004/2014) 214
Figura 16: Comparativo entre o crescimento do número de Penas
e Medidas Alternativas e População Prisional no Brasil (1995-
2009)
309
Figura 17: Presos por tráfico no Brasil (2006-2012) 320
Lista de Tabelas
Tabela 1: Autos de Resistência lavrados no Rio de Janeiro –
(2000-2014)
146
Tabela 2: Dados acerca das 10 maiores populações prisionais do
mundo (2014)
148
Tabela 3: Dados sobre População Prisional (Rio de Janeiro e Brasil
– 2014)
173
Tabela 4: Crescimento da População Prisional – Rio de Janeiro e
Brasil (2004-2014)
173
Tabela 5: População Prisional do Rio de Janeiro por Cor, Raça ou
Etnia (2009-2014)
178
Tabela 6: População Prisional do Rio de Janeiro por Faixa Etária
(2009-2014)
179
Tabela 7: População Prisional do Rio de Janeiro por Nível de
Escolaridade (2009-2014)
181
Tabela 8: Total de Presos Provisórios no Rio de Janeiro (2009-
2014)
184
Tabela 9: Unidades Isoladas - Sistema Prisional do Rio de Janeiro
(2014)
188
Tabela 10: Unidades de Niterói e Interior - Sistema Prisional do Rio
de Janeiro (2014)
188
Tabela 11: Unidades do Complexo de Gericinó - Sistema Prisional
do Rio de Janeiro (2014)
189
Tabela 12: Técnicos Penitenciários (Rio de Janeiro – 2014) 195
Tabela 13: Profissionais de Saúde no Sistema Prisional do Rio de
Janeiro (1995-2015)
196
Tabela 14: Quadro comparativo dos Modelos Punitivos 269
LISTA DE SIGLAS
ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
ALERJ - Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
ASSAP - Associação dos Servidores de Saúde no Sistema Penitenciário
APT - Associação para a Prevenção à Tortura
CEJIL - Centro pela Justiça e o Direito Internacional
CPP - Código de Processo Penal
CP - Código Penal
CEPAL - Comissão Económica para a América Latina e o Caribe
CAT - Comitê da ONU Contra a Tortura
CNPCT - Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura
CNJ - Conselho Nacional de Justiça
CNPCP - Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
CF - Constituição Federal
CEDH - Corte Europeia de Direitos Humanos
DESIPE - Departamento do Sistema Penitenciário
DEPEN - Departamento Penitenciário Nacional
ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente
FIFA - Federação Internacional de Futebol
FMI - Fundo Monetário Internacional
ISAP - Inspetor de segurança e administração penitenciária
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
IPVP - Instituto Penal Vicente Piragibe
IPPSC - Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho
ICPS - International Centre for Prison Studies
LGBTT - Lésbicas, gays, travestis, transexuais e transgêneros
LEP - Lei de Execução Penal
MEPCT/RJ - Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura
MNPCT - Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura
MPN - Mecanismos de Prevenção Nacionais
OAB - Ordem dos Advogados do Brasil
ONU - Organização das Nações Unidas
OEA - Organização dos Estados Americanos
PIDCP - Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos
PIDESC - Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira
PT - Partido dos Trabalhadores
PSOL - Partido Socialismo e Liberdade
PMAs - Penas e medidas alternativas
PROER - Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do
Sistema Financeiro
PL - Projeto de Lei
PLS - Projeto de Lei do Senado
OPCAT - Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas Contra a
Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou
Degradantes
RDD - Regime Disciplinar Diferenciado
SEAP - Secretaria de Estado de Administração Penitenciária
SOE - Serviço de Operações Especiais
SNPCT - Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura
SPT - Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura
STJ - Superior Tribunal de Justiça
STF - Supremo Tribunal Federal
TJ/RJ – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
UPP - Unidades de Polícia Pacificadora
UPA - Unidade de Pronto Atendimento
Uma última consideração confronta fortemente a crescente confiança no aparelho carcerário para controlar as sequelas da marginalidade e da desordem urbana exacerbadas no Brasil logo após a desregulamentação neoliberal: o pavoroso Estado dos cárceres, prisões e cadeias do país, que mais parecem campos de concentração para os despossuídos ou empreendimentos públicos para a reciclagem industrial dos restos sociais e estão bem longe da imagem de instituições judiciais voltadas a alguma proposta penal identificável – seja a dissuasão, a neutralização ou a retribuição, deixando de lado a reabilitação. O sistema penitenciário do Brasil efetivamente ostenta os defeitos das piores cadeias do Terceiro Mundo, numa escala digna do Primeiro Mundo, devido a seu tamanho absoluto, a seu enraizamento urbano e à persistente indiferença dos políticos e do público, que, entretanto,o demonstra reiteradas vezes ser favorável aos crescentes excessos no campo correcional. Pelos padrões ocidentais contemporâneos, os estabelecimentos carcerários do Brasil padecem de doenças que lembram os calabouços feudais.
(Loic Wacquant)
1 Introdução
Ao longo dos últimos dois séculos, desde sua gênese, a questão
penitenciária se apresenta como uma grave problemática global. Na atualidade
organismos internacionais, gestores públicos, organizações não governamentais e
estudiosos do mundo inteiro apontam a crise da instituição prisional, em uma
crescente realidade de superlotação e condições desumanas de aprisionamento.
A invenção da prisão coincide com a ascensão do modo de produção
capitalista, substituindo o sistema penal do medievo. A edificação deste
empreendimento punitivo será acompanhada de distintos modelos prisionais e
teorias fundamentadoras da pena, até seu atual panorama. O criminólogo Loic
Wacquant, ao refletir sobre o crescimento da prisão a partir do final do século XX,
com a implementação do modelo econômico neoliberal nos Estados Unidos,
afirma que estamos diante do “Grande Encarceramento”1.
Esta expressão é tributária do termo “Grande Internação”, cunhado por
Michel Foucault para referir-se ao expressivo crescimento das instituições de
internação de loucos no século XVII2. Na obra A Indústria do Controle do Crime,
Nils Christie3 faz um paralelo entre a grande internação descrita por Foucault,
com o fenômeno do grande encarceramento ocorrido nos Estados Unidos a partir
de 1970, pois apesar da distância histórica, em ambos os contextos os alvos da
segregação são os mesmos, os segmentos populacionais mais pauperizados.
Essa onda punitiva na atualidade, expressa na hiperinflação da população
carcerária, também será verificada em diversos países, sobretudo no Ocidente. No
caso brasileiro, o histórico de autoritarismo, presente no colonialismo, na
escravidão, nas ditaduras e na violência institucional generalizada delineia um
sistema prisional peculiar. Como será observado, a partir da década de 1990
1 WACQUANT, L., Punir os pobres, p. 55. 2 “E sabido que o século XVII criou vastas casas de internamento; não é muito sabido que mais de um habitante em cada cem da cidade de Paris viu-se fechado numa delas, por alguns meses. É bem sabido que o poder absoluto fez uso das cartas régias e de medidas de prisão arbitrárias; é menos sabido qual a consciência jurídica que poderia animar essas práticas.” FOUCAULT, M., A História da Loucura na Idade Clássica, p. 55. Na página 67 o autor utiliza a expressão “A Grande Internação”. 3 CHRISTIE, N., A Indústria do Controle do Crime.
19
assiste-se a um encarceramento massivo no país, agravando as já precárias
condições de detenção.
Neste sentido, em visita realizada ao Brasil em agosto de 2015, o Relator
Especial sobre Tortura das Nações Unidas, Juan E. Méndez, após inspecionar
inúmeras unidades prisionais instou as autoridades federais e estaduais brasileiras
a responderem urgentemente à questão da superlotação das prisões no país e
mostrar “um compromisso genuíno para implementar medidas contra a tortura”.
Através dessas visitas, o especialista independente observou como a grave
superlotação gera tensão e uma atmosfera violenta, no qual maus-tratos físicos e
psicológicos são corriqueiros.
Muitas das instalações visitadas estão seriamente superlotadas – em alguns casos, com quase três vezes mais que sua capacidade (...) Isso leva a condições caóticas dentro das instalações, com grande impacto para as condições de vida dos detentos e seu acesso à assistência jurídica, cuidados de saúde, apoio psicossocial, oportunidades de trabalho e estudo, bem como ao sol, ar fresco e recreação4.
Nesta tese pretendemos analisar o fenômeno da hipertrofia da população
prisional no estado do Rio de Janeiro, sobretudo se debruçando sobre o período de
2004 a 2014. Este recorte cronológico justifica-se, pois não há indicadores sobre
as unidades prisionais sistematizados pela Secretaria de Estado de Administração
Penitenciária (SEAP) nos anos antecedentes. Partimos da hipótese que a
implementação do modelo econômico neoliberal produz como consequência o
recrudescimento das políticas criminais, acentuando-se nas últimas décadas o
fenômeno do “grande encarceramento”.
A hipótese que se busca colocar em análise considera que o Rio de Janeiro
tem servido como um laboratório vivo das políticas criminais repressivas,
refletindo-se no crescimento exponencial de sua população prisional. Em meio ao
quadro crônico de superpopulação, o cárcere constitui-se um terreno fértil para
violações de direitos humanos das pessoas privadas de liberdade. A exceção à
norma torna-se regra na prisão, de modo a delinear um panorama sistêmico de
tortura e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes. Desta maneira, o ideal
4 Disponível em: http://nacoesunidas.org/especialista-da-onu-insta-brasil-a-resolver-superlotacao-das-prisoes-e-agir-contra-tortura/. Acessado em: 15/08/2015.
20
ressocializador torna-se inalcançável diante das mazelas do sistema penitenciário.
A pena privativa de liberdade passa a cumprir eminentemente a função de
neutralização de uma parcela das classes populares, historicamente alijada de seus
direitos fundamentais.
Neste sentido, a presente pesquisa tem por objetivos específicos perceber
as interfaces entre o modelo econômico neoliberal e a dinâmica operativa dor
sistema penal, comparando a ascensão do Estado penal nos EUA com a eventual
enunciação deste processo no Brasil, refletindo suas peculiaridades de um país de
capitalismo periférico. Nesta esteira, busca-se examinar a relação entre o
crescimento da população prisional no Brasil, em especial no estado do Rio de
Janeiro, identificado os impactos na garantia de direitos das pessoas privadas de
liberdade, bem como as possíveis evidências da seletividade deste
hiperencarceramento, identificando, entre outras coisas, o perfil da população
prisional. Ademais, pretende-se avaliar se as condições de encarceramento podem
ser reconhecidas enquanto situação perene de tortura. Por fim, busca-se identificar
as alternativas que se apresentam como eventuais medidas redutoras da
hiperinflação carcerária.
Esta pesquisa é fruto da continuidade das reflexões iniciadas na elaboração
da dissertação de mestrado, cursado no Programa de Pós-graduação em Direito da
PUC-Rio, cujo título foi Constituição, Segurança Pública e Estado de Exceção
Permanente: a Biopolítica dos Autos de Resistência. Na dissertação realizamos
uma abordagem teórica acerca da categoria “estado de exceção” segundo Giorgio
Agamben, a fim de refletir sobre a política criminal de segurança pública vigente
no Estado do Rio de Janeiro e suas tensões com os direitos fundamentais,
notadamente no que se refere à letalidade policial amparada pelos autos de
resistência. Na referida pesquisa, importantes conclusões foram alcançadas dando
ensejo ao aprofundamento da investigação no curso de doutorado em vistas a
perscrutar, neste momento, outra dimensão do poder punitivo: as mazelas que
assolam o sistema penitenciário brasileiro.
Outro fator fundamental para esta pesquisa decorre de minha atuação junto
ao Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro
(MEPCT/RJ), primeiro órgão desta natureza em atividade no Brasil, criado pela
Lei nº 5.778/2010 a qual atribui competência para monitorar os espaços de
21
privação de liberdade com o intuito de buscar a observância dos parâmetros legais
nacionais e internacionais. Deste modo, esta experiência salutar nos possibilitou
conhecer a fundo a realidade prisional fluminense intra-muros, bem como
propiciou acesso a documentação relevante, autoridades públicas competentes,
instituições da sociedade civil, presos e seus familiares.
A justificativa para esta abordagem guarda ainda relações com inequívoca
relevância social, uma vez que se trata de problemática que atinge direta e
indiretamente toda a sociedade, e, em especial, a dignidade humana do exército de
pessoas privadas de liberdade no cárcere. É extremamente emblemático que ao
serem completados 30 anos de promulgação da Lei de Execução Penal (Lei nº
7.210/84) e da Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura e Outros
Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em 2014, assista-se ao
panorama sombrio que permeia o sistema prisional. Nesse mesmo ano, o Brasil,
pela primeira vez, rompe a casa dos 600 mil presos, ademais, relatórios indicam
que se trata de uma das populações prisionais que mais cresce no mundo5.
Consideramos ainda sua relevância teórica, uma vez que se propõe à
empreitada de pensar a ascensão do Estado penal no Brasil. A literatura
criminológica carece de mais produções teóricas que se detenham sobre os efeitos
do grande encarceramento no país, em especial no Rio de Janeiro. Neste sentido,
consideramos se tratar de uma possibilidade de contribuir com o pensamento
crítico direcionado à contenção do poder punitivo e ao respeito aos direitos e
garantias essenciais das pessoas encarceradas.
Por fim, destacamos também sua relevância metodológica, visto que nos
debruçamos sobre a análise de unidades prisionais do Rio de Janeiro, com
relevante base empírica e dados de difícil acesso, alcançados, sobretudo, a partir
dos trabalhos do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura.
O trabalho é desenvolvido com base em metodologia caracterizada por
raciocínio dedutivo, partindo da análise da crise de legitimidade do sistema penal
desde o surgimento da prisão, passando pela reflexão sobre o lugar do cárcere nos
marcos do neoliberalismo, no plano internacional e nacional, para após, examinar
5 BRASIL. Ministério da Justiça, Relatório de Informações Penitenciárias - Infopen 2014.
22
os impactos do encarceramento massivo nas unidades prisionais do Rio de
Janeiro, notadamente entre 2004 a 2014.
A pesquisa orienta-se por viés quantitativo e qualitativo. Utilizaremos a
técnica da análise documental, tendo por fonte primária relatórios do Mecanismo
Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, no que se refere às informações sobre
o sistema prisional do Rio de Janeiro, (com relação aos indicadores sobre as
condições de aprisionamento, serão utilizados relatórios de 29 unidades prisionais,
do total de 50 existentes no estado); do Departamento Penitenciário Nacional, em
relação a indicadores nacionais e de outros estados da Federação; e do
International Centre for Prison Studies, tratando-se de indicadores internacionais.
Dentre as fontes primárias, serão utilizados ainda dispositivos legais
nacionais e internacionais (Constituição Federal de 1988, Código Penal de 1940
Lei de Execução Penal, bem como leis penais extravagantes, além de tratados e
convenções de direito humanos relativos aos direitos das pessoas privadas de
liberdade), bem como audiências públicas (realizadas pela Comissão de Direitos
Humanos da Câmara de Deputados e pela Comissão de Cidadania e Direitos
Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro), relatórios
emitidos por órgãos públicos e organismos internacionais (Conselho Nacional de
Justiça, Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Subcomitê da
ONU para a Prevenção à Tortura) e por organizações não-governamentais,
nacionais e internacionais, acerca da política criminal penitenciária, em especial
no Rio de Janeiro (Anistia Internacional, Associação para a Prevenção à Tortura,
Human Rights Watch e Pastoral Carcerária).
Além disso, o trabalho se utiliza da técnica de revisão bibliográfica, no
campo jurídico-sociológico, através de abordagem essencialmente interdisciplinar,
mobilizando diversos campos do saber como Direito Penal, Execução Penal,
Criminologia, Sociologia, Direitos Humanos, Filosofia Política, Ciência Política e
História, para a compreensão de tema marcado pela complexidade e atualidade,
como o encarceramento massivo e seus efeitos perniciosos.
Cabe ainda destacar que se trata de pesquisa ancorada no método
materialista-histórico dialético. Trata-se de método de análise desenvolvido pelo
filósofo alemão Karl Marx, que se propõe à interpretação da realidade a partir da
materialidade e concreticidade, desta forma, propondo a reinterpretação da
23
dialética de Hegel. Para Marx, Hegel trata a dialética idealmente no plano do
espírito, das ideias, enquanto o mundo dos homens exige sua materialização. É
com esta preocupação que Marx deu o caráter material (os homens se organizam
na sociedade para a produção e a reprodução da vida) e o caráter histórico (como
eles vêm se organizando através de sua história).
Esta perspectiva téorica considera que somos influenciados pelas relações
sociais de produção. “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é
o seu ser social que, inversamente, determina sua consciência” 6 Porém, não há o
determinismo absoluto, o homem tanto cria suas relações sociais quanto é por elas
criado. Na concepção de Marx: “As circunstâncias fazem os homens da mesma
forma que os homens fazem as circunstâncias”7. Nesta perspectiva, o real é
também dialético, visto que o processo histórico é movido por contradições
sociais.
A partir destas preocupações, Marx desenvolve uma metodologia própria
para interpretação da realidade8. O método materialista histórico dialético será o
norteador da análise da dinâmica de funcionamento do sistema penal e suas
interfaces com o sistema econômico.
Vale dizer que esta tese não se propõe a um estudo neutro ideologicamente
e puro cientificamente. Pretende-se desenvolvê-la nos marcos da pesquisa-
intervenção. Como afirma Regina Benevides de Barros:
Na pesquisa-intervenção, conforme entendemos, teoria e prática são práticas. Práticas que abandonam sua vontade de verdade e mergulham nas linhas que cartografam os movimentos dos fluxos. Seguem-nas em seus devires contagiantes que fazem ruir a separação sujeito-objeto9.
Nesta esteira, parafraseando Darcy Ribeiro10, o que se pretende é o
desenvolvimento desta tese como obra participante, fruto não apenas de acúmulo
6 MARX, K. e ENGELS, F., A ideologia alemã, p. 56. 7 Ibid. 8 Podemos encontrar elementos para a compreensão do Método nos primeiros escritos de Marx como na Ideologia Alemã e nos Manuscritos Econômicos Filosóficos, por exemplo, mas é em O Capital, sua mais importante obra, que encontraremos, não uma exposição do Método, mas sua aplicação nas análises econômicas ali empreendidas. A Contribuição à Critica da Economia Política, texto introdutório de O Capital, talvez seja o texto de Marx que mais se aproxima de uma sistematização do Método. 9 Ver em: Barros, R.D. Benevides de, Grupo: afirmação de um simulacro. 10 RIBEIRO, D., O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil, p. 17.
24
teórico, mas, sobretudo prático, em virtude da atuação junto ao Mecanismo
Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, possibilitando a experiência com a
realidade do cárcere e dos atores sociais que o envolvem.
O referencial teórico que norteia este trabalho centra-se na Escola da
Criminologia Crítica, notadamente a partir dos trabalhos de Alessandro Baratta,
Nilo Batista, Eugênio Raúl Zaffaroni, Vera Malaguti, e Loic Wacquant. O enfoque
criminológico-crítico será a chave de leitura à pesquisa, para compreender as
relações entre o sistema penal e o sistema econômico, e suas implicações na
dinâmica do cárcere.
Além disso, pretende-se agregar à elaboração da tese o arcabouço teórico
do “paradigma da biopolítico”, valendo-se da contribuição de pensadores como
Michel Foucault, Gilles Deleuze e Giorgio Agamben para trabalhar conceitos
centrais como Estado de exceção, biopolítica, homo sacer, campo e cartografia.
Deste modo, esta tese busca não pautar-se pela dicotomia presente em
alguns círculos acadêmicos, entre a produção teórica de Marx e Foucault. Aliando
estes dois campos teóricos, pretende-se tanto a compreensão da dimensão
econômico-politica e da dimensão microfísica do poder (das disciplinas à
biopolitica) no que se refere ao cárcere.
Nesta esteira, a tese será desenvolvida em cinco momentos distintos:
1. Histórico-cronológico: No primeiro capítulo do trabalho coloca-se em
análise a (des)legitimidade do sistema penal. Busca-se verificar a discrepância
entre o discurso jurídico-penal e sua materialidade. Deste modo, percorrendo o
olhar sobre a gênese da prisão, bem como sobre os modelos penitenciários e as
teorias justificantes da pena ao longo da história, para apresentar um panorama
sobre a crise atual que acomete a instituição carcerária.
2. Econômico-político: Em um segundo momento, passamos a analisar o
sistema penal contemporâneo, diante das inflexões do modelo econômico
neoliberal. Para tanto, será necessário, primeiramente, descortinar as interfaces
dos modelos punitivos e dos sistemas econômicos. Já no seio do capitalismo pós-
industrial, cabe se debruçar sobre o sistema penal nos EUA, naquilo que Loic
Wacquant irá denominar de Estado penal, dando ensejo ao grande
encarceramento. É imprescindível perceber de que maneira se processa a
expansão monumental do sistema punitivo, que passa a ser exportada como
25
modelo a ser seguido. Neste sentido, é preciso verificar o delineamento do Estado
penal no Brasil e suas peculiaridades que irão desembocar no encarceramento
massivo.
3. Analítico-cartográfico: Já o terceiro capítulo, propõe-se a realizar uma
cartografia do cárcere no Rio de Janeiro, percorrendo a travessia pelas entranhas
do sistema penitenciário diante dos perniciosos efeitos da penalidade neoliberal.
Assim, buscamos identificar os reflexos do hiperencaceramento, a partir de
relatórios sobre visitas in loco às unidades prisionais realizadas pelo MEPCT/RJ,
examinando em que medida a superlotação impacta a realidade prisional na forma
de violações de direitos das pessoas encarceradas.
4. Analítico e teórico: No capítulo quatro, pretende-se aferir em que
medida a realidade de superlotação e as precárias condições carcerárias podem ser
identificados como situação de tortura, ou tratamentos cruéis, desumanos ou
degradantes. Para tanto, se faz necessário compreender o conceito de tortura, sua
ampliação na atualidade e suas conexões com o sistema penitenciário.
5. Propositivo: Por fim, o quinto capítulo objetiva indagar sobre as
possíveis estratégias de contenção do grande encarceramento. Partindo do
conceito de criminologia cautelar de Zaffaroni, busca-se apontar um panorama de
medidas que poderiam representar um dique de contenção à expansão do sistema
penal. Ao final, serão apresentadas as conclusões parciais desta pesquisa e seus
desdobramentos.
2 A (des)legitimidade do Sistema Penal: crise dos modelos e fundamentos
Costuma-se dizer que ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que tenha estado dentro de suas prisões. Uma Nação não deve ser julgada pela forma como lida com os seus cidadãos privilegiados, mas pela maneira como trata os mais humildes.
(Nelson Mandela)11
O projeto político gestado na modernidade se constitui com suposta
afirmação da civilização em detrimento da barbárie12. Este ideal civilizatório é
compreendido no bojo dos postulados iluministas de racionalidade, emancipação e
liberdade. Representaria o antagonismo do estado de natureza e da
irracionalidade.
Os fundamentos modernos do direito de punir encontram-se justamente na
criação da figura do Estado, em tese, imbuídos deste escopo civilizatório13. Neste
sentido, o criminólogo John Pratt afirma que:
quanto mais uma sociedade castiga a seus delinquentes, mais ela é considerada ‘civilizada’, avançada, socialmente justa, etecetera; deste modo, a ‘civilização’ ajuda a estabelecer os parâmetros culturais do castigo14.
Entretanto, como aponta o jurista italiano Luigi Ferrajoli, um olhar atento
ao passado nos revela que “a história das penas é mais sangrenta do que a história
dos crimes”15. Os modelos de punição, que a priori deveriam representar o triunfo
da razão e da civilização, passam a promover irracionalidade e barbárie16.
11 MANDELA, N., Longo caminho para a liberdade. 12 Para Menegat, à luz dos estudos da Escola de Frankfurt, a categoria barbárie não deve ser compreendida como antagônica à noção de civilização, mas sim como excesso de civilização. MENEGAT, M., Depois do fim do mundo: a crise da modernidade e a barbárie. 13 Antônio Moniz Sodré de Aragão, jurista brasileiro do início do século XX, afirmara que “o Direito Penal é o produto da civilização dos povos, através da longa evolução histórica”. ARAGÃO, A. M. S. de, As três escolas penais: clássica, antropológica e crítica. 14 PRATT, J., Castigo y civilizacion: uma lectura crítica sobre las prisiones y los regimes
carcelarios, p. 16. 15 FERRAJOLI, L. Direito e Razão, p. 365. 16 PRATT, J., op. cit., p. 26-27.
27
Zygmunt Bauman, na obra Modernidade e Holocausto, ao explicar a
barbárie dos métodos de punição na Alemanha nazista salienta que:
Se estabeleceu uma extraordinária capacidade de coabitação pacífica e harmoniosa dos modos civilizados com o extermínio em massa (...). Estes mecanismos necessitam do código civilizado de conduta para coordenar ações criminais de tal modo que raramente colidiram com a confiança no próprio caráter dos violadores. (...) A maioria dos observadores reagiam conforme as normas civilizadas frente a coisas desagradáveis e bárbaras: desviavam o olhar17.
Desta forma, percebe-se que historicamente, o sistema punitivo opera em
uma racionalidade fincada em um discurso jurídico-penal completamente
dissociado de sua materialidade. Em nome da razão e da civilização, promove-se
violência, arbítrio e sofrimento.
Esta contradição parece se expressar claramente na prisão, principal
manifestação punitiva contemporânea, ao naturalizar as condições desumanas e
degradantes de detenção, torturas, superlotação, promiscuidade, ruptura de laços
afetivos, e outras tantas privações aniquiladoras da subjetividade dos
aprisionados.
A partir deste paradoxo entre o discurso jurídico-penal, ancorado nos
ideais de racionalidade e civilização, e sua realidade prática, promotora de
irracionalidade e barbárie, neste primeiro capítulo iremos abordar a
(des)legitimidade do sistema penal em face da crise que lhe acomete.
Deste modo, compartilhamos o entendimento de Eugênio Raúl Zaffaroni,
para quem o ponto de partida para uma reflexão sobre o sistema penal é a
constatação de sua crise. A negação desta, muitas vezes observada nos discursos
dos gestores públicos, revela-se como sintoma da própria crise. Em suas palavras:
como em qualquer emergência, à medida que a situação vai se tornando insustentável, começa a operar-se a evasão mediante mecanismos negadores que, em nosso caso, aparentam conservar a antiga segurança de resposta. Embora reconheçam-se “problemas” que costumam ser deixados de lado, através de uma delimitação discursiva arbitrária que evita confrontar a crise.18
17 BAUMAN, Z., Modernidade e Holocausto, p. 110. 18 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p. 12.
28
Nesta esteira, pretendemos neste capítulo primeiramente, abordar os
conceitos de controle social e sistema penal, com base, sobretudo, na contribuição
teórica de Zaffaroni, verificando as incongruências entre seu discurso e sua
operacionalidade.
Em segundo plano, será trazida a lume a gênese da prisão, identificando
seu marco inicial na modernidade, passando pelas contribuições dos principais
idealizadores do movimento de reforma prisional, chegando à constatação de sua
permanente crise.
No terceiro item, serão analisados os modelos penitenciários, abordando as
principais experiências implementadas no Ocidente e as razões para seu flagrante
insucesso na redução da violência e da criminalidade.
Posteriormente, o quarto item se propõe a descortinar os fundamentos da
pena, visualizando, de um lado, as teorias penalógicas legitimantes, de outro, os
discursos deslegitimantes que apontam as falácias do discurso oficial da pena, à
luz da Criminologia Crítica.
2.1 O horizonte de projeção do sistema penal
2.1.1 Sistema penal e controle social
Os conflitos, no interior de uma determinada sociedade são medidos
segundo uma dinâmica que vai configurando a estrutura de poder existente
conforme estratégias de controle social. A acepção de controle social está
intrinsecamente associada ao modelo de estado no qual está inserido, sendo
muitas vezes utilizada para justificar massacres e atrocidades cometidas através do
aparato repressivo do Estado19.
Na obra Visions of the Social Control, o sociólogo norte-americano
Stanley Cohen define controle social como:
19 Zaffaroni aponta que em estados autoritários, que denomina de estado de polícia, as estratégias de controle social assumem condão repressivo. Ao contrário, no Estado de Direito, o controle social deve respeitar as garantias penais e processuais penais. O autor lembra ainda que “o estado de polícia não está morto num estado de direito real, senão encapsulado em seu interior e na medida em que este se debilita o perfura e pode fazê-lo estalar”. ZAFFARONI, E. R., Estructura básica del derecho penal, p. 30-31.
29
um conjunto de formas organizadas através do qual uma sociedade responde a comportamentos de grupos sociais e até mesmo pessoas que se qualificam como desviante, perturbador, ameaçador, criminosos, indesejáveis , etc. Aos quais trata de induzir à conformidade com a ordem social.20
Cohen aponta ainda que "controle social é, por um lado, o aparelho de
Estado coercitivo, ou um elemento oculto em qualquer política social”21. Assim,
se manifesta a ação dos grupos dominantes para orientar a cooptação ou
neutralização das formas de contestação à ordem posta22.
Como salientam Nilo Batista e Zaffaroni, “todas as sociedades
contemporâneas que institucionalizam ou formalizam o poder (estado) selecionam
um reduzido número de pessoas que submetem à sua coação com o fim de impor-
lhes uma pena”23. Este controle social exercido pelo poder do estado de punir -
o jus puniendi - impregnado de ideologias de uma classe dominante, pretende
justificar seus meios e induzir a sujeição das classes dominadas, manifestando-se
como resultado da gestão de um conjunto de agências24 que constituem o
chamado sistema penal. Vale verificar a defnição de Zaffaroni e Pierangli a este
respeito:
Chamamos “sistema penal” ao controle social punitivo institucionalizado, que na prática abarca a partir de quando se detecta ou supõe detectar-se uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define até que se impõe e executa uma pena, pressupondo, a atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta atuação. Esta é a ideia geral de "sistema penal" em um sentido limitado, englobando a atividade do
20 COHEN, S., Visions of social control: crime, punishment and classification, p. 15. 21 Ibid., p. 16. 22“En suma, el control social y específicamente el control penal que se atribuye la posibilidad de ser una 'solucion al problema de la delincuencia' se despliega en el nuevo escenario de la economía de mercado, la competencia y el utilitarismo no solidario; su estrategia no es tanto para corregir los problemas del orden social referido, sino de su mantenimiento y reproducción; para ello utiliza como nuevas herramientas del control social, políticas sociales neutralizadoras e incapacitadoras de gran parte de la población, por acción u omisión, y el aumento de formas represivas por medio dela acción policial”. PEGORARO, J. S. Inseguridad y violencia en el marco del control social, p. 349. 23 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 43. 24 “A referência aos entes gestores da criminalização como agências tem como objetivo evitar outros substantivos mais valorados, equívocos ou inclusive pejorativos (tais como corporações, burocracias, instituições, etc.). Agência (do latim agens, particípio do verbo agere, fazer) é empregada aqui no sentido amplo e, dentro da possibilidade, neutro de entes ativos (que atuam)”. Ibid., p. 43.
30
legislador, do público, da polícia, dos juízes, promotores e funcionários e da execução penal.25
Neste sentido, o sistema penal divide-se em três segmentos: policial,
judicial e executivo. Segundo Nilo Batista, este compõe-se pela instituição
policial, instituição judiciária e instituição penitenciária26. Esse grupo de
instituições seria o responsável pela materialização do Direito Penal e, ainda,
seguindo o raciocínio do autor, essas instituições se revelam em três nítidos
estágios: a polícia como responsável pela investigação dos crimes, o promotor
representando a justiça pública, o juiz no papel de “aplicador da lei”, e no último
estágio, se condenado o réu a uma medida privativa de liberdade, a instituição
penitenciária27.
Zaffaroni e Pierangeli irão incluir também, como componentes do sistema
penal o Poder Legislativo e a sociedade. Os legisladores atuando na criação da
norma penal incriminadora e a sociedade com a faculdade de colocá-la em
funcionamento através da comunicação do fato criminoso28. Além da dimensão do
controle social institucionalizado, ou controle social formal29 - percebido no
sistema penal - há ainda o controle social difuso, ou controle social informal,
constituído por agentes como a família, a escola, e a mídia:
Os agentes de controle social informal tratam de condicionar o indivíduo, de discipliná-lo através de um largo e sutil processo (...) Quando as instancias informais do controle social fracassam, entram em funcionamento as instâncias formais, que atuam de modo coercitivo e impõem sanções qualitativamente distintas das sanções sociais: são sanções estigmatizantes que atribuem ao infrator um singular status (de desviados, perigoso ou delinquente).30
25 ZAFFARONI, E. R.; PIERANGELI, J. H., Manual de Direito Penal brasileiro, p. 69 et. seq. 26 BATISTA, N. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro, p. 25. 27 Em que pese normalmente esses grupos dividirem-se por etapas, não obedecem necessariamente uma ordem cronológica, nem são totalmente independentes entre si, eis que podem atuar e/ou interferir em diversos momentos uns nos outros. Assim, conforme explicam Zaffaroni e Pierangeli “o judicial pode controlar a execução, o executivo ter a seu cargo a custódia do preso durante o processo, o policial ocupar-se das transferências de presos condenados”. ZAFFARONI, E. R.; PIERANGELI, J. H., Manual de Direito Penal brasileiro, p. 70 et. seq. 28 Ibid., p. 71. 29 Nilo Batista e Zaffaroni optam pela distinção entre Controle Social Institucionalizado, onde está compreendido o sistema penal, e Controle Social Difuso, que se constitui a partir do conjunto de agências que exercem o controle social fora do aparato estatal. Por sua vez, adeptos da Escola Científica Moderna, adotam a distinção entre Controle Social Formal e Informal. MOLINA, A. G.; GOMES, L. F., Criminologia, 134. 30 MOLINA, A. G.; GOMES, L. F., Criminologia, p. 134.
31
Na lição de Zaffaroni, o Estado caracteriza-se por utilizar como meio a
"punição institucionalizada", assim entendida como "imposição de uma cota de
dor ou privação legalmente prevista, ainda que nem sempre demonstradas como
tais pela mesma lei, que pode assinalar-lhe fins diferentes"31. Dessa forma,
encontra-se o controle social punitivo institucionalizado como punitivo,
identificado no sistema penal composto por um conjunto de órgãos estatais
(agências policiais, judiciárias e penitenciárias), e um controle social punitivo
institucionalizado como não punitivo, por exemplo, através de políticas de
assistência, terapia, trabalho.
O sistema punitivo se notabiliza por uma seletividade estrutural32, sendo
exercido de modo profundamente desigual ao conferir privilégios aos detentores
de poder e deixar à mercê os excluídos. Conforme Nilo Batista e Zaffaroni:
Assim como a seleção criminalizante resulta da dinâmica de poder das agências, também a vitimização é um processo seletivo que corresponde à mesma fonte e reconhece uma etapa primária. Na sociedade há sempre pessoas que exercem poder mais ou menos arbitrário sobre as outras, seja de forma brutal ou violenta, seja de forma sutil e encoberta.33
Deste modo, evidencia-se uma latente disparidade entre o discurso que
autoriza o poder punitivo e a sua operacionalidade. Este descompasso estrutural
revela a tentativa de revestir a realidade do sistema penal de uma pseudo-
legitimidade, como verificaremos no próximo tópico.
2.1.2 Discurso e operacionalidade do sistema penal: (i)legalidade e (des)legitimidade
Falar de legitimidade do sistema penal é falar de algo ainda não realizado,
quiçá de uma utopia, uma promessa inalcançável. Zaffaroni, em sua obra clássica
Em Busca das Penas Perdidas - diálogo com outro clássico da literatura
criminológica, Penas Perdidas de Louk Hulsman -, faz uma detida abordagem
sobre a questão, afirmando que “por legitimidade do sistema penal entendemos a
31 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p. 15. 32 BARATA, A. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, p. 102. 33 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p 53.
32
característica outorgada por sua racionalidade”34. Ou seja, Hulsman, aponta que o
sistema penal almeja evidenciar-se como um exercício de poder racionalmente
planejado.
Assim, se o sistema penal operasse em consonância com o discurso
jurídico-penal (a Ciência Penal, ou também se poderia denominar Saber Penal),
seria provido de legitimidade. Neste sentido, verifica-se um descompasso abissal
entre a previsão abstrata do saber e o exercício material do poder na questão
criminal. Desta forma, a análise sobre a (des)legitimidade do sistema penal centra-
se, sobretudo, na tensão presente entre o binômio saber/poder, temática esta
considerada decisiva para Michel Foucault35.
A legitimidade do sistema penal estaria condicionada, na ótica de
Zaffaroni, à sua racionalidade, entendendo esta como a junção de duas
características: a) “coerência interna do discurso jurídico-penal”; b) “seu valor de
verdade quanto à nova operatividade social” 36.
A coerência interna, historicamente estaria comprometida pelo positivismo
jurídico-penal e pelo decisionismo37 que marcam o exercício do poder punitivo,
delineando o fracasso de uma pretensa legitimação racional do sistema penal.
Entretanto, a racionalidade do discurso jurídico-penal não estaria limitada
à sua coerência interna. Conforme leciona o jurista argentino, para que o discurso
jurídico-penal saia do texto legal (âmbito do “dever ser”) para a realidade concreta
(âmbito do “ser”), são necessários dois níveis de “verdade social” 38.
Primeiramente, um nível abstrato, segundo o qual o programa
criminalizante (criminalização primária) pode ser considerado um meio eficaz
para alcançar os fins propostos pelo sistema penal. Em segundo lugar, um nível
concreto, que deve exigir que os indivíduos convivessem em coletividade em
34 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p 16. 35 A temática do saber/poder é trabalhada por Foucault em diversas obras, estabelecendo a relação entre o surgimento de novos saberes e novas tecnologias de poder, manifestas no tratamento da loucura, no controle da sexualidade e na prisão. FOUCAULT, M., História da loucura na Idade Clássica; id., Vigiar e punir. 36 ZAFFARONI, E. R., op. cit., p. 17. 37 O Positivismo jurídico coloniza o saber penal, reduzindo-o a meras análises dogmáticas, dissociadas de uma compreensão crítica e transdisciplinar. Por sua vez, o decisionismo traduz-se no arbítrio reinante na aplicação e na execução da Lei Penal. 38 ZAFFARONI, E. R., op. cit., p 17.
33
consonância com a ordem jurídico-penal. Se o discurso jurídico-penal não atende
a estes dois níveis de verdade social, empiricamente revela-se como falácia.
Assim, o discurso jurídico-penal não pode encastelar-se no “dever ser”,
dissociando-se do “ser”, caminho que o conduz à irracionalidade. Hans Kelsen
salienta que a distinção entre “ser” e “dever ser” serve para diferenciar entre o
reino dos fatos, relacionado ao ser, e o reino das normas, relacionado ao dever-ser.
Nesta linha, o discurso jurídico-penal estaria restrito ao reino das normas, ao
passo que a realidade do sistema penal estaria compreendida no reino dos fatos39.
A irracionalidade do discurso jurídico-penal traz consigo a crise de
legitimidade do poder punitivo estatal, verificável, na periferia do capitalismo, de
modo ainda mais impactante do que nos países centrais. Neste particular, segundo
Mathiesen:
em diversos países ocidentais existem provavelmente grandes variações quanto ao nível de legitimação. (...) A crise de legitimidade se reflete no processo de tomada de decisão nos poderes legislativos e nos tribunais. Mais precisamente em ambas as instituições a crise de legitimidade se percebe como uma nova e maior necessidade de disciplina em determinados segmentos e grupos da população.40
O autor apresenta densa análise empírica sobre a deslegitimação do
sistema penal tanto na Europa Ocidental, como nos EUA. Por sua vez, Zaffaroni,
ao propor uma leitura da criminologia a partir da história da periferia colonial, que
denomina de Realismo Marginal41, destaca que a crise é ainda mais abissal na
América Latina, nossa região marginal.
Vale dizer que a noção de legitimidade não se confunde com a de
legalidade. No âmbito da legalidade, há uma conformidade do estado de coisas
com a ordem jurídica vigente. Por sua vez, no que se refere à legitimidade, requer-
se uma adequação do fato aos princípios e valores fundantes de determinada
sociedade.
39 KELSEN, H., Teoria Pura do Direito. 40 MATHIESEN, T., Juicio a la prision, p. 52 et. seq. 41“Desse modo, fui sentindo que também na dogmática jurídica havia algo que não encaixava. Não demorei muito para advertir que a chave estava na política criminológica e em sua estreita dependência da política geral, em perceber que a dogmática jurídico-penal é um imenso esforço de racionalização de uma programação irrealizável e que a criminologia tradicional ou etiológica é um discurso de poder de origem racista e sempre colonialista.” ZAFFARONI, E. R., Criminologia: aproximación desde una margen, p. 11.
34
No que tange à ponderação acerca da legalidade do sistema penal, esta
reside na avaliação sobre a sua conformidade com o ordenamento jurídico.42
Entretanto, não apenas a materialidade do exercício do poder no sistema penal,
como o próprio saber penal, afasta-se da observância do princípio da legalidade,
tanto em âmbito penal, como processual penal.
Na ótica de Zaffaroni, em sua operacionalidade o sistema penal não é
limitado pela legalidade:
o discurso jurídico-penal exclui de seus requisitos de legalidade o exercício do poder de sequestro e estigmatização que (...) fica a cargo de órgãos executivos, sem intervenção efetiva dos órgãos judiciais. A lei permite, deste modo, enormes esferas de exercício arbitrário do poder (...) que se exercem cotidiana e amplamente à margem de qualquer “legalidade” punitiva contemplada no discurso jurídico-penal.43
Em apenas uma análise superficial, logo nota-se que a realidade do sistema
penal não se encaixa aos moldes desse discurso. Como bem diz Zaffaroni
“achamo-nos, em verdade, frente a um discurso que se desarma ao mais leve
toque com a realidade”44. Nilo Batista também aborda a falsa operacionalidade do
sistema penal, referindo-se à seletividade, à repressividade e à estigmatização
como características nucleares do sistema penal, atingindo mais
significativamente determinadas pessoas integrantes de certos grupos sociais mais
vulneráveis ao poder punitivo. Há uma clara contradição entre as linhas
programáticas legais e o real funcionamento das instituições que as executam:
Assim, o sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas (...). O Sistema penal é também apresentado como justo, na medida em que buscaria prevenir o delito, restringindo sua intervenção aos limites da necessidade (...) quando de fato seu desempenho é repressivo, seja pela frustração de suas linhas preventivas, seja pela incapacidade de regular a intensidade das respostas penais, legais ou ilegais. Por fim, o sistema penal se apresenta comprometido com a proteção da dignidade humana (...) quando na verdade é estigmatizante, promovendo uma degradação na figura social de sua clientela.45
42 Neste âmbito, compreende-se o princípio da legalidade, tido como alicerce do Estado de Direito (ao mesmo tempo governo sub lege, ou seja, submetido às leis, e governo per leges, isto é, governo pautado por leis gerais e abstratas. FERRAJOLI, L., Direito e razão: teoria do garantismo penal, p. 789. 43 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p 22. 44 Ibid., p. 12. 45 BATISTA, N., Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro, p. 25 et. seq.
35
Não sem motivo, Loic Wacquant irá apontar que a prisão é uma instituição
fora da legalidade46. A arbitrariedade do exercício do poder punitivo reflete-se na
seletividade estrutural do sistema penal. Reforça-se assim a incerteza e a injustiça,
como elementos constitutivos do sistema penal, antípodas da certeza, e da busca
do ideal de justiça, que deveriam delinear um modelo penal racional - na
concepção de Luigi Ferrajoli, único modelo legítimo em um regime político
democrático47.
A própria realidade do sistema penitenciário, marcada por brutal violência
institucional, é evidência fática da ausência de legitimidade. Mortes, torturas,
corrupção, aniquilação de subjetividades, extorsões, prisões ilegais e demais
violações de direitos compõem um cenário sombrio onde a legalidade é relegada a
mera ficção.
2.2 Gênese e crise da prisão
Para traçar uma genealogia da prisão como dispositivo de punição, é
necessário ter por referência a obra de Michel Foucault. Seu objetivo, em Vigiar e
Punir é analisar a história do poder de punir através do surgimento da prisão, que
transfigura o modelo punitivo, dos suplícios do corpo no medievo, para a
introjeção de disciplina e controle no “arquipélago carcerário” do capitalismo
moderno.
Nas palavras de Juarez Cirino:
No estudo da prisão, a originalidade de FOUCAULT consiste em abandonar o critério tradicional dos efeitos negativos de repressão da criminalidade, definido pelas formas jurídicas e delimitado pelas consequências da aplicação da lei penal, para pesquisar os efeitos positivos da prisão, como tática política de dominação orientada pelo saber científico, que define a moderna tecnologia do poder de
46 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos. 47 Ferrajoli identifica que ao contrário da racionalidade e certeza preconizadas pelo modelo do direito penal mínimo, “o modelo do direito penal máximo, quer dizer, incondicionado e ilimitado, é o que se caracteriza, além de sua excessiva severidade, pela incerteza e imprevisibilidade das condenações e das penas (...)”. FERRAJOLI, L., Direito e razão: teoria do garantismo penal, p. 102.
36
punir, caracterizada pelo investimento do corpo por relações de poder, a matriz comum das ciências sociais contemporâneas.48
Durante a Idade Média, a despeito de sua existência, a prisão não consistia
em privação de liberdade como sanção penal49. O modelo penal do Ancien
Régime, alicerçado nas torturas, penas corporais e de morte, pressupunha o
cárcere com finalidade primordialmente de contenção e custódia do réu que
aguardava a execução da pena.
Carcer enim ad continendos homines non ad puniendos haberi debet (As prisões existem apenas para prender os homens e não para puni-los) (Justinian. Digest, 48.19.8). Este é o princípio dominante por toda a Idade Média e o início da Idade Moderna. Até o século XVIII, as grades foram simplesmente o lugar de detenção antes do julgamento, onde os réus quase sempre perdiam meses ou anos até que o caso chegasse ao fim.50
Na passagem do século XVI para o XVII, no bojo da Reforma Protestante,
ocorre o que o criminólogo italiano Dario Melossi descreve como um encontro
entre a pena eclesiástica (embasada na penitência e isolamento em celas) e outra
invenção: a manufatura. Segundo o autor, o desenvolvimento da forma originária
dos cárceres (casas de trabalho e casas de correção) teria ocorrido
simultaneamente ao início do desenvolvimento de formas protocapitalistas e do
protestantismo51.
Nesse contexto, são concebidas a prisão de Estado e a prisão eclesiástica.
Na primeira, eram recolhidos os inimigos que tivessem cometido delitos de
traição, ou os adversários políticos52. A prisão eclesiástica, por sua vez, regulada
pelo Direito Penal Canônico, destinava-se aos clérigos desviantes, utilizando o
isolamento como penitência e meditação para a expiação do pecado53.
48 CIRINO DOS SANTOS, J., 30 anos de Vigiar e Punir. 49 BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 8. 50 KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 88. 51 MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica, p. 52 et. seq. 52 “A prisão de Estado apresentava-se sob duas modalidades: a prisão-custódia, onde ficavam os réus à espera da execução da verdadeira pena a ser aplicada, ou a detenção perpétua ou temporal (até receberam o perdão real). Os exemplos mais conhecidos são a ‘Torre de Londres’, a ‘Bastilha de Paris’, ‘Los Plomos’, etc”. BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 9. 53 Segundo Melossi, o regime penitenciário canônico compreendia diversas modalidades de execução de pena: “à privação da liberdade se acrescentaram sofrimentos de ordem física, outras vezes o isolamento celular (...) e sobretudo a obrigação do silêncio”. Segundo ele, a pena do cárcere canônico era um isolamento pelo tempo necessário à purificação e arrependimento, à correção diante de Deus. MELOSSI, D; PAVARINI, M., op. cit., p. 24 et. seq. A este respeito, ver
37
Com a transição do medievo para a modernidade, a privação de liberdade
observará a transformação da prisão-custódia (meio) para a prisão-pena (fim). Por
esta perspectiva, Foucault, assevera que a prisão é menos recente do que a sua
formalização jurídica. A “forma-prisão” preexiste à sua previsão nas leis penais. A
constituição dessa engrenagem voltada à produção de indivíduos dóceis e úteis,
através do controle de seu corpo e da extração de suas forças, criou a prisão antes
de sua existência legal enquanto punição54.
O controle das ilegalidades através do cárcere data da passagem do século
XVIII ao século XIX, mas sua experiência enquanto mecanismo de coerção é
pretérita, baseando-se em instituições austeras que a originaram. Foucault destaca
a união da técnica de tratamento dos leprosos com a de tratamento da peste como
fato histórico imprescindível neste processo, tendo por base a medicina social e
seus efeitos sobre “as disciplinas dos corpos”55. Sobretudo no século XVII, em
França, foram criadas inúmeras casas de internamento, que abrigavam os
considerados insanos e os marginalizados, deixando um legado retomado no
limiar da modernidade como gênese da prisão. Neste particular, Gabriel Anitua
atenta que na realidade o leproso é apenas:
un tipo ideal de la gran mayoría de población marginada consitituida por otros enfermo y en particular por discapacitados, locos, mendigos, y por los acusados de cometer delitos o de practicar otra fe o simplemente por ser un colonizado, o parte de un género, el femenino, que debía construirse también para excluirlo y dominarlo.56
Na segunda metade do século XVI já havia se iniciado a criação e
construção de prisões organizadas, para a correção dos apenados, visando à
reforma dos delinquentes por meio do trabalho e da disciplina. Surgem na
Inglaterra as houses of correction ou bridwells, e sob similares orientações as
chamadas workhouses.
Entretanto, é com o século XVIII que eclode a grande crise da economia
dos castigos do Antigo Regime, abrindo a necessidade de uma nova forma de
também BITENCOURT, C. R., op. cit., p. 12: “A prisão canônica era mais humana e mais suave que os suplícios e as mutilações do direito laico. O direito canônico serviu consideravelmente ao surgimento da prisão moderna, especialmente no que se refere à reforma do infrator”. 54 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 195. 55 Id., História da loucura na Idade Clássica, v. 1 e 2. 56 ANITUA, G., Castigo, cárceles y controles, p. 29.
38
controle social, partindo da premissa discursiva de que o castigo deve ter a
“humanidade como medida”57, passando a prisão a adquirir o status de principal
forma de punição.
Foucault afirma que se fosse necessário delimitar uma data na qual se
completa a formação do sistema carcerário, não seria com o Código Penal Francês
de 1810, tampouco em 1844, com a lei que estabelece o isolamento celular. O
momentum crucial seria 22 de janeiro de 1840, com a abertura oficial de Mettray,
uma importante colônia penal francesa para jovens58.
Mettray seria o símbolo do poder disciplinar em sua dimensão mais
intensa, abarcando distintas tecnologias coercitivas do comportamento. Sua
organização interna apresentava cinco modelos de referência: família, exército,
oficina, escola, e por fim, o modelo judiciário. A mínima desobediência era
castigada. Considerava-se o isolamento como a melhor sanção para atuar sobre a
moral das crianças. O auge do controle nesta instituição parapenal encontrava-se
no apelo religioso para a disciplina, com a inscrição nas celas: “Deus o vê”.
Em meados do século XVIII tem início a reforma humanitária do sistema
penal. O modelo penal medieval era marcado por penas cruéis e draconianas,
julgamentos arbitrários, rituais públicos de imposição de sofrimento, sem dispor
de qualquer limite ao poder punitivo.
A violência do sistema penal na Europa gerava por um lado temor e
obediência à parcela da sociedade, por outro, passou a alimentar levantes e
rebeliões populares. O sistema punitivo passa, então, a ser objeto de crítica de
diversos pensadores, filósofos e juristas.
O Iluminismo e as correntes humanitárias em ascensão atingem seu ápice
com a Revolução Francesa e a derrocada do Absolutismo. No bojo de sua pretensa
preocupação com a razão, o progresso e a humanidade, os iluministas passam a
conceber uma reforma do sistema penal, estabelecendo limites ao poder punitivo
57 Ibid. 58 O autor destaca especialmente o episódio no qual uma criança ex-interna da colônia, ao sair havia declarado “que pena ter que deixar tão cedo a colônia”. Outro egresso do estabelecimento teria elogiado a nova política punitiva: “Preferiríamos as pancadas, mas a cela é melhor para nós”. FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 243.
39
estatal em proteção ao ser humano59. Dentre os principais ideólogos reformadores,
sobressaem-se Cesare Beccaria, John Howard e Jeremy Bentham60.
2.2.1 Beccaria e o iluminismo jurídico-penal
Cesare Bonessana (1738-1794), o Marquês de Beccaria, filósofo
contratualista imbuído dos princípios apregoados por Rousseau e Montesquieu,
publicou em 1764 a obra Dei Delitti e Delle Pene, que se tornou o símbolo da
reação liberal ao tirânico modelo penal então vigente. É um dos principais
defensores da pena de prisão como humanização do sistema penal61.
A principal contribuição da obra de Beccaria foi a utilização de uma
linguagem clara e direcionada ao grande público, permitindo a difusão dos ideais
da reforma rechaçados por juristas conservadores, pela magistratura e pela Igreja:
os dolorosos gemidos do fraco, sacrificado à ignorância cruel e aos opulentos covardes; os tormentos atrozes que a barbárie inflige por crimes sem provas, ou por delitos quiméricos; o aspecto abominável dos xadrezes e das masmorras, cujo horror é ainda aumentado pelo suplício mais insuportável para os infelizes, a incerteza; tantos métodos odiosos, espalhados por toda parte, deveriam ter despertado a atenção dos filósofos, essa espécie de magistrados que dirigem as opiniões humanas.62 Beccaria, principal expoente da Escola Clássica, traçou os delineamentos
da defesa social, adotando como lema o pensamento "é melhor prevenir o crime
59 Nesse contexto, apregoa-se a humanização das penas, dando ensejo, paradoxalmente, à implantação da guilhotina como pena de morte não cruel. BECCARIA, C., Dos delitos e das penas. 60 Dentre os ideólogos da reforma penal no século XVIII, Foucault ainda faz menção a Servan, Dupaty, Lacretelle, Duport, Pastoret, Target, Bergasse; os redatores dos Cahiers e os Constituintes. FOUCAULT, M., op. cit., p. 64. Anitua acrescenta ainda outros inúmeros representantes do penalismo ilustrado ou clássico, em França (Marat, Babeuf, Turgot, Gabriel Bonnot, Vermeil, Lois de Saint-Fargeau), na Itália (Pellegrino Rossi, di Natale, Antonio Genovesi, Filangieri, Romagnosi e Carmignani), na Inglaterra (William Blackstone, Samuel Romilly, William Eden, Godwin, além de Adam Smith, Thomas Paine e Edmund Burke), Estados Unidos (Edward Livingston), Alemanha (Karl Hommel, Karl Grolmann, além de Kant e Feuerbach), Áustria (von Sonnenfels), Espanha (Manuel de Lardizábal y Uribe, Pablo de Olavide, Foronda e Jovellanos) e Portugal (Mello Freire, Pedro e Alexandre Verri). ANITUA, G., Historia dos pensamentos criminológicos, p. 164 passim. 61 Seu legado marca o surgimento da Escola Clássica, da Criminologia e do Direito Penal. É um dos principais defensores da pena de prisão como humanização do sistema penal. Muitos princípios limitadores do poder punitivo preconizados por Beccaria foram incorporados pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1791. Cf. ANITUA, G., ibid., p. 164; e BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 32. 62 BECCARIA, C., Dos delitos e das penas, p. 24.
40
do que castigá-lo". Destacou-se como um dos precursores na defesa dos direitos
humanos, antes mesmo da publicação da Declaração de Direitos do Homem e do
Cidadão. Assim conclui Dos delitos e das penas:
De tudo o que acaba de ser exposto pode deduzir-se um teorema geral utilíssimo, mas pouco conforme ao uso, que é o legislador ordinário das nações. E que para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser essencialmente pública, pronta e necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei.63 Sem dúvida, Beccaria, representou um divisor de águas, constituindo-se
referência necessária nos estudos das ciências criminais. Como preleciona
Zaffaroni:
consideramo-lo um claro expoente do pensamento iluminista e sua importância, mais que filosófica e teórica, consideramo-la política, tendo sido decisiva, esse ponto de vista, como autor da pedra angular de todas as reformas penais que permitiram o posterior desenvolvimento de nossa disciplina na forma que apresenta contemporaneamente.64
Seu legado demarcou a emergência do Direito Penal Liberal e da
Criminologia Clássica, resultando na reforma humanitária que arrefeceu a
repressão penal do Antigo Regime, caracterizada pelos castigos físicos mais
atrozes e pela imposição da pena de morte.
2.2.2 Howard e a reforma penitenciária
John Howard (1726-1790), filantropo inglês, xerife do condado de
Bedfordshire, foi o principal representante do movimento iluminista na Inglaterra,
tendo importante papel no processo de humanização e racionalização das penas,
preocupando-se com as péssimas condições das prisões inglesas65. Em 1777
escreve o livro The State of Prisons in England and Wales, com um impactante
relato da realidade prisional da época. Muitos consideram Howard como o pai da
Ciência Penitenciária.
63 Ibid., p. 45. 64 ZAFFARONI, E. R.; PIERANGELI, J. H., Manual de Direito Penal brasileiro, p. 88. 65 BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 40.
41
Defendia uma atitude filantrópica com relação ao cárcere, inspirando uma
corrente penitenciarista preocupada em construir estabelecimentos apropriados
para o cumprimento da pena privativa de liberdade. Embora não tenha conseguido
grandes transformações insistiu na necessidade de se construírem
estabelecimentos prisionais adequados, proporcionando um regime higiênico,
alimentar e de assistência médica que permitisse cobrir as necessidades
elementares na prisão. Para Melossi e Pavarini:
essa reação, contudo, não levará a um retorno das formas punitivas pré-carcerárias, mas sim a um endurecimento e a uma intensificação da função punitiva do próprio cárcere. Por outro lado, ao prescindir da racionalização e da introdução de uma maior decência e dignidade que o movimento iluminista impôs à reforma carcerária, esse processo estabelece uma continuidade com a situação dominante no século XVIII.66
O autor acreditava que o trabalho obrigatório, inclusive penoso, serviria de
meio adequado para a regeneração moral do delinquente. Defendia que a religião
seria o meio mais eficiente para obter a transformação do preso, servindo o
isolamento como suposto instrumento para propiciar reflexão e arrependimento, e,
ainda, como forma de combate à promiscuidade.
Deve-se observar que Howard acabou, inclusive, estimulando algumas
reformas legislativas, lutando pela eliminação do direito de carceragem, que era,
justamente, uma importância que os encarcerados deviam pagar a título de aluguel
aos donos dos locais de encarceramento. Na verdade, foi justamente com Howard
que nasceu o penitenciarismo67, marcando sua obra o início da luta interminável
para alcançar a suposta “humanização” das prisões.
2.2.3 O panóptico de Bentham
Jeremy Bentham (1748-1832) foi outro importante pensador e reformador
inglês. Exerceu grande influência na arquitetura penitenciária com o impacto de
66 MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica, p. 69. 67 NEUMAN, E., Evolución de la pena privativa de libertad y regímenes carcelarios, p. 73.
42
sua famosa obra The Panopticon, publicada em 1780, na qual, em suas próprias
palavras, estuda “racionalmente” o sistema penitenciário68.
Bentham preconiza uma arquitetura prisional na qual um observador
central poderia vigiar todos os locais onde houvesse presos, projeto este utilizado
na maioria das prisões na primeira metade do século XIX. O panóptico é ao
mesmo tempo um projeto arquitetônico e a materialização da ideologia de
controle e vigilância69. O autor considerava que o fim principal da pena era,
realmente, prevenir delitos:
O negócio passado não é mais problema, mas o futuro é infinito: o delito passado não afeta mais que a um individuo, mas os delitos futuros podem afetar a todos. Em muitos casos é impossível remediar o mal cometido, mas sempre se pode tirar a vontade de fazer mal, porque, por maior que seja o proveito de um delito, sempre pode ser maior o mal da pena.70
Na ótica de Melossi e Pavarini, o projeto benthaminiano, a despeito do fato
de não ter sido verdadeiramente implementado, possui influência decisiva nos
sistemas prisionais:
o cárcere se apresenta já numa fase intermediária em que a vocação produtivista – própria das primeiras experiências e depois retomada pelo Iluminismo – começa a se sobrepor ao objetivo intimidatório e de puro controle (...). O Panopticon de Bentham é uma tentativa ingênua e nunca concretizada de coordenar um exasperante sistema punitivo e de controle com a eficiência produtiva, tentativa que já revela a decidida tendência dos anos seguintes de privilegiar o primeiro aspecto.71
O panoptismo, na concepção crítica de Foucault, mais do que uma mera
arquitetura prisional, representava uma tecnologia de poder típica da Sociedade
Disciplinar. Seu advento, no início do século XIX, coincide com a disseminação
68 BENTHAM, J., O panóptico. 69 “O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens; um aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder, descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies onde este se exerça”. Cf. FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 169. 70 BENTHAM, J., Principios de la legislación y jurisprudência, p. 30. 71 MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica, p. 70.
43
sistemática de dispositivos disciplinares (na escola, na fábrica e outras
instituições) que galgavam vigilância e controle social cada vez mais intensos.72
O panóptico seria uma verdadeira máquina arquitetônica que serviria de
maneira perfeita à função de criar e manter uma relação de poder,
independentemente de quem o exercesse, pois aumentaria substancialmente a
eficácia no exercício do controle, evitando que os vigiados pudessem fugir do
olhar dominador e vigilante73.
Em verdade, o projeto panóptico não chegou a desenvolver-se plenamente
como imaginado por Bentham. Entretanto, tais ideias revelam-se em alguma
medida ainda atuais, tanto do ponto de vista da doutrina penitenciária, como do
plano arquitetônico.
2.2.4 Fracasso dos movimentos de reforma e crise do projeto ressocializador
Contrariando a leitura comumente observada acerca do movimento de
reforma prisional, Foucault considera, em síntese, que seu objetivo primordial é:
fazer da punição e repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva à sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir com uma severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir.74
Desta forma, o contexto no qual se insere a reforma não simboliza o
advento de uma nova sensibilidade e respeito pela humanidade dos condenados,
mas de uma nova forma de controle das ilegalidades. Esta transição aponta que o
direito de punir deslocou-se da vingança do soberano para a defesa da sociedade.
Entretanto, a arte de punir foi aprimorada, tornando-se mais temível e eficiente.
72 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 209. O tema do Panóptico - ao mesmo tempo vigilância e observação, segurança e saber, individualização e totalização, isolamento e transparência - encontrou na prisão seu local privilegiado de realização. Se é verdade que os processos panópticos, como formas concretas de exercício do poder, tiveram, pelo menos em estado disperso, larga difusão, foi só nas instituições penitenciárias que a utopia de Bentham pôde, num bloco, tomar forma material. 73 Ibid., p.169. 74 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 70.
44
Esta nova economia das ilegalidades se estrutura com o desenvolvimento
do modelo econômico capitalista75. Para o capitalismo em ascensão, a imposição
da lógica do trabalho no seio da sociedade europeia irá valer-se de instituições
disciplinares, com o condão de gerar “corpos obedientes e dóceis”76.
Tal fato revela a extrema solidez da prisão, “essa pequena invenção
desacreditada desde o nascimento”77. Se tivesse sido criada apenas como um
dispositivo para eliminar delinquentes, teria sido mais facilmente confrontada e
substituída por outro mecanismo de controle. No entanto, o fato de ser entrelaçada
a vários dispositivos e estratégias de controle, gera grande dificuldade para quem
queira superá-la ou transformá-la78. Neste sentido, Foucault sustenta que:
a “reforma” da prisão é mais ou menos contemporânea da própria prisão. Ela é como que seu programa. A prisão se encontrou desde o início engajada numa série de mecanismos de acompanhamento que aparentemente devem corrigi-la, mas que parecem fazer parte de seu próprio funcionamento, de tal modo que têm estado ligados a sua existência em todo o decorrer de sua história.79
Precisamente, situa que “a crítica da prisão e de seus métodos aparece
muito cedo, nesses mesmos anos de 1820-1845; ela, aliás se fixa num certo
número de formulações que – a não ser pelos números – se repetem até hoje sem
quase nenhuma mudança”80.
A prisão não pode ser compreendida como uma instituição inerte, que seria
submetida a movimentos de reforma esporadicamente. Em verdade, a prisão
sempre esteve acompanhada de vasto conjunto de projetos, experiências,
discursos teóricos, testemunhos, inquéritos e remanejamentos.
75 Ibid., p. 74. Ver também KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social. 76 Segundo Foucault, seriam elas a prisão, como também a escola, o exército, o manicômio, o hospital, o convento, a oficina. Cada qual cumprindo a função estratégica de introjetar a disciplinarização dos corpos. FOUCAULT, M., op. cit., p. 118. Para Goffman, são as denominadas “instituições totais”, que, segundo o autor, pode ser definida como “um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada”. GOFFMAN, E., Manicômios, prisões e conventos, p. 13. 77 FOUCAULT, M., op. cit., p. 252 78 Ibid., p. 252: “quando se pretende modificar o regime de encarceramento, as dificuldades não vêm só da instituição judiciária; o que resiste não é a prisão-sanção penal, mas a prisão com todas as suas determinações, ligações e efeitos extrajudiciários; é a prisão como recurso de recuperação na rede geral das disciplinas e das vigilâncias; a prisão, tal como funciona num regime panoptico”. 79 Ibid., p. 197. 80 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 221.
45
Os sucessivos movimentos de reforma inócuos levam Foucault a concluir
que “conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa
quando não inútil. E, entretanto, não vemos o que pôr em seu lugar. Ela é a
detestável solução de que não se pode abrir mão”81.
Desta forma, percebe-se que o histórico quadro de crise permanente da
prisão, ao invés de servir à sua superação enquanto modelo punitivo tem atuado
como leitmotiv para sua perpetuação com estratégia de controle social símbolo da
sociedade capitalista.
2.3 Modelos de sistema penitenciário
A passagem dos suplícios, com seus rituais de sofrimento para a pena de
prisão, oculta nos cárceres sombrios, constitui uma transfiguração da arte de punir.
A conformação do modelo penal moderno, com base precípua na pena de prisão
vai delineando um aparelho disciplinar exaustivo. Busca controlar o indivíduo na
sua totalidade. Seu comportamento cotidiano, sua aptidão para o trabalho, sua
atitude moral, sua distribuição no espaço, seu tempo e suas implicações
judiciárias.
Foucault assevera que os princípios fundamentais da prisão residem em
“sete máximas universais da boa condição penitenciária”82, inalteradas há quase
dois séculos:
a) Princípio da Correção: a prisão deve ter por função essencial a transformação
do comportamento do indivíduo;
b) Princípio da Classificação: Os detentos devem ser isolados e classificados de
acordo com a gravidade de seu delito, além de repartidos segundo a idade,
técnicas de correção e fases do cumprimento da pena;
c) Princípio da Modulação das Penas: O cumprimento das penas deve poder ser
modificado conforme a individualidade do condenado, os resultados obtidos, o
seu comportamento carcerário;
d) Princípio do Trabalho como obrigação e como direito: O trabalho penal deve
ser instrumento crucial para a socialização progressiva do preso; 81 Ibid., p. 196. 82 Ibid., p. 224.
46
e) Princípio da Educação Penitenciária: A educação do preso deve ser ao mesmo
uma medida indispensável para a sociedade e uma obrigação para o detento;
f) Princípio do Controle Técnico da Detenção: A execução penal deve ser
controlada por pessoal especializado que possua “capacidades morais e técnicas”
de garantir a boa formação dos internos;
g) Princípio das Instituições Anexas: O encarceramento deve ser associado a
medidas de controle e assistência até garantir a readaptação definitiva do preso.
Tais princípios acompanham a prisão como componentes de uma reforma
sempre inalcançada e fracassada. Como expectativa de superação de suas
vicissitudes, com o tempo, estratégias de disciplina e controle, modelos de gestão
do cárcere, vão sendo implementados.
Embora a prisão seja um fenômeno surgido na Europa, os primeiros
sistemas penitenciários são gestados nos Estados Unidos, com claras influências
dos postulados de Beccaria, Howard e Bentham. Antecedentes importantes
haviam surgido em estabelecimentos como nas Rasp-huis de Amsterdan, nos
Bridwells e workhouses na Inglaterra, e outros estabelecimentos prisionais na
Alemanha e na Suíça83.
Dessa forma, ao longo desse período de institucionalização da pena
privativa de liberdade, surgem os primeiros Sistemas Penitenciários, dentre os
quais analisaremos os que mais se destacaram: os sistemas filadélfico, auburniano
e os progressivos84.
2.3.1 Sistema filadélfico (solitary system)
O sistema pensilvânico ou filadélfico, também conhecido como sistema
belga ou celular, foi inaugurado em 1790 na prisão de Walnut Street, construída
em 1776, e, em seguida, implantado nas prisões de Pittsburgh e Cherry Hill. Os
principais precursores foram Benjamin Franklin e Willian Bradford, influentes
83 MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica, p. 33 et. seq. BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 57. KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 61 passim. 84 Também merecem destaque o Sistema de Elmira, Sistema de Montesinos e o Sistema Borstal. Ver LEAL, C. B., Execução Penal na América Latina à luz dos Direitos Humanos, p. 76-80; GRECO, R., Direitos Humanos, sistema prisional e alternativas à privação da liberdade, p. 173. Para o Sistema de Montesinos ver BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 88.
47
integrantes de sociedades Quakers, vertente do protestantismo que se instala nos
Estados Unidos.
Os Quakers e membros das classes dominantes do estado da Filadélfia,
representados pela Philadelphia Society for Alleviating the Miseries of Public
Prison, fizeram com que as autoridades iniciassem a organização de uma
instituição na qual o isolamento em uma cela, a oração e a abstinência total de
bebidas alcoólicas seriam meios adequados para “salvar tantas criaturas
perdidas”85.
Baseado no isolamento celular absoluto (solitary system), este sistema é
influenciado por convicções religiosas, pelo Direito Canônico, bem como os
ideais de Beccaria e Howard, para estabelecer uma finalidade e forma de execução
penal. Tinha por objetivo reduzir a violência, a promiscuidade e a corrupção no
cárcere.
O preso deveria permanecer isolado em uma cela, autorizado tão-somente
a passeios inconstantes no pátio da prisão. Não havia direito ao trabalho, à
educação ou ao recebimento de visitas, sendo vedado todo e qualquer contato com
o meio exterior, cabendo ao preso permanecer em silêncio, meditação e oração.
Incentivava-se a leitura da Bíblia, almejando a expiação da culpa e a correção dos
condenados, para que lograssem o perdão de sua conduta reprovável perante a
sociedade e o Estado. Sobre os malefícios do sistema filadélfico, Bittencourt
afirma que:
já não se trataria de um sistema penitenciário criado para melhorar as prisões e conseguir a recuperação do delinquente, mas de um eficiente instrumento de dominação servindo, por sua vez, como modelo para outro tipo de relações sociais.86
Nas palavras de Foucault, “no isolamento absoluto - como em Filadélfia -
não se pede a requalificação do criminoso ao exercício de uma lei comum, mas a
relação do indivíduo com sua própria consciência e com aquilo que pode iluminá-
lo de dentro”87.
85 MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica, p. 169. 86 BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 61. 87 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 201.
48
A despeito do discurso de que representaria uma salvaguarda à integridade
física do interno, o isolamento celular se constituía objetivamente como um
instrumento de tortura, incapaz de contribuir para a reabilitação do criminoso, tão
somente conferindo à pena um caráter retributivo e expiatório. Seus efeitos,
segundo von Hentig permitiam inferir que
depois da dureza dos trabalhos forçados declarou-se, sem horror, como novo procedimento coativo a forçosa ociosidade. A tortura se refina e desaparece aos olhos do mundo, mas continua sendo uma sevícia insuportável, embora ninguém toque no apenado. O repouso e a ordem são os estados iniciais da desolação e da morte.88
A combinação de isolamento e silêncio na execução penal foi duramente
criticada, alegando-se que a prática da separação absoluta e da proibição de
comunicação entre os presos ocasionava insanidade. Até mesmo representantes do
positivismo criminológico denunciaram as violações à dignidade humana
advindas do isolamento celular.
A prisão celular é desumana porque elimina ou atrofia o instinto social, já fortemente atrofiado nos criminosos e porque torna inevitável entre os presos a loucura ou a extenuação (por onanismo, por insuficiência de movimento, de ar, etc.)... A Psiquiatria tem notado, igualmente, uma forma especial de alienação que chama loucura penitenciária, assim como a clínica médica conhece a tuberculose das prisões. (...) O sistema celular é, além disso, ineficaz porque aquele isolamento moral, propriamente, que é um dos seus fins principais, não pode ser alcançado. (...) Por último, o sistema celular é muito caro para ser mantido.89
No entanto, apesar das críticas, o referido sistema foi implementado nos
Estados Unidos, e, com algumas modificações, também em diversos países da
Europa, durante o século XIX: Inglaterra em 1835, Bélgica em 1838, Suécia em
1840, Dinamarca em 1846, Noruega e Holanda em 1851, além da Rússia, também
na segunda metade do século XIX.
2.3.2 Sistema auburniano (silent system)
O sistema penitenciário auburniano tem origem com a construção da
penitenciária na cidade de Auburn, Nova Iorque, em 1818, na gestão do diretor 88 HENTIG, H. V., La pena, p. 225. 89 FERRI, E., Sociologia criminal, p. 317 et. seq.
49
Elam Lynds. Constitui-se a partir da necessidade de superação das vicissitudes do
regime filadélfico. Menos gravoso que o sistema antecessor, permitia o trabalho
na prisão, inicialmente nas celas, e posteriormente em espaços comuns da unidade
prisional.
Cezar R. Bitencourt aponta que este sistema deixou de lado o isolamento
absoluto do preso por volta do ano de 1824, “a partir de então se estendeu a
política de permitir o trabalho em comum dos reclusos, sob absoluto silêncio e
confinamento solitário durante a noite”90. Tal exigência de silêncio entre os
condenados fez com que fosse denominado de silent system. Não era permitida
sequer a comunicação entre os presos, com o objetivo de alcançar o silêncio
absoluto.
Para Melossi e Pavarini, a imposição da atividade laboral na prisão
cumpriria sempre a função de formar um operário disciplinado e subordinado ao
poder econômico industrial91. Por sua vez, Foucault, ao analisar o sistema
penitenciário de Auburn, afirma que se trata de:
Referência clara tomada ao modelo monástico; referência também tomada à disciplina de oficina. A prisão deve ser um microcosmo de uma sociedade perfeita onde os indivíduos estão isolados em sua existência moral, mas onde sua reunião se efetua num enquadramento hierárquico estrito, sem relacionamento lateral, só se podendo fazer comunicação no sentido vertical. Vantagem do sistema auburniano segundo seus partidários: é uma repetição da própria sociedade.92
O principal traço distintivo entre o sistema filadélfico e o sistema
auburniano, consistia no isolamento. No primeiro, o preso era mantido segregado
diuturnamente, no segundo, era possível o trabalho coletivo por algumas horas,
com o isolamento celular noturno.
O modelo do solitary system objetiva, com a segregação, sobretudo ‘evitar
a contaminação moral entre presos e promover a reflexão e o arrependimento’,
restando como preocupação menor a obtenção de lucro através do trabalho
prisional. Por sua vez, o modelo auburniano, embora mantivesse a preocupação
90 BITENCOURT, C. R., Tratado de Direito Penal, p. 95. 91 MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica, p. 175. 92 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 200.
50
com a correção dos condenados, aparentemente atribuía prevalência à necessidade
de assegurar o lucro através das atividades laborativas no cárcere93.
Manoel Pedro Pimentel aponta as falhas que levaram ao fracasso do
sistema auburniano:
O ponto vulnerável desse sistema era a regra desumana do silêncio. Teria origem nessa regra o costume dos presos se comunicarem com as mãos, formando uma espécie de alfabeto, prática que até hoje se observa nas prisões de segurança máxima, onde a disciplina é mais rígida. (...). Falhava também o sistema pela proibição de visitas, mesmo dos familiares, com a abolição do lazer e dos exercícios físicos, bem como uma notória indiferença quanto à instrução e ao aprendizado ministrado aos presos.94
Segundo von Hentig, “apesar de utilizar métodos disciplinares draconianos
e cruéis, era espantosa a desordem na prisão de San Quentin, local em que se
desenvolveu o silent system”95. Trata-se de um indicador que permite colocar em
questão a eficiência dos procedimentos disciplinares para assegurar a ordem do
cárcere e a “recuperação dos condenados”.
2.3.3 Sistemas progressivos (mark system)
O sistema progressivo emerge com a consolidação do modelo penal
moderno e a difusão das ideologias “re” na administração penitenciária, com o
foco na suposta ressocialização do condenado. Bitencourt considera que o apogeu
da pena privativa de liberdade coincide com o abandono dos regimes celular e
auburniano, e a adoção do regime progressivo96.
Sua origem é inglesa, prevalecendo o registro de que teria sido
inicialmente desenvolvido por Alexander Maconochie, Capitão da Marinha Real,
93 A respeito da distinção entre os modelos filadélfico e auburniano, Foucault esclarece: “Nessa cela fechada, sepulcro provisório, facilmente crescem os mitos da ressurreição. Depois da noite e do silêncio, a vida regenerada. Auburn era a própria vida renovada em seus vigores essenciais. Cherry Hill, a vida aniquilada e recomeçada. (...) Na oposição entre esses dois modelos, veio se fixar toda uma série de conflitos diferentes: religioso (deve a conversão ser a peça principal da correção?), médico (o isolamento completo enlouquece?), económico (onde está o menor custo?), arquitetural e administrativo (qual é a forma que garante a melhor vigilância?)”. Ibid., p. 201. 94 PIMENTEL, M. P., O crime e a pena na atualidade, p. 138. 95 HENTIG, H. V., La pena, p. 229. 96 Bitencourt identifica o apogeu da pena privativa de liberdade no período que coincide com o abandono dos regimes celular e auburniano, e adoção do regime progressivo. BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 82.
51
em 1840, na Ilha Norfolk, na Austrália, e após na Inglaterra. A partir do final do
século XIX disseminou-se por vários países da Europa Ocidental. No entanto, há
quem defenda que seu surgimento é tributário do Coronel Montesinos e Molina,
administrador do presídio de Valência em 183497.
A grande distinção para com os sistemas filadélfico e auburniano residia
no fato de que estes centravam-se na disciplina e correção do preso em uma
perspectiva intra-muros. Por sua vez, os sistemas progressivos buscam obter o
bom comportamento do apenado como condição para seu regresso ao convívio
social. Baseava-se, sobretudo, em um controle moralizante da execução penal,
calcado no senso de responsabilidade do apenado.
a) Sistema Progressivo Inglês
A essência do sistema progressivo inglês de Maconochie, também
denominado mark system, residia na avaliação do comportamento e
aproveitamento do preso, verificados pela boa conduta e pelo trabalho. Conforme
atendesse às condições estabelecidas, o preso recebia um determinado número de
marcas ou vales. Ao acumular um número proporcional, variável de acordo com a
gravidade do crime cometido, o preso passava a uma etapa menos gravosa da
execução penal.
O sistema pressupunha três etapas: primeiramente, mediante isolamento
celular durante dia e noite, com o intuito de permitir a correção do condenado
através da reflexão sobre o mal causado decorrente de seu delito. A segunda etapa
consistia nos moldes do sistema auburniano, com trabalho diurno, em silêncio, e
isolamento noturno. Ao final, surgia uma nova figura, a liberdade condicional, que
assegurava ao condenado cumprir o restante da pena em liberdade, tendo que
observar determinadas restrições. Passado o período de prova, se não houvesse
revogação, o apenado estaria livre para o convívio social em definitivo98.
b) Sistema Progressivo Irlandês
97 Ibid., p. 83. 98 PIMENTEL, M. P., O crime e a pena na atualidade, p. 140.
52
O sistema progressivo assumiu distintas vertentes. O modelo inglês, em
que pese ter sido considerado bem sucedido, apresentava esforços ainda
incipientes. Em 1854, Water Crofton introduz o sistema progressivo nas prisões da
Irlanda. Busca aprimorar o sistema inglês, estabelecendo uma nova etapa,
chamada de prisão intermediária. Tratava-se de um momento da execução penal,
após o isolamento e anterior à liberdade condicional, com o objetivo de preparar o
apenado para a “vida digna” extra-muros.
Desta forma, o sistema irlandês era composto de quatro etapas: 1ª)
Isolamento celular diurno e noturno; 2ª) Isolamento celular noturno e trabalho
diurno em coletivo; 3ª) Período intermediário; 4ª) Liberdade condicional. Como
leciona Roberto Lyra:
o sistema irlandês de Water Crofton concilia os anteriores, baseando-se no rigor da segregação absoluta no primeiro período, e progressiva emancipação, segundo os resultados da emenda.99
No decorrer do período intermediário, a pena era cumprida em
estabelecimentos especiais, com trabalho ao ar livre, especialmente em colônias
agrícolas ou industriais. Nesta fase, o regime incorporava uma série de medidas
menos gravosas, como não obrigatoriedade de uniformes, contato com o mundo
externo, e não utilização de castigos corporais100. Na concepção de Elias Neuman:
A finalidade altamente moralizadora e humanitária do regime ficou comprovada ao fazer o recluso compreender que a sociedade que o condenou está disposta a recebê-lo sem reticências, sempre que demonstre encontrar-se em recuperação.101
O sistema irlandês acabou sendo adotado em inúmeros países. Observou-
se, no contexto inicial de implantação do sistema progressivo, um conceito
intermediário de ressocialização que se colocava entre a noção de correção, de
inspiração religiosa e cunho retributivo, e a ideia de reintegração social, de
inspiração positivista.
A despeito do fato de preservar a segregação celular como ponto de partida
da execução penal, contribuindo sobremaneira para a aniquilação da subjetividade
99 LYRA, R., Comentários ao código penal, v. 2, p. 91. 100 BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 88. 101 NEUMAN, E., Evolución de la pena privativa de libertad y regímenes carcelarios, p. 135.
53
do apenado, o sistema progressivo é reconhecido como o menos danoso.
Entretanto, não está ileso à crise de legitimidade que assola o sistema
penitenciário de modo crescente. A distância abissal entre o ser e o dever-ser no
cárcere torna o arrefecimento punitivo, previsto no regime progressivo,
praticamente inócuo. A realidade de superlotação, corrupção, condições
degradantes de infra-estrutura, compreendem toda sorte de violação de direitos
humanos, resultando na inefetividade de seu condão corretivo e ressocializador.
2.4 Fundamentos da pena: as teorias sobre as (dis)funções do sistema penal
Paripassu ao desenvolvimento dos modelos de sistema penitenciário
assiste-se às transformações das teorias sobre a pena e suas finalidades.
Desenvolvem-se teorias com o impulso de responder basicamente qual é a
justificativa teórica para a imposição dos castigos.
Tobias Barreto, à frente de seu tempo, alertava que “quem procura o
fundamento jurídico da pena deve também procurar, se é que já não encontrou, o
fundamento jurídico da guerra”102. Compreende-se assim o fundamento da
punição como um tema eminentemente político, que transborda para além dos
limites do jurídico. O poder punitivo é como o exercício da guerra em tempos de
paz103.
Por este prisma, há quem defenda que a rigor, não há fundamentação
jurídica e racional do poder punitivo. Zaffaroni afirma que a pena é um exercício
de poder desprovido de legitimidade. Não se trata de um ente jurídico, mas de um
fato da realidade. Não emerge do direito, mas da política, do exercício do
poder104.
Mesmo assim, a dogmática jurídico-penal hegemônica aborda a temática
apresentando um rol de teorias penalógicas, reunidas basicamente em três campos,
102 BARRETO, T., Fundamentos do direito de punir, p. 650. 103 Neste sentido, cabe lembrar que à famosa proposição do estrategista prussiano Clausewitz: “a guerra é a política continuada por outros meios”, Foucault emenda: “a política (le pouvoir) é a guerra, é a guerra continuada por outros meios”. FOUCAULT, M., Em defesa da sociedade, p. 22. Ver QUEIROZ, P., Curso de Direito Penal. Parte Geral, v. 1, p. 393. 104 Ver CARVALHO, S. de, Antimanual de criminologia, p. 139; e ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas.
54
quais sejam as funções de retribuição, prevenção geral e prevenção especial.
Resume-se a narrar os discursos que ao longo da história apresentam distintos
matizes de legitimação do poder punitivo105.
Não obstante, serem tributárias, sobretudo, da reforma humanitária
ensejada pelo Iluminismo, as teorias penalógicas que expressam o discurso oficial,
ou seja, as funções declaradas da pena, acabam por alinhar-se às trincheiras da
ideologia de Defesa Social106. Neste sentido, Salo de Carvalho aponta que:
Se existiu uma falha congênita no pensamento liberal clássico, decorrente da presença de resíduos inquisitoriais e autoritários em seu seio identificada na estrutura do pensamento ideológico defensivista, agora ela retorna no impacto deste modelo sobre a sociedade via justificação penalógica – teoria da pena.107
Por outro lado, doutrinadores referenciados na Criminologia Crítica,
compreendem a teoria penalógica enquanto tema controvertido e decisivo para a
análise do sistema penal em sua complexidade. Desta forma, percebem a
existência de dois pólos discursivos que sustentam do ponto de vista teórico a
imposição ou negação da pena criminal. Na perspectiva tradicional, apresentam-se
os discursos penalógicos legitimantes, através de distintas justificações teóricas
que almejam emprestar suposta legitimação e racionalidade ao poder de punir do
estado (Teorias Absolutas, Relativas e Mistas). Em uma segunda visão, emergem
os discursos deslegitimantes do poder punitivo108, analisando criticamente a
105 A abordagem restrita aos discursos legitimantes pode ser identificada em boa parte dos manuais de Direito Penal, a exemplo de BRUNO, A., Direito Penal. Tomo 3, p. 44 et. seq.; CAPEZ, F., Curso de Direito Penal. Parte Geral, v. 1, p. 364; BITENCOURT, C. R., Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1, p. 130 et. seq.; GRECO, R., Curso de Direito Penal. Parte Geral, p. 465 et. seq.; PRADO, L. R., Curso de Direito Penal brasileiro. Parte Geral, p. 501 et. seq.; JESUS, D. E. de, Direito Penal. 106 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 114. Acerca da ideologia de Defesa Social, ver também ANCEL, M. A., A nova Defesa Social: um movimento de política criminal humanista; GRAMATICA, F., Princípios de Defensa Social; e SANTOS, B. M. de M., Defesa Social: uma visão crítica. 107 CARVALHO, S. de, Teoria agnóstica da pena: o modelo garantista de limitação do poder punitivo, p. 4. O autor adenda que “os ideais defensivistas – da segurança nacional às teorias da nova (e novíssima) defesa social – correspondem ao que Ferrajoli denomina vício ideológico e meta-ético das doutrinas de justificação. Vícios dogmáticos que produzem um discurso centrado na cisão irreal entre o modelo teórico-normativo (científico) e a efetividade (política) da sanção”, ibid., p. 4. 108 A menção aos discursos deslegitimantes é percebida, sobretudo, nos doutrinadores adeptos da Criminologia Crítica. Neste sentido, BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 97 et. seq.; CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro. Parte Geral, p. 240 passim; CARVALHO, S. de, Penas e medidas de segurança, p. 141 passim; e QUEIROZ, P., Curso de Direito Penal. Parte Geral, v. 1, p. 397 passim. Os discursos penalógicos deslegitimantes fazem-se
55
contradição fundamental entre as funções declaradas e as funções latentes da pena
(Abolicionismo Penal e Minimalismo Penal Radical).
Para Nilo Batista e Zaffaroni, as teorias acerca do poder punitivo devem
ser necessariamente analisadas, por duas razões:
a) Em primeiro lugar, porque conservam vigência, apesar de não serem atualmente enunciados em forma pura ou originária (...). A rigor, não há novos discursos legitimantes, mas sim novas combinações e formulações dos tradicionais. b) De sua visão conjunta resulta uma clara disparidade – que nunca é de detalhe, mas dos próprios fundamentos -, razão pela dá lugar a construções diversas e completamente incompatíveis. Isso evidencia escassa solidez fundamentadora e crise permanente no discurso.109
Portanto, consideram que, apesar da inconsistência fundamentadora, tais
discursos possuem vigência, de modo que é necessária sua contraposição crítica.
No mesmo sentido, destaca Juarez Cirino dos Santos:
a análise da pena criminal não pode se limitar ao estudo das funções atribuídas pelo discurso oficial, definidas como funções declaradas ou manifestas da pena criminal; ao contrário, esse estudo deve rasgar o véu da aparência das funções declaradas da ideologia jurídica oficial, para identificar as funções reais ou latentes da pena criminal, que podem explicar sua existência, aplicação e execução nas sociedades de classes sociais antagônicas (...).110
Esta contraposição de distintas teorias acerca da fundamentação dos
castigos denota que há projetos político-criminais em disputa111. Não há um
argumento universal de legitimação ou deslegitimação da razão punitiva. Os
variados discursos em torno da teoria da pena criminal representam visões
conflitantes sobre o modelo de Estado que se busca delinear. De modo que um
estado autoritário amolda-se mais precisamente à ampla legitimação do jus
puniendi, ao passo que um estado democrático requer a devida contenção do
poder punitivo.
presentes ainda na obra de GALVÃO, F., Direito Penal. Parte Geral, p. 99 passim; e BUSATO, P. C., Direito Penal. Parte Geral, p. 790 passim. 109 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 114. 110 CIRINO DOS SANTOS, J., op. cit., p. 240. 111 “A discussão em torno das funções do Direito Penal está intrinsecamente conectado ao programa de política criminal oficial instituído pela dogmática penal. A partir das funções atribuídas denotam-se as funções declaradas da pena, como resposta oficial do sistema de justiça criminal (polícia, judiciário e instituições prisionais) para o fato punível”. DIETER, M., A função simbólica da pena no Brasil: breve crítica à função de prevenção geral positiva da pena criminal em jakobs, p. 4.
