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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
KALNA MARETO TEAO
TERRITRIO E IDENTIDADE DOS GUARANI MBYA
DO ESPRITO SANTO (1967-2006)
Niteri, maro de 2015.
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KALNA MARETO TEAO
TERRITRIO E IDENTIDADE DOS GUARANI MBYA
DO ESPRITO SANTO (1967-2006)
Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao
em Histria da Universidade Federal Fluminense/ UFF,
como requisito parcial para o ttulo de Doutor.
rea de concentrao: Histria Social.
Orientadora: Prof. Dr MARIA REGINA CELESTINO DE ALMEIDA
Niteri, maro de 2015.
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Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat
T253 Teao, Kalna Mareto. Territrio e identidade dos Guarani Mbya do Esprito Santo(1967-
2006) / Kalna Mareto Teao. 2015.
234 f. ; il.
Orientadora: Maria Regina Celestino de Almeida.
Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Cincias Humanas e Filosofia. Departamento de Histria, 2015.
Bibliografia: f. 205-226.
1. ndio Guarani Mbya. 2. ndio Tupinikim. 3. Identidade tnica.
4. Territrio. I. Almeida, Maria Regina Celestino de. II. Universidade
Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo.
CDD 305.8983
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KALNA MARETO TEAO
TERRITRIO E IDENTIDADE DOS GUARANI MBYA
DO ESPRITO SANTO (1967-2006)
Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em
Histria da Universidade Federal Fluminense/ UFF,
como requisito parcial para o ttulo de Doutor.
rea de concentrao: Histria Social.
Aprovada em: / /
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________________________
Prof. Dr MARIA REGINA CELESTINO DE ALMEIDA-orientadora
Universidade Federal Fluminense-UFF
________________________________________________________________________
Prof. Dr ELISA FRUHAUF GARCIA
Universidade Federal Fluminense-UFF
________________________________________________________________________
Prof. Dr VNIA MARIA LOSADA MOREIRA
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro-UFFRJ
________________________________________________________________________
Prof. Dr. JOO PACHECO DE OLIVEIRA
Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro-MN/UFRJ
________________________________________________________________________
Prof. Dr. JOS RIBAMAR BESSA FREIRE
Universidade Estadual do Rio de Janeiro-UERJ
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AGRADECIMENTOS
Agradeo aos Guarani Mbya pelo aprendizado e pela oportunidade em conhec-los.
Agradeo minha famlia pelo apoio nessa jornada, ao meu pai, in memorian, pelo ensino
do valor da educao.
Agradeo professora Maria Regina Celestino de Almeida pela orientao e pela
compreenso.
Aos professores Bessa Freire, Joo Pacheco de Oliveira, Vnia Losada e Elisa Garcia pelas
contribuies nas bancas de qualificao e defesa de doutorado.
A professora Celeste Ciccarone por conceder boa parte da documentao deste trabalho.
Agradeo a Leandro por acompanhar a trajetria de luta.
Agradeo a Tnia Borsoi pelo apoio na BC-UFES.
A Michel Caldeira pelo apoio no APEES.
A FUNAI por ceder os relatrios para a pesquisa.
Ao CIMI por conceder uma parte da documentao dos arquivos.
Agradeo a PMV pela licena parcial para o curso do doutorado.
Aos amigos conquistados no curso do doutorado e aos professores que contriburam para
o meu aprendizado.
A Kltia Loureiro pela amizade de sempre.
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Resumo
TEAO, Kalna Mareto. Territrio e identidade dos Guarani Mbya do Esprito Santo (1967-
2006). Tese (Doutorado em Histria Social) Instituto de Cincias Humanas e Filosofia,
Universidade Federal Fluminense. UFF.
Palavras-chave: 1. Guarani Mbya. 2. Tupinikim. 3.Identidade tnica. 4.Territrio.
Este trabalho tem por objetivo analisar a construo identitria dos povos Tupinikim e
Guarani do Esprito Santo durante o processo de luta pela terra contra a empresa Aracruz
Celulose (1967-2006). Esses ndios, ao reelaborarem suas identidades tnicas, constroem
suas histrias em processos distintos, por meio da atualizao de seus mitos, ritos,
narrativas, memrias, objetos, locais e pessoas. A construo do territrio guarani
realizada por meio dos deslocamentos (oguata por), e tambm por meio desses
deslocamentos que os Guarani Mbya constroem suas histrias e suas identidades sociais.
O territrio guarani fsico, porque esses ndios buscam espaos possveis, com
condies ambientais especficas, para a construo das aldeias. O territrio guarani
imaginado, porque os Mbya, ao realizarem os deslocamentos, esto construindo um
territrio para alm das fronteiras fsicas estabelecidas pelo Estado nacional, pois trata-se
de um territrio construdo por meio desses deslocamentos e pelas relaes de
casamentos, de parentesco, de busca de sementes, de rituais. Os Guarani Mbya buscam
se apropriar de espaos como escolas, universidades, assembleias indgenas e museus
para afirmarem sua identidade tnica, na qual os ndios compartilham o sentimento de
pertencimento tnico diante de contextos histricos de transformao poltica. Este
trabalho se ancora em fontes escritas documentais, informativas e tericas e em fontes
orais, entre as quais se destacam os depoimentos indgenas.
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Abstract
TEAO, Kalna Mareto. Territory and identity of Guarani Mbya in Esprito Santo (1967-
2006).Doctoral thesis in Social History, Human Science and Philosophy Institute of the
Fluminense Federal University/UFF.
Keywords: 1. Guarani mbya 2. Tupinikim 3. ethnic identity 4. Territory
Abstract
This thesis has the objective of analyzing the identity construction of the Tupinikim and
Guarani of the Esprito Santo during the process of fight for the land against Aracruz
Celulose (1967-2006). These Indians to transformed their ethnic identities, build their
stories in different processes, through the update of its myths, rites, narratives, memories,
objects, places and people. The construction of the Guarani territory is carried out through
the displacements (oguata por) and is also through these displacements that the Guarani
Mbya build their stories and their social identities. The territory Guarani is physical
because these Indians seek possible areas with specific environmental conditions for the
construction of villages. The territory Guarani is imagined because the Mbya in carrying
out the displacements are building a territory beyond the physical boundaries set by the
National State, because it is a territory built by the displacements and relations of
marriage, parentage, searching for seed , rituals. The Guarani Mbya seek to appropriate
spaces such as schools, universities, indigenous assemblies and museums to assert their
ethnic identity and share the feeling of ethnic belonging before historical contexts of
political transformation. The sources used for this work were oral sources, indigenous
statements and written sources.
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SUMRIO
INTRODUO.............................................................................................................13
Captulo 1.A PRESENA INDGENA NO ESPRITO SANTO.................................36
1.1. Histria e deslocamentos guarani mbya...................................................................37
1.2. Os deslocamentos do grupo guarani mbya de Tatati ao longo do sculo XX..........49
1.3. A chegada dos Guarani Mbya ao Esprito Santo......................................................58
1.4. A transferncia dos Guarani Mbya junto aos Krenak, em Minas Gerais..................63
1.5. O retorno dos Guarani ao Esprito Santo e a formao das aldeias..........................69
1.6. Histria dos Tupinikim......................................................................................... .....76
1.7. Os Tupinikim no sculo XX e a etnognese..............................................................85
Captulo 2. A LUTA PELA TERRA INDGENA NO ESPRITO
SANTO............................................................................................................................99
2.1. A primeira fase........................................................................................................102
2.2. A segunda fase..................................................................................................... ...116
2.3. A terceira fase..........................................................................................................121
Captulo 3. AS LIDERANAS GUARANI E AS ORGANIZAES INDGENAS NO
ESPRITO SANTO........................................................................................................136
3.1.As lideranas guarani...............................................................................................140
3.2. Organizaes indgenas no Brasil e no Esprito Santo............................................158
Captulo 4. OS GUARANI MBYA E A CONSTRUO DE ESPAOS POLTICOS
DE IDENTIDADE.........................................................................................................174
4.1.Educao escolar guarani no Esprito Santo.............................................................183
4.2.Centro cultural Tatati Ywa Ret...............................................................................197
CONSIDERAES FINAIS......................................................................................201
REFERNCIAS...........................................................................................................205
ANEXOS.................................................................................................................... ...232
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LISTA DE ILUSTRAES
IMAGEM1. Liderana religiosa guarani Tup Kwaray................................................227
IMAGEM 2. Liderana guarani Wer Djekup............................................................227
IMAGEM 3. Liderana guarani Wer Kwaray.............................................................227
IMAGEM 4. Aldeia guarani Boa Esperana.................................................................228
IMAGEM 5. Aldeia tupinikim Caieiras Velhas............................................................228
IMAGEM 6. Centro cultural Tatati Ywa Ret..............................................................228
IMAGEM 7. Professores guarani no Curso de magistrio indgena em
Florianpolis.2005.........................................................................................................229
IMAGEM 8. Tatati Ywa Ret.......................................................................................229
IMAGEM 9. Coral guarani de Boa Esperana..............................................................229
IMAGEM 10. Artesanato guarani mbya.......................................................................230
IMAGEM 11. Artess guarani.......................................................................................230
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Lista de siglas e abreviaturas
ABA-Associao Brasileira de Antropologia
AGU-Advocacia Geral da Unio
AITG-Associao Indgena Tupinikim e Guarani
ANAI- Associao Nacional Indgena
BANDES- Banco de Desenvolvimento do Esprito Santo
BANESTES-Banco do Estado do Esprito Santo
BNDS-Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Sustentvel
CAPOIB-Conselho de Articulao dos Povos e Organizaes Indgenas do Brasil
CODES-Companhia de Desenvolvimento Econmico do Esprito Santo
CUT-Central nica dos Trabalhadores
COFAVI- Companhia Ferro e Ao de Vitria
CIMI-Conselho Missionrio Indigenista
CPT-Comisso da Pastoral da Terra
CST-Companhia Siderrgica Tubaro
CVRD-Companhia Vale do Rio Doce
CTI-Centro de Trabalho Indigenista
ECOTEC-Economia e Engenharia Industrial
EMATER- Empresa de Assistncia Tcnica e Extenso Rural
ESCELSA-Esprito Santo Centrais Eltricas S/A
FAFI- Escola Tcnica Municipal de Teatro, Dana e Msica FAFI
FASE- Federao de rgos para Assistncia Social e Educacional
FUNAI-Fundao Nacional do ndio
FUNASA-Fundao Nacional de Sade
FUNRURAL- Fundo de Assistncia ao Trabalhador Rural
GPI-Grandes Projetos de Investimentos
http://www.vitoria.es.gov.br/semc.php?pagina=ensinodeteatroedanca
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GT-Grupo Tcnico
IBAMA- Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis
IBDF-Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
IBGE-Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IDEA- Instituto para o Desenvolvimento e Educao de Adultos
IEF-Instituto Estadual de Floresta
IEMA-Instituto Estadual de Meio Ambiente
LBA-Legio Brasileira de Assistncia
INAMPS- Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social
INCRA-Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria
MOBRAL- Movimento Brasileiro de Alfabetizao
MPA-Movimento dos Pequenos Agricultores
MPES-Ministrio Pblico Estadual
MPF-Ministrio Pblico Federal
MST-Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
NISI- Ncleo Interinstitucional da Sade Indgena
OAB-Ordem dos Advogados do Brasil
OIT-Organizao Internacional do Trabalho
ONG- Organizaes no Governamentais
PETROBRAS-Petrleo Brasileiro S/A
PI-Posto Indgena
PF-Polcia Federal
PMA-Prefeitura Municipal de Aracruz
SAAE-Sistema de Abastecimento Autnomo de gua e de Esgoto
SEDU-Secretaria Estadual e Educao do Esprito Santo
SEJUC-Secretaria de Estado de Justia e da Cidadania
SETRAPS-Secretaria do Trabalho e Promoo Social
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SISPMC-Sindicato dos Servidores Pblicos Municipais de Colatina
SPI-Servio de Proteo aos ndios
SPU-Secretaria de Patrimnio da Unio
SUDELPA-Superintendncia de Desenvolvimento do Litoral Paulista
TI-Terra Indgena
UFES-Universidade Federal do Esprito Santo
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Introduo
Segundo Censo do IBGE de 2010, a populao indgena no Brasil de 896,9 mil
ndios (0,4% da populao total), 305 etnias e 274 idiomas indgenas. A Fundao
Nacional do ndio (FUNAI) identificou 505 terras indgenas, terras essas que representam
12.5% do territrio nacional ou seja, 106.7 milhes de hectares. Os ndios do pas ocupam
um territrio equivalente a 36.2 % localizados em rea urbana e 63.8% localizados em
rea rural.1
Os Guarani so um povo que habita os pases da Amrica do Sul, como Bolvia,
Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina. No Brasil, os Guarani vivem nos estados do
Esprito Santo, Rio de Janeiro, So Paulo, Paran, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Em 2005, a populao guarani no continente foi estimada em 94.657 habitantes. Segundo
o Censo do IBGE (2010), no Brasil esse nmero de 67.523 ndios2.
A populao guarani apresenta-se subdividida conforme os subgrupos: Mbya,
Nhandeva ou Ava Xiripa e Kaiowa ou Pai Tavyter. Os subgrupos distinguem-se entre si
devido s variaes lingusticas e culturais prprias. Os Guarani do Esprito Santo auto
intitulam-se como Nhandeva, nosso povo, ns, nossa gente. Uma das principais
caractersticas dos Mbya consiste na realizao do oguata por (caminhada) e eles
possuem a crena religiosa da Yvy marey, Terra sem Mal. Essa classificao foi realizada
por Schaden e at hoje reconhecida pelos antroplogos e tambm pelos ndios3.