56
2.4.1 Discursos legitimantes
O discurso oficial da teoria jurídica da pena ancora-se em distintas
justificações da imposição da sanção penal: de um lado, as teorias absolutas,
ligadas essencialmente às doutrinas da retribuição ou da expiação; de outro lado,
as teorias relativas, dando ensejo às perspectivas preventivistas; e por fim, as
teorias mistas ou unificadoras.
Segundo Nilo Batista e Zaffaroni, “todas essas teorias se classificam de
modo análogo desde 1830, e legitimam o confisco do conflito: tratam de
racionalizar a exclusão da vítima do modelo punitivo”112. Desta forma, buscam,
em verdade, defender um ente que a despeito do fato de não corresponder aos
direitos da vítima, pertence à sociedade:
entendida de uma maneira organicista (ou antropomórfica) ou contratualista, dependendo da amplitude do poder punitivo legitimado, conforme debilite mais ou menos o estado de direito (ou permite maior ou menor avanço de elementos do estado de polícia). 113
Com efeito, traduzem-se em uma pluralidade de discursos justificantes do
poder punitivo com a pretensão de racionalização da sanção penal por meio de
uma decisão. Esta é levada a cabo tão somente através da definição do discurso
considerado mais apropriado ao caso concreto, dentre as teorias penalógicas
existentes.
2.4.1.1 Teorias absolutas
As teorias absolutas ou retributivas partem do pressuposto que a pena tem
por função precípua a retribuição ao delito, mera finalidade vindicativa. Trata-se
112 ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N. Direito Penal Brasileiro I, p. 114-115. 113 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, 114 et. seq.
57
da mais antiga função atribuída à pena114, defluída primitivamente do Princípio de
Talião (olho por olho, dente por dente).
Não estabelecem razões utilitárias à pena, compreendendo a punição ao
delito como um fim em si mesmo, através da imposição de um mal justo (pena)
contra um mal injusto (crime). Remonta a máxima de Sêneca punitur, quia
peccatum est - punido porque pecou115.
Dentre os principais adeptos das teorias absolutas encontram-se Binding,
Maurach, Welzel e Mezger na Alemanha, Carrara, Petrocelli, Maggiore e Bettiol
na Itália, mas, sobretudo com a decisiva contribuição de Kant e Hegel116.
Uma das perspectivas retributivas da pena está associada a concepções
religiosas, sobretudo na tradição judaico-cristã ocidental, calcada na ideia de culpa
e de uma justiça divina retributiva, tendo sido fundamentadora dos castigos na
Idade Antiga e na Idade Média. O crime é associado à noção de pecado,
constituindo a violação de um preceito oriundo de Deus. Hassemer e Muñoz
Conde identificam que para esta visão, a pena deve possuir o caráter de expiação
da culpabilidade, estabelecendo uma penitência ao condenado em razão de seu ato
injusto117.
Na modernidade a fundamentação retributiva da pena recebeu anteparos da
filosofia idealista alemã. De um lado com Kant, compreendendo que a justificação
é de ordem ética, de outro Hegel, fundamentando-a sob o prisma jurídico, porém,
ambos atribuem à pena um conteúdo talional118.
Para KANT o crime é uma infração de ordem moral, e a pena deve ser a
compensação moral do desvio. Sua fundamentação está relacionada à ideia de
justiça. Em célebre passagem da obra A Metafísica dos Costumes, exemplifica seu
raciocínio:
114 Nas palavras de Cirino dos Santos: “a pena como compensação da culpabilidade atualiza o impulso de vingança do ser humano, tão velho quanto o mundo”. CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro. Parte Geral, p. 241. 115 SÊNECA, Da ira. Livro 1, p. 16 et. Seq Apud QUEIROZ, P. Curso de Direito Penal. Parte Geral, v. 1, p. 401. 116 Ibid., p. 402. 117 HASSEMER, W.; MUÑOZ CONDE, F., Introducción a la Criminologia, p. 226. 118 MARCÃO, R.; MARCON, B., Rediscutindo os fins da pena. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/textos/x/20/00/200/>. Acesso em: maio de 2007.
58
Se a sociedade civil resolver autodissolver-se, com a concordância de todos os seus cidadãos, mesmo assim, caso esta sociedade habitar uma ilha e resolver abandoná-la espalhando-se pelo mundo, o último assassino condenado e preso teria que ser executado, antes do abandono final da ilha pelo último membro do povo. Isto deverá assim acontecer para que cada um receba a punição equivalente aos seus atos e a dívida de sangue não permaneça vinculada ao povo.119
A tese kantiana entende que o condenado deve ser castigado apenas por ter
delinquido. A pena retributiva esgota o seu sentido no mal que se faz sofrer ao
delinqüente como compensação ou expiação do mal causado, não possui qualquer
caráter utilitário ou preventivo120. Como afirma Bitencourt, em Kant "a aplicação
da pena decorre da simples infringência da lei penal, isto é, da simples prática do
delito"121.
Hegel, por seu turno, manifesta seu discurso penalógico em Princípios da
Filosofia do Direito, compreendendo a pena como derivação dialética da violação
do direito: "a pena é a negação da negação do Direito"122. Desta forma, a
imposição da sanção penal representaria a afirmação do direito.
Aceitando que a pena venha restabelecer a ordem jurídica violada pelo delinquente, igualmente se deve aplicar simplesmente porque antes houve outro mal, porque seria – como afirma o próprio Hegel – ‘irracional querer um prejuízo simplesmente porque já existia um prejuízo anterior’. A imposição da pena implica, pois, o restabelecimento da ordem jurídica quebrada.123
Diferentemente da teoria retributiva kantiana, Hegel não estabelece
fundamento em um mandado de justiça, mas sim em um postulado decorrente da
razão, que se justifica a partir de um processo dialético124. O fundamento
hegeliano da pena é jurídico, uma vez que esta visa restabelecer a vigência
119 KANT, I., Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 176. 120 Partidário da teoria absoluta, Bettiol afirma que "tão-somente a idéia retributiva, colocada como fundamento da pena, é capaz de satisfazer plenamente todas as exigências que urgem no campo da penalidade. Ela atende à suprema exigência de que o mal praticado deva exigir a inflição de um castigo proporcionado à gravidade do malefício". BETTIOL, G., Direito penal, v. 3, p. 121. 121 BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 108. 122 Hegel aduz que “Como evento que é, a violação do direito enquanto direito possui, sem dúvida, uma existência positiva exterior, mas contém a negação. A manifestação dessa negatividade é a negação desta violação que entra por sua vez na existência real; a realidade do direito reside na sua necessidade ao reconciliar-se ele consigo mesmo mediante a supressão da violação do direito.” HEGEL, G. W. F., Princípios da Filosofia do Direito, p. 87. 123 BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 113. 124 Para Ferrajoli, as concepções de Kant e Hegel só aparentemente se distinguem, pois a visão hegeliana que concebe o Estado como um espírito ético também compreende a retribuição jurídica como associada a um valor moral. FERRAJOLI, L., Direito e razão, p. 254.
59
da “vontade geral” (lei), violada pela “vontade do delinquente”, ou seja, restaurar
a razão do direito, negando a razão do delito.
Contemporaneamente, para alguns autores, a justificação retributiva da
pena está associada ao princípio da proporcionalidade. A sanção penal deve ser
proporcional ao injusto praticado, seguindo o princípio de justiça distributiva.
Desta forma, não se resumiria à punição, mas também à limitação do poder
punitivo125.
É farta na literatura jurídico-penal, a contraposição às teorias retributivas.
Claus Roxin126 aponta três elementos centrais para sua negação enquanto
justificação penalógica. Primeiramente, porque a lógica retribucionista pressupõe
de antemão a necessidade da imposição da pena, que deveria fundamentar. Aponta
que “a teoria da retribuição, portanto, não explica em absoluto quando se tem de
punir, mas apenas refere: ‘se impuserdes - sejam quais forem os critérios - uma
pena, com ela tereis de retribuir um crime’”.
A segunda objeção assenta-se no fato de que:
Se afirma sem restrições a faculdade estatal de penalizar formas de condutas culpáveis, continua insatisfatória a justificação da função da culpa, uma vez que a possibilidade da culpabilidade humana pressupõe a liberdade de vontade (livre-arbítrio) e a sua existência, com o que concordam inclusive os partidários das ideias retribucionistas, é indemonstrável.127
Assim, a retribuição, como salienta Cirino dos Santos, funda-se no “mito
de liberdade pressuposto na culpabilidade do autor”128.
Enfim, a terceira crítica tem por objeto a natureza expiatória e
compensatória da pena. A necessidade de retribuição de um mal por outro
constitui, segundo Roxin, um ato de fé. Não é tributária da razão, mas sim do
impulso humano de vingança.
Ademais, pode-se afirmar que o modelo compensatório/expiatório fragiliza
a noção de subsidiariedade subjacente ao Direito Penal, que compreenderia a pena
125 SCHECAIRA, S. S.; CORRÊA JUNIOR, A., Pena e constituição, p. 100. PRADO, L. R., Teoria dos fins da pena: breves reflexões, p. 143. 126 ROXIN, C., Problemas fundamentais de direito penal, p. 19 et. seq. 127 Ibid., p. 13. 128 CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro. Parte Geral, p. 242.
60
como ultima ratio ao Estado129. Como salienta Queiroz, “tal formulação parece
absolutizar na pena todo controle social, sendo inconciliável com a crescente
relativização dos modos de atuação dos sistemas penais contemporâneos (penas
alternativas, transação, descriminalização, despenalização)”130.
2.4.1.2 Teorias preventivas
A dimensão preventiva da pena recebe distintas denominações na doutrina,
empregadas como sinônimos: teorias relativas, finalistas, utilitárias ou
preventivas. Partilham do pressuposto que a pena possui finalidade de natureza
política e de utilidade para a sociedade. Diferentemente das teorias absolutas, não
percebem na pena um fim em si mesmo, mas sim, compreendem-na como um
meio a serviço de determinados fins. Portanto, a pena passa a ter um condão
utilitário e finalístico, qual seja, a prevenção de futuros delitos (punitur ut ne
peccetur).
As teorias prevencionistas são tributárias dos ideais iluministas, emergem
na transição do Estado Absoluto para o Estado Liberal. Estas são construídas com
base em interesses políticos e econômicos de seu tempo, voltadas à afirmação do
capitalismo como modo de produção. Neste sentido, salienta Bustos Ramirez, que
“em uma primeira época do Estado capitalista, como Estado liberal reduzido a
mera função de vigilância, as teorias mencionadas podem parecer suficientes”131.
Os dicursos penalógicos prevencionistas dividem-se em teorias da
prevenção geral (positiva e negativa) e teorias da prevenção especial (positiva e
negativa), as primeiras, com objetivo de evitar novos delitos através de
intervenção na coletividade, já as segundas, centradas na figura do condenado,
conforme analisaremos pormenorizadamente a seguir. 129 Neste sentido, não se pode descuidar da observância do princípio da intervenção mínima, imprescindível ao Direito Penal compatível com uma Constituição democrática. A este respeito, afirma Fragoso “Só deve o Estado intervir com a sanção jurídico-penal quando não existam outros remédios jurídicos, ou seja, quando não bastarem as sanções jurídicas do direito privado. A pena é a ultima ratio do sistema”. FRAGOSO, H. C., Lições de Direito Penal, p. 290. Consoante Luiz Régis Prado, nas teorias retributivas, “o direito penal deixa de ser a ultima ratio para converter-se em prima ratio, dado que a pena seria uma consequência absoluta da transgressão da norma”. PRADO, L. R., Teoria dos fins da pena: breves reflexões, p. 143. 130 QUEIROZ, P., Curso de Direito Penal. Parte Geral, v. 1, p. 399. 131 RAMIREZ, J. B.; MALARÉE, H. H., Pena y Estado, p. 122, apud BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 124.
61
a) Prevenção Geral Negativa
Tradicionalmente, a finalidade preventiva da pena esteve associada à
intimidação, presente na teoria da coação psicológica de Feuerbach132, segundo a
qual “é através do Direito Penal que se pode dar uma solução ao problema da
criminalidade". Parte significativa da doutrina compreende ainda esta como a
única dimensão da prevenção geral.
Luigi Ferrajoli afirma que é possível identificar duas vertentes da
prevenção intimidatória: a) pena exemplar (presente em Hobbes, Beccaria e
Bentham) - aquele a quem foi imposta uma sanção penal funcionaria como um
meio de fomento ao comportamento em consonância com o Direito; b) ameaça
legal (com Feuerbach e Romagnosi) – a simples previsão legal seria capaz de
incitar o comportamento conforme o Direito133.
Feuerbach distingue dois momentos da pena que motivariam os indivíduos
a não transgredir a norma penal. Em primeiro plano, refere-se à cominação, tendo
por objetivo a intimidação geral dos indivíduos que diante da ameaça abstrata de
punição. No segundo momento, a aplicação da pena, devendo esta ter o efeito
dissuasório à coletividade através da aplicação concreta da sanção penal, sendo a
prevenção alcançada pelo exemplo do castigo desferido.
A principal crítica direcionada à teoria da prevenção geral negativa reside
em sua ineficácia para alcançar os fins pretendidos. Ou seja, a intimidação não é
capaz de assegurar a evitabilidade do cometimento de novos delitos. Conforme
Cirino dos Santos:
Afirma-se que não é a gravidade da pena – ou o rigor da execução penal -, mas a certeza da punição que pode desestimular o autor de praticar crimes – uma velha teoria já enunciada por Beccaria, sempre retomada como teoria moderna pelo discurso de intelectuais e políticos do controle.134
132 FEUERBACH, A. V., Tratado de derecho penal, §13. 133 FERRAJOLI, L., Direito e Razão. 134 CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro. Parte Geral, p. 245. A este respeito, Zaffaroni e Nilo Batista afirmam que “as únicas experiências de efeito dissuasivo do poder punitivo passíveis de verificação são os estados de terror, com penas cruéis e indiscriminadas”. BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p 118.
62
Outra aporia deste discurso punitivo legitimante reside na falta de critério
limitador da culpabilidade, problema também verificado nas teorias absolutas.
Como aponta Roxin:
Assim como na concepção preventivo-especial não é delimitável a duração do tratamento social-terapêutico e, no caso concreto, pode exceder a medida defensável da ordem jurídica liberal, o ponto de partida preventivo-geral tem, geralmente, a tendência ao terror estatal. Pois quem quiser intimidar através da pena tenderá a reforçar esse efeito tão severamente quanto possível.135
Por fim, critica-se a utilização da punição ao indivíduo delinquente como
meio para obtenção da obediência dos demais ao ordenamento jurídico. Assim,
“aumenta-se injustamente o sofrimento de acusados reais, para desestimular o
comportamento criminoso de acusados potenciais”136. Trata-se de uma concepção
utilitarista que compreende o ser humano como objeto, inaceitável nos marcos do
Estado Democrático de Direito, o qual não pode valer-se de sujeitos de direitos
como instrumento para alcançar seus fins137.
Neste sentido, vale aduzir que a criminalização exemplarizante, como
observam Nilo Batista e Zaffaroni, vem recorrentemente a reforçar a seletividade
do sistema penal, uma vez que o poder punitivo dirige-se recorrentemente sobre
os grupos sociais mais vulneráveis ao poder punitivo estatal, alimentando a
ofensiva do Estado policial138.
b) Prevenção Geral Positiva
As raízes da denominada teoria da prevenção geral positiva encontram-se
no século XIX, a partir das observações de Francesco Carrara.
Contemporaneamente, passa a ter por adeptos Hans Welzel e Günther Jakobs. Esta
135 ROXIN, C., Problemas fundamentais de direito penal, p. 23. 136 CIRINO DOS SANTOS, J. Manual de Direito Penal, p. 465-466. 137 Neste sentido, afirma Kant: "O homem não pode nunca ser utilizado meramente como meio para os propósitos de outro e ser confundido com os objetos do direito das coisas, contra o que o protege a sua personalidade inata", apud HASSEMER, W.; MUÑOZ CONDE, F., Introducción a la Criminologia, p. 128. 138 “A partir da realidade social, pode-se observar que a criminalização pretensamente exemplarizante que esse discurso persegue, pelo menos quanto ao grosso da delinquência criminalizada, isto é, quanto aos delitos com finalidade lucrativa, seguiria a regra seletiva da estrutura punitiva: recairia sempre sobre os vulneráveis”. BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 117.
63
perspectiva teórica almeja incutir na comunidade a noção de obediência ao
ordenamento jurídico, preservando-o das condutas nocivas. Trata-se de buscar a
prevenção de delitos através da integração da norma penal à comunidade, portanto
para alguns constitui a noção de prevenção-integração.
A concepção de Jakobs, também chamada de prevenção geral positiva
fundamentadora, recebe influência da “teoria dos sistemas” de Niklas
Luhmann139. Compreende a norma penal como necessidade funcional e sistêmica
de estabilização das expectativas normativas da sociedade através da aplicação da
pena. Assim, a pena teria a finalidade de integração da norma penal na sociedade,
seria, em suas palavras, “uma demonstração da vigência da norma à custa de um
responsável”140.
Outra variante é a prevenção geral positiva limitadora, elaborada por Claus
Roxin, que concebe a pena como meio legitimado para a proteção de bens
jurídico-penais relevantes, de modo subsidiário, visto que deve pressupor outras
medidas mais eficazes do que a intervenção penal141. Busca, portanto, limitar o
âmbito de intervenção do poder punitivo estatal.
A concepção de prevenção geral positiva em Jakobs muito se aproxima da
teoria absoluta desenvolvida por Hegel, fato identificado pelo próprio autor142.
Portanto, as críticas à perspectiva retributiva da pena também aqui se justificam.
Outro ponto problemático observado na obra de Jakobs é a percepção de que em
sua construção sistêmica, o direito não serve ao homem, mas, sobretudo, à
manutenção do próprio sistema. Neste sentido, Zaffaroni aponta que o discurso
jurídico-penal sistêmico:
Afasta-se do homem, reduzido a um subsistema, perdem-se todos os limites às garantias consideradas tradicionalmente como “liberais” (...), abrindo-se a possibilidade de imporem penas a ações meramente imorais (...) e de se defender um critério de pena meramente utilitário ou instrumental para o “sistema”.143
139 Jakobs, com influência de Luhman, parte da funcionalidade do direito penal para o sistema social. Deste modo, a norma penal constitui uma necessidade funcional/sistêmica de estabilização de expectativas sociais por meio de aplicação de penas ante as frustrações decorrentes da violação da norma. QUEIROZ, P., Curso de Direito Penal. Parte Geral, v. 1, p. 401. 140 JAKOBS, G., Derecho Penal, p. 9. 141 CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro. Parte Geral, p. 244 et. seq. 142 JAKOBS, G., op. cit., p. 22 et. seq. 143 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p. 87.
64
De outro lado, também recebe críticas a formulação de Roxin, em especial
por estabelecer uma superposição de efeitos político-criminais que não se verifica
na realidade concreta, como o suposto “aumento da confiança do cidadão no
ordenamento jurídico” pela percepção da imposição do Direito, e a suposta
“pacificação social” a partir da punição da violação do Direito144.
c) Prevenção Especial Positiva
As teorias da prevenção especial atribuem à pena a finalidade de evitar que
o delinquente volte a cometer novos crimes. Portanto, centra-se na pessoa do
condenado, alvo da seleção criminalizante, e não na coletividade, como nas
teorias da prevenção geral. A denominada prevenção especial positiva preconiza o
discurso correcionalista em face do condenado. Suas primeiras contribuições
remetem à Antiguidade, com Sêneca, Platão e Protágoras. Com a Modernidade irá
assumir a feição das ideologias “re”, almejando a suposta ressocialização,
reeducação, reinserção ou reintegração social, e recuperação moral do condenado.
Ideais defendidos por teóricos iluministas denominados por Foucault de
“ortopedistas da moral”145.
Várias correntes defendem o discurso penalógico da prevenção especial.
Em França, destaca-se a Nova Defesa Social, de Marc Ancel, também seguido por
Filippo Gramatica; na Itália, com os adeptos do positivismo criminológico
(Lombroso, Ferri e Garófalo); na Espanha, com a Escola Correcionalista; mas a
principal contribuição vem no final do século XIX, com os escritos de Franz von
Liszt, da Escola Positivista Sociológica Alemã.
Von Liszt apresenta a “doutrina teleológica da diferenciação da pena” em
seu célebre Programa de Marburgo146. Em sua visão, a finalidade subjacente à
pena e ao Direito Penal é a proteção de bens jurídicos, devendo incidir na
personalidade do condenado através da pena, de modo que não incorra em
reincidência delitiva. A função preventivo-especial positiva constitui a chamada
pena-tratamento, que busca ao fim e ao cabo, a “correção” do condenado.
144 CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro. Parte Geral, p. 245 et. seq. 145 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 15. 146 ROXIN, C., Problemas fundamentais de direito penal, p. 20.
65
Evidentemente, as normas sociais não constituem um corpus imutável e
permanente ao qual o indivíduo deve ‘adaptar-se’ obrigatoriamente, mas se trata,
sim, do resultado de uma correlação de forças sujeitas a influências mutáveis.
Como aponta Muñoz Conde:
Falar, portanto, de ressocialização do delinquente sem questionar, ao mesmo tempo, o conjunto normativo a que se pretende incorporá-lo, significa aceitar como perfeita a ordem social vigente sem questionar nenhuma de suas estruturas, nem mesmo aquelas mais diretamente relacionadas com o delito praticado.147
Assim, o ideal ressocializador da pena é alvo de diversas críticas. A
principal objeção recai em sua ineficácia para a correção do condenado e na
consequente prevenção de novos delitos. Como aponta Zaffaroni, em célebre frase
“pretender ensinar um homem a viver em sociedade prendendo-o é como disse
Carlos Elbert, algo tão absurdo como pretender entregar a alguém para jogar
futebol dentro de um elevador” (tradução nossa)148. A notória ineficiência torna a
ressocialização uma utopia irrealizável, sobretudo em razão das históricas
condições desumanas e degradantes da execução penal, que se acentuam ainda
mais nos países periféricos.
Neste sentido, é criticada ainda pela recorrente supressão de direitos não
atingidos pela sentença criminal, ou seja, afronta à dignidade humana para além
da privação da liberdade. Zaffaroni e Batista alertam que:
Os riscos de homicídio e suicídio em prisões são dez vezes superiores aos da vida em liberdade, em meio a uma violenta realidade de motins, abusos sexuais, corrupção, carências médicas, alimentares e higiênicas, além de contaminação devido a infecções, algumas mortais, em quase 80% dos presos provisórios. Assim, a prisionização é feita para além da sentença, na forma de pena corporal e eventualmente de morte, o que leva ao paradoxo a impossibilidade estrutural da teoria.149
147 MUNOZ CONDE, F., La ressocialización del delincuente: análisis y critica de um mito, p. 135. 148 “(...) pretender enseñarle a um hombre a vivir em sociedad mediante el encierro es, como dice Carlos Elbert, algo tan absurdo como pretender entrenar a alguien para jugar futbol dentro de um ascensor”. ZAFFARONI, E. R. El sistema penal en los países de América Latina. In Sistema penal para o terceiro milênio, p. 223. 149 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 126. Na mesma direção, aponta CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro, p. 243.
66
Segundo Claus Roxin, a teoria da prevenção especial tende, mais que um
Direito Penal da culpa retributivo, a deixar o particular ilimitadamente à mercê da
intervenção estatal. Outra objeção apontada pelo autor consiste no fato de que,
em alguns delitos, não haveria de impor-se a sanção penal caso não existisse
perigo de reincidência criminal. Em suas palavras, "a teoria da prevenção especial
não é capaz de fornecer a necessária fundamentação da necessidade da pena para
tais situações"150.
Por fim, vale aduzir a crítica formulada por Ferrajoli, para quem a
prevenção especial positiva concebe o poder punitivo como um bem metajurídico,
a ser tutelado por um Estado pedagogo ou terapeuta, que deve coibir o delito
como mal moral ou enfermidade social. Esta perspectiva se revela antiliberal e
antigarantista, servindo à justificação de um modelo de direito penal máximo151.
d) Prevenção Especial Negativa
Outra vertente do discurso prevencionista, a prevenção especial negativa,
busca tanto a intimidação como a neutralização (ou inocuização). Tem como
finalidade neutralizar a possível nova ação delitiva do agente que delinquiu em
momento anterior. Para tanto, prescinde do ideal correcionalista, dirigindo-se
meramente à inocuização do delinquente durante a execução penal. Pressupõe a
adoção de sanções penais como a pena de morte, prisão perpétua e isolamento
celular, típicas punições inocuizadoras.
Trata-se de uma finalidade supletiva da pena que se evidencia como
função penalógica manifesta em combinação com a prevenção geral positiva.
Como apontam Nilo Batista e Zaffaroni, “quando as ideologias re fracassam ou
são descartadas, apela-se para a neutralização e eliminação”152.
Esta perspectiva ganha força com a doutrina do Direito Penal do Inimigo,
desenvolvida por Gunther Jakobs. Para o jurista alemão:
inimigo é quem se afasta de modo permanente do Direito e não oferece garantias cognitivas de que vai continuar fiel à norma, (...) o indivíduo que não admite
150 ROXIN, C., Problemas fundamentais de direito penal, p. 21. 151 FERRAJOLI, L., Direito e razão, p. 253. 152 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 127.
67
ingressar no estado de cidadania, não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa. (...) Contra ele não se justifica um procedimento penal (legal), sim, um procedimento de guerra.153
Assim, o Direito Penal do Inimigo não visa à imposição da pena como
reafirmação contrafática da norma, mas almeja predominantemente a eliminação
de um perigo, pelo maior tempo possível (neutralização).
Uma primeira objeção à teoria da prevenção especial negativa refere-se à
efetividade da imposição da pena para tal fim. Ferrajoli questiona se a pena
privativa de liberdade é realmente capaz de garantir a inocuização do delinquente,
visto que não assegura terminantemente que este não irá praticar ou comandar
delitos de dentro do cárcere.
Zaffaroni e Nilo Batista aduzem que a mera neutralização física está fora
do conceito do que se entende por direito dentro do atual horizonte cultural.
Apontam que:
ao nível teórico, a ideia de uma sanção jurídica é incompatível com a criação de um mero obstáculo mecânico ou físico, porque este não motiva o comportamento, mas apenas o impede, o que fere o conceito de pessoa (art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e art. 1º da Convenção Americana de Direitos Humanos).154
Por fim, a função preventivo-especial negativa dá ensejo à incapacitação
seletiva de indivíduos considerados perigosos. Trata-se do etiquetamento
neutralizante dos alvos preferenciais do poder punitivo. Neste sentido, amolda-se
ao Direito Penal do Inimigo, como supramencionado, mais consentâneo ao Estado
Policial do que ao Estado Democrático de Direito155.
2.4.1.3 Teorias mistas
153 JAKOBS, G.; MELIÁ, M. C., Direito penal do inimigo: noções e críticas, p. 39. 154 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 128. 155 JAKOBS, G.; MELIÁ, M. C., Direito penal do inimigo: noções e críticas. ZAFFARONI, E. R., O inimigo no Direito Penal, p. 163: “O Estado de Direito concreto de Jakobs, deste modo, torna-se inviável, porque seu soberano, invocando a necessidade e a emergência, pode suspendê-lo e designar como inimigo quem considerar oportuno (...)”.
68
As teorias mistas, também denominadas de teoria eclética, intermediária,
unitária, unificadora ou conciliatória, procuram agregar vários aspectos das teorias
absolutas e relativas. Trata-se da fusão das funções declaradas de retribuição,
prevenção geral e prevenção especial.
Baseiam-se em um conceito pluridimensional de pena, definindo-a como
um fenômeno complexo que compreende as etapas da cominação, aplicação e
execução penal. Em cada um desses momentos preponderaria uma finalidade
penalógica. Na cominação prevalece a função de preventivo-geral negativa, por
meio da intimidação; o momento da aplicação corresponde à função retributiva e à
prevenção geral positiva; por fim, na execução penal, evidenciam-se as funções de
prevenção especial positiva e negativa156.
Seu primeiro formulador é o jurista suíço-alemão Adolf Merkel, no início
do século XX. Em sua visão, a pena é justa retribuição ao mal causado, aliado à
sua finalidade, qual seja, manter as condições da vida social, destinando-se, assim,
à proteção dos interesses dos indivíduos, através da prevenção de futuros
delitos157.
As teorias unificadoras são majoritárias na legislação, jurisprudência e
dogmática jurídico-penal do Ocidente. No Brasil, o Código Penal de 1940
recepciona a teoria unificada, ao conceber em seu artigo 59 a aplicação da pena
“conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime”. A
noção de reprovação remete à função retributiva da pena, ao passo que a
prevenção compreende tanto a prevenção especial (ressocialização e
neutralização), como a prevenção geral (intimidação e integração/manutenção da
norma penal).
Para Mir Puig, as teorias mistas podem ser classificadas em conservadoras
ou progressistas, a depender da função que prepondere sobre as demais158. O
Projeto Oficial do Código Penal alemão de 1962 corresponderia a um exemplo da
posição conservadora159. Como expoentes de teorias mistas progressistas,
156 CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro, p. 247. 157 BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 142. 158 MIR PUIG, Derecho Penal, p. 46, apud BITENCOURT, op. cit., p. 142. 159 Centrava-se na ideia de que os fins preventivos da pena cumprem papel complementar, vista que sua função primordial é garantir a proteção da sociedade através da retribuição justa ao delito. Ibid.
69
encontram-se as contribuições de Claus Roxin, com a teoria dialética
unificadora160, e o garantismo penal de Luigi Ferrajoli161.
Em síntese, para Roxin, a finalidade central da pena é a proteção
subsidiária de bens jurídicos relevantes, através da prevenção geral e especial e
rejeição do caráter retributivo. Assevera que a culpabilidade deve servir como
limitação do poder punitivo, e preconiza a salvaguarda da autonomia da
personalidade do condenado na execução da pena162.
Ferrajoli, por seu turno, aponta que a única função legítima à intervenção
penal é a prevenção geral negativa, com o objetivo de garantir a dissuasão da
prática de futuros delitos, mas também de coibir “as reações informais públicas ou
privadas arbitrárias” - a finalidade mais importante da pena, em sua perspectiva163.
As debilidades percebidas em cada uma das teorias penalógicas em sua
unidimensionalidade fazem-se também presentes nas teorias unificadoras,
comungando, pois, das críticas já mencionadas164. Além disso, a fusão das
distintas funções da pena evidencia o amálgama de teorias contraditórias.
Conforme Nilo Batista e Zaffaroni, esta pluralidade de discursos justificantes da
pena permite discricionariamente a mobilização da teoria que mais se adeque ao
caso concreto165. Desta forma, a adoção de uma teoria que abarca a pluralidade
funcional da pena não a exime de incorrer nas antinomias de cada função
penalógica perante seus resultados pretendidos.
2.4.2 Discursos deslegitimantes
As teorias legitimadoras compõem o discurso oficial penalógico, como
observado, apresentando as distintas justificações ao exercício do poder de punir
do Estado (seja pela tese retributiva, pelas distintas teorias da prevenção, ou
através da fusão pluridimensional destes discursos). Em perspectiva oposta,
encontram-se os discursos deslegitimantes que negam a legitimidade à imposição
160 ROXIN, C., Problemas fundamentais de direito penal. 161 FERRAJOLI, L., Direito e razão. 162 ROXIN, op. cit., 163 FERRAJOLI, L., op. cit. 164 CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro, p. 248. 165 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, p. 114.
70
da pena, contestando a eficiência do sistema penal como garantidor do controle
social.
Esta abordagem ao avesso, busca apresentar um contra-discurso
analisando criticamente o discurso oficial acerca dos fins da pena criminal, cuja
gênese encontra-se nas reflexões criminológicas das aporias do sistema penal,
sendo tributárias da Criminologia Crítica.
Tais análises centram-se, sobretudo, na disparidade entre as funções
ilusórias da pena (fins declarados) e as funções penalógicas reais (fins ocultos)
para apontar a crise de legitimidade do poder punitivo. Antes de abordar as
principais vertentes deslegitimadoras da pena criminal, convém esboçar os
principais postulados da Criminologia Crítica como seu corpus teórico de fundo.
2.4.2.1 A Criminologia Crítica como chave interpretativa
A partir da segunda metade do século XX desenvolvem-se os primeiros
estudos da Criminologia Crítica em contraponto à Criminologia tradicional -
anteriormente centrada no paradigma etiológico-causal, ou seja, o estudo
científico da criminalidade compreendida como realidade ontológica pré-
constituída ao delinquente.
Revolucionando o método de estudo criminológico, a Escola Crítica adota
o paradigma da reação social como aporte norteador, por esta razão também chamada de
Criminologia da Reação Social. Deste modo, o objeto de análise é deslocado da
criminalidade, como dado ontológico, para os processos de criminalização,
compreendendo o crime como status atribuído a determinados comportamentos
considerados desviantes.
Os fatos criminais, para as teorias críticas, não são explicados pelos
determinismos de ordem biológica, psicológica ou social, mas são
predominantemente condicionados pela realidade material. Por este viés, Baratta166
aponta que constituem um bem negativo desigualmente distribuído de acordo com a
hierarquia de interesses ditados pelo sistema sócio-econômico e segundo a
desigualdade social dos indivíduos.
166 BARATTA, A., Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal, p. 161.
71
Esta seletividade criminalizante ancora-se nos processos de etiquetamento
que serão objeto central de análise da teoria do labelling approach167 (teoria do
etiquetamento) através da contribuição decisiva de Howard Becker em sua obra
Outsiders, com influências das correntes de origem fenomenológica na sociologia
- a etnometodologia168 e o interacionismo simbólico169, da Escola de Chicago.
Segundo esta formulação de Becker, o desvio não corresponde a uma mera
conduta individualmente realizada, mas decorre de uma construção social:
os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio e aplicar ditas regras a certas pessoas em particular e qualificá-las de marginais (estranhos). Desde este ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato cometido pela pessoa, senão uma consequência da aplicação que os outros fazem das regras e sanções para um ofensor.170
Conforme aponta Vera Regina de Andrade, a introdução do labelling
approach, foi determinante para o paradigma da reação social (social reaction
approach) do "controle" ou da "definição"171. Com efeito, a Criminologia Crítica
bebe desta fonte, no entanto, busca a superação da teoria do etiquetamento, uma
vez que esta analisa os processos de criminalização, sem contudo indagar acerca
de suas condicionantes estruturais econômicas e sociais172.
167 Abordagem fundada por Howard Becker, sociólogo norte-americano, através da publicação de sua obra. BECKER, H. S., Outsiders: estudos sobre sociologia do desvio. CIRINO DOS SANTOS, J., A Criminologia Radical, p. 69. 168 Uma corrente da sociologia que surgiu na Califórnia no final da década de 1960, tendo como seu principal marco fundador a publicação do livro Studies in Ethnomethodology [Estudos sobre Etnometodologia], em 1967, de Harold Garfinkel. 169 Ver ANITUA, G., História dos pensamentos criminológicos, p. 421-433. Para os teóricos da Escola de Chicago, a cidade em si era de extremo valor como laboratório para explorar as interações sociais, na busca de modelos ecológicos resultantes da análise dos paralelos entre sistemas naturais e sociais, onde variados mapeamentos de mundos em cooperação e conflito se somariam no mosaico da experiência urbana. 170 BECKER, H. Los extraños, apud ANDRADE, V. R. P. de, A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal, p. 206. 171 ANDRADE, V. R. P. de, Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Disponível em: <www.buscalegis.ufsc.br>. Acesso em março de 2009. 172 Baratta aponta que o labelling approach representa condição necessária, porém, insuficiente para o campo de estudo da Criminologia crítica, “condição necessária porque mostra o comportamento criminoso como consequência da aplicação de regras e sanções pelo sistema penal – e não como qualidade da ação, segundo a etiologia positivista; mas condição insuficiente, porque incapaz de indicar os mecanismos de distribuição social da criminalidade, identificáveis pela inserção do processo de criminalização no contexto das instituições fundamentais das sociedades modernas – a relação capital/trabalho assalariado –, suscetível de mostrar que o poder de definir crimes e de atribuir a qualidade de criminoso corresponde às desigualdades sociais em propriedade
72
Assim, identifica que os processos de criminalização são pautados pela
dinâmica de classes na sociedade capitalista. De modo que a Criminologia Crítica
tem importante referencial teórico na tradição marxista. A este respeito, afirma
Juarez Cirino que:
A integração dos processos subjetivos de construção social da criminalidade, estudados pelo labelling approach, com os processos objetivos estruturais e ideológicos das relações sociais de produção da vida material, definidos pela teoria marxista (...), lançou as bases de formação da Criminologia crítica na Europa e, depois, na América Latina.173
Os discursos criminológicos críticos emergem na década de 1970 na
Europa e nos EUA, com a Escola de Berkeley174, a partir daí, desdobrando-se em
distintas vertentes175. Na América Latina se desvelaram como contundente
contraponto às ditaduras civis-militares, e no contexto contemporâneo recebe
imprescindíveis contribuições176.
A análise das diversas vertentes críticas da criminologia baseia-se no
método materialista-histórico, portanto, não se revelam como um conceito
hermeneuticamente fechado no tempo, mas sim como uma construção aberta à
crítica e à ressignificação. O método materialista rompe com a noção de verdade
absoluta presente na metodologia positivista, preconizando uma concepção de
verdade relativizada, que deve estar circunscrita a uma determinada realidade
social.
e poder das sociedades contemporâneas”. CIRINO DOS SANTOS, J., A Criminologia Crítica e a Reforma da Legislação Penal, p. 1 e 2. 173 Ver CIRINO DOS SANTOS, J., A Criminologia Radical. Também BARATTA, A., Che cosa è la criminologia critica?, p. 60 et. seq. 174 Sua origem encontra-se nos trabalhos de Taylor, Walton e Young, com as obras The New Criminology, de 1973, e Critical criminology, nas quais buscam a questionar a ordem social, atacam os fundamentos do castigo aplicado às minorias, e por consequência, a não punição do Estado. 175 Esta corrente criminológica desenvolveu-se a partir dos anos 70, nos Estados Unidos e Inglaterra. Nos Estados Unidos, os sociólogos Hans e Schwendinger foram os pioneiros. Na Inglaterra, Paul Taylor, Ian Walton e Jock Young. E ainda, outros cultores, na Itália Dario Melossi, Massimo Pavarini e Alessandro Baratta, e ainda Simondi, Sack, Baurman, Schumann e Bianchi contribuíam com esta vertente. 176 Durante os regimes de exceção na América Latina, se desenvolveram as obras de Lola Aniyar de Castro, Criminologia da libertação, Roberto Lyra Filho, e Juarez Cirino dos Santos. Posteriormente, destacam-se Eugenio Raúl Zaffaroni, Rosa Del Olmo, Nilo Batista, Vera Malaguti Batista e Vera Regina de Andrade. Mais recentemente, podem ser destacados os trabalhos de Gabriel Ignacio Anitua, Salo de Carvalho, Mauricio Dieter e Maximo Sozzo. ANITUA, G. I., História dos pensamentos criminológicos. Ver ainda BATISTA, V. M., Introdução crítica à Criminologia brasileira.
73
O objeto de análise da teoria crítica criminológica é o estudo do crime e do
controle social compreendidos na divisão da sociedade em classes (estrutura
econômica) e na reprodução das condições de produção (separação do trabalhador
e dos meios de produção) pelas instituições jurídicas e políticas (superestruturas
de controle social), que determinam práticas contrárias às condições de produção,
ou reprodução social, das quais o crime faz parte177.
Por este viés, o sistema penal assegura a punição seletiva do desvio aos
despossuídos, mantendo a estrutura social desigual e excludente, com ínfimas
possibilidades de responsabilização dos desvios perpetrados pelas classes
dominantes. Desta forma, evidencia-se a dicotomia entre sua função real e sua
função aparente. O discurso de combate ao crime de forma universal é subvertido
pela punição seletiva das ilegalidades, dando ensejo à denominada “eficácia
invertida”. Nas palavras de Vera Andrade:
A eficácia invertida do sistema penal é consistente no fato de que a função latente e real deste é construção seletiva da criminalidade e, neste processo, a reprodução material e ideológica, das desigualdades e diferenças sociais (de classe, gênero, raça) e não o combate da criminalidade, com a proteção de bens jurídicos universais e geração de segurança pública e jurídica.42
Nesta esteira, não é possível verificar um sistema punitivo legítimo, visto
que tal característica é estrutural em todos os sistemas penais. Entretanto, ainda
mais acentuada em sociedades historicamente espoliadas e colonizadas, caso do
Brasil e demais países latino-americanos. Assim, a Criminologia Crítica será o fio
condutor deste trabalho.
A crítica radical empírica e teórica ao sistema penal atinge de forma
demolidora os discursos penalógicos legitimantes, colocando em xeque suas
funções de prevenção geral e especial. Apontam o antagonismo entre os fins
ideológicos (aparentes) e os fins reais (ocultos) do exercício do poder punitivo.
Deste modo, emergem da Criminologia Crítica, discursos criminológicos
deslegitimantes da pena, como antípodas ao discurso oficial. Dentre as teorias
deslegitimantes podem ser destacadas: o Abolicionismo Penal e o Minimalismo
Radical, que por sua vez compreende as variantes Teoria Dialética da Pena e
Teoria Agnóstica da Pena.
177 CIRINO DOS SANTOS, J., A Criminologia Radical, p. 28.
74
2.4.2.1.1 Abolicionismo Penal
O surgimento do abolicionismo penal remonta ao final da Segunda Guerra
Mundial178, mas é, sobretudo, nas décadas de 1960 e 1970, que ganha força com
as teorias sociológicas com distintas correntes179. Neste sentido, Zaffaroni, na obra
Em busca das penas perdidas aponta que o abolicionismo penal, juntamente com
as vertentes do minimalismo penal, representa uma das respostas à crise de
legitimidade do sistema penal:
É importante adiantar que, ao contrário das respostas até agora examinadas – que “fogem” ou negam a deslegitimação ou que, como o funcionalismo, enfrentam-na com o propósito de refutá-la -, as respostas minimizantes e abolicionistas assumem e reafirmam a deslegitimação (...).180
O movimento abolicionista se desenvolve em torno da criação de
alternativas ao sistema penal, este compreendido como um problema social, um
“mal social” que mais cria problemas do que resolve, devendo, por esta razão ser
abolido. Em substituição ao controle social punitivo, propõe-se a criação de
microorganismos sociais baseados na solidariedade e fraternidade, com vistas à
reapropriação social dos conflitos entre agressores e ofendidos e a criação
espontânea de métodos alternativos de composição. Segundo afirmam Edson
Passetti e Roberto Baptista Dias da Silva as práticas abolicionistas já fazem parte
de nosso cotidiano.181
178 Sobre Abolicionismo Penal, ver PASSETI, E.; SILVA, R. B. D. da (orgs.), Conversações abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva; PASSETI, E. et al., Curso livre de Abolicionismo Penal; HULSMAN, L.; CELIS, J. B., Penas perdidas: o sistema penal em questão; SCHEERER, S. et al., Abolicionismo. 179 Entre as mais notáveis vertentes do abolicionismo penal, podem-se encontrar a variante estruturalista de Michael Foucault; a variante materialista, de orientação marxista, do norueguês Thomas Mathiesen; a variante fenomenológica do holandês Louk Hulsman; e a variante fenomenológico-historicista de Nils Christie. Destacam-se também Sebastian Scheerer (Alemanha) e Heinz Steinert (Áustria). Vale mencionar que recentemente, Mathiesen e Christie mudaram de posição, passando a defender uma perspectiva minimalista penal. ANDRADE, V. R. P. de, Minimalismo e abolicionismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão, p. 463. Disponível em: <http://www.mp.to.gov.br/cint/cesaf/arqs/040908090302.pdf>. Acesso em: 9 nov. 2009. 180 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p. 89. 181 “A teoria do abolicionismo penal sintoniza-se com o presente, evitando dicotomias e discriminações, mas, principalmente, procura mostrar que a sociedade sem o sistema penal já
75
A crítica abolicionista denuncia a seletividade do sistema penal, partindo
da premissa que persegue a manutenção de uma estrutura social desigual e
excludente, dirigindo-se sua intervenção a grupos sociais mais vulneráveis ao
poder punitivo, especialmente as classes populares. Contesta ainda a ênfase
reativa e não preventiva do sistema penal, concentrando-se em uma atuação
mediata em relação aos delitos já praticados. Em célebre passagem, Louk
Hulsman evidencia a síntese da reflexão abolicionista:
Cinco estudantes moram juntos. Num determinado momento, um deles se arremessa contra a televisão e a danifica, quebrando também alguns pratos. Como reagem seus companheiros? É evidente que nenhum deles vai ficar contente. Mas, cada um, analisando o acontecido à sua maneira, poderá adotar uma atitude diferente. O estudante número 2, furioso, diz que não quer mais morar com o primeiro e fala em expulsá-lo de casa; o estudante número 3 declara: “o que se tem que fazer é comprar uma nova televisão e outros pratos e ele que pague”. O estudante número 4, traumatizado com o que acabou de presenciar, grita: “ele está evidentemente doente; é preciso procurar um médico, levá-lo a um psiquiatra, etc...”. O último, enfim, sussurra: “a gente achava que se entendia bem, mas alguma coisa deve estar errada em nossa comunidade, para permitir um gesto como esse... vamos juntos fazer um exame de consciência”.182
Ancorada nestes pressupostos, a perspectiva deslegitimadora abolicionista
critica frontalmente a ideologia oficial da pena, colocando em xeque as funções
penalógicas declaradas. Com relação à prevenção geral, aponta que o direito penal
é incapaz de motivar comportamentos subjetivos a fim de prevenir novos delitos,
visto que a existência jurídica de inúmeros tipos penais não assegura que não
sejam praticados concretamente.
A prevenção especial é contestada, compreendendo que as desumanas
condições da execução penal tornam a ressocialização uma utopia irrealizável. Ao
revés, o cárcere possui efeito criminógeno, uma vez que dessocializa, desumaniza
e estigmatiza.
A crítica volta-se também à perspectiva garantista do Direito Penal, uma
vez que esta ao buscar a limitação do poder punitivo estatal, ao invés de arrefecê-
lo, legitima sua intervenção para a solução de conflitos sociais.
existe. As pessoas, no cotidiano, encontram soluções pacíficas para os acontecimentos, principalmente através de mecanismos conciliatórios e compensatórios, que dispensam qualquer intermediação do sistema penal”. PASSETI, E.; SILVA, R. B. D. da (orgs.), Conversações abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva, p. 1. 182 HULSMAN, L.; CELIS, J. B., Penas perdidas: o sistema penal em questão, p. 100.
76
A despeito da diversidade de fundamentos metodológicos das tendências
abolicionistas, inúmeras críticas são levantadas ao seu audacioso projeto político-
criminal. Luigi Ferrajoli183 o refuta, apontando que mesmo em uma sociedade
onde não exista delito, um modelo de auto-regulação social espontânea seria
irremediavelmente utópico, que representaria, certamente, um retrocesso no que
se refere aos meios de controle social.
Salo de Carvalho contesta a aplicabilidade da teoria abolicionista à
realidade marginal latino-americana, visto que nos países periféricos os direitos
inerentes ao Estado Liberal e ao Estado Social não passaram de promessas não
cumpridas184.
2.4.2.1.2 Minimalismo Penal Radical
O minimalismo penal, em sua vertente minimalismo radical é proposto por
Alessandro Baratta185, grande difusor da Criminologia Crítica no final do século
XX. Este discurso criminológico toma por base as mesmas críticas que os
abolicionistas levantam contra o sistema penal, diferindo destes por apregoar a
necessidade do direito penal, embora reduzindo sua incidência a um mínimo
necessário, restrita a um núcleo absolutamente essencial de condutas
particularmente danosas.
A concepção minimalista de Baratta adota o ponto de vista das classes
subalternas, apontando como horizonte a superação das condições econômicas do
capitalismo e autoritarismo do Estado:
183 FERRAJOLI, L., Direito e razão: teoria do garantismo penal, p. 234 et. seq. O autor aponta que as doutrinas abolicionistas “evitam todas as questões mais específicas da justificação e da deslegitimação do direito penal (...) desvalorizando toda e qualquer orientação garantista, confundindo em uma rejeição única modelos penais autoritários e modelos penais liberais (...)”. 184 Não podemos olvidar, também, que as teorias abolicionistas foram criadas a partir de realidade totalmente distinta da realidade marginal latino-americana. É proposta gerada no interior das sociedades nas quais o Estado efetivamente cumpriu seu papel, ou seja, em países nos quais a existência do Estado Liberal e do Estado Social é notória, países nos quais as promessas da modernidade saíram do papel e integraram o cotidiano das pessoas. CARVALHO, S. de, Garantismo e direito de punir: teoria agnóstica da pena, p. 11. 185 Baratta apresenta suas teses sobre o minimalismo radical em sua obra Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal. Distingue-se do denominado minimalismo moderado, reconhecido sobretudo no constructo de Luigi Ferrajoli, o Garantismo Penal.
77
Nós sabemos que substituir o direito penal por qualquer coisa melhor somente poderá acontecer quando substituirmos a nossa sociedade por uma sociedade melhor, mas não devemos perder de vista que uma política criminal alternativa e a luta ideológica e cultural que a acompanha devem desenvolver-se com vistas à transição para uma sociedade que não tenha necessidade do direito penal burguês, e devem realizar, no entanto, na fase de transição, todas as conquistas possíveis para a repropriação, por parte da sociedade, de um poder alienado, para o desenvolvimento de formas alternativas de autogestão da sociedade, também no campo do controle do desvio.186
Pode-se apontar a teoria agnóstica da pena, proposta por Zaffaroni, e a
teoria dialética da pena, apresentada por Cirino dos Santos, como vertentes do
discurso minimalista radical187 fundadas em oposição às tradicionais teorias
penalógicas legitimadoras.
Considerando-se a pena como a intervenção estatal mais gravosa em face
do indivíduo, a perspectiva minimalista estabelece que não deve ser acionado o
direito penal, e, por conseguinte, a pena criminal, caso existam outros
instrumentos jurídicos não-penais capazes de resolver ou mitigar o conflito social.
O Direito Penal, portanto, deveria ser constantemente contido pelo Princípio da
Intervenção Mínima, permeado pelas noções de fragmentariedade e
subsidiariedade188. Desta forma, pugna por medidas de política criminal como
descriminalização, descarcerização, diminuição das penas, alternativas penais e
penas alternativas.
O minimalismo penal, segundo Baratta, concebe o Direito Penal com base
nos Direitos Humanos189. O conceito de direitos humanos recebe aqui função
dúplice: uma função negativa, no que toca aos limites da intervenção penal; e uma
função positiva, a respeito da definição do objeto da tutela por meio do direito
penal. Desta forma, não empresta legitimidade à pena, preconizando a retração do
186 BARATTA, A., Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal, p. 207. 187 Utilização a denominação minimalismo radical como distinção ao dito minimalismo moderado, preconizado por Ferrajoli (Direito e razão: teoria do garantismo penal), Hassemer, Garcia-Pablos de Molina, dentre outros. Sobre os distintos matizes do minimalismo, ver ANDRADE, V. R. P. de, Minimalismo e abolicionismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão: “entre os modelos teóricos mais notáveis do minimalismo, todos com fundamentações diversas, o do italiano Alessandro Baratta, de base interacionista-materialista; o do penalista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, de base interacionista, foucautiana e latino-americanista; e o do italiano Luigi Ferrajoli, de base liberal iluminista”. 188 BATISTA, N., Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro. 189 BARATTA, A., Principios de derecho penal mínimo. Para una teoría de los derechos humanos como objeto y limite de la ley penal.
78
poder punitivo que deve ser ao mesmo tempo limitado e definido pelo cânone dos
direitos humanos.
2.4.2.1.3 Teoria Dialética da Pena
Juarez Cirino dos Santos defende uma teoria materialista/dialética da pena,
a qual seria decorrente do discurso crítico da teoria criminológica, que se constitui
na distinção entre as funções reais e funções ilusórias da ideologia penal nas
sociedades capitalistas190. Corresponde à tradução dos postulados da Criminologia
Radical para uma formulação crítica da teoria penalógica (ou anti-penalógica).
Nas palavras de seu precursor no Brasil:
A Criminologia Radical distingue objetivos ideológicos aparentes do sistema punitivo (repressão da criminalidade, controle e redução do crime e ressocialização do criminoso) e objetivos reais ocultos do sistema punitivo (reprodução das relações de produção e da massa criminalizada), demonstrando que o fracasso histórico do sistema penal limita-se aos objetivos ideológicos aparentes, porque os objetivos reais ocultos do sistema punitivo representam êxito histórico absoluto desse aparelho de reprodução do poder econômico e político da sociedade capitalista.191
Este contra-discurso penalógico encontra seu referencial teórico na
tradição marxista, com Pachukanis192, Rusche e Kircheimer193, Melossi e
Pavarini194, bem como com contribuições do legado de Foucault.195 Em sua busca
por arcabouços para compreensão acerca do crime e do controle social, conclui
que o sistema punitivo é um fenômeno social ligado ao processo de produção.
A teoria dialético-criminológica da pena evidencia a conservação e
reprodução social empreendidas pelo programa desigual e seletivo do Direito
Penal, cuja ideologia penal tem como funções reais: a) a função política de
garantir e reproduzir a escala social vertical; b) a função ideológica de
190 CIRINO DOS SANTOS, J., Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial, p. 34. 191 Id., A Criminologia Radical, p. 128. 192 PACHUKANIS, A teoria geral do direito e o marxismo. 193 KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social. 194 MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica. 195 FOUCAULT, M., Vigiar e punir.
79
encobrir/imunizar comportamentos danosos das elites do poder político e
econômico196. Por sua vez, o discurso penalógico oficial compreende que:
a) a pena criminal cumpre a função de retribuição equivalente do crime nas sociedades modernas, precisamente mediante a neutralização de condenados reais durante a execução da pena; b) as outras funções (i) de correção individual (prevenção especial positiva, destruída pela experiência histórica e arquivada pelo labelling approach) e (ii) de afirmação da validade da norma (prevenção geral postiva, em contradição com a correlação sistema penal/mercado de trabalho) constituem retórica encobridora das funções reais da pena criminal, de garantia da desigualdade social e da opressão de classe da relação capital/trabalho das sociedades contemporâneas197.
Nesta esteira, as teleologias penalógicas tradicionais corresponderiam a
meras funções ilusórias da pena, que serviriam estrategicamente para legitimar a
forma de punição específica da sociedade capitalista.
2.4.2.1.4 Teoria Agnóstica da Pena
A teoria agnóstica da pena, formulada por Zaffaroni198, ou também
chamada teoria negativa da pena199, não compreende a pena com base em
fundamentos jurídicos ou racionais, mas sim como um fato meramente político,
que emana do poder. Conforme dispõe o autor:
Creo que a partir de considerar a la pena como un hecho de poder, como un hecho político, es que podemos reducir el ámbito del poder punitivo, postular la reducción del ámbito de poder punitivo como un objetivo político sumamente claro.200
Desta forma, reconhece na pena a incapacidade em cumprir, na grande
maioria dos casos, suas funções manifestas (prevenções gerais e especiais),
expressas no discurso oficial, prevalecendo efetivamente suas funções reais,
ocultas (reprodução da violência institucional e efeito criminógeno).
196 BARATTA, A., Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal, p. 167. 197 CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro. Parte Geral, p. 261 et. seq. 198 Sobre Teoria Agnóstica da Pena, ver ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas e BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 97 passim; CARVALHO, S. de, Teoria agnóstica da pena: o modelo garantista de limitação do poder punitivo. 199 CIRINO DOS SANTOS, J., Op. Cit. 200 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas.
80
Segundo Zaffaroni e Batista: “não se transpõe esse atoleiro com uma nova
teoria punitiva, mas sim apelando para uma teoria negativa ou agnóstica da
pena.”201 Em sua visão, a falência das teorias oficiais da pena permite verificar
que o poder punitivo conserva apenas as funções negativas da pena (retribuição e
neutralização), sendo seus efeitos positivos
(ressocialização/intimidação/incorporação da norma penal) inalcançáveis por
meio da sanção penal, por se tratarem de teorias falsas ou não-generalizáveis.
Como aponta Carvalho, é “fundamental, pois, (re)fundar o direito penal a partir de
uma teoria agnóstica da pena, teoria que denuncia, segundo Zaffaroni, que tudo o
que foi dito sobre a punição é falso e irreal, principalmente sua finalidade
medicinal”202.
Neste sentido, esta teoria deslegitimante da pena é denominada de
agnóstica quanto à sua função, pois confessa não conhecê-la203. Este diagnóstico
conduz seus defensores à busca de um conceito de pena limitador da intervenção
penal. Entendem que “adotando-se uma teoria negativa, é possível delimitar o
horizonte do direito penal sem que seu recorte provoque a legitimação dos
elementos do estado de polícia próprios do poder punitivo que lhe toca limitar.”204
Salo de Carvalho, sintetizando o horizonte que busca estabelecer a teoria
agnóstica da pena, afirma que “reduzir dor e sofrimento (danos) seria o único
motivo de justificação da pena nas atuais condições em que é exercida,
principalmente nos países periféricos”205. Trata-se, pois, de um constructo teórico
direcionado à redução de danos do sistema penal, de forma a operar como “dique
de contenção das sujas e turbulentas águas do estado de polícia, para impedir a
submersão do estado de direito”206.
Neste primeiro capítulo pudemos observar a crise de legitimidade que se
abate sobre o sistema penal. Identifica-se tal crise como um traço que se confunde
com sua própria gênese. Esta deslegitimação traduz-se, sobretudo, na contumaz
incongruência entre o discurso jurídico-penal e a realidade social produzida pelo
cárcere.
201 BATISTA, N., op. cit., p. 98. Grifo nosso. 202 CARVALHO, S. de, Garantismo e direito de punir: teoria agnóstica da pena. 203 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 100. 204 Ibid., p. 94. 205 CARVALHO, S. de, Antimanual de Criminologia, p. 149. 206 BATISTA, op. cit., p. 20 passim.
81
Faz-se necessário atentar às idiossincrasias presentes tanto no que tange
aos modelos de sistema penitenciário implementados, quanto às teorias
penalógicas que embasam o discurso punitivo oficial. Os sucessivos modelos
penitenciários, instituídos no esforço contínuo de reforma do sistema prisional,
fracassaram. Desde o sistema filadélfico, passando pelo sistema auburniano, até
chegar aos sistemas progressivos, a crise crônica que se abate sobre o cárcere não
arrefeceu. As constantes reformas penitenciárias não surtem soluções, tão somente
resumindo-se a um discurso de remediar o irremediável.
De igual sorte, fracassaram as teorias justificadoras da pena, apresentando
distintos discursos voltados a empregar legitimidade a imposição da sanção penal.
Partindo das teorias absolutas - calcadas na retribucionismo -, às teorias
preventivas - preconizando as funções de intimidação, integração/manutenção da
norma penal, neutralização e ressocialização -, e, por fim, às teorias unitárias –
com a proposta de fusão das distintas funções penalógicas, verificam-se, em
verdade, discursos que não encontram respaldo na realidade concreta. Em todas
estas teorias legitimantes, percebe-se o antagonismo entre as funções manifestas
da pena, presentes em seu discurso oficial, e as funções reais da pena, produzidas
pelo poder punitivo na realidade social.
Estas contradições dão ensejo às teorias penalógicas deslegitimadoras,
negando legitimidade ao poder punitivo pela crítica radical às funções ilusórias da
pena e aos efeitos do sistema penal. Em primeiro plano, o discurso do
abolicionismo penal, preconizando pela extinção gradual do sistema penal. Em
outra perspectiva, o discurso minimalista penal, também sem reconhecer
legitimidade à imposição da pena dirige-se à contenção do poder punitivo. Nesta
esteira, emergem a teoria dialética da pena e a teoria agnóstica da pena, como
vertentes de um minimalismo radical.
A partir deste escorço crítico podemos identificar as profundas
contradições que delineiam a crise do sistema penitenciário. A percepção destas
aporias, tanto dos modelos como dos fundamentos do sistema penal, servirá de
alicerce para as investigações almejadas nesta tese. Cabe, portanto, no capítulo
que segue, verificar em que medida as estratégias de punição estão relacionadas
ao modelo econômico vigente, de modo a permitir a análise dos contornos do
82
sistema penal sob a égide do capitalismo neoliberal e suas implicações diretas no
cárcere.
3 A Era do Grande Encarceramento: neoliberalismo, sistema penitenciário e contenção punitiva da pobreza
A transformação em sistemas penais não pode ser explicada somente pela mudança das demandas da crime [sociedade] contra o crime, embora esta luta faça parte do jogo. Todo sistema de produção tende a descobrir punições que correspondam às suas relações de produção. É, pois, necessário pesquisar a origem e a força dos sistemas penais, o uso e a rejeição de certas punições, e a intensidade das práticas penais, uma vez que elas são determinadas por forças sociais, sobretudo pelas econômicas e consequentemente fiscais.
(Otto Kirchheimer)207
A despeito do fracasso de suas diversas teorias fundamentadoras e de seus
sistemas de operativos, ao longo dos últimos 200 anos, o cárcere continua a ser a
principal forma de punição na atualidade. A aposta na pena de prisão como
panaceia à conflitividade social parece chegar ao paroxismo na atual fase do
capitalismo, dando ensejo ao que algumas vozes da Criminologia Crítica irão
denominar de “Era do Grande Encarceramento”208.
Na segunda metade do século XX, a reestruturação do capitalismo já
começava a dar seus primeiros sinais, especialmente com o aumento do
desemprego, consequência da expulsão de uma larga fatia do trabalho no setor
industrial. Como adverte Alessandro de Giorgi, voltam à cena os alardes sobre o
crescimento de um surplus populacional, isto é, uma força de trabalho em excesso
no que tange à capacidade de absorção do mercado de trabalho209. Constata-se
uma crise socioeconômica sem precedentes, que se avoluma a partir do crack da
bolsa de valores de Nova Iorque em 1929, derivada da forma de reprodução e
207 KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 18. 208 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos. BATISTA, V. M. (org.), Depois do grande encarceramento e Introdução crítica à Criminologia brasileira. CARVALHO, S. de, Sobre as possibilidades de uma Penologia crítica: provocações criminológicas às Teorias da Pena na era do grande encarceramento. 209 GIORGI, A. de, A miséria governada através do sistema penal, p 27.
84
acumulação do capital no processo de globalização, cuja concentração produz
desigualdades abissais.
Todo esse complexo contexto apresentado pelo “capitalismo tardio”210 nos
permitiria, segundo Marildo Menegat, compreender que a estrutura social
capitalista é amparada, cada vez mais, “por um aparato jurídico que lhe permite
esconder a sua congênita intenção de exclusão por meio da violência”211. Num
contexto no qual explodem as crises cíclicas do capitalismo, a barbárie acumulada
nas situações anteriores tende a se agravar e aprofundar, de modo a revelar-se em
uma crise estrutural, decorrência do “excesso de civilização”212.
A barbárie – que não pode ser entendida como um fato, uma ocorrência, ou a consequência de uma crise cíclica, mas um modo geral de organização a partir dos escombros que resultam desta crise estrutural, ou seja, não apenas como uma objetivação inconsciente, mas também como uma subjetividade fria, dessolidarizada e cruel, perfeitamente adequada à naturalização da monstruosidade a que o mundo vai sendo reduzido – será a forma dominante das relações sociais.213
Em semelhante toada, Bauman aponta a vigência de uma crise existencial
(Unsicherheit), na qual o conceito de crise já não é apenas um elemento
conjuntural, inerente aos processos de acumulação de capital recorrentes na
história do sistema capitalista214, mas algo “inexorável à condição humana
atual”215.
Diante deste cenário limítrofe, os atuais contornos assumidos pelo
desenvolvimento do capitalismo, com a solidificação do empreendimento
político-econômico neoliberal, irão impor uma nova dinâmica ao sistema
210 Capitalismo tardio é aqui tomado no sentido dado por Mandel, de prolongamento da história desta forma social após a recaída na barbárie de 1914-1945, em que uma de suas características foi o início de uma nova fase de transformações tecnológicas amadurecidas plenamente nos anos 1980. As transformações que se colocam em curso desde então perfazem o universo do que chamo de fim da trégua e da volta definitiva da barbárie, agora também, e mais uma vez, nos países centrais. MANDEL, E., O capitalismo tardio. 211 MENEGAT, M., O olho da barbárie, p. 41. 212 “Nas crises declara-se uma epidemia social que teria parecido um contra-senso a todas as épocas anteriores — a epidemia de sobreprodução. A sociedade vê-se de repente retransportada a um estado de momentânea barbárie (...). E por que? Porque a sociedade possui civilização em excesso”. Karl Marx apud MENEGAT, M., Civilização em excesso, p. 2.. 213 Id., Estudos sobre ruínas. 214 MARX, K., Contribuição à crítica da economia política. 215 BAUMAN, Z., Em busca da política, p. 13 passim.
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punitivo. A crise, também um elemento presente desde a gênese da instituição
prisional, atinge seu ápice, e assume uma dimensão colossal na atualidade.
Neste sentido, os estudos sociológicos e criminológicos sobre o período
contemporâneo irão adotar distintas definições para este divisor de águas na
dinâmica de funcionamento do Estado e seus impactos no exercício do controle
social punitivo: Zygmunt Bauman e David Garland adotam o conceito de Pós-
modernidade216; Jock Young utiliza a expressão Modernidade Recente217;
Alessandro Di Giorgi o denomina Pós-fordismo218, e autores como Nilo Batista,
Eugênio Raul Zaffaroni, Vera Malaguti e Loic Wacquant, preconizam o termo
Neoliberalismo, posição que acompanhamos neste trabalho219.
Deve-se a Loic Wacquant, professor da Universidade de Berkeley na
Califórnia, a contribuição decisiva para compreender o enlace entre as
transformações socioeconômicas e o sistema punitivo na atualidade. Nas palavras
de Vera Malaguti:
Foi Loic Wacquant quem sistematizou, através de pesquisa sociológica de verdade, o eixo central desse novo movimento do capital que tratava de desmantelar o estado previdenciário para instituir o estado penal: punir os pobres, a nova gestão da miséria. Pesquisando o paradigma estadunidense e também sua disseminação pelo mundo, ele contribuiu decisivamente para o fortalecimento dos nossos argumentos na luta contra a expansão desse capital predador e contra o grande encarceramento que se instituía.220
Em sua obra Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados
Unidos, Wacquant analisa os efeitos do neoliberalismo sobre a expansão dos
aparatos punitivos nos EUA, bem como sua disseminação pelo mundo. O
criminólogo francês aponta que o setor penal do aparelho burocrático do Estado:
não foi predeterminado, mas, antes é o resultado de lutas envolvendo uma miríade de agentes e instituições que buscam reformatar esta ou aquela ala e prerrogativa do Estado, de acordo com seus interesses materiais e simbólicos.
216 Id., O mal estar da pós-modernidade. O autor também utiliza o conceito de “modernidade líquida”. Ver BAUMAN, Z., Modernidade líquida. 217 YOUNG, J., A sociedade excludente. 218 GIORGI, A. de, A miséria governada através do sistema penal. 219 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1. BATISTA, V. M. (org.), Loic Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. 220 BATISTA, V. M., op. cit., p. 5.
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Outros caminhos históricos foram abertos, e continuam abertos, ainda que possam ser estreitos e improváveis.221
Com efeito, nas últimas décadas, sob a égide do neoliberalismo, assiste-se
à ascensão do recrudescimento das estratégias de controle punitivo em quase todo
o Ocidente222, precipuamente nos Estados Unidos, como será analisado adiante.
Esta onda punitiva deságua, sobretudo, no grande encarceramento, com o
emblemático aumento da população carcerária dos EUA em um índice de 314%
em 20 anos (1970-1991), algo inédito em uma sociedade democrática223.
A América Latina, e notadamente o Brasil, também receberá influências
desta nova colonialidade do saber/poder. Em razão de se tratar da periferia do
capitalismo, com histórico marcado pelo colonialismo exploratório, escravagismo
e regimes políticos autoritários, as consequências são ainda mais nefastas para o
respeito à dignidade humana nas masmorras prisionais.
Desta forma, fica patente a necessidade de debruçar-se na literatura que
permita identificar as razões subjacentes à pena de prisão, de modo a buscar
compreender a insistência em um fracasso de quase dois séculos.
Neste capítulo aprofundaremos esta análise, buscando perceber as interações
do modelo econômico-social com os sistemas de punição desde a gênese da prisão224,
para compreender de que maneira a crise estrutural da atual fase do capitalismo reflete-
se no cárcere. Em um primeiro momento, abordaremos a relação entre punição e
estrutura social, descortinando os trabalhos de Michel Foucault, George Rusche e Otto
Kircheimer e, por fim, Dario Melossi e Massimo Pavarini, para perceber desde a
transição do Medievo para a Modernidade a visível conexão entre o modelo
221 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 20. 222 Ibid, p. 20. 223 Garland adverte que “Em sociedades como as do Reino Unido e dos Estados Unidos, onde se manifestam divisões sociais e raciais profundas, que ensejam a experiência de taxas de criminalidade e de níveis de insegurança elevados, onde as soluções sociais foram politicamente desacreditadas, onde há poucas perspectivas de reinserção dos antigos delinquentes pelo trabalho ou pela família e onde, para completar esse quadro deprimente, um setor comercial em expansão encoraja e favorece o aumento do encarceramento, essa cultura punitiva está provocando um encarceramento em massa, a uma escala jamais alcançada nos países democráticos e raramente encontrada na maioria dos países totalitários”, GARLAND, D., A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea, p. 88. 224 “Sem pretender resgatar a a surrada imagem da ‘base e superestrutura’, desacreditada pela voz autorizada de Poulantzas, é decisivo advertir-se para a ‘essência econômica” que subjaz as definições jurídicas abstratas, compreendendo o verdadeiro processo socialde criação do direito”. BATISTA, N., Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro, p. 18.
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econômico vigente e a dinâmica operativa do sistema de punição, até meados do
século XX.
No segundo tópico, com base nas contribuições de Loic Wacquant,
buscaremos analisar os reflexos do modelo econômico neoliberal no sistema penal.
Para tanto, nos debruçamos sobre a emergência do neoliberalismo nos EUA e suas
consequências sobre o controle social punitivo, em especial o sistema penitenciário,
delineando a transfiguração do Estado de Bem Estar Social em Estado Penal.
No terceiro item, por fim, será analisada a repercussão do ideário neoliberal no
exercício do poder punitivo na América Latina e em especial no Brasil, através de uma
perspectiva marginal. Neste bojo será debatida a possível caracterização de um Estado
Penal brasileiro e seus contornos político-criminais.
3.1 A economia política da penalidade: (inter)faces dos sistemas penais e econômicos
O criminoso produz uma impressão ora moral, ora trágica, e presta um "serviço" despertando os sentimentos morais e estéticos do público. Ele produz não apenas manuais de direito penal, o direito penal em si, e, dessa forma, legisladores, mas também arte, literatura, romances e o teatro trágico.... O criminoso interrompe a monotonia e a segurança da vida burguesa. Assim, ele a protege da estagnação e gera aquela tensão contínua, aquela mobilidade do espírito sem a qual o estímulo da competição seria ele próprio entorpecido.
(Karl Marx)225
O discurso ideológico jurídico-penal recorrentemente conduz a
argumentações acríticas e a-históricas sobre a prisão, sua origem e suas
finalidades. Subvertendo a este senso comum teórico, destacam-se os estudos
centrados na conexão entre o sistema penal e a estrutura socioeconômica,
remetendo a um tripé fundamental na literatura criminológica. Primeiramente
Georg Rusche e Otto Kirchheimer (Punição e Estrutura Social), além de Michel
225 Karl Marx, Theories of surplus value apud BOTTOMORE, T.; RUBEL, M., Karl Marx: selected writings in society and social philosophy, p. 159.
88
Foucault (Vigiar e Punir), e, por fim, Dario Melossi e Massimo Pavarini (Cárcere
e Fábrica) evidenciam, em perspectivas distintas, os contornos da intrínseca
relação entre a emergência da sociedade capitalista e a pena de prisão.
3.1.1 Punição e estrutura social: âmbito econômico-político
Rusche e Kirchheimer, representantes da tradição marxista da Escola de
Frankfurt, publicam o livro Punição e estrutura social, em 1939226. A despeito da
profundidade da análise e do ineditismo do tema tratado, a obra permaneceu sem
visibilidade até 1968, quando foi reeditada, tornando-se referência para as
primeiras reflexões da Criminologia Crítica.
Os autores destacam diversas abordagens acerca da relação entre a
criminalidade e o meio social, criticando o fato de que nem as teorias
sociológicas, nem as teorias da pena trouxeram a temática dos sistemas de
punição para o centro da investigação227.
Com o propósito de preencher esta lacuna, apontam a existência de uma
íntima relação entre a dinâmica dos sistemas penais e o modelo econômico
vigente em um dado contexto histórico. A tese de Rusche e Kirchheimer aponta
que a consolidação da pena privativa de liberdade não decorreu de formulações de
teóricos iluministas, mas sim de outros processos socioeconômicos estratégicos ao
modo de produção capitalista em ascensão.
Neste sentido, para os autores, a obrigatoriedade do trabalho dos presos
nas galés, no século XVI, deveu-se à escassez de trabalhadores livres, os quais se
negavam a realizar insalubre tarefa: a repressão à mendicância e vadiagem,
contrárias aos valores da ascendente burguesia, determinaram o surgimento das
226 Apesar de ser uma obra comum, o texto não foi escrito em conjunto pelos dois autores. Rusche se encarregou da elaboração dos capítulos II ao VIII, enquanto que Kirchheimer escreveu a introdução e os demais capítulos. O livro Punishment and social structure foi publicado em 1939, tendo sido a primeira obra da Escola de Frankfurt editada pela Columbia University Press de Nova Iorque. As diretrizes gerais de Punição e estrutura social foram lançadas por Georg Rusche no artigo “Arbeitsmarkt und Strafvollzug” (1933), publicado pelo Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt e, mais adiante, traduzido para o inglês na publicação Crime and social justice. Acerca de tais informações, ver “Nota introdutória à edição brasileira” em KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 11 et. seq. 227 Ibid., p. 16 et. seq.
89
casas de correção no fim do século XVII; o sistema de encarceramento foi
impulsionado pelo mercantilismo e pelo iluminismo, e assim por diante.
Os autores se valem da metodologia materialista-histórica dialética para a
compreensão do crime e das técnicas de controle social. Desta forma, repudiam a
compreensão das análises criminológicas com base em postulados preconcebidos,
ontológicos e abstratos. Pugnam por uma pesquisa científica marcada pelo
empirismo – buscando revelações com embasamento na realidade social - e pela
interdisciplinaridade – conjugando campos do saber, como História, Sociologia,
Criminologia e Economia.
As reflexões de Rusche e Kirchheimer são resgatadas como base
fundamental para a emergente Criminologia da Reação Social na segunda metade
do século XX. Sobretudo, é a tese de que o sistema econômico determina a
dinâmica operativa do sistema penal, proposta em Punição e estrutura social, que
irá conectar os estudos criminais da Escola de Frankfurt às primeiras vertentes da
teoria criminológica crítica.
A fundamentação de sua tese inicia-se com a análise do sistema penal na
Baixa Idade Média na Europa. Neste contexto, os métodos de punição centravam-
se na indenização e na fiança, devendo ser mensuradas de acordo com a classe
social do infrator e da vítima. Em momento posterior, os castigos corporais
passam a ser utilizados recorrentemente, voltados principalmente a criminosos
integrantes das classes populares228.
Nos primórdios do capitalismo, a coexistência entre penas corporais e
fiança persistiu. Porém, verifica-se que os crimes patrimoniais vão recebendo
punições mais severas e acentuou-se a distinção de tratamento entre ricos e
pobres. Para os integrantes das classes sociais dominantes aplica-se a pena
pecuniária, na forma da fiança, a despeito da gravidade do delito. A contrario
sensu, os mais pobres são submetidos aos castigos físicos e penas de morte, ainda
que em face de delitos leves, de modo que “a legislação era abertamente contra as
classes subalternas”229.
Acerca do incremento da violência do sistema penal neste contexto,
Rusche e Kirchheimer destacam que:
228 KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 21. 229 Ibid., p. 32 et. seq.
90
todo o sistema penal da Baixa Idade Média deixa claro que não havia escassez de força de trabalho, pelo menos nas cidades. Como o preço da mão-de-obra baixou, a valorização da vida humana tornou-se cada vez menor. A luta renhida pela sobrevivência moldou o sistema penal de tal forma que este se constituiu num dos meios de prevenção de grandes crescimentos populacionais.230
A afirmação do mercantilismo no século XVI demarcou uma nova
transfiguração do sistema penal. O surgimento de grandes centros urbanos foi
marcado pela escassez de mão de obra, que conviveu com guerras religiosas,
assim como a eclosão de levantes populares. Neste sentido, novas formas de
punição foram implementadas, como a escravidão nas galés, a deportação e a
servidão por meio de trabalhos forçados.
No final do século XVII, concomitante ao incremento da densidade
demográfica das grandes cidades, o sistema penal passou a exercer controle mais
repressivo sobre os indivíduos que exerciam profissões ilegais (mendigos e
prostitutas) e sobre aqueles que dependiam de assistência (loucos, órfãos, doentes
e viúvas). A crescente escassez de mão de obra fez com que o Estado
recrudescesse o tratamento desta parcela considerada improdutiva da sociedade,
com a criação da Casa de Correção231. Estes estabelecimentos, que guardavam
características da fábrica e da prisão, receberam a dupla função de higienização
social dos centros urbanos e incorporação da lógica do trabalho aos internos, com
fulcro de assegurar lucratividade.
O advento do iluminismo demarcou as rupturas com o modelo penal do
Antigo Regime, caracterizado pelo arbítrio e pela imposição dos suplícios e penas
de morte. A burguesia, possuidora de poder econômico, não obstante alijada do
poder político, vislumbrava a limitação do poder punitivo concentrado nas mãos
do soberano. O projeto iluminista, dentre as transformações de ordem política,
econômica, científica e cultural que preconizava, delineava também um novo
230 KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 39. 231 As casas de correção surgiram na Inglaterra, mas tiveram seu desenvolvimento máximo na Holanda. Nelas, misturavam-se os princípios das casas de assistência aos pobres, das oficinas de trabalho e das instituições penais, para se criar um ambiente cujo objetivo precípuo era transformar mendigos, prostitutas, ladrões, desempregados, ou seja, os indesejáveis, em força de trabalho útil. Neste sentido, Rusche e Kirchheimer destacam que “a política institucional para as casas de correção neste tipo de sociedade não era o resultado de amor fraterno ou de um senso oficial de obrigação para com os desvalidos. Era, outrossim, parte do desenvolvimento do capitalismo”. Ibid., p. 80.
91
modelo punitivo - calcado na pena de prisão -, como sintetizado por Beccaria em
Dos delitos e das penas232.
Desta forma, este contexto evidencia-se como decisivo para o surgimento
da prisão. Para Rusche e Kirchheimer “os fundamentos do sistema carcerário
encontram-se no mercantilismo; sua promoção e elaboração foram tarefas do
Iluminismo”233. A reforma humanitária ensejada pela Escola Clássica e seus
ideólogos iluministas no século XVIII apontava para a racionalização e limitação
do poder punitivo. Por outro lado, tratava de atribuir à propriedade o status como
bem supremo que merece a efetiva e prioritária tutela do Estado, através da
imposição da pena de prisão.
As transformações sociais ocorridas neste período, como o fim do
mercantilismo, o crescimento populacional, o excedente de mão de obra em razão
da introdução das máquinas a vapor na produção, e o aumento da pobreza geraram
como consequência superlotação e precariedade estrutural nas casas de correção.
Em virtude disto, a vadiagem e mendicância deixaram de ser punidas com a
imposição da sanção penal na casa de correção, que gradualmente vai
desaparecendo234.
A pobreza continua crescendo na Europa, especialmente entre o final do
século XVIII e início do século XIX, o que redunda no aumento das populações
marginalizadas nos grandes centros urbanos e consequentemente dos índices de
crimes patrimoniais. Neste contexto, emerge o discurso de que o aumento da
criminalidade deve-se à complacência das leis penais menos severas, bradando
pela volta das penas corporais típicas do Antigo Regime. No entanto, os ideais
iluministas conseguem preservar a pena privativa de liberdade como resposta
prioritária do poder punitivo.
232 “À medida que os suplícios se tornam mais cruéis, a alma, semelhante aos fluidos que se põem sempre ao nível dos objetos que os cercam, endurece-se pelo espetáculo renovado da barbárie. A gente se habitua aos suplícios horríveis; e, depois de cem anos de crueldades multiplicadas, as paixões, sempre ativas, são menos refreadas pela roda e pela força do que antes o eram pela prisão”. BECCARIA, C., Dos delitos e das penas, p. 31. 233 KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 109. 234 “a casa de correção caiu em decadência porque outras fontes melhores de lucro foram encontradas, e porque, com o desaparecimento da casa de correção como um meio de exploração lucrativo, a possível influência reformadora de trabalho seguro também desapareceu”. Ibid., p. 136 et. seq.
92
Na primeira metade do século XIX a prisão se consolida como o principal
método de punição no Ocidente. Neste momento, há um expressivo aumento da
população carcerária, entretanto sem receber em contrapartida aumento de
investimentos ou de vagas nos estabelecimentos prisionais. A precariedade de
condições vai se avolumando no cárcere, sobretudo no que se refere a
superlotação, alimentação e saúde dos presos, atingindo, portanto, elevados
índices de mortalidade.
Os autores apontam que esta imposição de sofrimento ao preso devia-se à
“necessidade de manter o seu padrão de vida abaixo do padrão das classes
subalternas da população livre”235. Desta forma, constituía-se o princípio
da menor elegibilidade (less elegibillity principle), com efeito dissuasivo-
repressivo, em vistas de não permitir que o cárcere tenha condições mais
favoráveis do que as piores condições de vida do trabalhador livre236.
Neste contexto, a mão de obra dos apenados não era mais considerada útil
ao modelo econômico vigente, de modo que o trabalho prisional deixou de estar
relacionado a um meio à obtenção de lucro para servir como instrumento de
punição. Considerava-se que a mera privação da liberdade não era suficiente para
assegurar os castigos, devendo, portanto, ser complementada com a imposição de
trabalhos forçados, fome, tortura e isolamento celular.
Rusche e Kirchheimer apontam que a partir da segunda metade do século
XIX, as classes subalternas passam por significativas melhorias nas condições de
vida, em razão do aumento dos salários, processo de industrialização,
desenvolvimento de meios de transporte e algumas políticas de assistência.
Consequência direta deste novo cenário socioeconômico foi a redução nos índices
de criminalidade. Neste período, a noção de cura do apenado, como correção
através da prisão, acarretará melhorias das condições da execução penal237.
235 Segundo Rusche e Kirchheimer, relatórios da época apontavam que os presos deveriam se submeter à “autoridade incondicional” e “enquadrar seus desejos nos limites das condições das classes subalternas”. KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 152 et. seq. 236 ARGUELLO, K., Uma abordagem criminológico-crítica das finalidades subjacentes à pena de prisão. 237 A ideia de correção associada à noção de cura de um problema médico-psicológico foi disseminada pelo discurso cientificista do positivismo criminológico. LOMBROSO, C., O homem delinquente.
93
O início do século XX também traz novas facetas ao sistema penal, com a
ascensão de regimes totalitários, particularmente o fascismo na Itália e o nacional
socialismo na Alemanha. Em matéria penal, seu legado é a afronta às garantias do
Direito Penal Liberal, dando ensejo a um modelo punitivo de contornos pré-
iluministas, marcado pelo arbítrio e pelo reestabelecimento da pena capital238.
Rusche e Kirchheimer irão debruçar-se ainda sobre estudos estatísticos
acerca da criminalidade em diversos países da Europa no início do século XX
chegando à conclusão de que a implementação de modelos de política criminal de
contornos liberais não representa o aumento dos índices de criminalidade, mas ao
contrário acarreta sua redução. Desta maneira, apontam que “a taxa de
criminalidade não é afetada pela política penal, mas está intimamente dependente
do desenvolvimento econômico”239.
3.1.2 Vigiar e punir: âmbito disciplinar e político-ideológico
Após o excurso histórico punitivo apresentado pelos autores alemães, vale
mencionar a contribuição de Michel Foucault, também decisiva para descortinar a
genealogia da prisão. Em Vigiar e punir, o filósofo francês revela como a
formação da sociedade disciplinar – que emerge na transição do século XVII ao
XVIII - e a afirmação da prisão como modelo punitivo estão intrinsecamente
correlacionadas às transformações econômicas que permeiam a Europa na
modernidade.
A contribuição foucaultiana, de inspiração pós-estruturalista240, aprofunda
o debate iniciado por Rusche e Kirchheimer acerca do papel do ideário iluminista
para o delineamento da invenção carcerária, entretanto, centrando foco em um
novo campo de estudo: a disciplina241. Se para os frankfurtianos era decisiva a
238 O sistema penal do nazismo representou a sobreposição do poder punitivo do Estado sobre os direitos e garantias individuais, caracterizando-se pela reintrodução da pena de morte, associação do delito à noção de traição à comunidade e julgamentos sumários e inquisitoriais. KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G ., op. cit., p. 233 e segs. 239 KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 270. 240 A obra de Foucault é classificada das mais variadas formas, assim como demais teóricos da Escola Francesa como Deleuze, Derrida, Lyotard e Guattari, ora tidos como pós-estruturalistas, estruturalistas, pós-modernos ou desconstrutivistas. 241VIANNA, G. S. S., Disciplina, direito e subjetivação: uma análise de Punição e estrutura social, Vigiar e punir e Cárcere e fábrica, p. 166. Disponível em:
94
dinâmica econômica de regulação do mercado de trabalho pautando o poder
punitivo estatal, para Foucault, é central trazer à análise as estratégias e
tecnologias de poder-saber, ou seja, a economia política dos corpos242.
O maior legado de Vigiar e punir reside em, analiticamente apontar, a
discrepância entre norma e disciplina, entre poder judiciário e poder punitivo,
entre doutrina penal e prática penal, entre discursos reformistas e afirmação
histórica do cárcere, entre sujeito de direito e corpos obedientes e dóceis243.
Foucault atenta para a dinâmica dos dispositivos disciplinares no cárcere,
como técnicas de poder que opera de modo calculado, contínuo, produzindo
sujeitos obedientes e úteis ao sistema. Esta gestão disciplinar dos corpos se
distingue da soberania estatal, mas constitui-se como uma microfísica do poder
que permeia aos poucos o próprio aparelho estatal244. Em sua ótica, os
mecanismos que possibilitaram o sucesso do empreendimento disciplinar são a
vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame245. Em sua análise,
porém, a prisão é parte constitutiva de uma rede de instituições disciplinares:
O que transformou a penalidade, na virada do século, foi o ajustamento do sistema judiciário a um mecanismo de vigilância e de controle; foi a integração comum de ambos num aparelho de Estado centralizado; mas foi também a instauração e o desenvolvimento de toda uma série de instituições (parapenais e, por vezes, não-penais) que serviam de ponto de apoio, de posições avançadas ou de formas reduzidas ao aparelho principal. Um sistema geral de vigilância-reclusão penetra por toda a espessura da sociedade, tomando formas que vão desde as grandes prisões, construídas a partir do modelo do Panopticom, até as sociedades de patronagem e que encontram seus pontos de aplicação não somente nos delinquentes, como também nas crianças abandonadas, órfãos, aprendizes, estudantes, operários etc.246
Contudo, Foucault mostra-nos que a instituição penitenciária já é
considerada falida por inúmeros críticos desde o seu surgimento, mas que a <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000770593>. Acessado em: 06/06/2015. 242 O autor traz ao debate a necessidade de evidenciar as contradições entre norma e disciplina, entre poder judiciário e poder punitivo, entre discurso penal e prática penal, entre discurso reformista e afirmação histórica da pena, entre sujeito de direito e sujeitados - corpos obedientes e dóceis. FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 193. 243 VIANNA, G. S. S., op. cit., p. 159. 244 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 153. 245 “O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame”. Ibid., p. 143. 246 Ibid, p. 38.
95
“reforma” funciona como seu próprio programa, visto que “a prisão se encontrou,
desde o início, engajada numa série de mecanismos de acompanhamento, que
aparentemente devem corrigi-la, mas que parecem fazer parte de seu próprio
funcionamento, de tal modo têm estado ligados a sua existência em todo decorrer
de sua história”247.
Segundo Foucault, na realidade, a prisão não se desvia de seu objetivo ao
aparentemente fracassar. Como lucidamente aponta Katie Arguello:
O sistema punitivo opera uma gestão diferencial das ilegalidades, cujo efeito indireto é golpear uma ilegalidade visível e útil (das classes subalternas) para encobrir uma oculta (das classes dominantes); e diretamente, alimenta uma zona de marginalizados criminais (produz uma “ilegalidade fechada, separada e útil”), inseridos em um próprio mecanismo econômico (“indústria” do crime) e político (utiliza-se dos criminosos com fins subversivos e repressivos).248
Interessante notar que Pachukanis havia feito, em A teoria geral do Direito
e o marxismo, uma reflexão embrionária muito próxima do argumento
apresentado por Foucault em Vigiar e punir. Pachukanis relativiza os “progressos”
consumados desde os reformismos de Beccaria e Howard, rebatendo que as penas
corporais não foram abolidas em todo lugar249.
3.1.3 Cárcere e fábrica: âmbitos político-econômico e ideológico-disciplinar
Dario Melossi e Massimo Pavarini, representantes da teoria criminológica
crítica na Escola de Bolonha, destacam-se ao publicar a obra Cárcere e fábrica, no
ano de 1977, deixando como contribuição teórica algumas respostas à lacuna
presente em Vigiar e punir no que tange à esterilidade da contraposição entre
ideologia e disciplina.