As aldeias kaiowa encontram-se na regio central do Paraguai e na regio sul do
Mato Grosso do Sul. Os Nhandeva concentram-se tambm no Paraguai, nas reas
compreendidas entre os rios Jejui Gazu, Corrientes e Acaray. No Brasil, vivem nas aldeias
do Mato Grosso do Sul, no interior e no litoral dos estados de So Paulo, no interior dos
estados do Paran, do Rio Grande do Sul e no litoral de Santa Catarina. Os Mbya esto
1 IBGE. Censo 2010: populao indgena de 896,9 mil, tem 305 etnias e fala 274 idiomas. 10 ago. 2012.
Disponvel em: < http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&idnoticia=2194>
Capturado em 13 ago. 2013. Neste Censo do IBGE de 2010, possvel obter informaes e dados
analisados, tabelas, mapas sobre a populao indgena brasileira habitante das reservas e das cidades, bem
como informaes referentes s terras, s etnias, lngua, populao rural, urbana, educao, sade,
ao trabalho, entre outros. Esses dados so relevantes na medida em que permitem mapear a realidade
indgena do pas para traar futuras polticas pblicas que assegurem os direitos indgenas. 2 Os povos classificados segundo tronco lingustico, etnia ou povo so: 75.000 Guarani, 43.401 Kaiowa, 8.026 Mbya e 8.596 Nhandeva. Demais informaes sobre os povos indgenas esto presentes em IBGE.
Censo demogrfico 2010. Caractersticas gerais dos indgenas: resultados do universo. Rio de Janeiro,
2012. 3 LADEIRA, Maria Ins. Espao Geogrfico Guarani-Mbya: significado, constituio e uso. Maring/Paran: Eduem; So Paulo: EDUSP, 2008. p.61.
http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&idnoticia=2194
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presentes em vrias aldeias da regio oriental do Paraguai, no nordeste da Argentina
(provncia de Missiones) e norte do Uruguai. No Brasil, localizam-se nas aldeias do
interior e do litoral dos estados da Regio Sul e em So Paulo, Rio de Janeiro e Esprito
Santo4.
No Esprito Santo, a populao indgena habita o municpio de Aracruz, situada
no litoral norte do estado, distante 83 km da capital Vitria, e compreende 2.630
Tupinikim e 300 Guarani, segundo dados da Fundao Nacional de Sade (FUNASA,
2010). Os Guarani Mbya habitam as aldeias de Boa Esperana, Trs Palmeiras e Piraqu-
Au, todas localizadas ao sul da terra indgena tupinikim. Os Tupinikim so do tronco
lingustico tupi cuja identidade foi rearticulada nos processos territoriais. Os Tupinikim
vivem nas aldeias de Caieiras Velhas, Iraj, Comboios e Pau Brasil. (conforme o mapa
em anexo). Os Tupinikim, historicamente localizavam-se no litoral norte do Esprito
Santo. Seus principais aldeamentos coloniais eram as aldeias de Reis Magos (Nova
Almeida), Reritiba (Anchieta), Aldeia Nova (Santa Cruz). Os Tupinikim ocupam
imemorialmente o Esprito Santo e reelaboraram suas identidades sociais conforme os
aldeamentos que ocupavam. Esses ndios constroem suas histrias evocando o fato dos
antepassados terem vivido na regio de Nova Almeida como fato para comprovarem sua
presena histrica na Regio Norte do Esprito Santo.
Inmeros conflitos fundirios envolvendo ndios tm vindo tona na mdia, na
internet e na imprensa internacional devido prpria situao histrica de subordinao
a que esses povos so submetidos. Muitas dessas disputas envolvem longas batalhas
judiciais em torno da homologao e demarcao das terras indgenas. Soma-se a esse
fato tambm a prpria mobilizao indgena, que se utiliza de estratgias para visibilizar
seus problemas, como a participao em diversos movimentos e organizaes pelo pas,
a ampliao dos programas de educao e de formao de professores, a apropriao e o
uso de novas tecnologias e mdias sociais, como a internet, e uma rede de apoio que
envolve movimentos sociais, organizaes no governamentais (ONGs), entidades civis,
intelectuais, ambientalistas, universitrios e sociedade civil. Essa rede se ampliou para a
esfera governamental, com a participao do Ministrio Pblico Estadual (MPES) e do
Ministrio Pblico Federal (MPF), da FUNAI e de alguns deputados estaduais e federais.
Os Tupinikim e os Guarani reivindicam para si o acesso aos direitos coletivos
sobre a terra, a sade, a educao e a cultura. Esses grupos tnicos percebem-se dentro da
4 LADEIRA, 2008, p.61.
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categoria poltica de ndios e, dessa forma, conseguem acessar os direitos coletivos e
lutam ao mesmo tempo pelo cumprimento dos direitos indgenas e pelo respeito como
povos tradicionais formadores da cultura e do povo brasileiro. Historicamente, os
Tupinikim viveram aldeados no litoral do Esprito Santo, no municpio de Aracruz e
rearticularam suas identidades indgenas nas aldeias missionrias, tendo permanecido at
o sculo XIX, quando lutavam pelo direito sua cidadania, reivindicando aos
administradores do Imprio o direito s terras, ao trabalho e justia, conforme podemos
observar nos trabalhos de Moreira (2001, 2005, 2010). A busca por direitos indgenas dos
dois povos foi acionada mediante o processo fundirio (1967-2006), envolvendo
Tupinikim e Guarani contra a empresa Aracruz Celulose. Os ndios acionavam sua
identidade diferenciada na medida em que necessitavam enfrentar situaes do tempo
presente de discriminao, de subordinao e de espoliao dos seus antigos territrios
tradicionais. Os dois povos indgenas buscavam a garantia dos seus direitos negociando
com o Estado, por meio das vias legais e da apropriao de mecanismos burocrticos que
lhes garantissem o direito terra, tais como o conhecimento de documentos, legislao,
peties, cartas, comunicados, relatrios. Essa apropriao do conhecimento burocrtico
foi acompanhada pela assessoria das entidades civis e pelo movimento indgena em nvel
local e nacional. Nesse espao de busca por um territrio indgena que os Tupinikim e
os Guarani formaram suas lideranas polticas tradicionais e novas lideranas como
representantes nativos que representavam uma lgica prpria de organizao social e
poltica diante do Estado.