247 Ibid., p. 197. 248 ARGUELLO, K., Uma abordagem criminológico-crítica das finalidades subjacentes à pena de prisão. Sobre o conceito de ilegalidades populares e a seletividade da prisão, ver FOUCAULT, M., op. cit., p. 231 et. seq. 249 O autor menciona inclusive, baseando-se em Teoria da Pena, de I. J. Fojnickij, que, mesmo após as reformas penais, o castigo corporal subsiste na França enquanto sanção disciplinar aplicada aos penitenciários. PACHUKANIS, A teoria geral do Direito e o marxismo, p. 152.
96
Com o estudo das contribuições de Pachukanis sobre a forma jurídica,
Melossi e Pavarini buscam evidenciar que o direito, ao fixar a totalidade das
relações sociais no modo como aparecem na esfera da circulação, torna possível o
processo produtivo. A pena de prisão como noção de “retribuição equivalente” do
crime com a privação de um quantum de liberdade250, neste sentido, revela-se
simultaneamente um mecanismo jurídico-econômico – cobrando a dívida do
crime sob a equivalência de um tempo calculado de liberdade suprimida – e um
mecanismo técnico-disciplinar – investindo sobre os corpos dos condenados com
o “exercício de coação educativa total”251.
Melossi aponta que um dos grandes méritos de Vigiar e punir foi ter
demonstrado que a razão prática e a moral não são determinadas pela ideologia,
mas sim produzidas por técnicas específicas de controle sobre o corpo252. Porém,
para o italiano, esta importante articulação na obra foucaultiana corre o risco de
cair na “indeterminação de uma estrutura de signos e relações, brilhantemente
ligados entre si, mas cuja razão de existência nos escapa”253, uma vez que a
construção burguesa do corpo (na escola, no quartel, no cárcere, na família) só
poderia ser compreendida enquanto parte da organização do trabalho capitalista
“que necessita estruturar o corpo como máquina no interior da máquina produtiva
em seu conjunto”254.
A este respeito, Melossi e Pavarini destacam “a aporia presente no próprio
modo de produção capitalista, entre a esfera da distribuição ou circulação e a
esfera da produção ou de extração de mais-valia”255.
O contrato pode, portanto, ser assumido felizmente como fundamento ideal do poder político burguês, contanto que se reconheça, como co-essencial a este, o princípio disciplinar que sustenta o aparato técnico da coerção. Se a pena da privação da liberdade se estrutura, pois, sobre o modelo da ‘relação de troca’ (enquanto retribuição por equivalente), a sua execução (leia-se, penitenciária) é
250 Como ensina Pachukanis, foi preciso esperar a redução de todas as formas de “riqueza social” àquela mais abstrata e simples, “o trabalho humano medido em tempo”, através do capitalismo, para que surgisse a noção de “retribuição equivalente” do crime com a privação da liberdade. PACHUKANIS, op. cit., p. 159. 251 SANTOS, J. C. dos, 30 anos de Vigiar e Punir. 252 MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica, p. 76. 253 Ibid. 254 “Cárcere e trabalho na Europa e na Itália, no período de formação do modo de produção capitalista”, in: MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica, p. 77. 255 Ibid., p. 264.
97
moldada sobre a hipótese da ‘manufatura’, da ‘fábrica’ (enquanto disciplina e subordinação).256
A pena compreendida como retribuição representaria sua consonância com
o direito, com a igualdade formal e com a certeza jurídica; por outro lado, a pena
como execução é o momento da disciplina, da subordinação política e da
arbitrariedade. Neste sentido, a inovação de Cárcere e fábrica em face de Vigiar e
punir reside na compreensão da ligação entre esses dois momentos contraditórios
a partir da teoria marxista da forma jurídica257.
Em suma, observa-se uma complementaridade entre as três referidas obras.
Em Punição e estrutura social, a análise da prisão se submete à prevalência de
uma esfera econômica apartada da política, compreendendo-se a dinâmica do
sistema penal enquanto regulador do mercado de trabalho. Em viés contrário,
Vigiar e punir traz à tona a constituição de indivíduos obedientes e socialmente
úteis ao sistema, através da prisão dando-se ênfase às técnicas de poder
disciplinar. Por fim, em Cárcere e fábrica há um equilíbrio entre estas duas
perspectivas de análise da trajetória histórica do sistema penal. Nesta última obra,
a prisão não produz apenas mercadorias, nem apenas homens, mas, sobretudo, o
próprio homem enquanto mercadoria. A análise de Arguello bem sintetiza esta
reflexão:
considera-se que a obra de Rusche e Kirchheimer, tenha subestimado o papel das forças ideológicas e políticas;69 quanto a Foucault, critica-se o caráter historicamente abstrato que assume a disciplina, sem se reconduzir às relações de produção. Os fundamentos materialistas que reenviam a questão da disciplina às relações de produção na fábrica, a partir da contradição entre capital e trabalho, são desenvolvidos por Melossi e Pavarini, em “Cárcere e fábrica”, e também por outros teóricos da criminologia crítica, impondo-se como outro marco decisivo para essa disciplina.258
Por este viés, percebe-se que historicamente a prisão, de fato, tem
realizado a função de “produzir a relação de desigualdade” e os
256 Ibid. 257 VIANNA, G. S. S., Disciplina, direito e subjetivação: uma análise de Punição e estrutura social, Vigiar e punir e Cárcere e fábrica, p. 129. 258 ARGUELLO, K., Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem, p. 17. Disponível em: <http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2013/01/Artigo-Katie.pdf>. Acessado em: 06/06/2015.
98
“sujeitos submissos”259 dessa relação por meio da subordinação estrutural do
trabalho ao capital e da disciplina exigida pelo sistema capitalista através do
binômio cárcere/fábrica260.
O enlace destas contribuições teóricas evidencia que as teses de Rusche e
Kirchheimer (aspecto econômico-político), de Foucault (aspecto disciplinar e
ideológico-político) e de Melossi e Pavarini (aspectos econômico-político e
ideológico-disciplinar)261 são decisivas para compreender a dinâmica operativa do
sistema penal em sua complexidade. Revelam que os modelos de punição não
podem ser colocados em análise separadamente, de maneira atomizada, como se
fossem distintos e segregados de toda a realidade social. De modo que, conforme
apontaram Rusche e Kirchheimer “o sistema penal de uma dada sociedade não é
um fenômeno isolado sujeito apenas às suas leis especiais. É parte de todo o
sistema social, e compartilha suas aspirações e seus defeitos”262.
Desta forma, é necessária uma análise materialista-dialética do modelo
punitivo contemporâneo, circunscrito nos marcos do capitalismo neoliberal,
iniciado a partir da segunda metade do século XX. Por este prisma, a tese de
Rusche e Kirchheimer precisa ser atualizada.
Para alguns estudiosos, as mudanças nas relações de produção
capitalistas no século XX colocam em xeque as próprias bases da instituição
penitenciária, que se torna obsoleta e incapaz de atender às suas funções
manifestas263. Na opinião de Takagi e Platt: “A hipótese de Rusche em Punição e
estrutura social funcionou bem quando aplicada a sociedades pré-industriais em
que o trabalho poderia ser forçado e produtivo, mas aparentemente se perde
quando aplicada a sistemas de punição no século 20” (tradução nossa)264.
259 BARATTA, A., Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal, p. 193. 260 SANTOS, J. C. dos, Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial, p. 43. MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica, p. 211. 261 Esta percepção pode ser aprofundada em ARGUELLO, K., Uma abordagem criminológico-crítica das finalidades subjacentes à pena de prisão. 262 KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 273 et. seq. 263 Para Garland, após dois séculos de otimismo racional e de crença no aparato técnico para punir e controlar os desviantes, na atual conjuntura, de crise do modelo punitivo moderno, até mesmo os especialistas reconhecem os limites desta engenharia punitiva. GARLAND, D., Punishment and modern society, p. 7 et. Seq. Contudo, Foucault mostra-nos que a instituição penitenciária já é considerada falida por inúmeros críticos desde o seu surgimento, mas que a “reforma” funciona como um programa da própria prisão. FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 197. 264 “Rusche’s hypothesis in Punishment and Social Structure worked well when applied to preindustrial societies in which labor could be forced and productive, but it apparently breaks
99
Entretanto, as últimas décadas do século XX assistem ao movimento
contrário em boa parte do mundo, com o crescimento das taxas de
encarceramento. Ao esmiuçar os fenômenos recentes da questão criminal,
Wacquant endossa a hipótese central de Rusche e Kirchheimer de que o modelo
punitivo atua como médium do mercado de trabalho, apontando que “o sistema
penal contribui diretamente para regular os segmentos inferiores do mercado de
trabalho – e isso de maneira infinitamente mais coercitiva do que todas as
instituições sociais e regulamentos administrativos”265.
Wacquant descreve o fenômeno da transição do estado-providência para o
estado-penitência266, demonstrando a hipertrofia punitiva, nos EUA e seus
reflexos na Europa e países periféricos. É diante deste deslizamento do social para
o penal que se transfigura o sistema punitivo, no contexto do capitalismo em sua
fase neoliberal, conforme será analisado no próximo item.
3.2 O advento do Estado penal: Neoliberalismo e Sistema Penal
3.2.1 A gênese do campo burocrático neoliberal
A tese de Rusche e Kirchheimer, de viés materialista-histórico, cunhada
nos anos de 1930, tida como referencial para a Criminologia Crítica para
compreender as interfaces entre os modelos de punição e a estrutura
socioeconômica267, perde força no período do pós-guerra, quando a ênfase se
encontrava numa concepção tecnocrática dos problemas sociais. A partir da
segunda metade dos anos 1970, quando começa a se delinear o período pós-
fordista da economia, esse paradigma materialista é retomado. Cabe, portanto,
down when applied to punishment systems in the 20th century”. PLATT, T.; TAKAGI, P. (orgs.), Punishment and penal discipline: essays on the prison and the prisoners’ movement, p. 1. 265 WACQUANT, L., As prisões da miséria, p. 96. 266 Wacquant observa que “à regulamentação da pobreza permanente pelo trabalho assalariado sucede sua regulamentação pelas forças da ordem e pelos tribunais”. Ibid., p. 129. 267 Sabemos, desde os trabalhos pioneiros de Georg Rusche e Otto Kirchheimer, confirmados por cerca de 40 estudos empíricos em uma dezena de sociedades capitalistas, que existe no nível societário uma estreita e positiva correlação entre a deterioração do mercado de trabalho e o aumento dos efetivos presos – ao passo que não existe vínculo algum comprovado entre índice de criminalidade e índice de encarceramento. Ibid., p. 106.
100
promover a atualização da análise dos teóricos da Escola de Frankfurt, para
compreender o sistema punitivo nos marcos do neoliberalismo.
A ideologia neoliberal surge na Europa Ocidental e América do Norte no
pós-II Guerra Mundial, desenvolvendo-se desde o início do século XX a partir da
Escola Austríaca, fundada por Carl Menger e continuada por Ludwig Von Mises,
que formulou os postulados que caracterizam o eixo do pensamento neoliberal até
os dias atuais. Baseada na revalorização do liberalismo econômico dos séculos
XVIII e XIX, esta ideologia tentaria recuperar o “sentido original do liberalismo”,
apontando para uma descaracterização do termo “liberal” em relação ao
liberalismo clássico268. De tal sorte, o ideário neoliberal reacende a defesa da
existência de uma “mão invisível” que exerceria a regulação das ações dos
homens e a busca constante de equilíbrio no mercado.
Entretanto, segundo aponta o eminente estudo elaborado pelo historiador
inglês Perry Anderson269, o grande marco do surgimento do pensamento
neoliberal encontra-se na publicação do livro O Caminho da Servidão, de
Friedrich Auguste Hayek, discípulo de Von Mises, em 1944, na Grã-Bretanha270.
“Trata-se de um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de
mercado por parte do Estado, denunciada como uma ameaça letal à liberdade, não
somente econômica, mas também política”271. O intervencionismo keynesiano, na
visão de Hayek, será considerado inevitavelmente como caminho em direção ao
crescimento da coerção administrativa arbitrária e a progressiva destruição do
Estado de direito que, por sua vez, levariam à constituição de um regime
totalitário.
A despeito de ser uma expressão largamente utilizada desde então, a
bibliografia que trata do tema nem sempre é rigorosa na proposição de um
conceito de neoliberalismo. Este é geralmente utilizado de modo descritivo, sem
268 VON MISES, L., Liberalismo segundo a tradição clássica. 269 ANDERSON, P., Balanço do neoliberalismo. 270 Mais tarde, em 1947, Hayek e outros simpatizantes do neoliberalismo (Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwing Von Mises, Walter Eupken, Walter Lipman, Michael Polanyr, Salvador de Mandrija, entre outros) reúnem-se na estação de esqui de Mont Pèlerin (Suíça), fundando a Mont Pèlerin Society. Trata-se de uma sociedade dedicada a promover a economia de livre mercado, cujo propósito se baseava no combate ao keynesianismo e, se caracterizava pela natureza franco-maçonaria neoliberal, altamente dedicada e organizada. A cada dois anos, realizam-se encontros internacionais para preparar as bases de outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro. Ibid., p. 10. 271 Ibid., p. 9 passim.
101
que os autores procurem compreender sua origem e seu papel, o que acaba por
esvaziar o potencial explicativo do conceito272. No esforço de apresentar uma
definição, Harvey afirma:
El neoliberalismo es, ante todo, una teoría de prácticas político-económicas que afirma que la mejor manera de promover el bienestar del ser humano, consiste en no restringir el libre desarrollo de las capacidades y de las libertades empresariales del individuo, dentro de un marco institucional caracterizado por derechos de propiedad privada, fuertes mercados libres y libertad de comercio. El papel del Estado es crear y preservar el marco institucional apropiado para el desarrollo de estas prácticas.273
Os teóricos neoliberais passaram a defender enfaticamente que o problema
da crise do capitalismo estava nos sindicatos e no movimento operário que corroía
as bases do capitalismo ao destruir os níveis de lucros das empresas274. Portanto,
apregoam a precarização das relações de trabalho como garantia de estabilidade
aos mercados275.
A política neoliberal foi inaugurada no Chile no período do ditador
Pinochet, entretanto, foi na Inglaterra de Margareth Thatcher que ganhou seus
contornos mais definitivos e acabados. Segundo Anderson o programa econômico
dos governos Thatcher previam pelo menos a seguinte receita:
a) contrair a emissão monetária; b) elevar as taxas de jutos; c) diminuir os impostos sobre rendimentos altos; d) abolir os controles sobre fluxos financeiros; e) criar desemprego massivo; e) aplastar as greves; f) elaborar legislação antissocial; g) cortar gastos públicos e finalmente; h) praticar um amplo programa de privatização.276
272 Outra limitação reside no fato de que parte da bibliografia não atenta para as contradições entre a teoria e a prática neoliberal, e tende a desconsiderar as diferentes formas que o neoliberalismo assume em países centrais e periféricos. DUMÉNIL, G.; LÉVY, D., Une théorie marxiste du néolibéralisme. 273 HARVEY, D., Breve historia del neoliberalismo, p. 8. 274 ANDERSON, P., op. cit. 275 Neste sentido, Bordieu ironicamente aponta que significaria passar aos trabalhadores a seguinte mensagem: “abandonem hoje as suas conquistas sociais, sempre para evitar destruir a confiança dos investidores, em nome do crescimento que isso nos trará amanhã. Uma lógica bem conhecida pelos trabalhadores afetados que, para resumir a política de participação que em outros tempos o gaullismo lhes oferecia, diziam: Você me dá o seu relógio que eu lhe dou a hora”. BORDIEU, P., Contrafogos, p. 66. 276 ANDERSON, P., op. cit., p. 9.
102
A hegemonia deste programa levou cerca de uma década, a década de
1970, para ser implementada quando, em outra direção, a maioria dos governos da
Organização Europeia para o Comércio e Desenvolvimento (OCDE) tratavam de
adotar ajustes keynesianos para superar as crises econômicas. O momento chave
vem em 1979, com a eleição do governo Thatcher na Inglaterra, o primeiro país
de capitalismo avançado disposto a levar a cabo o programa neoliberal. Um ano
depois, em 1980, Reagan chegou à presidência dos Estados Unidos. Em seguida,
quase todos os países do norte da Europa ocidental, com exceção da Suécia e da
Áustria, também adotaram as teses neoliberais, irradiando-se, posteriormente, aos
países da Cortina de Ferro com a queda do muro de Berlim. “O impacto do triunfo
neoliberal no leste europeu tardou a ser sentido em outras partes do globo,
particularmente, pode-se dizer, aqui na América Latina, que hoje em dia se
converte na terceira grande cena de experimentações neoliberais”277.
Na América Latina o chamado ideário neoliberal encontrou sua mais
acabada expressão e sistematização no encontro realizado em novembro de 1989
na capital dos Estados Unidos, que ficou conhecido como Consenso de
Washington. Os objetivos elementares do Consenso de Washington pugnam “por
um lado, a drástica redução do Estado e a corrosão do conceito de Nação; por
outro, o máximo de abertura à importação de bens e serviços e à entrada de
capitais de risco. Tudo em nome de um grande princípio: o da soberania absoluta
do mercado auto regulável nas relações econômicas tanto internas quanto
externas”278.
A despeito do sucesso, inimaginável aos seus ideólogos, com a
globalização dos mercados, na visão de Anderson:
Economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonham, disseminando a simples ideia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas.279
277 ANDERSON, P., Balanço do neoliberalismo, p. 9. 278 BATISTA, P. N., O Consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-americanos, p. 27. 279 ANDERSON, P., op. cit., p. 12.
103
É neste sentido que Michel Foucault irá antecipar, em 1978 na obra
Segurança, Território e População, que o neoliberalismo deve ser compreendido
como uma nova governamentalidade280. Com efeito, no neoliberalismo tem de
haver uma intervenção maciça do Estado sobre a sociedade para garantir a
moldura do mercado, como regulador desta:
Ele (o Estado) tem de intervir sobre a própria sociedade em sua trama e em sua espessura. (...) Vai se tratar, portanto, não de um governo econômico, como aquele com que sonhavam os fisiocratas, isto é, o governo tem apenas de reconhecer e observar as leis econômicas; não é um governo econômico, é um governo de sociedade.281
Por este viés, sob o prisma do neoliberalismo – em especial o da Escola de
Chicago –, o sujeito materialista e individualista, em uma palavra, utilitário;
garantidor da extinção do Estado deveria ser produzido para que fosse possível
uma organização autônoma da sociedade civil. O projeto neoliberal: “busca
estender a racionalidade do mercado, os esquemas de análise que ela propõe e os
critérios de decisão que sugere a domínios não exclusivamente ou não
prioritariamente econômicos. No caso, a família e a natalidade ou a delinquência e
a política penal”282.
Loic Wacquant irá identificar, portanto, claramente duas leituras distintas
acerca do significante que se pode extrair do projeto neoliberal:
A antropologia do neoliberalismo se polarizou entre um modelo econômico hegemônico, ancorado por variantes do domínio de mercado, e uma abordagem rebelde, alimentada por derivações da noção foucaultiana de governamentalidade. Ambas as noções dissimulam o que é “neo” no neoliberalismo: a reengenharia e a reestruturação do Estado como a agência principal que estabelece regras e conforma as subjetividades, relações sociais e representações coletivas apropriadas à produção de mercados.283
280 Em vias de descrever o funcionamento do modo de governo do Estado moderno, Foucault elaborou o conceito de governamentalidade o entendendo como: “o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança”. FOUCAULT, M., Segurança, território e população, p. 143. 281 Ibid., p. 151. 282 Ibid. p. 329. 283 WACQUANT, Três etapas para uma Antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente.
104
O criminólogo francês vale-se do conceito de “campo burocrático” de
Pierre Bourdieu284, para propor uma via média entre essas duas abordagens, que
concebe o neoliberalismo como uma articulação entre Estado, mercado e
cidadania, aparelhando o primeiro para impor a marca do segundo à terceira. Essa
concepção repatria a penalidade para o centro da produção de um Estado
punitivo285.
Este panorama de implementação do neoliberalismo, não apenas enquanto
projeto de liberalização econômica, mas, sobretudo como gestão de uma nova
governamentalidade, deve ser analisado pormenorizadamente no laboratório onde
foi levado ao paroxismo. Neste sentido, cabe examinar a experiência
estadunidense, verificando seus efeitos, de um lado com a derrocada do Welfare
State, e de outro, com a ofensiva punitiva.
3.2.2 Do Estado de bem estar social ao Estado penal
A difusão do modelo econômico neoliberal traz consigo como legado o
declínio do Estado de Bem Estar Social. Parece haver atualmente o entendimento
comum entre conservadores e progressistas de distintos matizes que o Estado
Keynesiano foi suplantado na maioria dos países do mundo, a despeito de sua
solidez erguida no pós-guerra. As leituras acerca de sua natureza e extensão são,
entretanto, alvo de controvérsias.
Giuseppe Vacca entende que a crise do Welfare State, com a estagnação do
desenvolvimento econômico, confunde-se, também, com a crise do Estado nação,
que por sua vez, traz em seu bojo uma crise fiscal, uma crise de legitimação e uma
284 O conceito de campo é definido por Bourdieu e Wacquant “como una red o una configuración de relaciones objetivas entre posiciones”. BOURDIEU, P.; WACQUANT, L., Una invitación a la sociologia reflexiva, p. 134. Notadamente, a noção de campo burocrático é trabalhada por Bourdieu para redefinir o Estado como uma arena de lutas pela definição e manipulação dos bens públicos. É um dos três conceitos forjados pelo autor para repensar a posição de governo, não devendo ser confundido com o campo político (com o qual faz interseção), nem com o campo do poder (no qual está situado). BOURDIEU, P., Rethinking the state: on the genesis and structure of the bureaucratic field. 285 WACQUANT, Três etapas para uma Antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente, p. 505.
105
crise de governabilidade. Aos crescentes problemas de falta de produtividade do
aparelho estatal, a fórmula “menos Estado, mais mercado” surge como solução286.
Na análise de Vicente Navarro o centro da questão está na derrocada do
welfarismo na desconstrução da natureza ideológica dos argumentos anti-welfare,
associando o estado de bem estar como elemento gerador de estagnação social.
Desta forma, caracterizando o neoliberalismo como um “keynesianismo
militarista”, levando em conta a relação entre a redução de gastos sociais e o
aumento de gastos militares, sobretudo no governo Reagan287.
Zygmunt Bauman, por seu turno, aponta que este Estado não pôde mais
custear as garantias para o cidadão, pois, com a crescente mecanização da
produção, surge, assim, um exército de trabalhadores desempregados, uma massa
de inimpregáveis, que foram condenados a viverem excluídos da sociedade de
consumo, aqueles que sobraram, e, portanto, são descartáveis.
O estado de bem-estar tinha de arcar com os custos marginais da corrida do capital pelo lucro, e tornar a mão-de-obra deixada para trás novamente empregável — um esforço que o próprio capital não poderia empreender. Hoje, com um crescente setor da população que provavelmente nunca reingressará na produção e que, portanto, não apresenta interesse presente ou futuro para os que dirigem a economia, a “margem” já não é marginal e o colapso das vantagens do capital ainda o faz parecer menos marginal — maior, mais inconveniente e embaraçoso — do que o é. A nova perspectiva se expressa na frase da moda: “Estado de bem-estar? Já não podemos custeá-lo”.288
Os efeitos da minimização do Estado de bem-estar com a suspensão do
custeamento das condições protetivas para os indivíduos, foram bastante
expressivos. Constituiu-se uma gigantesca massa de excluídos que foram privados
das condições dignas de sobrevivência e que não puderam mais participar ou
gozar de um papel na sociedade capitalista, são os “consumidores falhos” que se
enfileiram no “exército de reserva de mão de obra”289.
Neste trabalho, interessa-nos compreender como se deu a transição do
modelo de Estado de Bem Estar Social para o modelo de Estado Penal, sob égide
do empreendimento neoliberal. É necessário, portanto, identificar a
286 VACCA, G., Estado e mercado, público e privado, p. 163. 287 NAVARRO, V., Welfare e keynesianismo militarista na era Regan, p. 190. 288 BAUMAN, Z., O mal-estar da Pós-modernidade, p. 51. 289 Ibid., p. 55.
106
implementação de um vasto programa que concomitantemente alia a corrosão das
políticas sociais e assistenciais e sua substituição por políticas repressivas.
Esta transfiguração do intervencionismo estatal é estudada por Loic
Wacquant. Debruçando-se sobre as reformas nas políticas sociais implementadas
nos EUA no último quartel do século XX, o autor aponta para o declínio do
Welfare State (Estado de Bem-Estar Social) e a ascensão do Warfare State (Estado
Penal), preconizando o incremento do aparato repressivo do Estado290. O autor
aponta que:
No decorrer das três últimas décadas (...) a América lançou-se numa experiência social e política sem precedentes (...): a substituição de um (semi) Estado-providência por um Estado penal e policial, no (...) qual a criminalização da marginalidade e a ‘contenção punitiva’ das categorias deserdadas faz-se de política social.291
A partir do momento em que o Estado retrocede no que tange à sua
dimensão prestacional de direitos sociais, se torna necessária a intervenção do seu
aparato repressivo em relação às condutas consideradas transgressoras da lei e o
rigoroso controle dos grupos sociais ditos ameaçadores da nova ordem. Este
binômio conduz Wacquant a fazer uso da expressão Estado Centauro para retratá-
lo292.
Trata-se de uma nova forma política, um Estado híbrido de viés “liberal-
paternalista", que exibe rostos opostos nos dois extremos da estrutura de classes:
ele é edificante e ‘libertador’ no topo, onde atua para alavancar os recursos e expandir as opções de vida dos detentores de capital econômico e cultural; mas é penalizador e restritivo na base, quando se trata de administrar as populações desestabilizadas pelo aprofundamento da desigualdade e pela difusão da insegurança do trabalho e da inquietação étnica. O neoliberalismo realmente existente exalta o “laissez faire et laisez passer” para os dominantes, mas se mostra paternalista e intruso para com os subalternos, especialmente para com o
290 O fim da Guerra Fria e a queda do muro de Berlim demarcam a ascensão da nova ordem mundial, cenário que torna obsoleta a necessidade de programas governamentais orientados na filosofia do Estado-Providência. 291 VACCA, G., Estado e mercado, público e privado, p. 154. 292 O conceito utilizado por Wacquant simboliza ao mesmo tempo um ser dotado de cabeça humana, representando o racionalismo liberal, e de corpo bestial, espelhando sua face penal e de controle punitivo. Tal metáfora fora também trabalhada anteriormente por Maquiavel, Gramsci e Poulantzas. Ver em: Maquiavel, O Príncipe, p. 94. GRAMSCI, A., Cadernos do cárcere, v. 3 (“Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política”). POULANTZAS, N., O Estado, o poder, o socialismo, p. 10.
107
precariado urbano, cujos parâmetros de vida ele restringe através da malha combinada de workfare fiscalizador e da supervisão judicial293.
Deste modo, o autor afirma que o Estado, que se mostra incapaz de superar
a crescente crise social, empenha seus esforços em uma gestão penal da miséria,
na criminalização das consequências da pobreza.
Como salienta Arguello, as duas principais manifestações do programa
criminalizante levado a cabo pelo empreendimento neoliberal nos Estados
Unidos, substituindo progressivamente, nas últimas três décadas, um semi
Estado-providência por um Estado policial, foram294:
a) os dispositivos do workfare, que transformam os serviços sociais em
instrumento de vigilância e controle das classes consideradas “perigosas” -
condicionam o acesso à assistência social à adoção de certas normas de conduta
(sexual, familiar, educativa, etc.), e o beneficiário do programa deve se
submeter a qualquer emprego (não importa a remuneração nem as
condições de trabalho);
b) a adoção de uma política de “contenção repressiva” dos pobres, por
meio do encarceramento em massa, tendo como resultado mais visível e
estarrecedor um crescimento da população carcerária nunca visto em uma
sociedade democrática, de 314% em 20 anos (entre 1970 a 1991)295. Este
segundo efeito desta metamorfose da dinâmica operativa do Estado será analisado
no próximo item deste trabalho.
No que tange à adoção dos dispositivos de workfare, é importante observar
que significativos retrocessos nas políticas de assistência e previdência social
foram introduzidos no Governo Reagan, em 1980. Entretanto, destaca-se,
sobretudo, a decisiva contribuição da reforma da assistência social votada pelo
congresso americano e implementada no Governo Bill Clinton em 1996,
denominada por Wacquant de “verdadeira falsa reforma”:
293 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 20 et. seq. 294 ARGUELLO, K., Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem, p. 6. 295 Conforme ARGUELLO, K., Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem.
108
consiste em abolir o direito a assistência para as crianças mais desfavorecidas e substituí-lo pela obrigatoriedade do salariado desqualificado e subpago para seus pais”. “afeta apenas um setor menor dos gastos sociais (...) voltados para as famílias pobres. (...) o objetivo declarado desta lei é reabsorver não a pobreza, mas a pretensa dependência das famílias assistidas em relação aos programas sociais.296
Tais medidas obtiveram popularidade junto ao eleitorado das classes
médias brancas, visto que compartilham do senso comum que vê a assistência aos
pobres como mantenção da ociosidade e do vício dos habitantes do gueto. Assim,
busca-se fazer as pessoas passarem da assistência ao emprego, mas, a vertente
emprego da lei é inexistente. Nela não é previsto nenhum orçamento para
formação profissional ou para a criação de postos de trabalho.
O escopo da reforma assume contornos de enquadramento dos pobres,
representando inúmeras restrições. Revoga o direito à assistência de que as
crianças desfrutam, e, em seu lugar instaura uma duração máxima acumulada de
cinco anos de assistência por uma vida. Os estados e condados passam a ter toda a
liberdade de ação para impor condições de atribuições dos auxílios mais
restritivas do que as enunciadas pela lei federal.
De fato, a lei institui um sistema de prêmios e penalidades financeiras
encorajando os estados a eliminar por todos os meios os assistidos. Os orçamentos
da assistência passam a ser determinados não em função das necessidades das
populações, mas por dotações fixas. Ademais, a nova legislação exclui do registro
das verbas um conjunto de categorias sociais como os imigrantes legais chegados
a menos de 10 anos (que, no entanto, pagam impostos), as pessoas condenadas por
infração à legislação sobre estupefacientes, as crianças pobres portadoras de
deficiência física, dentre outros.
Este conjunto de restrições à assistência social terá considerável impacto
nas camadas mais populares da sociedade estadunidense. Verifica-se uma nova
redução do nível de vida das famílias americanas mais pobres. As famílias que
sobrevivem abaixo da metade da linha da pobreza (menos de 7.800 dólares anuais
para quatro pessoas) sofrerão a maior parte dos cortes do programa de tíquetes
alimentares. No mesmo compasso, observou-se a redução no nível dos salários
desqualificados. A economia informal vai conhecer uma retomada de crescimento,
296 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 147.
109
e com ela a criminalidade e a insegurança, o numero de pessoas sem teto
aumentou consideravelmente297.
O aprofundamento das desigualdades sociais aliado à repressão seletiva às
camadas populares permite revelar o que está nas partes “inferiores e
desconfortáveis de nós mesmos” sobre o outro, “essencializando-o” e, finalmente,
culpabilizando-o pelas mazelas estruturais de nossa sociedade298.
Conforme aponta Slavoj Zizek, as inseguranças advindas do
desmantelamento do welfare state são vendidas enquanto oportunidades de novas
liberdades, como se a flexibilização trabalhista pudesse ser encarada como uma
chance do indivíduo de se libertar das amarras de uma carreira permanente e
realizar seu potencial oculto, reinventando-se. Do mesmo modo, a falência dos
sistemas públicos de saúde e previdência não passariam de oportunidades nas
quais o indivíduo tem de exercer seu livre arbítrio e escolher entre um melhor
estilo de vida no presente ou mais segurança no futuro299.
As consequências da adoção do pacote de medidas anti-welfare não se
resumem à explosão da pobreza e da desigualdade social, mas, também, desaguam
no aumento da criminalidade e da violência, já que, como salienta Jock Young:
a violência e o crime são, amiúde, o único meio dos jovens da classe trabalhadora sem perspectiva de emprego para adquirir dinheiro e os bens de consumo indispensáveis para ascender a uma existência socialmente reconhecida.300
A fim de garantir a contenção das desordens geradas pela exclusão social,
desemprego em massa, imposição do trabalho precário e retração da proteção
social, utiliza-se amplamente da estratégia de criminalização das classes
potencialmente perigosas. Nesta cruzada contra a “criminalidade”, o Estado norte-
americano incrementa políticas repressivistas, buscando reparar suas debilidades
sociais, não mais através do Estado de Bem Estar Social, mas sim, pela
criminalização das consequências da miséria, promovendo a contenção punitiva
dos pobres e dos jovens negros do gueto.
297 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 168. 298 YOUNG, J., A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente, p. 156. 299 ZIZEK, S., Against human rights, p. 3. 300 WACQUANT, L., op. cit., p. 33.
110
Em tempos neoliberais, a soberania dos mercados sobrepõe-se à
soberania estatal, inebriando todas as dimensões da gestão política e econômica
do Estado. A economia e a política, outrora símbolos de sua soberania, não mais
estão circunscritas ao seu âmbito decisório. Resta-lhe apenas a soberania penal, o
jus puniendi, resumindo suas tomadas de decisão ao policiamento do território e
da população. No capitalismo vídeo-financeiro, aos governos restou pouco mais
do que o mero papel de distritos policiais superdimensionados, dirigidos a
assegurar a “confiança dos investidores”301.
3.2.3 O Leviatã neoliberal: o grande encarceramento nos EUA
Arraigados à defesa ideológica do fim do “governo grande” (big
government), os analistas sociais do neoliberalismo silenciam diante da gigantesca
expansão do aparato penal do Estado em meio à liberalização dos mercados302. No
bojo do empreendimento burocrático neoliberal, o desmantelamento do Estado
social e a hipertrofia súbita do Estado penal são dois desenvolvimentos
concomitantes e complementares, a forjar o que Wacquant denomina de “Leviatã
neoliberal”303. Evidencia a clara opção pelo estabelecimento de uma regulação
punitiva da pobreza racializada na qual a prisão ocupa uma posição central.
Contrariando a leitura de alguns estudiosos, Wacquant aponta que o
fortalecimento e a ampliação do setor penal do campo burocrático não são uma
resposta à criminalidade, tampouco seriam a cria do advento da “sociedade
exclusiva”, a ascensão de uma “cultura de controle”, o declínio da confiança no
301 BAUMAN, Z., Globalização. As conseqüências humanas, p. 128. 302 Acerca desta retração do papel estatal, Francisco de Oliveira destaca que: “O Estado mínimo da falsa utopia neoliberal não é mínimo na economia, como pregam os tolos: ele se faz mínimo é na política”. OLIVEIRA, F. de; RIZEK, C. S. (orgs.), A era da indeterminação, p. 311. 303 Wacquant resgata o conceito trabalhado por Thomas Hobbes em O leviatã. Na obra, o autor resgata esta figura bíblica para metaforicamente explicar o funcionamento do Estado. Em suas palavras “aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em latim Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado”. HOBBES, T., O leviatã, p. 9. Wacquant, por sua vez, considera que o recrudescimento punitivo decorrente da ascensão do modelo econômico neoliberal, daria ensejo ao que chama de Leviatã neoliberal, um Estado absenteísta em políticas sociais, mas absoluto em sua dimensão penal. WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos.
111
governo, o acatamento da “sociedade de risco”304 e nem, muito menos, uma
criação de especuladores sedentos de lucro.
O inchamento da instituição penal é um tijolo no edifício do Leviatã neoliberal. É por isso que ela está estreitamente correlacionada, não à onda de ‘ansiedades ontológicas’ da ‘modernidade tardia’, mas às mudanças específicas de fortalecimento do mercado nas políticas econômicas e sociais que desencadearam a desigualdade de classe, aprofundaram a marginalidade urbana e alimentaram o ressentimento étnico, ao mesmo tempo em que erodiram a legitimidade dos formuladores de políticas.305
Wacquant aponta que a retração do investimento social implica no
superinvestimento carcerário, uma vez que este se apresentaria como o único
instrumento capaz de enfrentar as mazelas advindas da derrocada do welfare e
pela generalização da insegurança social. Em sua análise:
a atrofia deliberada do Estado social corresponde à hipertrofia distópica do Estado penal: a miséria e a extinção de um tem como contrapartida direta e necessária a grandeza e a prosperidade insolente do outro. A esse respeito, cinco tendências de fundo caracterizam a evolução penal nos Estados Unidos desde a virada social e racial esboçada no início dos anos 60, em resposta aos avanços democráticos provocados pelo levante negro e pelos movimentos populares de protesto que vieram em sua esteira (estudantes, oponentes à guerra do Vietnã, mulheres, ecologistas, beneficiários da ajuda social) durante a década precedente.306
As cinco grandes tendências da emergência do Estado penal, apontadas
pelo autor são: a) o encarceramento massivo; b) ampliação horizontal da rede de
controle penal; c) a hipertrofia orçamentária do sistema penal; d) a indústria do
controle e a privatização do sistema penitenciário; e) e, por fim, a seletividade
punitiva racializada.
Necessário se faz examinar tais fatores determinantes do “grande salto
penal para trás” que transformou os Estados Unidos de ponto de referência da
penalidade progressista dos anos 1960 em líder mundial de encarceramento e
304 Conforme proposto, respectivamente, por Jock Young, John Pratt e Jonathan Simon para sinalizar as principais macroteorias opostas da mudança penal recente. Apud WACQUANT, Três etapas para uma Antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente, p. 513. 305 Ibid., p. 513. 306 Id., As prisões da miséria, p. 80.
112
exportador global de políticas agressivas de controle da criminalidade nos anos
1990307.
a) O Encarceramento em massa
Analisando as três primeiras décadas do pós-guerra, o criminólogo Alfred
Blumstein observa que a população prisional dos EUA apresentava
impressionante estabilidade, oscilando entre 90 e 110 presos por 100.00
habitantes. Este diagnóstico o conduziu a elaborar a Teoria Homeostática,
compreendendo que cada sociedade tem uma variante “normal” de castigo
determinando uma taxa de encarceramento estável no tempo308. Na realidade, a
população prisional diminuía progressivamente no início da década de 1960, a
uma média de em torno de 1% ao ano. Porém, contrariando qualquer expectativa
esta teoria cai por terra em meados da década de 1970, quando a população
penitenciária do país começa a aumentar em uma velocidade vertiginosa.
No limiar do século XXI a taxa de encarceramento nos EUA se estabilizou
em aproximadamente 700 presos por 100.000 habitantes, nada menos do que
cinco vezes o quantitativo verificado até a década de 1970.
Com uma taxa prisional estratosférica, os EUA se notabiliza por erguer o
empreendimento do grande leviatã punitivo. A reviravolta da demografia
carcerária nos EUA foi brutal a partir de 1973. De modo que, a população
prisional em números absolutos dobrou em dez anos e quadruplicou em vinte.
Partindo de cerca de 380 mil presos em 1975, beira o vertiginoso exército de 2,2
milhões de prisioneiros em 2006.
307 WACQUANT, L., As prisões da miséria. 308 BLUMSTEIN, A., Prisons, p. 387 et. seq.
113
Figura 1: População Prisional EUA (1920-2006)
Fonte: Justice Policy Institute Report
De tal modo, o diagnóstico de Punição e Estrutura Social revigora-se em
face do exemplo enfático da hiperinflanção carcerária nos Estados Unidos,
marcada, em sua gestão penal da miséria, pelo encarceramento de pequenos
delinquentes.
A hipertrofia penitenciária é também alimentada pelo crescimento
concomitante de dois fatores: a elevada duração das penas e o alto número de
condenados à pena privativa de liberdade. A majoração do quantum das penas
deve-se sobremaneira à implementação da three strikes and you’re out
(perpetuidade automática no terceiro crime), presente em alguns estados. Quanto
ao recurso sistemático recurso à pena de prisão, o crescente punitivismo passa a
preconizar a reclusão para uma gama de delitos que anteriormente não conduziam
ao cárcere.
Contrariamente ao discurso político e midiático, não são os criminosos
perigosos e violentos que abarrotam as prisões americanas, mas, criminosos sem
expressão, condenados por delitos como comércio de substâncias entorpecentes,
furto, roubo ou simples atentados contra a ordem pública, oriundos, em sua
maioria, de parcelas precarizadas da classe trabalhadora. Segundo Wacquant, “seis
penitenciários em cada dez são negros ou latinos, menos da metade tinha emprego
em tempo integral no momento de ser posta atrás das grades e dois terços
População Prisional – EUA 1920-2006
114
provinham de famílias dispondo de uma renda inferior à metade do limite de
pobreza.”309
Nesta esteira, percebe-se que o aumento da população carcerária nos
Estados Unidos não se deve, portanto, ao aumento da criminalidade violenta,
mas, sim, à transfiguração do modus operandi do sistema punitivo em face das
camadas mais empobrecidas da população. “O encarceramento serve antes de
tudo para ‘governar a ralé’ que incomoda bem mais do que para lutar contra
crimes de sangue”310.
b) Ampliação horizontal da rede de controle penal
Além do boom carcerário, o Leviatã punitivo daria ensejo a uma
expressiva expansão horizontal da rede penal, pois o assustador número de
encarcerados não é bastante diante da colossal expansão do aparato repressivo
estatal, uma vez que não abarcaria os indivíduos condenados à prisão com sursis
(suspensão condicional da pena, em inglês, probation) e colocadas em liberdade
condicional (parole), depois de terem cumprido a maior parte de sua pena311.
A estes ainda devem-se somar ainda os que se encontram em prisão
domiciliar, em campos disciplinares, assim como aqueles sujeitos a todo tipo de
vigilância e monitoramento eletrônico, resultando assim numa ampliação
considerável da malha de controle do sistema penal, que resulta no que David
Garland denomina de “segregação punitiva”312.
O descomunal aumento do contingente carcerário de 314% em 20 anos
(1970-1991), caso considere o número de pessoas submetidos a probation e
parole, por falta de vagas nas penitenciárias, chega-se ao total de cerca de cinco
milhões de americanos, ou seja, 2,5% da população adulta do país submetida à
tutela penal do estado.
309 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 83. 310 Ibid., p. 230. 311 Id., As prisões da miséria, p. 84. 312 Segundo Garland, a segregação punitiva constitui-se de longos períodos de privação da liberdade em prisões sem comodidades, além de uma persecução do Estado, através da vigilância e da estigmatização, daqueles que tenham sido liberados. GARLAND, D., A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea, p. 240.
115
Western, Beckett e Harding atentam para outra questão crucial que decorre
do encarceramento em massa das classes populares:
O encarceramento em massa mascara uma forte tendência ao desemprego, subtraindo das estatísticas uma grande massa de adultos em idade de trabalhar. Assim, o baixo índice de desemprego americano dos anos 90 é, em parte, um resultado e um artifício do elevado índice de encarceramento. Longe de ser exemplo de regulamentação, como se procura demonstrar, o mercado americano é de fato modelado, através de seu sistema penal, por uma forte e coercitiva intervenção penal.313
Assim, o sistema penal, serve como uma ferramenta a serviço da
manipulação do mercado. “A rede penal se estreita e se alarga” como diagnostica
Wacquant, dirigindo-se aos despossuídos, aos empobrecidos, tidos como as
“ervas daninhas” de onde emerge a violência e a criminalidade314. Contra
estes, ergue-se uma verdadeira cruzada para incorporar os valores da
moralidade e do trabalho, ao mesmo tempo em que se promove a retração das
políticas sociais e precarização do trabalho, tornam as condições de vida
destes setores ainda mais vulnerável.
c) A hipertrofia orçamentária do sistema penal
Um terceiro aspecto relevante encontra-se no expressivo crescimento das
agências penitenciárias na administração pública. Tal fenômeno é denominado por
Wacquant de Big Government carcerário, a título ilustrativo, aponta que entre
1982 e 1993, os orçamentos das administrações penitenciárias aumentaram em
254%315.
O ano de 1985 é um marco na transição do Estado social para o Estado
Penal, pois, pela primeira vez, os orçamentos penitenciários ultrapassaram os dos
programas sociais. Deste divisor de águas na evolução orçamentária, aponta o
autor:
313 BECKETT, K.; HARDING, D.; WESTERN, B. Sistema penal e mercado de trabalho nos Estados Unidos, p. 41. 314 WACQUANT, L., A ascensão do Estado penal nos EUA, p. 20. 315 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 263.
116
Pode-se concluir que o Estado americano abandonou seu apoio à habitação dos mais carentes em proveito das penitenciárias, ou então, o que parece mais justo, que a construção de prisões tornou-se, de fato, o principal programa de habitação social do país316.
Em 1993 os Estados Unidos gastaram 50% a mais com suas prisões que
com sua administração judiciária (32 bilhões de dólares a 21) enquanto dez anos
antes os orçamentos dos dois eram praticamente idênticos (em torno de 7 bilhões
cada). Neste mesmo ano, as unidades prisionais públicas contavam com mais de
600.000 empregados, correspondendo ao status de terceiro maior empregador dos
pais, atrás apenas da General Motors e da rede de supermercados Walmart. Esse
aumento de créditos ao sistema prisional só foi possível graças a cortes profundos
nos orçamentos destinados a ajudas sociais, saúde e educação317.
A cartilha econômica neoliberal, defensora do radical não
intervencionismo estatal sobre o mercado de trabalho, não se sustenta diante da
indústria de controle do crime318. Os gastos anuais com o sistema penal nos
EUA chegaram a US$ 210 bilhões em 1998, muito próximo do montante de
US$ 256 bilhões gastos no mesmo ano com as Forças Armadas. Para Nils
Christie, o custo da guerra contra os inimigos internos está se aproximando
dos custos militares contra os inimigos externos319. Assiste, em paralelo, a
queda dos gastos militares e o incremento das despesas com o sistema punitivo.
d) A indústria do controle e a privatização do sistema penitenciário
Os custos para a manutenção da penalidade neoliberal alcançam níveis
estratosféricos. O custo médio de detenção em uma penitenciária estadual é
estimado em 22 mil dólares por ano por prisioneiro320. Com o intuito de enxugar
os gastos penitenciários o estado norte-americano passou adotar medidas como a
redução de “privilégios” concedidos aos presos - como retrocessos na oferta de
atividades educacionais e na garantia de condições adequadas de detenção -, bem
316 Id., A ascensão do Estado penal nos EUA, p.28. 317 Id., As prisões da miséria, p. 56. 318A forte intervenção americana no mercado, portanto, é modelada pelo seu sistema penal. Conforme BECKETT, K.; HARDING, D.; WESTERN, B. Sistema penal e mercado de trabalho nos Estados Unidos, p. 41. 319 CHRISTIE, N., Crime control as industry, p. 140 et. seq. 320 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 282.
117
como a transferência de parcela dos custos dos presos às suas famílias. Entretanto,
o ápice deste intento reside na implementação de um vasto programa de
privatização do sistema penitenciário.
A indústria do controle penal desenvolveu-se a partir de 1983, desde então
foi apresentando crescimento exponencial, saltando de 3.100 leitos em 1987, para
145 mil em 1999321. Este empreendimento mercadológico-punitivo abarca não
somente a construção e manutenção de unidades prisionais, mas também a criação
de um conjunto de produtos e serviços disponíveis ao mundo carcerário, de
colchões à prova de incêndio, a cinturões eletrificados de descarga mortal. “A
indústria da carceragem é um empreendimento próspero e de futuro radioso, e
com ela todos aqueles que partilham do grande encerramento dos pobres nos
Estados Unidos”322.
O Estado penal vale-se das consequências do declínio do estado semi-
previdência, para justificar o corte de orçamento nas penitenciárias, e, por
conseguinte, ampliar a rede punitiva deste imenso aparelho burocrático.
Importante notar, como bem assinala Arguello, que “por um lado, temos o fato de
que a força de trabalho inassimilável pelo mercado pode ser utilizada nas prisões
como forma de extrair elevadas taxas de mais-valia: com o crescimento
exponencial das prisões privadas, esse setor se tornou uma indústria altamente
lucrativa”323.
A exploração do trabalho carcerário na era do encarceramento privado
representará, conforme conclui Cirino dos Santos, a confirmação da existência do
binômio “cárcere/fábrica”, ensejado pelos autores Melossi e Pavarini, mas,
evidencia ainda sua evolução para a “simbiose fábrica/cárcere”324:
em que a fábrica é construída sob a forma de cárcere, ou inversamente, o cárcere assume a forma da fábrica, configurando o ideal de exploração capitalista do trabalho humano, que realiza o trágico vaticínio de Pavarini: os detidos devem ser trabalhadores; os trabalhadores devem ser detidos.325
321 Ibid., p. 286. 322 Id., As prisões da miséria, p. 93. No mesmo sentido, ver: CHRISTIE, N., op. cit. 323 ARGUELLO, K., Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem, p. 21. 324 SANTOS, J. C. dos, Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial, p. 53. 325 Ibid.
118
e) Seletividade punitiva racializada
Por fim, com o Estado Penal, se apresenta uma espécie de política de ação
afirmativa carcerária. Trata-se do “escurecimento” da população prisional, que faz
com que desde 1989 os afro-americanos correspondam à maioria dos internos nas
prisões estaduais, embora sejam apenas 12% da população norte-americana.
A prisão é, portanto, um domínio no qual os negros gozam de fato de uma promoção diferencial, o que não deixa de ser uma ironia no momento em que o país vira as costas para os programas de affirmative action com vistas a reduzir as desigualdades raciais mais gritantes no acesso â educação e ao emprego.326
Na era do Grande Encarceramento, se apresenta uma nova instituição
peculiar para confinar e controlar os afro-americanos: a prisão como substituto do
gueto327. As estratégias de controle punitivo da negritude se transfiguram nos
EUA, passando da escravidão, ao sistema de Jim Crow (regime legal de
discriminação e segregação), e, após, do gueto à prisão.
A seletividade punitiva institui o continuum gueto-prisão. Segundo
Wacquant “o gueto é um modo de ‘prisão-social’ - põe na gaiola um grupo
desprovido de honra e amputa gravemente as chances de vida de seus membros a
fim de assegurar ao grupo dominante ‘monopolização dos bens e das
oportunidades materiais e espirituais” -, enquanto a prisão funciona à maneira de
um ‘gueto judiciário’ - “espaço a parte que serve para conter sob coação uma
população legalmente estigmatizada, no seio da qual esta população desenvolve
instituições, uma cultura e uma identidade desonrada que lhe são específicas.”328.
Desta maneira, a seletividade característica do Estado Penal revela que o
regime disciplinador do workfare e o regime penalizador do prisonfare329 dirigem-
326 WACQUANT, L., As prisões da miséria, p. 95. 327 “o gueto é um dispositivo socioespacial que permite a um grupo (...) dominante (...) explorar um grupo dominado.” “o gueto é uma relação etnico-racial de controle e de fechamento composta de quatro elementos: estigma, coação, confinamento territorial, e segregação institucional.” Id., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos Punir os pobres, p. 344. 328 Ibid., p. 345. 329 Prisonfare é um termo introduzido por Loïc Wacquant em analogia a workfare para designar programas de penalização da pobreza via o direcionamento preferencial e o emprego ativo da polícia, dos tribunais e das prisões (bem como suas extensões - liberdade vigiada, liberdade condicional, bases de dados de criminosos e sistemas variados de vigilância), no interior e nas proximidades dos bairros marginalizados, onde se aglomera o proletariado pós-industrial. Id., Três etapas para uma Antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente.
119
se aos seus alvos preferenciais: negros e pobres, moradores das periferias norte-
americanas. Tratam de supervisionar as mesmas populações despossuídas e
desonradas, desestabilizadas pela dissolução do pacto fordista-keynesiano e
concentradas nos bairros abandonados da cidade polarizada330.
A análise de Wacquant revela como estas cinco grandes tendências
atravessam o novo papel assumido pelo Estado diante das mudanças estruturais do
capitalismo. O cárcere passa a substituir o gueto como estratégia de contenção das
classes populares, ditas perigosas, consumidores falhos aos olhos da sociedade de
consumo. Este panorama contribui para pontuar que a emergência do Estado penal
não constitui um acontecimento apenas nos EUA. Igualmente, permite a reflexão
para vislumbrar os desdobramentos da penalidade neoliberal nos países
periféricos, ofertando elementos de análise imprescindíveis para pensar o caso
brasileiro.
Outro aspecto decisivo no período analisado por Wacquant é ascensão da
doutrina chamada de “tolerância zero” nos EUA, experienciada na Prefeitura de
Nova Iorque, sob a gestão do Prefeito Rudolph Giuliani em 1994. Em matéria de
política criminal, a doutrina “tolerância zero” denota o rigor do aparato repressivo
do Estado até mesmo em face dos pequenos desvios. Para restabelecer a ordem
pública na cidade, por meio da política de “tolerância zero”, voltava atenções aos
desviantes, às prostitutas, os sobrantes, os moradores de rua, os perigosos, os
parasitas, devendo ser vigiados, controlados, afastados e, mesmo, eliminados331.
Entretanto, estudos centrados neste contexto, revelam que três anos antes
da adoção da política de “tolerância zero” já havia uma queda significativa nas
taxas de criminalidade na cidade de Nova Iorque. Neste sentido, é possível
perceber a manipulação midiática dos resultados obtidos a partir da adoção da
política de “tolerância zero” para redução dos índices de criminalidade332.
O modelo “tolerância zero” passa a ser alardeado como o parâmetro a ser
seguido mundialmente. As agências midiáticas, a partir de 1998, passam a
330 WACQUANT, L., Três etapas para uma Antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente. 331 Id., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 439. Experiência semelhante é a chamada teoria das janelas quebradas (broken windows) formulada na década de oitenta, que preconiza o combate implacável contra os pequenos desvios e ilegalidades para manter a ordem, controlando rigidamente os desviantes e fazendo reduzir a criminalidade urbana. 332 Ibid., p. 435.
120
associar Nova Iorque não mais à imagem de paraíso do crime, mas como modelo
de cidade segura. Segundo afirma Dornelles, são estas as “tendências ideológicas
neoliberais no campo do controle social, em especial nas práticas penais que
forjam o modelo do eficientismo do direito penal máximo”333. A partir de então, a
ideologia “tolerância zero” passou a ser enaltecida como a solução final do
problema da desordem urbana e da criminalidade, como modelo de administração
a ser exportado, chegando a diversos países da Europa e da América Latina.
Entretanto, para melhor compreensão da recepção da penalidade neoliberal na
periferia do capitalismo é necessário pontuar o paradigma biopolítico que se
ergue.
3.3 A globalização do estado penal: biopolítica e sociedade de controle
Diante da derrocada do Estado de bem estar e da assustadora ofensiva do
Estado penal, o laboratório vivo do Leviatã neoliberal, apresenta-se como “uma
invenção estadunidense com implicações planetárias”334. Segundo Wacquant:
A expansão penal nos Estados Unidos, e nos países da Europa Ocidental e América Latina, que seguiram de forma mais ou menos servil sua orientação, encerra, no fundo, um projeto político, um componente central da remontagem da autoridade pública, necessária para alimentar o avanço do neoliberalismo.335
Entretanto, a globalização do Estado penal revela mais do que a hipertrofia
do aparato punitivo sob a égide do campo burocrático neoliberal. Evidencia,
sobretudo, a pauperização da democracia e a crescente afronta ao cânone dos
direitos humanos336. Tal encruzilhada, além de exigir profundidade de análise
crítica no âmbito econômico-político (a penalidade neoliberal), torna
333 “Inicialmente desenvolveu-se uma rede de difusão de idéias, valores, práticas e modelos de regulação social e de universalização da regulação econômica que partiu dos Estados Unidos da América e chegou à Europa Ocidental, através da Inglaterra, e à América Latina.(...) Há, assim, um verdadeiro tráfico transcontinental de idéias e valores que reforçam as políticas públicas que se colocam no campo da internacionalização da penalização da miséria”. DORNELLES, J. R. W., Conflito e segurança. Entre pombos e falcões, p. 53. 334 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 39. 335 Ibid., p. 18. 336 SOBRINHO, S. G., Globalização e Sociedade de Controle.
121
imprescindível o enfoque que identificaremos nos marcos do “paradigma
biopolítico”.
A normalidade institucional do Estado democrático-liberal é brutalmente
abalada, deixando latentes as suas promessas não cumpridas e pondo em xeque o
próprio projeto iluminista. Neste quadro se delineia, como alerta Agamben, uma
zona de indeterminação entre o Direito e a Política, entre norma e exceção. Nas
palavras do filósofo italiano, diante do desenfreado avanço da “guerra civil
mundial” o Estado de exceção tende a se afirmar como o paradigma de governo
hegemônico na política contemporânea337.
Em face dos impasses colocados pela crise civilizacional que se agiganta,
os governos dos Estados-nação recorrem de modo cada vez mais frequente a
saídas que preconizam a suspensão de direitos fundamentais a fim de viabilizar
seus anseios – medidas de exceção que passam a se tornar a regra na governança
global. Essa transmissão de medidas de caráter provisório e excepcional para
técnicas permanentes de governo passa a apresentar um grau de indeterminação
entre democracia e absolutismo, entre Estado de Direito e Estado de exceção338.
Na concepção de Agamben, a vigência deste imperativo de exceção na
condução da política contemporânea implicaria necessariamente na redução do ser
político, expresso no vocábulo grego bíos (vida politicamente qualificada), em um
ser desprovido de qualquer atributo ou potência política, como o homo sacer -
figura jurídica do direito romano arcaico que designa aquele que pode ser morto
impunemente, que se encontra ao mesmo tempo fora da jurisdição do direito e da
religião, incluído na pólis apenas como zoé, mera existência biológica para os
gregos339.
As grandes questões políticas do nosso tempo já não têm a ver com uma
política das ideias, mas com os processos de inserção da vida (zoé) dos indivíduos
nos cálculos do poder – questões, em suma, que dizem respeito ao nascimento, à
morte, à doença, etc. As políticas demográficas, as questões do aborto e da
337 AGAMBEN, G., Estado de exceção. Homo sacer II, p. 3. 338 “Estado de exceção é o dispositivo original graças ao qual o Direito se refere à Vida, e a incluiu em si por meio de sua própria suspensão, uma teoria do estado de exceção é, então, condição preliminar para se definir a relação que liga e, ao mesmo tempo, abandona, o vivente ao direito. É essa terra de ninguém, entre o direito público e o fato político e entre a ordem jurídica e a vida, que a presente pesquisa pretende explorar”. Ibid., p. 12. 339 Ibid.
122
eutanásia, a regulamentação cada vez mais severa da higiene pública, as medidas
de segurança preventiva, a guerra contra o terrorismo, a migração de massas:
todos estes fenômenos revelam um paradigma de poder e da governança chamado
“biopolítica”.
Deve-se a Michel Foucault uma definição deste conceito340, tal como ele
se impôs na reflexão sobre a matéria política com que estamos hoje confrontados.
Foucault não apenas fez a arqueologia do conceito, fazendo-o coincidir
temporalmente com a modernidade, como identificou os processos através dos
quais o biopoder se pôde constituir, fazendo entrar a vida (o bíos) e os seus
mecanismos no domínio dos seus cálculos explícitos. O homem enquanto espécie,
diz Foucault, tornou-se assim uma questão fundamental nas estratégias políticas
das sociedades ocidentais.
Em seu percurso genealógico do poder, Michel Foucault aponta que o
Antigo Regime era caracterizado pelo “poder soberano”, presente na, por ele
denominada, “sociedade de soberania”. Consistia em um poder de “deixar-viver”
e “fazer-morrer” sobre os súditos. Esta forma de poder é sucedida pelo “poder
disciplinar”. “O poder disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se
apropriar e retirar tem como função maior adestrar; ou sem dúvida adestrar para
retirar e se apropriar ainda mais e melhor”341. Isso porque a modalidade
disciplinar do poder faz aumentar a utilidade dos indivíduos, gerando “corpos
obedientes e dóceis”, consequentemente amplificando seus rendimentos e lucros.
O autor aponta a emergência da “sociedade disciplinar” coincidindo com a
conjuntura compreendida nos séculos XVII e XVIII nos países europeus342. Tal
nomenclatura destina-se a explicar a dispersão das técnicas disciplinares
340 Biopolítica trata-se de conceito formulado por Foucault para descrever a dinâmica que envolve a política a partir do século XVII, qual seja, a inclusão da vida do homem-espécie nos cálculos do poder, através de políticas de Estado que enfoquem v.g.: natalidade, longevidade, saúde pública, sexualidade e segurança. Ver: FOUCAULT, M., Em defesa da sociedade; História da sexualidade I. A vontade do Saber; e O nascimento da biopolítica. O conceito será melhor explorado na sessão 3.3.2. 341 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 143. 342 O roteiro proposto por Foucault leva em consideração as transformações ocorridas nas estratégias de controle social dos países da Europa Ocidental. Desta maneira, é errônea a transposição mecânica da genealogia foucaultina para a realidade dos países latino-americanos. Cabe a nós uma apropriação e um olhar latino-americano sobre as instigantes questões levantadas pelo autor. Elementos centrais da biopolítica estão presentes na América Latina desde o colonialismo, nas ideias de escravidão e racialização da sociedade. Entretanto, na concepção foucaultiana, tal inovação do poder coincide com o pensamento liberal. Id., Segurança, território e população.
123
reproduzidas por instituições como a fábrica, o exército, a escola, o hospital, o
manicômio e, sobretudo, a prisão.
Foucault, por fim, percebe mais uma reviravolta nas tecnologias de poder,
no século XVIII. O poder agora consiste em estratégias de “deixar-morrer” e
“fazer-viver”, diferentemente do poder soberano, e não são mais centradas apenas
nos corpos dos indivíduos como o poder disciplinar (anátomo-política do corpo),
mas sim focadas no governo da população (biopolítica do homem-espécie), trata-
se do biopoder ou biopolítica343. A biopolítica consiste no conjunto de tecnologias
políticas que inserem a vida da população nos cálculos do poder, como a
sexualidade, a saúde pública, saneamento básico, e segurança pública, também
chamada pelo autor de ciência do policiamento. Foucault ressalta que poder
disciplinar e biopoder, afinal, sobrepõem-se e superpõem-se constante e
incessantemente344.
A partir do pós-guerra, as disciplinas entram em crise, passando a coexistir
com novas forças que marcam a transição atual para a “sociedade de controle”,
denominação dada por Deleuze para o diagnóstico foucaultiano de exercício do
poder no contemporâneo345. Hardt e Negri, por sua vez, irão identificar uma
“sociedade mundial de controle”, devido à crescente planetarização deste
paradigma biopolítico346.
Os grandes confinamentos e as instituições disciplinares fechadas e
descontínuas (prisão, fábrica, escola, hospital, família, etc.) vão perdendo espaço
para circuitos abertos de controle contínuo, dentre os quais figuram as penas
substitutivas e as coleiras eletrônicas, empresas voltadas para o produto e para o
marketing.
343 A primeira fundamentação e caracterização do termo biopolítica no pensamento de Foucault aparece em seu livro História da sexualidade I. A vontade do saber, e desenvolvido no seu curso ministrado no Collège de France nos anos de 1975 e 1976, curso esse intitulado de Em defesa da sociedade. 344 FOUCAULT, M., Em defesa da sociedade, p. 300 et. seq. 345 Tal conceito é formulado a partir das reflexões de Foucault acerca da disseminação da biopolítica. O autor chega a falar em “sociedade de segurança”. Id., Segurança, território e população. Posteriormente, dando continuidade ao trabalho iniciado, Deleuze irá forjar a expressão “sociedade de controle”. DELEUZE, G., Post-scriptum sobre as sociedades de controle. 346 Hardt e Negri ao analisarem a atual conjuntura política, no contexto do que chamam de sociedade mundial de controle, afirmam que a constituição formal torna-se obsoleta diante da constituição material biopolítica, que define a excepcionalidade. Na visão dos autores, a fonte de normatividade da gestão biopolítica global conjuga dois fatores: o Estado de exceção permanente, e as técnicas de poder de polícia. Confira: HARDT, M., A sociedade mundial de controle, e HARDT, M.; NEGRI, A., Império, p. 34.
124
Desta maneira, o modelo do panóptico vem sendo substituído por um
modelo de controle difuso, por meio de cruzamentos de diversos bancos de dados
e rastreamentos constantes a longas distâncias. A vigilância se descola da
arquitetura, “o que conta não é a barreira, mas o computador que detecta a posição
de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal”347. O sistema
prisional na atualidade não é mais uma instituição disciplinar monolítica, mas sim
um ‘tijolo no edifício do Leviatã neoliberal’, como parte constitutiva de uma vasta
malha penal para contenção punitiva da pobreza.
Assim como o projeto penitenciário “inclusivo”, pautado pelo ideal
ressocializador, no século XIX exercia um controle sobre as populações e as
disciplinava e constituía enquanto mão de obra assalariada, suprindo a demanda
do capitalismo industrial; de igual sorte, no limiar do século XX para o XXI o
modelo de sistema penal “excludente” exerce controle sobre as populações
“perigosas” do presente, disciplinando-as para servirem de mão de obra informal
de que necessita o capitalismo pós-industrial ou, simplesmente, neutralizando-as.
Este é o entendimento de Wacquant, em sua investigação sobre o sistema prisional
nos EUA:
No século XIX, ‘a reclusão era antes de tudo um método visando o controle das populações desviantes dependentes’ e os detentos, principalmente pobres e imigrantes europeus recém-chegados no Novo Mundo. Em nossos dias, o aparelho carcerário americano desempenha um papel análogo com respeito aos grupos que se tornaram supérfluos ou incongruentes pela dupla reestruturação da relação social e da caridade do Estado: as frações decadentes da classe operária e os negros pobres das cidades.348
A questão biopolítica delineada por Foucault tornou-se um tema maior
num tempo de despolitização, em que se tornou evidente a insuficiência, e por
vezes o caráter caduco, das tradicionais categorias políticas. Em nosso tempo, a
biopolítica tornou-se um paradigma de governo diante de um contexto no qual a
violência é tida como resposta imediata à conflitividade social. O paradigma do
homo laborans, descrito por Hannah Arendt349 dá lugar ao homo sacer de que fala
347 DELEUZE, G., op. cit., p. 225. 348 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 96. 349 ARENDT, A., A condição Humana.
125
Agamben350. A vida está agora inserida nos cálculos do poder como mera
existência biológica, vida nua matável. É o fracasso da universalização dos
direitos humanos e o sucesso da generalização da biopolítica.
Todo este cenário é identificado por um conjunto de autores de matizes
teóricos distintos, utilizando, para tanto, conceitos distintos, mas confluentes no
mesmo diagnóstico. Deste modo, seja através da expressão Estado Policial
cunhada por Foucault351, seja Estado penal, como nomeia Wacquant, Estado de
exceção, como estuda Agamben352, Sociedade de Controle, como elaborou
Deleuze353, Estado de sítio com Paulo Arantes354, Bonapartismo Soft, como afirma
Losurdo355, Fascismo societal, como diz Boaventura356, Autoritarismo cool, como
afirma Zaffaroni357, militarização da vida social, como anuncia Menegat358, todas
são denominações diversas para explicitar o mesmo processo de exacerbação do
controle repressivo no contexto das democracias contemporâneas.
Este cenário limítrofe produz consequências diretas na dinâmica de
funcionamento do Estado, mas, sobretudo dá ensejo ao florescimento de
movimentos político-criminais repressivos e discursos jurídico-penais autoritários.
Compreendem-se no pólo discursivo que Luigi Ferrajoli denomina de Direito
Penal Máximo, pugnando por uma agenda repressiva que abarca: a) ampliação do
rol de crimes; b) ampliação das penas de prisão de longa duração; c) regime de
execução prisional mais severo; d) tolerância zero; e) redução da maioridade
penal; f) guerra às drogas; g) direito penal do inimigo.
Nesta sintonia, Winfried Hassemer demonstra o caráter deletério dos atuais
“Movimentos de Lei e Ordem”, impondo uma erosão normativa em face de
garantias duramente conquistadas, provocando uma sensação de paralisia. De tal
sorte que, o Estado, antes um Leviatã, passa, consoante o autor, a ser concebido
350 AGAMBEN, G., Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. 351 FOUCAULT, M., O nascimento da biopolítica. 352 AGAMBEN, G., Estado de exceção. Homo sacer II. 353 DELEUZE, G., Post-scriptum sobre as sociedades de controle. 354 ARANTES, P., Extinção. 355 LOSURDO, D., Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal, p. 333. 356 Boaventura utiliza a denominação de fascismo societal para descrever a convivência de práticas excludentes, autoritárias e violentas, dentro de regimes ditos democráticos. SANTOS, B. de S., Reinventar a democracia: entre o pré-contratualismo e o pós-contratualismo, p. 51 et. seq. 357 ZAFFARONI. E. R., O inimigo no Direito Penal, p. 78. 358 MENEGAT, M., O olho da barbárie.
126
como o “companheiro de armas dos cidadãos, disposto a defendê-los dos perigos
e dos grandes problemas da época”359.
No mesmo bojo identifica-se: a) a ascensão do dito Direito Penal do Risco,
dando ensejo a ampliação sem parcimônia dos bens jurídico-penais360; b) as
permanências do ideário da Doutrina de Segurança Nacional, gestado em meio às
ditaduras civis-militares, no modus operandi das instituições policiais361; c) o
Direito Penal do Inimigo de Gunther Jakobs, relativizando o conceito de pessoa
em face dos “perigosos”362; d) o discurso Tolerância Zero, clamando pela
repressão seletiva e implacável mesmo diante dos menores desvios praticados
pelas classes mais pauperizadas dos centros urbanos; e) o Direito Penal e o
Processo Penal de Emergência363, ensejando a afronta às garantias fundamentais
do cidadão em nome de respostas céleres e “eficientes” ao crime e à violência; f) o
fenômeno crescente do Populismo punitivo364, com perniciosas colaborações das
agências midiáticas no sistema penal. Diante da hipertrofia do poder punitivo, o
Direito Penal engendrado nos ideais iluministas liberais, pensado como racional e
aplicável apenas em ultima ratio, passa a ser exercido em excesso, dando ensejo a
imposições arbitrárias e desproporcionais365 catapultadas por movimentos
repressivisitas.
Assim, o paradigma biopolítico serve como pano de fundo para a
compreensão da redefinição dos mecanismos de controle social e de dominação na
nova conjuntura de ascendência neoliberal. Segundo Dornelles, é neste cenário
que se processa a “globalização da segurança pública e a internacionalização do
controle social”366, disseminando-se pelos países centrais e exportando-se à
periferia do capitalismo.
359 HASSEMER, W., Persona, mundo y responsabilidade: bases para una teoria de la imputacion en Derecho Penal, p. 254 passim. 360 SANCHEZ, J. S., A Expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais; / BECK, U., Sociedade de risco: rumo a uma nova Modernidade. 361 BATISTA, N., Política criminal com derramamento de sangue. 362 JAKOBS, G.; MELIÁ, M. C., Direito penal do inimigo: noções e críticas. 363 CHOUKR, F. H., Processo Penal de emergência. 364 PRATT, J., Penal populismo; SOZZO, M., Populismo punitivo, proyecto normalizador y “prisión-depósito” en Argentina. 365SANTOS, J. C. dos, Manual de Direito Penal brasileiro. 366 DORNELLES, J. R. W., Conflito e segurança. Entre pombos e falcões, p. 16.
127
3.4 Estado penal no Brasil: o controle biopolítico da pobreza no capitalismo periférico
A “irresistível” globalização do recrudescimento punitivo não se revela
nos mesmos moldes em realidades distintas. O Estado penal gestado nos EUA não
apresenta os mesmos contornos de seu florescimento nos países periféricos. O
próprio Wacquant destaca sua peculiaridade na periferia do capitalismo:
a penalidade neoliberal é ainda mais sedutora e mais funesta quando aplicada em países ao mesmo tempo atingidos por fortes desigualdades de condições e de oportunidades de vida e desprovidos de tradição democrática e de instituições capazes de amortecer os choques causados pela mutação do trabalho e do indivíduo no limiar do novo século. Isso é dizer que a alternativa entre o tratamento social da miséria e de seus correlatos (...) que visa às parcelas mais refratárias do subproletariado e se concentra no curto prazo dos ciclos eleitorais e dos pânicos orquestrados por uma máquina midiática fora de controle, diante da qual a Europa se vê atualmente na esteira dos Estados Unidos, coloca-se em termos particularmente cruciais nos países recentemente industrializados da América do Sul, tais como o Brasil e seus principais vizinhos, Argentina, Chile, Paraguai e Peru.367
De tal sorte, os efeitos desta onda punitiva são obviamente mais
nefastos “em países onde imperam a desigualdade social, a pobreza e a
ausência de tradição democrática, nos quais a influência norte-americana,
tanto no plano econômico como no penal, pode ser sentida com maior
intensidade”368. Convém buscar compreender as peculiaridades da difusão do
Estado Penal na América Latina, em especial no Brasil. Neste intento, alguns
fatores históricos, culturais, políticos e econômicos são determinantes para que
não se incorra na equívoca transposição mecânica do panorama traçado por
Wacquant nos EUA.
O repressivismo penal, expresso nos discursos de Lei e Ordem e
Tolerância Zero, é recepcionado por quase todos os países latino-americanos. Esta
importação teórico/prática reedita o fenômeno da “colonialidade do saber e do
367 WACQUANT, L., As prisões da miséria, p. 4. 368 “Na América Latina, quase todos os candidatos a cargos eleitorais, nos últimos anos, têm como tema central o discurso sobre a segurança pública. Na maioria das vezes, sem o menor pudor de proclamar, como solução definitiva para os problemas atuais, a volta do suplício, abolido oficialmente há séculos”. ARGUELLO, K., Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem, p. 8.
128
poder” denunciada por Quijano e outros adeptos dos estudos pós-coloniais369.
Parece-nos crucial trazer esta contribuição ao debate. Consistindo em uma
resposta da periferia ao centro, a Teoria Pós-Colonial procura dar voz à alteridade
que a “vontade de saber” dominante tem vindo a assimilar dentro de si mesma,
apontando a colonialidade do saber/poder que gera longas permanências nas
práticas políticas dos países da América Latina.
Nesta direção, apesar de não haver intercâmbio teórico entre os autores,
situa-se a contribuição de Zaffaroni, ao propor uma leitura da criminologia a partir
da história da periferia colonial que denomina de Realismo Marginal370,
convidando-nos a pensar a questão criminal a partir de nosso lugar de fala, a partir
de nossa região marginal - a América Latina.
3.4.1 As permanências autoritárias no estado brasileiro
A história de constituição do Estado brasileiro demonstra-nos que a
garantia da legalidade nunca se fez presente para a grande massa de oprimidos.
Genocídio negro e indígena, escravagismo, golpes, decretos plenipotenciários,
intervenções federais nos estados e respostas beligerantes às insurreições
populares são práticas recorrentes, o que demonstra a precisão da máxima
apontada por Walter Benjamin em suas Teses sobre a Filosofia da História: “para
os oprimidos o estado de exceção é a regra”371.
Portanto, falar de exceção permanente acerca de países de capitalismo
periférico, em especial latino-americanos, não é falar de algo recente, mas sim,
falar de sua história372. Para compreender a dinâmica operativa da penalidade
369 Para alguns, o "pós-colonial" marca uma condição latente da contemporaneidade e torna-se também um projeto literário, político e teórico. Na afirmação de Miguel Vale de Almeida, o pós-colonialismo acabou por se constituir numa corrente. Uma corrente teórica e crítica que estaria procurando desfazer ou desconstruir o eurocentrismo, com a consciência de que a pós-colonialidade não nasce e não cresce numa distância panóptica em relação à história. Estes estudos estariam propondo um "depois de ter sido trabalhado" pelo colonialismo. Noutros termos, seria uma teoria do "discurso pós-colonial" ou a "crítica pós-colonial". ALMEIDA, M. V. de, Um mar da cor da terra. Raça, cultura e política da identidade, p. 228. 370 Sobre o Realismo Marginal, ver: ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas e Criminología, aproximación desde um margen; BATISTA, V. M., O Realismo Marginal: criminologia, sociologia e história na periferia do capitalismo. 371 BENJAMIN, W., Sobre o conceito de história. Obras escolhidas. 372 SOUZA, T. L. S. e, Constituição, segurança pública e Estado de exceção permanente: a biopolítica dos autos de resistência, p. 41.
129
neoliberal com a ascensão do Estado Penal, é preciso levar em conta seu
entrelaçamento com a exceção permanente, que remonta às permanências
autoritárias no tempo presente.
Assim, no esforço de buscar traçar uma análise do Estado penal em “solo
tupiniquim”, é necessário, em primeiro plano, identificar os fatores históricos,
políticos e econômicos que permitem compreender as singularidades do controle
social repressivo no país. Neste ponto, destacam-se três fatores constitutivos
fundamentais: a) o genocídio colonial e as matrizes ibéricas do sistema penal; b)
desenvolvimento econômico nos marcos do capitalismo tardio; c) o entulho
autoritário das ditaduras do século XX.
3.4.1.1 Do genocídio colonial ao autoritarismo imperial
O teórico argentino Enrique Dussel analisa como, no período colonial, se
processou a inclusão da América Latina na política moderna ocidental. Segundo o
pensador argentino, a América Latina entra na modernidade (muito antes que a
América do Norte) como a “outra face”, dominada, explorada, encoberta373.
Desde o início do colonialismo a vida foi inserida nos cálculos do poder
como vida nua, na escravidão em massa, no extermínio, no controle dos fluxos
migratórios. Nilo Batista irá apontar as matrizes ibéricas de nosso autoritarismo
penal374, importadas de um contexto inquisitorial da metrópole e reproduzidas de
maneira estratégica para o controle social na colônia.
Zaffaroni salienta ainda que o colonialismo planetarizou o saber jurídico
penal375. O saber do poder punitivo que se desenvolveu na cultura europeia
cumpre papel fundamental no controle social da vida colonial.
Vale neste ponto, fazer uso da lição de Paulo Arantes que afirma que a
despeito da normalidade institucional presente na história metropolitana, o fato
constitutivo da construção da periferia colonial e pós-colonial corresponde ao
estado de exceção permanente376.
373 DUSSEL, E., Europa, modernidade e eurocentrismo. 374 BATISTA, N., Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. 375 Ver prefácio de BATISTA, N., Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. 376 ARANTES, P., Extinção, p. 163.
130
O autoritarismo penal perdura e se sofistica no período imperial. Como
afirma Batista:
No liberalismo à brasileira os direitos não podiam colidir com o “direito de propriedade em toda a sua plenitude”, como aparece na Constituição de 1824, mantendo a escravidão sem referir-se a ela. Um conceito muito peculiar de cidadania vai-se instaurando nos trópicos: homem-proprietário versus escravos,
mulheres e não-proprietários.377
No texto de 1824 o escravo era apenas res, semovente. Sua tutela
constitucional o compreendia como mera vida nua, mera propriedade, com
humanidade negada. Já no Código Criminal do Império de 1830, estava prevista a
responsabilidade penal do escravo378. Vera Malaguti lembra o descalabro da
inobservância do princípio da isonomia aos preconizar penas de multa e prisão
para brancos, e penas corporais e de morte para escravos379. O negro escravo era a
encarnação da exclusão inclusiva descrita por Agamben, é a presença do homo
sacer380.
Diante deste processo histórico que são gestadas as bases da
arbitrariedade policial e do controle social repressivo no Brasil. O Estado de
exceção é acionado sempre que qualquer movimento contestatório se insinua. Tal
fato se pôde observar nas virulentas respostas do poder estatal às resistências
expressas nos diversos momentos da história brasileira, como por exemplo, na
Revolta dos Malês na Bahia, na revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul, na
Cabanagem no Pará, na Guerra de Canudos e na resistência do Quilombo de
Palmares.
As contradições do liberalismo no Brasil se aprofundam na prática da
exceção permanente, na soberania pura da polícia em ação, na busca pela
contenção das resistências. O delineamento desta historicidade é salutar para
compreender a incorporação da periferia do capitalismo no processo civilizatório.
Para Foucault, a colonização foi o primeiro desenvolvimento do racismo381 e do
377 BATISTA, V. M., O medo na cidade do Rio de Janeiro, p. 25. 378 O art. 113 do Código Criminal de 1830 prevê o crime de insurreição, praticado apenas por escravos. 379 BATISTA, V. M., op. cit., p. 136. 380 AGAMBEN, G., Homo sacer. O poder soberano e a vida nua, p. 15. 381 FOUCAULT, M., Em defesa da sociedade, p. 307.
131
genocídio colonizador. Posteriormente, Zaffaroni expandiu o conceito
foucaultiano de “instituição de sequestro” à América Latina como um todo382.
Neste sentido, o jurista argentino aponta ainda, que o controle penal na ‘terra das
veias abertas’383 não teve sua inspiração maior no panoptismo benthaminiano,
mas sim a proposta criminológica de Lombroso foi a que definitivamente melhor
se ajustou à periferia por racionalizar a inferioridade biológica das classes
perigosas384.
O poder soberano à época enfrentava a ameaçadora configuração de uma
população negra, índia, mestiça, que se buscava domesticar, explorar, e, em tal
perspectiva, vista como perigosa.385 Esta relação se mantém e adquire novos
contornos em períodos históricos posteriores. Coimbra demonstra como no final
do século XIX e início do século XX teorias eugenistas, racistas e higienistas são
conjugadas na construção imaginária do mito das classes perigosas, e como no
regime militar a Doutrina de Segurança Nacional contribuirá para o
desenvolvimento de subjetividades favoráveis ao controle repressor386.
3.4.1.2 O entulho autoritário da ditadura civil-militar de 1964
A dilaceração do Estado de Direito nos anos de chumbo não foi arquitetada
apenas pelas Forças Armadas. René Armand Dreifuss, com riqueza
historiográfica, na obra 1964: a conquista do Estado387 demonstra de forma
patente o complexo civil-militar ensejado para desferir o golpe e gerir sua
governabilidade. Elites dirigentes do grande capital patrocinaram o ato, e
participaram da administração pública através de empresas públicas e institutos.
Como afirma Zizek:
382 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p. 13. 383 Galeano, E., As veias abertas da América Latina. 384 ZAFFARONI, E. R., op. cit., p. 81. 385 Gizlene Neder já apontava a criminalização da capoeira e da malandragem como formas de controle social dos escravos e dos negros libertos. NEDER, G., Discurso jurídico e a ordem burguesa no Brasil. 386 COIMBRA, C., Operação Rio: o mito das classes perigosas. Um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. 387 DREIFUSS, R. A., 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe.
132
Na Argentina, no Brasil, na Grécia, no Chile e na Turquia, os militares proclamaram um estado de emergência a fim de controlar o “caos” da politização generalizada. (...) a proclamação reacionária do estado de emergência é uma defesa desesperada do verdadeiro estado de emergência.388
Começa aqui uma trajetória de mais de duas décadas de intensa
repressão e autoritarismo. O regime militar fazia uso retórico dos indicadores de
crescimento econômico a galvanizar sua legitimidade social, entretanto, o imenso
atraso em matérias como educação, saúde e habitação perduraram. O inchaço das
grandes cidades acentuou os problemas urbanos, como desemprego e miséria, e
alternativas de renda pela via da “ilegalidade”.
Como salienta Orlando Zaccone, foi decisivo o papel do arcabouço teórico
cumprido pelas ideologias da Defesa Social – comum às escolas clássica e
positivista da criminologia - e da Segurança Nacional – desenvolvida nos anos de
chumbo, no auge da Guerra Fria, para salvaguardar a manutenção do regime
militar contra os “subversivos”389.
Da conjugação dessas ideologias, forja-se a declaração de guerra aos
inimigos internos e externos. Sob influência da ordem mundial bipolar, o inimigo
externo encontra-se na ameaça comunista, já o inimigo interno era identificado
com o militante subversivo. Salo de Carvalho observa como esta criação da figura
do inimigo acaba “estabelecendo uma política criminal beligerante, estruturada a
partir da ideia de guerra total - interna e externa”390 que irá resultar, diante do
contemporâneo cenário de “guerra às drogas”, na eleição da figura do traficante de
drogas como novo inimigo público a ser combatido.
Todo este violento processo de formação do Estado e do povo brasileiro
deixará marcas profundas, restando o que Guillermo O' Donnell denomina de
“entulho autoritário” 391, particularidades que permitem melhor compreender as
contradições do presente, em tempos ditos democráticos.
Neste sentido, tal percepção é verificada na realidade carcerária brasileira.
Em recente visita ao Brasil, o Relator Especial da ONU sobre Tortura, Juan
388 ZIZEK, S., Bem-vindo ao deserto do real, p. 128. 389 ZACCONE, O., Acionistas do nada, p. 96. 390 CARVALHO, S. de, A política criminal das drogas no Brasil: do discurso oficial às razões da descriminalização, p. 144. 391 O’ DONNELL, G., Sobre o Estado, a democratização e alguns problemas conceituais, p. 129.
133
Méndez, após visitas a vários presídios brasileiros, constatou que a tortura é uma
prática recorrente nessas instalações, apontando que se trata de “uma violência
herdada dos anos de ditadura militar, onde a tortura era política estatal e
deliberada”392.
3.4.1.3 Desenvolvimento econômico nos marcos do capitalismo tardio
As consequências econômicas do histórico de profunda exploração sobre
os países da periferia capitalista recaem diretamente no parco legado de direitos
sociais típicos do Estado de Bem-Estar. O questionamento acerca da existência ou
não do welfare state no Brasil e em outros países em desenvolvimento sob o
manto do capitalismo tardio deve ser precedido da indagação necessária: o que se
entende por Estado de Bem-Estar Social?
Ao menos teoricamente existe a compreensão de que a participação do
Estado na economia é maior no chamado Estado do Bem-Estar Social do que no
Estado Neoliberal, mas a precisa caracterização dos elementos de identificação do
welfare state é matéria bastante controvertida entre estudiosos393.
José Luis Fiori vale-se da classificação dada por Esping-Andersen para o
que chamou de regimes de welfare states, compreendendo: o welfare state liberal;
os welfare states conservadores; e os regimes social-democratas394. Apesar da
existência de inúmeros trabalhos que identificam traços do welfare state no
392 Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/2015/08/14/3046-relator-da-onu-diz-que-tortura-nos-presidios-do-brasil-heranca-da-ditadura-militar. Acessado em: 17/08/2015. 393 Para José Luís Fiori, é possível distinguir três posições fundamentais: “a primeira, com menor densidade teórica e maior preocupação historiográfica, privilegia a ideia de ‘proteção social’, enquanto tal e isoladamente, e por causa disso isso tende a sublinhar a evolução mais do que as descontinuidades na trajetória que vai das Poor Laws de 1536 a 1601 até o Plano Beveridge”. FIORI, J. L., Neoliberalismo e políticas públicas, p. 6. 394 1. O welfare state liberal, em que predominam a assistência aos comprovadamente pobres, reduzidas transferências universais ou planos modestos de previdência social e onde as regras para habilitação aos benefícios são estritas e muitas vezes associadas ao estigma. São seus exemplos típicos: Estados Unidos, Canadá e Austrália; 2. Os welfare states conservadores e fortemente corporativistas, onde predomina a preservação das diferenças de status; os direitos, portanto, aparecem ligados à classe e ao status... e a ênfase estatal na manutenção das diferenças de status significa que seu impacto em termos de redistribuição é desprezível. Incluem-se aqui, como casos típicos, Áustria, França, Alemanha e Itália; 3. Os regimes social-democratas, onde o universalismo e a desmercantilização atingem amplamente a classe média e onde todos os segmentos sociais são incorporados a um sistema universal de seguros no qual todos são simultaneamente beneficiários, dependentes e, em princípio, pagadores. Não cabe dúvidas de que Esping Andersen está falando aqui de um número limitadíssimo de países escandinavos. Ibid., p. 12 et. seq.
134
Brasil395, Fiori assinala que em nenhum caso a periferia capitalista, e a latino-
americana em particular, aparecem consideradas nestas tipologias.
Assim, na América Latina, o percurso do welfarismo não é dos mais
prósperos, ou tão próximo do tipo-ideal previsto nas cartas constitucionais
gestadas sob inspiração do Estado Social. Na esteira do que observam Lênio
Streck e José Luiz Bolzan de Morais, os países latino-americanos possuem certas
peculiaridades, como processo de colonização, autoritarismo, industrialização
tardia e dependência periférica, que obstaculizaram a criação e ascensão de um
Estado de Bem-Estar.396
Contudo, é importante ressaltar que desde o final do século XIX e as duas
primeiras décadas do século XX, há um crescimento significativo das
organizações e lutas operárias no país, as quais conseguem avanços importantes
em direitos sociais, na sua maioria, relativos ao trabalho e previdência social397.
Não obstante a existência de documentos que delinearam os traços do
constitucionalismo social no Brasil, o welfare state encontra-se ainda carente de
efetivação, reduzido à condição de mera utopia como analisa Paulo Bonavides398.
A despeito de pontuais avanços em matérias de direitos fundamentais sociais, o
processo de modernização pelo qual passou o Brasil ao longo do século XX
negligenciou a justiça social, gerando condições de desigualdades alarmantes.
3.4.2 O empreendimento neoliberal no Brasil
O paradigma neoliberal no Brasil quando comparado com outros países da
América Latina pode ser considerado como tardio, pois foi apenas em meados da
década de 1990 que se deu então um grande impulso para que o sistema se
tornasse hegemônico dentro do país. Um fator importante no contexto
internacional foi à chegada ao poder dos presidentes Carlos Salinas de Gortari no
México, Carlos Saúl Menem na Argentina, Carlos Andrés Péres na Venezuela,
Alberto Fujimori no Peru e Fernando Collor de Mello no Brasil.
395 Confira, em especial, as obras: DRAIBE, S. M., O Welfare State no Brasil: características e perspectivas; e SANTOS, W. G. dos, Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. 396 STRECK, L. L.; MORAIS, J. L. B. de, Ciência política e teoria do estado, p. 82. 397 SANTOS, W. G. dos, op. cit., p. 18 et. seq. 398 BONAVIDES, P., Curso de direito constitucional, p. 381.
135
Streck e Morais destacam que a “globalização neoliberal-pós-moderna
coloca-se justamente como o contraponto das políticas do Welfare State.”399 O
contexto latino-americano, contudo, é ainda mais vulnerável aos influxos
neoliberais, eis que aqui não houve efetivamente um Estado que providenciasse
níveis satisfatórios de justiça e cidadania sociais400.
No caso brasileiro, os períodos do governo Fernando Collor de Melo
(1990-1992), e Itamar Franco (1992-1994)401, representam o período
intermediário para a consolidação do sistema neoliberal no Brasil. Entretanto
foram nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), que se deu
o auge do modelo neoliberal no país, uma vez que aprofunda e consolida a
reforma do Estado no Brasil402.
As políticas de ajuste neoliberais promovem o desmonte dos sistemas de
proteção social nos países do capitalismo central e entram nos países do chamado
terceiro mundo através da imposição do Banco Mundial e Fundo Monetário
Internacional (FMI) para que implementem as orientações do chamado “Consenso
de Washington”403.
Trata-se de um programa de ajuste que contribui para o aprofundamento da
miséria e da exclusão e secundariza qualquer ação pública destinada ao
enfrentamento da questão social. Segundo aponta Mantega, o governo FHC
gastou na operação de salvamento dos bancos Econômico, Nacional e
Bamerindus, 20 bilhões de dólares do Programa de Estímulo à Reestruturação e
ao Fortalecimento do Sistema Financeiro (PROER), recurso superior a todo o
399 STRECK, L. L.; MORAIS, J. L. B. de, op. cit. 400 Ibid. 401 Existem controvérsias sobre o governo Itamar Fraco, pois há leituras que o colocam como um governo de medidas protecionistas, já em outras visões o seu governo é colocado como neoliberal, principalmente pelo fato da criação do Real. FIORI, J. L., Os moedeiros falsos. 402 Em 1995, no primeiro Governo Fernando Henrique Cardoso, surge, por transformação da Secretaria de Administração Federal, o Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE). O órgão foi criado por força da medida provisória nº 813/95, reeditada várias vezes, que apenas em 1998 foi convertida na lei nº 9.649/98. Deu-se início ao que ficou conhecido como Reforma Gerencial do Estado Brasileiro. 403 Segundo Fiori, tais orientações ou recomendações contemplavam uma estratégia sequencial em três fases: “a primeira consagrada à estabilização macroeconômica, tendo como prioridade absoluta um superávit fiscal primário envolvendo invariavelmente a revisão das relações fiscais intergovernamentais e a reestruturação dos sistemas de previdência pública; a segunda dedicada ao que o Banco Mundial vem chamando de ‘reformas estruturais’; liberação financeira e comercial, desregulamentação dos mercados, e privatização das empresas estatais; e a terceira etapa definida como a da retomada dos investimentos e do crescimento econômico”. FIORI, J. L., op. cit., p. 11 et. seq.
136
orçamento da saúde em 1997404. Do total de 21 bilhões que o PROER gastou
desde que foi criado em 1995, até janeiro de 1998 só havia recuperado 5,71% do
dinheiro utilizado. Mantida esta política de incentivos, isenções e renúncias
tributárias, o país deixaria de arrecadar até 2003 o montante de R$ 32,975 bilhões.
Indústria e comércio juntos foram beneficiados com R$ 11 bilhões. Esta era a
dinâmica da política econômica praticada no livre jogo do mercado sob égide do
neoliberalismo brasileiro no período FHC.
Em contrapartida, no campo dos gastos sociais, registra-se: 8 anos sem
reajuste salarial para o funcionalismo, o qual perdeu 40% do seu salário real no
período 1995-1999, redução dos investimentos em educação e saúde. Assim, o
resultado da política de ajuste neoliberal no Brasil refletiu-se no aprofundamento
das desigualdades sociais e da concentração de renda. Segundo o Relatório sobre
o Desenvolvimento do Mundo 1999-2000, do Banco Mundial, o Brasil é o vice-
campeão mundial da desigualdade, com um índice Gini de 0,60, só perdendo para
Serra Leoa, 0,629405.
Segundo a Comissão Económica para a América Latina e o Caribe
(CEPAL), no ano 2000 o Brasil possuía 37,5% da sua população vivendo abaixo
da linha de pobreza, incluindo os que se encontram em situação de indigência ou
em extrema pobreza. Este número, apesar de inaceitável é inferior ao que se
registrava em 1990 de 48% da população nesta condição406.
Contudo, o crescimento expressivo do empobrecimento da população
brasileira, nos anos 1990 e início dos anos 2000, pode configurar um quadro
muito pior do que o revelado pelos dados oficiais. Conforme Vera Telles, uma
pesquisa do Datafolha divulgada em 13 de julho de 1997 mostra que “59% da
população brasileira estão à margem de qualquer mecanismo de ascensão social: é
uma população que não tem o 1º grau completo, tem renda familiar inferior a 10
salários mínimos, sofre intensamente o desemprego e a precarização do trabalho,
concentra gente mais velha e com maior índice de aposentados”407.
404 MANTEGA, G., O PROER deve ser extinto? 405 Relatório sobre o Desenvolvimento do Mundo 1999-2000, do Banco Mundial. 406 Conforme CEPAL - Panorama Social de América Latina 2000-2001. 407 TELLES, V. da S., No fio da navalha: entre carências e direitos. Notas a propósito dos programas de renda mínima no Brasil.
137
Historicamente, o olhar sobre a miséria no Brasil, se reduziu “a uma combinação
de critérios supostamente científicos para definir a pobreza”408.
O empreendimento neoliberal e seu legado de pauperização das classes
populares terão reflexos diretos na afronta a direitos e garantias, conforme
apontam Salla e Ballestreros:
Proporcionalmente inversa à liberalização da economia, ao fortalecimento do mercado como paradigma regulador das relações econômicas e sociais, avançaram os controles sociais sobre os cidadãos de um modo geral, mas sobretudo sobre os segmentos mais afetados pelo desemprego, pela nova economia centrada na elevação de produtividade com baixa assimilação de mão-de-obra. Uma concepção securitária se estende por todos os campos de atividades e direciona as ações para a redução dos riscos. No terreno da segurança pública, essa concepção se converte nas propostas de controles sociais mais rígidos e consequentemente em políticas penais mais severas.409
Com a crise do neoliberalismo que se instalou na América Latina no final
do século XX e começo do século XXI, deu origem ao desenvolvimento de um
conjunto de novos governos com diferentes perspectivas políticas, críticos
discursivamente de alguns aspectos e fruto de conflitos gerados pelo próprio
modelo neoliberal. No Brasil, este cenário irá desaguar na eleição presidencial de
Lula da Silva em 2002.
Com os governos do Partido dos Trabalhadores, sob as presidências de
Lula (2003/2007 e 2008/201) e Dilma (2011/2014 e 2015/Atual) os ditames da
agenda neoliberal sofrem pequenas alterações no país. Este novo cenário dá
ensejo a distintas caracterizações das administrações petistas, de modo que alguns
autores situam sua governabilidade no âmbito do “social-liberalismo”410, outros os
identificam como governos neoliberais411, uma terceira perspectiva o considera
408 Ibid. 409 SALLA, F.; BALLESTEROS, P. R., Democracia, direitos humanos e condições das prisões na América do Sul, p. 4 et. seq. 410 Michael Lowy afirma que “social liberalismo” trata-se do conceito destinado a caracterizar governos com origem e lastro em movimentos sociais que implementam políticas macroeconômicas consentâneas com os interesses do grande capital financeiro. São, pois, administrações contraditórias de conciliação de classes. Aduz ainda que não há consenso entre os especialistas acerca da data de desembarque do social-liberalismo no Brasil. Ver LOWY, M., entrevista concedida ao Jornal Brasil de Fato. Fonte: www.brasildefato.com.br. Acessado em 15/12/2006. 411 Arcary faz uma análise do significado das administrações petistas desde um ponto de vista socialista revolucionário e internacionalista, classificando-as como um governo conciliador de classes, a serviço do grande capital nacional e internacional. Com base nisso, considera que
138
expressão de um “capital-imperialismo”412, e, por fim, há quem os classifique
como governos neodesenvolvimentistas ou pós-neoliberais413.
Ainda que ancorado em políticas macroeconômicas liberalizantes aos
mercados, sobretudo o mercado financeiro, nas administrações do PT houve
considerável redução da pobreza no país, em decorrência do incremento de
programas assistenciais de transferência de renda.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no Censo
Demográfico 2010 indica que 16,27 milhões de pessoas vivem em extrema
pobreza no Brasil o que significa 8,5% da população total414. Segundo o Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o número de pessoas pobres caiu de
30,4 milhões em 2003 para 17 milhões em 2010415.
Entretanto, em que pesem as nuances distintivas entre as administrações
do governo federal, desde a reabertura democrática, o fato inegável é que em
matéria de política criminal, o neoliberalismo permanece a ferro e fogo416.
A questão criminal tornou-se bandeira suprapartidária, e vem se
consolidando em uma política, no mais das vezes, invariável a despeito das
alternâncias nas estruturas de poder. Dornelles destaca que “no caso brasileiro, é
notável como o governo Fernando Henrique Cardoso voltou a tratar – como em
uma reedição da República Velha – a questão social através de uma ótica penal. A
questão social voltou a ser ‘caso de polícia’”417.
Esta perspectiva não se altera com a ascensão ao poder de um partido
identificado historicamente com as lutas das classes populares. Neste sentido, vale
existiria uma continuidade das políticas de Lula e Cardoso. ARCARY, V., Um reformismo quase sem reformas: uma crítica marxista do governo Lula em defesa da revolução brasileira. 412 Virginia Fontes coloca que o processo histórico ulterior, iniciado com Fernando Henrique Cardoso e continuado sob os dois mandatos de Lula da Silva expressaram uma recuperação da capacidade burguesa de conservar seu predomínio no âmbito nacional, através agora de um formato democrático-representativo, típico do enquadramento burguês das reivindicações populares. Em sua visão, os governos petistas seriam a expressão do capital-imperialismo. FONTES, V., O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. 413 Para Sader são governos que, para superar a herança econômica, social e política recebida dos anteriores governos neoliberais, priorizam, ao contrário, um modelo de desenvolvimento intrinsecamente articulado com políticas sociais redistributivas, colocando a ênfase nos direitos sociais e não nos mecanismos de mercado. SADER, E. (org.), 10 anos de Governos Pós-neoliberais – Lula e Dilma. 414 IBGE. Censo Demográfico 2010. Disponível: http://censo2010.ibge.gov.br/. Acessado em: 14/07/2015. 415 Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/. Acessado em: 14/07/2015. 416 LEMOS, C., Politica criminal no Brasil neoliberal. 417 DORNELLES, J. R. W., Conflito e segurança. Entre pombos e falcões, p. 65.
139
lembrar a precisa expressão cunhada por Maria Lucia Karam, “a esquerda
punitiva”418, para compreender as permanências de uma política criminal “lei e
ordem”.
No cenário atual, diante da hegemonia do capitalismo neoliberal, é
relegada aos governantes a “gestão da barbárie”, como afirma Menegat419,
conduzindo programas políticos desprovidos de quaisquer mudanças estruturais,
mas que mantenham possível a “governabilidade social”.
3.4.3 Forjando o Estado Penal brasileiro
Como exposto por Wacquant, nos EUA, a partir das reformas na área da
assistência social, assiste-se à transição do Estado de Bem Estar Social (Welfare
State) para o Estado Penal (Warfare State). No Brasil, como país de capitalismo
periférico, não se pode falar sequer na vigência histórica do Estado de Bem Estar.
A tendência de hipertrofia do aparato penal vem apenas reforçar o controle
violento das camadas excluídas da população exercido desde o genocídio colonial.
Neste sentido, o Leviatã neoliberal brasileiro caracteriza-se por dois pólos:
um repressivo, e outro assistencialista. O controle social da pobreza é
empreendido tanto através de: a) programas de assistência que encontram no
Programa Bolsa Família sua versão mais emblemática; quanto por: b) medidas de
recrudescimento punitivo, expressas, sobretudo, no letífero habitus policial e no
grande encarceramento em curso.
Esta ambivalência revela uma diferenciação em face do Estado Penal nos
EUA no qual, segundo Wacquant, através da metáfora do Centauro, “a penalidade
neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com um ‘mais
Estado’ policial e penitenciário o ‘menos Estado’ econômico e social”420. Por
outro, no Brasil, a despeito da tendência de liberalização econômica, a equação
aponta para “mais Estado” no âmbito social, ao mesmo tempo que “mais Estado”
policial e penitenciário.
418 KARAM, M. L., A esquerda punitiva. Discursos sediciosos: crime, Direito, sociedade. 419 MENEGAT, M., O olho da barbárie. 420 WACQUANT, L., As prisões da miséria, p. 4.
140
Cabe, portanto, analisar como se revela aqui este Estado Penal, apontando
suas características singulares. Consideramos três traços fundamentais para esta
caraterização: a) o workfare brasileiro, presente em determinadas políticas sociais;
b) o elevado índice de violência institucional, expresso na tortura e na letalidade
policial; c) o grande encarceramento em curso no Brasil.
Esta peculiaridade do Estado penal que vai se erguendo no Brasil, pode ser
melhor compreendida à luz do conceito de hegemonia desenvolvido pelo marxista
italiano Antonio Gramsci. Para Gramsci, o grupo dirigente, ocupando o espaço do
Estado, pode ter “dupla perspectiva”: a da necessidade do uso do consenso e
também o da força, da coerção421. Sobre os graus nessa “relação de força”,
Gramsci distingue vários momentos. Acerca do terceiro deles, o da formação da
hegemonia, afirma:
é aquele em que se adquire a consciência de que os próprios interesses corporativos, no seu desenvolvimento atual e futuro, superam o círculo corporativo, de grupo meramente econômico, e podem e devem tornar-se os interesses de outros grupos subordinados.422
Recentes estudos, dentro da denominada Nova Pedagogia da Hegemonia
têm analisado as estratégias de construção de consenso no seio do Estado
brasileiro, para consolidação de um projeto hegemônico capitalista423. Em nossa
visão, no que tange à dinâmica do controle social formal, ao mesmo tempo se
assiste ao crescimento de políticas assistenciais e ao incremento do aparato
punitivo, assiste-se, metaforicamente, à hegemonia do Bolsa Família aliado ao
binômio extermínio/encarceramento.
As modificações promovidas nas estratégias de controle social ao longo do
percurso institucional brasileiro, desde o colonialismo até o presente, demonstram
o recurso permanente à exceção. Na atual conjuntura, a política criminal tornou-se
a governamentalidade privilegiada para conter os indesejáveis, os sobrantes da
421 GRAMSCI, A., Maquiavel, a política e o Estado moderno, p. 50. 422 Ibid. 423Na obra A nova pedagogia da hegemonia os autores identificam e desvelam o processo de redefinição dos fundamentos e das práticas do Estado brasileiro no sentido da consolidação e do aprofundamento do projeto burguês para a atualidade. E o fazem evidenciando o pensamento e algumas importantes práticas pedagógicas constitutivas da mais atual corrente da pedagogia da hegemonia representada pela Terceira Via, num processo em que o Estado ampliado se requalifica historicamente como agente educador. NEVES, L. M. W. (org.), op. cit., p. 39.
141
sociedade de consumo, e para criminalizar os que insistem em resistir. O exercício
do poder punitivo revela-se central para manutenção das estruturas seculares de
dominação no contexto do capitalismo vídeo-financeiro, como diz Vera
Malaguti424.
Analisaremos como o panorama no qual se edifica o Estado penal
brasileiro apresenta manifestações das três técnicas de poder identificadas por
Foucault425: o poder soberano, empreendido no “fazer morrer, deixar viver” da
“política criminal com derramamento de sangue”; o poder disciplinar, uma
“anátomo-política do corpo”, presente nas agruras das masmorras abarrotadas
pelo grande encarceramento; e a biopolítica, desvelada nas estratégias de inclusão
da vida nos cálculos do poder, em uma verdadeira rede de controle punitivo da
pobreza, complementar às políticas de segurança pública e ao encarceramento,
desde o Programa Bolsa Família, às interceptações telefônicas, passando, por
exemplo, pelo monitoramento eletrônico de apenados e pela implementação das
Unidades de Polícia Pacificadora.
3.4.3.1 Bolsa Família: dispositivo de workfare?
Relatórios do Banco Mundial apontam, desde os anos 1990, a necessidade
de aumentar o desenvolvimento e o número de programas de combate à pobreza
pelo fato de que a população pobre passará a constituir uma ameaça em termos de
“fratura social”, para tanto, seria preciso favorecer os mercados426. A partir de
então, assiste-se a uma multiplicação de “medidas de focalização” programas
assistencialistas, tanto no plano social como no educacional, com ênfase na saúde,
educação básica, geração de emprego e renda e moradia.
424 BATISTA, V. M., Adesão subjetiva à barbárie, p. 1. 425 Sobre o poder soberno e o poder disciplinar, ver FOUCAULT, M., Vigiar e punir. Sobre biopoder/biopolítica, ver Id., Em defesa da sociedade e Id., Segurança, território e população. 426 Mercados em bom funcionamento são importantes para gerar crescimento e expandir oportunidades para os pobres. É por isto que doadores internacionais e governos de países em desenvolvimento, em especial os democraticamente eleitos, têm promovido reformas que favorecem o mercado. BANCO MUNDIAL. Relatório sobre o desenvolvimento mundial. Washington: Banco Mundial, 2000-2001, p. 61. Disponível em: <www.bancomundial.org.br>. Acesso em: 09/07/2015.
142
O Programa Bolsa Família, instituído pelo governo federal em 2003427 e
vinculado, desde 2004, ao recém-criado Ministério de Desenvolvimento Social e
Combate à Fome, constitui um exemplo emblemático das medidas de focalização.
A despeito de sua verificada relevância na dimininuição das desigualdades sociais,
possibilitando, ainda que em níveis mais básicos, distribuição de renda e acesso ao
consumo, o programa pode ser compreendido na lógica de governamentalidade da
pobreza.
Em tempos nos quais a questão social remete, segundo Bauman, a pessoas
declaradas “redundantes”, “descartáveis”, constituintes do que o que se chama de
“refugo humano”428, tais políticas se apresentam como gestão política da miséria.
Desta forma, dirigem-se aos setores mais pauperizados do tecido social429. Jessé
de Souza utiliza o conceito de “ralé”, para denominar esta classe estrutural na
sociedade brasileira, correspondendo a 1/3 da população:
Essa classe social que é sempre esquecida enquanto uma classe com uma gênese e um destino comum, só é percebida no debate público como um conjunto de "indivíduos" carentes ou perigosos, tratados fragmentariamente por temas de discussão superficiais, dado que nunca chegam sequer a nomear o problema real, tais como "violência", "segurança pública", "problema da escola pública", "carência da saúde pública", "combate 'á fome" etc.430
427 O PBF substitui quatro programas que lhe antecederam: Bolsa-Escola, Auxílio-Gás, Bolsa Alimentação e Cartão Alimentação. A unificação desses programas visou "melhorar a gestão e aumentar a efetividade do gasto social através da otimização e racionalização, ganhos de escala e facilidade da interlocução do governo federal com estados e municípios". BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. 2006. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/bolsafamilia>. Acessado em: 09/07/2015. 428 BAUMAN, Z., Vidas desperdiçadas. Compõem, entre outros, essa nebulosa dos “marginalizados” os seguintes segmentos sociais, estatisticamente discriminados, definidos pelos próprios enunciados dos programas focalizados como: os “indigentes”, as pessoas em “situação de vulnerabilidade social” ou de “extrema pobreza” ou que vivem em “territórios vulnerabilizados pela pobreza”. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/bolsafamilia>. Acessado em 09/07/2015. 429 Qualquer família que receba até R$ 77,00 mensais pode se cadastrar no Bolsa Família. Aquelas que ganham de R$ 77,00 a R$ 154,00 também podem entrar no cadastro, desde que pelo menos uma pessoa tenha dezessete anos, para que ela possa receber o valor. O Decreto n. 7.447 “prevê um benefício básico fixado em R$ 70, destinado a famílias que se encontram em situação de extrema pobreza. Institui, ainda, um valor variável de R$ 32 por beneficiário, até o limite de R$ 96, para as famílias que tenham em sua composição gestantes, nutrizes e crianças e adolescentes de zero a 15 anos. Para os jovens de 16 e 17 anos matriculados em estabelecimentos de ensino, o valor do benefício variável mensal passa a ser de R$ 38, até o limite de R$ 76 por família. São valores ajustados a partir do dia 1º de abril de 2011”. Disponível em: <http://calendariobolsafamilia2015.com.br/bolsa-familia-2015>. Acesso em: 09/07/2015. 430 SOUZA, J., A ralé brasileira: quem é e como vive, p. 21.
143
Essa perspectiva que busca propiciar a mera condição de existência, um
mero fazer viver, dá ensejo a identificar tais medidas compensatórias como uma
forma de governamentalidade biopolítica, uma vez revelam um “processo de
subjetivação que leva o indivíduo a vincular-se à própria identidade e à própria
consciência e, conjuntamente, a um poder de controle externo”431.
O benefício do Programa Bolsa Família é mantido pelo governo mediante
o cumprimento de regras pela família. Uma das condicionalidades, como
estabelecido pelo governo na elaboração das concepções do programa, é a
participação efetiva das famílias no processo educacional e nos programas de
saúde que promovam a melhoria das condições de vida na perspectiva da inclusão
social. As famílias que descumprem as condicionalidades estão sujeitas a
penalidades gradativas, que vão da advertência ao cancelamento do benefício. Há,
no entanto, beneficiários que não as cumprem e correm o risco de perder a
transferência monetária do Estado, muitas vezes a única renda da família.
Em estudo de caso baseado na realização de entrevistas com beneficiários
do Programa Bolsa Família, Ranincheski e Mendonça da Silva concluem que:
as titulares legais do benefício esforçam para se sujeitarem às novas, complexas e rígidas normas e aos hábitos de ordem, de exatidão e de previsão que lhe são impostos pela política social da qual são usuárias, o Programa Bolsa Família. Elas sentem a pressão pela mudança de suas estratégias de sobrevivência e tentam se adequar à ação exigida. (...) Aceitam as regras existentes, simplesmente porque elas são consenso na sociedade em que vivem, e mantêm-se sob a pressão coercitiva devido às necessidades elementares da sua existência e às de sua família.432
Este viés de implementação dos programas de assistência vem ao encontro
da reflexão de Gramsci433, uma vez que podem ser interpretados como prepostos
do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social
e do governo político. Em um programa social estatal, como o Bolsa Família, a
confiança está na política que funciona, e o controle está na sanção ao não
cumprimento das condicionalidades, na perda do benefício.
431 AGAMBEN, G., Homo sacer. O poder soberano e a vida nua, p. 13. 432 RANINCHESKI, S. M; SILVA, C. E. M. da, Hegemonia, consenso e coerção e os beneficiários do Programa Bolsa Família. 433 GRAMSCI, A., Cadernos do cárcere, v. 2, p. 21.
144
As condicionalidades cada vez mais rígidas apresentam alguma
similaridade com os programas do workfare implementados nos EUA, ainda que
em menor grau de rigidez434. Levando em conta que através das inscrições no
cadastro único do Bolsa Família, o Estado obtém uma cartografia mais precisa da
população indigente e marginalizada, fato que permite maior controle da
pobreza435.
Constitui-se, deste modo, um conjunto de tecnologias sociais de
controle, sustentadas por numerosos saberes sobre a miséria, a serviço de uma
vida que se pode considerar tanto ‘nua’ quanto possivelmente ‘socializada’, que se
somam à face repressiva do Leviatã penal que se ergue em terra brasilis.
3.4.3.2 Política Criminal com derramamento de sangue
Curiosamente, ao mesmo tempo em que o Brasil vive hoje seu mais longo
período ininterrupto de democracia, se assiste ao espantoso incremento da
violência institucional436. Nos territórios nos quais a presença do Estado é quase
imperceptível, vai se constituindo nas periferias urbanas, no Brasil profundo, o
terreno fértil para a coexistência de espaços nos quais prevalece o Estado de
exceção, a suspensão dos direitos e garantias preconizadas pelo Estado
Democrático de Direito.
434 Wacquant aponta que os discursos neoconservadores nos EUA e na Inglaterra sustentam que “se o Estado deve evitar ajudar materialmente os pobres, deve todavia sustentá-los moralmente obrigando-os a trabalhar; eis o tema, canonizado desde então por Tony Blair, das ‘obrigações da cidadania’, que justifica a mutação do welfare em workfare e a instituição do trabalho assalariado forçado em condições que ferem o direito social e o direito trabalhista para as pessoas ‘dependentes’ das ajudas do Estado”. WACQUANT, L., As prisões da miséria, p. 28. 435 Pelo menos três outros pontos de fixação e de normalização ainda participam desse empreendimento de mapeamento dos sujeitos marginalizados ou de rastreabilidade dos efeitos dos programas socioassistencialistas: a escola, o posto de saúde e o centro de assistência social. 436 Guillermo O' Donnell irá analisar a crise do Estado nos países latino-americanos a partir da década de 80, durante o período da abertura democrática e percebe “em muitas democracias emergentes, a efetividade de uma ordem nacional corporificada na lei e na autoridade do estado desaparece tão logo deixamos os centros urbanos nacionais (...). O crescimento do crime, as intervenções ilegais da polícia nos bairros pobres, a prática disseminada da tortura e mesmo da execução sumária de suspeitos pertencentes aos setores pobres ou de alguma forma estigmatizados, a negação de direitos a mulheres e a várias minorias, (...) expressam a crescente incapacidade do estado para tornar efetivas suas próprias regulações”. O’ DONNELL, G., Sobre o Estado, a democratização e alguns problemas conceituais, p. 129.
145
O leitmotiv desta acumulação de poder punitivo centra-se no combate às
drogas. O reflexo deste deslocamento da política de drogas pode ser
contundentemente percebido no Brasil. Nilo Batista descreve a transição de um
modelo sanitário, aplicado até o início do século XX, para o modelo bélico que
passa a ser estabelecido na vigência da doutrina de Segurança Nacional durante o
regime militar. Desde então, busca-se construir no imaginário social a ideia do
traficante enquanto inimigo público a ser combatido, dando ensejo à “política
criminal com derramamento de sangue”437.
Neste cenário, percebe-se que na periferia do capitalismo o poder soberano
não foi relegado ao passado, convive contemporaneamente com a biopolítica438.
Em sua atualização da obra foucaultiana, Giorgio Agamben considera que a
política contemporânea é suplantada pela biopolítica, e, quando necessário, pela
tânato-política439. Não é por outra razão que se mantém e acirra o processo de
criminalização da pobreza e dos movimentos sociais. “Mais polícia e menos
política” é o que caracteriza nossos tempos, como afirma o filósofo francês
Jacques Rancière440.
A reabertura democrática inaugura, paradoxalmente um processo de re-
militarização das políticas de segurança pública notadamente no Rio de Janeiro441.
Põe-se em curso um modelo de segurança pública orientado pela metáfora da
guerra, como precisamente denomina Dornelles442. Já Marildo Menegat, por sua
vez fala da disseminação de uma guerra civil que está em curso, mediante a qual
“o Estado desmorona, mas se mantém”443.
Este modelo securitário belicista encontra nos autos de resistência seu
dispositivo emblemático para gestão biopolítica dos marginalizados nas periferias
urbanas444. Presente desde a época da ditadura militar, tal classificação
437 BATISTA, N., Política criminal com derramamento de sangue. 438 Diferentemente do modelo identificado por Foucault, ao analisar a realidade europeia, no qual o poder soberano seria substituído pelo poder disciplinar e pela biopolítica, na América Latina e demais periferias capitalistas, o poder soberano, expresso na violência institucional letal permanece como prática contemporânea. 439 AGAMBEN, G., Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. 440 RANCIÉRE, J., O desentendimento. Política e filosofia. 441 DORNELLES, J. R. W., Conflito e segurança. Entre pombos e falcões, p. 162 passim. 442 Ibid., p. 47. 443 MENEGAT, M., O olho da barbárie. 444 SOUZA, T. L. S. e, Constituição, segurança pública e Estado de exceção permanente: a biopolítica dos autos de resistência.
146
administrativa passou progressivamente a ser empregada com maior frequência
para designar as mortes resultantes das ações policiais445. Recente levantamento
apresentado pelo NECVU-UFRJ, sob coordenação do professor Michel Misse,
apontou os indicadores de autos de resistência no Rio de Janeiro, identificando
seu ápice no ano de 2007, quando foram contabilizados 1.330 civis mortos pela
polícia.
Tabela 1: Autos de Resistência lavrados no Rio de Janeiro – (2000-2014)
Ano 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
Total 427 592 900 1195 983 1098 1063 1330 1137 1084 855 523 415 416 584
Fonte: ISP-RJ446 e NECVU-UFRJ447
Entre 2000 e 2014, chega-se a um contingente de 12.594 mortos pela
polícia. Soma-se a este fato o elevadíssimo número de vítimas de homicídio no
país, totalizando 56 mil em 2014448. Números de um país em guerra, dando ensejo
a uma política de extermínio dirigida, sobretudo, contra jovens, negros e
moradores de periferias urbanas, os ditos “indignos de vida” como aponta
Zaccone449. Em paralelo, constata-se também que temos uma das polícias que
mais morre no mundo450.
Para situar a assustadora disparidade da letalidade policial do Rio de
Janeiro, convém comparar com outras realidades, como se pode verificar no
quadro abaixo:
445 Esta gratificação foi criada por um decreto do governador Marcelo Alencar, em novembro de 1995, quando o general Nilton Cerqueira estava à frente da Secretaria de Segurança Pública, podendo aumentar os salários dos policiais militares em até 150%. Tais gratificações, aliadas às promoções por bravura, fizeram com que os homicídios classificados como “auto de resistência” passassem de 3 pessoas por mês, no começo de 1995, para mais de 20 por mês, em 1996. CANO, I., Letalidade da ação policial no Rio de Janeiro. 446 Disponível em: <www.isp.rj.gov.br>.. Acessado em: 09/07/2015. 447 MISSE, M., Autos de resistência: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do rio de janeiro (2001-2011). 448 Dados apontam ainda que, neste ano, o Brasil teve 29 assassinatos por 100.000 habitantes, ao passo que nos EUA apenas 4,7. ANISTIA INTERNACIONAL, Relatório Anual – 2014. 449 ZACCONE, O., Indignos de vida: A forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. 450 Ibid.
147
Figura 2: Comparativo Internacional de Letalidade Policial (2008)
Fonte: Human Rights Watch451.
Como mais uma vez salienta Zaccone, “na guerra do bem contra o mal
quem entra com os corpos são os pobres”452. Trata-se do fenômeno que Malaguti
irá denominar de verdadeiro “filicídio”453, uma vez que estamos promovendo o
massacre de nossa juventude.
Podemos pensar então, se está empiricamente verificado que nenhum crime de Estado é cometido sem ensaiar ou apoiar-se em um discurso justificante, que a matança em curso no Brasil neoliberal se sustenta em uma criminologia funcionalista e acrítica, que pretende reordenar, eficientizar o controle social letal legitimando a expansão da barbárie, que se traduz no emparedamento em vida e no aniquilamento de milhares de jovens brasileiros.454
A insuportável letalidade policial praticada no Brasil, em especial no Rio
de Janeiro, sinaliza as sinistras peculiaridades do Estado penal brasileiro.
Diferentemente do que ocorre nos EUA455, a violência policial brutal serve como
uma espécie de complemento biopolítico ao grande encarceramento, promovendo
451 HUMAN RIGHTS WATCH, Força Letal. Violência policial e segurança pública no Rio de Janeiro e em São Paulo. 452 ZACCONE, O., Indignos de vida: A forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro, p. 210. 453 BATISTA, V. M., Filicídio: a questão criminal no Brasil contemporâneo. 454 Id., O realismo marginal: criminologia, sociologia e história na periferia do capitalismo, p.9. 455 Nos Estados Unidos são mortos anualmente em confronto uma média de 300 pessoas para uma população de aproximadamente 314 milhões (1 morte para cada 1.050.000). Já no Rio de Janeiro, em média, são mil mortes para 16 milhões de habitantes (1 morte para cada 16.000). MISSE, M., Autos de resistência: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do rio de janeiro (2001-2011).
148
o enlace entre o modelo de Estado Penal (Wacquant) com o paradigma do Estado
de exceção permanente (Agamben).
3.4.3.3 O grande encarceramento no Brasil
Assim como o Leviatã neoliberal norte-americano, o Brasil vem
apresentando uma escalada colossal em seu nível de aprisionamento. Entretanto,
como pondera Zaffaroni, é de se ressaltar que “na América Latina, as prisões se
assemelham a verdadeiros campos de concentração para miseráveis, enquanto nos
países centrais possuem um aspecto disciplinador”456. Esta clara distinção está
diretamente relacionada às desigualdades econômicas provocadas pelas clivagens
do capitalismo nos planos nacional e internacional457.
Dados de junho de 2014, informados pelo Levantamento de Informações
Penitenciárias (Infopen) do Departamento Penitenciário Nacional458, apontam que
o Brasil possui uma população prisional de 607.731 presos, com uma taxa de
encarceramento de 299,7 presos por 100.000 habitantes. Entretanto, existem
apenas 376.669 vagas nos estabelecimentos carcerários, o que revela um índice de
superlotação da ordem de 161%.
Estes indicadores, por si só, sinalizam a gravidade da situação do sistema
prisional brasileiro. Contudo, para uma melhor compreensão desse quadro, é
pertinente comparar a realidade carcerária brasileira com a de outros países.
Tabela 2: Dados acerca das 10 maiores populações prisionais do mundo (2014)
País População prisional
Taxa de encarceramento (presos por 100 mil habitantes)
Taxa de ocupação
Presos provisórios
1. EUA 2.228.424 698 102,7% 20,4% 2. China 1.657.812 119 - - 3. Rússia 673.818 468 94,2% 17,9% 4. Brasil 607.731 300 161% 41% 5. Índia 411.992 33 118,4% 67,6% 6. 308.093 457 133,9% 20,6%
456 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p. 123 passim. 457 ARGUELLO, K., Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem, p. 17 et. seq. 458 Fonte: MINISTÉRIO DA JUSTIÇA – Depen.
149
Tailândia 7. México 255.638 214 125,8% 43% 8. Irã 225.624 290 161,2% 25,1% 9. Indonésia
167.163 66 153% 31,9%
10. Turquia 165.033 212 101,2% 13,9% Fonte: International Centre for Prison Studies459
A tabela acima oferece um panorama dos principais indicadores sobre as
dez maiores populações prisionais do mundo. Em números absolutos, o Brasil tem
a quarta maior população prisional, com 607 mil presos, ficando atrás apenas dos
Estados Unidos, 2,2 milhões de presos, seguido de China, com 1.657.812l, e
Rússia, com 673 mil.
Neste cálculo não estão computadas prisão albergue domiciliar, cujas
condições de aprisionamento não são vinculadas à administração penitenciária460.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2014, havia cerca de
147.937 pessoas em prisão domiciliar461. Contabilizando este valor ao total de
presos em estabelecimentos prisionais, constata-se um total de 755.668 pessoas
privadas de liberdade no Brasil, fato que colocaria o país no terceiro lugar do
ranking internacional, à frente da Rússia com 673.818.
Levando em conta a taxa de aprisionamento, verifica-se que a população
prisional brasileira também ocupa a quarta colocação, atrás somente de EUA,
Rússia e Tailândia. Em relação à taxa de ocupação, que indica a realidade de
superlotação, considerando os dez países com maior população prisional, o Brasil
fica na segunda posição, com 161%, ligeiramente atrás do Irã. Ademais, dentre os
países comparados, o Brasil figura como terceiro quanto ao percentual de presos
provisórios com 41%, atrás apenas de Índia e México.
459Dados referentes ao ano de 2014. Ressalte-se que há pequenas discrepâncias entre as datas de informação do quantitativo prisional dos países. Não há informações disponíveis sobre taxa de ocupação, bem como sobre o número de presos provisórios na China. Disponível em: http://www.prisonstudies.org/world-prison-brief. Consultado em: 09/07/2015. 460 Não há registros disponíveis sobre os indicadores de prisão domiciliar em comparativos internacionais. 461 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_ presas_correcao.pdf. Acessado em: 07/07/2015.
150
Figura 3: População Prisional Brasil (1990-2014)
Fonte: Ministério da Justiça/DEPEN
A população prisional brasileira vem crescendo regularmente. O gráfico
acima revela a evolução entre 1990 e 2014, com um acréscimo da ordem de
575%, saltando de 90.000 encarcerados para o assustador exército de 607.700
presos neste intervalo de tempo.
Em 2014, pela primeira vez, o número de presos no país ultrapassou a
marca de 600 mil, atingindo um número de pessoas privadas de liberdade 6,7
vezes maior do que em 1990. Desde 2000, a população prisional cresceu, em
média, 7% ao ano, totalizando um crescimento de 161%, valor dez vezes maior
que o crescimento do total da população brasileira, que apresentou aumento de
apenas 16% no período, em uma média de 1,1% ao ano462.
462 IBGE. Censo Demográfico 2010.
151
Figura 4: População Prisional EUA (1990-2014)
Fonte: International Centre for Prison Studies
Uma análise comparativa com o crescimento da população carcerária nos
EUA, o maior empreendimento do Leviatã neoliberal no mundo, permite observar
que desde 2008 o número total de presos vem diminuindo progressivamente, ao
contrário do Brasil, que permanece crescendo cerca de 7% ao ano. A comparação
entre a taxa de aprisionamento (número de presos por 100 mil habitantes) também
é reveladora deste aspecto.
Não fosse bastante o elevado número de presos, o Brasil se notabiliza pela
altíssima velocidade de crescimento de sua população prisional. Segundo
levantamento realizado pelo DEPEN463 no período entre 1995 e 2010, analisando
os cinquenta países com maior população prisional, o Brasil aparece com a
segunda maior variação na taxa de aprisionamento (número total de presos por
cem mil habitantes), com um crescimento na ordem de 136%, perdendo apenas
para a Indonésia - país que tem sido criticado internacionalmente por severas
violações aos direitos humanos -, que apresentou o ritmo de crescimento relativo
de 145% em sua população prisional. Entretanto, o sistema penitenciário na
Indonésia, apesar desta alta variação, apresenta indicadores muito menores do que
o Brasil, com 66 presos para cada cem mil habitantes, e uma população carcerária
de 167.163 presos.
Convém ainda comparar a evolução do encarceramento nos países com as
quatro maiores populações prisionais do mundo, para reforçar a compreensão
sobre este cenário, conforme o gráfico abaixo.
463 BRASIL. Ministério da Justiça. Levantamento de Informações Penitenciárias. Infopen, 2014.
152
Figura 5: Comparativo entre as 4 maiores populações prisionais do mundo (1995-2014)
Fonte: ICPS e DEPEN
O gráfico revela a variação da população prisional de EUA, China, Rússia
e Brasil entre 1995 e 2014. Verifica-se que a partir 2009, a variação da população
prisional brasileira tem destoado em relação às demais. Entre 2009 e 2014 a
população prisional estadunidense diminuiu em 80 mil presos. Em relação à
China, apesar de ter havido aumento, há uma tendência de estabilização do efetivo
carcerário, tendo elevado em apenas 40 mil presos no período. No que se refere à
Rússia, a redução é considerável. Desde 1998 a população prisional russa só cai,
tendo apresentado queda de 170 mil internos entre 2009 e 2014. No caso
brasileiro, ao contrário, verifica-se o contínuo crescimento, majorando em 134 mil
presos nos últimos cinco anos. Segundo o Ministério da Justiça, seguindo esta
projeção, a população carcerária brasileira deverá superar a da Rússia em 2018464
e os EUA em 2034465.
Vale ressaltar, que diferentemente de tais países466, o Brasil apresenta um
imenso déficit prisional, da ordem de 231 mil vagas, fato que torna as condições
da execução penal muito mais degradantes. Além disso, segundo informações do
CNJ havia cerca de 373.991 mandados de prisão em aberto no país em junho de
464 Ministério da Justiça/DEPEN. Levantamento de Informações Penitenciárias 2014. 465Fonte: <http://institutoavantebrasil.com.br/populacao-prisional-brasil-vai-passar-os-eua-em-2034>. 466 Nos EUA a taxa de ocupação das unidades prisionais é de 102%, na Rússia tal indicador é de 94%. Não há informações seguras sobre a China neste aspecto.
153
2014467, que caso sejam cumpridos, conduziriam a população prisional a um total
de mais de 1 milhão de presos.
Os números são assustadores. Para que fique mais evidente o significado
do encarceramento massivo, vale situar que ao todo, em 2014 havia no mundo um
total de mais de 10,2 milhões de presos, metade destes em unidades prisionais dos
EUA, China, Rússia e Brasil468. Em 2009 a população prisional do planeta era de
9,95, ou seja, verifica-se que neste intervalo houve um crescimento global de 250
mil presos. Porém, apenas no Brasil o aumento neste período foi de 134 mil
presos, equivalente, portanto, a mais da metade do aumento da população
prisional global.
A voracidade deste implacável Estado penal evidencia uma brutal
seletividade, atingindo sobremaneira os segmentos populacionais dotados de
maior grau de vulnerabilidade à criminalização secundária, notadamente, os
jovens pobres, negros e moradores de periferias urbanas.
Em meio a este Grande Encarceramento, emerge por clara influência
norte-americana no âmbito do controle social punitivo a implementação da
incipiente, mas promissora, indústria do controle do crime no Brasil469, como
revela Laurindo Minhoto:
Se, de um lado, há evidências fundadas de que a operação privada de estabelecimentos correcionais não tem executado um serviço mais eficiente nem tampouco mais barato, como também não tem conseguido fazer frente aos objetivos internos do sistema de justiça criminal, notadamente, o alívio da superpopulação e a reabilitação dos detentos, além de despertar forte polêmica, é certo que paradoxalmente as prisões privadas vêm se expandindo e as companhias ampliando largamente suas margens de lucratividade.470
467 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/61762-cnj-divulga-dados-sobre-nova-populacao-carceraria-brasileira. Acessado em: 10/06/2015. 468 Disponível em: http://www.prisonstudies.org/. Acessado em: 07/07/2015. 469 Sobre a privatização do sistema penitenciário brasileiro ver: Prisões privatizadas no Brasil em debate / Pastoral Carcerária Nacional (2014), coordenação de obra coletiva: José de Jesus Filho e Amanda Hildebrand. O Relatório revela que um custo médio de um preso no sistema prisional privado é de aproximadamente R$ 3.000,00/mês, ao passo que o custo mensal no sistema penitenciário estadual público gira em torno de R$ 1.500,00 a R$ 2.000,00. 470 MINHOTO, L. D., Privatização de presídios e criminalidade. A gestão da violência no capitalismo global, p. 92. Em relação ao Brasil, adverte que “Em grande medida, essa proposta resulta de um intenso lobby realizado por uma empresa brasileira de segurança privada, a Pires Segurança Ltda., destinado a transpor as prisões privadas para o contexto brasileiro, a partir da manipulação seletiva da ‘experiência estrangeira’ – sobretudo da experiência norte-americana –, invocada como argumento de autoridade”.
154
Esta tendência ganha fôlego a partir dos tendenciosos trabalhos da
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário realizada na
Câmara de Deputados no ano de 2015. A comissão foi presidida pelo deputado
Alberto Fraga (DEM-DF), ex-tenente-coronel da Polícia Militar e integrante da
chamada “Bancada da Bala”. No relatório final, aprovado no dia 05 de agosto de
2015, são apresentadas 20 propostas legislativas, e tem como uma de suas
principais sugestões a participação da “iniciativa privada na gestão de
estabelecimentos penais” no país471.
Neste sentido, desponta o risco de maior expansão punitiva, catapultada
pelo complexo-industrial-prisional que se movimenta sorrateiramente através de
lobbies ao Legislativo e Executivo. Ao analisar o fenômeno do
superencarceramento, Nils Christie manifesta a necessidade de limites contra a
indústria do controle penal do crime:
a situação exige uma discussão séria sobre os limites do crescimento do sistema formal de controle do crime. Pensamentos, valores, ética – e não o impulso industrial – devem determinar os limites do controle, o momento em que este já é suficiente.472
Já existem empresas privadas lucrando com o fornecimento de
alimentação, serviços de saúde, trabalho e educação para os detentos, além da
própria administração e manutenção de unidades prisionais no país. Estima-se que
atualmente haja mais de 200 presídios privados no mundo473, sendo 30 deles em
atividade no Brasil474. Está em curso um forte lobby para a expansão deste setor,
inclusive com expressivo apoio das agências políticas e midiáticas, para expansão
do gerenciamento privado das penitenciárias brasileiras475, fato que gera profunda
471 Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/com-2018bancada-da-bala2019-cpi-sugere-2018privatizacao2019-do-sistema-penitenciario-776.html. Acessado em: 17/08/2015. 472 CHRISTIE, N., A indústria do controle do crime: a caminho dos Gulags em estilo ocidental. 473 Disponível em: http://apublica.org/2014/05/quanto-mais-presos-maior-o-lucro/. Acessado em: 14/07/2015. 474 FILHO, José de Jesus e OI, Amanda Hildebrand (cord.).Prisões privatizadas no Brasil em debate. 475 O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) elaborou as diretrizes em 1992, para adoção das prisões privadas no Brasil as quais, em resumo, propunham que “A admissão das empresas seria feita por concorrência pública e os direitos e obrigações das partes seriam regulados por contrato. O setor privado passaria a prover serviços penitenciários tais como alimentação, saúde, trabalho e educação aos detentos, além de poder construir e administrar os
155
preocupação, sobretudo em razão dos efeitos deste pernicioso caminho,
largamente demonstrados na experiência fracassada nos EUA.
Desta forma, podemos perceber que a tese de Rusche e Kirchheimer, que
identifica a íntima relação entre os sistemas penais e os sistemas econômicos,
permanece vívida. Embora a história do sistema penitenciário permita conclusões
claras acerca da função real do cárcere no seio da sociedade, que rechaçam as
teorias idealistas dos fins da pena de prisão, de prevenção (geral e especial) e
retribuição, à condição de ideologias insustentáveis do ponto de vista empírico, tal
resposta punitiva se intensifica assustadoramente, em pleno século XXI.
A penalidade neoliberal ergue nos EUA uma agenda criminalizante que
dá ensejo ao Estado penal, disseminando globalmente o boom carcerário, como
aponta Wacquant. Na América Latina e no Brasil, a ofensiva punitiva será
recepcionada tal qual um programa suprapartidário. Torna-se imprescindível
percorrer as entranhas deste Leviatã neoliberal, como verificaremos no sistema
prisional do Rio de Janeiro.
estabelecimentos”. Sobre a incipiente privatização/terceirização dos presídios brasileiros, confira: MINHOTO, L. D., op. cit. e FREIRE, M. de F., Privatização de presídios: uma análise comparada.
4 Nas entranhas do Leviatã prisional: cartografia do encarceramento massivo no Rio de Janeiro
O conceito de cartografia por muitos anos ficou restrito ao campo das
ciências geográficas, como ciência que trata da concepção, produção, difusão,
utilização e estudo dos mapas, mas, atualmente não pode ser restrita ao
significado de “arte ou ciência de compor cartas geográficas”476. Passou a ser
compreendida, também, pelo prisma do que se convencionou chamar de filosofia
da multiplicidade477, na análise de Gilles Deleuze e Félix Guattari, ou seja, a
cartografia busca em diferentes territórios as especificidades necessárias para
compor uma área dinâmica.
A cartografia recebe a atribuição de método em Gilles Deleuze e Félix
Guattari478, este que visa acompanhar um processo, e não representar um objeto. A
cartografia atribuída como método, cria seus próprios movimentos, seus próprios
desvios. É um projeto que pede passagem, que fala, que incorpora sentimentos,
que emociona. É um mapa do presente que demarca um conjunto de fragmentos,
em eterno movimento de produção. Como definem Deleuze e Guatarri:
O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar−se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social.479
Descortinando um mundo e seus lugares, interpretando à sua maneira o
espaço, a cartografia pode ser aplicada como método de acompanhamento para
traçar percursos políticos, formas de exercício do poder, constituição de territórios
de controle e dominação, a exemplo da dinâmica de funcionamento do cárcere.
476 FERREIRA, A. B. de H., Dicionário Aurélio Eletrônico. Século XXI. 477 A filosofia da multiplicidade é a perspectiva proposta por Deleuze e Guatari que pretende se desvencilhar de todo dogmatismo científico que busca uma verdade absoluta, uma unidade, uma representação. DELEUZE, G., Conversações, p. 170. 478 O esboço de um método cartográfico deve ser feito levando em conta as já conhecidas perspectivas metodológicas de Foucault – arqueologia do saber, genealogia do poder e genealogia da ética – visto ser a análise cartográfica ao mesmo tempo uma derivação e uma incorporação dessas perspectivas. Deleuze refere-se a Foucault como cartógrafo. DELEUZE, G.; GUATTARI, F., Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, Vol.I, p.22. 479 Ibid.
157
Desta forma, pretendemos neste capítulo percorrer uma cartografia da prisão
no Rio de Janeiro, descortinando o mapa do exercício do poder punitivo em suas
entranhas, percebendo as inflexões do grande encarceramento nos
estabelecimentos prisionais.
De início, consideramos imprescindível apresentar um escorço histórico
sobre a prisão no Rio de Janeiro, percorrendo a genealogia do cárcere para
permitir sua melhor compreensão no tempo presente. No segundo item, voltaremos
as lentes às estratégias de controle social implementadas no estado do Rio de Janeiro,
buscando identificar possíveis evidências de que tem servido como laboratório para a
implementação de um tipo ideal de cidade punitiva no contexto neoliberal, dentro do
qual a prisão cumpre papel essencial.
Por fim, no terceiro tópico, nos propomos a fazer a análise das condições
de aprisionamento, sob os impactos do grande encarceramento. A partir de
relatórios de visitas do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura a
29 unidades prisionais, busca-se apontar uma cartografia da prisão no Rio de
Janeiro, analisando indicadores quanto à superlotação, perfil da população privada
de liberdade, assistência e direitos do preso, corpo técnico, regime e atividades,
castigos e violência no cárcere. Deste modo, pretendemos analisar a vigência do
encarceramento massivo neste território, identificando suas especificidades.
4.1 A trajetória histórica da Prisão no Rio De Janeiro: os caminhos da dor
Que vai fazer agora o governo? Vai demitir o administrador da Casa de Detenção? Daqui a pouco será obrigado a demitir o cidadão que o substituir, e as coisas continuarão no mesmo pé – porque a causa dos abusos não reside na incapacidade de um funcionário, mas de um vício essencial do sistema, num defeito orgânico do aparelho penitenciário. E não há de ser a demissão de um administrador que há de consertar o que já nasceu torto e quebrado. (Olavo Bilac)
A trajetória trilhada pelo sistema penitenciário do Estado do Rio de
Janeiro, no que se refere à sua construção e expansão, ainda carece de uma síntese
histórica com amplitude analítica e dados consistentes. Não há uma obra que
158
tenha dado conta desta historiografia do cárcere fluminense, a despeito de serem
observadas importantes contribuições recentes480. Além disso, não é nosso
objetivo apresentar uma análise aprofundada sobre este escorço histórico, mas sim
um breve panorama sobre as transformações que perpassam a prisão no Rio de
Janeiro até o contexto contemporâneo.
A genealogia do cárcere no Brasil remete ao Rio de Janeiro, Capital da
Colônia a partir de 1763, permanecendo como sede do poder político durante todo
o Império, perdurando até 1960. O sistema penal colonial foi tributário das
matrizes ibéricas inquisitoriais481, tendo por balizamento as Ordenações da Coroa
Portuguesa, com ênfase nos castigos corporais e na pena capital. As Ordenações
Filipinas publicadas em 1603 - primeiro programa de criminalização primária
mais denso do Brasil Colônia - previam a prisão como pena, servindo esta, tão
somente enquanto medida cautelar até a execução da pena482. Nas raras hipóteses
de cabimento da prisão, como nos casos de dívida, esta não seria superior a quatro
meses483.
No Brasil, a modernidade penal é inaugurada ainda no Império, no início
do século XIX, e tem seu triunfo com a República484. O Código Criminal do
Império de 1830 estabelecia como penas em espécie: o açoite, a pena de morte, as
galés, a multa, o degredo, a perda e suspensão do emprego, bem como a pena de
prisão simples e a pena de prisão com trabalho.
No Rio de Janeiro, até o início do século XVII, a privação da liberdade era
realizada na cadeia pública, localizada em um prédio nas cercanias do Morro do
Castelo, local que também abrigava o Senado da Câmara. O estabelecimento já se
480 Sobre a trajetória histórica dos marcos legais da execução penal, ver ROIG, Rodrigo Duque Estrada Direito e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil. Acerca da história do sistema penitenciário em São Paulo, SALLA, F., As Prisões em São Paulo – 1822-1940. No que tange ao período histórico imperial BARROS DA MOTA, M., Crítica da razão punitiva; PINTO, L. R., Sobre a arte de punir; e NEDER, G., Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro. Há ainda excelentes trabalhos sobre o sistema prisional do Rio de Janeiro na coletânea BRETAS, M. L. (org.), História das Prisões no Brasil vol. I, e Id. História das Prisões no Brasil vol. II. 481 BATISTA, N., As matrizes ibéricas do sistema penal. 482 As Ordenações Afonsinas (1447-1521) não tiveram qualquer influência na vida da colônia. Posteriormente, na vigência das Ordenações Manuelinas (1521-1603) o poder punitivo era exercido de maneira privada e desregulada. De fato, o programa criminalizante mais densamente instituído no contexto colonial advém com as Ordenações Filipinas, publicadas em 1603, mantendo vigência por alguns anos no Império, até a promulgação do Código Criminal de 1830. ZAFFARONI, E. R., e BATISTA, N., Direito Penal Brasileiro, Vol. I, p. 411-422. 483 Ordenações Filipinas – livro V – título CXXXIX, p. 1318. 484 Ver mais em BARROS DA MOTTA, M., Crítica da razão punitiva, p. 4.
159
encontrava deteriorado pelo tempo, com estrutura frágil, que permitia constantes
fugas de presos. Em 1639 a Corte autorizou a realização das obras do novo
edifício que posteriormente ficou conhecido como “Cadeia Velha”.
No início século XIX verificavam-se três modalidades distintas de prisão:
as militares (como os Fortes de Santa Cruz e Santa Bárbara, os Navios
Presigangas485 e da Ilha das Cobras); as eclesiásticas (como o Aljube e as
reclusões no interior de mosteiros e conventos); e as civis (como o Calabouço, a
prisão civil da Ilha das Cobras486 e a Prisão Municipal)487. A rede de contenção
penal desta época compreendia ainda outras instituições a ela associadas, como o
Asilo de Mendicidade, o Depósito de Africanos Livres e o Instituto de Menores
Artesãos488.
De 1747 até a chegada da família Real, o principal cárcere destinado aos
presos comuns era a Cadeia Velha - já apresentando à época cenário de
superlotação489 -, situada no então Palácio da Justiça, posteriormente vindo a
abrigar o Paço Imperial490. Nesta prisão estiveram reclusos alguns comprometidos
na Inconfidência Mineira, inclusive o próprio Tiradentes.
Os detentos viviam em condições de extrema precariedade e deviam
custear suas despesas, não recebendo do Estado o mínimo de assistência material.
Em muitos casos esta era prestada pela Santa Casa de Misericórdia. Em relato, no
início do século seguinte, John Luccok, viajante inglês, descreve que o
estabelecimento se assemelha “às nossas jaulas de animais ferozes, e dentro dele
vagueiam os presos de modo muito semelhante a eles e com acomodações não
muito superiores”491.
485 SOARES, C. E. L., Da Presiganga ao Dique: os capoeiras no Arsenal de Marinha. 486 O prédio possuía masmorras construídas pelos padres jesuítas, destinada ao recolhimento de militares, porém, a partir de 1834 passou a receber também presos civis. 487 PINTO, L. R., op. cit., p. 74. KARASH, M. C., A vida dos escravos no rio de janeiro (1808-1850), p. 177. 488BARROS DA MOTTA, M., op. cit., p. 4. 489 Em 1764, Conde Da Cunha, Vice Rei de Portugal, escreve ao Rei de Portugal D. José I : “ A cadeia desta cidade ´tão pequena, que com grande aperto e incômodo dos presos só poderá recolher cento e ciquenta; e porque presente duzentos e ciquenta e três , se faz preciso que ou se acrescente a casa da prisão( o que custará mais de trinta mil cruzados) ou se não prendam os que delinquirem aqui em diante por não haver onde se recolham”. NEIVA, G. A., Os Mutirões Carcerários e a Crise do Sistema Penitenciário. Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/artigos/2010/07. Acessado em: 06/06/2015. 490 O prédio da Cadeia Velha foi demolido no início da década de 1920, e em seu sítio histórico foi construído o Palácio Tiradentes, onde atualmente funciona a Assembléia Legislativa. 491 NEIVA, G. A., op. cit.
160
Em 1808, o prédio passou a ser destinado à criadagem da rainha, e os
presos foram transferidos para as mais espaçosas instalações do Aljube,
construído em 1732 nas proximidades do Morro da Conceição, até então,
destinando-se exclusivamente às penitências eclesiásticas. Posteriormente veio a
ser denominado de Cadeia da Relação, passando a ser administrada pelo
Ministério da Justiça.
Vale registrar um fato histórico muito elucidativo sobre a crise
(permanente) do sistema penitenciário no Brasil. Em 1828 fora aprovada a Lei de
1º de outubro, que designava uma comissão para fiscalizar as “prisões civis,
militares, e eclesiásticas, dos cárceres dos conventos dos regulares, e de todos os
estabelecimentos públicos de caridade”492. Trata-se do primeiro registro de
controle da execução penal no Brasil. Em sua primeira inspeção, a comissão
constatou no Aljube que “os esconderijos desse edifício, construído para 12 a 20
pessoas, continham 390 presos!”, no que denominaram de “sentina de todos os
vícios”493. A obtenção da obediência era assegurada com o uso reiterado da
violência institucional, sendo as surras desferidas pelos carcereiros denominadas
de “roda de pau”.
Vale mencionar que a Constituição Federal de 1824 preconiza a reforma
do sistema punitivo, prevendo, em seu artigo 179 número XXI, que “as cadeias
fossem seguras, limpas e bem arejadas havendo diversas casas para a separação
492 A primeira comissão foi composta Os arts. 56 e 57 estabeleciam tal diretriz. “Art. 56. Em cada reunião, nomearão uma commissão de cidadãos probos, de cinco pelo menos, a quem encarregarão a visita das prisões civis, militares, e ecclesiasticas, dos carceres dos conventos dos regulares, e de todos os estabelecimentos publicos de caridade para informarem do seu estado, e dos melhoramentos, que precisam. Art. 57. Tomarão por um dos primeiros trabalhos, fazer construir ou concertar as prisões publicas, de maneira, que haja nellas a segurança, e commodidade, que promette a Constituição.” Lei de 1º de outubro de 1828.” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-1-10-1828.htm. Acessado em: 06/06/2015. 493 “foi com grande dificuldade que se pôde vencer a repugnância que deve sentir todo coração humano para penetrar nesta sentina de todos os vícios, neste antro infernal onde tudo se acha confundido, o maior facínora com uma simples acusada, o assassino mais inumano com uma miserável vitima da calúnia, ou da mais deplorável das administrações da justiça. O aspecto dos presos nos faz tremer de horror: mal cobertos de trapos imundos, eles nos cercam por todos os lados e clamam contra quem os enviou para semelhante suplício, sem os ter convencido de crime ou delito algum. Os infelizes preferiam antes morrer de uma vez, do que acabar pouco a pouco no meio dos maiores tormentos da fome, do calor e vendo cada dia deteriorar-se mais a sua saúde. Os esconderijos desse edifício, construído para 12 a 20 pessoas, continham 390 presos!” (...) “No interior das salas sente-se um cheiro insuportável de cigarro, suor, latrinas e de toda a sorte de imundícies, que tornam semelhante prisão mais horrível do que o deve ser a habitação dos mais ferozes animais”. (...) “morre nelas grande número de presos abafados, principalmente no verão!” VIEIRA FAZENDA, J., Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro.
161
dos réus, conforme a circunstâncias, e natureza dos seus crimes”. Estabelecia
ainda a mitigação das penas cruéis, como o açoite, a tortura, o ferro quente,
mantidas apenas para a punição aos escravos.
A Fortaleza de São Sebastião no Morro do Castelo, comumente chamada
de Calabouço destinava-se à custódia de escravos que seriam submetidos à pena
de açoite. Para Barros da Motta, seu funcionamento “é um índice de que a
pedagogia e a ortopedia disciplinar não ocupam todo o espaço da política penal.
Sua transformação no curso do século XIX é um índice do processo de
implantação da disciplina na própria penitenciária.”494 Demarcava a transição que
progressivamente se dava entre o controle penal da escravidão em âmbito
doméstico (dominium) para um poder punitivo público (imperium)495. O
Calabouço permaneceu com esta função até 1837, quando então os escravos
punidos passam a ser transferidos para a Casa de Correção, ainda em construção
na Rua Nova do Conde496. Os castigos corporais do controle penal da escravidão
permaneceram ali aplicados até a década de 1870497.
Não obstante a existência das primeiras prisões mencionadas, a
inauguração do sistema carcerário brasileiro se dá com a Casa de Correção da
Corte inaugurada em 1834498, e regulamentada em 06 de julho de 1850, através do
Decreto nº 677, destinando-se à execução de pena de prisão com trabalho. Sob o
regime rigoroso do silêncio, foi adotado o sistema de isolamento noturno e de
trabalho em comum diurno. O modelo prisional recebe influências dos sistemas
americanos de Filadélfia e de Auburn. O modelo de prisão com trabalho chega
494 BARROS DA MOTTA, M., op. cit., p. 3. 495 O programa punitivo do mercantilismo colonial, centrado nos corpos dos suspeitos ou condenados – através das penas de degredo, galés, açoites, mutilações e morte – é empreendido, sobretudo, em âmbito privado. Segundo Batista e Zaffaroni, esta continuidade público-privado constitui uma tradição ibérica. Para os autores, nas colônias assiste-se a uma reminiscência feudal que enseja a superposição entre o eixo jurídico privado (dominium) e o público (imperium). Nilo e ZAFFARONI, E. R., BATISTA, N., op. cit., p. 412. NEDER, G.,Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro, p. 159. 496 PINTO, L. R., op. cit., p. 68. 497 BARROS DA MOTTA, M., op. cit., p. 3. Os açoites foram revogados apenas com a lei 3.310 de 15 de outubro de 1886. 498 A Carta Régia de 08 de julho de 1769 determinava a construção de uma "Casa de Correção" para homens e mulheres, porém, apenas em 1834 fora iniciada a obra que seguia a planta de uma casa de correção dos EUA, conforme o modelo panóptico de Bentham.
162
ainda a outros estados, como São Paulo, através da Casa de Correção inaugurada
em 1852, e também Ceará499.
Neste período, tanto na província quanto na Corte não havia instituições
prisionais em número suficiente para detenção de uma população carcerária que
aumentava consideravelmente500. O controle social punitivo no Brasil Império
pretendeu instituir um modelo prisional que superasse a barbárie dos cárceres
coloniais501.
Conforme aponta Gizlene Neder, o Rio de Janeiro como capital do
Império, almejava ocupar um status cosmopolita, inspirado nos padrões dos
grandes centros urbanos europeus502, que buscava no que tange ao sistema
penitenciário, pautar-se nos modelos norte-americanos e na reforma humanista
europeia, em consonância com os ditames da Constituição de 1824. De tal modo,
a capital imperial destacava-se como “caixa de ressonância”, servindo como
exemplaridade para as demais unidades prisionais do Império.
Desta maneira, a Casa de Correção da Corte simbolizava para as
autoridades da época um legado de progresso e civilização ao incorporar as
reformas liberais ao sistema penal. A Casa de Correção deveria representar a
substituição das penas corporais pelo sofrimento psíquico do cárcere503.
Entretanto, a contradição do liberalismo jurídico-penal à brasileira fazia ainda
constar em seu cotidiano os castigos físicos, a ausência de oficinas de trabalho e a
permanência da escravidão como sustentáculo do modelo econômico504.
O aparato policial à época voltava-se prioritariamente ao controle penal
das populações marginalizadas urbanas, visando escravos e homens pobres livres 499 PEDRINHA, R. D., Uma Abordagem Tridimensional do Espaço do Cárcere: Da Casa de Correção da Corte ao Regime Disciplinar Diferenciado. 500 HOLLOWAY, T., Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX, p. 159. 501 Segundo o então Ministro da Justiça Bernardo Pereira de Vasconcelos, os cárceres deveriam ser transformados “de escolas do crime em escolas de bons costumes”, com o objetivo de assegurar “a ordem e a moral particular e pública”. BRASIL, Relatório apresentado à Assembleia Geral Legislativa na sessão ordinária. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1838, p. 10. 502 O termo “caixa de ressonância” é utilizado pela historiadora Gizlene Neder se referindo ao Rio de Janeiro, pela “importância assumida pela cidade, capital federal, capital cultural, que atua como ‘caixa de ressonância’ para o resto do país”, repercutindo historicamente, socialmente e ideologicamente. NEDER, G., Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil, p. 139. 503 No contexto da Independência e da Constituinte Imperial, os reformadores alardeavam o fim da era dos códigos góticos e das penas atrozes, com a prisão assumindo o status de punição racional e humanizada. BARROS DA MOTTA, M., op. cit., p. 7. 504 NEDER, G., O iluminismo jurídico penal, p. 185. SILVA, M. R. N. da, Um lugar para os deserdados e deserdadas, pp. 21-22.
163
que pudessem ser enquadrados na condição de vadiagem, mendicância ou
ajuntamentos505. Os incapacitados para o trabalho eram destinados à Ilha de Santa
Bárbara, e os sadios para a Casa de Correção com a pena de um mês de trabalho,
segundo o Código Criminal de 1830. A pena prisional com trabalho tinha um
duplo objetivo, de um lado buscava a segregação social de indivíduos
indesejáveis, de outro, buscava-se aferir o lucro da extração de sua força de
trabalho506.
A demanda por mais vagas deu ensejo à criação da Casa de Detenção da
Corte, estabelecida provisoriamente nas instalações da Casa de Correção, pelo
decreto nº 1.774, de 2 de julho de 1856, que aprovou seu regulamento. A Casa de
Detenção foi inspirada no modelo de encarceramento celular pensilvânico para
detenções de curto período.
Pouco após sua inauguração, a Casa de Detenção passou a representar
graves problemas por sua instalação num dos raios da Casa de Correção, visto que
a estrutura permitia o contato direto entre os detentos e os condenados a pena de
prisão com trabalho. Além disso, rapidamente atingiu elevados índices de
superlotação. Em 1859, o Chefe de Polícia informou que haviam sido detidos
5.030 indivíduos, sendo liberados e redistribuídos 4.885, restando um contingente
excessivo de 561 detentos em um estabelecimento com capacidade para custodiar
100 pessoas507.
Com o advento da República Velha, novos instrumentos e mecanismos de
controle social precisaram ser desenvolvidos. Em 1890, sob grande influência
positivista, já havia sido editado o primeiro Código Penal republicano. Revelador
o fato de que o republicanismo brasileiro aprovou o código repressivo antes
mesmo da Constituição Federal de 1891.
505 Como destaca Vera Malaguti “o Império contra-ataca então reprimindo, carregando para o futuro as marcas de um sistema penal público/privado, com o poder punitivo incidindo sobre os corpos negros/índios/pobres, com a desqualificação jurídica inventada pela economia escravagista, com a intimidade amedrontada do legado inquisitorial”. BATISTA, V. M., O medo na cidade do Rio de Janeiro, p. 138-139. 506 Os presos condenados à prisão com trabalho eram forçados a quebrar pedras para aterrar mangues, utilizados em diversas obras da cidade, e inclusive na própria Casa de Correção em sua fase inicial. HOLLOWAY, T., Polícia no Rio de Janeiro, pp. 129-131. 507 BRASIL, Relatório apresentado à Assembleia Geral Legislativa na 4ª sessão da 10ª legislatura. 1860.
164
A despeito de representar um avanço, por ser influenciado pelo sistema
progressista irlandês, a criminologia que o embasava centrava-se na figura do
autor e não do fato criminoso, portanto o novo ordenamento atribuiu maior ênfase
aos “delitos” característicos dos hábitos das classes perigosas como vadiagem,
prostituição, alcoolismo e embriaguez508.
Neste sentido, cabe destacar o controle repressivo contra a prática da capoeira,
a repressão à figura do malandro e às religiões de matriz africana. Medidas de
política criminal que já demonstram a criminalização da pobreza à época, e que
em momento histórico posterior irão voltar-se à figura do traficante, como bem
destaca Gizlene Neder509.
A crise do sistema penitenciário, denunciada por Lemos de Brito nesta
época, apontava como questões graves a violência institucional, a superlotação, as
fugas e os motins510. Com o objetivo de contornar a problemática estrutural, foram
inauguradas unidades prisionais na Ilha Grande, bem distantes da capital. Em
1893 o antigo Lazareto, localizado na Vila do Abraão foi adaptado a um presídio.
Em 1894, foi criada a Colônia Correcional de Dois Rios, com a finalidade de
manter as classes perigosas distantes do convívio social. O estabelecimento
recebia os "ociosos", "imorais" e “reincidentes". Posteriormente, passou a receber
qualquer tipo de preso.
Na década de 1940, foram criadas duas colônias correcionais preconizando
a pena de prisão com trabalho. Assim, surgiram a Colônia Penal Cândido Mendes,
situada em Abraão, vindo a ser desativada e implodida em 1962511, e a
Penitenciária Cândido Mendes, localizada em Dois Rios, implodida em 1994, por
decisão do então governador Leonel Brizola e do Secretário de Justiça, Nilo
Batista512. Nos anos de chumbo, estes estabelecimentos receberam militantes
políticos presos pelo regime militar513.
508 MARANHÃO COSTA, A. T., Entre a lei e a ordem, p. 91. 509 Ver NEDER, G., Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil. 510 Lemos Brito registrou em 1924 a situação em que se encontravam as prisões de algumas capitais brasileiras, apontando-a como "nefasta" e "odiosa". A administração carcerária, com base em suas denúncias, chegou a receber uma série de propostas de reformas sugeridas por vários juristas. As premissas para tais mudanças tinham como ponto de debate a capacidade das prisões e as condições dos cofres públicos. BRITO, L., Os sistemas penitenciários do Brasil. 511 ALMEIDA, G. R. de, O Sistema Prisional no Rio de Janeiro. 512 Segundo aponta Nilo Batista “Esta foi provavelmente a única decisão que tomei, como Secretário de Justiça, tendo absoluta certeza de estar fazendo a coisa certa: implodir uma prisão”.
165
Na localidade da Casa de Correção foi erguido, posteriormente, o
Complexo Penitenciário Frei Caneca. O Decreto-Lei nº 3971 de 24 de dezembro
de 1941 transformou-a em Penitenciária Central do Distrito Federal. Em 19 de
julho de 1957, através da Lei 3.212, passou a ser denominada Penitenciária
Professor Lemos Brito, cujo prédio veio a ser demolido em 2006 juntamente com
todo o Complexo da Frei Caneca.
Com relação à Casa de Detenção, através do Decreto-Lei nº 3971, de 24 de
dezembro de 1941, foi transformada em Presídio do Distrito Federal, e,
posteriormente, em Penitenciária Milton Dias Moreira, regulamentada em 04 de
dezembro de 1948, pelo Decreto nº 25.945, tendo sido igualmente demolida.
Após o advento do Código Penal de 1940, o sistema penitenciário passou
por modificações em relação ao seu regulamento, funcionamento e disciplina.
Outro fator determinante foi a mudança da capital federal para Brasília em 1960.
Iniciou-se uma crise, em função da perda de investimentos em infraestrutura e
reformas, em decorrência da estadualização do Sistema Penitenciário, tornando-se
difícil manter o nível existente anos atrás. As transformações também foram
atravessadas pelas contradições entre o escopo apontado pela Lei de Execução
Penal, aprovada em 1984, e a realidade prisional em permanente crise de
legitimidade.
Influenciado pelo aumento da população carcerária, o então governo
estadual prossegue o processo de expansão com a inauguração de novas unidades,
entretanto, a partir deste período, situadas em localização distante do centro da
cidade. A demolição do Complexo Penitenciário Frei Caneca e a desativação dos
antigos cárceres situados em prédios no centro urbano se coadunam com o
processo de desaparecimento das prisões apontado por Pratt.
A prisão, segundo o que representava então na imaginação pública, havia se convertido no fato menos desejável (...). Em geral, em meados do século XX lugares remotos ou socialmente indesejáveis (...) pareciam os únicos disponíveis
BATISTA, Nilo. El filo de la navaja. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epos/v2n1/02.pdf. Acessado em: 07/07/2015. 513 A junção de presos comuns com presos com vinculação a organizações políticas de esquerda deu ensejo a ilações acerca de tal fato ter contribuído de modo decisivo ao surgimento do Comando Vermelho. SCHIMIZU, B., Solidariedade e Gregarismo nas Facções Criminosas: Um Estudo Criminológico à Luz da Psicologia das Massas.
166
para a construção de prisões. Como resultado disso, ajudaram mais a camuflar e ocultar a prisão e a acentuar seu caráter obscuro e seu isolamento514.
Esta tendência atinge seu apogeu no Rio de Janeiro com a construção do
Complexo Penitenciário de Bangu. As primeiras unidades prisionais foram
implantadas na localidade em 1966, com a construção dos presídios Esmeraldino
Bandeira e Muniz Sodré.
Entretanto, a inauguração do Complexo de Bangu se dá em 1987 no
Governo de Moreira Franco, com a criação da Penitenciária de segurança máxima
Bangu I – regulamentada pelo Decreto nº 11.539, de 14 de julho de 1988. Sua
localização, nas proximidades do Lixão de Bangu, foi considerada uma opção
“segura” por ser bem distante do centro urbano.
Deveras simbólica a escolha do local a ser construído o principal
complexo prisional do estado. Neste particular, adverte Zygmunt Bauman que “o
principal e talvez o único propósito das prisões não é ser apenas um depósito de
lixo qualquer, mas o depósito final, definitivo. Uma vez rejeitado sempre
rejeitado”515. Acrescenta, acerca da expansão do sistema penitenciário que:
Em suma, as prisões, como tantas outras instituições sociais, passaram a tarefa de reciclagem para o deposito de lixo.(...) Construir novas prisões, aumentar o numero de delitos puníveis com a perda de liberdade, a política de tolerância zero e o estabelecimento de sentenças mais duras e mais longas podem ser medidas mais bem compreendidas como esforços para construir a deficiente e vacilante indústria de remoção do lixo - sobre uma nova base, mais antenada com as novas condições do mundo globalizado.516
O sistema carcerário do Rio de Janeiro, já sob égide do Regulamento
Penitenciário instituído pelo Decreto Nº 8.897 de 31 de março de 1986 passou
sucessivamente a receber novas unidades, tanto no interior do estado, bem como
no Complexo de Bangu. Em 1995, o Alfredo Tranjan; em 1997, o Doutor Serrano
Neves e, em 1999, o Jonas Lopes de Carvalho, conhecidos, respectivamente, por
Bangu 2, 3 e 4. Posteriormente, através da Lei nº 4.955/06, o conjunto de unidades
prisionais de Bangu, foi denominado de Complexo de Gericinó – bairro criado a
partir de um fracionamento de Bangu, com o intuito de “recuperar a autoestima”
514 PRATT, J., Castigo y civilizacion, p. 75-86. 515 BAUMAN. Z., Vidas Desperdiçadas, p. 107. 516 Ibid., 109.
167
dos moradores estigmatizados por residir nos arredores do complexo prisional517.
É neste complexo penitenciário que estão confinados dois terços dos presos do
Rio de Janeiro, diante da deterioração das condições estruturais decorrentes do
hiperencarceramento crescente que iremos analisar.
4.2 O Rio de Janeiro como laboratório biopolítico da penalidade neoliberal
Antes de adentrar à análise da atualidade do cárcere, especialmente dos
impactos do grande encarceramento, importa perceber como o Rio de Janeiro tem
assumido um protagonismo na adoção de políticas criminais repressivas, uma
espécie de tipo ideal da penalidade neoliberal no país. Deste modo, assume papel
similar à Nova Iorque quando fora considerada por Wacquant como um
laboratório vivo para a ascensão do Estado penal nos EUA518. Conforme aponta o
autor:
Isto é particularmente verdadeiro no Brasil, que figura entre os mais entusiastas defensores das plataformas anti-crime copiadas da Nova Iorque de Giuliani e que provê, nesse sentido, um laboratório vivo para antecipar o impacto desastroso da “tolerância zero” nos países do Segundo Mundo519.
No mesmo sentido, De Giorgi aponta que os Estados Unidos “constituem
um importante "laboratório social" em cujo interior se experimentam estratégias
políticas e econômicas, que, posteriormente, são sistematicamente exportadas para
o resto do mundo”520.
Neste terreno, Wacquant identifica três grandes manifestações da
penalidade na era neoliberal que caracterizam a onda punitiva que se dissemina
por todo Ocidente, são elas: socialização, medicalização e penalização.
a) socialização: em sua descrição as ações de socialização tratam de “agir
no nível das estruturas e dos mecanismos coletivos que as produzem e
517 Em 22 de novembro de 2004 o então prefeito do Rio de Janeiro César Maia criou por decreto o bairro de Gericinó, desmembrando de Bangu a região onde se localizam o Complexo Penitenciário de Gericinó, o Lixão de Bangu e a Serra de Gericinó. 518 WACQUANT, L., Punir os pobres. 519 Id., Rumo à militarização da marginalização urbana. 520 DE GIORGI, A., Neoliberalismo e controle penal na Europa e nos Estados Unidos: a caminho de uma democracia punitiva?
168
reproduzem”. Poderiam ser compreendidas, por exemplo, através da construção
de conjuntos habitacionais populares para abrigar pessoas sem residência fixa,
com o intuito de higienizar a paisagem urbana.
b) medicalização: estratégias de controle social que se caracterizam por
“considerar que a pessoa vive nas ruas porque sofre de dependência ao álcool, é
viciada em drogas ou tem problemas de saúde mental, e, portanto procurar um
remédio médico a um problema”.
c) penalização: “o nômade urbano é etiquetado como delinquente e
tratado enquanto tal; ele deixa de integrar o contingente dos ‘sem teto’ quando é
colocado atrás das grades”.
Todas essas estratégias são "técnicas para invisibilização dos problemas
sociais que o Estado, enquanto alavanca burocrática da vontade coletiva, não pode
ou não se preocupa em tratar de forma profunda"521. Para o autor, a ênfase em
cada uma dessas de estratégias neoliberais (socialização, medicalização e
penalização) varia conforme a formação social e a vontade política de cada país,
estando ancorada numa concepção da vida em comum.
No Rio de Janeiro, é possível identificar que esses três vetores estão
articulados para maximização do controle social. Esta articulação levada a cabo
evidencia claras influências do paradigma tolerância zero nas políticas de
segurança deste estado522. Como aponta Cecília Coimbra, torna-se necessário:
colocar em análise uma certa política de segurança pública que se fortalece na contemporaneidade e se justifica em nome da ‘guerra contra os perigosos’. Política esta que, com o apoio dos grandes meios de comunicação, prega a Tolerância Zero, produzindo a fascistização do cotidiano523.
É possível identificar que este repressivismo se acentua com a realização
de grandes eventos, como os Jogos Pan-americanos em 2007, a Conferência
Rio+20 em 2012, a Copa das Confederações da Federação Internacional de
521 WACQUANT, L., Punir os pobres, p.21. 522 “As agências midiáticas, a partir de 1998, passam a associar Nova Iorque não mais à imagem de paraíso do crime, mas como modelo de cidade segura. A partir de então, a ideologia “tolerância zero” passou a ser enaltecida como a solução final do problema da desordem urbana e da criminalidade, como modelo de administração a ser exportado, chegando a diversos países da Europa e da América Latina, dentre eles o Brasil”. SOUZA, T. L. S. e, Constituição, Segurança Pública e Estado de Exceção Permanente: a biopolítica dos autos de resistência, p. 107. 523 COIMBRA, C. Memória e Reparação.
169
Futebol (FIFA) em junho de 2013, a Jornada Mundial da Juventude da Igreja
Católica em julho de 2013, a Copa do Mundo da FIFA em 2014. Como aponta o
Relatório Megaeventos, Repressão e Privação da Liberdade, elaborado pelo
Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT/RJ):
Temos observado, nos últimos anos, durante os grandes eventos nos quais o Rio de Janeiro foi anfitrião, uma tendência ao recrudescimento das políticas repressivas do Estado, como encarceramento em massa, remoções forçadas, prisões arbitrárias e recolhimento de pessoas em situação de rua, tanto durante a realização destes eventos quanto no contexto de preparação dos mesmos”524.
No que se refere às políticas de socialização, a “política habitacional”
implementada na cidade vem promovendo remoções forçadas de comunidades
inteiras e transferindo-as para ares distantes e de difícil acesso da cidade. Estima-
se que três mil famílias tenham sido removidas e outras oito mil estão ameaçadas
de remoção,525 para realização de obras do Plano de Aceleração do Crescimento
(PAC), bem como para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.
Este higienismo social pode ser percebido ainda na crescente construção
de muros e “ecolimites” em favelas cariocas, delimitando o controle geográfico
destes territórios da cidade. Pode ser identificado também em políticas repressivas
de inspiração ‘lei e ordem’, dentre elas o “Lapa Legal” e o “Copa Bacana”526,
preconizando o controle da circulação de pessoas pobres nas regiões mais
turísticas da cidade (Zona Sul e Lapa), bem como através do Choque de Ordem527,
que preconiza a repressão seletiva sobre trabalhadores informais que atuam. Trata-
se da materialização das teorias ecológicas da Escola de Chicago528.
524 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Megaeventos, Repressão e Privação da Liberdade. 525 “A justificativa, na maior parte das vezes, é a localização destas comunidades em áreas de interesse da prefeitura e do governo do estado para o projeto da Copa e das Olimpíadas, como as destinadas à construção do estacionamento para o estádio do Maracanã, às obras viárias com faixas segregadas para o BRT, e ao Porto Maravilha no centro da cidade, entre outras.“ Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro. 526 Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/web/seop/exibeconteudo?article-id=1740822. Acessado em: 05/07/2015. 527 A desordem urbana é o grande catalisador da sensação de insegurança pública e a geradora das condições propiciadoras à prática de crimes, de forma geral. Como uma coisa leva a outra, essas situações banem as pessoas e os bons princípios das ruas, contribuindo para a degeneração, desocupação desses logradouros e a redução das atividades econômicas. Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?article-id=87137. Acessado em: 05/07/2015. 528 ANITUA, G. I., História dos pensamentos criminológicos, pp. 421-432.
170
Em relação à crescente tendência de medicalização da pobreza, no Rio de
Janeiro a partir de 2011, a Secretaria Municipal de Assistência Social passou a
implementar a política de recolhimento e abrigamento/internação compulsórios529
para crianças e adolescentes em situação de rua supostamente usuários de drogas.
Como aponta Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e da Cidadania da
ALERJ:
a atual política governamental fortalece a lógica institucionalizante, excludente, com caráter disciplinar, manicomial e de higienização social, e, portanto, inaceitável. (...) Em um Estado Democrático de Direito os cidadãos devem ser compreendidos como sujeitos das políticas públicas, jamais como objetos das mesmas; o Estado não pode em nenhuma hipótese instrumentalizar a pessoa humana530. Ademais, disseminam-se as chamadas comunidades terapêuticas, entidades
privadas e/ou filantrópicas, em sua maioria religiosas, que pressupõem a “cura”
dos problemas relativos ao uso de drogas, via de regra, com uma abordagem
religiosa531. Constituem-se assim, novas formas de institucionalização e
manicomialização, na contramão das diretrizes da reforma psiquiátrica.
Por fim, no que se refere à penalização, verifica-se o recrudescimento das
políticas criminais. Além da manutenção da estratosférica letalidade policial532, a
política de segurança recebe como inovação a implementação das Unidades de
Polícia Pacificadora, a partir de 2008. Trata-se da policização do cotidiano,
através do controle militar dos territórios urbanos da pobreza533, associado aos
529 Em 27 de maio de 2011, a Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS) da Prefeitura do Rio de Janeiro publicou o intitulado “Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social”, no âmbito das ações da Proteção Social Especial de Média Complexidade, através da Resolução SMAS n° 20. O art. 5º nítida do uso de drogas, devem ser "mantido(s) abrigado(s) em serviço especializado de forma compulsória". O parágrafo 4o do mesmo artigo complementa que crianças e adolescentes “independente de estarem ou não sobre a influência do uso de drogas, também deverão ser mantidos abrigados/acolhidos de forma compulsória com o objetivo de garantir sua integridade física”. 530 Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e da Cidadania da ALERJ, Relatório de Visitas aos “Abrigos Especializados” para Crianças e Adolescentes. 531 “As visitas realizadas nas comunidades terapêuticas (...) reafirmam, assim, que a “humanização” não é medida suficiente quando se trata de espaços asilares. Mesmo quando as condições físicas são relativa e aparentemente adequadas, a violência invisível e mortificante das instituições totais está presente”. Mecanismo e Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório de Inspeção em Comunidades Terapêuticas Financiadas pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro. 532 Anistia internacional, Relatório a situação dos direitos humanos no mundo 2014-2015. Ver ainda: ZACCONE, O., Indignos de vida. 533 BATISTA, V. M., O alemão é mais complexo.
171
interesses dos fluxos de capital na cidade. Neste sentido, o MEPCT/RJ salienta
que:
observamos o recrudescimento da repressão em toda a cidade e a militarização de determinados espaços urbanos que evidenciam claros interesses estratégicos de setores econômicos, promovendo uma valorização imobiliária nunca antes vista nestes espaços e em seu entorno, bem como promovendo o controle social militarizado das populações subalternizadas534. O repressivismo também se expressa na utilização das Forças Armadas para
fins de policiamento535, especialmente no Complexo do Alemão e da Maré.
Também cabe salientar as inúmeras manifestações de criminalização de
movimentos grevistas, como professores, garis e bombeiros,536, o expressivo
aumento das medidas de internação de adolescentes acusados de atos
infracionais537 e a brutal repressão policial às ‘Jornadas de Junho de 2013’538.
Entretanto, o desaguadouro maior deste caldeirão punitivo é o cárcere. Segundo
informa o MEPCT/RJ:
podemos afirmar haver indícios consistentes de que o contexto de preparação de megaeventos traduz-se, também, em impactos perniciosos aos espaços de privação de liberdade, agravando ainda mais as condições de superlotação e de violações de direitos nestes espaços539.
Em grande medida, estas políticas repressivas tem se notabilizado como um
modelo a ser seguido por outros estados da Federação540. De maneira que se pode
perceber no Rio de Janeiro o status de laboratório biopolítico da penalidade
neoliberal, instituindo e aprimorando estratégias de controle social punitivo
institucionalizado. Trata-se da inclusão da vida nos cálculos meticulosos do poder,
534 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Repressão, Megaeventos e Privação de Liberdade. 535 Ibid., p. 67. 536 Disponível: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/06/bombeiros-do-rio-podem-pegar-ate-12-anos-de-prisao-diz-comandante.html. Acessado em: 07/07/2015. 537 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2014. 538 Sobre as Jornadas de Junho ver: HARVEY, D., Cidades Rebeldes. Especialmente sobre a repressão policial aos manifestantes sociais, ver: Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Repressão, Megaeventos e Privação de Liberdade. 539 Ibid. 540 Os governos estaduais do Espírito Santo e Paraná, buscam implementar protótipos de UPPs, partindo da experiência do Rio de Janeiro como modelo a ser seguido. Disponível em: http://www.folhavitoria.com.br/politica/noticia/2014/11/governo-de-hartung-vai-criar-upp-em-comunidades-carentes-do-estado.html. Acessado em: 05/07/2015. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/parana-se-inspira-no-rio-cria-versao-de-upp-4120654. Acessado em: 07/07/2015.
172
ampliando as fronteiras do confinamento para novas instituições totais, bem como
potencializando o papel da prisão como instrumento de contenção punitiva
segmentos sociais considerados indesejados. Neste sentido, convém enveredar por
entre as obscuras galerias do arquipélago prisional do Rio de Janeiro para
compreender o real impacto da Era do Grande Encarceramento.
4.3 Cartografia do Sistema Penitenciário fluminense: abrindo a caixa de Pandora Dentre as mais notáveis passagens da mitologia da Grécia clássica,
encontra-se o mito de Pandora. Nesta história, o titã Epimeteu (que significa
aquele que vê depois), juntamente com seu irmão Prometeu (o previdente) foi
incumbido por Zeus de criar o homem. Zeus, então cria Pandora (que significa
todos os dons), a primeira mulher, e a envia a Epimeteu que a recebe como
consorte, apesar de ser advertido por seu irmão a não aceitá-la. Pandora traz
consigo do Olimpo um presente de núpcias para Epimeteu: uma arca de ouro
hermeticamente fechada.
Segundo Hesíodo541, o poeta grego camponês, Pandora teria aberto a caixa
levada pela curiosidade, apesar da advertência proibitiva de Zeus. Assim, da caixa
escaparam a velhice, a loucura, a doença, a inveja, o vício, a fome, a mentira, o
ódio, a violência, o crime, e todos os outros males que se espalharam pelo mundo
e tornaram miserável a existência dos homens a partir de então. Epimeteu tentou
fechá-la antes, mas só restou no fundo da caixa, a Esperança.