A regularizao das terras ocupadas pelos Guarani no litoral do Brasil iniciou-
se por meio de aes e projetos do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), em 1979. Nos
estados do Rio de Janeiro e So Paulo, as terras guarani eram ameaadas pela especulao
turstica e imobiliria e pela construo da rodovia Rio-Santos. Na regio do Paran e
Santa Catarina, as presses ambientais ocorriam devido aos projetos de especulao
imobiliria e ao processo de duplicao da rodovia BR 101.5 No caso do Esprito Santo,
a partir dos anos 1970, novos projetos de desenvolvimento econmico assolaram as terras
indgenas e seus recursos, como empresas de abastecimento de gua, saneamento bsico,
e gasoduto Bolvia- Brasil. 6
5 LADEIRA, 2008, p.38. 6 LADEIRA, Maria Ins. O caminhar sob a luz: O territrio mbya beira do oceano. So Paulo: UNESP,
2007, p..40.
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A histria que pretendemos construir nesta tese no poderia ser diferente de
outras regies do pas. Inmeras histrias regionais assemelham-se pela excluso
histrica desses povos, pela falta de garantia mnima do respeito aos seus direitos
indgenas assegurados pela Constituio de 1988 e pelos conflitos que envolvem suas
terras. Nosso objetivo geral consiste em analisar a histria dos Guarani Mbya, conforme
a trajetria de lutas e deslocamentos desse povo indgena, no perodo de 1967 a 2006. A
construo identitria desse grupo tnico se constri por meio dos deslocamentos e nas
suas interaes com outros povos indgenas, como os Tupinikim. Os Guarani Mbya so
nosso objeto de anlise e consideramos os Tupinikim importantes agentes nos processos
de luta conjunta da reconstruo identitria.
A identidade tnica dos Mbya elaborada a partir dos deslocamentos e atravs
do contato com os agentes, como os povos indgenas Tupinikim e Krenak, com a
sociedade envolvente, o Estado, as entidades civis, as ONGs. A escolha dessa poca deve-
se ao fato de que o momento em que os Guarani chegam ao Estado coincide justamente
com a mesma poca do conflito fundirio que os envolve junto aos Tupinikim e a empresa
Aracruz Celulose, atual FIBRIA.
Existe um discurso construdo sobre os Guarani Mbya de que eles so nmades,
paraguaios e estrangeiros. Em muitos casos, essa justificativa visa deslegitimar o
protagonismo indgena em torno de suas lutas acerca de seus direitos, bem como um
argumento fortemente usado pelos seus opositores em conflitos fundirios, pois, ao
afirmar-se que o ndio no brasileiro, destitui-se o acesso s terras e aos demais direitos.
Tais denominaes demonstravam que os Guarani no eram considerados brasileiros,
portanto no teriam direito sobre as terras. O seu modo de vida por meio dos
deslocamentos se contrape lgica de reservar um espao apropriado aos Mbya. O fato
de os Guarani realizarem oguata por um aspecto constitutivo de sua vida cultural e
tambm desperta a afirmao da sua identidade tnica ao buscarem terras adequadas ao
seu modo de vida. Caminhar estar em movimento do corpo, do esprito e em busca de
terras, pois oguata por age dimensionando novos territrios diante das presses
intertnicas e dos conflitos fundirios.7
7 GARLET, Ivori. Mobilidade Mbya: Histria e significao. Dissertao (Mestrado). Programa de Ps-Graduao em Histria. Porto Alegre: Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul,1997.
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H muitos trabalhos acerca dos Tupinikim no que tange disputa territorial,
porm muito poucos sobre os Guarani. Destacam-se os trabalhos de Loureiro8 e Silva9
sobre o processo fundirio envolvendo os Tupinikim, os Guarani contra a Aracruz
Celulose. Ambos os trabalhos se concentram no perodo inicial do conflito territorial
(1967-1983). Loureiro considera que a luta pela terra indgena no Espirito Santo deve ser
compreendida levando-se em conta a poltica fundiria exercida pelos governos da
ditatura militar, os incentivos do reflorestamento, a chegada da Aracruz Celulose, a
atuao do governo estadual, a usurpao das terras indgenas por parte da empresa, a
atuao da FUNAI e a mobilizao dos povos indgenas10. Silva analisa a formao do
territrio tupinikim diante da poltica indigenista oficial do estado do Esprito Santo e o
processo de luta fundiria que envolveu a afirmao da identidade tnica dos tupinikim a
partir da categoria poltica de ndios, pois, anteriormente, esses ndios se afirmavam como
caboclos e assim eram conhecidos pelos membros da sociedade envolvente. A afirmao
da identidade tupinikim foi resultante da busca pelos direitos coletivos terra. Silva situa
os Tupinikim no mesmo processo de etnognese dos ndios emergentes do Nordeste do
sculo XX, pois, segundo o autor, o contexto dos anos de 1970 permite ao poder federal
e sociedade da poca descobrir o surgimento dos ndios no Esprito Santo.11
Embora os Guarani mbya sejam amplamente estudados pela Antropologia e
Educao, na Histria isso ocorre menos. Nos trabalhos acerca da Etnologia guarani,
alguns antroplogos privilegiaram o enfoque de abordagem na crena mtico-religiosa da
Terra sem Mal como condio essencial para que os Guarani realizassem os movimentos
migratrios.12 Estudos antropolgicos e histricos recentes sugerem a necessidade de se
abordar os Guarani de forma histrica, levando em considerao as diferentes pocas,
regies, contextos e especificidades culturais13. Boa parte dos estudos acerca dos Guarani
8 LOUREIRO, Kltia. O processo de modernizao autoritria da agricultura no Esprito Santo: os ndios Tupiniquim e Guarani Mbya e a empresa Aracruz Celulose. Dissertao. Programa de Ps-graduao em
Histria Social das Relaes Polticas. Vitria: UFES, 2006. 9 SILVA, Sandro Jos da. Tempo e espao entre os Tupiniquim. Dissertao. Programa de Ps- Graduao
em Antropologia Social. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2000. 10 LOUREIRO, Kltia. 2006, p.16 11 SILVA, Sandro Jos da.2000. 12 CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. 5. ed. Francisco Alves,1990. MTRAUX, Alfred. A
religio dos Tupinambs e suas relaes com a das demais tribos Tupi-Guaranis. 2 ed. So Paulo:
Companhia editora nacional/EDUSP, 1979. NIMUENDAJU, Curt Unkel. As lendas da criao e destruio
do mundo como fundamento da religio dos Apapocva Guarani. So Paulo: Hucitec, Edusp, 1987. 13 SILVA, Evaldo Mendes da. Folhas ao vento: a micro mobilidade de grupos mbya e nhandeva (guarani)
na Trplice Fronteira. Tese (Doutorado). Programa de ps-graduao em Antropologia social. Museu
Nacional. UFRJ. Rio de Janeiro, 2007. PISSOLATO, Elizabeth. A durao da pessoa: mobilidade,
parentesco e xamanismo mbya (guarani). So Paulo: UNESP/ISA, Rio de Janeiro: NUTI, 2007. POMPA,
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referem-se anlise de situaes que envolvem os deslocamentos do subgrupo Mbya, sob
perspectiva do mito, do xamanismo, das lideranas, das relaes de parentesco, da
religio e da relao ecolgico-ambiental.14
Consideramos a trajetria dos Guarani Mbya ao Esprito Santo (1940-1967) a
partir de uma perspectiva histrica, na qual os Guarani, ao realizarem o oguata por
(caminhada) no tiveram somente a motivao religiosa como principal causa do
deslocamento realizado por diversos estados. Preferimos optar pelo termo deslocamento
e no migrao, em virtude da necessidade de dimensionar historicamente os Mbya e
analisar os processos de luta por territrios e construes de identidades ocorridos em
diversas pocas e por grupos especficos. Faz-se necessrio compreender os Guarani em
sua dimenso particular, levando em conta as especificidades dos grupos tnicos e no
tratando-os como um grupo macro com caractersticas genricas e universalizantes.