Deste modo, podemos invocar o mito de Pandora como metáfora para
compreender a realidade da prisão. Epimeteu, o incauto, pode ser interpretado
como o homem moderno, movido pelos ideais iluministas de progresso e
civilização. Entretanto, por trás de seu suposto propósito racional e civilizatório,
se oculta a barbárie, representada pelas mazelas que emergem do modelo punitivo
prisional, como na caixa de Pandora. Assim, como na arca mítica, na prisão
encontram-se todos os males, decorrentes, sobretudo, das condições desumanas e
degradantes de encarceramento.
541 HESÍODO. Teogonia.
173
Nesta perspectiva, no presente tópico, buscaremos realizar uma cartografia
do cárcere, percorrendo as entranhas do sistema penitenciário do Rio de Janeiro,
analisando os índices de superlotação, o perfil da população privada de liberdade,
bem como as demais formas de violação de direitos na execução penal.
4.3.1 Superlotação Prisional
Uma vez verificado o brutal incremento do encarceramento no Brasil, cabe
identificar sua manifestação no Rio de Janeiro, a fim de aferir se de fato pode ser
interpretado como um laboratório da penalidade neoliberal. Abaixo podem ser
observados dados da população prisional nacional e estadual.
Tabela 3: Dados sobre População Prisional (Rio de Janeiro e Brasil – 2014)
Brasil Rio de Janeiro População prisional 607.731 39.832 Vagas 376.669 28.230 Déficit de vagas 231.062 11.602 Taxa de ocupação 161% 139% Taxa de aprisionamento 299,7 238,9 Fonte: DEPEN e SEAP/RJ
O Rio de Janeiro figura como o terceiro estado do país com maior
população prisional, um total de 39.832. Em primeiro lugar está o São Paulo,
estado com 219.053 pessoas privadas de liberdade (cerca de 36% do país) e em
segundo Minas Gerais, com 61.286 presos. O estado do Rio de Janeiro apresenta
uma taxa de aprisionamento de 238,9 presos por 100 mil habitantes, abaixo da
média nacional que figura em 299,7. A taxa de ocupação do sistema penitenciário
também é ligeiramente menor do que a nacional, com 139%. Das 35 unidades
prisionais analisadas nesta pesquisa, 27 apresentavam cenário de superpopulação,
ou seja, 77%. Convém comparar o crescimento do número de pessoas privadas de
liberdade do estado do Rio de Janeiro com o aumento em todo país.
Tabela 4: Crescimento da População Prisional – Rio de Janeiro e Brasil (2004-2014)
Rio de Janeiro Brasil Ano População
Prisional Crescimento Anual
População Prisional
Crescimento Anual
2004 19.163 - 336.775 -
174
2005 21.681 13,14% 361.400 7,3% 2006 21.702 1% 401.200 11% 2007 21.436 -1,24% 422.400 5,2% 2008 21.861 2% 429.400 1,6% 2009 23.333 6,7% 473.600 10,3% 2010 25.517 9,3% 496.300 4,8% 2011 28.895 13,2% 514.600 3,7% 2012 31.650 9,5% 549.800 6,8% 2013 33.748 6,6% 581.500 5,76% 2014 39.832 18% 607.700 4,5% Fonte: DEPEN e SEAP/RJ
Na tabela acima, podemos comparar o crescimento da população prisional
no Brasil e no Rio de Janeiro, na série histórica entre 2004 e 2014, tendo a
primeira apresentado um aumento de 80,4% e, a segunda, um aumento de 108%
no período. O efetivo carcerário estadual apresenta grande oscilação, mas revela
um crescimento expressivo a partir de 2010. Caso considere-se a comparação
entre 2010 e 2014, verifica-se que no período a população prisional brasileira
cresceu 22,44%, saltando de 496.300 para 607.700. Por sua vez, o sistema
penitenciário do Rio de Janeiro sai de um patamar de 25.517 internos para um
total de 39.832, ou seja, um acréscimo de 56%. Neste sentido, constata-se que no
período o Rio de Janeiro apresentou um aumento equivalente a mais do que o
dobro do apresentado no âmbito nacional. Ressaltando mais uma vez que o Brasil
só fica atrás da Indonésia no que se refere ao aumento do efetivo prisional no
período recente. É possível, portanto, afirmar que o Rio de Janeiro é uma das
localidades do mundo com o crescimento mais expressivo em número de presos
nos últimos anos.
Segundo aponta o relatório “Megaeventos, Repressão e Privação da
Liberdade no Rio de Janeiro” elaborado pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e
Combate à Tortura do Rio de Janeiro:
No entendimento do MEPCT/RJ, apesar de não haver elementos comprobatórios mais objetivos, capazes de indicar uma relação direta de causa e efeito, há consideráveis indícios de que tal fato pode guardar relações com a preparação para os megaeventos realizados no período em análise542.
542 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Repressão, Megaeventos e Privação de Liberdade, p. 40.
175
Portanto, pode-se inferir que alguns fatores relacionados à política criminal
lei e ordem implementada nos últimos anos no Rio de Janeiro, como as Unidades
de Polícia Pacificadora, o Choque de Ordem e a contumaz política de guerra às
drogas, relacionadas também à preparação para os Megaeventos como a Copa do
Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, tem manifestado reflexos concretos no
hiperencarceramento em curso, reafirmando o Rio de Janeiro como um laboratório
vivo da penalidade neoliberal, um verdadeiro continuum favela-prisão.
Figura 6: População Prisional - Rio de Janeiro-Nova Iorque (2005-2014)
Fonte: ICPS e SEAP/RJ
Para ilustrar o fenômeno do grande encarceramento que se manifesta no
Rio de Janeiro, convém comparar a evolução da população prisional com a cidade
de Nova Iorque, considerada por Loic Wacquant, como o laboratório do Estado
penal nos EUA. A série histórica de 2005 a 2014 revela que a partir de 2006, com
63.304 presos, o contingente carcerário nova-iorquino vem reduzindo, até chegar
a 52.541, configurando uma queda de 16,2%, ao passo que no caso fluminense, o
efetivo prisional salta de 21.681, para alcançar 39.832 encarcerados, um aumento
de 84% no período.
Fica evidente que mesmo no vultuoso território da indústria do controle,
como os EUA, a imposição da pena privativa de liberdade vem reduzindo
progressivamente. Na contramão desta tendência, o grande encarceramento no
Brasil, e em especial no Rio de Janeiro, parece viver seu apogeu, a despeito do
fato de as condições de encarceramento serem a cada ano mais desumanas e
degradantes. Em recente declaração, o Ministro da Justiça, José Eduardo aponta
176
que “Temos um sistema prisional medieval que não é só violador de direitos humanos,
ele não possibilita aquilo que é mais importante em uma sanção penal que é a
reinserção social"543.
Nesta irracional escalada punitiva, a população prisional do Rio de Janeiro em
18 de maio de 2015 já apresenta um exército de 42.959 presos544, representando um
aumento de 8% em relação a dezembro de 2014, agravando ainda mais o quadro de
superlotação. Como apontam Salla e Ballestreros:
O crescimento da população encarcerada afeta de modo diverso o sistema de justiça criminal dos países e as condições de suas prisões. Os fatores que interferem de forma mais relevante são: a disponibilidade de recursos materiais e financeiros; a consistência dos padrões democráticos de organização política e social do país, a presença ou não de uma sólida cultura de respeito aos direitos humanos. Assim, os principais países desenvolvidos do Ocidente apresentaram alguma deterioração nas condições de encarceramento nas duas últimas décadas. No entanto, sua capacidade de mobilização de recursos econômicos para enfrentar os novos desafios, sua solidez na organização democrática impediram que problemas graves de condições de habitabilidade e de respeito aos direitos humanos se aprofundassem com o aumento da população encarcerada. Não foi a mesma situação vivida pelos países em desenvolvimento e de organização democrática frágil (...). Além de maior escassez de recursos financeiros para destinar ao sistema prisional, a democracia ainda é um valor em fase consolidação545.
Esta proficiente hiperinflação carcerária reflete-se nas mazelas do sistema
penitenciário. Segundo Lola Aniyar de Castro, a realidade da América Latina se
caracteriza por elevados índices de violência carcerária, no que denomina de
“barril de pólvora sempre prestes a explodir”546. Delineia-se um dantesco cenário
de barbárie no qual é rotineira a realidade de arbítrio, superlotação, tortura,
corrupção, condições degradantes, insalubridade, estigmatização, proliferação de
doenças, ruptura de laços afetivos, familiares e sexuais.
O MEPCT/RJ identifica os perversos efeitos da superlotação no sistema
prisional fluminense:
543 Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2012/11/ministro-da-justica-diz-que-preferia-morrer-ficar-preso-por-anos-no-pais.html. Acessado em: 07/07/2015. 544 Dados disponibilizados pela SEAP. 545 SALLA, F. e BALLESTEROS, P. R., Democracia, direitos humanos e condições das prisões na América do Sul, p. 4-5. 546 CASTRO, L. A., Matar com a prisão, o paraíso legal e o inferno carcerário: os estabelecimentos “concordes, seguros e capazes”.
177
A realidade perene de superlotação conduz a violação de inúmeros direitos reconhecidos aos presos. Nas unidades superlotadas é comum o cenário de precariedade material, grande acúmulo de lixo, péssimas condições de aeração, fornecimento inadequado de roupas de cama, colchões e insumos de higiene pessoal, presos dormindo no chão, aviltante revezamento para concessão do banho de sol, tempo reduzido para visitas e escassez de vagas para atividades laborativas e educacionais quando existentes. Tal panorama encontra-se em total desconformidade com parâmetros internacionais(...)547.
Neste sentido, o grande encarceramento produz efeitos ainda mais
aviltantes na periferia do capitalismo. Nos países latino-americanos a superlotação
adiciona um componente agravante na dinâmica de funcionamento das prisões,
diante da falência estrutural do sistema penitenciário. Cabe, portanto, verificar os
impactos destas mazelas no arquipélago carcerário do Rio de Janeiro.
4.3.2 O perfil da população privada de liberdade
4.3.2.1 A Seletividade Punitiva
Com relação ao perfil da população encarcerada no Rio de Janeiro, foi
possível obter informações junto à Secretaria de Estado de Administração
Penitenciária (SEAP) entre o recorte temporal de 2009 a 2014, no que se refere
aos indicadores de: gênero; cor, raça ou etnia; faixa etária; escolaridade. Neste
item também analisaremos o contingente carcerário no que se refere ao tipo penal
praticado e reincidência criminal.
a) Gênero
Em relação à distribuição da população prisional por gênero, constata-se a
ampla predominância de homens compondo o perfil dos encarcerados no período
entre 2009 a 2014. A relação de mulheres mantem-se relativamente estável,
oscilando entre 4,8% e 6,2%. De modo que, conclui-se que a população prisional
feminina tem crescido em ritmo similar à população prisional masculina,
conforme indica o gráfico abaixo.
547 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2012.
178
Figura 7: Total de Presos por Gênero no Rio de Janeiro (2009-2014)
Fonte: SEAP/RJ
Os dados mais recentes sobre o assunto, referente à população prisional
nacional são de 2012, nos quais se verifica um percentual de mulheres presas na
ordem de 6,17%, correspondendo a um total de 31.824 mulheres, ao passo havia
483.658 homens. Neste sentido, no Rio de Janeiro, o percentual de mulheres
presas é ligeiramente mais baixo do que a média nacional.
b) Cor, Raça ou Etnia548
Acerca da identificação de internos por cor, raça ou etnia, segue-se o
critério da auto declaração tanto em levantamento feitos pelo Departamento
Penitenciário Nacional (DEPEN), como pela SEAP.
Tabela 5: População Prisional do Rio de Janeiro por Cor, Raça ou Etnia (2009-2014)
Fonte: SEAP-RJ
A tabela acima evidencia que o elevado percentual de pessoas negras
encarceradas no Rio de Janeiro, um contingente superior a 2/3 do total. Ademais,
548 Os dados coletados junto à SEAP e ao InfoPen foram classificados segundo a tipologia negros para a somatória dos indivíduos identificados como pretos e pardos, conforme o padrão censitário desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Desta forma, as tabelas e os gráficos deste trabalho acompanham este padrão.
Ano Branca Negra Outros 2009 30,3% 69,64% 2,16% 2010 29,6% 70,34% 2,54% 2011 28,6% 71,37% 2,21% 2012 27% 72,97 5,26% 2013 27,26% 72,7% 1,3% 2014 26,6% 72,49 0,88%
179
este indicador vem crescendo progressivamente desde 2009, com 69,64%, até
2014, com o índice de 72,49%.
Figura 8: Comparativo de população presa e livre por cor, raça e etnia 2014
Fonte: DEPEN, SEAP/RJ e IBGE
Ao analisar os gráficos acima, verifica-se que a porcentagem de pessoas
negras no sistema prisional nacional é de 67%, ao passo que na população
brasileira no mundo livre, a proporção é significativamente menor (51%). Essa
tendência é observada tanto na população prisional masculina quanto na feminina.
Chama ainda a atenção o fato de que no Rio de Janeiro a sobrerrepresentação dos
negros na população prisional é mais acentuada, chegando a 72% dos presos. Tal
índice é ainda mais emblemático levando-se em conta que na região Sudeste os
negros representam apenas 42% da população total549.
c) Faixa Etária
Tabela 6: População Prisional do Rio de Janeiro por Faixa Etária (2009-2014)
Ano Não Informado
Entre 18 e 24
Entre 25 e 29
Entre 30 e 34
Entre 35 e 45
Entre 45 e 60
Acima de 60
2009 0,48% 30,2% 24,8% 17,3% 18,73% 7,36% 1,12%
549 DEPEN. Mapa do Encarceramento (2005-2012).
180
2010 0,47% 30,45% 23,9% 17,9% 18,6% 7,55% 1,06% 2011 0,4% 30,7% 23,32% 18,48% 18,62% 7,47% 0,96% 2012 0,35% 32,18% 22,28% 18,13% 18,94% 7,06% 1,03% 2013 0,24% 34,26% 21,87% 17,14% 18,67% 6,74% 1,07% 2014 0,16% 35,85% 21,96% 16,03% 18,3% 6,6% 1,01% Fonte: SEAP-RJ
Na série histórica entre 2009 e 2014, foi possível perceber que a população
prisional do Rio de Janeiro vem sistematicamente aumentando em relação ao
número de internos na faixa etária entre 18 e 24 anos, enquanto nas demais faixas
há uma ligeira queda percentual, apesar do crescimento em números absolutos em
todas as variáveis.
Figura 9: Total de presos por faixa etária - Rio de Janeiro e Brasil (2014)
Fonte: SEAP-RJ.
O gráfico acima revela que a população prisional brasileira em 2014 era
composta por 56% de jovens - idade entre 18 e 29 anos, segundo o Estatuto da
Juventude (Lei nº 12.852/2013). Segundo dados do IBGE, esta faixa etária
compõe apenas 21,5% da população livre no do país550. No mesmo ano, o número
de jovens presos no Rio de Janeiro equivale a 58% do total. Ou seja, percebe-se
que a população prisional fluminense é mais jovem do que a média nacional, e
vem acentuando progressivamente sua juventude a cada ano.
Outro indicador relevante, associado à juventude, é o estado civil. Segundo
dados do DEPEN, em 2012 a população prisional brasileira era composta por 57%
550 IBGE, Censo 2010.
181
de pessoas solteiras551. Essa proporção é maior do que a verificada na população
brasileira que, de acordo com o IBGE, é de 34,8%41.
d) Escolaridade
A tabela abaixo compreende a série histórica entre 2009 e 2014, sobre o
nível de escolaridade da população prisional do Rio de Janeiro.
Tabela 7: População Prisional do Rio de Janeiro por Nível de Escolaridade (2009-2014)
Ano Não Infor-mado
Anal- fabeto
Alfabe-tizado
Fundamental Incompleto
Fundamental Completo
Médio Incompleto
Médio Completo
Superior Incompleto
Superior Completo
2009 15,88% 3,27% 3,18% 57,82% 10,64% 3,6% 4,44% 0,6% 0,52% 2010 16,23% 3,03% 3,53% 56,53% 10,93% 3,9% 4,6% 0,62% 0,6% 2011 19,64% 2,5% 4,41% 51,9% 11,36% 4,2% 4,82% 0,61% 0,52%
2012 24,2% 2,11% 4,1% 49,42% 10,5% 4,27% 4,77% 0,5% 0,45% 2013 21,19% 2% 4,15% 51,8% 10,52% 4,15% 5,2% 0,5% 0,45% 2014 22,22% 1,65% 3,56% 51,61% 9,83% 4,76% 5,36% 0,51% 0,49%
Fonte: SEAP/RJ
Ainda que haja um considerável número de presos cuja escolaridade não
é informada, verifica-se que em todos os anos analisados a maioria dos internos
sequer apresentava o ensino fundamental completo. Entretanto, pode-se observar
uma ligeira elevação no nível de escolaridade. Em 2009, 64,27% dos presos tinha
escolaridade até o ensino fundamental incompleto (considerando analfabetos,
alfabetizados sem ensino regular e fundamental incompleto). No ano de 2014,
esse indicador cai para 56,82%. Há que se destacar que o percentual de
escolaridade não informada nesse período aumentou de 15,88% a 22,2%552. No
intervalo analisado, verifica-se ainda um número muito restrito de internos com
ensino superior.
551 DEPEN, Mapa do Encarceramento (2005-2012). 552 Tal fato permite que o crescimento acelerado do número de presos prejudica a capacidade da administração penitenciária obter dados com celeridade e confiabilidade.
182
Figura 10: Total de presos por nível de escolaridade - Rio de Janeiro e Brasil (2014)
Fonte: DEPEN e SEAP/RJ
Os gráficos acima permitem uma comparação do nível de escolaridade da
população prisional no país e no Rio de Janeiro. A comparação revela que, no ano
de 2014, a população prisional brasileira era composta por 68% de presos com
escolaridade até o ensino fundamental incompleto. Ao passo que, no mesmo ano,
o sistema prisional do Rio de Janeiro apresentava tal indicador em cerca de 57%,
portanto, ainda que expresse um baixíssimo nível de escolaridade, trata-se de uma
marca 11% melhor do que a verificada na média do país.
e) Tipo penal
Com relação ao tipo penal praticado, podemos encontrar dados sobre esta
variável acerca da população prisional nacional de junho de 2014. Não havia
dados específicos sobre o estado do Rio de Janeiro553.
553 As informações do Rio de Janeiro e de Tocantins foram desconsideradas, pois ambos os estados forneceram uma quantidade de informações sobre a questão muito inferior ao número de pessoas a que supostamente se referiam essas informações. Ministério da Justiça/DEPEN, Relatório de Informações Penitenciárias 2014.
183
Figura 11: Total de Presos por Tipo Penal (Brasil - 2014)
Fonte: DEPEN
O gráfico acima demonstra que ao todo 62 % (376.340 presos)
praticaram os delitos de tráfico de entorpecentes (27 %) ou crimes contra o
patrimônio (35% de presos por roubo, furto e receptação), o que contraria a
percepção do senso comum de que o cárcere é composto majoritariamente
condenados por crimes violentos. Esta análise reforça a percepção de seletividade
do sistema penal, evidenciando que crimes contra a propriedade geram
encarceramento muito superior ao de crimes contra a vida.
f) Reincidência
No que se refere aos índices de reincidência, tanto o DEPEN como a
SEAP não disponibilizam esta informação acerca da população prisional. Trata-se
de uma variável questionável, uma vez que não há um método seguro para sua
aferição, tampouco há consenso entre os estudiosos sobre a sua definição.
Segundo dados do programa Mutirão Carcerário, desenvolvido pelo
Conselho Nacional de Justiça aponta-se uma estimativa de presos reincidentes no
Brasil entre 60% e 70%554, índice que revela o imenso potencial criminógeno do
cárcere.
O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA)555 realizou recente
pesquisa sobre o tema, a partir de amostra que identificou a reincidência criminal
pregressa em de 24,4%, estimada de acordo com os registros que constavam nos
554 O programa “Começar de Novo”, do CNJ tem como proposta reduzir a taxa de reincidência para 20% a partir dos cursos profissionalizantes e oportunidades de trabalho. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=116383. Acessado em: 07/07/2015. 555 A pesquisa trabalhou com uma análise amostral de 817 processos de indivíduos que acabaram de cumprir algum tipo de pena no ano de 2006, incluindo os estados de Alagoas, Minas Gerais, Pernambuco, Paraná e Rio de Janeiro. IPEA. Reincidência Criminal no Brasil.
184
autos pesquisados. O estudo utilizou como marco conceitual a definição
estritamente legal de reincidência556, ou seja, na hipótese específica de em que o
condenado por sentença criminal transitada em julgado é novamente condenado
por outro delito num intervalo de até cinco anos após o cumprimento da primeira
pena. Deste modo, “não se trata de reincidência carcerária (isto é, pessoas que vão
mais de uma vez para prisão), nem de “passagens” pelo sistema de justiça
criminal ou da mera reiteração em atos criminosos, critérios que levariam ao
estabelecimento de uma taxa superior à encontrada na pesquisa”. Ademais, há que
se levantar em conta a reduzida amostragem da pesquisa.
Estes indicadores revelam a profunda seletiva da criminalização
secundária, incidindo o encarceramento, na esmagadora maioria dos casos, sobre
pobres, negros, moradores de periferias urbanas e de baixíssima escolaridade.
4.3.2.2 A banalização da prisão cautelar
No intervalo entre 2009 e 2014, pode-se observar o elevado número de
pessoas privadas de liberdade sem condenação criminal definitiva no Rio de
Janeiro. Nota-se que este indicador vem apresentando crescimento nos últimos
anos, saltando de 32,9% em 2009, para 41,8% em 2014.
Tabela 8: Total de Presos Provisórios no Rio de Janeiro (2009-2014)
Ano Presos Condenados Presos Provisórios Medidas de Segurança 2009 15579 66,8% 7678 32,9% 76 0,3% 2010 17453 68,4% 7911 31% 153 0,6% 2011 18467 63,7% 10331 36% 97 0,3% 2012 19019 60,1% 12579 39,7% 52 0,16% 2013 19445 57,6% 14218 42,1% 85 0,25% 2014 23089 59,9% 16660 41,8% 83 0,2%
Fonte: SEAP-RJ
Em levantamento feito pelo DEPEN, o número de presos provisórios no
país chegou a 220.190 em 2014, equivalendo a cerca de 41% do total. No mesmo 556 Art. 63 - Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior. Art. 64 - Para efeito de reincidência:I - não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação;
185
relatório, a população de presos provisórios do Rio de Janeiro foi apontada na
marca de 46% (diferentemente do índice de 41,8% obtido por dados da SEAP),
cinco pontos percentuais acima da média nacional.
Figura 12: Presos Provisórios - Rio de Janeiro e Brasil (2004-2014)
Fonte: SEAP-RJ e DEPEN
Nesta análise comparativa, pode-se perceber que a população de presos no
Brasil saltou de 18% do total em 1990, para 26% em 2004, chegando a 41% em
2014. No Rio de Janeiro, a variação foi de 27% em 2004, para 46% em 2014,
reafirmando a tendência de crescimento da prisão cautelar acima da média
praticada no país.
Causa grande preocupação o elevado número de presos sem condenação, o
que revela um processo de banalização da prisão cautelar. A Comissão
Interamericana de Direito Humanos (CIDH) da Organização dos Estados
Americanos (OEA) divulgou em setembro de 2014, o Relatório sobre o uso das
27%
186
prisões preventivas nas Américas, no qual critica a utilização excessiva da prisão
provisória no Brasil e demais países latino-americanos557.
No que se refere ao tratamento destinado aos presos provisórios, o
Relatório Anual do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura de
2012 aponta:
Os presos provisórios estão ainda mais expostos à tortura e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, uma vez que em muitos casos são submetidos a situações de violência no ato da prisão ou na busca de obtenção da confissão, ainda incomunicáveis a sua família e defensor legal. A superlotação e as condições totalmente anti-higiênicas a que estão expostos os coloca em contato com doenças infecto contagiosas. Em geral estes presos não têm contato com suas famílias até chegarem ao Sistema Prisional, fato que atenta contra seu direito à assistência familiar. Quanto ao tratamento dispensado aos custodiados é clara a existência de maus tratos em virtude do difícil acesso das pessoas doentes ao serviço de saúde, a não existência de água filtrada para o consumo dos detidos, a falta de cama, colchões, roupa de cama, uniformes e materiais de higiene558.
Além disso, verifica-se que é recorrente a não observância da separação
entre presos condenados e presos provisórios. No seu relatório de visita ao Brasil
de 2011, o Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura (SPT) afirma
que:
O SPT encontrou situações em que os detentos eram mantidos em instalações policiais juntamente com pessoas que já tinham sido sentenciadas e deveriam ser colocadas em regime fechado ou semiaberto para prisioneiros sentenciados. O SPT recorda que a separação entre pessoas acusadas e pessoas condenadas é uma importante obrigação segundo o direito internacional559.
Neste sentido, apesar do Rio de Janeiro ter desativado as Carceragens da
Polícia Civil, revela-se ainda um quadro de sistemática utilização da prisão
cautelar, não separação entre condenados e provisórios, e ausência de uma clara
política penitenciária para garantia de direitos dos presos provisórios, com
constantes mudanças na unidade prisional de triagem, denominada porta de
entrada do sistema penitenciário560. Conforme entendimento do MEPCT/RJ:
557 Comissão Interamericana de Direito Humanos, Relatório sobre o uso das prisões preventivas nas Américas. 558 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2012. 559 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de Visita ao Brasil - 2011, p. 14. 560 Com o processo de desativação das carceragens da Polinter a “porta de entrada” do sistema prisional do Rio de Janeiro inicialmente foi o Presídio Ary Franco, precisamente em 15 de março
187
As sucessivas mudanças na triagem masculina do sistema penitenciário evidenciam de modo irrefutável que não há uma política clara para a gestão prisional no Estado do Rio de Janeiro. Mudanças tão profundas em prazo tão exíguo denotam que a política criminal penitenciária é implementada em total casuísmo, ao sabor dos acontecimentos. (...) O sistema parece ser gerido em uma lógica eminentemente empírica que se satisfaz em apagar incêndios, preconizando a garantia da disciplina e segurança internas, em detrimento do esforço em adequar as unidades aos parâmetros legais nacionais e internacionais561.
4.3.3 Regime e Classificação
4.3.3.1 Panorama das Unidades Prisionais
Atualmente, a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio
de Janeiro (SEAP), criada pelo Decreto Nº 32.621/2003 substituindo o antigo
Departamento do Sistema Penitenciário (DESIPE), possui 54 unidades prisionais.
Entretanto, a ampla maioria dos estabelecimentos destina-se ao regime fechado.
Ademais, contrariando claramente disposições do art. 33 do Código Penal e Título
IV da Lei de Execução Penal, a maioria dos presos em regime semiaberto cumpre
a sanção penal em unidades típicas de cumprimento da pena em regime fechado,
ou seja, unidades de segurança média ou máxima. Ao todo no estado há dez
unidades destinadas ao regime semiaberto, porém apenas uma colônia agrícola ou
industrial, conforme exige o ordenamento jurídico-penal. A mesma debilidade
observa-se no cumprimento de pena no regime aberto, visto que há apenas seis
unidades de regime aberto, entretanto, apenas uma casa de albergado masculina e
uma casa de albergado feminina562.
de 2011. No ano de 2012 no mês de abril, o ingresso passa a ser realizado na Penitenciária Alfredo Tranjan (Bangu II), no Complexo de Gericinó. Após nova transição, em 15 de agosto de 2013 passa-se à Cadeia Pública Patricia Acioli, recém-inaugurada à época em Guaxindiba, em São Gonçalo, município da Região Metropolitana do Estado. Por fim, em 25 de fevereiro de 2014 a triagem passa a ser realizada na Cadeia Pública José Frederico Marques (Bangu 10). No que tange à triagem de mulheres presas, após a desativação dos estabelecimentos anômalos policiais, o ingresso passa a ser realizado na Penitenciária Joaquim Ferreira de Souza a partir de março de 2011, sem haver mudanças no estabelecimento de custódia. 561 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2014, p. 32. 562 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2013, p. 28.
188
Abaixo segue quadro dispondo a relação de unidades prisionais
circunscritas no estado do Rio de Janeiro, discriminadas por nome, endereço,
capacidade, efetivo e regime de cumprimento de pena563:
Tabela 10: Unidades de Niterói e Interior - Sistema Prisional do Rio de Janeiro (2014)
Nome Endereço Ano Vagas Efetivo Excesso Facção e outros
Regime
Instituo Penal Cel. PM Francisco Spargoli Rocha
Centro – Niterói
- 212 108 0% Neutro Pensão alimentícia
Fechado Masculino
Instituto Penal Edgard Costa
Centro- Niterói
- 403 554 37% CV Semiaberto Masculino
Penitenciária Vieira Fonseca – - 220 54 0% Ex- Fechado
563 Dados fornecidos pela Secretaria de Estado de Administração Penitenciária em 18/06/2013. 564 Unidade destinada apenas ao controle do livramento condicional, prisão albergue domiciliar e penas restritivas de direitos.
Tabela 9: Unidades Isoladas - Sistema Prisional do Rio de Janeiro (2014)
Nome Endereço Ano Vagas Efetivo Excesso Facção e outros
Regime
Hospital de Custódia e Trat. Psiquiátrico Heitor Carrilho
Frei Caneca Bairro Estácio de Sá
- Não recebe internos
78 - - Medida de Segurança (Masc. e Fem.)
Presídio Evaristo de Moraes
São Cristóvão 1967 1.437 1.829 27% Neutro Regime Fechado e Provisório (Masculino)
Instituto Penal Cândido Mendes
Rua Camerino – Centro
2006 208 235 13% Neutro Semiaberto Masculino
Patronato Magarinos Torres564
Benfica 1975 -
-
-
-
Controle de substitutivos penais
Casa do Albergado Crispim Ventino
Benfica 2004 302 323 7% - Aberto Masculino
Instituto penal Oscar Stevenson
Benfica 2010 288 327 18% - Aberto e Semiaberto Feminino
Presídio Ary Franco Agua Santa 1974 970 1875 93% CV; entrada p/ presos federais
Fechado e Provisório Masculino
Cadeia Pública Cotrin Neto
Eng. Pedreira – Japeri
- 750 1602 113,6%
Neutro Provisório Masculino
Penitenciária Milton Dias Moreira
Eng. Pedreira – Japeri
1948 792 1725 118% CV Fechado Masculino
Presídio João Carlos da Silva
Eng. Pedreira – Japeri
2006 884 1883 113% CV Provisório Masculino
Cadeia Pública Franz de Castro Holzwarth
Bairro Roma - Volta Redonda
2004 302 528 75% Terceiro Comando
Provisório Masculino
189
Ferreira Neto Niterói servidores Masculino Instituto Penal Ismael Pereira Sirieiro
Fonseca –Niterói
2005 389 485 22% ADA Semiaberto Masculino
Hospital Penal de Niterói565
Fonseca –Niterói
-
-
-
-
-
Hospital
Hospital de Custódia e Trat. Psiquiátrico Henrique Roxo
Centro- Niterói
1972 135 112 - - Medida de Segurança Masculino
Colônia Agrícola Marco Aurélio V. Tavares de Mattos
Bairro do Saco – Magé
1966 146 93 0% - Semiaberto Masculino
Cadeia Pública Hélio Gomes
Bairro do Saco – Magé
- 504 468 0% Neutro Provisório Masculino
Cadeia Pública Romeiro Neto
Bairro Saco – Magé
2003 591 1399 137% CV Provisório Masculino
Presídio Diomedes Vinhosa Muniz
Bairro Frigorífico – Itaperuna
2006 458 823 80 Neutro; Entrada p/ região
Provisório, Todos os regimes Masculino
Cadeia Pública Dalton Crespo de Castro
Bairro Codin - Campos
2006 500 653 31% Terceiro Comando; Entrada p/ região
Provisório Masculino
Presídio Carlos Tinoco da Fonseca
Bairro Codin – Campos
1977 872 1498 72% Neutro Provisório, Todos os regimes Masculino
Presídio Nilza da Silva Santos
Centro – Campos
- 224 291 30% - Provisório Todos os regimes Feminino
Cadeia Pública Juíza Patrícia L. Acioli
Guaxindiba – São Gonçalo
2013 616 1238 101% Neutro Provisório Masculino
Cadeia Pública Isap Tiago Teles de Castro Domingues
Guaxindiba – São Gonçalo
2013 616 1151 87% Neutro Provisório Masculino
Tabela 11: Unidades do Complexo de Gericinó - Sistema Prisional do Rio de Janeiro (2014)
Unidade Endereço Ano Vagas Efetivo Excesso Facção e outros
Regime
Hospital Dr. Hamilton Agostinho Vieira de Castro
Complexo de Gericinó
1961 80/13 54 - - Hospital Masculino e Feminino
Hospital Penal Psiquiátrico Roberto Medeiros
Complexo de Gericinó
1977 121 84 - - Hospital Psiq. Masculino e Feminino
Sanatório Penal Complexo de Gericinó
1965 110 117 8% - Hospital Masculino
Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho
Complexo de Gericinó
1979 1.699
13210 89% Neutro Semiaberto Masculino
Penitenciária Alfredo Tranjan (Bangu II)
Complexo de Gericinó
- 960 2.243 134% Neutro Fechado Masculino
Penitenciária Industrial Esmeraldino Bandeira
Complexo de Gericinó
1957 991 1.032 47% Terceiro Comando
Fechado Masculino
565 Número de leitos e total de internos não informado pela SEAP.
190
Penitenciária Laércio da Costa Pelegrino (Bangu I)
Complexo de Gericinó
1988 48 24 - Sanção disciplinar; Entrada de fora do estado
Provisório Fechado Masculino
Penitenciária Moniz Sodré
Complexo de Gericinó
- 1.320 1392 5% CV Fechado Masculino
Penitenciária Talavera Bruce
Complexo de Gericinó
1941 362 376 4% - Fechado Feminino
Creche – Unidade Materno Infantil
Complexo de Gericinó
2005 20 17 - - Fechado Feminino
Instituto Penal Vicente Piragibe
Complexo de Gericinó
1979 1.444 3041 111% CV Semiaberto Masculino
Penitenciária Dr. Serrano Neves (Bangu 3A)
Complexo de Gericinó
1997 668 865 29% CV Masculino Fechado
Penitenciária Jonas Lopes de Carvalho (Bangu 4)
Complexo de Gericinó
1999 1.344
2171 62% ADA Masculino Provisório e Fechado
Cadeia Pública Jorge Santana
Complexo de Gericinó
2001 750 914 22% CV Masculino Provisório
Cadeia Pública Pedro Melo da Silva
Complexo de Gericinó
- 750 1.125 50% 3º Comando Masculino Provisório
Presídio Elizabeth Sá Rego
Complexo de Gericinó
2005 750 1.078 44% CV Masculino Fechado
Presídio Nelson Hungria (Bangu 6)
Complexo de Gericinó
2003 500 522 12% - Feminino Provisório Fechado
Cadeia Pública Paulo Roberto Rocha (Bangu C)
Complexo de Gericinó
2003 675 1.640 143% CV Masculino Fechado
Penitenciária Gabriel Ferreira Castilho (Bangu 3B)
Complexo de Gericinó
2004 672 791 18% CV Masculino Provisório Fechado
Instituto Penal Benjamin de Moraes Filho
Complexo de Gericinó
2005 912 805 0% Terceiro Comando
Masculino Semiaberto
Penitenciária Joaquim Ferreira de Souza
Complexo de Gericinó
- 318 572 80% Porta de entrada feminina
Feminino Provisório (comum e federal)
Penitenciária Lemos Brito
Complexo de Gericinó
2006 512 624 22% 3º Comando e Ex-servidores
Masculino Fechado
Cadeia Pública Pedrolino Werling de Oliveira
Complexo de Gericinó
- 154 111 0% Ex-servidores Masculino Provisório
Cadeia Pública Bandeira Stampa (Bangu 9)
Complexo de Gericinó
2011 547 408 0% Neutro Masculino Fechado
Cadeia Pública José Frederico Marques (Bangu 10)
Complexo de Gericinó
2011 532 444 0% Triagem masculina
Masculino Provisório e condenados recém-ingressos
Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional566, no Rio de
Janeiro, 26 unidades prisionais do total de 50, ou seja, mais da metade, foram
construídas nos últimos dez anos. Dessas, vale ressaltar, 21, foram construídas
566 Ministério da Justiça/DEPEN, Relatório de Informações Penitenciárias 2014.
191
apenas nos últimos cinco anos, fato que revela o acintoso crescimento do sistema
penitenciário no período recente.
Este crescimento expressivo poderá ser acompanhado em breve de outra
grave problemática, isto porque a Secretaria de Administração Penitenciária do
Rio de Janeiro vem manifestando o desejo de implantar a privatização de unidades
prisionais. Segundo informações do Mecanismo Estadual de Prevenção e
Combate à Tortura, A primeira unidade penitenciária privada e mista (homens e
mulheres) do Estado do Rio funcionará em Resende, no sul do Estado567.
4.3.3.2 Regimes Prisionais
O reduzido número de unidades adequadas ao cumprimento de pena em
regime semiaberto e aberto, como verificado no tópico acima, é um dos fatores
determinantes para o chamado desvio de execução, ensejando o cumprimento da
pena muitas vezes em regime mais gravoso ao apenado568.
Este cenário é agravado pela exigência sistemática do exame
criminológico569 por parte da Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro para a
concessão da progressão de regime, a despeito do fato de que a LEP estabelece
este dispositivo como uma faculdade ao juiz da execução penal, e não como uma
exigência peremptória570. Como aponta Luis Carlos Valois “esse uso tendencioso
da atividade técnica para fins de segurança, agravando o encarceramento tem se
567 “A primeira unidade penitenciária privada e mista (homens e mulheres) do Estado do Rio funcionará em Resende, no sul do Estado, informou o Mecanismo Estadual de Combate à Tortura do Rio de Janeiro. ‘Fomos informados pelo secretário (de Estado de Administração Penitenciária) Erir (Ribeiro) dessa notícia. O processo está quase concluído, esperando apenas o aval do governador (Luiz Fernando Pezão) para ser inaugurado. Essa inauguração nos causa preocupação’, disse Patrícia Oliveira, participante do mecanismo. O presídio terá vaga para 300 presos, metade para cada gênero”. Disponível em: http://m.jb.com.br/rio/noticias/2015/08/14/primeiro-presidio-privado-do-estado-do-rio-sera-inaugurado-em-resende/. Acessado em: 15/08/2015. 568 ALMEIDA, Felipe Lima de, A execução da pena no anteprojeto do Código Penal: uma análise crítica. 569 Michel Foucault nas obras Vigiar e Punir, A verdade e as formas jurídicas e Resumo dos Cursos do Collège de France, localiza a emergência do procedimento do exame, entre os séc. XVIII e o séc.XIX, nas sociedades disciplinares, e o entende como uma nova forma de controle social e de produção de poder-saber e da “verdade”. Este procedimento servirá como meio de fixar ou restaurar a norma e como matriz das “ciências do homem”, dentre elas: a psicologia, a psiquiatria e a psicanálise. FOUCAULT, M., Vigiar e punir. Id., As palavras e as formas jurídicas. 570 Em 2003 a Lei Nº 10.792 retirou dos artigos 6° e 112 da LEP a obrigatoriedade de realização do referido exame para a concessão da progressão de regime.
192
dado no Brasil na exigência do exame criminológico como requisito para
progressão de regime ou para qualquer outro direito do preso”571.
No ano de 2014, verificava-se um contingente de 31,5% presos em regime
fechado, 24,75% em regime semiaberto, 1,7% em regime aberto, 41,8% presos
provisórios e 0,2% em medidas de segurança. Somados os presos provisórios e em
regime fechado, totaliza-se 72,3%. Observa-se ainda que há uma diminuição do
percentual de presos em regime aberto, revelando um número ínfimo. Como se
pode verificar no quando abaixo.
Figura 13: Presos por regime e natureza da privação da liberdade - RJ (2009-2014)
Fonte: SEAP/RJ
A inobservância do sistema progressivo acarreta sérias problemáticas no
cárcere. Segundo aponta o MEPCT/RJ:
As constadas mazelas que pairam sobre a execução penal instituem uma espécie de progressão de regime às avessas, na qual muitas vezes o apenado vivencia realidade mais gravosa ao progredir do regime fechado para o semiaberto. (...) Põe-se em prática o desvirtuamento da matriz do sistema progressista irlandês que inspira o Ordenamento Jurídico-penal em vigor, instituindo um sistema de progressão de regime de matriz filadélfico, priorizando a pena privativa de liberdade em regime fechado em detrimento de políticas penitenciárias que poderiam orientar-se ao “ideal ressocializador”572.
Neste sentido, constata-se que o sistema de progressão de regime no Rio de
Janeiro, e em todo país, assemelha-se a um barril de pólvora, pois ao não
apresentar qualquer estímulo ao bom comportamento, impele o apenado a buscar
571 VALOIS, L., op. cit., p. 62. 572 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório sobre progressão de regime de cumprimento no Rio de Janeiro.
193
alternativas na transgressão, seja através de fugas, motins ou rebeliões. Não
obstante isso, no ano de 2012, menos de 0,05% dos presos envolveram-se em tais
incidentes573.
4.3.3.3 Classificação
A Lei de Execução Penal estabelece que a pena privativa de liberdade deve
assegurar a separação dos presos segundo critérios de gênero e em razão de idade
acima de 70 anos (art. 82, §1º), condenados e provisórios (Art. 84). Além disso, as
Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos preconizam a separação dos
presos jovens (Regra 8, b), bem como separação de acordo com o tipo penal
(Regra 8).
Entretanto, tais parâmetros classificatórios não são observados na
realidade penitenciária. Exceto a separação por gênero, que em regra é respeitada
no Rio de Janeiro574. A administração penitenciária, em nome da garantia de
“segurança”, utiliza, informalmente, a classificação por pertencimento à facção
criminosa como principal critério575. Em 80% das unidades analisadas verifica-se
o uso desta classificação.
Em verdade, a mistura de facções é extremamente temerária, visto que há
um histórico de mortes de presos de grupos rivais. Entretanto, a inexistência de
um número adequado de estabelecimentos prisionais destinados a presos sem
qualquer pertencimento, acaba por fortalecer a lógica das facções, visto que
muitos presos buscando reduzir sua vulnerabilidade no cárcere optam por aderir,
ou são compelidos a aderir, a um grupo, de modo geral, através de uma vinculação
à facção hegemônica na comunidade onde reside576.
573 Disponível em: portal.mj.gov.br/depen/. Acessado em: 05/08/2015. 574 O MEPCT/RJ relata casos em que mulheres foram mantidas no mesmo estabelecimento de custódia policial que homens, relata ainda o transporte de mulheres juntamente com homens em viaturas policiais. Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2012. Segundo informa o DEPEN, há registros de mulheres em unidades prisionais masculinas em outros estados do Brasil. Ministério da Justiça/Depen, Relatório de Informações Penitenciárias 2014. 575 Na prática, a administração penitenciária indaga ao preso se possui ou não pertencimento. Há uma cultura que entende que se o indivíduo reside em um bairro ou comunidade com prevalência de determinada facção, deverá ser alocado em uma unidade prisional destinada à mesma. 576 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2012.
194
Outro critério importante para separação dos internos é a denominada
condição de “seguro”, para presos que por algum motivo encontram-se ameaçados
na unidade prisional577. Recorrentemente os presos em “seguro” são mantidos em
condições absolutamente precárias. Segundo relatório do SPT:
85. O SPT também observou o tratamento discriminatório de pessoas privadas de liberdade que necessitavam de proteção especial (os chamados “seguros”). Em uma instituição visitada, o SPT descobriu que as pessoas mantidas pela polícia na seção de “seguro” estavam em condições muito inferiores aos demais detentos e eram, segundo alegaram, submetidos a espancamentos frequentes578.
A separação por tipo penal é feita pontualmente, por exemplo, há a previsão
de galerias em unidades prisionais específicas para presos acusados de delitos
sexuais. Entretanto, em muitos casos esta cautela não é observada, gerando casos
de ameaças, espancamentos, abusos sexuais e mortes579.
4.3.4 Agentes e Técnicos Penitenciários
Eugênio Raul Zaffaroni aborda a problemática da vulnerabilidade no
sistema penal, condição esta que além de atingir mais incisivamente as pessoas
privadas de liberdade também afeta aos agentes e técnicos penitenciários, visto
que diante da “politização, burocratização e criminalização, o sistema penal é um
complexo de deterioração regressiva humana que condiciona falsas identidades e
papéis negativos”, ainda assim, “poucas vezes é adequadamente observada a
situação de extrema vulnerabilidade na qual se encontram essas pessoas”580.
A realidade carcerária e todas as mazelas que a cercam constitui uma
realidade intramuros com regras próprias, marcada pela violência e toda sorte de
violações à dignidade humana, propiciando o que Thompson denomina de
577 De modo geral, em razão do delito praticado, por ser delator ou ter histórico de dívidas ou conflitos com outros presos. 578 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de visita ao Brasil – 2011. 579 Segundo relatórios do MEPCT/RJ há relatos de abusos sexuais e mesmo esquartejamento de presos praticado por outros internos. Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2012. Id., Relatório anual 2014. 580 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p. 143.
195
“prisionização”581, refletindo diretamente na subjetividade dos profissionais que
atuam nas instituições totais. Neste sentido aponta Valois:
Outro fenômeno comum na execução penal administrativa é a perda de capacidade dos próprios técnicos em perceberem a influência do meio carcerário sobre eles, assim como a influência de seus preconceitos externos sobre suas atividades diárias582.
As debilidades estruturais escancaram-se perante os técnicos e agentes
penitenciários, em um contexto marcado por insalubridade, falta de capacitação e
condições adequadas de trabalho, imenso déficit de profissionais, superpopulação
prisional, elevado grau de risco e estresse emocional, falta de assistência
psicológica adequada, baixos salários, desprestígio perante os gestores e cultura
autoritária. Segundo aponta o Comitê Europeu para a Prevenção à Tortura:
Entre as condições de detenção, o problema da superpopulação é certamente o mais importante, especialmente porque tem uma influencia negativa em todos os demais aspectos da detenção e no clima geral do estabelecimento. Quando alcança certos níveis, ou quando se combina com outros fatores negativos a superpopulação pode inclusive constituir um tratamento desumano e degradante.583
Nesta realidade, o sistema penitenciário do Rio de Janeiro possui, segundo
dados do DEPEN, 6.655 profissionais, em uma proporção de 5,9 presos por
servidor584. Entretanto, deste total mais de seis mil exercem a função de agente
penitenciário, denominado de inspetor de segurança e administração penitenciária
(ISAP), e apenas 576 são técnicos penitenciários, de carreiras que se destinam à
garantia de direitos do apenado, distribuídos conforme o quadro abaixo.
Tabela 12: Técnicos Penitenciários (Rio de Janeiro – 2014)
Médico 93 Terapeuta Ocupacional 12 Técnico de Laboratório 25
Enfermeiro 28 Nutricionista 2 Técnico de Raios X 5
Psicólogo 57 Farmacêutico 7 Téc. Equip. Méd. Odonto. 12 Assist. Social 42 Biólogo 3 Aux. de Enfermagem 177
581 THOMPSON, A., A Questão Penitenciária. 582 VALOIS, L. C., Execução Penal e Ressocialização, p. 63. 583 Associação para Prevenção à Tortura. Monitoramento dos locais de detenção: um guia prático. 584 Ministério da Justiça/DEPEN, Relatório de Informações Penitenciárias 2014.
196
Odontólogo 22 Técnico de Enfermagem 81 Adm. Saúde 6
Fonte: SEAP-RJ
Além da grande discrepância entre o número de agentes e técnicos
penitenciários, a disparidade também se revela nos vencimentos destinados a cada
categoria. Desde a aprovação da Lei estadual n° 5.772/10, apelidada de
“Carreirão”, os funcionários que atuam no sistema prisional recebem salário
proporcional à carga horária definida pelos cargos.
No atual cenário, o vencimento básico de um profissional da área técnica
com nível superior (como médico, psicólogo ou assistente social) corresponde a
R$ 1.675,19, ao passo que o vencimento básico de um inspetor penitenciário, com
ensino médio, recém-ingresso na carreira é de R$ 4.572,45585. A
desproporcionalidade revela claramente a prevalência da disciplina e da
segurança, ao invés da garantia de direitos dos presos.
A grande desvalorização dos profissionais da área técnica se acentua ainda
mais com o crescimento da presença das Organizações Sociais na administração
penitenciária. Os profissionais que atuam na Unidade de Pronto Atendimento
(UPA) do Complexo de Gericinó possuem vencimentos de cerca de R$ 8.500,00
(médicos) e R$ 4.000,00 (Enfermagem, Serviço Social, Psicologia e
Odontologia).
Segundo informações da Associação dos Servidores de Saúde no Sistema
Penitenciário (ASSAP), o desprestígio dos profissionais de saúde tem redundado
em uma grande evasão nos últimos anos, como revela o quadro abaixo586.
Tabela 13: Profissionais de Saúde no Sistema Prisional do Rio de Janeiro (1995-2015)
Ano 1995 2001 2011 2015 Total de profissionais de saúde 1200 1050 700 576 População Prisional 9.000 19.000 28.665 43.000 Nº de presos por profissionais de saúde
7,5 18 41 74,6
Fonte: SEAP-RJ e ASSAP
585 Dados fornecidos pela SEAP. 586 Audiência Pública sobe Saúde no Sistema Penitenciário realizada pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da ALERJ em 17 de abril de 2012. Disponível em: http://www.alerj.rj.gov.br/. Acessado em 05/07/2015.
197
No ano de 1995 havia 1.200 profissionais da área técnica para um
contingente de 9.000 presos, configurando uma proporção de 7,5 presos por
profissional. Desde então, verifica-se a progressiva diminuição do número de
profissionais em paralelo ao expressivo aumento da população prisional. No ano
de 2015, chega-se a uma proporção de 74,6 presos por cada membro da equipe
técnica. Este absoluto descaso revela de modo inequívoco que para a
administração penitenciária a real preocupação reside na garantia de disciplina e
segurança no cárcere, e não na garantia de direitos dos presos.
O MEPCT/RJ tem apresentado em seus relatórios a recomendação de
aprovação do Plano de Cargos e Salários dos servidores da administração
penitenciária para que se viabilizem concursos com vínculo estatutário para a
formação das equipes de saúde previstas no Plano Nacional de Saúde do Sistema
Penitenciário com melhoria salarial e adequação das condições de trabalho dos
servidores da saúde587.
4.3.5 Assistência e Direitos do Preso
4.3.5.1 Assistência à saúde
O direito à saúde no cumprimento da pena privativa de liberdade é
amplamente protegido pelos diplomas legais, a exemplo das Regras Mínimas para
o Tratamento de reclusos (Regra 22), Princípios e Boas Práticas para a Proteção
das Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas (Princípio X) e Lei de
Execução Penal (Art. 14).
No que se refere às pessoas reclusas, o direito à saúde deve ser prioritário.
Segundo Bent Sorensen588, um nível de atenção à saúde inadequado pode se
transformar rapidamente em tratamento desumano, cruel e degradante. O Manual
Internacional para uma Boa Prática Prisional ressalta o importante papel dos
profissionais da saúde do sistema prisional de modo a constituir um “importante
587 A título de exemplo, o último concurso para técnicos penitenciários ocorreu em 1998 com convocações até 2001. Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório anual 2012. 588 KOLKER, Tania (org.). Perito integrante do Comitê Europeu para Prevenção à Tortura, em Saúde e Direitos Humanos nas Prisões.
198
elemento de intervenção na qualidade de vida geral nos centros penitenciários,
tanto para os reclusos quanto para o corpo funcional (...)”. Ressalta ainda que este
trabalho de assistência terá mais êxito se for realizado, sobretudo, de forma
preventiva.589
Entretanto, as precárias condições de aprisionamento muitas vezes
refletem-se na debilitação da saúde dos apenados. Em seu relatório de visita ao
Brasil, o SPT aponta que:
105. As celas em Ary Franco eram geralmente escuras, sujas, abafadas e infestadas de baratas e outros insetos. A grave superlotação e a manutenção precária das celas resultaram em condições que criaram graves problemas de saúde para os detentos, como micose e outras doenças da pele e do estômago. Em algumas celas, o SPT pôde perceber que o sistema de esgoto das celas dos pisos superiores estava vazando pelo teto e pelas paredes590.
Em monitoramentos realizados pelo MEPCT/RJ percebe-se em muitos
casos a falta de profissionais de saúde, falta de medicamentos bem como presença
de medicamentos e seringas fora da validade. Também foram identificadas
diversas denúncias de debilidade de saúde:
As reclamações dos custodiados são as mais diversas possíveis, tais como: a necessidade de aplicação de injeção para tratamento de doença sexualmente transmissível; dificuldade de locomoção por causa de visível estado avançado de Gota; perna com pino em processo de inflamação; custodiado urinando e defecando na cama; bolsa de colostomia necessitando ser trocada; pontos no braço em visível processo de inflamação; pinos na perna com visível infecção, entre outros.591.
Observa-se um cenário de absoluta precariedade. A situação, no entanto,
agrava-se, visto que o sistema prisional do Rio de Janeiro vem sendo alvo de uma
progressiva precarização da assistência à saúde nos últimos anos. Segundo
informações da ASSAP, em 1995 havia sete unidades hospitalares vinculadas à
administração penitenciária, em um universo de 9.000 presos, ao passo que em
2015, com 43.000 presos, há somente cinco estabelecimentos hospitalares em
atividade592.
589 Reforma Penal Internacional. Dos Princípios à Prática – Um Manual Internacional para uma Boa Prática Prisional. 590 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de Visita ao Brasil – 2011. 591 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2012. 592 Em 1995 havia 3 Hospitais Psiquiátricos (Heitor Carrilho, Roberto de Medeiros, Henrique Roxo), 1 Hospital Geral (Hospital Fabio Soares Maciel), 1 Hospital para tratamento de tuberculose
199
Os efeitos mais gravosos deste desmantelamento revelam-se, sobretudo,
em complicações do quadro de doenças graves como Tuberculose e HIV/AIDS.
Profissionais da saúde que atuam no Sistema Prisional do Rio de Janeiro
realizaram uma pesquisa no mês de dezembro de 2011 e constataram que um
preso morria a cada dois dias nos presídios deste estado, mortes estas
provavelmente relacionadas à Tuberculose e HIV/AIDS.593
Se é fato que o sistema de saúde prisional deste estado foi uma referência
no âmbito nacional e um exemplo de boas práticas – tendo sido o primeiro a ter
convênio com o Serviço Único de Saúde (SUS) ainda na década de 1990 – um
desmonte das condições de trabalho e atendimento vem assolando,
aceleradamente, as condições de prestação deste serviço, descumprimento
flagrantemente as determinações do Plano Nacional de Saúde no Sistema
Penitenciário594, bem como Resolução do Conselho Nacional de Política Criminal
e Penitenciária595. Além disso, a iminência de privatização da gestão e contratação
de servidores via Organizações Sociais (OSs) também se coloca como grande
preocupação no sistema prisional do Rio de Janeiro596.
(Sanatório Penal), 1 Hospital para presos portadores do vírus HIV (Hospital de Niterói) e 1 Hospital de Doentes Crônicos (Hamilton Agostinho). Com a desativação do Complexo Frei Caneca, desativou-se também o Hospital Fabio Soares Maciel. O Hospital Penal de Niterói foi fechado em 2011 por falta de médicos. O Hospital Heitor Carrilho desde 2012 não recebe novos internos, tendo sido convertido em instituto de perícias. Em agosto de 2011, é inaugurada uma UPA – Unidade de Pronto Atendimento, anexa ao Hamilton Agostinho, que passou a ser ponto de referência para atendimento das emergências. No entanto, além de não ter centro cirúrgico a UPA se encontra muito distante das unidades que não fazem parte do Complexo Penitenciário de Gericinó. 593 “RJ: mortes em penitenciárias serão discutidas”. Disponível em: HTTP://WWW.BAND.COM.BR/NOTICIAS/CIDADES/NOTICIA/DEFAULT.ASP?ID=100000495183. Acessado em: 04/05/2015. 594 Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cartilha_pnssp.pdf. Acessado em: 04/05/2015. 595 Resolução do Conselho Nacional de Políticas Criminais e Penitenciária, Nº 07 de 14 de abril de 2003. artigo 1º, inciso IV: “Para o atendimento ambulatorial são necessários, no mínimo, servidores públicos das seguintes categorias profissionais: 01 médico clínico, 01 médico psiquiatra, 01 odontólogo, 01 assistente social, 01 psicólogo, 02 auxiliares de enfermagem e 01 auxiliar de consultório dentário com carga horária de 20 horas semanais. Nas unidades femininas deve haver sempre, pelo menos, 01 médico ginecologista.” 596 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório anual 2012.
200
4.3.5.2 Assistência Material
A precariedade das condições de detenção também pode ser verificada na
(des)assistência material ao recluso. Como aponta a Associação para Prevenção à
Tortura:
Ao privar uma pessoa privada de liberdade, as autoridades assumem a responsabilidade de cobrir as necessidades vitais dessa pessoa. A privação de liberdade tem em si mesma um caráter punitivo. O Estado não tem a autoridade para agravar isto mediante más condições de detenção, que não cumpram com os padrões internacionais que o Estado se comprometeu a respeitar. (....) As áreas de alojamento, a alimentação e higiene são fatores que contribuem ao sentimento de dignidade e bem-estar dos presos. 597 Neste sentido, o artigo 3º da Lei de Execução Penal (LEP) dispõe que “ao
condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela
sentença ou pela lei”. Em seu artigo 12 afirma ainda que “a assistência material ao
preso e ao internado consistirá no fornecimento de alimentação, vestuário e
instalações higiênicas”. A pena de prisão não pode representar um atentado à
dignidade humana do condenado, de modo que as condições de detenção devem
assegurar-lhe a assistência material adequada.
a) Alimentação e Água
O acesso à água e à alimentação é elementar para a sobrevivência das
pessoas privadas de liberdade. A despeito do fato de sua previsão expressa nas
Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos (Regra 20, inc. 1 e 2), bem como
nos Princípios e Boas Práticas sobre a Proteção das Pessoas Privadas de Liberdade
nas Américas (Princípio XI, inc. 1 e 2), há inúmeros relatos de escassez ou
fornecimento em péssimas condições. Dos relatórios sobre as unidades prisionais
analisados, constata-se que 68% continham denúncias quanto à qualidade e
quantidade da alimentação fornecida e 80% quanto ao acesso à água potável.
Segundo informado pela SEAP, os presos recebem 5 refeições por dia,
compreendendo café da manhã, almoço, lanche, jantar e ceia. Entretanto, em
597 Associação para Prevenção à Tortura, Monitoramento dos locais de privação de liberdade: um guia prático.
201
diversas unidades os presos destacam que a comida é servida fria, com cardápio
repetitivo e pouco nutritivo, por vezes o lanche não é servido. Em casos mais
extremos, reportam reclamações de comida estragada e com impurezas ou até
insetos. Há também queixas quanto ao horário do jantar, por ser servido muito
cedo, cerca de 16h598.
Ademais, relatos denunciam o não fornecimento de talheres para
manipulação de alimentos, tendo os apenados que improvisar talheres com a
tampa das ‘quentinhas’. Geralmente, na unidade na qual a alimentação é
produzida na própria cozinha, são mais escassas as reclamações.
A alimentação é o principal serviço terceirizado nas unidades prisionais.
Dentre as principais empresas que fornecem alimentação encontram-se a
Facility599 e a Home Bread600. Na Cadeia Pública Cotrim Neto, situada em Japeri,
as ‘quentinhas’ são fornecidas pela empresa Comissária Rio601 e são oriundas de
estabelecimento localizado na Ilha do Governador. Por tal razão, as quentinhas
chegam frias.
Na Cadeia Pública José Frederico Marques, a triagem do sistema prisional,
foi verificado, no final de 2014, o cenário aterrador onde presos permaneceram
por semanas sem receber o jantar, em razão de atraso de mais de quatro meses no
pagamento dos fornecedores.602 Por tais motivos, os presos que possuem
condições mínimas, veem-se obrigados a receber constantes donativos de
alimentos de suas famílias ou a consumir nas cantinas dos estabelecimentos
prisionais, que praticam preços extremamente abusivos. Das unidades analisadas
por esta pesquisa, 45% revelam não possuir cantina no local.
Quanto ao fornecimento de água, segundo aponta o MEPCT/RJ, em todas
as unidades visitadas, com exceção do Presídio Nelson Hungria, a água para
598 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2012. 599 Segundo sua página na internet, a Facility oferece “soluções corporativas em 9 diferentes ramos de negócio: alimentação industrial, coleta de lixo, limpeza e conservação, manutenção predial, gestão ambiental, saúde, segurança, tecnologia e trade marketing”. A empresa é, atualmente, fornecedora de alimentação para as UPA’s (Unidades de Pronto Atendimento de Saúde). Disponível em: http://www.facilitynet.com.br/40b_0025.htm. Acesso em 17 de Dezembro de 2011. 600 Disponível em: http://www.homebread.com.br/site/default.asp. Acessado em 17 de Dezembro de 2011. 601 Disponível em: http://www.comrio.com.br/2011/default.asp. Acessado em 17 de Dezembro de 2011. 602 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório de Visita à Cadeia Pública José Frederico Marques. Ofício nº 27/2015.
202
consumo fornecida aos presos é oriunda do próprio encanamento. Como muitas
unidades são antigas, são comuns os relatos de ferrugem e impurezas na água603.
Há ainda relatos frequentes de interrupção do fornecimento de água, em
várias unidades o fornecimento é feito apenas em três horários por dia, por um
período de apenas 30 minutos, fato que se evidencia extremamente crítico quando
nos deparamos com unidades superlotadas em celas com mais 100 internos e
apenas 3 chuveiros604. Além disso, em alguns estabelecimentos foi registrada falta
de abastecimento por cerca de dois meses entre 2014 e 2015. Tais incidentes são
ainda mais graves diante do extenuante calor do verão carioca, configurando uma
brutal violação ao princípio da dignidade humana605.
b) Vestuário, Roupas de Cama e Colchões
A obrigação de fornecer vestuário adequado aos internos, contida no
Princípio XII, inciso 3, dos Princípios e Boas Práticas sobre a Proteção das
Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas é corriqueiramente violada no
cárcere. Como informa relatório sobre a Cadeia Pública José Frederico Marques:
A referida unidade atualmente é a porta de entrada do sistema penitenciário fluminense. Atualmente, apenas uma galeria (D) possui colchões, os demais internos dormem ou na cama de alvenaria designado pejorativamente de “pedra” ou no próprio chão das celas, sequer tem cobertores ou qualquer outra roupa sobressalente. Faltam materiais de higiene e chinelos (...) O Bangu 10 recebe, em média, 90 internos diariamente.606.
Em 70% das unidades analisadas nesta pesquisa constataram-se falta de
colchões. A SEAP alega fornecer vestuário, roupa de cama e colchão aos internos,
entretanto este fornecimento é feito de modo muito irregular e em muitos casos
não é assegurado. Deste modo, verifica-se um elevado contingente de “presos
603 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório Anual 2012. 604 “Outra queixa relacionada à água é a forma precária de armazenamento que eles têm, em um pequeno tanque dentro do banheiro. A água apresentava larvas de mosquitos(...). Eles também questionaram que são obrigados a utilizar a mesma água para beber e tomar banho, assim como a falta de vasilhas para guardá-la, dispondo apenas de copos plásticos de refrescos”. Id., Relatório anual 2014. 605 O MEPCT/RJ apurou denúncias de falta de água na Penitenciária Talavera Bruce, no Complexo Penitenciário de Japeri, em especial no Presídio Cotrim Neto, e outras unidades do Complexo de Gericinó, entre dezembro de 2014 e fevereiro de 2015. Id., Ofício MEPCT/RJ nº02/15. 606 Id., Relatório anual 2014.
203
descalços, e muitos deles com o uniforme em estado precário muitos rasgados e
apresentando aspectos de sujeira. Devido ao alto fluxo de pessoas privadas de
liberdade, essa situação se agrava, pois muitos já recebem os uniformes de outros
sem higienização” 607 Segundo aponta o MEPCT/RJ tais mazelas atingem com
ainda maior frequência os presos provisórios608.
c) Salubridade e Instalações sanitárias
A garantia de condições adequadas de higiene encontra amparo no
Princípio XII, inciso 2, dos Princípios e Boas Práticas sobre a Proteção das
Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas, mas também revela-se distante da
realidade carcerária.
Como aponta relatório sobre a Cadeia Pública José Frederico Marques:
“Precário também é o fornecimento de papel higiênico, o MEPCT verificou que
em algumas celas não tinha o produto. As necessidades fisiológicas são feitas em
um orifício de louça denominado “boi” pelos presos609”. Em muitos casos, os
banheiros encontram-se entupidos ou com vazamentos de água. Também em regra
não há chuveiros, apenas canos em seu lugar. Alguns deles, no entanto, não há
fluxo de água suficiente, o que faz com que os presos tenham que tomar banho
com água acumulada em garrafas plásticas.
No que tange ao kit de higiene pessoal, as direções das unidades alegam
fornecimento semanal. Por sua vez, os presos afirmam que o fornecimento é
extremamente escasso e insuficiente. Em 86% dos estabelecimentos prisionais
analisados apresentavam denúncias quanto ao fornecimento irregular dos insumos
de higiene. Mais uma vez, resta aos familiares dos presos arcarem com a
responsabilidade que deveria ser estatal.
A insuficiência do fornecimento de insumos de higiene pessoal afeta
particularmente as mulheres encarceradas. Nas unidades prisionais é “uníssona a
reclamação acerca do ínfimo fornecimento de papel higiênico e absorvente, tendo
607 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório de visita à Cadeia Pública José Frederico Marques. Ofício nº 27/2015. 608 Id., Relatório anual 2012. 609 Id., Relatório de visita à Cadeia Pública José Frederico Marques. Ofício nº 27/2015.
204
as mesmas que submeterem a um esforço de divisão desses itens entre toda cela,
tamanha precariedade no fornecimento”610.
Segundo aponta o MEPCT/RJ o acúmulo de lixo também é um problema
crônico para a salubridade, de modo que em diversas unidades como:
(...) no Presídio Ary Franco, no Instituto Penal Vicente de Piragibe, o Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho e Instituto Penal Ismael Sirieiro o ambiente é extremamente propício para proliferação de doenças respiratórias e de pele. Em muitos casos há acúmulo de lixo e até esgoto aberto no fundo das celas, o que possibilita a presença de moscas, baratas e ratos. (...) inclusive nas de saúde como Hospitais e Casas de Custódia foram observados grande acúmulo de lixo nas celas, bem como em dependências externas da unidade.611.
Este grotesco quadro de insalubridade favorece em muito a proliferação de
doenças. “Diversos detentos relataram agravamento do quadro de saúde em
função da salubridade do local, muitos com manchas na pele, resfriado, HIV
positivo, epilepsia, transtornos mentais, dentre outros”612.
d) Iluminação e Aeração
A exigência de adequadas condições de iluminação e aeração estão
arroladas no Princípio XII, inciso 1, dos Princípios e Boas Práticas sobre a
Proteção das Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas, entretanto, também é
reduzida a letra morta diante crise sistêmica que se verifica no sistema
penitenciário.
Em 71% das unidades analisadas houve reclamações quanto às condições
de iluminação e aeração. O MEPCT/RJ aponta que em muitos estabelecimentos
“foi observado um cenário de umidade e cheiro de mofo”613. Assevera ainda que:
De modo geral, as condições de aeração observadas são precárias. As janelas das celas quando existem são muito pequenas e situadas no alto da parede. Fator que agrava tal situação é a restrição à entrada de ventiladores em algumas unidades, como ocorre na Cadeia Pública Cotrim Neto, na qual os presos só podem obter o direito a receber ventilador trazido por seus familiares a partir de 6 meses na
610 Id., Relatório anual 2012. 611 No Presídio Alfredo Tranjan, presos denunciaram que alguns agentes penitenciários deixam acumular lixos em grandes tambores nas galerias da unidade – fato que atraia a presença de ratos e insetos – com o intuito de vender estes restos para criadores de porcos nas cercanias do Complexo de Gericinó. Ibid. 612 Id., Relatório de visita à Cadeia Pública José Frederico Marques. Ofício nº 27/2015. 613 Ibid.
205
unidade. A direção alega que tal medida, objetiva evitar sobrecarga na parte elétrica614. Em relatório sobre visita feita ao Brasil, o Subcomitê da ONU para a
Prevenção à Tortura informa que:
105. As celas em Ary Franco eram geralmente escuras, sujas, abafadas e infestadas de baratas e outros insetos. A grave superlotação e a manutenção precária das celas resultaram em condições que criaram graves problemas de saúde para os detentos, como micose e outras doenças da pele e do estômago. Em algumas celas, o SPT pôde perceber que o sistema de esgoto das celas dos pisos superiores estava vazando pelo teto e pelas paredes. 106. Além do estado deplorável das instalações das acomodações, havia uma deficiência generalizada no fornecimento de itens de higiene, vestimenta, roupa de cama e outros itens essenciais615.
Nesta esteira, verifica-se a absoluta precariedade das condições materiais
do cárcere, com toda a sorte de violações aos pressupostos basilares para a
execução penal, da alimentação e água ao fornecimento de vestuário e colchões,
da aeração às condições de salubridade. Verifica-se um sistemático quadro de
crise agravado pela superlotação, dando ensejo a tratamentos cruéis, desumanos e
degradantes.
4.3.5.3 Assistência Familiar
a) Visitas Familiares
O direito à assistência familiar consagrado no art. 41, inciso X, da LEP e
no Princípio XXI dos Princípios e Boas Práticas sobre a Proteção das Pessoas
Privadas de Liberdade nas Américas. Seria esta uma das principais medidas
afeitas à suposta função penalógica “ressocializadora”, uma vez que a ruptura dos
laços afetivos e fraternais deixaria o apenado ainda mais sujeitado aos efeitos
criminógenos do cárcere.
614 “Como constatado no IPVP e no IPPSC, a arquitetura dos pavilhões está em péssimo estado, o que, por si só viola direitos humanos. A condição do ambiente é insalubre: precária de iluminação e ventilação, a má conservação da rede de esgoto, das fiações elétricas, o acúmulo de lixo e a condição degradada das celas que são fatores que agravam as condições de saúde dos custodiados.” Id., Relatório Anual 2012. 615 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de Visita ao Brasil – 2011.
206
Entretanto, inúmeros obstáculos se colocam frente a esta garantia, a
começar pela incomunicabilidade a qual fica submetido o custodiado em boa parte
dos casos, desde a prisão em flagrante, passando pela carceragem da delegacia de
polícia até a unidade prisional de triagem616. Por vezes, os internos ficam mais um
mês sem ter condições de comunicar a prisão à família através do setor de serviço
social. Acresce-se a tal problemática, o dificultoso procedimento para confecção
de carteiras de visitas, que segundo, aponta o MEPCT/RJ pode levar de 1 a 3
meses para ser concluído617.
Em muitas unidades prisionais o MEPCT/RJ informa ainda que recebeu
inúmeras reclamações de que objetos e alimentos doados pelos familiares por
vezes são entregues com muita demora, fato que recorrentemente torna os
alimentos impróprios para consumo. Outra reclamação refere-se ao fato de que em
muitas unidades, a entrega dos bens (custódia) não pode ser realizada no mesmo
dia da visita dos familiares618.
Também são registradas reclamações quanto à entrada e saída de
correspondências. Algumas unidades exigem que o preso promova o
cadastramento de um familiar apenas.
O SPT recomenda “que todos os presos tenham permissão para, sob a supervisão
necessária, comunicarem-se regularmente por carta, telefone e visitas, com seus
familiares e outras pessoas”619. Vale destacar, sobre esse tema, que:
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos declarou que a prática da detenção incomunicável não está em consonância com o respeito pelos Direitos Humanos, uma vez que se “cria uma situação propícia a outras práticas como a tortura”, e pune a família do detido sem permissão. A Comissão Interamericana também considera que o direito de receber visitas de parentes é “uma exigência fundamental” para assegurar o respeito aos direitos dos detidos.620
616 Na capital a unidade de triagem masculina é a Cadeia Pública José Frederico Marques e a feminina é a Penitenciária Joaquim Ferreira de Souza. 617 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2012. 618 Tal fato constitui um elemento de grande dificuldade aos familiares, uma vez que em sua ampla maioria não teriam condições deslocar-se à unidade prisional por dois dias da semana. Em geral, a direção da unidade justifica tal procedimento em razão do pequeno número de agentes na unidade. Ibid. 619 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de Visita ao Brasil – 2011, p. 22. 620 FOLEY, C., Protegendo os brasileiros contra a tortura: Um Manual para Juízes, Promotores, Defensores Públicos e Advogados.
207
b) Revista Vexatória
Contudo, a maior afronta à assistência familiar encontra-se nos
procedimentos de revista. Na maioria das unidades da SEAP há detectores de
metais, na modalidade do portal, “banquinho” e “raquete”. No estado do Rio de
Janeiro há apenas um scanner corporal, situado no Complexo de Gericinó. Não
obstante, o procedimento vexatório de revista íntima dos visitantes é utilizado
como regra em todo o sistema.
O perverso procedimento consiste submeter o visitante a agachar-se nu
perante um agente do mesmo sexo, por três vezes, mostrando sua genitália.
Muitos presos reclamam que além da violação à dignidade dos familiares, tal
procedimento é moroso em razão do grande número de visitantes, prejudicando o
tempo de visitação. Há relatos, ainda, que em determinadas ocasiões crianças
presenciam a realização da revista invasiva aos familiares.
A medida indubitavelmente constitui tratamento degradante aos visitantes,
açambarcando o princípio da personalidade da pena, insculpido no art. 5, XLV da
Carta Magna de 1988, segundo o qual nenhuma pena pode extrapolar a pessoa do
réu. Ademais, conforme dispõe o relatório de visita do SPT:
O SPT recomenda que o Estado garanta que as revistas cumpram com os critérios de necessidade, razoabilidade e proporcionalidade. Se conduzidas, as revistas corporais devem ser realizadas em condições sanitárias adequadas; por pessoal qualificado, do mesmo sexo do indivíduo revistado; e devem ser compatíveis com a dignidade humana e com o respeito aos direitos fundamentais. Revistas intrusivas, como vaginais e anais, devem ser proibidas por lei. A emissão de passes para os visitantes deve ser agilizada621.
A revista vexatória historicamente tem sido alvo de severas críticas.
Atualmente há uma campanha nacional por sua abolição conduzida pela Pastoral
Carcerária e pela Rede Justiça Criminal622. Recentemente, alguns estados vêm
adotados medidas legais proibitivas desta prática. Entretanto, mesmo com a
aprovação de leis estaduais em São Paulo e Minas Gerais, a revista intrusiva
permanecia sendo realizada.
621 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de Visita ao Brasil – 2011. p. 22. 622 Disponível em: http://www.fimdarevistavexatoria.org.br/. Acessado em: 05/05/2015.
208
No Rio de Janeiro foi aprovado o projeto de lei n° 77/2015, mesmo após
veto do Governador623. Além da proibição da revista vexatória, a Assembleia
Legislativa aprovou a doação de um valor de R$ 19 milhões aos cofres do
Governo do Estado para aquisição de 33 scanners corporais a serem instalados
nas unidades prisionais624. Por dia, mais de dois mil familiares realizam visitas no
Rio de Janeiro, na ampla maioria mulheres.
c) Visita Íntima
Em boa parte das unidades prisionais, os “parlatórios” (espaços para a
realização de visita íntima) se encontram em condições inapropriadas para uso no
que tange à aeração, iluminação e higiene. Quanto às instalações sanitárias, em
muitos casos não possuem vasos sanitários, mas sim o “boi”. Em algumas
unidades, como no Cotrim Neto, apesar de haver dependências para os chamados
“parlatórios”, não há visita íntima na unidade. Vale mencionar que o processo de
credenciamento dos internos que desejam receber visita íntima é criticado devido
ao alto grau de exigência burocrática, podendo levar mais de dois meses para ser
concluído625.
A LEP não autoriza expressamente o direito à sexualidade do preso, na
forma da denominada “visita íntima”, apesar de haver resolução autorizativa do
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária626. Por este motivo, de
modo geral, a administração penitenciária trata a questão como regalia e não como
direito627, sendo assegurado a um número reduzido de presos, assim como em
diversas garantias atinentes à pessoa privada de liberdade.
623 Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-mai-20/alerj-derruba-vetos-aos-projetos-proibem-revistas-vexatorias. Acessado em: 05/05/2015. 624 Disponível em: http://www.rj.gov.br/web/seap/exibeconteudo?article-id=2441035. Acessado em: 05/05/2015. 625 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2012. 626 Resolução nº 1 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), publicada em 30 de Março de 1999 recomenda aos Departamentos Penitenciários Estaduais ou órgãos congêneres que fosse assegurado o direito à visita íntima aos presos de ambos os sexos. 627 Cabe, neste particular a seguinte citação: "uma vez que a sexualidade inere à pessoa, não seria concebível que o direito de receber visitas do ser com quem se compartilha a intimidade se restringisse à liturgia própria do encontro com um parente ou amigo, em que os afetos de corpo e alma nunca atingem a natureza e o grau de segredo e mistério que enlaçam os cônjuges ou companheiros." CARVALHO, P. A. E. de, Visita íntima: direito ou regalia, p. 03.
209
Entretanto, o art. 41, X da LEP628 ao prever a visita da companheira ou
cônjuge, deixa tácita a hipótese de visita íntima. Além disso, a privação da relação
sexual no cumprimento de pena privativa de liberdade pode ser considerada pena
cruel, colidindo com o princípio da humanidade das penas (art. 5 XLVII, ‘e’ da
Constituição de 1988).
No mesmo sentido, preceituam as Regras Mínimas para o Tratamento de
Reclusos, ressaltando que sejam mantidas e até mesmo melhoradas as boas
relações entre o preso e sua família, desde que convenientes para ambos (Regra nº
74).
Por fim, se o legislador, ao dizer constituir direito do recluso(a) a visita do
cônjuge ou companheiro(a), não distinguiu entre visita simples e visita íntima, não
cabe ao intérprete limitar essa faculdade à primeira hipótese, rotulando a outra de
mera regalia, sob pena de consagrar o princípio, já não mais aceito pela na
doutrina da execução penal, de entender as normas que regem a relação
presidiário-Estado como propensas à sistemática restrição dos direitos e garantias
de quem sofre a execução da pena privativa de liberdade. Neste sentido, no Rio de
Janeiro, tramita o projeto de lei nº 125/2011 com o fulcro de positivar o direito à
visita íntima nas unidades prisionais.
4.3.5.4 Assistência Jurídica
No que se refere ao direito à assistência jurídica gratuita, no Rio de Janeiro
esta é oferecida pela Defensoria Pública. Vale dizer que a Defensoria Pública
fluminense é considerada uma das mais estruturadas do país. Entretanto, a
despeito de tal fato, seu contingente ainda não é suficiente para atender à
gigantesca demanda, visto que segundo informações do Núcleo do Sistema
Penitenciário da Defensoria Pública (NUSPEN), 98% dos presos do estado são
assistidos pela mesma629. Nesse sentido, procede a alegação da maioria dos presos
628 Lei 7.210/84, Art. 41 – São direitos do preso. X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados. 629 Declaração dada pelo Defensor Público Leonardo Merigueti na Audiência Pública sobre Porta de Saída do Sistema Penitenciário realizada pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro em 29 de novembro de 2013. Disponível em: http://www.alerj.rj.gov.br/. Acessado em: 05/07/2015.
210
de que seu primeiro contato com seu defensor público acontece na audiência
especial630.
No que tange ao tema da prevenção à tortura, o atendimento presencial do
defensor ao seu assistido é, seguramente, uma forma de coibir os maus tratos e
outras formas de tratamento cruel, desumano ou degradante. Segundo o manual
Protegendo os Brasileiros contra a Tortura631: “Os suspeitos devem ser informados
sobre seus direitos no momento da prisão ou antes de serem levados em custódia
para o interrogatório. A Constituição prevê que o preso será informado de seus
direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência
da família e de advogado632. No entanto, não há nenhum dispositivo legal
específico que estabeleça um período de tempo após o qual a pessoa detida tenha
acesso a um advogado.” (2011, Protegendo os Brasileiros contra a Tortura).
Em muitas unidades prisionais, o espaço para atendimento da Defensoria,
bem como da advocacia privada é precário e não proporciona a confidencialidade
adequada. Neste sentido, a seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB), tem se dedicado a pressionar a SEAP para a implementação de
adequados parlatórios aos advogados633.
4.3.6 Atividades no Cárcere
4.3.6.1 Atividades Laborativas
A Constituição Federal de 1988 estabelece o trabalho como um direito
social (Art. 6°), bem como veda a imposição de penas de trabalhos forçados (Art.
5º, XLVII, ‘c’). Entretanto, o trabalho prisional é concebido pela Lei de Execução
Penal (Lei 7.210/84) paradoxalmente como um direito e, ao mesmo tempo, um
dever do preso634. Em seu artigo 28 dispõe que “o trabalho do condenado, como
dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e 630 Nessa audiência o acusado toma conhecimento da denúncia crime feita pelo Ministério Público. 631 FOLEY, C., op. cit. 632 15. Artigo5º, LXIII da Constituição Federal e artigos 186 e 289-A §4º do Código de Processo Penal. 633 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2012. 634 Art. 39 - Constituem deveres do condenado: V - execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas; Art. 41 – constituem direitos do condenado, inciso II atribuição de trabalho e sua remuneração.
211
produtiva”. Sendo formalmente assegurado ao interno o direito à remuneração,
bem como a remição de um dia de pena a cada três dias de trabalho635.
Segundo aponta relatório do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate
à Tortura do Rio de Janeiro, “em especial educação e trabalho, ao invés de direito
subjetivo do preso, são tidos como privilégios, de poucos, de uma pequena casta
de apenados selecionada pela administração prisional”636. Convém analisar como
vem sendo assegurado o trabalho nas unidades prisionais do Rio de Janeiro.
Figura 14: Presos em Atividades Laborativas (RJ - 2004/2014)
Fonte: SEAP-RJ
O gráfico acima expõe a série histórica acerca do percentual de presos
exercendo atividades laborativas no sistema prisional do Rio de Janeiro entre
2004 e 2014. Neste período verifica-se uma elevação da percentagem de internos
com acesso ao direito ao trabalho, de 2,95% em 2004, a 7,36% em 2014.
Entretanto, apesar desta ligeira majoração, o índice ainda é muito baixo se
comparado com a média nacional que apontava 16% presos trabalhando no
sistema penitenciário em 2014637. Trata-se de uma grande disparidade,
verificando-se no Rio de Janeiro um índice menor do que a metade do que a
média do sistema prisional brasileiro. O fato do Rio de Janeiro sediar grandes
eventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas, com inúmeras obras
públicas que poderiam aproveitar o trabalho prisional, torna ainda mais abjeta tal
marca negativa. Segundo dados do DEPEN, apenas dois estados da federação
635 Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena. § 1º, II - 1 (um) dia de pena a cada 3 (três) dias de trabalho. 636 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2013. 637 Vale ressaltar que os dados sobre atividades laborativas no sistema prisional do Rio de Janeiro não constam no levantamento realizado pelo DEPEN, pois a SEAP não forneceu tais informações. Ministério da Justiça/DEPEN, Levantamento de Informações Penitenciárias 2014.
212
possuem percentual menor do que o Rio de Janeiro no que se refere à população
carcerária em atividades de trabalho, Rio Grande do Norte e Sergipe, ambos com
apenas 3% dos presos trabalhando638.
Necessário se faz ainda analisar que tipo de trabalho é oferecido aos
internos. Dentre os relatórios de 29 unidades prisionais analisadas nesta pesquisa,
apenas em 11, foi possível identificar apontaram que há atividade laborativa
diversa da função denominada de “faxina” ou “colaborador”, ou seja, auxiliar de
limpeza e serviços gerais no estabelecimento prisional. Revela, portanto, que na
ampla maioria dos casos, em 77% das unidades, o trabalho prisional não se
coaduna com os ideais de “ressocialização” apregoados pela LEP.
No que se refere ao exercício ao direito ao trabalho dos apenados, as
Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Prisioneiros639 dispõem
que este trabalho não deve ser penoso e será de “natureza que mantenha ou
aumente as capacidades dos presos para ganharem honestamente a vida depois de
libertados”, em conformidade com suas aptidões físicas e mentais, não parece ser
o caso verificado nas funções de “faxina”.
Ademais inúmeras denúncias revelam irregularidades no exercício de
atividades laborativas no cárcere:
Na prática, todavia, a situação é diferente. Muitos presos que trabalham no interior das unidades não recebem salário ou não recebem o valor adequado pelo trabalho realizado, havendo desrespeito ao disposto no art. 29, da LEP, que determinado o valor mínimo a ser recebido. (...) Outra questão no tocante a remuneração, observada durante as visitas, é que só é permitido ingressar na unidade prisional com o valor correspondente a 10% (dez por cento) do salário mínimo. (...)muitos apenados não conseguem depositar o dinheiro no banco ou só podem entregar o valor para a família nos dias de visita. Então, o dinheiro fica retido na unidade e o interno ainda pode receber uma falta grave por ser flagrado portando quantia em dinheiro acima do permitido640.
No sistema penitenciário fluminense, o trabalho remunerado dos apenados
é gerenciado pela Fundação Santa Cabrini. Segundo informa o MEPCT/RJ, “há
uma constante reclamação quanto ao atraso no pagamento realizado pelo referido
órgão, alguns relatando a espera de meses”.
638 Não há registros sobre o estado de São Paulo. Ibid. 639 Disponível: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm. Acessado em: 04/05/2015. 640 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2012.
213
Também se verifica como obstáculo à obtenção do trabalho prisional o
impedimento para obtenção do título de eleitor para o apenado. A ausência do
título, por sua vez, impede a regularização da carteira de trabalho do condenado, o
que representa um verdadeiro entrave à suposta tentativa de restabelecer seu
convívio social641.
Outra problemática relativa ao trabalho reside na controvérsia sobre
autorização de trabalho externo no regime semiaberto. No Rio, como na maioria
dos estados do Brasil, em geral os tribunais tem se apegado à exigência de
cumprimento de mais um sexto da pena a cumprir, presente no artigo art. 123 da
LEP642. Todavia, conforme explicam Massimo Pavarini e André Giamberardino,
“apesar de existiram posições contrárias na jurisprudência, o entendimento
predominante já pacificado no STJ é pela não exigibilidade do requisito objetivo
para o preso que inicia o cumprimento de pena no regime semiaberto.”643
Visando melhorar esse quadro, o CNJ criou, em 2009, o Programa
Começar de Novo, que busca ‘promover a cidadania e reduzir a reincidência
criminal por meio de oferta de cursos de capacitação e de empregos para presos e
egressos do sistema carcerário’644, porém ainda oferece resultados pouco
expressivos.
4.3.6.2 Atividades Educacionais
O direito humano à educação é salvaguardado aos presos em dispositivos
jurídicos nacionais e internacionais, como nas Regras Mínimas para o Tratamento
641 O entendimento dos tribunais eleitorais é de que uma que o condenado tem seus direitos políticos suspensos só poderia obtê-lo após cumprimento integral da pena. Audiência Pública sobre Porta de Saída do Sistema Penitenciário realizada pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro em 29 de novembro de 2013. Disponível em: http://www.alerj.rj.gov.br/. Acessado em: 05/07/2015. 642 Art. 123. A autorização será concedida por ato motivado do Juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a administração penitenciária e dependerá da satisfação dos seguintes requisitos: I - comportamento adequado; II - cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena, se o condenado for primário, e 1/4 (um quarto), se reincidente; III - compatibilidade do benefício com os objetivos da pena. 643 PAVARINI, M.; GIAMBERARDINO, A., Teoria da Pena e Execução Penal: Uma Introdução Crítica, p. 255. 644 Os dados relativos a cursos de capacitação e a empregos ficam disponíveis no Portal de Oportunidades do CNJ online. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/comecardenovo/index.wsp. Acessado em 04/06/2015.
214
de Reclusos 645. No Brasil, a LEP prevê o direito à assistência educacional, em seu
artigo 41, VII. Ademais, o Conselho Nacional de Políticas Criminal e
Penitenciária (CNPCP), adaptou e aplicou parâmetros internacionais para esta
temática, através da Resolução 14, de 11 de novembro de 1994.
Em 2010, a proposta de Diretrizes Nacionais para Educação no Sistema
Prisional foi aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE)646, que, dentre
outras medidas, define atribuições do Ministério da Educação e da Justiça no
financiamento para os estados que apresentarem seus planos de educação no
sistema prisional647. Vale observar em que medida se garante o direito à educação
no sistema prisional fluminense.
Figura 15: Presos em Atividades Educacionais (RJ - 2004/2014)
Fonte: SEAP-RJ
Segundo se pode inferir da evolução do percentual de presos em atividades
educacionais no Rio de Janeiro, entre 2004 e 2014, os índices alcançados são
invariavelmente muito baixos, não tendo sequer superado a marca de 5%. No ano
645 Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos de 1955. Regra 77. 1) Devem ser tomadas medidas no sentido de melhorar a educação de todos os reclusos que daí tirem proveito, incluindo instrução religiosa nos países em que tal for possível. A educação de analfabetos e jovens reclusos será obrigatória, prestando-lhe a administração especial atenção. 2) Tanto quanto for possível, a educação dos reclusos deve estar integrada no sistema educacional do país, para que depois da sua libertação possam continuar, sem dificuldades, a sua educação. 646 Tais diretrizes foram elaboradas por participantes do Seminário Nacional pela Educação nas Prisões, realizado em Brasília em 2006, e apresenta parâmetros nacionais com relação a três grandes eixos: (1) gestão, articulação e mobilização; (2) formação e valorização dos profissionais envolvidos na oferta; (3) aspectos pedagógicos. Conselho Nacional de Educação, Resolução nº 2, de 19 de Maio de 2010. 647 No âmbito do MEC as demandas deverão ser veiculadas pelo Plano de Ações Articuladas – instituído através do Decreto Nº 6.094 da Casa Civil da presidência da república, em 2007. Promulga-se, neste documento, o “Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, pela União Federal, em regime de colaboração com Municípios, Distrito Federal e Estados, e a participação das famílias e da comunidade, mediante programas e ações de assistência técnica e financeira, visando a mobilização social pela melhoria da qualidade da educação básica.”
215
de 2014 a percentagem é 4,28%, ao passo que o índice relativo ao sistema
prisional brasileiro como um todo neste ano é de 10,7%.
No Rio de Janeiro, apesar do sistema prisional oferecer educação através
de convênio com a Secretaria de Educação desde 1967648, só seria criada, em
2008, no âmbito da Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC) uma
Coordenadoria Especial de Unidades Escolares Prisionais e Socioeducativas
(COESP), atualmente Diretoria Especial de Unidades Escolares Prisionais e
Socioeducativas (DIESP) para atuar em educação nos espaços de privação de
liberdade. No ano de 2007 havia 11 escolas prisionais, número que se eleva para
19 em 2014.
A administração penitenciária estadual também faz uso do Programa Brasil
Alfabetizado649, idealizado através das ações do Ministério da Educação, voltado
à alfabetização de jovens, adultos e idosos. Segundo dados da SEAP, no ano de
2013 havia 780 presos matriculados no estado.
Conforme aponta o MEPCT/RJ: “Em conversa com profissionais da área,
foi relatada uma grande dificuldade no trabalho dos mesmos por estarem na
interseção entre a lógica da educação e a lógica da segurança, tão claramente
adotada pela SEAP.”
No que tange à temática da tortura, a Convenção das Nações Unidas contra
a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes,
entende que os profissionais da educação, assim como os demais integrantes do
corpo técnico dos estabelecimentos prisionais, podem cumprir papel primordial no
enfrentamento a tal prática. Em seu artigo 10, a Convenção ainda obriga os
Estados partes à:
1. Cada Estado Parte assegurará que a educação e a informação relativas à proibição da tortura sejam integralmente incorporadas no treinamento do pessoal civil ou militar responsável pela aplicação da lei, do pessoal médico, dos funcionários públicos e de outras pessoas que possam participar da detenção,
648 Dados do Plano Estadual de Educação Disponível em: http://www.conexaoprofessor.rj.gov.br/downloads/PEE1.pdf. Acessado em: 04/05/2015. 649 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?Itemid=86&id=12280&option=com_content. Acessado em: 04/05/2015.
216
interrogatório ou tratamento de qualquer pessoa submetida a qualquer forma de detenção ou prisão” (artigo 10)650.
Cabe ainda mencionar importante avanço em relação à educação prisional,
com a alteração da LEP, estendendo a garantia de remição de pena para o estudo,
através da Lei Nº 12.433 de 2011651, dando nova redação ao artigo 126, que
anteriormente previa somente a remição pelo trabalho.
Uma vez que a falta de oferta de vagas para atividades laborativas e
educacionais é um problema crônico no sistema penitenciário brasileiro, tem-se
observado iniciativas no sentido de possibilitar a remição pela leitura652, pelo
esporte653 e até mesmo pela arte654. Vários estados brasileiros já implementam
programas com as modalidades de remição pela leitura e pelo esporte655,
entretanto, não foi identificado nenhum caso no Rio de Janeiro.
4.3.6.3 Banho de sol e outras Atividades
Com relação à assistência religiosa, verifica-se que é assegurada sem
registros de problemas. De modo geral, é concedida pela igreja católica e por
diversas vertentes evangélicas, além de, em casos mais raros, grupos espíritas.
Por outro lado, é quase inexistente a oferta de oportunidades aos presos em
atividades artísticas, desportivas e culturais, preceituadas no art. 41, inc. VI, da
650Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/tortura/convencao_onu.pdf. Acessado em: 04/05/2015. 651 A nova lei confere a seguinte redação: Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena. § 1o. I - 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequência escolar - atividade de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional - divididas, no mínimo, em 3 (três) dias. 652 A Recomendação n. 44/2013 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) propõe a instituição, nos presídios estaduais e federais, de projetos específicos de incentivo à remição pela leitura. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/79760-remicao-pela-leitura-ja-e-realidade-em-diversos-presidios-brasileiros. Acessado em: 07/07/2015. 653 Tramita no Congresso Nacional Projeto de Lei nº 5516/13 que visa instituir a remição pelo esporte. 654 Há jurisprudência no sentido de interpretação extensiva ou analógica da remição penal. Vide: TJ/PR, RA1064168-2 de 2013 (5ª Câmara Criminal) e STJ, HC 30.632/SP de 2004 (5ª Turma). 655 No ano de 2014, destacam-se, em relação à remição pela leitura, os estados do Paraná, 1782 presos, e Pernambuco, com 1551, no que se refere à remição pelo esporte, Mato Grosso do Suç, com 35 presos e Sergipe, com 90. Ministério da Justiça/DEPEN, Relatório de Informações Penitenciárias 2014.
217
LEP, e no Princípio XIII dos Princípios e Boas Práticas sobre a Proteção das
Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas.
O confinamento carcerário também viola o direito ao banho de sol, que
segundo a LEP deveria ser assegurado 2 horas por dia (art. 52, inc. IV), assim
como estabelecem as Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos (Regra 21).
A este respeito, o Subcomitê da ONU para a Prevenção à Tortura aponta que:
recebeu relatos de acesso insuficiente ao mínimo de uma hora diária de exercício, em conformidade com os padrões internacionais. As precárias condições materiais nas instalações do Ary Franco são acentuadas pelo fato de os detentos serem trancados em suas celas superlotadas, sem devida ventilação ou iluminação natural, continuamente por até duas ou três semanas (somente dez prisioneiros de cada cela tinham acesso ao rodízio de uma hora de banho de sol por semana)656.
No mesmo sentido, em relatório sobre a Cadeia Pública José Frederico
Marques, o MEPCT/RJ alerta que: “há casos de detidos há 17 dias, sem nunca sair
da cela. Todos relatam a tortura psicológica que é ficar confinado em um espaço
tão pequeno por tanto tempo”657.
4.3.7 Castigos e Violência no Cárcere 4.3.7.1 Sanções Disciplinares
A LEP determina em seu artigo 39, inciso VI, como um dos deveres do
preso, a submissão à sanção disciplinar. O artigo 45 garante que a aplicação da
sanção não violará a integridade física ou psíquica do preso e presa, cabendo
ressaltar o § 3º que determina que estão terminantemente proibidas as sanções
coletivas658. Ainda neste sentido, os Princípios e Boas Práticas para a Proteção das
Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas, Princípio XXII, inciso I,
acrescentam que “não poderão infringir as normas do Direito Internacional dos
Direitos Humanos”.
656 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de visita ao Brasil – 2011. 657 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Ofício 25/2015. 658 “Art. 45. Não haverá falta nem sanção disciplinar sem expressa e anterior previsão legal ou regulamentar. § 1º As sanções não poderão colocar em perigo a integridade física e moral do condenado. § 2º É vedado o emprego de cela escura. § 3º São vedadas as sanções coletivas”.
218
Em seu artigo 53, trata das sanções aplicadas às faltas disciplinares659, sendo
elas: “I - advertência verbal; II - repreensão; III - suspensão ou restrição de
direitos; IV - isolamento na própria cela, ou em local adequado (...); V - inclusão
no regime disciplinar diferenciado.”
Segundo relata o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura,
nas visitas às unidades prisionais é possível constatar que muitos desses
dispositivos são desrespeitados pela administração penitenciária, verificando que:
A dinâmica de violações de direitos na execução penal acarreta também inúmeras distorções sobre a imposição de procedimentos disciplinares, sendo comum a utilização de sanções arbitrárias, sanções coletivas, sanções informais e ilegais, bem como sanções incompatíveis com o princípio da dignidade humana660.
O viés arbitrário das sanções é percebido no elevado grau de decisionismo
presente na imposição dos castigos disciplinares, inclusive respaldado pelo artigo
54 da LEP, uma vez que dispõe que estes serão aplicados “por ato motivado do
diretor do estabelecimento”. Trata-se de verdadeiro atentado ao princípio da
proporcionalidade, bem como aos postulados processuais do devido processo
legal, ampla defesa e segurança jurídica. Tal reclamação é ainda mais frequente
em alguns estabelecimentos prisionais considerados “unidades de castigo”, como
é o caso da Penitenciária Laércio da Costa Pelegrino (Bangu 1), Cadeia Pública
Bandeira Stampa (Bangu 9), Serrano Neves (Bangu 3a) e Gabriel Castilho (Bangu
3b)661.
Segundo informado pela maioria das direções de unidades, boa parte das
sanções disciplinares decorrem de condutas como riscar a parede, desrespeitar
funcionário público, não cumprir os horários estabelecidos. Muitos internos
sequer sabem o porquê de estar cumprindo parte disciplinar. Inúmeras são as
alegações de imposição de sanção disciplinar por motivos banais e obscuros.
Apesar das diversas modalidades de sanção previstas na LEP, os internos relatam
659 O artigo 50 da LEP enumera de forma taxativa as faltas consideradas graves pelo legislador, tais como: incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina; fugir; descumprir, no regime aberto, as condições impostas; dentre outras. 660 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2014. 661 Ver mais informações em: Id., Relatório de Visita à Penitenciária Laércio da Costa Pellegrino. Ofício MEPCT/RJ nº 116/2014; e Id., Relatório de Visita à Cadeia Pública Bandeira Stampa. Ofício MEPCT/RJ nº 0062/2014.
219
que na maioria dos casos aplica-se o isolamento celular662. O mesmo
entendimento é esposado pelo SPT, a partir de sua visita ao país:
Durante suas visitas, o SPT se deparou com muitos prisioneiros que eram detidos em celas de isolamento disciplinar. A partir das entrevistas com esses detentos, ficou claro que a punição era frequentemente aplicada como reação às reclamações, de modo regular. Também ficou evidente que os detentos não confiavam em nenhum mecanismo de queixa disponível. De acordo com alegações de detentos no presídio Nelson Hungria, os prisioneiros mantidos em segregação disciplinar eram confinados 24 horas por dia, por trás de uma porta dupla de metal. As sete celas de punição, nesse presídio, eram frequentemente inundadas pela água da chuva663.
Outra grave forma de tratamentos cruéis, desumanos e degradantes é o uso
das sanções coletivas. A superlotação prisional é um elemento que contribui
diretamente para a imposição de castigos coletivos como forma de conter e
disciplinar o efetivo carcerário. O MEPCT/RJ relata que em várias oportunidades
os presos relatam casos nos quais uma galeria inteira havia ficado semanas sem
visita dos familiares ou sem banho de sol por determinação da Direção em
represália a ato indisciplinar cometido por um interno ou por um grupo de
presos664.
Por fim, verifica-se o apogeu do retribucionismo penitenciário na figura do
Regime Disciplinar Diferenciado, incorporado na LEP, em seu art. 52, através da
Lei nº 10.792/2003. No Rio de Janeiro esta modalidade de sanção é
implementada, sobretudo, na Penitenciária Laércio da Costa Pelegrino (Bangu
1)665. Conforme aponta o MEPCT/RJ:
São notórios os danos à saúde mental do interno submetido às privações no que se refere a atividades laborativas e educacionais, bem como as restrições no que tange à assistência familiar ao longo do cumprimento de tal sanção. O preso em cumprimento de regime disciplinar diferenciado não pode ter contato físico com os visitantes, apenas comunica-se através do parlatório. Ademais, constatou-se que não é possível entrar livro na unidade que não seja da biblioteca666.
662 No tocante à sanção disciplinar de isolamento, em geral, as condições de tais espaços são altamente precárias, muitas vezes sem iluminação, colchão ou roupa de cama. Os presos custodiados no isolamento não possuem direito a banho de sol, tampouco a visita. Em geral, a galeria do isolamento não possui exposição à luz solar. Id., Relatório anual 2012. 663 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de visita ao Brasil – 2011. 664 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2014. 665 Ver mais informações sobre a unidade em: Id., Relatório de Visita à Penitenciária Laércio da Costa Pellegrino. Ofício nº 0116/2014 MECPT/RJ. 666 Id., Relatório anual 2014.
220
Por tais motivos, parte significativa da comunidade jurídica entende que
este espécie de sanção é inconstitucional667. Desta maneira, ao analisar a prática
das sanções disciplinares, verifica-se que se por um lado busca-se impor no
cárcere um controle disciplinar, por outro observamos uma lógica de desarrazoada
restrição aos direitos do preso, fato que põe em xeque a finalidade de reinserção
social da execução penal, preconizada pela LEP em seu art. 1º.
Se o processo penal é caracterizado pelo arbítrio, a execução penal é ainda
mais sujeita ao autoritarismo. Por sua vez, a sanção disciplinar pressupõe o auge
do exercício do poder disciplinar sem limites claros, sem respeito aos anteparos
mais elementares ao Estado Democrático de Direito.
4.3.7.2 Tortura e Maus Tratos
A realidade carcerária, além das inúmeras formas de violações de direitos
anteriormente mencionadas, é permeada por situações que remetem à condição de
tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.
Verificam-se consistentes relatos de agressões físicas e verbais por parte de
agentes penitenciários.
Na publicação “Monitoramento de locais de detenção: um guia prático” a
Associação para Prevenção à Tortura, discorrendo sobre as diferentes práticas de
tortura físicas e psicológicas afirma:
As equipes de visita devem saber que há práticas, que podem não cair na definição clássica de tortura, as quais são mais difíceis de detectar, e que podem, a longo prazo, destruir o equilíbrio psicológico de quem está privado de liberdade. Estas são muito perigosas, já que com frequência os detentos vítimas dessas práticas estão tão acostumados a esse tratamento que nem sempre estão em posição de identificar e informar sobre as mesmas de forma explícita668.
667 Em 2012, o Instituto dos Advogados Brasileiros aprovou Parecer pela inconstitucionalidade do R.D.D. Cumpre ainda salientar que o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária unanimemente apresentou parecer questionando a constitucionalidade da inclusão do R.D.D no texto da Lei de Execução Penal, especialmente os arts. 52, 53, V, 54, 58 e 60. Na mesma esteira, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, através do processo n° 045/2006 opinou pela inconstitucionalidade desta inovação legislativa. 668“Os seguintes são exemplos dessas práticas: ignorar sistematicamente uma solicitação até que ela se repita várias vezes; dirigir-se às pessoas privadas de liberdade como se fossem crianças pequenas; nunca olhar nos olhos; (...) criar um clima de desconfiança entre os detentos; permitir o descumprimento dos regimentos uma vez e castigar caso não se cumpra em outra oportunidade”.
221
Tortura, violação de direitos, corrupção e tráfico de favores são algumas
das práticas que compõem a rotina do sistema penitenciário do Rio de Janeiro. Em
74% das unidades prisionais analisadas nesta pesquisa houve denúncias expressas
de torturas e outros maus tratos. Justamente o conjunto de instituições cuja razão
de ser é aplicar as sanções previstas por lei sobre aqueles que a violaram tem sua
dinâmica pautada por desrespeitos recorrentes dos preceitos legais669. Segundo
aponta o SPT:
126. Vários detentos se queixaram de abusos e maus-tratos envolvendo insultos, sanções arbitrárias e humilhação por parte dos guardas das prisões. Em Ary Franco, o SPT observou que a atmosfera geral era altamente repressiva e caracterizada pelo contínuo tratamento degradante dos internos. O SPT recebeu relatos consistentes de maus-tratos, incluindo a destruição de pertences pelos agentes penitenciários ou pelos “faxinas”. Os internos eram forçados a adotar posições humilhantes durante transferências ou inspeções. Por fim, o SPT também recebeu alegações de espancamentos670.
Em relatório de fiscalização à Cadeia Pública José Frederico Marques, o
MEPCT/RJ aponta que foram uníssonos os relatos de agressões físicas e
verbais sem motivo aparente na unidade, cuja “recepção é extremamente
violenta com demonstrações abusivas de poder e uso da força por meio de
“esculachos” como gritos de “quem manda na cadeia somos nós” e agressões
como tapas no rosto, nas costas, bem como chutes”. Aponta ainda que:
A porta de entrada do sistema penitenciário do Rio de Janeiro tornou-se uma espécie de rito de passagem onde sanções informais e violência institucional tornam-se regra com o objetivo de “docilizar” os indivíduos recém-ingressos no cárcere. O vasto conjunto de relatos de violência física e ameaças dão conta de uma realidade onde o princípio da dignidade humana, insculpido no art. 1º, III da Constituição Federal, é cotidianamente aviltado671.
Foi relatado ainda o uso corriqueiro e desnecessário de spray de pimenta
como forma de intimidação pelos agentes. Os xingamentos também são Associação para a Prevenção à Tortura, Monitoramento de locais de detenção: um guia prático, p. 103-104. 669 CANO, I., SENTO SÈ, J. T., FREIXO, M., As Condições de Encarceramento no Rio de Janeiro. 670 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de visita ao Brasil – 2011. 671 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório de visita à Cadeia Pública José Frederico Marques. Ofício nº 19/2015 MEPCT/RJ.
222
constantes: “Aqui não é a casa de vocês”, “Não tem direitos humanos!” Alguns
presos mostraram a equipe visitante hematomas e marcas de ferimento por
agressões sofridas672.
Outra situação emblemática consiste na utilização irregular de armas de
fogo pelos agentes penitenciários. Em visita ao Instituto Penal Plácido de Sá
Carvalho, foi relatado pelos apenados que tiros são disparados a esmo como
forma de intimidação673.
Entretanto, a mais frequente forma de violência institucional apontada no
cárcere reside no reiterado uso indiscriminado da força por parte do Serviço de
Operações Especiais (SOE)674, especialmente no translado para outras unidades,
para diligências externas ou para realização de atendimento médico externo. Os
presos relatam que são algemados de maneira extremamente penosa e amontoados
aos montes em viaturas pequenas, chegando a alocar vinte pessoas em viaturas
com capacidade para o transporte apenas quatro. Conforme aponta o MEPCT/RJ,
os internos denunciam que o SOE “esculacha muito” e que enquanto praticam
sessões de espancamento afirmam que “quebram e o médico conserta”675.
Tal uso sistemático da violência institucional serve como sanção informal,
ou mesmo, como medida preventiva para obtenção de obediência. Segundo aponta
o SPT:
Os métodos utilizados pelo pessoal do SOE, segundo estas alegações, incluíam trancar um grande número de detentos em posições desconfortáveis, algemados e sem ventilação; abrir as portas para espirrar spray de pimenta nos detentos e depois fechar o veículo. Espancamentos, insultos e ameaças também foram relatados676.
672 Ibid. 673 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório de visita ao Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho. Ofício nº 06/2014 MEPCT/RJ. 674 O Departamento do Serviço de Operações Especiais - SOE, pertencente à Coordenação de Segurança que está ligada à Subsecretaria Adjunta de Gestão Operacional, e possui dois grupamentos Especiais: o Grupamento de Intervenção Tática – GIT – criado em 21 de junho de 2004, cuja base é localizada no Complexo Penitenciário de Gericinó (Bangu) e tem por finalidade intervir em motins e rebeliões instauradas nas penitenciárias, presídios e casas de custódia em todo o estado do Rio de Janeiro; o Grupamento de Serviço de Escolta – GSE – que tem como atribuições: apresentação de apenados aos Juízos Criminais das diversas comarcas do Rio de Janeiro, apresentação de presos em hospitais do Sistema e na rede pública, elaborar minuciosamente os trajetos a serem percorridos pelas equipes de escolta, auxiliar o GIT em situações de rebeliões, fugas, motins, etc. Ministério da Justiça, Plano Diretor do Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro. 675 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2014. 676 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de visita ao Brasil – 2011.
223
O uso indiscriminado da força contribui para uma cultura de autoritarismo,
medo, torturas, não responsabilização dos agressores e aniquilação da
subjetividade das pessoas privadas de liberdade. Não obstante isso, o Princípio
XXIII, dos Princípios e Boas práticas para a Proteção das Pessoas Privadas de
Liberdade nas Américas estabelece que:
o pessoal dos locais de privação de liberdade não empregará a força e outros meios coercitivos, salvo excepcionalmente, de maneira proporcional, em casos de gravidade, urgência e necessidade, como último recurso depois de terem sido esgotadas previamente as demais vias disponíveis, e pelo tempo e na medida indispensáveis para garantir a segurança, a ordem interna, a proteção dos direitos fundamentais da população privada de liberdade, do pessoal ou das visitas”.
Desta maneira, percebe-se uma sistemática realidade de violência
institucional, na forma de tortura e outros maus tratos, perpetrada por agentes
públicos contra pessoas as pessoas privadas de liberdade, gerando condições de
detenção absolutamente incompatíveis com o Estado Democrático de Direito.
Nesta travessia pelo arquipélago carcerário do Rio de Janeiro, verificamos
que desde os primeiros estabelecimentos prisionais instalados ainda no período
colonial, a realidade de superlotação, violência e precariedade estrutural se faz
constante. A perda do status de capital da república trouxe consequências
profundas para o sistema penitenciário, agravando as condições de detenção.
Em meados da década de 1990, o Rio de Janeiro passou a se apresentar
como laboratório das políticas criminais neoliberais. Especialmente a partir de
2007, com sua definição enquanto sede dos Jogos Pan-americanos, e,
posteriormente, da Copa do Mundo de 2014, e dos Jogos Olímpicos de 2016, o
estado do Rio de Janeiro implementou um programa criminalizante repressivista,
no ensejo de assegurar ares de ‘cidade segura’ para tais megaeventos.
Percebe-se o acentuado crescimento da população prisional, tanto no
Brasil como no Rio de Janeiro. Especialmente no período entre 2011 e 2014, o
efetivo carcerário fluminense cresce 56%, mais do que o dobro do crescimento da
população prisional nacional no período677. Uma vez que o crescimento da
677 Ministério da Justiça/DEPEN. Levantamento de Informações Penitenciárias 2014.
224
população prisional brasileira só perde para a Indonésia, entre 1995 e 2014678,
pode-se concluir que o Rio de Janeiro é uma das regiões do planeta com maior
velocidade de encarceramento na atualidade. A comparação com Nova Iorque,
considerada o laboratório do Leviatã neoliberal estadunidense, revela que a
população prisional nova-iorquina vem diminuindo progressivamente desde 2006
com uma redução de cerca de 11 mil presos até 2014, ao passo que a do Rio de
Janeiro, vem apresentando crescimento exponencial, resultando num acréscimo de
cerca de 18 mil encarcerados no período.
Este grande encarceramento em curso no Rio de Janeiro caracteriza-se por
uma brutal seletividade punitiva. Os indicadores sobre o perfil do preso
demonstram, no Rio de Janeiro assim como em todo o país, que os alvos
preferenciais da prisão são jovens (58%), negros (72%), do sexo masculino
(95%), de baixíssima escolaridade (57% sequer ensino fundamental completo),
em sua maioria acusados de tráfico de substâncias ilícitas ou crimes patrimoniais
(62%). Ressalta-se ainda, uma tendência de ligeiro aumento do nível de
escolaridade, e de incremento da segregação de jovens e negros.
Ademais, observa-se que o panorama das unidades prisionais do Rio de
Janeiro evidencia uma estrutural realidade de superlotação e violações de direitos
das pessoas privadas de liberdade, configurando penas draconianas, claramente
vedadas pela Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura e outros
Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.
Nesta perspectiva, não importam as funções positivas da pena, apenas o
poder disciplinar voltado à produção da obediência. Segurança e disciplina
passam a ser os postulados-chave do sistema penitenciário, de modo que os
direitos fundamentais inerentes à pessoa privada de liberdade, como a saúde, o
trabalho, a educação, a assistência jurídica e familiar, são aviltados
cotidianamente.
Deste modo, estas mazelas redundam no índice de reincidência da ordem
de cerca de 70%, que apenas reafirma o potencial criminógeno do cárcere. Única
função que lhe resta é, pois, a função retributiva. Assim, o sistema penitenciário
678 Ibid.
225
fica adstrito a uma perspectiva vindicativa, como locus expiatório da culpa dos
desviantes afastados do convívio social.
O cenário calamitoso que se ergue demonstra que o projeto moderno de prisão
que teria como finalidade a correção do preso, como apontou Foucault, naufragou
completamente. Neste sentido, é necessário refletir pormenorizadamente acerca da
realidade prisional na periferia do capitalismo, como se verifica no Rio de Janeiro,
indagando em que medida pode-se apontar que o sistema prisional assume nesta
região marginal um quadro sistêmico de tortura, dando ensejo ao delineamento de
um novo modelo penitenciário, e de novas funções penalógicas na Era do Grande
Encarceramento.
5 Tortura e Sistema Penitenciário: o Cárcere como Exceção Permanente
No momento, esposo o ponto de vista de que a questão penitenciária não tem solução “em si”, porque não se trata de um problema “em si”, mas parte integrante de outro maior: a questão criminal, com referência ao qual não desfruta de qualquer autonomia. A seu turno, a questão criminal também nada mais é que mero elemento de outro problema mais amplo: o das estruturas sócio-político-econômicas. Sem mexer nestas, coisa alguma vai alterar-se em sede criminal e, menos ainda, na área penitenciária. (Augusto Thompson)679
A tortura é uma das principais violências perpetradas contra o ser humano.
Sua prática pressupõe a inflição de profunda dor física e psicológica, com o
objetivo de promover a neutralização e aniquilamento do outro. Ao longo dos
tempos, a tortura tem sido utilizada como uma técnica de poder marcante na
história da humanidade e permeia a trajetória da sociedade brasileira.
Segundo aponta a filósofa Marilena Chauí, “o autoritarismo é estrutural, isto
é, o modo de ser e de se organizar da própria sociedade brasileira”680. O
autoritarismo se expressa desde os quatro séculos de escravidão das populações
indígenas e africanas, passando pelas ditaduras do século XX, até alcançar suas
permanências no atual contexto “democrático”, distinguindo claramente, como
observa Paulo Arantes, as “classes confortáveis” das “classes torturáveis”681.
Esta violência institucional, verificada como longa permanência
autoritária, se expressa de modo contundente nos cárceres. Analisando a tortura na
Península Ibérica no sistema penal do Antigo Regime, Ana Lucia Sabadell verifica
três peculiaridades: seu caráter legal, seu caráter investigatório e como forma de
679 THOMPSON, A., A Questão Penitenciária, p. 110. 680 CHAUÍ, M., Democracia e autoritarismo: o mito da não violência, p.135. 681 O autor observa como alvos preferenciais da tortura na história brasileira, os indígenas, negros e pobres. " Às classes confortáveis do núcleo orgânico correspondiam, como um complemento exato, as classes torturáveis nas zonas periféricas do sistema. Em tempo: na literatura especializada, e chocada, com esse paradoxo brasileiro que vem a ser a explosão exponencial da violência à medida que se consolida a “democratização” da sociedade observa-se que as classes torturáveis são compostas especificamente por presos comuns, pobres e negros, torturáveis obviamente nas delegacias de polícia e prisões, rotina invisível que o escândalo da ditadura militar recalcou ainda mais, por ser inadmissível torturar brancos de classe média”. ARANTES, P., Extinção, p.163.
227
pressão682. Em sua visão, a tortura seria um meio para obtenção da confissão,
diante da equiparação do crime ao pecado, de tal sorte que a tortura não era
concebida como um ato de barbárie.
No mesmo sentido, Gizelene Neder identifica “a tendência exterminadora
deste sistema penal que vige poderoso no mundo ibero-americano, através da
autorização do emprego da tortura, cuja base no mundo da cristandade ocidental,
latina”683.
Este ranço autoritário guarda relações com as matrizes ibéricas de nosso
direito criminal como apontado por Nilo Batista. Em sua busca, o autor aponta
que encontrou:
Sistemas penais dirigidos contra os servos, os judeus, os hereges (todos, com sobrevivência colonial), tanto quanto, no processo de nossa formação nacional, os tivemos também contra os índios, os negros, os trabalhadores, as prostitutas, e recentemente contra aquelas multidões que não encontraram lugar vago à mesa do seleto banquete neoliberal. (...) Saber o quanto dessas matrizes ibéricas está viva no limiar do século XXI é condição impostergável de qualquer projeto que pretenda conhecer e transformar o sistema penal brasileiro684.
As palavras de Batista revelam a imprescindibilidade de revisitar as
agruras do vetusto sistema penal ibérico para refletir criticamente sobre o
presente. Partindo desta historicidade, pretendemos examinar a longa permanência
da tortura como método de imposição de sofrimento no sistema penal, analisando
sua perpetração nos cárceres contemporâneos.
A tortura e os tratamentos degradantes na execução da pena constituem
uma das principais formas de violência institucional, utilizada muitas vezes como
imposição de dominação e controle de certos grupos sociais. Como salienta Johan
Galtung, de modo geral a violência institucional dirige-se à:
(...) desumanização do outro, fazendo parecer de algum modo ‘menor’, ‘sem valor’, e atribuindo-lhe características inteiramente negativas e más são também componentes de violência cultural. Racismo, xenofobia, e as culturas do
682 SABADELL, A. L., Tormenta juris permissione: Tortura e Processo Penal na Península Ibérica (séculos XVI – XVIII). 683 NEDER, G., Iluminismo Jurídico-Penal Luso-Brasileiro: obediência e submissão. 684 BATISTA, N., Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro I, p. 23-26.
228
imperialismo, patriarcalismo e neoliberalismo são todas expressão da mesma (tradução nossa)685.
No capítulo anterior pudemos verificar as mazelas do sistema prisional do
Rio de Janeiro, delineando uma realidade endêmica de superpopulação, absoluta
precariedade material, escassez de atividades laborativas e educacionais ou outras
medidas supostamente afeitas à função “ressocializadora”, proliferação de
doenças e insalubridade, império do arbítrio e distintas formas de maus tratos.
Este conjunto de relatos de condições desumanas e degradantes reforça o
entendimento esposado por Juarez Tavares:
O sistema carcerário nacional, além de não possuir as condições mínimas para a concretização do projeto corretivo previsto nas normas nacionais e internacionais, apresenta uma eficácia invertida, isto é, atua de forma deformadora e estigmatizante sobre o condenado686.
Neste capítulo, buscaremos identificar em que medida a prisão, na Era do
Grande Encarceramento, pode ser apontada enquanto uma sanção aflitiva que
corporifica a tortura de modo sistêmico. Pretende-se verificar a que ponto a
penalidade neoliberal no Rio de Janeiro, como laboratório do Leviatã punitivo na
periferia capitalista, essencialmente traduz-se em tratamentos cruéis, desumanos e
degradantes.
Primeiramente, abordaremos o cânone dos direitos humanos voltado à
tutela das pessoas privadas de liberdade no sistema penitenciário, examinando
tanto os parâmetros protetivos internacionais como nacionais, para por fim,
colocar em questão os descompassos entre o arcabouço protetivo formalmente
previsto aos presos e a realidade operativa do sistema prisional.
No segundo item, nos debruçaremos sobre a tortura perpetrada na pena
privativa de liberdade. Será necessário percorrer a trajetória de enfrentamento à
forma de violência institucional, identificar o conceito de tortura e sua necessária
ampliação no contexto contemporâneo, bem como a percepção de sua prática no
sistema prisional do Rio de Janeiro.
685 GALTUNG, J.; JACOBSEN, C.; BRAND-JACOBSEN, K. F., Searching for peace: the road to transcend, p. 18. 686TAVARES, J., Parecer sobre as Condições do Sistema Prisional Brasileiro.
229
Por fim, no terceiro item, analisaremos a prisão à luz de categorias
trabalhadas por Giorgio Agamben, nos marcos da exceção permanente,
verificando a pertinência da categoria campo para pensar a prisão, e o preso
associado à figura do homo sacer. Ademais, no bojo da prisão como manifestação
da exceção permanente, serão identificados tanto o modelo penitenciário como as
funções assumidas pela pena de prisão no contexto do grande encarceramento.
5.1 Direitos Humanos e Sistema Penitenciário
O Brasil é reconhecido por um grande paradoxo nas relações
internacionais. Ao mesmo tempo em que se apresenta como um país com sólidas
posições favoráveis aos direitos humanos em sua atuação junto aos organismos
internacionais687, todavia, concretamente convive, no plano interno, com uma
realidade de sistemáticas violações aos direitos e garantias dispostos nos marcos
protetivos nacionais e internacionais, especialmente no que se refere à população
prisional.
O sistema internacional de proteção aos direitos humanos foi oficialmente
incorporado pelo Brasil a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988.
Inicia-se, portanto, a remoção do entulho autoritário, que ao longo dos anos de
chumbo se valia flagrantemente da tortura e da execução sumária como políticas
de estado - sustentáculo político-criminal da ditadura civil-militar de 1964.
5.1.1 Parâmetros Protetivos Internacionais 5.1.1.1 Instrumentos Universais O Brasil é signatário de diversas Convenções e Tratados Internacionais que
visam prevenir atos de tortura e práticas de tratamento cruel, desumano ou
687 Após passar a integrar o Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 2009, o Brasil foi um dos primeiros países a ser considerado pelo novo mecanismo de Revisão Periódica Universal. Nesse exercício, foi elogiado pelos Estados por sua disposição para o diálogo e pelo reconhecimento dos desafios que ainda enfrenta. Recebeu 15 recomendações e se comprometeu voluntariamente a criar um sistema nacional de indicadores de direitos humanos e a elaborar relatórios anuais sobre a situação de direitos humanos no país. Conselho de Direitos Humanos, A/HRC/DEC/8/109 - Outcome of the universal periodic review: Brazil.
230
degradante688. No que se refere aos instrumentos de abrangência universal, ou
seja, que se aplicam a todos os estados podemos apontar os seguintes:
a) Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. Adotada e proclamada
pela Resolução nº 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas
em 10 de dezembro de 1948. Assinada pelo Brasil na mesma data.
“Artigo V: Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel,
desumano ou degradante.” 689
b) Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP). Aprovado em 16
de dezembro de 1966 e promulgado pelo Brasil pelo Decreto No 592 de 6 de julho
de 1992.
“Art. 7°: Ninguém será submetido a torturas nem a penas ou tratamentos cruéis,
desumanos ou degradantes. Em particular, ninguém será submetido sem seu livre
consentimento a experiências médicas ou científicas.”690
“Artigo 10: Toda pessoa privada de liberdade será tratada humanamente e com o
respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”.
c) Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC).
Aprovado em 16 de dezembro de 1966 e promulgado pelo Brasil pelo Decreto
No 591, de 6 de julho de 1992.
“Art. 2º. Inciso 2: Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a garantir
que os direitos nele enunciados e exercerão em discriminação alguma por motivo
de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem
nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra
situação.”691
688 Sobre o caráter vinculativo e o status supralegal destes instrumentos universais de direitos humanos, ver: PIOVESAN, F., Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 689 Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm. Acessado em: 06/06/2015. 690 Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm. Acessado em: 06/06/2015. 691 Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/pacto_dir_economicos.htm. Acessado em: 06/06/2015.
231
d) Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura e outros Tratamentos ou
Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Aprovada em 10 de dezembro e
ratificada pelo Brasil em 28 de setembro de 1989.
“Art. 2º, inciso 1: Cada Estado Parte tomará medidas eficazes de caráter
legislativo, administrativo, judicial ou de outra natureza, a fim de impedir a
prática de atos de tortura em qualquer território sob sua jurisdição”692.
e) Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da
Criminalidade e de Abuso de Poder. Resolução nº 40/34 da ONU aprovada em
Novembro de 1985.
“1. Afirma a necessidade de adoção, a nível nacional e internacional, de medidas
que visem garantir o reconhecimento universal e eficaz dos direitos das vítimas da
criminalidade e de abuso de poder.”693
f) A Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas Contra os
Desaparecimentos Forçados. Resolução 47/133 de 18 de dezembro de 1992.
“Art. 1º, inciso 2: Todo ato de desaparecimento forçado subtrai a vítima da proteção da lei e causa grandes sofrimentos a ela e a sua família. Constitui uma violação das normas de direito internacional que garantem a todo o ser humano o direito ao reconhecimento da sua personalidade jurídica, o direito à liberdade e à segurança da sua pessoa e o direito de não ser submetido a torturas nem a outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Viola, além disso, o direito à vida, ou o coloca sob grave perigo”694.
g) Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos
ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (OPCAT). Aprovado pela
Resolução nº 57/199 da ONU e promulgado pelo Brasil através do Decreto n°
6.085 de 19 de abril de 2007.
“Art. 3º. Cada Estado Parte deverá criar, designar ou manter, a nível interno, um ou mais organismos de visita para a prevenção da tortura e outras penas ou
692 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0040.htm. Acessado em: 06/06/2015. 693 Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/tortura/Dec_pincipios_basicos.pdf. Acessado em: 06/06/2015. 694 Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-externa/DecProtTodPesDesFor.html. Acessado em: 06/06/2015.
232
tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes (doravante denominado mecanismo nacional de prevenção).”695
5.1.1.2 Instrumentos Regionais
Com relação aos instrumentos protetivos de direitos humanos em âmbito
regional, ou seja, com abrangência aos Estados nacionais das Américas696,
destacam-se:
a) Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa
Rica). Adotada em 22 de novembro de 1969 e ratificado pelo Brasil em 25 de
setembro de 1992.
“Artigo 5º, inc. II: Ninguém será submetido a torturas nem a penas ou tratamentos
cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade tem direito a
que se respeite a dignidade inerente à pessoa humana”697.
b) Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Aprovada em
09 de dezembro de 1985 e ratificada pelo Brasil em 20 de julho de 1989.
“Art. 7º. Os Estados Partes tomarão medidas para que, no treinamento de agentes de polícia e de outros funcionários públicos responsáveis pela custódia de pessoas privadas de liberdade, provisória ou definitivamente, e nos interrogatórios, detenção ou prisões, se ressalte de maneira especial a proibição do emprego da tortura. Os Estados Partes tomarão medidas semelhantes para evitar outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes”698.
c) Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher. Aprovada em 09 de junho de 1994 e ratificada pelo Brasil em
27 de novembro de 1995699.
695 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6085.htm. Acessado em: 06/06/2015. 696 Sobre o caráter vinculativo e o status supralegal destes instrumentos regionais, ver: PIOVESAN, F., op. cit. 697 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm. Acessado em: 06/06/2015. 698 Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/mandato/Basicos/tortura.pdf. Acessado em: 06/06/2015. 699 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/D1973.htm. Acessado em: 06/06/2015.
233
d) Protocolo à Convenção Americana referente à Abolição da Pena de Morte.
Adotado em 8 de junho de 1990 e ratificado pelo Brasil em 13 de agosto de
1996700.
5.1.1.3 Padrões Internacionais Não-vinculantes701
Há outros padrões internacionais não vinculantes que se aplicam aos
direitos e garantias das pessoas privadas de liberdade. Alguns contêm proibições
explícitas à tortura e maus tratos, outros apresentam padrões e medidas que
contribuem para sua prevenção. Destacam-se os seguintes documentos:
a) Convenção Europeia de Direitos Humanos. Aprovada em 04 de novembro de
1950.
“Art. 3º: Ninguém será submetido a tortura nem a tratamentos ou castigos
desumanos ou degradantes.”702
b) Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos. Resolução adotada em 31
de Agosto de 1955.
Regra 31. “As penas corporais, clausura em cela escura, assim como toda sanção
cruel, desumana ou degradante, ficarão completamente proibidas como sanções
disciplinares.”703
c) Conjunto de Princípios Básicos para a Proteção de Todas as Pessoas sob
qualquer Forma de Detenção ou Prisão. Adotados pela Assembleia Geral das
Nações Unidas em sua resolução 43/173em 09 de dezembro de 1988.
Princípio 3: No caso de sujeição de uma pessoa a qualquer forma de detenção ou prisão, nenhuma restrição ou derrogação pode ser admitida aos direitos do homem reconhecidos ou em vigor num Estado ao abrigo de leis, convenções, regulamentos
700 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2754.htm. Acessado em: 06/06/2015. 701 Sobre o caráter não vinculativo de instrumentos internacionais, ver: PIOVESAN, F., op. cit. 702 Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=536&lID=4. Acessado em: 06/06/2015. 703 Disponível em: http://direitoshumanos.gddc.pt/3_6/IIIPAG3_6_12.htm. Acessado em: 06/06/2014.
234
ou costumes, sob o pretexto de que o presente Conjunto de Princípios não reconhece esses direitos ou os reconhece em menor grau704.
d) Princípios Básicos para o Tratamento dos Reclusos. Adotados pela
Assembleia Geral das Nações Unidas em sua Resolução nº 45/111 de 14 de
dezembro de 1990.
“Princípio 1: Todos os reclusos devem ser tratados com o respeito devido à
dignidade e ao valor inerentes ao ser humano.”705
e) Regras Mínimas para a Elaboração de Medidas não Privativas de
Liberdade (Regras de Tóquio). Adotadas pela Assembleia Geral das Nações
Unidas na sua resolução 45/110, de 14 de Dezembro de 1990.
“Regra 1.1. As presentes Regras Mínimas enunciam uma série de princípios
básicos tendo em vista favorecer o recurso a medidas não privativas de liberdade,
assim como garantias mínimas para as pessoas submetidas a medidas substitutivas
da prisão.” 706
f) Os Princípios Relativos a uma Eficaz Prevenção e Investigação das
Execuções Extralegais, Arbitrárias e Sumárias. Aprovados pela Assembleia
Geral das Nações Unidas em 15 de Dezembro de 1989, através da Resolução
44/162707.
g) Protocolo de Istambul: Publicado pelas Nações Unidas em 2001.
Manual para investigação e documentação eficazes da tortura e outras penas ou
tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes708.
h) Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e
medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (Regras de
Bangkok): Adotadas pela resolução 2010/16 de 22 de julho de 2010709.
704 Disponível: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/sistema-prisional/conj_principios.pdf. Acessado em: 06/06/2014. 705 Disponível: http://direitoshumanos.gddc.pt/3_6/IIIPAG3_6_13.htm. Acessado em: 06/06/2015. 706 Disponível em: http://direitoshumanos.gddc.pt/3_6/IIIPAG3_6_11.htm. Acessado em: 06/06/2015. 707 Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/exec/exec89.htm. Acessado em: 06/06/2015. 708 Disponível em: http://www.achpr.org/pt/instruments/istanbul-protocol/. Acessado em: 06/06/2015.
235
i) Regras de Mandela (Atualização das Regras Mínimas para o Tratamento de
Prisioneiros da ONU, de 1955). Aprovadas em 22 de maio de 2015.
“Assegura-se a independência dos médicos e se estabelece amplas restrições sobre
as medidas disciplinares, como a proibição de aplicar o regime de isolamento por
mais de 15 dias” 710.
j) Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos
humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero (Princípios
de Yogyakarta). Elaborados em novembro de 2006.
k) Recomendações do Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à
Tortura (SPT) e do Comitê da ONU Contra a Tortura (CAT). Recomendações
não vinculativas aos Estados-parte do OPCAT elaboradas pelo SPT e pelo CAT
para adequação das condições de privação de liberdade aos padrões internacionais
de direitos humanos711.
l) Recomendações do Relator Especial das Nações Unidas sobre Tortura, bem
como do Comitê e do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Recomendações não vinculativas aos Estados membros da Assembleia Geral da
ONU, para adequação das condições de privação de liberdade aos padrões
internacionais de direitos humanos712.
709 Disponível em: http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2012/09/Tradu%C3%A7%C3%A3o-n%C3%A3o-oficial-das-Regras-de-Bangkok-em-11-04-2012.pdf. Acessado em: 06/06/2015. 710 “As Regras de Mandela podem ser o anúncio de uma nova era na qual se respeitem plenamente os direitos humanos dos presos”, disse Yuval Ginbar, assessor jurídico da Anistia Internacional, que observou a reunião em Viena. Mais informações disponíveis em: https://anistia.org.br/noticias/regras-de-mandela-sobre-tratamento-dos-prisioneiros/. Acessado em: 14/07/2015. 711 Disponíveis em: http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/OPCAT/Pages/Brief.aspx. Acessado em: 14/07/2015. Anistia Internacional. Combatendo a Tortura – Manual de Ação. Reino Unido, 2003. APT/CEJIL. La Tortura em el Derecho Internacional. Guia de Jurisprudencia. Suíça, 2008. 712 Disponíveis em: http://www2.ohchr.org/english/bodies/chr/. Acessado em: 14/07/2015. Anistia Internacional, Combatendo a Tortura – Manual de Ação. APT/CEJIL. La Tortura em el Derecho Internacional. Guia de Jurisprudencia.
236
5.1.2 Parâmetros Protetivos Nacionais
Com relação aos padrões vigentes no plano interno, no que se refere à
previsão de parâmetros protetivos aos direitos das pessoas encarceradas,
destacam-se a Constituição Federal de 1988, a Lei de Execução Penal (Lei
7.210/84) e a Lei do Crime de Tortura (Lei 9.455/97). Apresentam-se ainda como
relevantes, recomendações de órgãos públicos que possuem atribuição legal para o
controle da execução penal no país:
a) Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
A Lei Fundamental consagra aos presos, como sujeitos de direitos, o Princípio da
dignidade humana (art. 1º, III); Garantia de proibição da tortura e tratamento
desumano ou degradante (art. 5º, III); princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX);
princípio da personalidade (art. 5º, XLV); princípio da individualização da pena
(art. 5º, XLVI); princípio da humanidade das penas (art. 5º, XLVII); princípio da
isonomia no sistema penitenciário (art. 5º, XLVIII); Garantia de integridade
psicofísica (art. 5º, XLIV); Garantia de permanência com os filhos (art. 5º, L);
Garantias processuais penais (art. 5º, LIII, LIV, LV, LVII e LXXIV). Estes e
inúmeros outros direitos fundamentais – como vida, saúde, educação, alimentação
adequada e acesso à justiça – são gravemente afrontados pela vexaminosa
realidade dos nossos cárceres713.
b) Lei de Execução Penal (Lei n° 7.210 de 11 de julho de 1984).
A lei de Execução Penal confere de forma expressa aos presos em geral os
seguintes direitos, dentre outros: 1) direito ao uso do próprio nome (art. 41, XI da
LEP); 2) direito a alimentação, vestuário e alojamento; 3) direito a assistência
médico-odontológica, sendo assegurado o direito de contratar médico de sua
confiança pessoal; 4) direito ao trabalho remunerado; 5) direito de se comunicar
reservadamente com seu advogado; 6) direito a previdência social (auxílio-
reclusão);7) direito a seguro contra acidente de trabalho; 8) direito à proteção
contra qualquer forma de sensacionalismo;9) direito à igualdade de tratamento, 713 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acessado em: 06/06/2015.
237
salvo quanto a individualização da pena; 10) direito à proporcionalidade na
distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; 11) direito à
visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados;
12) direito a contato com o mundo exterior por meio de leituras e outros meios de
comunicação que não comprometam a moral e os bons costumes714.
c) Lei do Crime de Tortura (Lei nº 9.455 de 07 de abril de 1997).
Confere eficácia ao mandamento constitucional e convencional de criminalização
da tortura, tipificando o crime de tortura na ordem jurídica nacional715.
d) Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura no Brasil
(Lançado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
em 2006).
Sistematiza um conjunto de ações que é apresentado aos Estados da Federação
com vistas a constituir uma agenda de políticas públicas e de procedimentos
articulados entre os três Poderes, nos níveis municipal, estadual e federal716.
e) Regulamento Penitenciário Federal (Decreto nº 6.049 de fevereiro de 2007).
Regulamenta o funcionamento do sistema penitenciário federal717.
f) Regulamentos Penitenciários Estaduais.
O Regulamento do Sistema Penal do Estado do Rio de Janeiro foi aprovado
através do Decreto nº 8.897, de 31 de março de 1986. Ressalte-se que o
documento é anterior à Constituição de 1988.718
714 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7210.htm. Acessado em: 06/06/2015. 715 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9455.htm. Acessado em: 06/06/2015. 716Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/pp/a_pdfdht/plano_br_acoes_integradas_prevencao_tortura.pdf. Acessado em: 14/07/2015. 717 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6049.htm. Acessado em: 06/06/2015. 718 Disponível em: http://www.sindsistema.com.br/?pagina=legislacaoviw2&id=88. Acessado em: 14/07/2015. Sobre a trajetória histórica do Regulamento Penitenciário do Rio de Janeiro, ver: ROIG, R. D. E., Direito e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil.
238
g) Resoluções de órgãos públicos com atribuição legal de controle da
execução penal.
Resoluções do Conselho Nacional de Justiça719, Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária720 e Conselho Penitenciário dos estados, bem como
outros órgãos públicos.
h) Recomendações dos Mecanismos de Prevenção e Combate à Tortura e
outros órgãos de monitoramento.
Recomendações elaboradas pelo Mecanismo Nacional e pelos Mecanismos
Estaduais721, bem como outros órgãos de monitoramento dos locais de privação de
liberdade, como Defensoria Pública, Ministério Público, Conselhos da
Comunidade e Comissões de Direitos Humanos.
Como observado neste panorama dos instrumentos protetivos, desde o
processo de redemocratização do país e em particular a partir da Constituição
Federal de 1988, que tutela com centralidade a dignidade humana722, o Brasil tem
adotado importantes medidas em prol da incorporação de documentos
internacionais voltados à proteção dos direitos humanos 723. Sendo assim, é
possível apontar que, do ponto de vista formal, os direitos humanos das pessoas
privadas de liberdade encontram-se amplamente protegidos no Brasil, panorama
diametralmente oposto à sua observância concreta, em face das diuturnas
violações de direitos no cárcere.
719Disponível em: http://www.cnj.jus.br/sistemas/resolucoes/677-resolucao-46. Acessado em: 14/07/2015. 720 Resolução 14 do CNPCP (1994). Art. 1º. As normas que se seguem obedecem aos princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem e daqueles inseridos nos Tratados, Convenções e regras internacionais de que o Brasil é signatário devendo ser aplicadas sem distinção de natureza racial, social, sexual, política, idiomática ou de qualquer outra ordem. Art. 2º. Impõe-se o respeito às crenças religiosas, aos cultos e aos preceitos morais do preso. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/cnpcp/data/Pages/MJB3298AE3PTBRNN.htm. Acessado em: 14/07/2015. 721 Relatórios do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura podem ser obtidos no sítio da APT na internet. Disponível em: http://www.apt.ch/pt. Acessado em: 14/07/2015. 722 “A dignidade da pessoa humana, (...) está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro”. PIOVESAN, F., op. cit., p. 54. 723 Ibid.
239
5.1.3 O Divórcio entre o binômio normatividade-realidade no Sistema Penal
Apesar da proclamação de direitos em declarações, convenções,
legislações e princípios relativos à privação da liberdade, os cárceres brasileiros se
transfiguram em porões de sofrimento, invisibilizados e silenciados. As violações
são contumazes e soam como escárnio diante dos compromissos assumidos em
defesa da dignidade humana no cárcere. Como aponta Cesar Barros Leal:
A leitura dos instrumentos do sistema universal e regional de proteção dos direitos humanos (particularmente, no que concerne às pessoas privadas de liberdade), das constituições, dos códigos e das leis que tratam da execução da pena, na América Latina e no Caribe, reafirma uma verdade já sabida e inconcussa: o divórcio, tão triste, quanto grotesco, entre a teoria e a práxis.724
Revela-se, desta maneira, o abismo entre as promessas não cumpridas do
Estado de Direito e a infamante realidade carcerária. Esta noção é corroborada a
partir de declaração do Subcomitê da ONU para a Prevenção à Tortura em visita
ao Brasil:
O SPT concorda com outros mecanismos das Nações Unidas que têm declarado que o quadro jurídico brasileiro sobre a prevenção da tortura é, em grande medida, adequado. A definição de tortura em sua legislação interna, bem como as salvaguardas jurídicas existentes contra a tortura, os maus-tratos e os direitos das pessoas privadas de liberdade, estão, de maneira geral, em conformidade com os padrões internacionais. O SPT preocupa-se, contudo, com a lacuna existente entre o aparato jurídico e sua aplicação na prática, uma vez que a maioria das garantias e dos direitos dispostos na legislação nacional são amplamente ignorados. Conforme observado pelo Relator Especial sobre Tortura, no seguimento de sua visita em 2001, muitas das recomendações meramente solicitavam que as autoridades respeitassem as leis brasileiras existentes725.
Este divórcio presente entre normatividade (teoria) e realidade (práxis) na
execução penal remete ao discurso aos franceses, proferido por Ferdinand Lassale
no século XVIII, no qual o jurista asseverou que a Constituição é a soma dos
fatores reais de poder. Vale destacar a seguinte passagem:
724 LEAL, C. B., Execução Penal na América Latina à luz dos Direitos Humanos, p. 117. 725 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura. Relatório de Visita ao Brasil - 2011.
240
Essa é, em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fatores reais do poder que regem um país. Mas, que relação existe com o que vulgarmente chamamos Constituição com a Constituição jurídica? Não é difícil, senhores, compreender a relação que ambos os conceitos guardam entre si. Colhem-se esses fatores reais do poder, escrevemo-los em uma folha de papel, dá-se-lhes expressão escrita e a partir desse momento, incorporados a um papel, não são simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito, nas instituições jurídicas e quem atentar contra eles atenta contra a lei, e, por conseguinte é castigado.726 A tese de Lassale demonstra a diferença entre “constituição de papel” -
mero texto normativo -, e a “constituição real” - os fatores reais de poder. Nesta
esteira, vislumbra-se a distinção entre “constituição formal” e “constituição
material”.
Segundo José Afonso da Silva, constituição material pode ser
compreendida em duas acepções727. Uma primeira, “restrita”, concebe que
constituição material significa as normas constitucionais escritas que regulam a
estrutura do estado, organização de seus órgãos e direitos fundamentais. Em
sentido formal, é um documento escrito elaborado pelo Poder Constituinte apenas
modificável a partir de formalidades especiais. A segunda acepção, a “ampla”, é
identificada com a organização do Estado. É a partir desta classificação de
constituição material, em perspectiva ampla, que se pode compreender como se
processa o divórcio entre as previsões normativas e a realidade da execução penal
no Brasil.
Neste sentido, pretendemos atentar sobre a dinâmica operativa do sistema
penal, não tendo por referência seus dispositivos constitucionais pertinentes, mas,
sim, sua governamentalidade. O pano de fundo desta análise não é o modelo
jurídico institucional (constituição formal), mas o modelo biopolítico do poder
(constituição material) como diz Agamben728, pois o léxico de referência não é
encontrado no Estado Democrático de Direito, mas sim no Estado de exceção.
Nesta perspectiva, Hardt e Negri ao observarem a atual conjuntura política,
no contexto do que chamam de sociedade mundial de controle729, afirmam que a
726 LASSALE, F., O que é uma Constituição?, p. 57-58. 727 SILVA, J. A., Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 37. 728 AGAMBEN, G., Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I, p. 16. 729 Tal conceito é formulado a partir das reflexões de Foucault acerca da disseminação da biopolítica. O autor chega a falar em “sociedade de segurança”. FOUCAULT, M., Segurança, Território e População. Posteriormente, dando continuidade ao trabalho iniciado, Deleuze irá forjar a expressão “sociedade de controle” DELEUZE, G., PostScriptum sobre as sociedades de
241
“constituição formal” torna-se obsoleta diante da “constituição material
biopolítica”, que define a excepcionalidade730.
É, portanto, à luz deste Estado de exceção permanente compreendido no
cárcere que se processa a dinâmica operativa do sistema punitivo. Não é por outro
motivo que Elias Neuman afiança, ao analisar o flagrante descumprimento dos
direitos humanos na prisão, que “esses tipos de normas são como os faróis de um
carro que iluminam a rota, porém não o manejam”731.
Contudo, a despeito da fragilidade de sua força normativa no universo
penitenciário, os direitos humanos não podem ser concebidos como utopia no que
tange à efetivação dos direitos mínimos da humanidade, mas devem ser
concebidos, como salienta Zaffaroni, como um verdadeiro programa de longo
alcance, cujo objetivo primordial é proteger a pessoa humana e realizar a
igualdade de direitos732. É justamente esta discrepância entre o ‘real’ e o ‘legal’
que gera condições propícias para a prática recorrente para obtenção de segurança
e disciplina no ambiente carcerário.
5.2 Tortura e Pena Privativa de Liberdade
Nos espaços de confinamento, a tortura, enquanto um crime de
oportunidade733, ganha sua forma mais aguda seja através dos procedimentos de
extrair confissões, nas respostas às reivindicações das pessoas privadas de
liberdade por melhores condições de tratamento, nas intimidações, retaliações e
punições internas, frequentemente marcadas por espancamentos, privações e
humilhações. Portanto, a temática do enfrentamento à da tortura em espaços de
controle. A utilização desta categoria para aludir ao contexto contemporâneo conduz Hardt a nomear a “sociedade mundial de controle” HARDT, M., A sociedade mundial de controle. 730
Na visão dos autores, a fonte de normatividade da gestão biopolítica global alia dois fatores: o Estado de exceção permanente, e as técnicas de poder de polícia. HARDT, M. e NEGRI, A., Império, p. 34. 731 NEUMAN, E., Carcel y Submission, p. 44. 732 ZAFFARONI, E., Em Busca das penas perdidas, p. 149. 733 “Investiga-se a tortura como um crime de oportunidade, pois ela é caracterizada por ser prática racional, funcional e eficaz, resultante de um modelo inquisitorial de investigação criminal, que cria um ambiente propício para a tortura e impede que seja esta investigada, comprometendo, desse modo, o sistema acusatório judicial.” MAIA, L. M., Prevenção, punição e reparação à tortura no Brasil, à luz do direito internacional dos direitos humanos, p. 12.
242
privação de liberdade constitui eixo central para a afirmação de uma cultura de
respeito aos direitos humanos. Assim, de acordo com Soares:
A discussão sobre a tortura, onde quer que se dê, envolve aspetos históricos, filosóficos, morais, jurídicos, políticos, psicológicos e sociais. No Brasil, trata-se de questão crucial e mobilizadora na área dos Direitos Humanos, embora negligenciada – ou manipulada em nome de interesses escusos – no debate público. Se o tema provoca aversão e indignação militante e propositiva de um lado, por outro também desvela certo silêncio, mesclado de medo e desconforto, quando não explícita tolerância, além da omissão criminosa de certas autoridades734.
Ao mesmo tempo em que fere corpos e mentes através de práticas
autoritárias e institucionalizadas de medo e terror, a tortura representa também,
conforme destaca Almeida, uma forma nefasta de constituir dominação e
hegemonia, através do fenômeno da violência que:
(...) se expressa sob várias modalidades, envolvendo sujeitos com inserção determinada em um conjunto de relações sociais concretas. Essas relações são constituídas em uma cultura particular e conformam os processos de institucionalização da violência no Brasil. Desse ângulo, a violência não pode ser considerada errática, posto que se instala na vida social, sendo dirigida a indivíduos que corporificam relações sociais determinadas, e não à corporeidade de seres abstratos. Embora o corpo seja o objeto mais imediato da violência, seus efeitos incidem sobre as consciências (Vásquez, 1977) e influenciam as estratégias de luta e resistência dos segmentos sociais que constituem os seus alvos privilegiados – sujeitos de relações múltiplas que se entrecruzam na produção e reprodução da vida, e, portanto, das suas desigualdades e contradições735.
Esta aviltante técnica de desumanização permanece ainda atual e endêmica
nos tentáculos do poder punitivo, a despeito do fato de a tortura ser proibida pelo
Direito Internacional, em termos absolutos, não podendo ser justificada sob
nenhuma circunstância. Convém observar os esforços empreendidos ao
enfrentamento desta permanência autoritária nas agruras do sistema penal.
734 SOARES, M. V., Tortura no Brasil, uma herança maldita, p. 21. 735 ALMEIDA, S., Violência e Direitos Humanos no Brasil, p. 42.
243
5.2.1 O Enfrentamento à Tortura
A Declaração Universal dos Direitos Humanos assinada em 10 de
dezembro de 1948 foi o primeiro instrumento a estabelecer princípios
internacionais no que tange à temática da tortura. Com ela, a humanidade
estabeleceu a compreensão mínima de que a Tortura não é aceitável em nenhuma
circunstância, inscrevendo, sob seu artigo 5º, que “ninguém será submetido à
tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano e degradante”.
Em 1966, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU
(PIDCP) reitera a proibição internacional à tortura acrescentando, em seu artigo
7º, a vedação a “experiências médicas ou científicas”736. Três anos após, é
aprovada a Convenção Americana de Direitos Humanos conhecida como Pacto de
San Jose da Costa Rica, na qual a proibição da tortura menciona ainda que “toda
pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade
inerente ao ser humano.”737.
Ressalta-se que tais pactos foram firmados em um período sob o jugo das
ditaduras civis-militares na América Latina, foi marcado pela repressão política,
prisões ilegais, desaparecimentos forçados, execuções e torturas que
vilipendiaram as já “abertas veias da América Latina”. O Estado Brasileiro só veio
ratificar tais instrumentos internacionais mais de vinte anos depois, em 1992.
As décadas de 1960 e 1970 intensificaram a visibilidade do tema da tortura
no mundo, com campanhas importantes, tanto por parte da sociedade civil, como
por organismos internacionais738. Entretanto, o ponto alto desta trajetória
encontra-se em 1984, quando a Assembleia Geral da ONU no dia 10 de dezembro
736 Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, Art. 7º “Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médias ou cientificas”. 737 Convenção Americana de Direitos Humanos. Art. 5º, inc. 2: “Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.” 738 Em 1972, a organização Anistia Internacional lançou sua primeira campanha mundial contra tortura e publicou, no ano seguinte, relatório contendo informações sobre tortura e maus tratos em mais de 70 países. A ONU adotou, em 1975, a Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas Contra Tortura que recomenda medidas aos Estados para impedir tal prática. Dois anos depois, é criada a Associação para Prevenção à Tortura (APT) com intuito de estabelecer um sistema internacional de visitas aos locais de privação de liberdade.
244
adota a Convenção Contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes, que apresenta em seu art.1º a seguinte definição:
O termo tortura designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castiga-las por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza, quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de suas funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento e aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.
A Convenção é considerada até hoje o mais importante instrumento
jurídico sobre a matéria no mundo, dando ensejo à posterior criação de
convenções regionais.
A Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA)
em 1985 adota a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.
Em seu texto, a prática de tortura também está restrita à ação dos funcionários
públicos por ação, omissão, por instigação ou indução de terceiros por
funcionários ou empregados públicos739.
Adentrando a década de 90, mais especificamente em 1993, a
Conferência Mundial da ONU sobre Direitos Humanos pautou o tema da luta
contra a tortura com destaque ao fato de sua prática ser mais comum, nos locais
de privação de liberdade, preconizando, portanto a adoção de um sistema de
medidas preventivas740.
739 “Para os efeitos da presente Convenção entender-se-á por tortura todo ato realizado intencionalmente pelo qual se imponham a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fim de investigação criminal, como meio de intimidar, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena, ou com qualquer outro fim. Se entenderá também como tortura a aplicação sobre uma pessoa de métodos que tendam a anular a personalidade da vítima ou a diminuir sua capacidade física ou mental, ainda que não causem dor física ou angústia psíquica. Não estarão compreendidos no conceito de tortura as penas ou sofrimentos físicos ou mentais que sejam unicamente conseqüência de medidas legais ou inerentes a estas, sempre que não incluam a realização de atos ou aplicação de métodos a que se refere o presente artigo.” Art. 2º. Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. 740 O Programa de Ação de Viena e o movimento internacional de organizações no combate à tortura entendiam que era preciso a criação de órgãos que pudessem realizar monitoramento contínuo nestes locais, sobretudo de maneira preventiva.
245
Finalmente, em 18 de dezembro de 2002, a Assembleia Geral das Nações
Unidas adotou o Protocolo Facultativo à Convenção contra Tortura e outros
Tratamentos, penas, cruéis, desumanos e degradantes (OPCAT) com propósito de
estabelecer maiores elementos na prevenção da tortura. O Protocolo Facultativo se
destaca por estabelecer um sistema de visitas periódicas por órgãos independentes
aos centros de detenção dos Estados-parte com a intenção de prevenir a tortura
através de dois pilares: a criação de um Subcomitê Internacional (SPT) e dos
Mecanismos de Prevenção Nacionais (MPN).
5.2.2 Definindo o Conceito de Tortura
A definição de tortura utilizada internacionalmente decorre, sobretudo, do
Art. 1° da Convenção da ONU Contra a Tortura. Seu texto permite apontar seis
elementos caracterizadores:
i) Inflição de dor ou sofrimento físico ou mental: importante observar, que
diferentemente do que apregoa o senso comum sobre o tema, a tortura não é
necessariamente física741. O art. 2º da Convenção Interamericana complementa
esta tipologia, destacando ainda que “se entenderá também como tortura a
aplicação sobre uma pessoa de métodos que tendam a anular a personalidade da
vítima”.
ii) Severidade: a dor ou o sofrimento devem ser agudos742, caso contrário o ato
não se coaduna com o conceito de tortura, podendo caracterizar maus tratos
(outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes743), proibidos pelo
art. 16 da Convenção da ONU Contra a Tortura.
741 Como salienta Maia a possibilidade da tortura decorrer de violência psicológica “conduz ao entendimento que a tortura é instrumento de substituição ou aniquilamento da vontade livre e consciente do torturado. Esta parte do conceito abrange o uso de substâncias químicas, que alteram as expressões de humor”. MAIA, L. M., op. cit., p. 114. 742 A noção de severidade é relativa, devendo levar em conta aspectos como duração do tratamento, seus efeitos físicos ou mentais, bem como as condições da vítima. Corte Europeia de Direitos Humanos. Caso Selmoni v. France, par. 100. 743 “A Corte considera um tratamento ‘desumano’ quando entre outras coisas, foi premeditado, foi aplicado por horas a fio e causou (...) sofrimento físico ou mental intensos. Considera um tratamento ‘degradante’ quando foi suficiente para fazer surgir nas vítimas sentimentos de medo,
246
iii) Intencionalidade: a tortura compreende tanto atos comissivos e omissivos744,
mas não se admite a modalidade culposa, apenas dolosa745.
iv) Finalística ou discriminatória: para que o ato seja caracterizado como
tortura, é preciso que seja praticado com um propósito determinado (obter
confissões ou informações; castigar; intimidar ou coagir)746 ou motivado por
qualquer forma de discriminação747.
v) Agente público: o ato deve ser infligido por, ou instigado por, ou com o
consentimento ou aquiescência de um funcionário público ou agente que esteja no
exercício de funções públicas. O Comitê da ONU Contra a Tortura já se
manifestou no sentido de que o agente não necessita estar agindo sob ordens
explícitas de um Estado748.
O Brasil, contrariando os diplomas internacionais que ratificou, ao tipificar
o crime de tortura em âmbito interno, através da Lei nº 9.455/97, admitiu como
angústia e inferioridade capazes de humilhá-las e rebaixá-las”. Corte Europeia de Direitos Humanos. Caso Kudia v. Poland, 26 de outubro de outubro de 2000, par. 92. 744 Comitê da ONU para a Prevenção à Tortura. Conclusões sobre o Chile, UN Doc. CAT/C/CR/32/5 (14 de junho de 2004). 745 Corte Europeia de Direitos Humanos. Caso MAHMUT Kaya v. Turkeya, 28 de março de 2000, par. 117. 746 Comparatto alerta sobre a incompletude desta definição, uma vez que deveriam estar incluídos os crimes de terror praticados pelos Estados aos movimentos políticos considerados subversivos. COMPARATTO, F., A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. No mesmo sentido, Burges e Danelius apontam que talvez um elemento que una as finalidades da tortura dispostas no texto da Convenção seja “alguma conexão com os interesses e políticas do Estado e seus órgãos”. BUGERS e DANELIUS. The United Nations Convention against Torture, p. 119. 747 Compreende-se aqui qualquer forma de discriminação contra minorias e grupos vulneráveis, como em razão de classe social, cor, raça, etnia, gênero, religião, orientação sexual, orientação política, idade, procedência, nacionalidade, condição de pessoa com deficiência, condição de saúde, inclusive a condição de preso ou egresso do sistema penitenciário. SÉGUIN, E., Minorias e grupos vulneráveis: uma abordagem jurídica. 748 Comitê da ONU para a Prevenção à Tortura. Caso Sadiq Shek Elmi v. Australia, 14 de maio de 1999, pars. 6 e 7.
247
sujeito ativo, além do agente público, também o agente privado749, acarretando,
assim, perniciosos efeitos750.
vi) Exclusão das sanções ilegítimas: a segunda sentença do Art. 1 afirma que a
definição de tortura não abarca “dores ou sofrimentos que sejam consequência,
inerentes ou decorrentes de sanções legítimas”.
O Relator Especial da ONU sobre Tortura já se manifestou no sentido de
que esta restrição “deve necessariamente se referir àquelas sanções que
constituem práticas amplamente aceitas como legítimas pela comunidade
internacional, como a privação de liberdade através do aprisionamento, comum a
quase todos os sistemas penais”751. Entretanto, ainda que previstas na ordem
jurídica, caso configurem afronta à dignidade humana, “penas cruéis, desumanas
ou degradantes são, por definição, ilegítimas”.
5.2.3 Ampliando o Conceito de Tortura
A compreensão sobre a abrangência do conceito de tortura tem-se ampliado
significativamente desde a Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura em
1984752. As técnicas comumente identificadas como tortura (choques elétricos,
golpes na planta do pé, suspensão em posições dolorosas, espancamentos, estupro,
sufocamento e afogamentos, queimaduras, simulação de execuções, privação de
alimentos, sono e comunicação) passaram a não ser suficientes para dar conta do
conjunto de práticas que devem ser classificadas deste modo.
749 Segundo a legislação brasileira, o particular poderá praticar o delito de tortura nas seguintes hipóteses: Lei 9.455/97, Art. 1º: inc. I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico e mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa. Inc. II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena - reclusão, de dois a oito anos. 750 Tal diferenciação tem provocado amplos debates no campo dos direitos humanos no país, entendida como uma forma de diluir os crimes praticados pelo Estado. Além disso, a realidade tem mostrado uma predominância de condenação por crimes cometidos no âmbito privado tais como punições a babás, violência intrafamiliar o que se constitui um paradoxo com o conceito internacional de tortura. Vide: MARQUES DE JESUS, M. G. e CALERONI, V., Julgando a tortura: Análise de jurisprudência nos tribunais de justiça do Brasil (2005-2010). 751 Relator Especial da ONU sobre Tortura. E/CN.4/1997/7, par.8. 752 Anistia Internacional, Combatendo a Tortura – Manual de Ação, p.93.
248
Dentre as práticas repressivas que vem sendo interpretadas como tortura ou
maus-tratos por organismos e mecanismos internacionais de direitos humanos,
bem como cortes e comissões regionais de direitos humanos, podem ser
citados753:
a) Intimidação: A noção de sofrimento mental é um componente da definição de
tortura, previsto expressamente no art. 1 da Convenção Contra a Tortura. O
Relator Especial das Nações Unidas sobre Tortura aponta que “o medo da tortura
física pode, por si mesmo, constituir tortura mental”, observa ainda que “a
ausência de marcas de tortura não deveriam necessariamente ser tratadas por
juízes e promotores como sendo prova de que são falsas tais alegações” 754.
Nesse sentido, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas
(ONU) também já se referiu à intimidação como possível forma de tortura755. De
igual sorte, a Comissão de Direitos Humanos da ONU declarou que “intimidação
e coerção, como descrito no art. 1 da Convenção, inclusive ameaças sérias e
verdadeiras, bem como ameaças de morte, ameaças à integridade física da vítima
ou de terceira pessoa, podem ser consideradas como tratamento cruel, desumano
ou degradante, ou ainda como tortura”756.
b) Privação sensorial: A Corte Europeia de Direitos Humanos, no caso Irlanda v.
Reino Unido, defendeu que a utilização de cinco técnicas de privação dos
sentidos, aplicadas conjuntamente em interrogatórios de prisioneiros suspeitos de
terrorismo, correspondiam a tratamento desumano e degradante. No mesmo caso,
a Comissão Europeia de Direitos Humanos havia classificado tal fato como
tortura757.
753 Documentos da Anistia Internacional e da Associação para a Prevenção à Tortura apresentam com profundidade o debate sobre a abrangência do conceito de tortura nos organismos internacionais e sua jurisprudência a respeito do tema. Anistia Internacional. Combatendo a Tortura – Manual de Ação. Reino Unido, 2003. APT/CEJIL. La Tortura em el Derecho Internacional. Guia de Jurisprudencia. Suíça, 2008. 754 Relator Especial da ONU sobre Tortura. Relatório sobre visita ao Azerbaijão, E/CN.4/2001/66/Adic.1, par. 7 e par. 115. 755 Assembleia Geral da ONU. Resolução 56/143, de 19 de dezembro de 2001, par. 1. Ver também: Caso Rojas Garcia v. Colômbia, 3 de abril de 2001, par. 10.5. 756 Comissão de Direitos Humanos da ONU. Resolução 2002/38 de 22 de abril de 2002, par. 6. 757 Comissão Europeia de Direitos Humanos. Ireland v. UK., Relatório da Comissão, 25 de janeiro de 1976, Yearbook, p. 792.
249
Outra decisão sobre a matéria veio do Comitê da ONU Contra a Tortura, ao
considerar que a privação sensorial e a “quase total proibição de comunicação” a
qual eram submetidos prisioneiros de uma penitenciária de segurança máxima no
Peru causaram “sofrimento constante e injustificado que corresponde à tortura”758.
c) Condições de detenção: A Comissão Europeia de Direitos Humanos, ao
avaliar a “superlotação extrema” e outras mazelas do sistema prisional na Grécia,
considerou que as condições de detenção correspondiam a tratamento desumano
ou degradante, violando a Convenção Europeia de Direitos Humanos759.
No mesmo sentido, a Corte Europeia de Direitos Humanos tem inúmeros
posicionamentos considerando as precárias condições de detenção como
tratamento desumano ou degradante760. Na visão do Comitê da ONU Contra a
Tortura, certas condições de detenção correspondem a tratamento desumano ou
degradante e outras correspondem especificamente à tortura761. O Comitê da
ONU Contra a Tortura também já constatou condições desumanas ou degradantes
em vários países europeus762.
Para o Comitê de Direitos Humanos da ONU, em muitos cárceres,
verificam-se violações aos artigos 7 ou 10 do Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos763. Segundo o Relator Especial sobre Tortura, as precárias
condições de detenção podem enquadrar-se como cruéis, desumanas ou
degradantes764, e em alguns casos, como “torturante”765.
Determinadas mazelas do cárcere como superlotação, falta de acesso a
água e alimentação, ausência de cuidados médicos, negação do suprimento das
necessidades básicas de higiene para mulheres, confinamento em solitária por
longa duração, também são objeto de constatação de maus-tratos por organismos
internacionais de direitos humanos.
758 Comitê da ONU Contra a Tortura. A 56/44, par. 186. 759 Comissão Europeia de Direitos Humanos. Greek Case, Relatório da Comissão, Parecer sobre o art. 3, par. 18, Yearbook, p. 505. 760 Caso Dougoz v. Greece, p. 48; Caso Peers v. Greece, p. 75. 761 Resultado da investigação sobre o Peru. A/56/44, pars. 178, 183 e 186. 762 Evans e Morgan, 1998, pp. 243-245. 763 Rodley, 1999, pp. 286-295, 304-305. 764 Relatório sobre visita à Venezuela, E/CN.4/1997/7/Ad.3, par. 81. 765 Relatório sobre visita à Federação Russa, E/CN.4/1995/34/Ad.1, par. 71.
250
d) Uso excessivo da força para cumprimento da lei: A Corte Europeia de
Direitos Humanos já manifestou que “no que diz respeito a uma pessoa privada de
sua liberdade, o uso da força física que não tenha sido estritamente motivado pela
conduta da pessoa em questão diminui a dignidade humana e é, em princípio, uma
infração do direito exposto no art. 3 da Convenção (Europeia de Direitos
Humanos)”766.
e) Penas Corporais: O Comitê de Direitos Humanos da ONU afirmou que a
proibição da tortura e dos maus tratos, contida no art. 7° do PIDCP “deve se
estender às penas corporais, o que inclui castigos excessivos determinados como
punição por um crime ou como medida educativa ou disciplinar”767. Nesta
matéria, a Corte Europeia de Direitos Humanos considerou que certos casos de
aplicação legal de castigos corporais constituem pena degradante768.
f) Penas de morte: O Comitê da ONU Contra a Tortura, ao examinar os relatórios
dos Estados-partes na Convenção Contra a Tortura, referiu-se ao uso continuado
da pena de morte como motivo de grande preocupação, ressaltando que a
incerteza de muitas pessoas que aguardam a execução corresponde a “tratamento
cruel e desumano”, por fim, salientando que a pena de morte deveria ser abolida o
quanto antes769.
g) Outras formas de tortura e maus tratos: Os organismos internacionais,
assim como mecanismos e cortes regionais de direitos humanos também
consideram possível caracterização de tortura ou tratamento ou pena cruel,
desumano ou degradante em situações como: formas de tortura baseada no
gênero770, discriminação racial771, desaparecimentos forçados772, destruição
forçada de casas773 e abusos em conflitos armados774.
766 Ribitsch v. Austria, 4 de dezembro de 1995, par. 38. 767 Comentário Geral 20, par. 5. 768 Tyrer v. UK., 23 de setembro de 1998, par. 21. 769 A/54/44, par. 45(i), referindo-se a Belarus; e A/54/44, par. 39(g), referindo-se à Armênia. 770 O Relator Especial da ONU sobre Tortura se referiu a atos de estupro, abuso e assédio sexual, teste de virgindade e aborto forçado como constituindo “formas de tortura baseadas em gênero”. A/55/290, par. 5. 771 A Comissão Europeia de Direitos Humanos sustentou que “a discriminação baseada na raça, poderia, em certas circunstâncias, por si só, corresponder a tratamento degradante, segundo o
251
5.2.4 A Tortura no Sistema Penitenciário do Rio De Janeiro
O sistema carcerário representa um terreno fértil para a prática da tortura.
Como anteriormente mencionado, a tortura é classificada como um crime de
oportunidade, condições estas que se tornam amplamente presentes em uma
instituição total, marcada por elevado índice de corrupção, estresse e violência;
invisibilidade ao mundo externo; precariedade estrutural; cultura de autoritarismo;
verticalização de relações de poder e alta vulnerabilidade dos internos. Conforme
observa Luciano Mariz Maia - um dos principais responsáveis pela elaboração do
Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura no país - esta trágica
combinação revela que:
As situações de violência institucional mais relacionadas com ocorrências de práticas de tortura, diretamente, ou como agravamento de situações de aplicação de penas ou tratamento degradantes, desumanos ou cruéis, dão-se em decorrência de superpopulação carcerária; manutenção de presos em delegacias; realização de revistas íntimas degradantes, humilhantes, vexatórias e invasivas da intimidade e privacidade das pessoas; prestação de assistência médica inadequada; fornecimento de alimentação inadequada; prestação de assistência jurídica inadequada. Isoladamente ou tomadas em conjunto, essas situações, que constituem violência institucional, podem resultar em tortura.775
Não é por acaso que a tipificação do crime de tortura no Brasil prescinde
da exigência de finalidade específica na conduta do autor quando se trata de
tortura perpetrada mediante subjugação de preso, ou de quem esteja sujeito à
medida de segurança, como prevê o art. 1º, §1º da Lei 9.455/97: “na mesma pena
sentido do art. 3 da Convenção (Europeia de Direitos Humanos)”. East African Asians v. UK., Relatório da Comissão, 14 de dezembro de 1973, par. 207. 772 O Relator Especial sobre tortura afirmou que “detenção incomunicada prolongada em lugar secreto pode ser considerada tortura como descrito no art. 1 da Convenção Contra a Tortura”. A/54/156, par. 14. A este respeito, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já sustentou que “a mera submissão de um indivíduo a isolamento prolongado e privação de comunicação é, por si mesma, tratamento cruel e desumano”. Velasquez Rodriguez v. Honduras, 29 de julho de 1988, par. 187. 773 O Comitê da ONU Contra a Tortura afirmou que as políticas praticadas por Israel com relação a demolições e bloqueios de casas de palestinos “podem, em certos casos, corresponder a tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes”. Terceiro Relatório Periódico de Israel, CAT/C/XXVII/Concl.5, 23 de novembro de 2001, pars. 6(i) e 6(j). 774 Tribunal da Iugoslávia. Prosecutor v. Blaskic, 3 de março de 2000, pars. 738, 743. 775 MAIA, L. M., op. cit., p. 133.
252
incorre quem submete pessoa presa ou sujeita à medida de segurança a sofrimento
físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não
resultante de medida legal.”
Esta modalidade não contém o especial fim de agir, nem o intenso
sofrimento, diversamente do que ocorre com as figuras dos incisos I (com a
finalidade de obter informação, ou confissão; para provocar ação ou omissão
criminosa; ou em razão de discriminação) e II (com o fim de aplicação de castigo
ou medida preventiva) do art. 1º. Aqui, o legislador retirou, portanto, os elementos
que distinguem tortura de tratamento desumano, degradante ou cruel, equiparando
as penas. Como salienta Maia, “o pressuposto parece ser que alguém preso, ou
submetido a medida de segurança, seja particularmente vulnerável. Essa
vulnerabilidade presumida faz aumentar o dever de proteção dos agentes do
Estado”776. Ademais, a sanção cabível é ainda majorada caso o torturador seja
agente público (art. 1º, §4º, inc. I).
Esta percepção é reafirmada a partir de relatórios que revelam que a
temática da tortura no Brasil vem sendo regularmente acompanhada por órgãos
públicos, organismos e organizações de direitos humanos, nacionais e
internacionais.777
Em relatório sobre visita realizada ao Brasil em 2000, o Relator Especial
da ONU sobre Tortura, Nigel Rodley, observa que:
A tortura e maus tratos semelhantes são difundidos de modo generalizado e sistemático na maioria das localidades visitadas pelo Relator Especial no país e, conforme sugerem testemunhos indiretos apresentados por fontes fidedignas ao Relator Especial, na maioria das demais partes do País também. A prática da tortura pode ser encontrada em todas as fases de detenção: prisão, detenção preliminar, outras formas de prisão provisória, bem como em penitenciárias e instituições destinadas a menores infratores. Ela não acontece com todos ou em todos os lugares; acontece, principalmente, com os criminosos comuns, pobres e negros que se envolvem em crimes de menor gravidade ou na distribuição de drogas em pequena escala. (...) A consistência dos relatos recebidos, o fato de que a maioria dos detentos ainda apresentava marcas visíveis e consistentes com seus
776 Ibid., p. 118. 777 Além de organizações não governamentais como a Anistia Internacional, e a Human Rights Watch, internacionais, o Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH, a Justiça Global e o Grupo Tortura Nunca Mais – GTNM, nacionais, o tema da tortura já foi objeto de análise no Brasil tanto pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU, quanto pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, passando por visita do Relator Especial Contra a Tortura, da ONU, Sir Nigel Rodley em 2000, e por visita do Subcomitê da ONU para a Prevenção à Tortura, em 2011.
253
testemunhos, somados ao fato de o Relator Especial ter podido descobrir, em praticamente todas as delegacias de polícia visitadas, instrumentos de tortura conforme os descritos pelas supostas vítimas, tais como barras de ferro e cabos de madeira, tornam difícil uma refutação das muitas denúncias de tortura trazidas à sua atenção. 778
O Rio de Janeiro destacou-se também na Comissão Parlamentar de
Inquérito sobre o Sistema Penitenciário em 2005, como um dos estados com o
maior número de denúncias de tortura.779 Ademais, em recente levantamento,
elaborado entre 2012 e 2014, a organização de direitos humanos Human Rights Watch
recebeu 5.431 denúncias de tortura ou tratamentos desumanos e degradantes no país.
Deste total, 84% referiam-se a incidentes nos quais a vítima estava sob custódia do
estado em unidades prisionais, delegacias ou unidades socioeducativas.780 O
documento aponta ainda a superlotação das “medievais” prisões
brasileiras, impulsionada pelo encarceramento massivo, como uma grave
problemática que estimula a tortura que se apresenta em um quadro crônico.
No ano de 2015, o Brasil recebeu nova visita da Relatoria Especial das
Nações Unidas sobre Tortura, com o relator Juan Méndez, que reforçou o
entendimento de que a tortura em prisões brasileiras é “endêmica”, ocorrendo de
forma frequente e constante. "Não estou dizendo que todos os presos são
submetidos [à tortura], mas o número de testemunhos e a contundência dos relatos
me levam a crer que não se trata de um fenômeno isolado", afirmou781.
778 Durante sua missão, o Relator Especial visitou o Distrito Federal, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e Pará. RODLEY, N., Relatório de visita ao Brasil, no ano 2000. O Relatório foi apresentado em Abril de 2001 à Comissão de Direitos Humanos da ONU, e foi catalogado sob número E/CN.4/2001/66/Add. 2. 779 As alegações foram recebidas no período de funcionamento do SOS Tortura, entre 31 de outubro de 2001 a 31 de janeiro de 2004, totalizando 1.863 casos de tortura e tratamento cruel, desumano ou degradante. Dentre as alegações, que foram recebidas de todos os estados do país, destaca-se o elevado número proveniente dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Pará, Bahia e Rio de Janeiro. Relatório sobre Tortura no Brasil. Câmara dos Deputados. Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Brasília: Câmara dos Deputados, 2005. 780 "A permanência da tortura é um dos pontos mais sensíveis na proteção de direitos humanos no Brasil. Em pelo menos 64 casos de tortura analisados por nós entre 2010 e 2014 em cinco estados (PR, SP, ES, BA e RJ), mais de 150 agentes públicos, policiais civis, militares, agentes penitenciários e socioeducativos, foram identificados." Human Rights Watch, Relatório a situação dos Direitos Humanos no Mundo 2014-2015. Disponível em: http://www.hrw.org/world-report/2015/country-chapters/brazil. Acessado em: 10/07/2015. 781 O relator apresentará um relatório final ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em março de 2016. Disponível em http://www.dw.com/pt/tortura-em-pris%C3%B5es-brasileiras-%C3%A9-end%C3%AAmica-diz-onu/a-18650619. Acessado em: 17/08/2015.
254
A cultura da tortura é tão enraizada como prática institucionalizada que o
próprio senso comum consegue dimensiona-la. Pesquisa da Anistia Internacional
aponta o Brasil como o país onde a população possui maior temor de ser vítima de
tortura. Segundo o levantamento, 80% dos entrevistados temem ser torturados
caso sejam detidos pela polícia. Trata-se do maior índice dentre os 21 países
analisados e quase o dobro da média mundial, de 44%782.
Com relação ao sistema prisional do Rio de Janeiro, os relatórios do
Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura dão conta de uma
realidade sistêmica de múltiplas formas de torturas nos espaços de confinamento.
Há inúmeros relatos de tortura física, perpetrados, sobretudo, através de
espancamentos, uso de taser, barras de madeira e ferro, com imobilização da
vítima por meio de algemas, e outras violências783.
Todavia, verificam-se diversos obstáculos à identificação dos indícios de
autoria e prova da materialidade de tais práticas, por um conjunto de fatores: i)
muitas vezes as lesões decorrentes da violência se perdem dias após, o que
inviabiliza o reconhecimento em exame de corpo de delito; ii) vítima muitas vezes
tem medo de proceder a denúncia, pelo elevado risco de represálias; iii) vítima
pode não ter informações ou não obter condições de acessar os canais de
denúncias; iv) as perícias criminais, de modo geral, são realizadas precariamente;
v) o corporativismo muitas vezes presente nos estabelecimentos prisionais, bem
como nas corregedorias, alimenta uma cultura de não responsabilização do agente
perpetrador da tortura; vi) as delegacias de polícia e representantes do Ministério
Público, na maioria das vezes, não conduzem investigações baseados em prova
testemunhal de presos ou diante da insuficiência de outras provas; vii) o Poder
Judiciário padece de uma tradição de permissividade com tais práticas,
redundando num cenário de não responsabilização.
Este entendimento é compartilhado pelo Relator Especial sobre Tortura das
Nações Unidas, Juan Méndez que observa a "ausência de uma política forte para
lidar com as ocorrências de tortura, a falta de responsabilização nesses casos e a
782 Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/05/140512_brasil_tortura_vale_rb. Acessado em: 06/08/2015. 783 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório Anual 2012. Id., Relatório Anual 2013. Id., Relatório Anual 2014.
255
probabilidade de que a situação se perpetue, e até mesmo que esta prática
aumente, tanto em número como em gravidade"784. Dentre os recentes casos emblemáticos de tortura física perpetrada no
sistema prisional fluminense podem ser apontados os seguintes: Violência sexual
e espancamento – Presídio Ary Franco (02.2012)785; Esquartejamento – Presídio
Carlos Tinoco (31.07.13)786; Agressões físicas e perseguição perpetradas pelo
SOE - Cadeia Pública Bandeira Stampa (15.05.2014)787; Tortura coletiva - Cadeia
Pública José Frederico Marques (2014)788; Violência homofóbica – Presídio
Evaristo de Moraes (22.09.2014)789.
Além da forma tradicional de tortura, podem ser verificadas ainda no
ambiente carcerário do Rio de Janeiro, diversas técnicas de imposição de
sofrimento identificadas no bojo do ‘conceito ampliado de tortura’, segundo a
jurisprudência de organismos internacionais.