Estudos sobre os Guarani tentam explicar as principais causas que os levaram a
realizar grandes deslocamentos ao longo do pas. Schaden, mesmo que tenha retratado as
migraes guarani e, inclusive, a presena Mbya no Esprito Santo em 1934, possui uma
tica baseada no estudo antropolgico vigente na poca, fundamentado na ideia da
aculturao, segundo a qual os ndios em contato com a sociedade envolvente perdiam
sua cultura. O autor realizou pesquisas em diversas partes do Brasil com os Guarani de
So Paulo, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul.15
Clastres (1979), em A sociedade contra o Estado, analisa os ndios Guarani
Mbya na busca da Terra Sem Mal, Ywy maraey, por meio das migraes lideradas pelos
xams. Para o autor, o mundo terrestre seria um espao de imperfeio, de dor, de falta
de alimentos. O caminhar seria uma forma de manter o corpo em movimento para buscar
locais mais apropriados a leste, prximo ao mar. A busca desse lugar sagrado promove o
movimento do corpo guarani por meio da dana, da msica, dos cnticos e da orao.16
Cristina. A religio como traduo: missionrios, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial. Bauru, So Paulo:
EDUSC, 2003. 14 CICCARONE, Celeste. Drama e sensibilidade: migrao, xamanismo e mulheres mbya guarani. Tese (Doutorado). Programa de Estudos de Ps-graduao em Cincias Sociais, Pontifcia Universidade Catlica
de So Paulo. So Paulo, 2001.LADEIRA, Maria Ins. O caminhar sob a luz: o territrio mbya beira do
oceano. So Paulo: UNESP, 2007. LADEIRA, Maria Ins. Espao Geogrfico Guarani-Mbya: significado,
constituio e uso. Maring/Paran: Eduem; So Paulo: EDUSP, 2008.LADEIRA, Maria Ins; MATTA,
Priscila. Terras guarani no litoral: as matas que foram reveladas aos nossos antigos avs. Kaa gy
orerami kery ojou rive vaekue . So Paulo: CTI,2004. SILVA, 2007. 15 SCHADEN, Egon. Aspectos fundamentais da cultura guarani. So Paulo: Difuso Europia do livro, 1962, p.9. 16 CLASTRES, 1979.
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Guimaraens argumenta que as migraes realizadas pelos Guarani durante as
dcadas de 1950 e de 1960 remontam s trajetrias dos antepassados. Os Mbya, desde o
perodo colonial, resistiram ao domnio dos encomenderos espanhis e das misses
jesuticas, refugiando-se nas regies das matas do Guara. Guimaraens afirma que os
Guarani, alm da aparente tolerncia e diplomacia, possuem um contato sistemtico com
a sociedade envolvente e, mesmo assim, preservam suas tradies.17
Conforme Guimaraens, para os Guarani, a terra o local da produo divina
capaz de abrigar todos os seres, animais, plantas, guarani e no guarani. Desejam um
espao que lhes seja prprio e diferenciado dos djuru (no ndios). O espao territorial
deve conter recursos necessrios ao seu modo de ser. Os Mbya reconhecem o direito
divino de uso e ocupao da terra por outros grupos.18 Tradicionalmente, esses povos
dividem seu territrio com outros povos. Por exemplo, no sul do pas, os Guarani dividem
suas terras com os Kaingang e os Xokleng.
Os Guarani Mbya da Regio Sudeste buscam um territrio com as seguintes
condies ambientais: localizado em sentido leste, situado prximo ao mar e com
presena de Mata Atlntica. Os Guarani Mbya buscam esses lugares prprios ao seu modo
de vida e nomeiam as aldeias conforme os elementos mticos para identificar esses
espaos. A religio um fator decisivo de diferenciao tnica que se dilui no cotidiano,
nas diferenas de hbitos, na dieta alimentar.19 O territrio guarani formado pela
relao entre os aspectos socioambientais, espaciais e de acordo com os princpios ticos
que regem o modo de ser guarani. As regras de reciprocidade e de convivncia social
mantm a dinmica de ocupao territorial guarani.20
Litaiff afirma que as categorias tnicas apresentadas pelos Mbya so resultados
da reorganizao de fatores culturais, no sentido de absorver novos smbolos e preservar
importantes valores diante do contato com a sociedade envolvente. Nos conflitos
intertnicos com os Xokleng, os Kaingang e a sociedade no ndia, os Guarani buscam
afirmar sua identidade tnica por meio da oposio entre os grupos tnicos. A posse da
terra fundamental para a existncia da cultura e da sociedade Guarani. Os Mbya afirmam
sua identidade tnica na sua relao com a terra, isto , consideram-na como espao de
17 GUIMARAENS, Dinah. Museu de Arte e origens: mapa das culturas vivas guaranis. Rio de Janeiro:
Contra Capa, 2003, p.22-23. 18 GUIMARAENS. 2003.p.32. 19 LADEIRA, 1992. 20 LADEIRA, 2001.
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20
que necessitam e preservam o meio natural, em contraste com os outros grupos, como os
Xokleng, os Kaingang e os no ndios. 21
Compartilhamos a viso de Garlet sobre a formao do territrio guarani a partir
de uma perspectiva histrica e da elaborao dos espaos por meio dos processos de perda
territorial (desterritorializao) e por meio da formao de novos territrios e ocupao
do espao (reterritorializao).22 A mobilidade guarani atua como motivadora dessa
ordenao dos espaos para os Mbya e caracteriza-se por um movimento de circularidade
motivado por aspectos socioculturais (casamentos, visitas, disputas poltico-religiosas) ou
econmicos (explorao sazonal do ambiente, mudanas de aldeia e locais de cultivo).