784 O especialita em direito humanos, em visita ao Brasil em agosto de 2015, apontou que a maioria dos crimes de totura permanece impune: “Não encontramos provas de que esses crimes foram adequadamente investigados, nem processo penal ou punição. Soubemos de casos seríssimos, mas que, evoluíram, no máximo, para prisão, mas logo soltura dos acusados. Não ouvimos notícia de, sequer, uma condenação pelo crime de tortura. Não quer dizer que não ocorreu. Mas, neste período, não constatamos uma condenação formal”. Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/2015/08/14/3046-relator-da-onu-diz-que-tortura-nos-presidios-do-brasil-heranca-da-ditadura-militar. Acessado em: 17/08/2015. 785 Um preso, de 58 anos de idade e graves problemas de saúde, acusado do crime de estupro, fora colocado propositalmente pelos agentes penitenciários em uma cela de triagem com outros presos, para que aplicassem uma “lição” no mesmo. Após tal fato, o preso foi brutalmente espancado, seviciado sexualmente e estuprado, permanecendo internado por mais de um mês. Ver mais em: Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2012. 786 Marcos de Souza Silva foi barbaramente torturado e esquartejado por outros presos. O preso foi espancado, teve as duas orelhas cortadas, os testículos arrancados e foi empalado com um pedaço de madeira. A motivação para o esquartejamento do interno pelos outros presos teria sido seu envolvimento no abuso e morte de uma garota de 2 anos de idade. O preso, sabidamente em condição de altíssima vulnerabilidade, fora colocado, de maneira temerária, em cela coletiva. Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2013. 787 O MEPCT/RJ ouviu relatos do interno D.S.B. que relata que já sofreu inúmeras agressões físicas perpetradas por um agente do SOE de nome Isaque Medeiros. Afirma que o mesmo busca vingar-se de fato ocorrido extramuros, tendo o ameaçado com arma de fogo. O interno afirma já ter registrado 4 Boletins de Ocorrência contra o agente sem qualquer resultado. Ver mais em: Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2014. 788 Em 2014 a referida unidade tornou-se a porta de entrada do sistema penitenciário, desde então, tornou-se uma espécie de rito de passagem onde sanções informais e violência institucional são habituais. Os relatos apontam que os presos são submetidos a práticas reiteradas de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, desde as condições básicas de detenção quanto às sessões de espancamentos e torturas, configurando gravíssima violação de direitos humanos. Ibid. 789 E. F. S. afirma que ao comunicar ao chefe de segurança que desejava ser transferido de cela, após cumprir castigo em outra galeria, pois não gostaria de ficar no mesmo local que o seu ex-companheiro, o preso foi conduzido até o corredor em frente a sala de segurança, obrigado a tirar toda roupa, foi algemado ao ar condicionado e agredido com sapatadas nas nádegas. O interno relata que 10 agentes penitenciários participaram da sessão de agressão, cada qual desferindo 10 golpes com o sapato. Ele sofreu ainda golpes na face e foi agredido verbalmente. Ibid.
256
a) Intimidação: Com relação à tortura psicológica decorrente de intimidação
aterrorizante, pode-se verificar tal prática nas ameaças de represália e na
imposição indiscriminada de sanções disciplinares coletivas e arbtitrárias. Neste
sentido, destacam-se os casos: Sessão de espancamento e ameça de represália –
Presídio Evaristo de Moraes (31.10.12)790; Sanção disciplinar a uma presa em
represália a denúncias ao SPT – Presídio Nelson Hungria (10.2011)791.
b) Superlotação e condições de detenção: As condições degradantes de
aprisionamento verificadas no capítulo anterior são agravadas pela superlotação.
“O cenário de superlotação endêmica é causador de inúmeras violações de direitos
fundamentais das pessoas privadas de liberdade que ocorrem todos os dias no
interior das unidades neste estado”792.
c) Privação sensorial: a tortura decorrente de privação dos sentidos pode ser
verificada, sobretudo, na imposição de sanções disciplinares atentatórias à
dignidade humana, como o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). No Rio de
Janeiro este castigo é implementado, sobretudo, na Penitenciária Laércio da Costa
Pelegrino (Bangu 1). Há ainda registros de castigos com gravosa privação de
sentidos em outras unidades prisionais, como na Cadeia Pública Bandeira
Stampa793. Em relação ao RDD, o MEPCT/RJ aponta que:
São notórios os danos à saúde mental do interno submetido às privações no que se refere a atividades laborativas e educacionais, bem como as restrições no que tange à assistência familiar ao longo do cumprimento de tal sanção. O preso em cumprimento de regime disciplinar diferenciado não pode ter contato físico com
790Ao solicitar ao agente penitenciário a sua transferência de cela em razão de ameaças por dívida, fora espancado, algemado e agredido com socos, chutes e golpes de tênis – para não deixar marcas no corpo. Diante do relato, o MEPCT/RJ requisitou exame de corpo de delito, procedeu a comunicação do fato à autoridade policial e solicitou a transferência de unidade para o apenado. Entretanto, semanas após, o preso desistiu de prosseguir com a denúncia em razão de ameaças de represália que teria sofrido contra si e contra sua família. Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2012. 791 Em cumprimento às visitas de seguimento demandadas pelo SPT após sua visita ao Rio de Janeiro, em outubro de 2011, o MEPCT/RJ, ao visitar o Presídio Nelson Hungria, deparou-se com uma situação com forte indício de represália a uma detenta que havia fornecido informações ao Subcomitê quando de sua presença na unidade. Cerca de duas semanas após a visita do SPT a presa fôra transferida de cela, em decorência de suposto abaixo-assinado de outras presas. A versão da presa relata que a transferência deu-se após a mesma reclamar de recorrentes maus tratos por agressão verbal de uma das agentes para com as presas, sobretudo a uma grávida. Ibid. 792 Id., Relatório anual 2013. 793 Id., Relatório de Visita à Cadeia Pública Bandeira Stampa. Ofício MEPCT/RJ nº 0062/2014.
257
os visitantes, apenas comunica-se através do parlatório. Ademais, constatou-se que não é possível entrar livro na unidade que não seja da biblioteca794.
d) Formas de tortura baseadas no gênero: Nas unidades prisionais femininas há
um elevado número de agentes penitenciários de sexo masculino, fato que
propicia incidentes de assédio e abuso sexual795. Ademais, no ano de 2011, o
MEPCT/RJ verificou que o Núcleo de Controle de Presos da Políca Interestadual
(POLINTER) Grajaú, unidade masculina, estava custodiando também mulheres,
em celas próximas o que gerava inúmeros constrangimentos e ofensas, colocando
as mulheres em extrema vulnerabilidade796.
e) Uso excessivo da força para cumprimento da lei: O uso indiscriminado da
força é uma realidade feequente no sistema prisional, sobretudo com o emprego
crescente de armamento de baixa letalidade para a contenção de incidentes ou
mesmo para a imposição de castigos. Um caso grave desta forma de violência
institucional doi verificado no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, em 2012,
em intervenção do Serviço de Operações Especiais (SOE) promovendo
espancamento generalizado e disparos de bala de borracha e spray de pimenta no
efetivo carcerário que não esboçava resistência797.
Este conjunto de técnicas de imposição de sofrimento reforça a percepção
da prisão como uma instituição constantemente eivada de ilegalidade e
inconstitucionalidade. Edmundo Coelho798, ao analisar o sistema penitenciário no
estado do Rio de Janeiro durante a década de 1980, o descreve como tendo
atingido “o seu grau mais alto de deterioração”, no qual quase nada mais funciona
794 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2014. 795 Id., Relatório de Visita à Penitenciária Joaquim Ferreira de Souza. Ofício MEPCT/RJ nº 091/2012. 796 Há denúncias de transporte de presas em viaturas juntamente com homens, inclusive sendo compelidas a sentarem no colo. Ademais, o local onde as presas ficavam alojadas era separado do vestiário dos funcionários apenas por uma porta de grade, colocando-as em situação de constrangimento e vulnerabilidade. Id., Relatório anual 2012. 797 Após desastrosa tentativa de busca de telefones celulares, a equipe do Grupo de Intervenções Táticas (GIT) adentrou à unidade realizou inúmeros disparos de bala de borracha nos corredores dos pavilhões e nas celas, de maneira indiscriminada. Excetuando os presos que foram prestar depoimento na 34ª DP, os demais feridos não receberam atendimento médico. Nenhum preso teria reagido à intervenção. Após, os presos relatam que foram obrigados a ficar nus no pátio, sentados, enfileirados. Neste momento alguns agentes agrediram os internos com cinto no rosto enquanto debochavam dos presos. Relatos afirmam que foi utilizado um porrete, e que os agentes afirmavam que “direitos humanos é madeira!”. Ibid. 798 COELHO, E. C., A Oficina do Diabo e outros estudos sobre criminalidade.
258
em níveis mínimos de eficiência. O sistema só não teria entrado em colapso por
conta de “soluções irregulares” voltadas a suprir a omissão do Estado na garantia
dos direitos elementares dos presos. Certamente não poderia vislumbrar que a
penalidade na era neoliberal iria assumir contornos ainda mais perversos, tendo
em seu cerne a tortura como prática sistêmica.
Este diagnóstico aterrador sobre a tortura no sistema penitenciário,
inserido num cenário endêmico de violência institucional, pode receber
importantes contribuições da filosofia política, em especial as reflexões pautadas
pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, com os conceitos de “campo” e “homo
sacer”.
5.3 Prisão e Exceção Permanente
Como apontado no Capítulo II, a caracterização do Estado penal na
periferia capitalista deve ter em mente o espectro biopolítico, deve atentar, não
somente ao recrudescimento das estratégias de controle social punitivo
institucionalizado, mas também visualizar as manifestações contemporâneas do
Estado de exceção permanente.
Giorgio Agamben, na obra Estado de exceção, identifica que a produção
de um discurso de emergência tem sido o elemento que salvaguarda o uso de
medidas excepcionais, diante dos impasses colocados em face da política
contemporânea. Diante de situações de crise, a normatividade do Estado de
Direito é suspensa para reafirmar sua soberania, restabelecer a normalidade
institucional valendo-se para tanto de decretos de plenos poderes que autorizam a
suspensão de direitos fundamentais, como se percebe na edição do Patriot Act e
da Millitary Order nos EUA.
Essa transmissão de medidas de caráter provisório e excepcional para
técnicas permanentes de governo passa a apresentar um grau de indeterminação
entre democracia e absolutismo, entre Estado de Direito e Estado de exceção799.
Sob o prisma do Estado de exceção permanente, Agamben analisa a
categoria “campo” como o locus de indistinção entre fato e direito, externo e
799 AGAMBEN, G., Estado de exceção – Homo sacer II, p. 14.
259
interno, lícito e ilícito, zoé e bíos, exceção e regra. O campo é o paradigma do
espaço político que se abre quando a política torna-se biopolítica e o cidadão
torna-se o homo sacer (vida nua).
Neste sentido, as lentes da filosofia política agambeniana podem iluminar
criticamente a compreensão sobre a penalidade neoliberal. Para a análise desta
tese, interessa compreender em que medida a categoria campo possui interfaces
com o cárcere, e como a figura do homo sacer pode ser reveladora da condição
vivenciada pelas pessoas privadas de liberdade.
5.3.1 A Prisão no Paradigma do Campo
Agamben refere-se diretamente ao campo de concentração como a
manifestação localizada da exceção, um espaço de produção da vida nua na
contemporaneidade que gerou a mais absoluta conditio inumana da história800.
Para o autor, este território extrajurídico não assenta origens nos campos do
Holocausto.
Ao invés de deduzir a definição do campo a partir dos eventos que aí se desenrolaram, nos perguntamos antes: o que é um campo, qual é sua estrutura jurídico-política, porque semelhantes eventos aí puderam ter lugar? Isso nos levará a olhar o campo não como fato histórico e uma anomalia pertencente ao passado (mesmo que, eventualmente, ainda verificável), mas, de algum modo, como a matriz oculta, o nomos do espaço político no qual ainda vivemos801.
Suas reflexões propõem que na atualidade é o campo de concentração, e
não a pólis, o paradigma biopolítico do Ocidente. Neste particular, parece-nos que
a mensagem transmitida pelo filósofo não quer dizer que o paradigma do campo
tenha substituído o da pólis, mas que, campo e pólis constituem a ambivalência
oculta na gênese da política ocidental.
Segundo Agamben802, é preciso refletir sobre o estatuto paradoxal do
campo enquanto espaço de exceção, pois, para ele, o campo é um pedaço de
território que é colocado estavelmente fora do ordenamento jurídico normal, mas
800 Id., Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I, p. 187. 801 Ibid., p. 173. 802 Ibid., p. 176.
260
não é, por essa razão, um espaço externo. Aquilo que nele é excluído é incluído
através da sua própria exclusão.
No campo a quaestio iuris não é mais absolutamente distinguível da quaestio facti e, neste sentido, qualquer questionamento sobre legalidade ou ilegalidade daquilo que nele sucede é simplesmente desprovido de sentido. O campo é um híbrido de direito e de fato, no qual os dois termos tornam-se indiscerníveis803.
Conforme afirma o autor, os historiadores discutem se os primeiros
campos foram criados pelos espanhóis em Cuba em 1896804 ou pelos ingleses na
guerra dos bôeres 805. Negri, por sua vez, localiza que a primeira experiência
histórica do campo dá-se no século XV, na Espanha.806 O campo chega a seu
paroxismo nos lagers da biopolítica nazista, cujo fundamento não tinha base
jurídica, mas era mera custódia protetiva (Shutzhaft)807. Não era preciso a prática
de infração penal, a simples alegação de representar perigo para a segurança do
Estado permitia o envio de milhões de indivíduos aos campos do Holocausto,
reduzidos à mera condição de vida nua, de homini sacri. Como afirmou Hannah
Arendt, “nos campos tudo é possível” 808.
Portanto, a caracterização do campo significa a possibilidade permanente
de acionar a exceção. Não significa que toda concepção de campo seja como
Auschwitz, mas, assim como Theodor Adorno 809, Agamben, observa Auschwitz
como algo ainda presente na política contemporânea 810. Poderíamos perceber
suas permanências em espaços que configuram “um híbrido de direito e de fato,
no qual os dois termos tornam-se indiscerníveis”811.
Por este olhar, algo oculto parece aproximar os lagers nazistas, os campos
de refugiados de guerra, as prisões de Abhu Graib e Guantánamo, a Faixa de
Gaza, os centros de detenção de imigrantes na Europa, os territórios conflagrados
803 Ibid., p. 177. 804 Curioso o fato de que 106 anos depois seja construída em território cubano a prisão de Guantânamo, símbolo maior do campo no tempo presente. 805 Ibid., p. 173. 806 HARDT, M. e NEGRI, A. Campo. 807 AGAMBEN, G., Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I, pp. 75 e 176. 808 ARENDT, H., Origens do Totalitarismo. 809 ZAMORA, J. A., Th. W. Adorno – Pensar contra a barbárie, pp. 40-61. 810 AGAMBEN, G., O que resta de Auschwitz. 811 Id., Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I, p. 177.
261
da Colômbia812, os escombros do Haiti, bem como, a violência policial nas favelas
cariocas. Nesta mesma esteira, certamente pode-se visualizar a realidade do
sistema penitenciário brasileiro.
Trata-se da inclusão exclusiva de que fala Agamben. A prisão está dentro
do direito - as pessoas ali privadas de liberdade cumprem uma sanção jurídico-
penal em razão de condenações criminais -, ao mesmo tempo, está fora da lei –
visto que viola amplamente os padrões de detenção estabelecidos no plano
nacional e internacional.
Este paradoxo torna pertinente para o nosso contexto a caracterização do
continuum gueto-prisão que Wacquant aponta ao analisar as consequências da
ascensão do Estado penal para as periferias estadunidenses. Os cárceres brasileiros
propõem a existência de um continuum favela-prisão813. Dois espaços do Estado
de exceção, dois momentos distintos de estigmatização seletiva. O estigma sobre
as favelas e sobre os cárceres conduz à naturalização de sua condição de campo de
concentração da realidade brasileira.
Esta também é a visão de Vera Regina P. de Andrade quando adverte que:
na periferia da modernidade, contando as vítimas do campo de (des)concentração difuso e perpétuo em que nos tornamos; campo que, apesar de emitir sintomas mórbidos do próprio carrasco (policiais que matam, prisões que matam, denúncias que matam, sentenças que matam direta ou indiretamente), aprendeu a trivializar a vida e a morte, ambas descartáveis sob a produção em série do ‘capitalismo de barbárie’, ao amparo diuturno do irresponsável espetáculo midiático, da omissão do Estado e das instituições de controle814.
Além de descortinar a atualidade do paradigma do campo de concentração
nos cárceres, convém analisar as implicações biopolíticas desta realidade para
aqueles que representam a matéria prima desta máquina de segregação seletivo-
punitiva.
812 “Descoberta vala comum com 200 corpos na Colômbia”. Fonte: www.cartamaior.com.br, Acessado em: 02/02/2010. 813 Segundo aponta o Censo Penitenciário Nacional 1994, 65% da massa carcerária é de negros e 95% são pobres. Ministério da Justiça. Censo Penitenciário Nacional 1994. 814 ANDRADE, V. R. P. de, Pelas mãos da criminologia – O controle penal para além da (des)ilusão, p. 32.
262
5.3.2 O preso como homo sacer
Um dos mais intrigantes conceitos trabalhados por Agamben é o de homo
sacer, que resgata do direito romano arcaico enquanto figura humana que pertence
a Deus na forma da insacrabilidade e é incluído na comunidade política pela
matabilidade. O homo sacer815 é aquele em relação ao qual todos os homens agem
como soberanos. É a absoluta vida nua, a vida cujo morticínio não configura
homicídio. É uma vida absolutamente matável, objeto de uma violência que
excede tanto a esfera do direito como a do sacrifício. É o indivíduo posto para fora
da jurisdição humana e religiosa. O homo sacer situa-se no cruzamento da
matabilidade com a insacrificabilidade, fora do direito humano e do campo divino.
A categoria homo sacer para o autor pode ser revisitada ao colocar em
análise certas categorias de indivíduos no contexto da política contemporânea.
Agamben propõe a pertinência do conceito para analisar a condição jurídica dos
judeus nos campos de concentração nazista, dos acusados de terrorismo em
Guantánamo, dos imigrantes perseguidos na Europa, e de refugiados em campos
de guerra. O traço comum a tais condições é a redução da vida digna (bíos) à mera
existência biológica (zoé). Para a concepção agambeniana, na política moderna é
decisivo o fato de que
lado a lado com o processo pelo qual a exceção se torna em todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espaço político. Assim, exclusão e inclusão, externo e interno, bíos e zoé, direito e fato, entram em uma zona de irredutível indistinção816.
Agamben aponta a nova soberania da biopolítica como um novo
paradigma, com deslocamento e progressivo alargamento, para além dos limites
da decisão sobre a vida nua. Portanto, a biopolítica converte-se em tânato-política,
que se movimenta por setores da vida social, “naquelas ditas vidas indignas de
serem vividas”817, as quais nem recebem pena e nem recebem direito. Nessa linha
pode-se refletir sobre a condição das pessoas privadas de liberdade. Esse enorme
815 AGAMBEN, G. Homo Sacer: poder o poder soberano e a vida nua I, p. 89. 816 Ibid., p. 16. 817 Ibid., p. 128.
263
contingente de “consumidores falhos”818, estes representantes da “ralé
brasileira”819 – jovens, negros e pobres - que serão matéria prima prioritária do
cárcere.
Na vigência perene do Estado de exceção no cárcere, nas masmorras do
sistema carcerário, os prisioneiros que lá se amontoam, são abandonados pelo
Estado. Neste sentido, vale retomar o conceito agambeniano de “bando”. Nas
palavras do autor:
in bando, a bandono significam originariamente em italiano ‘à mercê de (...) ’, e bandido significa tanto ‘excluído, banido’ quanto ‘aberto a todos, livre’... O bando é propriamente a força, simultaneamente atrativa e repulsiva, que liga os dois pólos da exceção soberana; a vida nua e o poder, o homo sacer e o soberano820.
Aquele que foi banido não é, na verdade, simplesmente posto fora da lei e
indiferente a esta, mas abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco
no limiar em que vida e direito, externo e interno se confundem. Esta perspectiva
oferece elementos para compreender o paradoxo identificado na ausência do
Estado no cárcere no que se refere a garantia de direitos dos presos, em
contrapartida, sua presença rotineira através de medidas voltadas a disciplina e
segurança.
A seletividade punitiva sobre estes segmentos populacionais no mais das
vezes remete à construção do imaginário do inimigo público a ser combatido. O
jurista alemão Gunther Jakobs821 salientava a necessidade de um “modelo ideal”
de exceção que, contrastando com o tipo ideal de garantias, o que denomina de
“Direito Penal do Cidadão”, estabeleça uma nova pauta normativa para o
tratamento punitivo do “indivíduo perigoso”, do “inimigo”. Assim, busca
estabelecer um divisor de águas entre o paradigma regular e inflexível (de
garantias) e o paradigma da exceção, presente no que denomina de “Direito Penal
do Inimigo”. Desta maneira, admite-se um contingente de indivíduos considerados
como subcidadãos ou dotados de uma cidadania negativa 822.
818 BAUMAN, Z., Em busca da política. 819 SOUZA, J. de, A ralé brasileira. 820 AGAMBEN, G., Homo sacer, p. 117. 821 JAKOBS, G. e CANCIO MELIÁ, M., Direito Penal do Inimigo, p. 16. 822 BATISTA, N., Fragmentos de um discurso sedicioso, p. 91.
264
Parece-nos que tal proposta, nitidamente avessa aos postulados da
democracia e dos direitos humanos, configura a fundamentação de políticas
criminais contemporâneas que tem por referência não o cidadão, mas o homo
sacer, a vida nua, portanto, não compreendidas nos marcos do Estado de Direito,
mas do Estado de exceção.
Se os inimigos públicos na Alemanha nazista eram os judeus, ciganos e
homossexuais, o inimigo público eleito como ameaça global pela política externa
estadunidense será o “terrorista”, de ascendência árabe. Se o inimigo interno do
Estado Brasileiro nos anos de chumbo era o militante comunista, com a política de
segurança orientada pelo discurso de guerra às drogas o alvo letal a ser combatido
passa a ser a figura do traficante, em sua grande maioria jovens, negros e
moradores de periferia. Neste sentido, relegados ao cárcere, os etiquetados como
“inimigos” e perigosos são imputados ao status de homo sacer, portanto, matáveis,
torturáveis, invisíveis, silenciados e indignos.
Esta percepção se confirma ao nos depararmos com a taxa de mortalidade
intencional nas as unidades prisionais. Segundo aponta o Anuário Brasileiro de
Segurança Pública 2014:
a taxa de mortes intencionais no sistema prisional é de 8,4 mortes para cada dez mil pessoas presas em um semestre, o que corresponderia a 167,5 mortes intencionais para cada cem mil pessoas privadas de liberdade em um ano. Esse valor é mais do que seis vezes maior do que a taxa de crimes letais intencionais verificada no Brasil em 2013823.
Os processos de rotulação, afeitos à teoria do labelling aproach, conduzem
o estigma de homo sacer, vivente na vida nua, aos presos, oriundos em sua
maioria de favelas e comunidades periféricas, tidos como as novas classes
perigosas. Wacquant ao explicitar o que compreende como criminalização da
pobreza, afirmará que essas categorias ontológicas não necessitam mais praticar
823 Considerada a taxa de crimes letais violentos intencionais em 2013, equivalente a 26,6 por cem mil habitantes. Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014, disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/storage/download/anuario_2014_20150309.pdf. Acessado em: 06/06/2015.
265
condutas delitivas para serem alvo do poder punitivo estatal, visto que elas
próprias tornam-se crimes824.
5.3.3 O Modelo Penitenciário na Era do Grande Encarceramento
Diante das já verificadas draconianas condições de detenção, a prisão, na
maioria dos países do Ocidente, aos poucos foi abandonando por completo o
projeto humanista vislumbrado pelo sistema penal da modernidade.
Primeiramente, com a derrocada do modelo da prisão-fábrica, presente nas então
chamadas casas de correção. Em um segundo momento, com a falência do modelo
disciplinar/correcional (pautado pelas ideologias ‘re’, como observou Foucault),
que idealizava a pena-tratamento, contendo o ideal ressocializador, mas corroído
pela crise do mundo do trabalho e pela precarização cada vez mais profunda dos
cárceres825. No limiar do capitalismo neoliberal, ao invés de experimentar avanços
civilizatórios, as prisões retrocederam ao obscurantismo da Idade Média.
O complexo penitenciário-industrial-expansionista, implementado nos
EUA e espraiado pelo mundo, sepulta o projeto moderno da prisão, dando ensejo
a uma penalogia de caráter atuarial, como identificado nos trabalhos de Feeley e
Simon826, portanto, uma lógica operativa prisional onde o escopo corretivo que
norteava o penitenciarismo desaparece. Na obra Política Criminal Atuarial,
Mauricio Dieter aponta que “o objetivo do novo modelo é gerenciar grupos, não
punir indivíduos: sua finalidade não é combater o crime – embora saiba se valer
dos rótulos populistas, quando necessário – mas identificar, classificar e
administrar segmentos sociais indesejáveis na ordem social da maneira mais
fluída possível.”827
824 WACQUANT, L., Punir os pobres, p. 49. 825 Como aponta Sozzo: El proyecto normalizador/disciplinario/correccional de la prisión moderna ha sido calificado como un fracaso desde su mismo nacimiento. SOZZO, M., Populismo punitivo, proyecto normalizador y “prisión-depósito” en Argentina. 826 Feeley e Simon argumentam que essa nova penalogia não é transformativa, mas apenas gerencial: ela estabelece uma vasta rede de controle, desde a prisão, para os indivíduos “mais perigosos”, à vigilância e à supervisão de infratores de baixo risco; as grandes expectativas do sistema passado — reinserção, tratamento, em suma, inclusão — são substituídas por protocolos formais internos de performance, sem referência a qualquer objetivo social concreto. FEELEY, M., SIMON, J., The new penology: notes on the emerging strategy of corrections and its implications. 827 DIETER, M., Politica criminal atuarial, p. 8.
266
No lugar do projeto normalizador/correcional emerge este novo modelo de
prisão, que pode ser identificado na metáfora ‘prisão-jaula’ ou ‘prisão-
depósito’828. Maximo Sozzo afirma que se trata de verdadeira antípoda, enquanto
tipo ideal, ao modelo normalizador:
Ni una “prisión-fábrica”, ni una “prisión-escuela”, ni una “prisión-monasterio”, ni una “prisión-familia”, ni una “prisión-asilo” o “prisión-hospital”. Una prisión sólo encierro y aislamiento, reglamentación, vigilancia y sanción. Una prisión “segura”. Una “prisión-jaula” o “prisión-depósito”829.
O sistema prisional não se apresenta mais nos moldes da prisão-fábrica -
como à época das casas de correção -, ou a prisão-tratamento - típica dinâmica
prisional do ideário correcionalista ao incorporar a progressão de regime por bom
comportamento, preconizar o trabalho, educação, assistência familiar, religiosa,
entre outros direitos vilipendiados no cárcere.
Na obra El Estado Penal y La Prison-Muerte, Elias Neuman assevera que
na atual quadra a prisão somente serve “como depósito e contenção de seres
humanos, e que aquilo que ensinam as leis vem a ser excelente, porém só no
papel”830. Todo legado teórico correcionalista/disciplinar vai sendo deixado de
lado, ao passo que se consolida uma um projeto de prisão calcado nas ideias de
isolamento, regulamentação, vigilância, segurança e sanção. Trata-se de um
projeto gerencialista831, preocupado com os ideais de segurança e controle de
risco. Segundo Garland, “onde a velha criminologia encaminhava–se mais na
direção do bem–estar e da assistência, a nova insiste no reforço dos controles e na
aplicação da disciplina"832.
828 SOZZO, M., op. cit. 829 Ibid. 830 NEUMAN, E., El Estado Penal y La Prison-Muerte, p. 151. 831 Adota-se uma perspectiva gerencialista que perpassa por três etapas: primeiramente, é preciso identificar os indivíduos com “perfil de risco”; em segundo lugar, é necessário classificar esses indivíduos em busca dos que efetivamente podem ser considerados “perigosos” ou de “alto risco”; por fim, é imprescindível a criação de mecanismos para neutralizar esses indivíduos pelo maior período de tempo possível, sem se preocupar com questões relacionadas à sua ressocialização. DIETER, M., op. cit. 832 Garland observa que, se no passado a criminologia se preocupava com o crime de modo retrospectivo e individual, de modo a isolar o ato ilícito individual e atribuir-lhe uma pena ou um tratamento, hoje o crime é visto de modo prospectivo, e em termos agregados, como forma de calcular riscos e estabelecer medidas preventivas. GARLAND, D., A Indústria do Controle, p. 15.
267
O encarceramento massivo, ao chegar no Brasil a partir dos anos de 1990
também irá romper com o ideário ressocializador, aqui incorporado, sobretudo,
pela Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84)833. Em verdade, o projeto moderno da
prisão nunca foi implementado de fato no Brasil, a despeito da incorporação do
discurso da Escola da Defesa Social pugnando pelo mito da ressocialização.
O modelo correcionalista, traduzido no sistema progressivo reafirmado
pela LEP vai sofrendo sucessivas transfigurações na Era do Grande
Encarceramento. Primeiramente, a ruptura com o princípio da igualdade834, com a
Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90). Em seu texto original, proibia a
progressão de regime para os delitos tipificados como hediondos ou equiparados,
só vindo a ser admitida tal hipótese a partir da Lei Nº 11.464/07, entretanto com
prazo mais gravoso835.
Ademais, perniciosamente decisivo ao delineamento do modelo de sistema
penitenciário brasileiro é o advento do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). A
Lei 10.792/03 alterou a LEP, dando ensejo a esta nova modalidade de sanção
disciplinar836 que remonta ao sistema penitenciário filadélfico, visto que preconiza
o isolamento celular prolongado. Por tais motivos, parte significativa da
comunidade jurídica entende se tratar de medida inconstitucional por afrontar o
princípio da dignidade da pessoa humana em sua dimensão prima facie837.
833 Quase todas as leis de execução penal da América Latina e do Caribe foram escritas tomando por base as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos, com forte base no ideário correcionalista. LEAL, C. B., Execução Penal na América Latina à luz dos Direitos Humanos, p. 117. 834 CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal, p. 280. 835 O Superior Tribunal Federal, ainda que tardiamente, decidiu pela inconstitucionalidade do referido dispositivo legal, por ofensa à individualização da pena e por ferir expressamente o sistema progressivo instituído pelo ordenamento repressivo. Por conseguinte, o Congresso Nacional aprovou a Lei Nº 11.464/07 que alterou passa admitir a progressão de regime aos crimes hediondos, entretanto com prazo mais gravoso para concessão do benefício. Lei de crimes hediondos – Art. 2 - § 2o A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente. (Redação dada pela Lei nº 11.464, de 2007). 836 Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características: I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada; II - recolhimento em cela individual; III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas; IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol. 837 Em 2012, o Instituto dos Advogados Brasileiros aprovou Parecer pela inconstitucionalidade do R.D.D. Cumpre ainda salientar que o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
268
A suposta progressividade norteadora do sistema carcerário adotado no
país é posta em xeque por outras profundas problemáticas, não de natureza
normativa, mas de ordem estrutural. Os alarmantes índices de superlotação
acarretam a escassez crônica de vagas para a garantia da execução penal no
regime adequado. Por este fato, não é raro o apenado preencher os requisitos
objetivos e subjetivos exigidos pela LEP para progressão de regime, no entanto
permanecer no regime mais gravoso do que lhe cabe por direito. Tal anomalia
constitui o denominado desvio de execução838.
Estes elementos apontam para uma realidade carcerária onde a segregação
punitiva prevalece sobre quaisquer ideais correcionais. A despeito da vigência do
sistema progressivo, o modelo penitenciário concretamente em vigor é
eminentemente fechado.
Portanto, claramente vai se observando no Brasil a superação do
paradigma correcional/ressocializador para a afirmação do modelo atuarial, a
prisão-depósito. Entretanto, consideramos que aqui neste “território marginal”, o
modelo da prisão-depósito, típico da penalidade neoliberal, assume contornos
peculiares. Acerca de seus traços característicos, Luiz Flávio Gomes alerta:
O novo modelo de prisão, chamado de prisão-jaula ou prisão-depósito (ou, ainda, de prisão-latrina), é uma prisão sem trabalho, sem educação, sem família, sem observação, classificação e tratamento, sem flexibilização no encarceramento, sem segurança, sem individualidade, sem privacidade, sem respeito aos direitos mínimos das pessoas presas etc839.
Esta trajetória do paradigma penitenciário pode então ser visualizada, de
modo esquemático, conforme o quadro abaixo:
unanimemente apresentou parecer questionando a constitucionalidade da inclusão do R.D.D no texto da Lei de Execução Penal, especialmente os arts. 52, 53, V, 54, 58 e 60. Na mesma esteira, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, através do processo n° 045/2006 opinou pela inconstitucionalidade desta inovação legislativa. A respeito do R.D.D. ver também 838 Segundo Almeida: “É certo que a ausência de vagas no regime adequado para: i) o preso cautelar (custodiado numa Cadeia Pública ou Centro de Detenção Provisória) que venha a ser condenado no regime inicial aberto ou semiaberto; ii) o réu que aguardou solto o trânsito em julgado de igual condenação ou; iii) o condenado no regime fechado, como na maioria das vezes, que obteve a progressão de regime; são situações que caracterizam o nefando desvio de execução. Ocorre que a questão do desvio é um problema crônico no sistema penitenciário nacional”. ALMEIDA, F. L. de. A execução da pena no anteprojeto do Código Penal: uma análise crítica. 839 GOMES, L. F., Sistema carcerário brasileiro: a latrina da justiça criminal. Disponível em: http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/2468522/data-venia-sistema-carcerario-brasileiro-a-latrina-da-justica-criminal. Acessado em: 15/07/2015.
269
Tabela 14: Quadro comparativo dos Modelos Punitivos
Modelo Sistema penal medieval
Prisão-Fábrica Prisão –Tratamento
Prisão-Depósito Prisão-Tortura
Período Antigo Regime Séc. XVII-XVIII Séc. XVIII-XX A partir dos anos 80 (EUA)
A partir dos anos 90 (Brasil)
Sistema Econômico
Feudalismo/ Mercantilismo
Mercantilismo/ Capitalismo
(1ª Rev. Industrial)
Capitalismo (fordismo)
Neoliberalismo (pós-fordismo)
Neoliberalismo (pós-fordismo no
capitalismo periférico)
Punição Penas corporais e de morte
Prisão com trabalho
Prisão (ideal res-
socializador)
Grande encarceramento (unidades sem superlotação)
Grande encarceramento (superlotação e
tortura sistêmicas)
Funções da Pena
(discurso)
Retribuição Neutralização (pena capital)
Retribuição Ressocialização (exploração do
trabalho prisional)
Retribuição Ressocialização
(declínio do trabalho prisional)
Retribuição Neutralização
Retribuição Neutralização
Característica
Suplícios, penas de morte na
fogueira e forca
Casas de correção Modelo Correcionalista Progressão de
regime prisional
Modelo Atuarial Estado Penal
Modelo Atuarial (condições
degradantes) Estado Penal e
Estado de exceçãoSociedade (Forma de
poder)
Sociedade de soberania
(poder soberano)
Sociedade disciplinar
(poder disciplinar)
Sociedade disciplinar
(poder disciplinar)
Sociedade de controle (biopolítica)
Sociedade de controle (biopolítica)
É preciso ter em mente que o hiperencarceramento levado a cabo nos
EUA, dá ensejo ao que Wacquant denomina de Big Government carcerário, com o
investimento anual da ordem de mais de U$ 250 bilhões, edificando uma
monumental estrutura de penitenciárias de segurança máxima, com taxa de
ocupação atualmente em índice de 102%. Por outro lado, o caso brasileiro é
nitidamente mais grave, como observa Wacquant:
É apavorante o estado das prisões no Brasil, que se parecem mais com campos de concentração para pobres, ou com empresas públicas de depósito industrial dos dejetos sociais, do que com instituições judiciárias servindo para alguma função penalógica (...) O sistema penitenciário brasileiro acumula com efeito as taras das piores jaulas do Terceiro Mundo, mas levadas a uma escala digna do Primeiro Mundo, por sua dimensão e pela indiferença estudada dos políticos e do público840.
Assim é caracterizado o Estado penal brasileiro, marcado por verdadeiras
masmorras medievais, literalmente um depósito humano onde se amontoam
840 WACQUANT, L., As prisões da miséria, p. 13.
270
corpos até não mais caber. Além da precariedade infraestrutura, os índices de
superpopulação são assustadores, chegando à média nacional de 161%. Soma-se
este dantesco cenário o reduzido número de profissionais que atuam nesses
estabelecimentos. Trata-se de um quadro crônico de práticas de tortura,
tratamentos cruéis, desumanos e degradantes. Neste sentido, é possível identifica-
lo como uma faceta mais deletéria da prisão-depósito, a prisão-tortura, o modelo
prisional onde degradação humana do interno é estrutural e sistêmica.
5.3.4 As Funções da Pena na Era do Grande Encarceramento
Até 1984 o legislador brasileiro nunca havia se pronunciado acerca da
finalidade da pena em nosso ordenamento jurídico. Com a reforma penal, no que
tange às funções (manifestas) da pena, consagram-se no art. 59 do Código Penal a
reprovação e a prevenção, compreendendo, portanto, as finalidades delineadas
pelo discurso oficial da pena: retribuição, prevenção geral e prevenção especial.
Parte da doutrina não especifica esta abrangência, de outra sorte, alguns autores
apontam que neste bojo são contidas todas as funções penalógicas: retribuição,
integração da norma penal, intimidação, ressocialização e neutralização841.
A Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84), em seu artigo 1º dispõe sobre os
objetivos da execução penal no direito brasileiro, atribuindo-lhe o papel de
“proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado”, além
da efetivação do disposto na sentença condenatória. Constitui, portanto, expressão
da finalidade penalógica preventivo-especial positiva. Nas palavras de Carvalho:
“o advento da Lei de Execução Penal em 1984, inspirada no programa político-
criminal do movimento da nova defesa social, tematiza o projeto punitivo
moldando-o a partir da noção de ressocialização”.842
841 Neste sentido, aponta CIRINO DOS SANTOS: “No Brasil, o Código Penal consagra as teorias unificadas ao determinar a a aplicação da pena ‘conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime’ (art. 59, CP): a reprovação exprime a ideia de retribuição da culpabilidade; a prevenção do crime abrange as modalidades da prevenção especial (neutralização e correção do autor) e de prevenção geral (intimidação e manutenção/reforço da confiança na ordem jurídica) atribuídas à pena criminal”. Segundo o autor, a teoria unificadora é verificada também no Código Penal Alemão, em seus arts. 46 e 47. CIRINO DOS SANTOS, J., Teoria da Pena, p. 12-13. 842 CARVALHO, S. de. Antimanual de Criminologia, p. 259.
271
Deste modo, extrai-se que a função da pena exercida pela execução penal
refere-se à prevenção especial, ao passo que a retribuição e a prevenção geral
devem ocorrer em outra fase, no momento da sentença, como definido pelo artigo
59 do Código Penal.
Entendimento corrente na doutrina brasileira, com base no escopo legal
delineado, compreende que entre nós foi adotada a teoria penalógica mista ou
unificadora. Seguindo a classificação de Claus Roxin843, os doutrinadores
observam que a interpretação do art. 59 do Código Penal é padronizada no sentido
da adoção de uma “Teoria Mista Aditiva”, na qual não há prevalência de um
determinado fator. Não há preponderância da retribuição ou da prevenção, ambos
os fatores coexistem, sem constituir uma relação de hierarquia.
O advento da Constituição Federal de 1988, segundo Salo de Carvalho844,
não acompanha o delineamento das funções da pena ensejado pela Parte Geral do
Código Penal, com a reforma legislativa de 1984, e pela Lei de Execuções Penais.
Diferentemente do que se verifica em textos constitucionais alienígenas, a
exemplo de Espanha e Itália, a Carta Política de 1988 não prescreve funções
penalógicas (por que punir?).
“A perspectiva absenteísta sobre os discursos de justificação impõe
critérios limitativos à interpretação, aplicação e execução das penas” (como
punir?). Tais parâmetros limitadores encontram-se constitucionalizados nos
incisos XLV, XLVI, XLVII, XLVIII e XLIX do art. 5º, estabelecendo
respectivamente os princípios da pessoalidade, individualização da pena,
humanidade e respeito à integridade física e mora. Cabe ressaltar a garantia
expressa particularmente na alínea “e” do inciso XLVII, ao estabelecer a vedação
das penas cruéis (além da vedação às penas de morte, perpétua, trabalhos forçados
e banimento, nas demais alíneas). Tal dispositivo constitui, segundo Carvalho, o
princípio da vedação do excesso punitivo845.
A ausência de um discurso justificador, mas tão somente a negativa à
universalização da crença punitiva por parte do constituinte originário, permitiria
843 ROXIN, C., Derecho Penal. Parte General, p. 229. 844 CARVALHO, S. de, op. cit., p. 260. 845 Ibid., p. 260.
272
a extrair a interpretação de uma teoria agnóstica da pena a partir do texto
constitucional846.
Novas reformas legislativas voltaram a traçar o perfil das funções
penalógicas em nosso ordenamento jurídico. A incorporação das penas
alternativas (Lei 7.209/84)847, sua posterior ampliação (Lei 9.714/98)848 e a
implementação dos juizados especiais criminais (Lei 9.099/95)849, voltados para
crimes de menor potencial ofensivo, representariam leis penais com ênfase na
função de prevenção especial negativa - sendo possível perceber ainda na Lei
9.099/95 a finalidade retributiva, com foco na reparação do dano.
Estas manifestações seriam, em tese, integradas a uma política criminal
minimalista com o escopo de contenção do poder punitivo. Entretanto, tais
reformas têm alimentado uma eficácia invertida. Paradoxalmente, tem contribuído
para ampliar o controle social punitivo e relegitimar o sistema penal, constituindo,
portanto, um processo de acumulação de poder punitivo.
O crescente fenômeno do populismo penal850, por sua vez, dá ensejo ao
advento de leis penais repressivistas, com a preponderância das funções prevenção
geral negativa e da prevenção especial negativa, como se expressa na Lei de
Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), no Regime Disciplinar Diferenciado (Lei
10.792/03), na Lei de Drogas (Lei 11.343/06) e na recente Lei de Organizações
Criminosas (Lei 12.850/13).
Esta erosão normativa - expressão utilizada por Hassemer para caracterizar
o recrudescimento do Direito Penal em face de direitos e garantias individuais –
denota de um lado, pusilanimidade no que tange ao horizonte de um projeto
penalógico claro, de outro revela a fusão de teorias justificantes contraditórias e
ambíguas. Trata-se de hipertrofia legislativa penal alheia ao fracasso dos discursos
oficiais da pena para conter a crise crescente no sistema penal.
846 Ibid., p. 261. 847 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1980-1988/L7209.htm. Acessado em:
06/06/2015. 848 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9714.htm. Acessado em:
06/06/2015. 849 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm. Acessado em:
06/06/2015. 850 Acerca do conceito de populismo punitivo, ver SOZZO, M., op. cit.
273
Cabe ainda refletir sobre as funções penalógicas mais claramente
assumidas na Era do Grande Encarceramento. A adoção das teorias legitimadoras
da pena já revela não encontrar ressonância na realidade social no que se refere à
sua efetividade, restringindo-se a uma perspectiva meramente normativista e
idealista. Uma vez constatado caráter ilusório e mítico das funções declaradas da
pena (retribuição, prevenção geral e especial), é necessário buscar identificar suas
funções reais sob a égide do empreendimento neoliberal, o capitalismo vídeo-
financeiro. Em Punir os pobres, Loic Wacquant aponta que:
o explosivo aumento do alcance e da intensidade da punição – nos EUA nos últimos 30 anos, e na Europa Ocidental nos últimos 12 anos – preenche três funções inter-relacionadas, correspondendo, cada uma delas, grosso modo, a um “nível” da nova estrutura de classes, dualizada pela desregulamentação econômica.851
Em resumo, o autor aponta que o encarceramento massivo tem como
funcionalidades:
i) a neutralização e depósito físico de “frações excedentes da classe
operária, notadamente os membros despossuídos dos grupos estigmatizados que
insistem em se manter ‘em rebelião aberta contra seu ambiente social’”852.
ii) “a função econômica e moralmente inseparável de impor a disciplina do
trabalho assalariado dessocializado entre as frações superiores do proletariado e os
estratos em declínio e sem segurança da classe média, através, particularmente, da
elevação dos custos das estratégias de escape ou de resistência que empurram
jovens do sexo masculino da classe baixa para os setores ilegais da economia de
rua”853.
iii) “a missão simbólica de reafirmar a autoridade do Estado e a vontade
reencontrada das elites políticas de enfatizar e impor a fronteira entre os cidadãos
de bem e as categorias desviantes, os ‘pobres merecedores’ e os ‘não-
merecedores’”854, os que devem ser inseridos e os que devem ser excluídos.
Desta maneira, consolida-se nas últimas décadas o questionamento à
legitimidade do sistema penal, conduzindo o Estado a assumir um discurso
851 WACQUANT, L., Punir os pobres, pp. 16-17. 852 Ibid. 853 Ibid. 854 Ibid.
274
gerencialista855 que, em suma, acomoda-se em afirmar não haver saída menos pior
do que a prisão. O debate sai do âmbito das soluções aos problemas, para o
âmbito do gerenciamento das crises. O modelo correcionalista, que antes
preponderava ênfase na função ressocializadora, cada vez mais dá lugar a um
modelo atuarial – a prisão-depósito -, dirigido, sobretudo, à retribuição e à
neutralização dos condenados.
No modelo atuarial, abandona-se completamente a função declarada de
correção do condenado, coloca-se um fim às ilusões ‘re’, abraçando outros
objetivos como legitimação da sua própria existência. Entretanto, permanece viva
a noção de retribuição do dano causado pelo delito por meio da imposição
intencional de sofrimento ao preso. Por outro, de forma prioritária, a incapacitação
ou neutralização do preso, durante um lapso de tempo mais ou menos prolongado,
de forma tal que não possa reincidir no delito, protegendo o público, gerando
segurança. Nas palavras de Dieter, busca-se “utilizar a pena criminal para o
sistemático controle de “grupos de risco mediante neutralização” de seus
membros salientes, isto é, a gestão de uma permanente população “perigosa”, pelo
menor preço possível.”856
No Grande Encarceramento brasileiro, seria acrescido ainda mais um
elemento: a tortura como prática sistêmica. Para entender a teleologia da tortura e
maus tratos nos cárceres da periferia capitalista, é preciso dimensionar a distinção
entre as condições dos estabelecimentos prisionais do Leviatã penal estadunidense
e as ‘masmorras medievais’ do arquipélago penitenciário no Brasil e demais
países da América Latina. Neste sentido, convém mencionar a percepção de De
Giorgi:
O controle atuarial como controle apropriado ao estado penal tem como seu princípio mais importante o "Cost- Benfits Analysis". Este princípio nasce de um desencanto criminológico. Um desencanto proveniente de uma tendência criminológica que percebe o sujeito criminoso como um indivíduo plenamente em grau de decidir se tem ou não um comportamento desviante857.
855 “Em um modelo regido pela lógica gerencialista, o mapeamento das zonas e dos grupos de risco e o cumprimento das metas político-criminais que invariavelmente resultam em encarceramento são os indicadores da eficiência das políticas de controle” CARVALHO, S. de, Penas e Medidas de Segurança, p. 108. Neste sentido, ver ainda, GARLAND, D., A Cultura do Controle; e DIETER, M., Política Criminal Atuarial. 856 DIETER, M., op. cit., p. 100. 857 DE GIORGI, A., A miséria governada pelo sistema penal.
275
Portanto, uma vez que não se dispõe de sólidas estruturas com vigilância,
paredes, grades e vagas suficientes à neutralização dos internos, o quadro crônico
de tortura tem o condão utilitário de promover a inocuização total do preso ao
submetê-lo a uma realidade sistêmica de tortura, tratamentos cruéis, desumanos e
degradantes. Esta seria decorrente de uma cost-benfits analysis em nosso sistema
carcerário. Trata-se da aniquilação total da subjetividade através da violência
institucional, cumprindo vezes de gerencialismo penitenciário, no modelo atuarial
à brasileira.
Nesses termos, uma vez tendo identificado a penalidade neoliberal nos
marcos da prisão-tortura, cabe analisar as possíveis estratégias para a contenção
do paroxismo punitivo da prisão na Era do Grande Encarceramento.
6 Estratégias de contenção do Grande Encarceramento: contribuições da Criminologia Cautelar
Una análisis real y radical de las funciones efectivamente ejercidas por la cárcel, el conocimiento del fracaso histórico de esta institución en cuanto a los fines del control de la criminalidad y la reincorporación del desviado en la sociedad, de la incidencia que ella tiene, no solo en el proceso de marginalidad de los sujetos en forma individual, aun el exterminio de las fases marginales de las clases obreras, no pueden sino llevarnos a una conclusión radical en la individualización de los objetivos finales de una estrategia alternativa. Este objetivo es la abolición de las instituciones carcelarias. Derribar los muros de la cárcel tiene para la nueva criminologia el mismo significado pragmático que los muros del manicomio para a nueva siquiatria.(Alessandro Baratta)858
Como interromper o grande encarceramento? Como conter os tentáculos
do Estado penal brasileiro? Como superar o paradigma da prisão-tortura?
Perguntas que parecem não encontrar luz no fim do túnel, em meio às densas
trevas que se erguem no cárcere, diante do adverso horizonte impregnado de
retribucionismo e clamor punitivo.
O pensamento de Deleuze e Guattari contribui nesta problematização. Os
autores consideram que as tecnologias corporais, nas suas formas mais variadas de
aplicação, podem ser tomadas no interior de uma dupla dobra, pois, além de serem
produto do controle, são ao mesmo tempo “linhas de fuga”859, que representam a
ruptura ou pequenas transgressões do tempo presente.
858 BARATTA, A., Criminología y Sistema Penal, p. 372. 859
Deleuze descreve, de maneira mais específica, três linhas segundo as quais somos compostos: a linha de segmentaridade dura, ou de corte molar, a linha de segmentação maleável ou de fissura molecular e uma espécie de linha de fuga ou de ruptura. Essas linhas nos atravessam, compondo nossos mapas. Nos termos de Deleuze e Guattari: “de todas essas linhas, algumas nos são impostas
277
Ainda que microscópicas, as resistências existem, e insistem em lutas
constituintes, encontram linhas de fuga, manifestam-se como um contra-poder. Na
visão de Foucault, a resistência não seria o subproduto das relações de poder “sua
marca em negativo, formando, por oposição à dominação essencial, um reverso
inteiramente, passivo, fadado à infinita derrota” 860. A resistência antecede o poder,
é primeira. Se fosse apenas oposição ou secundária ao poder, não haveria
resistência. No sentido utilizado por Foucault861, “para resistir, é preciso que a
resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele.
Que, como ele, venha de ‘baixo’ e se distribua estrategicamente”. Nesse sentido,
as resistências para Foucault têm o primado nesse campo das correlações de força,
permanecendo superior a todas as forças do processo.
Assim, para interromper o Grande Encarceramento que se processa na
governamentalidade das “vidas nuas”, das classes subalternas, da “ralé brasileira”,
é preciso identificar as manifestações de resistência aos arbítrios do poder
punitivo que buscam constituir uma nova sociabilidade que aponte para a
superação da segregação punitiva.
Neste capítulo apontaremos um conjunto de medidas que podem
representar parte desta resistência. Inicialmente, buscaremos apontar as
contribuições da perspectiva da Criminologia Cautelar, proposta por Zaffaroni,
como prevenção do massacre no sistema penal.
Em um segundo momento, iremos abordar as possíveis estratégias de
contenção do encarceramento massivo. Neste bojo, verifica-se a importância do
Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura, dando
ensejo aos Mecanismos de Prevenção à Tortura. Posteriormente, será analisado o
debate sobre o Estado de Coisas Inconstitucional e aplicabilidade à realidade
carcerária brasileira. No segundo item, trataremos das recentes discussões em
torno da Responsabilidade Civil do Estado diante de superlotação, condições
desumanas e degradantes no sistema prisional, bem como a possibilidade de uma
de fora, pelo menos em parte. Outras nascem um pouco por acaso, de um nada, nunca se saberá por quê. Outras devem ser inventadas, traçadas, sem nenhum modelo ou acaso: devemos inventar nossas linhas de fuga se somos capazes disso, e só podemos inventá-las traçando-as efetivamente, na vida”. DELEUZE, G., e GUATTARI, F., Mil Platôs. vol. 3, p. 76. 860
FOUCAULT, M., História da sexualidade I: a vontade do saber, p. 91. 861
Id., Microfísica do poder, p. 241.
278
nova modalidade de remição. Em seguida, traremos a lume a Audiência de
Custódia, como possível medida desencarceradora. Ademais, será colocada em
questão a possibilidade de contenção do poder punitivo ou de sua ampliação, com
o advento das Penas Alternativas e Alternativas Penais, bem como outros
dispositivos potenciais redutores do sistema penal.
Por fim, no terceiro tópico, será visitado o debate entre as perspectivas
minimalistas e abolicionistas, no ensejo de analisar as reais possibilidades de
enfrentamento às mazelas da Era do Grande Encarceramento.
6.1 Por uma Criminologia Cautelar
Coloca-se premente a necessidade de estabelecer limites claros ao poder
penal. Conforme assinala Vera Regina de Andrade, é preciso como nunca
compreender as entranhas do controle penal decifrando a própria dinâmica do
poder ou dos poderes econômico, financeiro, midiático, político, punitivo oficial
(poder legislativo, policial, ministerial, judicial, acadêmico) e micropoderes
sociais862.
Este desafio pode encontrar suporte teórico nos marcos da “Criminologia
Cautelar”, preconizada por Raúl Zaffaroni. O jurista portenho afirma que estamos
passando por uma nova fase, a qual denomina "criminologia da precaução" ou
“Criminologia Cautelar”, que se origina de “Cautio”, significando cautela,
prudência, limitação no exercício do poder punitivo863. Em última análise, como
aponta o autor, se trata de:
militar activamente por la aplicación científica de conocimientos en una acción constante dirigida a evitar cadáveres anticipados y masacres, que en su camino
862 ANDRADE, V. R. P. de, Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão, p. 161. 863 Zaffaroni apresenta um detalhado programa político criminal de controle do poder punitivo, inspirado em Cautio Criminallis de Friedrich Spee von Langenfeld, de 1631, que visa controlar , reduzir e limitar os instintos vingativos do sistema de justiça penal e promover a prevenção cautelar da violência criminal. ZAFFARONI, E. R., A Palavra dos Mortos: conferências de criminologia cautelar, p. 553-554.
279
debe ocuparse también –como paso necesario- de abatir los niveles de violencia social864.
Constitui um olhar criminológico que “proporcione la información
necesaria y alerte acerca del riesgo de desborde del poder punitivo susceptible de
derivar en una masacre”865. Trata-se, portanto, de uma criminologia antiviolência,
voltada à prevenção dos massacres presentes nos cárceres, voltada à superação da
barbárie institucionalizada no sistema penal, visto que “o sistema penal é um
massacre em potencial”.866
Necessário se faz refletir sobre as estratégias que podem ser adotadas para
conter a violência do sistema penal, sobretudo na América Latina. Cabe pensar a
prevenção dos massacres não através da importação de modelos do centro para a
periferia, mas formular as saídas diante de nossa realidade marginal, que por sinal,
historicamente é muito mais marcada pelas vozes e corpos subjugados pelos
massacres.
A criminologia cautelar representaria, assim, uma militância
criminológica, dotada de um ativismo que a permita sair da confortável torre de
marfim, e disputar a hegemonia do modelo de política criminal. Uma perspectiva
menos disposta às infindáveis filigranas teóricas e dogmáticas, e mais voltada à
práxis, uma criminologia que ocupe as ruas, que dispute os meios de comunicação
e o sentido das agências do sistema de justiça criminal.
Deste modo, Zaffaroni lança o manifesto por essa criminologia que
incorpore as lutas em defesa dos invisíveis, dos silenciados, dos indignos, do
homo sacer matável nos massacres da letalidade policial aos torturáveis
amontoados nos cárceres, ou seja, por uma ruptura com o processo de alienação
construído desde o positivismo criminológico e expandido no tempo presente com
o senso comum da criminologia midiática867. Assim, Zaffaroni propõe reconstruir
o saber cautelar com o objetivo de prevenir os massacres.
864 “Militar ativamente pela aplicação do conhecimento científico em uma ação constante para evitar cadáveres antecipados e massacres, em vistas também - como passo necessário – de reduzir os níveis de violência social” (trad. nossa) Ibid. 865 “Fornecça as informações necessárias e alerte sobre o risco de que o poder punitivo suscetível de transbordar para o massacre”. Ibid., p. 497. 866 “O sistema penal é um massacre em potencial”. Ibid., p. 553. 867 Ibid., p. 467.
280
Neste sentido, como alude a organização de direitos humanos Anistia
Internacional “A superlotação é hoje um dos mais graves problemas nas prisões e
outros locais de detenção. Em muitos países, reduzir o número de pessoas
mantidas sob custódia ou encarceramento seria a maneira mais simples e
econômica de diminuir a superlotação e melhorar as condições de detenção”868.
Em célebre reflexão, Foucault afirmara que “enquanto o sistema punitivo
clássico não for totalmente reconsiderado, haverá muito poucas críticas radicais da
tortura”869. Assim, diante dos tempos difíceis que marcam a Era do Grande
Encarceramento, cabe, portanto, o compromisso teórico e prático de resistência
frente à barbárie institucionalizada que jorra do poder punitivo, cabe identificar as
estratégias que possam constituir o ‘dique de contenção’ ao Estado penal.
6.2 Estratégias de contenção do encarceramento massivo
Apesar do sucesso fulgurante do Estado penal, incorporado sem
parcimônia na periferia segundo a cartilha político-criminal do capitalismo
neoliberal, há também importantes movimentos de resistência. Essas linhas de
fuga podem ser percebidas em intensos embates sobre os rumos das agências
punitivas. Atualmente, emergem com cada vez maior consistência estratégias que
podem representar a superação do encarceramento massivo. Buscaremos transitar
por alguns destes discursos e políticas que se colocam como alternativa concreta
para este “dique de contenção” do poder punitivo.
6.2.1 Mecanismos de Prevenção à Tortura a) Sistema Internacional de Prevenção à Tortura
Uma importante medida de política criminal que pode contribuir para a
limitação do poder punitivo consiste na consolidação do denominado Sistema
Internacional de Prevenção à Tortura. O Protocolo Facultativo à Convenção
contra Tortura e outros Tratamentos, penas, cruéis, desumanos e degradantes
868 Anistia Internacional, Combatendo a Tortura – Manual de Ação, p. 134. 869 FOUCAULT, M., Vigiar e Punir, p. 36.
281
(OPCAT), aprovado pela Assembleia Geral da ONU em 2002, vem materializar
uma longa luta das organizações de direitos humanos pela implementação de
uma efetiva política de enfrentamento à tortura e outros maus tratos870. Seu
objetivo principal, como dispõe seu art. 1º é: “(...) estabelecer um sistema de
visitas periódicas a cargo de órgãos internacionais e nacionais independentes
aos lugares em que se encontrem pessoas privadas de liberdade, com o fim de
prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou
degradantes”.
A expectativa era de que o OPCAT pudesse atender aos anseios expressos
na seguinte análise de Nigel Rodley, ex-relator Especial sobre Tortura das Nações
Unidas:
O relator especial está convencido de que há a necessidade de uma transformação radical nas ideias da sociedade internacional a respeito da natureza da privação de liberdade. O paradigma fundamental, tomado como certo há pelo menos um século, é o de que prisões, delegacias de polícias e afins, são lugares fechados e secretos, onde se realizam atividades escondidas do conhecimento público. (...) O que se faz necessário é substituir o paradigma da opacidade pelo da transparência. Deve-se promover o acesso livre a todos os lugares de privação de liberdade.871
Com a implementação do Protocolo, busca-se a constituição de um sistema
internacional de prevenção à tortura, baseado em um monitoramento aos locais de
privação de liberdade, através de dois pilares: a criação de um Subcomitê
Internacional (SPT) e dos Mecanismos de Prevenção Nacionais (MPN).
Atualmente 79 Estados-parte já ratificaram o Protocolo Facultativo à Convenção,
sendo que 61 já criaram seus Mecanismos Preventivos Nacionais (MPN).
Atualmente, segundo dados da Associação para a Prevenção à Tortura872, há 51
870 “Inspirado pelos resultados das visitas a prisões durante os tempos de guerra conduzidas pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), o filantropo suíço Jean-Jacques Gautier buscou criar um sistema de visitas regulares a todos os centros de detenção ao redor do mundo. Seguindo um processo longo e árduo de negociações, um sistema preventivo foi finalmente elaborado em 18 de dezembro de 2002, quando o Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Protocolo Facultativo) foi adotado pela Assembléia Geral da ONU.” IIDH/APT . Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes – Manual de implementação, p. 9. 871 Sir Nigel Rodley Ex-relator Especial sobre Tortura das Nações Unidas 3 de julho de 2001, A/56/156, § 35. 872 Levantamento feito pela Associação para a Prevenção à Tortura, organização não governamental que em matéria de direitos humanos no âmbito internacional, fomentando maior
282
MPNs designados, em sua grande maioria situados na Europa e na América
Latina873.
O Subcomitê para a Prevenção da Tortura e Outros Tratamentos ou Penas
Cruéis, Desumanos ou Degradantes, é um órgão composto por vinte e cinco
membros independentes propostos e eleitos pelos Estados-Partes do Protocolo.
Em seu trabalho, o Subcomitê tem a atribuição de monitorar os locais de privação
de liberdade874 nestes países, guiado pelos princípios do “sigilo, imparcialidade,
não seletividade, universalidade e objetividade” (Artigo 2°). Atuação similar
deverá ser desempenhada pelos Mecanismos Nacionais de Prevenção à Tortura,
no âmbito interno (Artigo 3º).
Destaca-se a importância da atuação destes órgãos, sobretudo no contexto
do Grande Encarceramento, visto que as pessoas privadas de liberdade se
encontram em altíssima vulnerabilidade, expostas ao maior risco de sofrer
violações aos direitos humanos. Sua segurança e bem-estar estão sob a
responsabilidade do Estado que os custodia, “que deve garantir condições de
detenção que assegurem o respeito aos direitos humanos dos detentos. Portanto, o
monitoramento das condições de detenção constitui parte integral do sistema de
proteção de pessoas que se encontram privadas da liberdade”875.
A atuação do Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura
(SPT) e dos Mecanismos centra-se na noção de um “mandato preventivo”,
entendendo-se como prevenção da tortura e de outros tratamentos ou penais
cruéis, desumanos e degradantes:
desde a análise de instrumentos internacionais de proteção até o exame das condições materiais de detenção, considerando políticas públicas, orçamentos, regulações, orientações escritas e conceitos teóricos que explicam os atos e
efetividade ao OPCAT em todo o mundo. Disponível em: http://www.apt.ch/en/. Acessado em: 14/07/2015. 873 No tocante à América Latina, catorze países já haviam ratificado o Protocolo Facultativo: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Costa Rica, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru e Uruguai. 874 A noção de centros de detenção ou locais de privação de liberdade abarca o conjunto de estabelecimentos públicos ou privados, como prisões, delegacias, unidades de internação de crianças ou adolescentes, hospitais psiquiátricos, centros de detenção militar e até mesmo abrigos. Art. 4º do OPCAT: “Para os fins do presente Protocolo, privação da liberdade significa qualquer forma de detenção ou aprisionamento ou colocação de uma pessoa em estabelecimento público ou privado de vigilância, de onde, por força de ordem judicial, administrativa ou de outra autoridade, ela não tem permissão para ausentar-se por sua própria vontade”. 875 IIDH/APT, op. cit., p. 4.
283
omissões que impedem a aplicação de princípios universais em condições locais.876
Para tanto, o propósito fundamental dos mandatos preventivos é o de
“identificação dos riscos de tortura”877 e, a partir da ação proativa de
monitoramento de centros de privação de liberdade, prevenir que as violações
sejam perpetradas. O enfoque preventivo se baseia na premissa de um diálogo
cooperativo com as autoridades competentes para coibição da tortura e outros
tratamentos degradantes e cruéis à pessoa privada de sua liberdade878.
O monitoramento preventivo pressupõe a transmissão oral ou escrita dos
resultados das investigações às autoridades competentes e, em alguns casos, a
outros atores envolvidos na proteção das pessoas privadas da liberdade em nível
nacional ou internacional, e aos meios de comunicação. Ademais, inclui o
monitoramento da implementação das recomendações dirigidas às autoridades
com o fulcro de adequar as condições de detenção aos parâmetros nacionais e
internacionais.
Esta função precípua conduz ao debate acerca da classificação da tortura
como um crime de oportunidade, fortemente influenciado pelos fatores
situacionais. Na concepção de Maia, a concepção de uma política criminal de
prevenção à tortura deveria orientar-se pelas contribuições da denominada
Criminologia Ambiental, através das “Teorias das Oportunidades para Práticas de
Delitos” (Crime Opportunity Theories)879, com base nos trabalhos de Marcus
876 Ibid., p.73. 877 Declaração do Subcomitê de Prevenção à Tortura da ONU ao apresentar o segundo relatório anual do SPT ao Comitê contra a Tortura. Vide “Committee against Torture meets with Subcommittee on Prevention of Torture”, Comunicado de imprensa de 2 de maio de 2009, disponível em: www.unog.ch.http://www.unog.ch/80256EDD006B9C2E/(httpNewsByYear_en)/02A16C255B95E900C12575B40051FA5A?OpenDocument. Acessado em: 10/05/2013. 878 Desta forma, como expressa o inciso II, do art. 2º da Lei estadual 5.778/2010 que institui o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, busca-se a “articulação, em regime de colaboração, entre as esferas de governo e de poder, principalmente, entre os órgãos responsáveis pela segurança pública, pela custódia de pessoas privadas de liberdade, por locais de longa permanência e pela proteção de direitos humanos”. 879 “Teorias das Oportunidades para Práticas de Delitos” (Crime Opportunity Theories), como teorias causal-explicativas, privilegiam a adoção de políticas públicas de prevenção dos delitos, ao tempo em que fornecem condições para fortalecer mecanismos de punição e reparação. Elas se baseiam em quatro pilares fundamentais: medidas destinadas a tornar mais difícil a prática do delito; medidas destinadas a aumentar os riscos de punição; medidas destinadas a reduzir as recompensas pela prática do delito; medidas destinadas a retirar as desculpas para prática do
284
Felson e Ronald Clarke, na obra “A Ocasião faz o Ladrão”880. Contudo, esta
perspectiva de análise incorre nos equívocos da etiologia do crime, característicos
dos estudos de Sociologia Criminal inspirados na Escola de Chicago.
A relevância do enfoque preventivo para a erradicação da tortura pode ser
abordada por outro viés, no escopo da Criminologia Cautelar, proposta por
Zaffaroni. Como aponta o jurista argentino na obra La Palabra de Los Muertos:
“puede pensarse que el sistema penal es un caldo de cultivo de masacres, en el
que inexorablemente aparecen las larvas, pero el símil sería falso. Las larvas no
son entes extraños al sistema penal, sino que lo integram”.881 Por este viés, pode-
se depreender que a prática da tortura não é simplesmente fruto da escolha
racional do agente torturador, mas sim inserida em uma dinâmica operativa do
sistema penal “seletivo, repressivo e estigmatizante”882.
b) Sistema Nacional de Prevenção à Tortura
O Brasil recebeu no ano 2000 visita do Relator Especial sobre Tortura da
Comissão de Direitos Humanos da ONU, Sr. Nigel Rodley, no qual foi relatada883
a prática reiterada de tortura e maus tratos praticados pelos agentes do Estado
Brasileiro, bem como as condições degradantes dos locais de detenção.
No ano de 2011 o Subcomitê da ONU para a Prevenção à Tortura realizou
sua primeira visita ao Brasil884, inclusive o estado do Rio de Janeiro, a fim de
monitorar os estabelecimentos de privação de liberdade. Ao abordar a temática da
superpopulação no sistema prisional, o relatório aponta que:
delito”. MAIA, L. M., Prevenção, punição e reparação à tortura no Brasil, à luz do direito internacional dos direitos humanos, p. 16. 880 FELSON, M.; CLARKE, R. V., Opportunity Makes the Thief: practical theory for crime prevention. 881 “Pode-se pensar que o sistema penal é um celeiro de massacres, nos quais inexoravelmente larvas aparecem, mas o inverso seria falso. As larvas não são estranhas às autoridades de justiça penal, mas as integram”. ZAFFARONI, E. R., A palavra dos mortos, p. 553. 882 BATISTA, N. Introdução crítica ao direito penal brasileiro, p. 25-26. 883 Informe do Relator Especial: http://acnudh.org/wp-content/uploads/2011/01/Report-of-the-Special-Rapporteur-on-Torture-Visit-to-Brazil-2001.pdf Português: http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/cj044773.pdf 884Relatório da visita do SPT ao Brasil em 2011: http://coletivodar.org/wp-content/uploads/2012/06/relatorio_do_SPT.pdf. Resposta do governo brasileiro: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/tortura/resposta-do-governo-brasileiro-as-recomendacoes-do-subcomite-de-prevencao-da-tortura-da-onu-outubro-2012
285
97. O SPT insta o Estado Parte a reavaliar suas políticas de segurança pública e a tomar as medidas apropriadas, no curto e no longo prazo com vistas a reduzir a superlotação nas prisões. Os internos devem ser acomodados em consonância com padrões internacionais, com a devida atenção ao conteúdo cúbico de ar e ao mínimo espaço de chão, dentre outros. Cada prisioneiro deveria ter uma cama separada e roupa de cama limpa.
Em março de 2014, o SPT encaminhou ao Governo Brasileiro sua primeira
réplica885 a respeito da resposta do Brasil ao relatório das visitas de 2011 e dentre
outros aspectos, destacamos: justificativa excessiva sobre a estrutura federativa do
país a intervir na gestão penitenciária dos Estados; falta de respostas mais
contundentes em relação a ações de adoção das recomendações; demora para
implementação do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura;
diferenças sobre a adoção de leis e sua aplicabilidade e ausência de ações
contundentes para o fechamento do Presídio Ary Franco, já apontado em
inspeções também do MEPCT/RJ.
O país possui um membro no Subcomitê para Prevenção à Tortura da
ONU, Sra. Margarida E. Pressburguer, com mandato até o ano de 2016 e o
membro focal do SPT para o Brasil é o Sr. Felipe Villavicencio Terreros886. A
realização de visitas e o processo de monitoramento regular estabelecidos pelo
SPT são importantes no sentido de fomentar no país a criação e empoderamento
de seu sistema nacional de prevenção.
A criação do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura
(SNPCT) no Brasil nos moldes do OPCAT passou por diversas etapas até chegar a
sua configuração atual, na qual se deu à instalação através de escolhas dos
membros do Comitê e Mecanismo federal. De acordo com um estudo realizado
pela APT887, as discussões oficiais em torno da criação do Mecanismo Nacional
de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) iniciaram em 2005 antes até mesmo
da ratificação do país ao protocolo.
Em 2006 o governo brasileiro aprova o Plano de Ações Integradas para a
Prevenção e Combate à Tortura criando o Comitê Nacional de Prevenção e
885Primeira Resposta do SPT, disponível em: http://www.apt.ch/content/files/npm/americas/Brazil_SPT%20response%20to%20Brazil%20replies_May2013.pdf 886 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2012. 887 “A situação de implementação do Protocolo Facultativo à Convenção contra Tortura (OPCAT)”. Genebra: APT, 2014.
286
Combate à Tortura (CNPCT). Já em 2007, o Brasil ratifica o Protocolo Facultativo
à Convenção Contra a Tortura da ONU através do Decreto nº 6.085, fato que
obriga o Estado brasileiro a implementar o Mecanismo Preventivo Nacional. Em
2010, é aprovado pelo Presidente da República o Programa Nacional de Direitos
Humanos (PNDH-3)888 que recomenda a criação de Mecanismos de Prevenção à
Tortura no âmbito federal e nos estados da federação, objeto do PL nº 2.442/2011.
A despeito deste fato, em 2010, a partir de amplo debate com diversas
organizações e movimentos sociais, foi promulgada no Rio de Janeiro a Lei
Estadual Nº. 5.778 que prevê a criação do Comitê e do Mecanismo Estadual de
Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, um avanço pioneiro no
enfrentamento a este tipo de violência889. Trata-se do primeiro mecanismo
preventivo do país, notabilizando-se ainda por ser o primeiro mecanismo em nível
estadual e o primeiro vinculado ao Poder Legislativo, em todo o mundo.
O Comitê é formado por 16 instituições, sendo sua composição paritária
entre Estado e sociedade civil. Por sua vez, o Mecanismo Estadual de Prevenção e
Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ) é composto por seis membros
eleitos a partir de processo de escolha realizada pelo Comitê Estadual –
respeitando em sua composição os critérios estabelecidos no Protocolo
Facultativo da ONU890 – e é vinculado administrativamente à Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro. Os membros do MEPCT/RJ foram empossados em
julho de 2011. Desde então, o Mecanismo tem realizado centenas de visitas aos
locais de privação de liberdade deste estado e obtido resultados importantes no
enfrentamento à tortura e outros maus tratos891.
888 Disponível em: http://www.pndh3.sdh.gov.br/. Acessado em: 06/06/2015. 889 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, op. cit. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/topicos/23558089/lei-n-5778-de-30-de-junho-de-2010-do-rio-de-janeiro. Acessado em: 06/06/2015. 890 Dentre os critérios encontram-se a independência no processo de eleição dos membros do Mecanismo, a garantia de remuneração e exclusividade, e que a composição atenda aos equilíbrios de raça/etnia e gênero de caráter interdisciplinar. 891 A relação de locais de privação de liberdade, bem como situações de tortura e outros maus tratos, podem ser identificados em: Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório Anual 2012. Rio de Janeiro: ALERJ, 2012; bem como nos relatórios anuais de 2013 e 2014.
287
Finalmente, no ano de 2013, entrou em vigor a Lei Nº 12.847/13892, o mais
importante marco legal brasileiro sobre a matéria, que cria formalmente o Comitê
e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, bem como institui o
Sistema Nacional de Prevenção à Tortura, do qual os mecanismos estaduais são
parte integrante. No mesmo ano, foi definida a regulamentação sobre o
funcionamento do CNPCT, através do Decreto Presidencial Nº 8.154893.
O ano de 2014 demarcou a composição dos membros do Comitê Nacional
nos moldes dos novos marcos legais e o processo de seleção e eleição dos
membros para composição da primeira equipe do Mecanismo Nacional de
Prevenção e Combate à Tortura894. O Mecanismo Nacional iniciou suas inspeções
em julho de 2015895.
Devido ao pacto federativo e à dimensão continental do país, outros
estados desde então tem se movimentado para criação de comitês e mecanismos
que atendam os pressupostos do Protocolo Facultativo. A criação e o
estabelecimento do CEPCT e do MEPCT no Rio de Janeiro é um referencial
exemplar desta trajetória. Se por um lado, o país possui 19 comitês oficializados,
apenas sete unidades federativas possuem decreto ou legislação estadual para
instalação do mecanismo. Além do Rio de Janeiro, somente o estado de
Pernambuco possui Mecanismo Preventivo em funcionamento896.
A implantação dos Mecanismos preventivos nacionais e estaduais no
Brasil vem a somar-se junto ao importante trabalho desempenhado por outros
órgãos que exercem o Controle da Execução Penal, como o Conselho Nacional de
Justiça; Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária; representações do
Ministério Público, Defensoria Pública e Tribunais de Justiça; Conselho
892 Lei 12.847/2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12847.htm. Acessado em: 06/06/2015. 893Decreto nº 8.154/2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Decreto/D8154.htm 894 Editais de 2014 do processo de escolha do CNPCT e MPNPCT se encontram em: http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao-social/sistema-nacional-de-prevencao-e-combate-a-tortura-snpct/editais-do-sistema-nacional-de-combate-a-tortura 895 Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório de Visita à Penitenciária Feminina do Distrito Federal. 896 O MEPCT/RJ vem contribuindo com implementação de CEPCT e MEPCT no país, nos quais destacamos as participações na capacitação dos membros eleitos do Mecanismo do estado de Pernambuco, em setembro896, de um seminário e capacitação no estado de Minas Gerais, em março, em conjunto com o Ministério Público/MG e APT e da audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo sobre a importância da criação do sistema estadual naquele estado, em setembro último. Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório Anual 2012.
288
Penitenciário dos estados; Conselhos da Comunidade; diversas Comissões de
Direitos Humanos; bem como entidades de classe, como Ordem dos Advogados
do Brasil, Conselhos Regionais de Serviço Social e Psicologia, e organizações de
direitos humanos, nacionais e internacionais, que atuam nesta temática.
Trata-se da possibilidade de potencializar um trabalho em rede, com o
objetivo de reduzir os danos do sistema penitenciário, através de visitas regulares
e ação estratégica, que possa resultar na obstaculização da prática da tortura, bem
como pressionar as autoridades públicas, em âmbito federal, estadual e municipal,
a adotar uma agenda político-criminal redutora do encarceramento.
No ano de 2015, estão programadas para o segundo semestre uma visita do
Relator Especial sobre Tortura, Juan Mendez, bem como uma nova visita do SPT,
com o intuito de analisar novas graves denúncias sobre as condições de detenção
no Brasil.
Apesar do atraso de quase cinco anos, a implementação do Comitê e
Mecanismo Nacional, bem como a possibilidade de criação de outros mecanismos
estaduais representam um fundamental avanço no país em adotar um dos mais
importantes documentos de diretos humanos do mundo, aqui representado pela
adesão ao Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura
e, sobretudo, na construção de ferramenta eficaz de prevenção e combate à tortura,
ainda mais em um contexto sociopolítico de acirramento das práticas
criminalizadoras e incremento do superencarceramento, levadas a cabo no Estado
penal brasileiro.
6.2.2 A tese do Estado de Coisas Inconstitucional
Em maio de 2015, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), protocolou a
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 347 junto ao
Supremo Tribunal Federal. A ação, fruto de parceria com a Clínica de Direitos
Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ, sob coordenação do professor
Daniel Sarmento, defende que um Plano Nacional seja elaborado pelo governo
289
federal “visando à superação do Estado de Coisas Inconstitucional do sistema
penitenciário brasileiro, dentro de um prazo de três anos”897.
No âmbito do Direito Comparado há importantes exemplos de intervenção
da jurisdição constitucional diante de graves falhas estruturais nas políticas
públicas voltadas à proteção de direitos fundamentais. Há experiências fecundas
nesta área, advindas de Estados Unidos, África do Sul e União Europeia.
Especialmente na experiência do Constitucionalismo latino-americano, a Corte
Constitucional da Colômbia, um dos tribunais constitucionais com maior destaque
na defesa dos direitos humanos, que vem dando ensejo ao reconhecimento do
denominado Estado de Coisas Inconstitucional898.
Trata-se de inovadora técnica decisória, voltada ao enfrentamento de
violações graves e sistemáticas da Constituição, decorrentes de falhas estruturais
em políticas públicas que envolvam um grande número de pessoas, e cuja
superação demande providências variadas de diversas autoridades e agências
estatais.
O Estado de Coisas Inconstitucional não está expressamente previsto na
Constituição ou em qualquer outro instrumento normativo. Trata-se de uma
construção doutrinária e jurisprudencial que permite à Corte Constitucional impor
aos poderes do Estado a adoção de medidas tendentes à superação de violações
graves e massivas de direitos fundamentais, e supervisionar, em seguida, a sua
efetiva implementação.
Uma vez que o reconhecimento desta técnica constitucional confere ao
Tribunal uma ampla gama de poderes, tem-se entendido que só deve ser manejada
em hipóteses excepcionais, em que, além da séria e generalizada afronta aos
direitos humanos, haja também a constatação de que a intervenção da Corte é
essencial. Portanto, é necessário identificar um “bloqueio institucional” para a
garantia dos direitos, o que leva a Corte a assumir um papel atípico, sob a
897 Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=292996. Acessado em: 14/07/2015. 898 Veja-se, a propósito, César Rodríguez Garavito. “Más Allá del desplazamiento, o cómo superar un estado de cosas inconstitucional”. In: Más allá del desplazamiento – Políticas, derechos y superación del desplazamiento forzado en Colombia. Bogotá: Ediciones Uniandes, 2009; Carlos Alexandre de Azevedo Campos. Da Inconstitucionalidde por Omissão ao “Estado de Coisas Inconstitucional”. Tese de doutorado aprovada na Faculdade de Direito da UERJ sob a orientação do Prof. Daniel Sarmento, 2015. OLIVEIRA, D. A. J. M. de; et all, O Novo Constitucionalismo Latino-Americano: Paradigmas e Contradições, p. 185-214.
290
perspectiva do princípio da separação de poderes, que envolve uma intervenção
mais ampla sobre o campo das políticas públicas899.
Para reconhecer o Estado de Coisas Inconstitucional, a Corte
Constitucional da Colômbia exige que estejam presentes os seguintes requisitos:
(i) vulneração massiva e generalizada de direitos fundamentais de um número
significativo de pessoas; (ii) prolongada omissão das autoridades no cumprimento
de suas obrigações para garantia e promoção dos direitos; (iii) a superação das
violações de direitos pressupõe a adoção de medidas complexas por uma
pluralidade de órgãos, envolvendo mudanças estruturais, que podem depender da
alocação de recursos públicos, correção das políticas públicas existentes ou
formulação de novas políticas, dentre outras medidas; e (iv) potencialidade de
congestionamento da justiça, se todos os que tiverem os seus direitos violados
acorrerem individualmente ao Poder Judiciário900.
Foi na Sentencia de Unificación (SU) – 559, de 1997, que a Corte
Constitucional Colombiana declarou, em primeira oportunidade, o Estado de
Coisas Inconstitucional901. Desde então, esta técnica já foi empregada em pelo
menos nove casos, tendo um deles versado exatamente sobre o sistema prisional
do país. Tratou-se do processo T-153 de 1998, em que se reconheceu o Estado de
Coisas Inconstitucional daquele sistema penitenciário902.
Na histórica decisão, a Corte colombiana destacou que: “os cárceres
colombianos se caracterizam pela superlotação, graves deficiências em matéria de
serviços públicos e assistenciais, império da violência, extorsão, corrupção, e
carência de oportunidades e meios para a ressocialização dos reclusos”, podendo
se deduzir, desta situação, “a violação de um leque de direitos fundamentais como
a dignidade, a vida, a integridade pessoal e os direitos à família, à saúde, ao
trabalho e à presunção de inocência, etc”903.
899 LIBARDO, J. A., “The Economic and Social Rights of Prisioners and Constitutional Court Intervention in the Penitenciary System in Colombia”, p. 129. 900 Ver mais em CAMPOS, C. A. de A., Da Inconstitucionalidade por Omissão ao Estado de Coisas Inconstitucional, pp. 134-138. 901 Ibid. 902 Outra decisão importante em que a Corte Constitucional colombiana reconheceu o estado de coisas inconstitucional foi relacionada ao problema dos “deslocados” (desplazados) – que são cerca de 3 milhões de colombianos que foram forçados a se deslocar, em razão da guerrilha e da escalada de violência que atingiu várias regiões daquele país. 903 COLÕMBIA. Corte Constitucional. 23 Sentencia T-153/1998, de 28/4/1998.
291
A decisão impôs uma série de medidas direcionadas a inúmeros órgãos
públicos904. Entretanto, foi também alvo de críticas por ter priorizado, para o
equacionamento do Estado de Coisas Inconstitucional, a construção de novos
presídios, sem enfrentar o processo de hiperencarceramento, também vivenciado
na Colômbia, e por não ter monitorado a implementação das medidas adotadas
pelo Estado905.
A partir da experiência colombiana, a ideia do controle do Estado de
Coisas Inconstitucional foi também adotada pela jurisdição constitucional de
outros Estados, como o Peru906. Recentemente, a jurisprudência do STF
recepcionou a técnica do reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional. O
Ministro Luís Roberto Barroso, no voto-vista que proferiu na Questão de Ordem
suscitada nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs) nº 4.357 e nº 4.425,
atinente à modulação temporal da decisão que reconheceu inconstitucionalidades
na Emenda Constitucional nº 62, que tratara do pagamento de precatórios, aludiu
ao “estado de inconstitucionalidade grave e permanente que se instaurou no país,
em relação ao pagamento de condenações judiciais contra a Fazenda Pública”907.
Nos EUA também há registros de importantes decisões da Suprema Corte
no enfrentamento a graves e sistemáticas afrontas a direitos fundamentais. Além
das históricas sentenças na tentativa de superação da segregação racial, destacam-
se os recentes prison reform cases em que cortes federais norte-americanas
chegaram a declarar a inconstitucionalidade dos sistemas prisionais de 41 Estados.
O Poder Judiciário, além de nomear interventores na administração das unidades
prisionais, decidiu formular um amplo código para a administração das prisões,
com diretrizes no que se refere às condições de detenção908. Apesar das profundas
mazelas do Leviatã neoliberal estadunidense, segundo Sabel e Simon:
904 LIBARDO, J. A., “The Economic and Social Rights of Prisioners and Constitutional Court Intervention in the Penitenciary System in Colombia”. 905 CAMPOS, C. A. de A., op. cit., pp. 134-138. 906 HUAROTO, B. M. R., Estado de Cosas Inconstitucional’ y sus Posibilidades como Herramienta para el Litigio Estratégico de Derecho Público. Una Mirada en la Jurisprudencia Colombiana y Peruana. 907 A Corte, ao final, decidiu atribuir ao CNJ a função de elaborar proposta normativa para equacionamento de alguns aspectos do problema, bem como o papel de monitorar e supervisionar o cumprimento das medidas que impusera aos entes públicos. Questão de Ordem nas ADIs 4.357 e 4.425, Rel. Mini. Luiz Fux, julg. 25/03/2015. 908 Questões como instalações, saneamento, alimentação, vestuário, assistência médica, disciplina, contratação de pessoal, atividades de trabalho e educação passaram a ser alvo de controle judicial.
292
de modo geral, estes casos provocaram significativas melhoras. Especialmente nos sistemas mais duros do Sul, a intervenção levou à eliminação da tortura rotineira e autorizada (...) e gerou, no mínimo, modestas melhorias nas instalações físicas do confinamento909.
Ainda nos EUA, no ano de 2011, a Suprema Corte julgou o caso Brown v.
Plata, em que manteve decisão proferida por corte da Califórnia, que determinara
a soltura de 46 mil prisioneiros de menor periculosidade, em razão da crônica
superlotação dos presídios daquele Estado. Os juízes californianos determinaram,
com base nessa constatação, que as autoridades do Estado formulassem um plano
para a redução da superlotação, para no máximo 137,5% da capacidade das
prisões do estado910.
Outra experiência similar no que tange aos direitos fundamentais de presos
pôde ser observada na Argentina. No denominado “caso Verbitsky”, um habeas
corpus coletivo foi impetrado a favor de todas as pessoas privadas de liberdade na
província de Buenos Aires que estavam detidas em estabelecimentos policiais
superlotados. No julgamento, a Corte Suprema do país, depois de reconhecer a
inconstitucionalidade de tal situação, impôs diversas medidas imediatas, mas
também a elaboração de um plano para a província de Buenos Aires, em diálogo
com a sociedade civil. O plano deveria preconizar mudanças nas políticas
criminais e prisionais, de modo a ajustar a situação dos detentos às regras mínimas
sobre tratamento de presos das Nações Unidas911.
Também há exemplos de emprego de técnica semelhante na Corte
Europeia de Direitos Humanos. As chamadas “decisões piloto” (arrét pilot),
buscam apontar problemas sistêmicos e indicar aos Estados soluções genéricas,
que podem envolver a reformulação de políticas públicas, indicando prazos para a
FEELEY, M. M. e RUBIN, E. L.. Judicial Policy Making and the Modern State: How Courts Reformed America’s Prisons, pp. 40-41. 909 SABEL, C. e SIMON, W. H., “Destabilization Rights: How Public Law Litigation Succeeds”, p. 1035. 910 A partir de casos relativos ao acesso à saúde de presidiários e ao tratamento dado a detentos com deficiência física, a justiça californiana detectara o grave quadro de superlotação das prisões californianas – a Califórnia tinha cerca de 156.000 presos, com capacidade para apenas aproximadamente 80.000. CAMPOS, C. A. de A., op cit. 911 ARGENTINA. Corte Suprema de Justicia de la Nación, Verbitsky Horacio c/ s/ Habeas Corpus, Fallos 328:1146, julg. 3.5.2005. Ver mais em COURTIS, C., “El caso ‘Verbitsky’: ¿nuevos rumbos en el control judicial de la actividad de los poderes políticos?”.
293
sua implementação. Em 2013, esta iniciativa foi utilizada como forma de enfrentar
o problema da superlotação no sistema penitenciário italiano. Uma série de
medidas foram implementadas para superar o quadro de hiperencarceramento que
havia levado os presídios italianos à cifra de 151% de sobreocupação de vagas.
Estas experiências de tribunais constitucionais alienígenas permitem
concluir que o Supremo Tribunal Federal teria elementos suficientes para atuar
diante de cenários de grave e massiva violação de direitos, decorrentes de
debilidades estruturais em políticas públicas, com o fulcro de dar efetividade ao
texto da Constituição. Como leciona Campos:
Apesar de haver diferenças institucionais importantes entre o STF e a Corte Constitucional Colombiana, a prática da declaração do Estado de Coisas Inconstitucional e da formulação de ordens estruturais, flexíveis e sob monitoramento, pode ser uma boa maneira de nosso Tribunal Maior passar a lidar com essas falhas estruturais prejudiciais à efetividade dos direitos fundamentais dos brasileiros. Isso significa, também, que boas medidas institucionais podem ser encontradas fora do eixo tradicional Estados Unidos-Europa Ocidental912.