Os principais fatores que motivariam os deslocamentos guarani so a cosmologia, a
organizao social, a poltica de alianas entre os grupos, fatores econmico-ambientais
e aspectos relacionados s representaes sobre morte e doena, as presses intertnicas
e as polticas indigenistas.23
Ciccarone procura analisar a importncia das lideranas femininas do Esprito
Santo na reconstruo da trajetria e da narrao da histria dos Guarani Mbya no Esprito
Santo. A autora compreende o drama como resultante dos mitos de criao dos Guarani
e esse drama emerge das histrias de relaes do contato com a sociedade envolvente e
da consequente reduo dos espaos adequados para a sobrevivncia e manuteno do
modo de vida guarani. 24
Evaldo Mendes da Silva acompanhou o deslocamento dos ndios entre onze
aldeias situadas na regio da Trplice Fronteira do pas, isto , a rea de confluncia dos
rios Paran e Iguau, entre o Brasil, o Paraguai e a Argentina. O autor realizou a
caminhada ou oguata junto aos Guarani. Para Meli, a causa essencial dos deslocamentos
consiste na procura de condies ambientais favorveis ao modo de ser guarani.25
O deslocamento guarani reflete as questes da dimenso ecolgico-cultural
(busca de terras apropriadas caa, pesca, ao cultivo) e da dimenso social (referente
s relaes de reciprocidade). O princpio fundamental do modo de ser guarani seria a
relao de reciprocidade entre os ndios que promovem uma conscincia identitria
mesmo em espaos diversos e descontnuos. A aldeia seria esse espao onde se
21 LITAIFF, Aldo. As divinas palavras: representaes tnicas dos Guarani Mbya. Dissertao (Mestrado). Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social. Universidade Federal de Santa Catarina.
Florianpolis, 1991, p.34. 22 GARLET, 1997. 23 Ibid, p.141. 24 CICCARONE, 2001. 25 MELI apud SILVA, 2007, p.25.
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exerceriam o modo de ser e as relaes de reciprocidade guarani. O deslocamento guarani
seria gerado, na viso de Meli, pela ruptura das condies ecolgico-ambientais
(ausncia de espaos de caa, de pesca e de cultivo) e das regras de reciprocidade
(conflitos internos).26
O estudo do parentesco permite compreender melhor as razes para a realizao
do deslocamento guarani mbya em suas dimenses poltica, econmica e ecolgica. A
mobilidade consiste no somente na movimentao dos grupos de parentes que se
deslocam sucessivamente por lugares onde estabelecem residncia, mas tambm consiste
na capacidade de conquistar e atualizar situaes coletivas em diversos espaos e
tempos27.
Nosso trabalho procurar percorrer a dimenso histrica, tomando o aspecto
territorial como linha mestra do estudo e articulando a questo identitria, poltica e
ambiental. Partimos do pressuposto de que a identidade dos Guarani Mbya do Esprito
Santo reelaborada historicamente, mudando ao longo dos contextos histricos
vivenciados por eles, e construda politicamente no processo de luta pela terra junto aos
ndios Tupinikim do Esprito Santo durante os sculos XX e XXI. Nosso intuito principal
consiste em afirmar que os Guarani Mbya, ao realizarem os seus deslocamentos, no so
motivados apenas pela crena na Yvy marey, Terra sem Mal. Uma das principais causas
dos deslocamentos consiste nos intensos conflitos fundirios desde a sada do grupo do
Rio Grande do Sul, em 1940, at sua chegada ao estado, em 1967, conduzido pela lder
xamnica Tatati Ywa Rete. Todos os caminhos percorridos pelos Mbya foram repletos de
disputas territoriais, pelos intensos contatos com a sociedade envolvente, pelos conflitos
entre culturas distintas, pelos processos de controle estatal durante o perodo do Servio
de Proteo ao ndio (SPI) no incio do sculo XX e pela ao da FUNAI durante a
ditadura militar.
A histria da chegada dos Guarani Mbya ao Esprito Santo narrada pelos ndios
principalmente por meio de depoimentos orais em que a figura central a lder religiosa
Tatati Ywa Ret. Tatati era de origem guarani da regio do Paraguai. Seu nome era
Candelria, naquela regio. Sua famlia havia realizado o deslocamento do Paraguai ao
Brasil. J do lado brasileiro, Tatati tambm era conhecida como Maria e foi a responsvel
por conduzir o grupo Mbya at o Esprito Santo. Alm de ser uma mulher que exercia
claramente seu papel religioso, ela tambm sabia articular-se politicamente junto ao
26 MELI apud SILVA, 2007. p. 26. 27 PISSOLATO, 2007, p. 107-123.
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marido e sua filha, Aurora. O grupo Guarani Mbya, com o objetivo de conseguir ganhos
e benefcios, agia negociando com os no ndios, com as igrejas protestantes, com os
governos locais, durante o trajeto do Rio Grande do Sul ao Esprito Santo, numa trajetria
de quase 30 anos pelo litoral sul e sudeste, que se iniciou em 1940.
Comumente, tem-se uma viso de que os Guarani, devido ao seu modo de ser,
nhandereko, so um povo pacfico, que no desejam guerra ou conflitos. Porm na anlise
da trajetria dos Mbya ao Esprito Santo, podemos observar que os Guarani so um grupo
que luta arduamente pela defesa de seus interesses, pela afirmao de sua identidade
tnica e pela busca de um territrio adequado ao seu modo de ser.
Geralmente, os Guarani trilham os caminhos j percorridos pelos antepassados,
conforme veremos no captulo 1, em relao sua trajetria no Esprito Santo. Existem
tambm smbolos que os fazem reconhecer que aquela terra encontrada possui condies
ambientais favorveis sobrevivncia do grupo, como a tava, construes de pedra. No
campo mtico-religioso, os sonhos e as revelaes so indcios da necessidade de
mudana para se encontrar um novo local adequado convivncia do grupo
(CICCARONE, 2001; PISSOLATO, 2007)
Os Guarani Mbya procuram relacionar-se com os diversos agentes, com a
sociedade envolvente, com as igrejas protestantes, com as ONGs, com outros povos
indgenas, com os intelectuais, com os pesquisadores, com os artistas, com os polticos,
com os ambientalistas, com as instituies do governo (FUNAI, MPF, AGU) de forma a
conseguirem apoio para as suas necessidades, seus projetos e suas lutas polticas. Ao
mesmo tempo em que negociam com os agentes de acordo com os seus interesses
prprios, no momento necessrio, os Mbya adotam polticas de enfrentamento, de
afirmao de sua identidade tnica diante da sociedade envolvente, por meio de
estratgias, como a autodemarcao, as ocupaes, as manifestaes, as passeatas e as
marchas. A construo da identidade guarani ocorre na inter-relao com os agentes, os
outros povos indgenas, e sobretudo, por meio da luta poltica pela terra junto aos povos
Tupinikim no Esprito Santo.
A legislao brasileira, por intermdio do Estatuto do ndio (Lei n 6001/1973)
e da Constituio Federal de 1988, considera que os ndios tm direito sobre as terras por
direitos originrios. Com o art. 231 da Magna Carta, os ndios passam a ter direito sobre
a terra, levando-se em conta o aspecto da ocupao tradicional. No caso do Esprito Santo,
os Tupinikim so povos de ocupao imemorial; entretanto, os Guarani Mbya chegaram
ao Estado em 1967. Como garantir a posse da terra para os Guarani Mbya se os critrios
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adotados pelo Estado nacional excluem as concepes de territrio dos povos indgenas?
Trata-se de uma questo na qual os ndios buscam garantir seus direitos sobre a terra,
usando estratgias prprias, reelaborando suas identidades tnicas e buscando apoio
poltico de diversos agentes.
Mesmo sendo os Guarani um dos povos mais numerosos do pas, em relao aos
estados, so sempre minorias. No mbito da legislao e das polticas indigenistas oficiais
da demarcao, os Guarani so excludos do direito posse da terra. Como ento os Mbya
conseguem estabelecer-se em regies nas quais no possuem ocupao de forma
permanente? Primeiramente, os Guarani Mbya aliam-se e associam-se junto a outros
povos indgenas para conseguirem alcanar o territrio desejado. No caso do Esprito
Santo, os Mbya ocuparam a Terra Indgena (TI) Tupinikim. Na regio sul do pas, os
Guarani vivem em TI Kaingang e Xokleng. A aliana com os Tupinikim possibilitou que
os Mbya conseguissem viver conforme seus prprios preceitos e costumes em rea
indgena tupinikim, em condies ambientais prprias e em espao separado deste povo.
Percebe-se uma mudana em relao aos relatrios da FUNAI, do MPF, da AGU em
relao aos Guarani Mbya, dando mais visibilidade a esse grupo tnico e buscando
elencar argumentos de ocupao tradicional das terras indgenas para garantir os direitos
coletivos sobre as terras.
Os deslocamentos dos Guarani Mbya possuem intrnseca relao com os
processos de espoliao de suas terras ao longo da histria do contato desse povo com a
sociedade envolvente. O territrio guarani foi constantemente reformulado em processos
de desterritorializao, ocasionados pelos conflitos fundirios e as disputas com no
ndios. Dessa forma, os Mbya agem refazendo seus territrios por meio dos
deslocamentos, em processos de reterritorializao. As diversas causas que promovem o
oguata por, deslocamento, so de ordem interna e de ordem externa. As causas de ordem
interna consistem na busca de alianas para casamentos, na busca de parentes, de
sementes, de rituais, em aspectos mtico-religiosos (sonhos, revelaes, tava), em vises
sobre sade-morte e doena. As causas externas consistem nas disputas com no ndios
em torno de terras (GARLET, 1997).
Conforme Almeida e Moreira, durante o sculo XIX, com o processo de
independncia e a formao do Estado nacional, as orientaes polticas do poder
institudo se davam por meio das polticas liberais. Em relao questo indgena, a
poltica governamental consistia em promover uma rpida assimilao dos ndios
sociedade nacional. Com a poltica nacional e liberalista, o Estado agia de forma a tentar
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24
homogeneizar as comunidades indgenas, em geral de forma violenta e algumas vezes de
forma negociada. Tanto no Rio de Janeiro como no Esprito Santo, durante o sculo XIX,
muitos ndios afirmavam suas identidades tnicas e lutavam politicamente na defesa dos
seus direitos coletivos, com base na cultura poltica do Antigo Regime. Esses ndios
negociavam e formavam alianas polticas com diferentes agentes, prestavam servios ao
rei e reivindicavam direitos assegurados pela condio de sditos cristos.28
O territrio brasileiro foi produto da conquista e da destruio do territrio
indgena. O tempo e o espao das culturas indgenas foram moldados ao espao e tempo
do capital. Os povos indgenas lutam pela manuteno de seus territrios em
contraposio expanso, desenvolvimento e acumulao do capital. 29 A gesto e o
ordenamento territorial definidos pelas polticas pblicas do Estado desconsidera as
normas de ocupao, de organizao e de sociabilidade prprias dos grupos tnicos em
contraposio aos padres polticos e econmicos dominantes.30
Os territrios so fronteiras historicamente fixadas por meio de estratgias de
poder e controle poltico pelo Estado, sendo que os ndios negociam espaos prprios
sua dinmica cultural, ecolgica e social dentro dos mecanismos burocrticos do poder
institudo. s vezes, a relao entre ndios e Estado pela garantia do territrio de
dependncia, porque o governo detm e controla os mecanismos burocrticos e jurdicos
para determinar a posse da terra indgena. Por outro lado, os ndios apropriam-se tambm
desse conhecimento e ordenamento jurdico e burocrtico para exigir do Estado os seus
direitos indgenas.
Alm da luta poltica pelo territrio ser agente propulsor da afirmao da
identidade tnica guarani, existem outros elementos que contribuem para a elaborao
dessa identidade, tais como os deslocamentos, a concepo de territrio, a forma de
contarem sua prpria histria por meio da elaborao de projetos culturais, histricos e
educacionais. As velhas e novas lideranas guarani realizam palestras, seminrios,
oficinas culturais, viagens ao exterior e elaboram produtos culturais como artesanatos,
CDs, DVDs, filmes, msicas, teatro, cartilhas, dicionrios, livros bilngues e museu. Toda
a produo artstica e educacional voltada para a afirmao da identidade cultural, para
a divulgao das tradies, para a visibilidade da existncia do povo Guarani.
28 ALMEIDA, Maria Regina C. de. MOREIRA, Vnia M. L. ndios, Moradores e Cmaras Municipais:
etnicidade e conflitos agrrios no Rio de Janeiro e no Esprito Santo (sculos XVIII e XIX). In: Mundo Agrrio, vol. 13, n 25, 2. Sem. 2012, p.3. 29 OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A geografia das lutas no campo. So Paulo: Contexto, 1999,p.11. 30 LADEIRA, 2008, p.48
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25
Acreditamos que os Guarani Mbya constroem um territrio possvel com as
condies ambientais e mticas por meio dos deslocamentos que realizaram ao longo do
sculo XX. Esses deslocamentos permitem o encontro com os parentes de diversas
regies do Brasil, as alianas polticas por meio de casamentos, de novas oportunidades
de trabalho, de renovao das prticas ritualsticas como o nheemongara (batismo do
milho), das trocas de sementes de awati etei (milho sagrado). Esse territrio guarani
circular, localizado beira do oceano, e tem como centro o Yvy mbyte (centro do
mundo=Paraguai) (LADEIRA, 2007, 2008).