Este é o caso presente na demanda pelo reconhecimento do Estado de
Coisas Inconstitucional em face das mazelas do sistema penitenciário brasileiro,
para que, desta forma, imponha a adoção de uma série de medidas voltadas à
promoção da melhoria das condições das unidades prisionais brasileiras e à
contenção e reversão do processo de hiperencarceramento que vem sendo levado a
cabo nas últimas décadas. Em recente voto, o Ministro Luís Roberto Barroso
manifesta que:
(...) o quadro crônico de omissão e descaso com a população carcerária exige que este Supremo Tribunal Federal assuma uma postura ativa na construção de soluções para a crise prisional, impulsionando o processo de superação do atual estado de inconstitucionalidade que envolve a política prisional do país. Sua intervenção estaria plenamente justificada na hipótese, porque se daria para proteger e promover os direitos fundamentais de uma minoria que, além de impopular e estigmatizada, não tem voto. Faltam assim, incentivos para que as instâncias representativas promovam a melhoria das condições carcerárias913.
Na ADPF Nº 347, o pedido direcionado à Suprema Corte brasileira,
demanda que o Governo Federal formule de um Plano Nacional para a superação
912 CAMPOS, C. A. de A., op. cit. 913 Voto-vista proferido no R.E.580.525.
294
do Estado de Coisas Inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, dentro de
um prazo de três anos, que:
deverá conter propostas e metas específicas para a superação das graves violações aos direitos fundamentais dos presos em todo o país, especialmente no que toca à (i) redução da superlotação dos presídios; (ii) contenção e reversão do processo de hiperencarceramento existente no país; (ii) diminuição do número de presos provisórios; (iii) adequação das instalações e alojamentos dos estabelecimentos prisionais aos parâmetros normativos vigentes, no que tange a aspectos como espaço mínimo, lotação máxima, salubridade e condições de higiene, conforto e segurança; (iv) efetiva separação dos detentos de acordo com critérios como sexo, idade, situação processual e natureza do delito; (v) garantia de assistência material, de segurança, de alimentação adequada, de acesso à justiça, à educação, à assistência médica integral e ao trabalho digno e remunerado para os presos; (vi) contratação e capacitação de pessoal para as instituições prisionais; (vii) eliminação de tortura, de maus tratos e de aplicação de penalidades sem o devido processo legal nos estabelecimentos prisionais; (viii) adoção de medidas visando a propiciar o tratamento adequado para grupos vulneráveis nas prisões, como mulheres e população LGBT.914
A petição demanda que sejam ainda formulados planos estaduais e um
plano para o Distrito Federal, que se harmonizem com o Plano Nacional
homologado, e que contenham metas e propostas específicas para a superação do
Estado de Coisas Inconstitucional na respectiva unidade federativa. Ademais,
pleiteia que o plano seja fruto de participação democrática, sendo submetido à
análise de diversos órgãos públicos, além de permitir voz à sociedade civil, por
meio de audiências públicas.
A declaração do Estado de Coisas Inconstitucional pode ser uma fecunda
experiência do ativismo judicial para enfrentar as mazelas estruturais do sistema
prisional brasileiro, permitindo a implantação de um conjunto medidas que venha
a conter a voracidade do Estado penal.
914 STF. ADPF 347 de 2015, de autoria do Partido Socialismo e Liberdade. Relator: Ministro Marco Aurélio de Mello.
295
6.2.3 Responsabilidade civil do Estado por superlotação e condições degradantes de encarceramento
a) Reparação pecuniária: indenização
O tema da responsabilidade civil do Estado pelos danos morais causados
aos presos em decorrência da superlotação e do encarceramento em condições
desumanas ou degradantes tem se acentuado no Poder Judiciário brasileiro. A
jurisprudência dos tribunais superiores, apesar de divergências, vem
posicionando-se favorável a tal questão915.
O debate sobre o eventual cabimento de reparação pecuniária estatal na
matéria deve, precipuamente, partir da premissa que o sistema de responsabilidade
civil tem sua fonte primária na Constituição Federal. Ao atribuir centralidade ao
princípio da dignidade da pessoa humana, a Lei Fundamental de 1988 assegura a
ampla indenização pelos danos materiais ou morais decorrentes de violações a um
conjunto de valores essenciais, como a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem, consagrados no art. 5º, incs. V e X. Conforme salienta Bodin de Moraes,
a dignidade humana e os danos morais correspondem a duas faces de uma
moeda916.
Na doutrina brasileira, de modo geral, compreende-se o sistema de
responsabilidade civil fundado em três elementos: o dano, a culpa e o nexo
causal917. Com base na teoria do risco administrativo, a Constituição de 1988, em
seu art. 37, § 6º, afastou o elemento da culpa para a configuração do dever de
ressarcimento do Estado por danos que seus agentes causarem a terceiros. Nessa
hipótese, basta a comprovação do dano e do nexo de causalidade com a conduta
estatal para que seja deflagrada a responsabilização do ente público918.
915 RE 466.322 AgR/MT, Segunda Turma, Rel. Min. EROS GRAU, DJe de 27/04/07). No mesmo sentido: RE 272.839, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 08/04/05. 916 BODIN DE MORAES, M. C., Danos à Pessoa Humana: uma leitura civil constitucional dos danos morais, p. 326. 917 Ibid. 918 Há controvérsia acerca do tema das condições degradantes da execução penal. Há duas correntes, uma primeira considera que se trata de responsabilidade civil do Estado em razão de ato omissivo, já o segundo entendimento, considera-o ato comissivo, uma vez que, o Estado ciente das mazelas do cárcere não titubeia em depositar cada vez mais internos em unidades superlotadas. A exemplo da primeira corrente: ARE 662.563 AgR/GO, DJe de 02/04/2012, o Min. Gilmar Mendes, relator, afirmou em seu voto que “ (…) a jurisprudência dominante desta Corte que se firmou no
296
Entretanto, este dano moral deve ser demonstrado a partir de elementos
concretos da realidade do preso, como exemplo o espaço físico individual
disponível na cela, a salubridade do ambiente, as condições estruturais do presídio
e as deficiências na prestação das assistências material, de saúde, laborativa,
educacional e as eventuais lesões à sua integridade psicofísica919.
Uma vez privados de liberdade, os internos estão submetidos aos
regramentos disciplinares do cárcere, como instituição total busca submetê-los
inteiramente ao controle do poder público. Portanto, nas unidades prisionais o
Estado assume uma ‘posição especial de garantidor’ em relação aos presos,
circunstância que lhe confere deveres específicos de vigilância e de proteção de
todos os direitos dos internos que não foram afetados pela privação de liberdade,
em especial sua integridade física e psíquica, sua saúde e sua vida920.
O status de “garante” submete o Estado a uma responsabilidade
diferenciada, de caráter eminentemente objetivo, que decorre da existência de um
dever individualizado de garantia da integridade dos presos, sob pena de dano
moral, assegurado pelo art. 5º, inc. V e X, da Constituição de 1988. Por este viés,
ainda que o dano moral causado decorra de uma omissão estatal, tratando-se do
descumprimento do dever constitucional de guarda, o poder público é obrigado a
repará-lo. Neste sentido, há vasta jurisprudência em casos de omissão estatal
diante da posição de garantidor921.
sentido de que a negligência estatal no cumprimento do dever de guarda e vigilância dos detentos configura ato omissivo a dar ensejo à responsabilidade objetiva do Estado, uma vez que, na condição de garante, tem o dever de zelar pela integridade física dos custodiados (...)”. Esposando, a segunda visão, entende o Ministro Barroso: “Diferentemente do que alegam as partes, entendo que, na hipótese em exame, a responsabilidade civil do poder público é por ação, e não por omissão. Afinal, o Estado, ciente das péssimas condições de detenção, envia pessoas a cárceres superlotados e insalubres”. Voto-vista do Ministro Luis Roberto Barroso. STF. RE 580.252/MS. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE580252LRB.pdf. Acessado em: 15/07/2015. 919 No Brasil, a LEP prevê que o condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório e que deve ter a) ambiente salubre pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; e b) área mínima de 6,00m2. No entanto, ainda não foram identificados critérios objetivos para que se possa avaliar quando a pena passa a ser ilegítima à luz da dignidade humana. 920 Neste sentido, vide: Art. 41 da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) e Comisión Interamericana de Derechos Humanos, Informe sobre los Derechos Humanos de las Personas Privadas de Libertad en las Américas - 2011. 921 Neste sentido, vide responsabilidade civil do Estado em caso de morte de detento por colegas de carceragem (RE 272.839), de lesões corporais sofridas por menores internados em centro socioeducativo em decorrência de incêndio (ARE 669001) e de suicídio de detento (ARE 700.927).
297
Percebe-se também a ampla negação da legitimidade de invocação da
cláusula de “reserva do possível”922 para obstaculizar, sob o argumento de limite
orçamentário, o dever ressarcitório nesta matéria. O dever de reparação decorre de
norma constitucional, e independe da execução de políticas públicas, diante do
caráter sistêmico das graves mazelas do sistema penitenciário923.
Apesar de não representar medida com repercussão direta na contenção do
hiperencaramento, a reparação pecuniária estatal perante as disfunções do sistema
penitenciário pode ter um efeito positivo ao promover o debate público sobre a
ilegitimidade das condições da execução penal, bem como constranger gestores
públicos a pensar em políticas criminais alternativas, tendo em vista os possíveis
prejuízos ao orçamento público decorrente das ações indenizatórias.
b) Reparação não pecuniária: por uma nova modalidade de remição de pena
Recentemente veio a público o debate em torno de uma possível reparação
não econômica em razão de danos morais para presos submetidos a superlotação
ou a condições degradantes no cárcere. Ao analisar o Recurso Extraordinário (RE)
580.252, com repercussão geral, em que se discute a responsabilidade civil do
Estado por danos morais decorrentes de superlotação carcerária, o Ministro Luís
Roberto Barroso propôs, em voto-vista924, a remição de dias da pena, em
substituição à indenização que seria aplicável ao caso.
O referido julgamento teve início em dezembro de 2014, ocasião em que o
relator, Ministro Teori Zavascki, votou no sentido de dar procedência ao pedido,
por considerar que o Estado tem responsabilidade civil ao deixar de garantir as
condições mínimas de cumprimento das penas nos estabelecimentos prisionais925.
922 A teoria da reserva do possível aponta que o Estado não pode obrigar-se a assumir compromissos em políticas públicas que seu orçamento público não comporta. BARROSO, L. R., O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. 923 Voto-vista do Ministro Luis Roberto Barroso. STF. RE 580.252/MS. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE580252LRB.pdf. Acessado em: 15/07/2015. 924 Ibid. 925 Voto-vista do Ministro Teori Zavascki. STF. RE 580.252/MS. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE580252.pdf. Acessado em: 15/07/2015.
298
O Ministro Barroso concordou com o voto do relator quanto à
responsabilização civil do estado e o dever de indenizar. Todavia, ao invés de
aderir ao pagamento da indenização em pecúnia, o ministro apresentou proposta
alternativa de pagamento, reparando o dano por meio da remição de dias de pena
cumpridos em condições degradantes, aplicando, por analogia, o artigo 126 da Lei
de Execução Penal926.
A justificativa do voto ministerial assenta-se no entendimento de que o
pagamento de indenizações pecuniárias não resolve o problema nem do indivíduo
nem do sistema, podendo mesmo agregar complicações, já que não foram
estabelecidos quaisquer critérios. Além disso, eventual decisão do STF
confirmando a possiblidade de indenização pecuniária abriria precedente para a
deflagração de centenas de milhares de ações em diferentes estados do Brasil, de
presos requerendo indenizações.
Neste sentido, ao analisar os impasses da responsabilidade civil no Brasil,
Anderson Schreiber aponta que mais do que ineficaz para reparar os danos
sofridos, a exclusividade conferida ao caminho da compensação pecuniária
produz diversas distorções. Acaba por acarretar “uma tendência à precificação dos
direitos da personalidade e da própria dignidade da pessoa humana e induz à
adoção de um cálculo utilitarista, de custos e benefícios, na produção dos danos”
927.
O Direito Comparado e o Direito Internacional dos Direitos Humanos
podem servir de inspiração para a questão. Caso semelhante ao aventado no
Recurso Extraordinário (RE) nº 580.252 ocorreu no “julgamento piloto” em
relação ao sistema carcerário da Itália. No caso Torreggiani et al. v. Itália928,
diversos detentos que cumpriam pena em celas superlotadas ingressaram com
requerimentos de condenação do Estado ao pagamento de indenizações. A Corte
926 Lei de Execução Penal, no artigo 126: “O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena. § 1o A contagem de tempo referida no caput será feita à razão de: I – 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequência escolar – atividade de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional – divididas, no mínimo, em 3 (três) dias; II – 1 (um) dia de pena a cada 3 (três) dias de trabalho”. 927 SCHREIBER, A., Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil Brasileira. Id., Reparação Não Pecuniária dos Danos Morais. 928 CEDH, Caso Torreggiani et. al v. Itália, j. em 08.01.2013.
299
Europeia de Direitos Humanos (CEDH), além de determinar a reparação dos
danos morais causados aos requerentes, aplicou o procedimento do julgamento
piloto, por ter identificado que a superpopulação carcerária na Itália possuía
caráter estrutural. Como consequência, determinou que o governo italiano
adotasse, no prazo de um ano, um conjunto de medidas aptas a reduzir a
superlotação, que compreendesse remédios tanto preventivos, quanto
compensatórios.
O caso foi exitoso ao acarretar repercussão positiva sobre as condições de
encarceramento no país. Atendendo à decisão da CEDH, a Itália apresentou à
Corte um plano de ação e adotou diversas medidas de reforma de seu sistema
prisional929.
No que se refere especificamente aos remédios compensatórios, o governo
italiano estabeleceu um mecanismo de reparação in natura dos danos morais
causados aos presos, consistente na remição de um dia de pena para cada dez dias
de detenção em condições degradantes ou desumanas930. Apenas os detentos que
não estiverem mais sob custódia do Estado, ou cuja pena a cumprir não permita a
dedução da totalidade da remição concedida, podem pleitear uma indenização
pecuniária.
Ao analisar a medida, a CEDH concluiu se tratar de “uma reparação
adequada em caso de más condições materiais de detenção”, com “a vantagem
inegável de contribuir para o problema da superlotação”931. Segundo
entendimento da Corte, houve evidências suficientes de que as medidas adotadas
pelo governo italiano foram eficazes para atacar o problema da superlotação e
para garantir os direitos dos presos, inclusive à reparação dos danos causados932.
Na proposta aventada pelo Ministro Barroso os danos morais causados a
presos por superlotação ou condições degradantes devem ser reparados,
929A título exemplificativo, estimulou a adoção de medidas alternativas à prisão, ampliou as hipóteses de cabimento da prisão domiciliar, sobretudo para crimes de menor potencial ofensivo, previu a expansão do uso da monitoração eletrônica, criou uma ouvidoria nacional das pessoas presas, reduziu as penas de crimes relacionados a drogas leves e ampliou as oportunidades de trabalho para os detentos. CEDH, Caso Torreggiani et. al v. Itália, j. em 08.01.2013. 930 Vide Decreto-Lei nº 92/2014, convertido na Lei nº 117/2014. 931 CEDH, Caso Rexhepi et al. v. Italie, j. em 16.09.2014. 932 De acordo com informações prestadas pela Itália, em 2014 não havia mais nenhum detento que cumprisse pena em cela com espaço individual inferior a 3 m2. CEDH, Stella et al. v. Italie e Rexhepi et al. v. Italie, j. em 16.09.2014.
300
preferencialmente, pela remição de parte do tempo da pena – à razão de um dia de
remição para cada 3 a 7 dias cumpridos sob essas condições precárias. Assim, em
seu voto propõe a seguinte tese de repercussão geral:
O Estado é civilmente responsável pelos danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos presos em decorrência de violações à sua dignidade, provocadas pela superlotação prisional e pelo encarceramento em condições desumanas ou degradantes. Em razão da natureza estrutural e sistêmica das disfunções verificadas no sistema prisional, a reparação dos danos morais deve ser efetivada preferencialmente por meio não pecuniário, consistente na remição de 1 dia de pena por cada 3 a 7 dias de pena cumprida em condições atentatórias à dignidade humana, a ser postulada perante o Juízo da Execução Penal. Subsidiariamente, caso o detento já tenha cumprido integralmente a pena ou não seja possível aplicar-lhe a remição, a ação para ressarcimento dos danos morais será fixada em pecúnia pelo juízo cível competente.
Para o Ministro, é legítimo computar o tempo de prisão sob condições
degradantes com mais valia, usando a técnica da remição. Este entendimento
compartilha da reflexão precisamente apresentada por Juarez Tavares933, acerca da
dicotomia presente entre o conceito de pena real (sanção materialmente aplicada
na execução penal) e o conceito de pena ficta (sanção formalmente prevista em
lei).
No caso do preso já ter cumprido integralmente sua pena, não havendo
como aplicar a remição, o ministro disse que é possível, então, o ajuizamento de
ação civil para requerer indenização por danos morais, em forma de pecúnia.
O Ministro Teori questiona a viabilidade da medida, em razão de
representar uma inversão de natureza penal e civil da forma de indenização, fato
que poderia atentar contra o princípio da legalidade. Em resposta, o Ministro
Barroso, adenda que não se pode refutar o remédio proposto ao argumento de que
equivaleria à concessão da remição em hipótese não prevista em lei. Aponta que a
proposta se insere no campo da responsabilidade civil, salientando ainda que a
própria remição penal pela leitura foi concedida durante muitos anos por decisões
judiciais, sem que houvesse expressa previsão legal934.
933 TAVARES, J., Parecer sobre as Condições do Sistema Prisional Brasileiro. 934 A hipótese é regulada pela Portaria Conjunta Depen/CJF nº 276, de 2012, que prevê a possibilidade de redução de 4 dias de pena por obra lida por mês pelo detento, no limite de 48 dias de remição de pena por ano, e foi objeto da Recomendação nº 44/2013, do CNJ, que orientou os Tribunais estaduais a reconhecerem a remição pela leitura
301
Por fim, em seu voto, o Ministro destaca ainda que “a abreviação do prazo
para a extinção da pena possui um efeito ressocializador importante, diminuindo o
estigma que pende sobre o indivíduo que cumpre pena, tornando-o menos
vulnerável a abordagens policiais e facilitando o reingresso no mercado de
trabalho”935.
Neste sentido, ao abreviar a duração da pena, o remédio proposto pode
cumprir o papel de restituir ao detento o exato “bem da vida” lesionado, sua
liberdade e sua dignidade. Como aponta Ana Messuti, o tempo é o “verdadeiro
significante da pena”936, portanto, a liberdade antecipada por remição faz cessar as
violações suportadas pelo preso no cárcere.
6.2.4 Audiência de Custódia
Como anteriormente apontado, uma das mais graves mazelas que maculam
o sistema penitenciário no Brasil é o elevado número de presos provisórios, que
vem agravar o cenário de superlotação estrutural. No bojo do expressivo
contingente de pessoas privadas de liberdade sem condenação criminal definitiva,
há um considerável índice de prisões desnecessárias, arbitrárias e ilegais. Institui-
se assim um processo de banalização da prisão cautelar, com a flagrante afronta ao
direito à liberdade e à presunção de inocência937.
Uma vez que os indicadores revelam um percentual de presos provisórios
equivalente a 41% da população prisional, confirma-se a afirmação de Zaffaroni
ao apontar que no Brasil “pune-se pela dúvida”938. Este cenário que, como aponta
Ferrajoli, converteu o processo penal em um instrumento diretamente punitivo939,
pode ser atenuado com a implementação da denominada audiência de custódia.
Esta medida consiste na pronta apresentação do preso ao juiz, para que
este decida sobre a juridicidade da prisão. Além de aprimorar o controle sobre a
legalidade da prisão, evitando constrições desnecessárias ou abusivas à liberdade,
ela permite que se detectem eventuais maus-tratos praticados contra o preso, o que
935 Voto-vista do Ministro Luis Roberto Barroso. STF. RE 580.252/MS. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE580252LRB.pdf. Acessado em: 15/07/2015. 936 MESSUTI, A., O tempo como pena. 937 KATO, M. I. B., A (des)razão da prisão cautelar. 938 ZAFFARONI, E. R. Prólogo. In ROIG, R. D. E., Direito e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil, p. 12. 939 FERRAJOLI, L., Direito e Razão, p. 770.
302
se afigura fundamental, especialmente em um país em que a tortura ainda é prática
corriqueira940.
Segundo aponta a organização de direitos humanos Human Rights Watch,
“o risco de maus-tratos é frequentemente maior durante os primeiros momentos
que seguem a detenção quando a polícia questiona o suspeito”941. Desta forma, a
não apresentação imediata do preso ao Poder Judiciário, “torna os detentos mais
vulneráveis à tortura e outras formas graves de maus tratos cometidas por policiais
abusivos”942.
O direito à audiência de custódia está expressamente previsto no plano do
Direito Internacional dos Direitos Humanos. A Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) dispõe em seu art. 7.5 que “Toda
pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um
juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais (...)”. Na
mesma direção, informa o art. 9.3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos, que “qualquer pessoa presa ou encerrada em virtude de infração penal
deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade
habilitada por lei a exercer funções judiciais (...)”943.
O Brasil aderiu à Convenção Americana, promulgada através do Decreto
nº 678, em 6 de novembro de 1992. No mesmo ano, o país promulgou o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos, na forma do Decreto nº 592. Após
mais de duas décadas da incorporação de tais diplomas em nossa ordem jurídica
interna, as garantias para a realização da audiência de custódia não foram
efetivadas, apesar de gozar de status supralegal944.
940 A Anistia Internacional, ressalta que: “A exigência de apresentar os detentos a uma autoridade judicial (...) após a prisão é uma salvaguarda essencial para que se preservem os direitos humanos dos prisioneiros. É um meio de garantir que as detenções sejam legais e necessárias. É também uma salvaguarda contra a tortura: um juiz pode verificar se há algum sinal perceptível de maus-tratos e pode ouvir algo que o prisioneiro queira dizer. É ainda uma maneira de supervisionar a detenção por meio de controle judicial, eliminando o poder absoluto sobre um prisioneiro, que, do contrário, os funcionários poderiam exercer”. Anistia Internacional, Combatendo a Tortura. Manual de Ação, p. 11. 941 CANINEU, M. L., O direito à ‘audiência de custódia’ de acordo com o Direito Internacional, p. 3. 942 Ibid. 943 Além de expressa previsão normativa previsão normativa nos sistemas global e interamericano de direitos humanos, a audiência de custódia também está assegurada na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cujo art. 5.º, 3, dispõe que “Qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no § 1, alínea c), do presente artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais (...)”. 944 GOMES, L. F.; MAZZUOLI, V. de O. Comentários à Convenção Americana de Direitos Humanos, p. 33.
303
A implementação da medida se justifica ainda para assegurar garantias
processuais penais previstas no plano interno, como a garantia do direito de ser
julgado em um prazo razoável (art. 5.º, LXXVIII da CF), a garantia da defesa
pessoal e técnica (art. 5.º, LV da CF) e do contraditório (recentemente inserido no
âmbito das medidas cautelares pessoais pelo art. 282, § 3.º, do CPP).
A discussão acerca da implementação da medida veio à tona com vigor
recentemente no país945. Trata-se de inovação que pode representar importantes
avanços ao sistema de justiça criminal brasileiro. Como apontam Aury Lopes Jr. e
Caio Paiva:
São inúmeras as vantagens da implementação da audiência de custódia no Brasil, a começar pela mais básica: ajustar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Confia-se, também, à audiência de custódia a importante missão de reduzir o encarceramento em massa no país, porquanto através dela se promove um encontro do juiz com o preso, superando-se, desta forma, a “fronteira do papel” estabelecida no art. 306, § 1º, do CPP, que se satisfaz com o mero envio do auto de prisão em flagrante para o magistrado.946
A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos tem se
manifestado no sentido de que o controle judicial imediato assegurado pela
audiência de custódia consiste em medida efetiva com o fulcro de evitar prisões
arbitrárias e ilegais, uma vez que nos marcos do Estado de Direito cabe ao
julgador “garantir os direitos do detido, autorizar a adoção de medidas cautelares
ou de coerção quando seja estritamente necessário, e procurar, em geral, que se
trate o cidadão da maneira coerente com a presunção de inocência”947.
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos já manifestou também o
entendimento de que a audiência de custódia constitui de medida fundamental
“para a proteção do direito à liberdade pessoal e para outorgar proteção a outros
direitos, como a vida e a integridade física”948.
945 A este respeito ver CHOUKR, F. H., PL 554/2011 E a necessária (e lenta) adaptação do processo penal brasileiro à convenção americana de direitos do homem. no mesmo sentido, LOPES JR., A. e PAIVA, C., Audiência de Cstódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal. 946 LOPES JR., A. e PAIVA, C., op. cit. 947 Neste sentido caminhou a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos nos casos: Caso Acosta Calderón Vs. Equador. Sentença de 24.06.2005. Caso Bayarri Vs. Argentina. Sentença de 30.10.2008; Caso Cabrera Garcia e Montiel Flores Vs. México. Sentença de 26.11.2010; Caso García Asto e Ramírez Rojas Vs. Perú. Sentença de 25.11.2005. 948 Corte IDH. Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentença de 22.11.2005.
304
A realidade de banalização da prisão cautelar no Brasil permaneceu
inalterada mesmo após quase quatro anos de vigência da Lei 12.403/2011949. A
chamada Lei das Medidas Cautelares introduziu algumas mudanças significativas,
como a substituição do binário, prisão-liberdade, por nove medidas cautelares
alternativas. Entretanto, a prisão provisória continua a ser a principal medida
cautelar adotada pelo Judiciário950.
Neste sentido, faz-se ainda mais necessária a implantação da audiência de
custódia. Tramita no Congresso Nacional o PLS 554/2011951, que busca
regulamentar a tão esperada medida e torná-la obrigatória em todo o país. O
projeto busca alterar o art. 306 do CPP, obrigando que o preso em flagrante delito
seja conduzido à presença do juiz no prazo de 24 horas após a prisão, quando,
então, ouvidos o Ministério Público, um defensor e o próprio preso, serão
examinadas a legalidade do flagrante e a necessidade cautelar da custódia.952
Entretanto, a tramitação encontra-se paralisada no Congresso Nacional, em
um adverso cenário diante de uma composição parlamentar conservadora, movida
aos impulsos do populismo punitivo.
Não obstante os obstáculos para a produção legislativa, o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), através de iniciativa do Presidente, Ministro Ricardo
Lewandowski, vem tendo protagonismo na implantação da audiência de custódia
no país. No dia 09 de abril de 2015 o CNJ, o Ministério da Justiça e o Instituto de
Defesa do Direito de Defesa (IDDD) assinaram três acordos que têm por objetivo
incentivar a difusão do projeto Audiências de Custódia em todo o País, o uso de
949 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12403.htm.
Acessado em: 06/06/2015. 950 Este processo pode ser constatado em pesquisa empírica, conforme: LEMGRUBER, J., e FERNANDES, M., Impacto da assistência jurídica a presos provisórios: um experimento na cidade do Rio de Janeiro. 951 Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=102115.
Acessado em: 06/06/2015. 952 Altera o §1º do artigo 306 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal) para dispor que no prazo máximo de vinte e quatro horas após a realização da prisão, o preso deverá ser conduzido à presença do juiz competente, juntamente com o auto de prisão em flagrante, acompanhado das oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública. (BRASIL. Projeto de Lei do Senado nº 554 de 2011. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=102115.>)
305
medidas alternativas à prisão e a monitoração eletrônica. As medidas buscam
combater a cultura do encarceramento que se instalou no Brasil953.
Até o fim de setembro, dezoito unidades da Federação já terão implantado
audiências de custódia, considerando os estados de São Paulo, Espírito Santo e
Maranhão, que aderiram ao programa anteriormente954. São Paulo foi o primeiro
estado a implantar as audiências de custódia, no final de fevereiro deste ano. Já no
primeiro mês de implantação da medida foi registrada uma redução de 43% no
número total de prisões cautelares no estado955.
O Rio de Janeiro vem buscando implantar a medida. Em 13 de abril de
2015, foi realizada Audiência Pública na ALERJ, promovida pelo Deputado
Estadual Marcelo Freixo (PSOL), Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos
Humanos e Cidadania.956 Na ocasião estiveram presentes representantes da
sociedade civil, Defensoria Pública, instituições policiais e do Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro. O Poder Judiciário fluminense vem avançando parceria com o
CNJ no sentido de criar as condições para iniciar as audiências de custódia ainda
no segundo semestre957.
No bojo da discussão pela implantação da audiência de custódia, alguns
doutrinadores, bem como autoridades das instituições policiais, manifestam o
entendimento de que a ‘autoridade judicial’ que deverá apreciar a legalidade da
953 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-custodia. Acessado em 14/07/2015. 954 Em todos estes estados serão seguidas as diretrizes do projeto desenvolvido pelo CNJ, que incluem, além das audiências feitas com um juiz no prazo máximo de 24 horas, a criação ou o fortalecimento de centrais integradas de alternativas penais, centrais de monitoramento eletrônico, centrais de serviços e assistência social e câmaras de mediação penal. Essas estruturas são responsáveis por apresentar ao juiz opções ao encarceramento provisório. 955 De acordo com notícia publicada no jornal O Estado de São Paulo, cerca de 40% das prisões em flagrante realizadas pela Polícia foram invalidadas pelo TJ/SP, no primeiro dia de experiência com a audiência de custódia naquele tribunal. Disponível em: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,audiencia-de-custodia-revoga-40-dasprisoes,1655034. Acessado em: 05/07/2015. 956 Audiência Pública realizada na ALERJ em 13/04/2015. Disponível em: http://alerjln1.alerj.rj.gov.br. Acessado em: 14/07/2015. 957 Notícia publicada pela Assessoria de Imprensa do TJ/RJ informa que “o desembargador Paulo Baldez, presidente do Grupo de Trabalho das Varas Criminais do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), vai promover no Fórum da capital, nesta sexta-feira, dia 24, na sala 911 do Departamento de Apoio e Assessoramento Técnico aos Órgãos Colegiados Administrativos (Deaco), reunião com representantes de diversas instituições estaduais com o objetivo de buscar maior integração para a implementação da Audiência de Custódia no Estado do Rio de Janeiro”. Disponível em: http://www.tjrj.jus.br/web/guest/home/-/noticias/visualizar/18210?p_p_state=maximized. Acessado em: 23/07/2015.
306
prisão cautelar diante da audiência de custódia, deve ser o próprio delegado de
polícia958. A este respeito, André Luiz Nicolitt observa que:
(...) analisando de forma crítica a proposição delineada pelo Des. Nucci, de que na atual conjectura legal do processo penal brasileiro teria a atribuição de garantia irrestrita de liberdade, ter-se-ia, na esteira da clássica definição do filósofo alemão [Jürgen] Habermas uma contradição performativa, eis que a própria proposição não se coaduna com os pressupostos pragmáticos do ato de fala que a incorpora.959
Revelar-se-ia, portanto, medida contraproducente e tornaria inócua a
inovação processual. Neste sentido, Lopes Jr. e Morais da Rosa destacam como o
pensamento autoritário que paira sobre consideráveis setores da academia e dos
tribunais é avesso à implantação da audiência de custódia:
Mark Twain escreveu que “Se a única ferramenta é o martelo, todos os seus problemas serão pregos.” Se a única ferramenta é a prisão (cautelar), não restaria outra opção. Daí que houve a reforma de 2012, inserindo-se cautelares diversas da prisão (CPP, artigo 319), os quais apresentam indicam modelos múltiplos de garantia do processo e não de antecipação de pena. Mas a mentalidade que somente procura pregos, não consegue compreender que está nos levando à falência com os custos do sistema que abastece.960
Em visita ao Brasil no ano de 2015, o Relator Especial sobre Tortura da
ONU, Juan Méndez, dentre outras medidas, recomendou às autoridades brasileiras
competentes a expansão imediata da aplicação de audiências de custódia em todo
o país, e seu redesenho, para encorajar as vítimas a falar e permitir a
documentação eficaz da tortura e de maus-tratos961.
Desta forma, a implementação da audiência de custódia pode significar um
avanço na direção de um processo penal democrático. Pode representar uma
página importante na busca pela superação da cultura do encarceramento no
Brasil, através da redução do número de prisões provisórias, bem como
958 TJSP – HC n. 2016152-70.2015.8.26.0000- Rel. Guilherme de Souza Nucci, em 12.05.2015. 959 NICOLITT, A.; MELO, B. C. E RIBEIRO, G. R., Análise crítica do voto do Des. Guilherme de Souza Nucci – tjsp: o delegado de polícia não faz audiência de custódia. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/analise-critica-do-voto-do-des-guilherme-de-souza-nucci-tjsp-o-delegado-de-policia-nao-faz-audiencia-de-custodia-por-andre-nicolitt-bruno-cleuder-de-melo-e-gustavo-rodrigues-ribeiro/. Acessado em: 14/07/2015. 960 LOPES JR, A. e MORAIS DA ROSA, A., Não sei, não conheço, mas não gosto da audiência de custódia. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-jul-10/limite-penal-nao-sei-nao-conheco-nao-gosto-audiencia-custodia. Acessado em: 14/07/2015. 961 Disponível em: http://nacoesunidas.org/especialista-da-onu-insta-brasil-a-resolver-superlotacao-das-prisoes-e-agir-contra-tortura/. Acessado em: 15/08/2015.
307
instrumento eficiente para apuração de casos de tortura perpetrados na apreensão,
no interrogatório ou na custódia policial.
6.2.5 Penas Alternativas e Alternativas Penais
a) Penas e Medidas Alternativas
Outro debate fundamental acerca das estratégias de contenção ao
encarceramento massivo reside nas penas e medidas alternativas. Esta temática
emerge no âmbito internacional, sobretudo no 8º Congresso da ONU em 1990,
com a aprovação das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de
Medidas não Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio). Tal fato representa um
esforço internacional para a adoção de medidas alternativas à privação da
liberdade. É o que se depreende em sua Regra 1.2:
as presentes regras têm por objetivo promover uma maior participação da comunidade na administração da justiça penal e, muito especialmente, no tratamento do delinquente, bem como estimular entre os delinquentes o senso de responsabilidade em relação à sociedade962.
Já de acordo com o disposto na Regra 2.5, “procurar-se-á, no respeito das
garantias jurídicas e das regras de direito, tratar o caso dos delinquentes no seio da
comunidade evitando o recurso a um processo formal ou aos tribunais”963.
Sob influência destas diretrizes, inúmeros países irão incorporar em sua
ordem jurídica interna dispositivos não-privativos de liberdade em substituição ao
encarceramento, através de penas e medidas alternativas. Em elucidativa pesquisa
intitulada Substitutivos Penais na Era do Grande Encarceramento Salo de
Carvalho busca analisar:
até que ponto os substitutivos penais efetivamente diminuem o impacto do carcerário sobre os grupos vulneráveis, ou seja, se efetivamente são incorporados pelos sistemas político-legislativo, jurídico e executivo como alternativas ao processo criminal e à prisão ou se constituem instrumento aditivo de ampliação do controle social punitivo964.
962 Disponível em: http://direitoshumanos.gddc.pt/3_6/IIIPAG3_6_11.htm. Acessado em:
06/06/2015. 963 Ibid. 964 CARVALHO, S. de, Substitutivos Penais na Era do Grande Encarceramento.
308
No caso brasileiro, o ideal ressocializador/correcionalista afirmado no
texto da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84), bem como as inovações da
Reforma da Parte Geral do Código Penal (A lei 7.209/84), com a abolição das
penas acessórias e previsão de novas penas patrimoniais, não representaram o
arrefecimento do poder punitivo, sobretudo diante do hiperencarceramento que irá
se acentuar no contexto neoliberal, a partir da década de 1990. A incorporação de
medidas minimalistas no escopo das Regras de Tóquio no Brasil se dá, de fato, a
partir de duas legislações: a Lei 9.099/95, que cria os Juizados Especiais
Criminais, e a Lei 9.714/98, que amplia o rol de Penas Alternativas (Penas
Restritivas de Direito)965.
Primeiramente, a Lei Nº 9.099/95 inova na ordem jurídica brasileira ao
trazer medidas despenalizadoras, formas alternativas de resolução do conflito sem
a imposição de uma sentença criminal condenatória. No seu bojo, encontram-se a
composição civil (Arts. 72 a 74)966, a transação penal (Art. 76)967, para os crimes
de menor potencial ofensivo (pena máxima de até 2 anos), e a suspensão
condicional do processo (Art. 89)968, também chamado sursis processual, para
crimes de médio potencial ofensivo, ou seja, com pena mínima de até 1 ano.
Com a Lei Nº 9.714/98 ampliam-se as espécies e o âmbito de aplicação
das penas alternativas, ou penas restritivas de direito. Apesar de constituírem
sanções penais, tratam-se de medidas desencarceradoras, para penas não
superiores a quatro anos. Além das cinco modalidades já existentes, são
incorporadas mais quatro com o novo diploma legal969.
Assim, diante da incorporação de tais dispositivos, caberia analisar o real
impacto dos substitutivos penais sobre o sistema penal brasileiro. Ou seja, requer
avaliar se, de fato, estas inflexões minimalistas implicam na redução do
965 CIRINO DOS SANTOS, J. Teoria da pena, p. 156. 966 Acordo feito entre a vítima e o imputado de compromisso de reparação do dano causado. 967 Proposta de aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa oferecida pelo Ministério Público ao autor do delito que poderá aceitá-la ou recusá-la 968 Evita a própria aplicação da pena, mediante a observância de certas condições. 969 A Lei nº 7.209/84 previu as seguintes modalidades de penas alternativas: prestação de serviços à comunidade, limitação de fim de semana, proibição do exercício de cargo ou função, proibição do exercício de profissão e suspensão da habilitação para dirigir veículo. Com a Lei nº 9.714/98 foram incluídas a prestação pecuniária em favor da vítima; prestação pecuniária inominada; perda de bens e valores; proibição de frequentar determinados lugares. Com a Lei 12.550/11 foi incluída ainda a proibição de inscrever-se em concurso, avaliação ou exame públicos.
309
encarceramento massivo, ou, a contario sensu representam novos tentáculos ao
Estado penal. Neste sentido, convém analisar os indicadores do encarceramento
no Brasil, desde a implementação dos substitutos penais incorporados à ordem
jurídico-penal:
Figura 16: Comparativo entre o crescimento do número de Penas e Medidas Alternativas e População Prisional no Brasil (1995-2009)
Fonte: Ministério da Justiça970
Em 1995, quando havia apenas quatro núcleos especializados, chegou-se a
um total de 80.364 penas e medidas alternativas (PMAs) aplicadas no Brasil, em
comparação com uma população prisional à época de 148.760 presos. Em
escalada exponencial, as PMAs vão praticamente igualar o contingente carcerário
em 2007. Já em 2009, o vertiginoso aumento chega a um total de 671.078 PMAs
diante de um efetivo penitenciário de 473.626.
Como se observa, a incidência das penas e medidas alternativas não
representa qualquer inflexão na diminuição da pena privativa de liberdade. Salo
de Carvalho, ao apontar as conclusões de sua análise afirma que:
no âmbito das agências punitivas não basta a publicação de leis que garantam direitos ampliando os espaços de liberdade, como ocorreu no Brasil com o aumento das possibilidades de aplicação de penas alternativas (Lei 9.714/98) e a criação de alternativas ao processo penal (Lei 9.099/95). A centralidade do carcerário, como visto, provocou o aumento da rede de controle não prisional sem diminuir os níveis de encarceramento971.
970Disponível em: http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJ47E6462CITEMID38622B1FFD6142648AD402215F6598F2PTBRIE.htm. Acessado em: 14/05/2015. 971 CARVALHO, S. de, Substitutivos Penais na Era do Grande Encarceramento.
310
Recente pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)972
revela que além de não representar alternativa à privação da liberdade, as penas e
medidas alternativas são aplicadas seletivamente em razão da cor do acusado. Tais
constatações permitem inúmeras objeções formuladas por outros teóricos da
Criminologia Crítica973. Nas palavras de Vera Malaguti:
Neste cenário surgem as penas alternativas, ao invés de surgirem as alternativas à pena, como diria o saudoso Alessandro Baratta. Pensadas como estratégias de desafogamento da justiça penal, elas acabaram por impor um controle social mais capilarizado, mais minucioso, que vai estender os tentáculos do poder punitivo aos pequenos conflitos do cotidiano, bem no espírito da devassa inquisitorial que o fundou. A juridicização do cotidiano vai criar um conjunto de dispositivos biopolíticos: da lei Maria da Penha no Brasil à Justiça Terapêutica dos Tribunais de Drogas, o controle dos conflitos privados vai demandar juristas e demais especialistas para se tornar o centro da vida política974.
Neste sentido, a despeito da implementação dos ditos substitutivos penais,
tais medidas não implicam na redução do encarceramento no Brasil, significando,
ao revés, uma acumulação de poder punitivo, o aprofundamento da ‘judicialização
da vida’, buscam, portanto, "não punir menos, mas punir melhor"975, reforçando a
administração seletiva das ilegalidades populares.
b) Justiça Restaurativa e Alternativas Penais
Em contraponto ao modelo tradicional de justiça penal, circunscrito a um
paradigma puramente punitivo-retributivo976, no qual a pena é a única resposta à
972 Segundo a pesquisa "A aplicação de penas e medidas alternativas no Brasil", realizada pelo Ipea, aponta que enquanto 41,9% dos acusados em varas criminais eram brancos, 57,6% eram negros. Já nos juizados especiais --que analisam casos de menor potencial ofensivo--, a ordem é inversa, com 52,6% dos réus eram brancos e 46,2%, negros. Disponível em: http://apublica.org/wp-content/uploads/2015/02/pesquisa-ipea-provisorios.pdf. Acessado em: 10/07/2015. 973 Segundo Cirino dos Santos: “os substitutos penais não enfraquecem a prisão, mas a revigoram; não diminuem sua necessidade, mas a reforçam; não anulam sua legitimidade, mas a ratificam: são instituições tentaculares cuja eficácia depende da existência revigorada da prisão, o centro nevrálgico que estende o poder de controle, com a possibilidade do reencarceramento se a expectativa comportamental dos controlados não confirmar o prognóstico dos controladores”. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Manual de Direito Penal, p. 299. 974 BATISTA, V. M., Adesão subjetiva à barbárie. 975 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 79. 976 A noção de paradigma é trabalhada por Howard Zehr como o modo específico de construir a realidade, de compreender os fenômenos e o mundo. Em sua ótica, o paradigma molda a forma como definimos problemas e o que reconhecemos como soluções apropriadas. ZEHR, H., Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça, p. 62.
311
conflitividade social, tem se apresentado as contribuições da Justiça Restaurativa
como um novo modelo de solução de conflitos. Segundo aponta Howard Zehr, um
dos principais pensadores desta temática:
A busca de alternativas à privação de liberdade representa uma outra tentativa de remendar o paradigma. Ao invés de procurar alternativas à pena, o movimento em prol de alternativas oferece penas alternativas. (...)Contudo, pelo fato de constituírem apenas outro epiciclo, não questiona os pressupostos que repousam no fundamento da punição. E por isso não tem impacto sobre o problema em si – a superlotação carcerária –, problema para o qual pretendiam ser a solução977.
Ainda que diante da flagrante crise de legitimidade, o sistema penal resiste
e segue inabalável a qualquer tentativa de reforma mais radical, aberto tão
somente à introdução de medidas pontuais que não alteram seu status de falência
estrutural.
Cabe reconhecer a necessidade de contenção do poder punitivo,
substituindo o sistema penal por alternativas eficientes para solução dos conflitos
sociais. Trata-se, assim, não de clamar por penas alternativas, mas pela
formulação de efetivas alternativas penais. É, portanto, necessário, criar condições
para um sistema de justiça criminal compatível com o Estado Democrático de
Direito, insculpido pela Carta Política de 1988, em oposição ao Estado penal que
se dissemina através agências repressivas.
A superação do paradigma retributivo, direcionado apenas à retribuição do
mal causado, sem representar qualquer vantagem à comunidade, ao infrator e,
sobretudo, à vítima, exige, como aponta Zehr, “trocar as lentes pelas quais
enxergamos o crime e a justiça”978.
O autor procura demonstrar que historicamente havia práticas comunitárias
de justiça, com mediação e características restaurativas, tanto é que a Justiça
Restaurativa é um resgate de algumas dessas práticas, sobretudo indígenas e
aborígines, consolidadas por séculos979.
Paul McCold e Ted Wachtel980, afirmam que a Justiça Restaurativa
constitui "uma nova maneira de abordar a justiça penal, que enfoca a reparação
977 ZEHR, H., op. cit., p. 90. 978 Ibid., p. 90. 979 Ibid. 980 MCCOLD, P. e WACHTEL, T., Restorative Practices Typology.
312
dos danos causados às pessoas e relacionamentos, ao invés de punir os
transgressores"981. Seu postulado fundamental é: "o crime causa danos às pessoas
e a justiça exige que o dano seja reduzido ao mínimo possível".
A Justiça Restaurativa é, em sua visão, um "processo colaborativo que
envolve aqueles afetados mais diretamente por um crime, chamados de ‘partes
interessadas principais’, para determinar qual a melhor forma de reparar o dano
causado pela transgressão"982.
Conforme salienta Pedro Scuro Neto, a implementação de um efetivo
programa de Justiça Restaurativa necessita que sejam incorporados, "por via
legislativa, padrões e diretrizes legais para a implementação dos programas
restaurativos, bem como para a qualificação, treinamento, avaliação e
credenciamento de mediadores, administração dos programas, níveis de
competência e padrões éticos, salvaguardas e garantias individuais"983.
No Brasil, apesar de não haver um programa de Justiça Restaurativa
institucionalizado, há alguns dispositivos legais que permitem a introdução do
paradigma restaurativo. A suspensão condicional do processo, previsto no art. 89
da Lei 9.099/1995, pode ser implementada através do encaminhamento do caso à
Justiça Restaurativa, uma vez seu § 2.º984 permite a especificação de “outras
condições” para a aplicação do substitutivo penal. O Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), Lei 8.089/90985, também propicia a aplicação da Justiça
Restaurativa, ao incorporar a possibilidade de remissão ao ato infracional, em seu
art. 126986. O ECA também abre margem ao paradigma restaurativo ao propiciar,
dentre as modalidades de medidas socioeducativas, previstas no art. 112 e
seguintes, a reparação do dano causado. Há ainda quem considere cabível a
981 Id., Em Busca de um Paradigma: Uma Teoria de Justiça Restaurativa. Disponível em: www.restorativepractices.org/library/paradigm_port.html. Acessado em: 05/04/2015. 982 Ibid. 983 NETO, P. S., Modelo de Justiça para o século XXI. Disponível em: www.trf2.gov.br. Acesso em: 26 jan. 2015. 984 Lei 9.099/95: Art. 89, § 2.º: O juiz poderá especificar outras condições a que fica subordinada a suspensão condicional do processo, desde que adequadas ao fato e a situação pessoal do acusado. 985 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm. Acessado em:
06/06/2015. 986 Lei 8.069/90. Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menos participação no ato infracional. Parágrafo único. Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo.
313
aplicação do modelo restaurativo pelo instituto do perdão judicial, previsto nos
arts. 107, inciso IX987 do Código Penal.
Algumas iniciativas exitosas já vêm sendo desenvolvidas em projetos-
piloto como em São Caetano do Sul/SP, Porto Alegre/RS e Brasília/DF. Ademais,
as práticas restaurativas tem recebido apoio de importantes instâncias
governamentais como o Conselho Nacional de Justiça, com a Resolução nº
125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que estimula a busca por
soluções extrajudiciais para os conflitos, e o Ministério da Justiça, com a Portaria
nº 2.594, de 2011, que cria a Estratégia Nacional de Alternativas Penais,
preconizando parcerias com os estados para implementação de iniciativas de
Justiça Restaurativa.
Ademais, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 7006/2006
que propõe alterações no Código Penal, no Código de Processo Penal e da Lei dos
Juizados Especiais Criminais para facultar o uso de procedimentos de Justiça
Restaurativa no sistema de justiça criminal. Trata-se de uma inovação legislativa
que pode representar importante passo à instituição de uma cultura restaurativa no
país. Segundo analisa Daniel Achuti:
a justiça restaurativa, desde que bem estruturada, e tendo os responsáveis pela sua implementação consciência dos desafios e obstáculos que terão de ser enfrentados, pode ser um instrumento útil tanto para reduzir a atuação danosa do sistema penal no Brasil, quanto para potencializar a democracia na gestão dos conflitos interpessoais988.
Neste sentido, é necessário ter em mente a preocupação de Vera Malaguti
Batista ao apontar que: “as estratégias de mediação e restauração aparecem como
alternativas à pena na conjuntura das décadas de 1970 e 1980. Seu maior risco é,
ao invés de desjudicializar os procedimentos, acabam expandindo a mentalidade
judicial para os “novos operadores”989. É tarefa crucial criar condições sólidas
para a implantação da Justiça Restaurativa no país, sem, no entanto, alimentar a
fome de punição do Leviatã neoliberal.
987 Art. 107. Extingue-se a punibilidade: (...) IX – pelo perdão judicial, nos casos previstos em lei. 988 ACHUTTI, D., Justiça Restaurativa e Abolicionismo Penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 989 BATISTA, V. M., op. cit.
314
6.2.6 Outros dispositivos redutores do hiperencarceramento
Apesar da sanha punitiva que alimenta o Leviatã neoliberal, pontualmente
florescem outras importantes construções doutrinárias e jurisprudenciais que
podem contribuir efetivamente para contenção do grande encarceramento.
a) Progressão de regime per saltum
A suposta progressividade norteadora do modelo penitenciário adotado no
Brasil, inspirado no sistema progressista irlandês, é posta em xeque por outras
profundas problemáticas, não somente por razões de natureza normativa, mas,
sobretudo, em virtude de mazelas estruturais do sistema penitenciário.
Os alarmantes índices de superlotação acarretam a sistêmica escassez de
vagas para a garantia da execução penal no regime adequado. Por este fato, não é
raro o apenado preencher os requisitos objetivos e subjetivos exigidos pela Lei de
Execução Penal, no entanto permanecer no regime mais gravoso do que lhe cabe
por direito. Tal anomalia constitui o denominado ‘desvio de execução’990. Como
alerta Felipe Almeida:
É certo que a ausência de vagas no regime adequado para: i) o preso cautelar (custodiado numa Cadeia Pública ou Centro de Detenção Provisória) que venha a ser condenado no regime inicial aberto ou semiaberto; ii) o réu que aguardou solto o trânsito em julgado de igual condenação ou; iii) o condenado no regime fechado, como na maioria das vezes, que obteve a progressão de regime; são situações que caracterizam o nefando desvio de execução. Ocorre que a questão do desvio é um problema crônico no sistema penitenciário nacional991.
Esta vicissitude crônica conduz a um conjunto de ilegalidades na execução
penal, tornando a pena privativa de liberdade um instrumento massivo de violação
à dignidade humana. Frente a esta violência institucional, surgiu uma corrente
990 Segundo Almeida: “É certo que a ausência de vagas no regime adequado para: i) o preso cautelar (custodiado numa Cadeia Pública ou Centro de Detenção Provisória) que venha a ser condenado no regime inicial aberto ou semiaberto; ii) o réu que aguardou solto o trânsito em julgado de igual condenação ou; iii) o condenado no regime fechado, como na maioria das vezes, que obteve a progressão de regime; são situações que caracterizam o nefando desvio de execução. Ocorre que a questão do desvio é um problema crônico no sistema penitenciário nacional”. ALMEIDA, F. L. de, A execução da pena no anteprojeto do Código Penal: uma análise crítica. 991 Ibid.
315
jurisprudencial que passou a admitir a aplicação da progressão de regime “por
salto”, ou “per saltum”, segundo leciona Luis Carlos Valois992.
Portanto, inexistindo vaga adequada disponível para o regime semiaberto
(colônias agrícolas ou industriais, conforme o art. 91 da LEP) ou no regime aberto
(casas de albergado, art. 93 da LEP), urge verificar o que seria mais equitativo,
isto é, acomodar o condenado em dependência prisional imprópria (desvio de
execução) ou conceder-lhe, excepcionalmente, a prisão albergue domiciliar (art.
117 da LEP)993.
A concessão da prisão albergue domiciliar pode ainda ser cumulada, em
alguns casos, com a monitoração eletrônica, introduzida na execução penal pela
Lei n° 12.258/10, a despeito das inúmeras críticas suscitadas, uma vez que não
tem representado alternativa à privação da liberdade, mas tão somente, a
ampliação da malha de controle do sistema penal994.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já vem admitindo o
entendimento de que não se pode aplicar regime mais gravoso do que se deve por
direito ao apenado995. No mesmo sentido, também se posicionam alguns
precedentes do Superior Tribunal de Justiça996. Portanto, nestas hipóteses seria
admitida progressão de regime fechado, diretamente ao aberto, na hipótese de
ausência de vagas, ou mesmo a concessão da prisão albergue domiciliar.
992 VALOIS, L. C., Execução Penal e Ressocialização, p. 119-120. 993 A Lei de Execução Penal prevê a prisão albergue domiciliar em apenas 4 hipóteses: Art. 117. Somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular quando se tratar de: I - condenado maior de 70 (setenta) anos; II - condenado acometido de doença grave; III - condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental; IV - condenada gestante. 994 PEDRINHA, R. D.; LIBANO, T., Reflexões críticas acerca do projeto de lei do monitoramento eletrônico dos apenados no Estado do Rio de Janeiro. 995 Neste sentido caminha o HC 109244/SP, tendo como relator na Suprema Corte o Ministro Ricardo Levandowski. Este tema hoje enseja grande debate no âmbito do Supremo, tendo suscitado a realização de recente audiência pública com fulcro de ampliação do uso da prisão albergue domiciliar. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/05/stf-decide-no-2-semestre-se-manda-preso-para-casa-quando-nao-tiver-vaga.html. Acessado em: 14/07/2015. Na mesma direção, encontram-se inúmeros julgados na jurisprudência dos tribunais inferiores, vide: TJMG - Rec-Ag 1.0000.06.436713-9/001 - 4ª C. Crim. - Rel. Conv. p/ Ac. Des. Ediwal José de Morais - DJ 25.07.2006. 996 STJ – RHC 15136 – MG – 5ª T. – Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca – DJU 02.02.2004 – p. 00338. Configura manifesto constrangimento ilegal submeter o paciente a regime mais rigoroso do que o estabelecido na condenação. Precedentes do STJ. Ordem concedida para que o paciente cumpra sua pena em prisão domiciliar, até que surja vaga em estabelecimento apropriado ao regime aberto. (STJ – RHC 14193 – MG – 6ª T. – Rel. Min. Paulo Medina – DJU 17.11.2003 – p. 00380).
316
Atualmente, esta matéria enseja grande debate no âmbito do Supremo
Tribunal Federal, tendo suscitado a realização de recente audiência pública997,
presidida pelo Ministro Gilmar Mendes. Na audiência, o advogado da Pastoral
Carcerária da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, Massimiliano Antônio
Russo, defendeu a garantia da prisão domiciliar sempre diante da inexistência de
vagas:
A experiência que a Pastoral Carcerária tem das visitas semanais demonstram que o problema persiste para todo o lado, todas as regiões do Brasil. A decisão [do STF] vai contribuir para a melhoria porque os estados vão ter de deixar de ser omissos. (...) Soltar presos, para a mídia e para o governo, tem peso muito grande em nível de votos. (...) Uma decisão desse tribunal pode dar força para que juízes tomem decisões a favor da legalidade, da dignidade da pessoa humana e da Constituição Federal. 998
Certamente, uma decisão da Suprema Corte brasileira poderia oferecer
condições concretas para que o Judiciário enfrente o tema do grande encarceramento
diante do fenômeno da “refiladelfização” (prevalência do regime fechado sobre os
demais), impedindo que seja açambarcada a garantia da progressão de regime, e, por
conseguinte diminuição dos elevados índices de superpopulação prisional.
b) A dicotomia Pena Real/Pena Ficta e suas implicações no Sistema Prisional
Em eminente parecer sobre as condições do sistema carcerário brasileiro,
Juarez Tavares destaca a necessidade de estabelecer a distinção entre os conceitos
de pena real e pena ficta:
Podem ser distinguidos dois conceitos de pena: a pena ficta, isto é, um valor numérico que representa, primariamente, a criminalização abstrata decorrente da avaliação discricionária do Poder Legislativo e, secundariamente, a medida de individualização da conduta realizada; e a pena real, qual seja, uma assimilação realista das (precárias) condições locais de cumprimento da privação de liberdade.999
997 Para subsidiar o julgamento de um recurso, o Ministro Gilmar Mendes coordenou audiência pública sobre o tema da prisão albergue. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/05/stf-decide-no-2-semestre-se-manda-preso-para-casa-quando-nao-tiver-vaga.html. Acessado em: 14/07/2015. 998 Ibid. 999 TAVARES, J., Parecer sobre as Condições do Sistema Prisional Brasileiro.
317
Neste sentido, traduz em palavras a inequívoca percepção de que pena
formal (pena ficta), privando, no plano hipotético, o condenado tão somente de
sua liberdade e garantindo-lhe os direitos previstos na LEP, é infinitesimalmente
menos severa do que a pena material (pena real), na qual o apenado padece de
todas as disfunções do dantesco universo carcerário brasileiro. Assim, salienta que
“é possível e necessário considerar a vivência concreta no cárcere como dado
empírico deslegitimante do poder punitivo”, ou seja, cabe ao Poder Judiciário
redimensionar da pena a ser aplicada na sentença condenatória, em razão do
excesso punitivo na execução penal. Desta maneira, agregar em tal equação as
condições concretas de cumprimento da pena corresponde a um legítimo
confronto empírico às ilusórias categorias penalógicas tradicionais.
Em sua visão, a criminalização secundária (exercida pelo julgador ao
definir o quantum da pena), e a criminalização terciária (execução penal), não
pode ater-se à mera ‘cominação abstrata da pena’ e do limite máximo de sua
individualização, devendo considerar, o ‘valor dinâmico que a pena assume com o
passar do tempo’ e com a mudança nas condições prisionais nas quais se encontra
o apenado. Portanto, entende ser necessário:
em primeiro lugar, levar em conta, na análise do art. 59 do Código Penal, essa circunstância objetiva das condições insalubres e degradantes da prisão a que se destina o condenado para diminuir-lhe ou mesmo suspender-lhe a pena. Em segundo lugar, já na fase de execução, em revisão criminal ou por meio do remédio do habeas corpus, comutar-lhe ou diminuir-lhe a pena, em face de aplicação analógica do art. 66 do Código Penal, quando essas mesmas condições se verificarem no estabelecimento em que a esteja cumprindo. Em terceiro lugar, em vista das precárias condições do sistema prisional brasileiro, tornar factível a relativização dos requisitos objetivos para a progressão de regime, livramento condicional, indulto ou comutação de penas, saídas temporárias ou ainda da punição proveniente do cometimento de uma falta grave, bem como de outros incidentes da execução penal. Por fim, uma vez verificado o funcionamento do sistema carcerário (...), entendo possível a não imposição das medidas cautelares privativas de liberdade (ou sua redução significativa) em vista da necessidade de expurgá-las do teor penal latente que lhe emprestam as agências punitivas.1000
Desta forma, Tavares lucidamente aponta que o Estado não pode olvidar-se
das mazelas sistêmicas que corroem a legitimidade do sistema penal ao exercer
seu jus puniendi. Por esta razão, elenca quatro implicações decorrentes da
incorporação do conceito de pena ficta, tanto ao processo de conhecimento como 1000 Ibid.
318
ao processo de execução em matéria penal: i) menor severidade na dosimetria
penal; ii) aplicar comutação da pena ou diminuir sua duração, na fase da
execução; iii) flexibilização de critérios para concessão da progressão de regime e
substitutivos penais; iv) redução das hipóteses de prisão cautelar.
O citado parecer menciona importante decisão da Corte Suprema de Israel,
na qual decidira que uma pessoa condenada por roubo, que teve que ficar em
isolamento, em razão de sua condição de transgênero, deveria ter sua pena
diminuída em 1/3 do total da condenação, tendo em vista a maior severidade das
condições prisionais.
Em recente debate no plenário do STF acerca da responsabilidade civil do
Estado em razão de condições degradantes de encarceramento, o Ministro Luis
Roberto Barroso também coloca em questão a dimensão gravosa do cumprimento
de pena em condições aviltantes à dignidade humana:
o tempo de pena cumprido em condições degradantes e desumanas deve ser valorado de forma diversa do tempo cumprido nas condições normais, previstas em lei. Parece nítido que a situação calamitosa dos cárceres brasileiros agrava a pena imposta ao preso e atinge de forma mais intensa a sua integridade física e moral. Nesse sentido, a redução do tempo de prisão nada mais é do que o restabelecimento da justa proporção entre delito e pena que havia sido quebrada por força do tratamento impróprio suportado pelo detento.1001
Nesta esteira, o desajuste entre as condições de efetivo cumprimento da
pena e aquelas impostas pela ordem jurídica, deve ser mensurado pelo juiz de
conhecimento e pelo juiz da execução penal. Assim, a título exemplificativo,
poderia considerar-se que “as condições de uma instituição são tão degradantes,
que cada três dias cumpridos naquela prisão equivalem a quatro dias de pena”1002.
Por outro lado, uma unidade prisional em condições adequadas não faria jus à
medida. De modo que, seria assegurada efetividade ao princípio da
proporcionalidade ao arrefecer a severidade da duração das penas em condições
desumanas, bem como razoabilidade ao conceder direitos essenciais para abreviar
o retornar do condenado ao convívio social.
1001 STF. Min. Luis Roberto Barroso. Voto-vista no R.E. 580.252. 1002 STF. ADPF 347 de 2015, de autoria do Partido Socialismo e Liberdade. Relator: Ministro Marco Aurélio de Mello.
319
c) A Política Criminal de drogas e o encarceramento massivo
Faz-se imprescindível abordar, ainda que em breves linhas, a política
criminal de drogas e seus impactos no encarceramento massivo. Ao longo das
últimas décadas, a despeito do expressivo recrudescimento do controle penal do
comércio e uso de substâncias entorpecentes, contido na insígnia “guerra às
drogas”, não se verifica nenhuma mudança significativa à realidade dos
dependentes químicos e eventuais usuários, que continuam a movimentar o
mercado subterrâneo destas substâncias.
As abordagens presentes, sobretudo, nos trabalhos de Rosa del Olmo1003,
Nilo Batista1004, Vera Malaguti1005, Salo de Carvalho1006 e Orlando Zaccone1007
permitem concluir que os impactos do proibicionismo se revelam cada vez mais
atentatórios aos direitos fundamentais, sem demostrar resultados eficazes. A
“política criminal com derramamento de sangue”1008, além de produzir alarmantes
estatísticas de mortes por armas de fogo, contribui para consolidar o grande
encarceramento no Brasil. Como observa Salo de Carvalho:
a permanência da lógica bélica e sanitarista nas políticas de drogas no Brasil é fruto da opção por modelos punitivos moralizadores e que sobrepõem a razão de Estado à razão de direito, pois desde a estrutura do direito penal constitucional, o tratamento punitivo ao uso de entorpecentes é injustificável1009.
Desde a promulgação da Lei nº 11.343/061010, que dá nova conformação
jurídica à criminalização do comércio e uso de drogas, o encarceramento vem
aumentando expressivamente.
1003 DEL OMO, R., A face oculta da droga. 1004 BATISTA, N., Punidos e mal pagos, p. 66 1005 BATISTA, V. M., O Tribunal de Drogas e o Tigre de Papel, p. 191-192. 1006 CARVALHO, S. de, A Política Criminal de Drogas no Brasil. 1007 ZACCONE, O., Acionistas do nada. 1008 BATISTA, N., Política criminal com derramamento de sangue. 1009 CARVALHO, S. de., A política criminal de drogas no Brasil, p. 253. 1010 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm.
Acessado em: 06/06/2015.
320
Figura 17: Presos por tráfico no Brasil (2006-2012)
Fonte: Ministério da Justiça/DEPEN.
Em dezembro de 2005 havia 31.520 presos acusados de tráfico de
entorpecentes no país, já em junho de 2013 este contingente chegava a 138.366
encarcerados, representando cerca de 25% da população prisional brasileira. Neste
sentido, ao abordar a política criminal de drogas, Maria Lucia Karam alerta que:
No Brasil, os mais atingidos são os muitos meninos, que, sem oportunidades e sem perspectivas de uma vida melhor, são identificados como “traficantes”, morrendo e matando, envolvidos pela violência causada pela ilegalidade imposta ao mercado onde trabalham. (...) Não vivem muito e, logo, são substituídos por outros meninos igualmente sem esperanças. Os que sobrevivem, superlotam as prisões brasileiras1011.
As vozes da Criminologia Crítica consideram salutar a superação do
paradigma proibicionista, pugnando por medidas como a descriminalização,
despenalização e descarcerização. Segundo aponta Cirino dos Santos:
o programa de reforma penal da Criminologia crítica propõe mudanças em duas direções principais: a) no sistema de justiça criminal, um programa de descriminalização e de despenalização radicais; b) no sistema carcerário, um programa de descarcerização radical, com a máxima humanização das condições de vida no cárcere1012.
Diferentemente de outros países, como Uruguai, Holanda e alguns estados
norte-americanos, que passaram a apostar em políticas antiproibicionistas, o
1011 KARAM, Maria Lúcia. Guerra às drogas encarcera mais negros do que apartheid. Brasil de Fato, São Paulo, 10 dez. 2010b. Disponível em: <www.brasildefato.com.br>. Acesso em: 25 ago. 2011. 1012 CIRINO DOS SANTOS, J., A Criminologia Crítica e a reforma da legislação penal, p. 7.
321
Brasil permanece atrasado, atrelado ao modelo bélico. Entretanto, importantes
setores da sociedade civil tem envidado esforços nessa direção. Destacam-se os
trabalhos da LEAP-Brasil (Law Enforcement Against Prohibition)1013 e da
Plataforma Brasileira de Política de Drogas1014.
Esta pauta recentemente chegou ao Supremo Tribunal Federal no
julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635.6591015. No caso, um preso foi
flagrado com aproximadamente três gramas de maconha dentro da prisão para
consumo próprio. Francisco Benedito de Souza fora condenado a dois meses de
prestação de serviços à comunidade. No recurso, a Defensoria Pública de São Paulo
questiona a constitucionalidade do artigo 28 da lei de drogas (lei 11.343/06)1016, que
criminaliza a condição de usuário. O recurso sustenta, em síntese, que “à conduta de
portar drogas para uso próprio falta a necessária lesividade”. A este respeito,
manifestou-se o Ministro Luis Roberto Barroso:
Acho que a questão de droga tem que levar em conta em primeiro lugar o poder que o tráfico exerce sobre as comunidades carentes e o mal que isso representa. Em segundo lugar, um altíssimo índice de encarceramento de pessoas não perigosas decorrente dessa criminalização. E em terceiro lugar também a questão do usuário. Não é um debate juridicamente fácil nem moralmente barato, mas precisa ser feito.1017
De modo semelhante, o Ministro Marco Aurélio de Mello já antecipou que
considera que o tema “é um problema de saúde, não é um problema penal”. O caso
tem gerado grande expectativa na comunidade jurídica, bem como na sociedade
brasileira como um todo. A despeito do fato de não tratar da descriminalização do
comércio de substâncias entorpecentes, a decisão pode representar uma passo
importante na superação da política criminal proibicionista. Esta agenda, bem
1013 Disponível em: http://www.leapbrasil.com.br/. Acessado em: 06/06/2015. 1014 Disponível em: http://pbpd.org.br/wordpress/. Acessado em: 06/06/2015. 1015 Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciarepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4034145&numeroProcesso=635659&classeProcesso=RE&numeroTema=506. Acessado em: 15/08/2015. 1016 Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:I - advertência sobre os efeitos das drogas;II - prestação de serviços à comunidade;III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. 1017 Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2015/08/stf-decide-se-considera-crime-porte-de-drogas-para-consumo-proprio.html. Acessado em: 17/08/2015.
322
como outras medidas descriminalizantes são imprescindíveis à contenção do
encarceramento massivo e à redução dos danos da segregação prisional.
6.3 Entre o Minimalismo e o Abolicionismo Penal: sobre a controvérsia tática-estratégia
Segundo aponta Vera Regina de Andrade “nenhum método punitivo,
nenhum sistema penal na história, veio para ficar e ficou, e de nenhum se pôde
dizer, como Vinícius de Moraes, que “seja eterno enquanto dure”, pois essa
eternidade (a pena) é violência e dor” 1018.
É neste sentido, que ao nos debruçarmos sobre a profunda deslegitimação
do sistema penal, sua hipertrofia ao paroxismo diante da globalização neoliberal e
o debate sobre as estratégias de contenção a este poder punitivo sem limites,
somos remetidos a enfrentar o tema das perspectivas minimalistas e
abolicionistas1019. Necessário identificar estes campos teórico-práticos no plural,
uma vez que “’o’ abolicionismo e ‘o’ minimalismo, no singular, não existem.
Existem diferentes abolicionismos e minimalismos”.
A perspectiva abolicionista como constructo teórico-prático que tem em
seu horizonte uma sociedade sem prisões, portanto, a desconstituição do sistema
penal enquanto mediador dos conflitos sociais e a abolição das penalidades de
sequestro. Em que pese a existência de distintas variantes abolicionistas, o legado
da obra e trajetória de pensadores como Michel Foucault, Louk Hulsman, Nils
Christie, Thomas Mathiesen e Sebastian Scheerer, muitas vezes acusados pelo
discurso criminológico pragmático de não apontar uma direção propositiva,
possuem a potência crítica de ousar pensar para além do paradigma da pena.
Pelo prisma do minimalismo, há também que se diferenciar os distintos
modelos que se apresentam. “Há minimalismos como meios para o abolicionismo,
que são diferentes de minimalismos como fins em si mesmos, e de minimalismos
1018 ANDRADE, V. R. P. de, Minimalismo e abolicionismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. 1019 Trata-se do “abolicionismo radical do sistema penal, ou seja, sua radical substituição por outras instâncias de solução de conflitos, que surge nas duas últimas décadas como resultado da crítica sociológica ao sistema penal“. ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p. 97. E, neste sentido, difere de outros abolicionismos em sentido estrito, historicamente existentes, como a abolição da pena de morte e da escravidão.
323
reformistas”1020. As principais contribuições encontram-se nas proposições de
Alessandro Baratta, Eugenio Raúl Zaffaroni e Luigi Ferrajoli.
Com distintos diagnósticos acerca do “quê fazer?” em face da
deslegitimação estrutural do sistema penal, enquanto as vertentes abolicionistas
pugnam por sua suplantação e preconizam formas alternativas de solução de
conflitos, as perspectivas minimalistas, compromissadas ou não com a utopia
abolicionista, defendem sua retração ao mínimo possível. Do ponto de vista
estratégico, há que se perguntar se os projetos minimalista e abolicionista são
antagônicos e em que medida podem cooperar entre em si ou esvaziar-se um ao
outro.
Zaffaroni bem identifica que a perspectiva abolicionista requer um
pensamento estratégico, que tem como ponto de partida uma situação concreta, de
modo que sua ação é sempre local1021, ainda que seu horizonte seja societário.
Portanto, o abolicionismo valoriza as lutas no campo micro, práticas
abolicionistas cotidianas, em vistas à superação do sistema penal, como projeto
final.
As vertentes minimalistas, em suma, preconizam a retração do poder
punitivo, pugnando por políticas alternativas. Vera Regina identifica, claramente,
duas linhas:
a) modelos que partem da deslegitimação do sistema penal (concebida como uma crise estrutural de legitimidade) para o abolicionismo ou minimalismos como meio; e b) modelos que partem da deslegitimação (concebida como uma crise conjuntural de legitimidade) para a relegitimação do sistema penal ou minimalismos como fim em si mesmo1022.
No primeiro plano, os modelos que compartilham do diagnóstico de
deslegitimação estrutural do sistema penal, e comungam do devir abolicionista.
Tratam-se dos minimalismos como meio, portanto, discursos e práticas voltados a
objetivos de curto e médio prazo que se inserem na transição para rumo à abolição
do sistema penal, expressas, sobretudo, nas contribuições de Baratta
1020 ANDRADE, V. R. P. de, op. cit. 1021 Ibid., p. 107. 1022 ANDRADE, V. R. P., op. cit.
324
(Minimalismo Radical)1023 e Zaffaroni (Realismo Marginal)1024. Como aponta o
jurista argentino:
Em nossa opinião, o direito penal mínimo é, de maneira inquestionável, uma proposta a ser apoiada por todos os que deslegitimam o sistema penal, não como meta insuperável e, sim, como passagem ou trânsito para o abolicionismo, por mais inalcançável que este hoje pareça1025.
Por outro lado, o modelo minimalista apresentado por Luigi Ferrajoli
(Garantismo Penal)1026, que identifica a profunda deslegitimação do sistema
penal, no entanto, crê na possibilidade da sua relegitimação por um direito penal
mínimo, como horizonte futuro, portanto, compreendendo o minimalismo como
fim em si mesmo. Como identifica Vera Malaguti, “o que os separa na verdade é o
grande divisor de águas na criminologia e no direito penal: teorias legitimantes ou
deslegitimantes da pena”1027.
Segundo aponta Vera Regina de Andrade:
Enquanto o minimalismo teórico crítico tem se dialetizado com o abolicionismo, o minimalismo pragmático reformista tem se dialetizado com o eficientismo e relegitimado, paradoxalmente, a expansão do sistema penal. E isto significa que os diferentes minimalismos (teóricos e reformistas) são pendulares, apresentando diferentes potencialidades de apropriação, pela razão abolicionista ou pela razão eficientista; para fins transformadores ou conservadores. Daí resultam combinatórias, pares explicitados ou silenciados1028.
Deste modo, ao delimitar as ações concretas direcionadas à superação da
penalidade carcerária, e do sistema penal como solução de conflitos sociais, é
preciso ter clareza de quais iniciativas apontam para a superação do sistema penal,
1023 Delineado como Política criminal alternativa. Esclarece-nos o próprio Baratta, quem deixou claro, já na passagem da década de 1970 para a década de 1980, sua posição substantivamente abolicionista: “O princípio cardeal do modelo de uma política criminal alternativa não é a criminalização alternativa, mas a descriminalização, a mais rigorosa redução possível do sistema penal.” BARATTA, A., Criminologia Crítica e Crítica ao Direito Penal, p. 159. 1024 O modelo de Zaffaroni, denominado “Realismo Marginal Latino-americano” foi enunciado sobretudo em seu também clássico “Em Busca das Penas Perdidas” (em resposta e em homenagem latino-americana ao clássico “Penas Perdidas”, de Louk Hulsman). ZAFFARONI, E. R., op. cit., p 106. “Deste ângulo, o direito penal mínimo apresentar-se-ia como um momento do caminho abolicionista.” Ibid., p. 105. 1025 ZAFFARONI, Em busca das penas perdidas, p. 106. 1026 FERRAJOLI, L., Direito e Razão. 1027 BATISTA, V. M., Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. 1028 ANDRADE, V. R. P. de, op. cit.
325
e quais medidas servem tão somente à re-legitimação das penalidades, retro-
alimentando sua indigitada eficácia invertida.
Como assinala Mathiesen, verifica-se a necessidade de “uma tática
baseada na distinção estratégica entre reformas políticas (que servem para
conservar o sistema nas suas funções reais) e reformas negativas (que produzem
reais transformações qualitativas do sistema e servem para o ultrapassar
parcialmente)”1029.
Assim, tanto a perspectiva da Redução de Danos, compreendida no escopo
minimalista, bem como o horizonte abolicionista podem convergir em estratégias
que apontem para reformas negativas, ou seja, voltadas à deslegitimação do
sistema penal. Cabe citar emblemática passagem de Julita Lemgruber nesta
perspectiva:
acho importante enfatizar que a defesa da melhoria do sistema penitenciário não deve ser considerada uma postura reacionária ou idealista, na medida em que se advogam mudanças em uma instituição reconhecidamente falida, que serve para manter a lógica do Sistema de Justiça Criminal e o status quo. Enquanto não for possível nos livrarmos desse equívoco histórico que é a pena de prisão, não podemos, simplesmente, ficar de braços cruzados. Homens e mulheres são condenados à prisão todos os dias e não acredito que procurar minorar o sofrimento dessas pessoas corresponda a legitimar a ideologia que defende o aprimoramento do sistema prisional para continuar legitimando seu uso, com a justificativa hipócrita de que os infratores vão para as prisões para serem ‘ressocializados’1030.
Desta maneira, a despeito dos perigos do expansionismo punitivo, verifica-
se a possibilidade de convergência prática em estratégias minimalistas e
abolicionistas. Na mesma direção, Alessandro Baratta refere que:
cualquier paso que pueda darse para hacer menos dolorosas y menos danosas las condiciones de vida en la cárcel, aunque sea sólo para un condenado, debe ser mirado con respecto cuando esté realmente inspirado en el interés por los derechos y el destino de las personas detenidas, y provenga de una voluntad de cambio radical y humanista y no de un reformismo tecnocrático cuya finalidad y funciones sean legitimar a través de cualquier mejoramiento la instituición carcelaria en su conjunto1031.
1029 MATHIESEN, T., Juicio a la prison. 1030 LEMGRUBER, J., Cemitério dos vivos: análise sociológica de uma prisão de mulheres, p. 161. 1031 “Qualquer passo que possa ser tomado para tornar as condições de vida menos dolorosas e menos prejudiciais na prisão, mesmo que apenas para um condenado, deve ser visto com respeito quando se está realmente inspirado pela preocupação com os direitos e o destino dos detidos, e decorra de uma vontade de trasformação radical e humanista, não de um reformismo tecnocrático,
326
Aquilo que se convencionou chamar de Redução de Danos, não pode
esvair-se em uma suposta estratégia de ‘humanização do cárcere’, recaindo no
“isomorfismo reformista” denunciado por Foucault. É preciso não perder de vista
a potência crítica, reduzindo-se a mera legitimação do sistema punitivo que resulte
em reforçar sua eficácia invertida. A contenção do sistema penal deve ter por
horizonte não seu aprimoramento biopolítico, mas sim um passo à frente para sua
desconstrução. Como ressalta Luiz Antônio Bogo Chies, é necessário partir da
premissa que:
(...) o ‘bom presídio’ é um mito... Mesmo as mais adequadas e salubres estruturas, acompanhadas de dignos serviços de hotelaria e do acesso aos direitos da utopia da pena neutra, não retiram – apenas anestesiam – os efeitos perversos do sequestro. A prisão é uma instituição antissocial, deturpa qualquer possibilidade de reprodução de condições mínimas de sociabilidade saudável, motivo pelo qual é muito difícil se realizar análises que, ao final, concluam por uma solução de seus paradoxos. Nenhuma conclusão será pelo melhor, mas sim pela maior possibilidade de redução de danos ou por sua abolição.1032
Vera Malaguti lança-nos a pergunta, também formulada por Salo de
Carvalho, “é possível, nos tempos do grande encarceramento, ter o abolicionismo
como meta e o garantismo como estratégia?”1033
Metaforicamente, cabe aqui trazer o dilema entre as noções de tática e
estratégia originariamente conceitos militares incorporados à tradição marxista.
Lênin1034 identifica como estratégia o objetivo principal a ser atingido em uma
revolução e estabelece os alvos e as forças motrizes para tal. Por sua vez, a tática
determina a linha política por um período relativamente curto, orientando-se de
acordo com a correlação de forças em jogo. Deste modo, a tática deriva da
estratégia e orienta-se para realização desta1035.
cujas finalidades e funções sejam legitimar qualquer melhoria da instituição prisional em seu conjunto” (trad. nossa). BARATTA, A., Resocialización o Control Social: por un concepto crítico de reintegración social del condenado, p. 254 1032 CHIES, L. A. B., A questão penitenciária, pp. 15-36. 1033 BATISTA, V. M., Introdução Crítica à Criminologia Brasileira, p. 111. 1034 Lênin, V. I. As Duas Táticas da Social-democracia na Revolução Democrática. 1035 A estratégia é relativamente fixa e apenas modifica-se quando uma revolução passa de uma fase a outra. Ao passo que, a formulação da tática está intimamente ligada à conjuntura e à correlação de forças políticas. Esse é o aspecto essencial da concepção tática leninista. Ibid.
327
Por este prisma, poder-se-ia apontar a superação da prisão e do sistema
penal como a estratégia de fundo, como horizonte maior, e as disputas sobre
distintas políticas criminais no sentido de minimização do modelo punitivo, como
tática. A priori pode-se considerar que o sistema penal não pode ser sobrepujado
de assalto, tendo em vista o fato de a questão criminal edificar-se como um grande
projeto político, supostamente suprapartidário, “gerido pela mão invisível do
Leviatã neoliberal”.
Neste sentido, pode-se considerar a luta pela contenção do poder punitivo
como inserida em um conjunto de ações no plano micro, nestas disputas
criminológico-críticas de trincheira, que encontra o minimalismo como tática e o
abolicionismo como estratégia, como horizonte pela superação do sistema penal, e
das agruras da segregação prisional.
7 Conclusão
Na jornada trilhada por esta tese, não se busca propor uma conclusão
peremptória, com pretensões de verdade absoluta ou uma resposta reducionista e
miraculosa. A análise que propomos se insere em desdobramentos ainda em curso.
O acúmulo da reflexão crítica não pode guiar-se a atingir uma meta, trata-se de
um trajeto tortuoso e contínuo, que se faz no caminhar.
Este percurso nos permite apontar que o cárcere, desde sua gênese até o
presente, revela-se em permanente crise de legitimidade. Tanto a invenção da
prisão, bem como os modelos penitenciários e as terias fundamentadoras da pena,
teriam como alicerce a noção de racionalidade e civilização, voltados à retribuição
e prevenção do delito. Entretanto, à luz da Criminologia Crítica, percebe-se que
em mais de 200 anos de vigência, a instituição carcerária apresenta uma eficácia
invertida, produz tão somente sofrimento e barbárie, em meio às eternas
promessas não cumpridas de seu isomorfismo reformista.
Percebemos que a tese esposada por Rusche e Kirchheimer, que aponta a
intrínseca relação entre os sistemas penais e os sistemas econômicos, necessita ser
atualizada, mas revigora-se no contexto do capitalismo pós-industrial. Diante de
suas crises cíclicas, o sistema capitalista busca se aprofundar, em novas dimensões
de acumulação, lucrando com suas mazelas.
Sob a égide do campo burocrático neoliberal, preconizado como solução
para a crise do Estado de Bem Estar Social, o controle penal é ampliado ao
paroxismo. O Leviatã neoliberal que, como observou Wacquant, catapultou o
grande encarceramento nos EUA, terá reflexos diretos na periferia do capitalismo.
Entretanto, a análise da incorporação do Estado penal no Brasil evidencia
relevantes peculiaridades. É preciso perceber as permanências autoritárias – tanto
das matrizes ibéricas que desenharam o sistema penal da Colônia e do Império,
como das ditaduras do século XX -, que se revelam no acirramento da violência
institucional, mesmo após a reabertura democrática, com a estratosférica
letalidade policial e o encarceramento massivo. Também é determinante a
ausência histórica de welfare state no país e o incremento de políticas sociais em
paralelo à ofensiva punitiva.
329
Desta forma, para entender o Estado penal brasileiro, consideramos que o
paradigma biopolítico é também imprescindível. O conceito de Estado de exceção
trabalhado por Agamben contribui para compreender as grandes contradições do
Estado de Direito, sobretudo na América Latina, a terra das “veias abertas”.
Este panorama da penalidade neoliberal é percebido claramente no Brasil,
com o crescimento de 575% em sua população prisional entre 1990 e 2014.
Cenário que tende a agravar-se tendo em vista que nos últimos anos a velocidade
do crescimento do efetivo carcerário brasileiro esteve abaixo somente da
Indonésia, chegando ao exército de 607 mil presos, em 2014, a quarta maior
população carcerária do mundo, caminhando para ser a terceira no ano de 2018,
caso mantenha estes indicadores.
O Leviatã neoliberal se materializa contundente, em particular no Rio de
Janeiro. A adoção de um programa político criminal inspirado nos moldes
“tolerância zero”, aliado ao fato de sediar megaeventos de interesse primordial do
grande capital nos últimos anos, dá ao estado ares de laboratório biopolítico do
punitivismo. Entre 2010 e 2014, a população prisional do Rio de Janeiro cresceu
56%, mais do que o dobro do aumento do efetivo penitenciário do país. Neste
sentido, caminha na contramão de Nova Iorque, considerada outrora como o
laboratório vivo da penalidade neoliberal nos EUA, que desde 2006 vem
diminuindo progressivamente.
A cartografia do cárcere fluminense, através do exame de 29 unidades
prisionais permite identificar os reais impactos desta onda punitiva, revelando um
quadro crônico de violações de direitos, de modo que a superlotação opera como
um meta-problema que resulta na precariedade estrutural do arquipélago
carcerário.
Analisando o conceito de tortura, verifica-se que tal prática é percebida de
modo mais recorrente em instituições totais, nas celas escuras dos locais de
confinamento. De acordo com os entendimentos mais recentes de organismos
internacionais, seu conceito deve ser ampliado no ensejo de conferir máxima
proteção à pessoa humana. Neste sentido, percebe-se claramente que a realidade
carcerária observada no Rio de Janeiro permite apontar que a pena privativa de
liberdade configura um quadro sistêmico de tortura e outras formas de maus
330
tratos. Assim, pode-se conceber o cárcere na figura do “campo” e o preso na
condição de homo sacer.
Desta maneira, refletindo sobre as transfigurações do modelo prisional,
percebe-se a absoluta falência do modelo correcionalista (prisão-tratamento),
dando ensejo ao advento do modelo atuarial (prisão-depósito), como identificado
por De Giorgi e Dieter. Consideramos que, diante das profundas mazelas da
questão penitenciária no Brasil, como país de capitalismo periférico, podemos
visualizar um padrão ainda mais pernicioso, o modelo da prisão-tortura.
Neste sentido, diante da reinvenção da prisão na penalidade neoliberal, as
funções declaradas da pena, sobretudo a função preventivo-especial positiva
(ressocialização), são abandonadas, incorporando-se no discurso oficial
inequivocamente a assunção da função neutralizante, o gerencialismo de riscos no
sistema prisional. No cárcere da periferia capitalista a tortura, a violência
institucional e os castigos, são acrescidos como instrumentos de obtenção de
segurança e disciplina, cumprindo papel de neutralização e inocuização das
pessoas privadas de liberdade. Na prisão como metáfora do “campo”, em
condições aviltantes de aprisionamento, a tortura é empreendida para o
aniquilamento da subjetividade dos encarcerados.
Contudo, a despeito do agigantamento do Estado penal, percebem-se
resistências, linhas de fuga que permitem apontar estratégias para a superação do
encarceramento massivo. A Criminologia Cautelar preconizada por Zaffaroni
alerta sobre esta necessidade de adoção de medidas que possam representar um
dique de contenção do poder punitivo. A tese do Estado de Coisas
Inconstitucional, a implementação da Audiência de Custódia e de alternativas
penais, a responsabilidade civil do Estado por superlotação e condições
degradantes, bem como a superação do modelo proibicionista de drogas podem
contribuir com este propósito. Proposições que, sejam elas movidas pelo
minimalismo como tática ou pelo abolicionismo como estratégia, devem ser
dirigidas a aprofundar a deslegitimação do sistema penal.
Nesta esteira, o percurso até aqui nos oferece, mais do que a clareza
daquilo que se quer, a certeza daquilo que não se quer. O grande encarceramento é
insustentável. Insustentável sob as mais distintas perspectivas, do ponto vista ético
e humanitário, do ponto de vista orçamentário e do ponto de vista pragmático.
331
Respectivamente, devido ao fato de que promove tortura sistêmica e violações
contumazes à dignidade humana das pessoas privadas de liberdade, elevadíssimos
custos ao erário público, e resultados absolutamente contraproducentes em razão
de sua ‘eficácia invertida’.
Segundo Arthur Schopenhauer, filósofo alemão do séc. XIX, "toda verdade
passa por três estágios: primeiro, ela é ridicularizada; segundo, sofre violenta
oposição; terceiro, ela é aceita como auto-evidente"1036. A crítica radical do
cárcere já foi outrora ridicularizada e já recebeu violenta oposição, como na
reação aos estudos de Foucault, Hulsman, Baratta, Christie, Zaffaroni e tantos
outros. Não tardará a chegar a hora em que o grande encarceramento será uma
falácia auto-evidente.
Esperamos que esta tese tenha contribuído nesta direção. Neste sentido,
vale relembrar Theodor Adorno quando se refere à necessidade atual de um novo
imperativo categórico que pode romper com a barbárie engendrada pela razão
instrumental do Ocidente Moderno. Em suas palavras, trata-se de “orientar o
pensamento e a ação de modo que Auschwitz não se repita, que não volte a
ocorrer nada semelhante” 1037. Ocorre que Auschwitz já está se repetindo, nos
verdadeiros campos de concentração do arquipélago penitenciário. Desta forma,
por este novo imperativo, a dignidade humana deve estar acima de qualquer
fundamento do Estado, de disciplina e segurança, de lei e ordem. Portanto, não
pode estar de acordo com o ideal civilizatório a existência das masmorras
medievais, em meio às torturas, assassinatos, corrupção, neutralização e
aniquilamento da subjetividade dos homini sacri encarcerados. Os cárceres
embrutecidos pela superlotação e condições aviltantes são expressão não da
racionalidade e modernidade, mas sim da barbárie, do “excesso de civilização”
que impõe à parcela da população sobrante da sociedade de consumo a segregação
punitiva.
Nestes termos, relembrando a metáfora da mitológica caixa de Pandora, a
esperança, que restava no fundo da arca, pode representar justamente que o
horizonte de esperança e civilização se encontra fora dos muros da prisão. É
1036 SCHOPENHAUER, A., O mundo como vontade e como representação, tomo I. 1037 MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz: atualidade e política, p. 124.
332
preciso “desumanizar” o cárcere, é preciso retirar de suas grades obscuras os
humanos.
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