Os deslocamentos mbya so resultantes principalmente de um intenso contato
com a sociedade envolvente ocasionado pelos conflitos fundirios. Esta busca por espaos
prprios em que pudessem exercer seu modo de ser, possibilitou aos Mbya reconhecer-
se e afirmar-se em oposio aos outros povos indgenas e aos no ndios. Em termos de
organizaes indgenas, os Guarani Mbya articulam-se cada vez mais na busca e na troca
de informaes a fim de debaterem e avaliarem melhores estratgias polticas para
conseguirem assegurar os direitos humanos fundamentais por meio da Nhembo Aty
Guasu Guarani, da Associao Indgena Guarani Mboapy Pindo (AIGMP) e demais
organizaes indgenas, entidades civis e ONGs.
Nessa dinmica, os Guarani Mbya contemporneos ainda realizam
deslocamentos como em pocas remotas. Os deslocamentos, o censo, o mapa, o museu e
a intelectualidade ndia so elementos que contribuem para a construo da identidade
indgena guarani. Mesmo que o censo e o mapa sejam produtos do Estado para garantir
um controle sobre a populao, ainda assim so indicadores de visibilizao de uma
populao e norteadores de polticas pblicas de sade, educao, demarcao de terras,
cultura e meio ambiente. As polticas pblicas de formao de professores indgenas
revelam a formao de uma intelectualidade ansiosa por contar e escrever sua prpria
histria. O museu ou casa de memria mostra a apropriao de um espao exgeno do
universo indgena que pode ser apropriado para a defesa de sua cultura e para a construo
de uma histria indgena diferenciada. Mas ainda h outros espaos de compartilhamento
da identidade guarani, como a internet, as exposies artsticas, as reunies, os encontros,
as associaes indgenas, os cursos de formao de professores e lideranas polticas, as
manifestaes artsticas por meio de msicas, corais, livros, teatros, filmes e comerciais.
Dessa forma, partimos de quatro pressupostos. O primeiro pressuposto consiste
em afirmar que os Guarani Mbya elaboram sua identidade tnica ao construir sua histria
por meio do oguata por (caminhada) e por meio do apelo memria da lder religiosa
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26
Tatati Ywa Ret. Por sua vez, a histria dos Guarani Mbya foi construda na inter-relao
da histria desse grupo tnico em conjunto com a histria dos povos indgenas Krenak e
Tupinikim. Os Tupinikim, historicamente, possuem a posse imemorial da terra indgena,
j os Guarani chegaram ao Estado em 1967 e possuem a posse tradicional do territrio
tnico. Dessa forma, os ndios constroem suas identidades sociais por meio da
reelaborao dos seus passados, utilizando diversas fontes histricas como mitos,
narrativas, memrias, lugares, espaos, etc. Nesse processo de construo identitria, os
ndios buscam ser atendidos em suas reivindicaes polticas do tempo presente,
reatualizando suas histrias para melhorar as condies de vida da comunidade tnica e
para possibilitar novas perspectivas para o futuro (HILL, 1994; RAPPAPORT, 2005). Os
deslocamentos permitem aos Guarani Mbya afirmarem sua identidade tnica, e, por meio
desses deslocamentos, esses ndios trocam experincias, sementes, praticam rituais,
realizam casamentos e alianas polticas e participam de aprendizados polticos em
assembleias indgenas.
O segundo pressuposto consiste em afirmar que os ndios Tupinikim e Guarani
Mbya constroem suas identidades tnicas por meio da luta poltica pelo territrio em
oposio empresa Aracruz Celulose (1967-2006). No processo de construo das
identidades tnicas os ndios objetivam obter ganhos polticos para a coletividade.
O terceiro pressuposto analisa a construo do territrio guarani como fsico e
imaginado. O territrio fsico, porque os Guarani Mbya buscam reas prprias para a
sua sobrevivncia em aldeias localizadas nas regies com presena de Mata Atlntica e
localizadas prximas ao mar. Essas aldeias so escolhidas por elementos mtico-
religiosos expressos por meio de sonhos e revelaes interpretados pelas lideranas
tradicionais indgenas guarani. O territrio guarani mbya imaginado, pois esse povo
indgena compartilha o sentimento de comunho tnica com outros guarani do pas nos
espaos possveis que so apropriados por eles, tais como as aldeias, os museus, as
escolas, as universidades. Esses espaos so apropriados como pertencentes ao povo
guarani e eles reelaboram suas identidades coletivas e suas histrias. Os deslocamentos
entre as aldeias e esses espaos permite o intercmbio entre eles, por meio das visitas, dos
rituais, das trocas de sementes, dos casamentos, das alianas polticas. Os deslocamentos
agem como elementos que propiciam o compartilhamento do sentimento tnico, da
reconfigurao do territrio guarani fsico e imaginado.
O quarto pressuposto compreende a identidade guarani elaborada por meio da
ao poltica dos Mbya em busca de seu territrio e pelos seus direitos coletivos. Esses
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ndios afirmam sua identidade social por meio dos deslocamentos realizados no oguata
por e por meio do conflito territorial no Esprito Santo. A identidade guarani poltica
porque esses ndios compartilham o sentimento de pertencimento tnico na construo
dos espaos polticos de identidade como a casa de memria, a escola, as universidades,
as construes de suas histrias e o espao das assembleias guarani pelo Brasil. As
lideranas guarani tradicionais e as novas lideranas constroem o passado do grupo tnico
em torno da lder Tatati Ywa Ret e da trajetria do oguata por. Os Mbya constroem a
histria do grupo tnico inter-relacionado histria de outros grupos indgenas, como os
Krenak e os Tupinikim. Os Guarani Mbya do Esprito Santo construram o Centro
Cultural Tatati Ywa Ret com o objetivo de contarem sua prpria histria e colocam-se
como protagonistas dessa construo histrico-mtica. Os Guarani apropriam-se dos
diversos espaos como os museus, as escolas, as universidades e as assembleias indgenas
para afirmar-se como ndios, para compartilharem o sentimento de pertencimento tnico.
Nosso objetivo geral tentar responder como os Guarani constroem sua
identidade tnica e conseguem estabelecer e formar um territrio seu a partir do conflito
fundirio e por meio da relao com os povos indgenas, como os Tupinikim. Os demais
objetivos consistem em analisar a histria dos Mbya no Esprito Santo, compreender o
processo fundirio que envolve os povos indgenas e a Aracruz Celulose, analisar as
histrias das lideranas polticas e sua formao poltica e educacional e verificar como
os Guarani conseguem articular suas estratgias polticas na construo de sua prpria
histria e identidade tnica.
Para compreendermos melhor a histria dos Guarani Mbya do Esprito Santo,
faz-se necessrio tambm conhecer a histria de outros povos indgenas com os quais
mantiveram contato durante o sculo XX, tais como os Krenak e, principalmente, os
Tupinikim. Os Guarani mantiveram contato prximo com os Krenak na poca da Fazenda
Guarani, localizada no municpio de Carmsia, em Minas Gerais, quando foram levados
durante os anos de 1970, conforme veremos no captulo 1.
Em relao aos Tupinikim, os Mbya mantiveram e ainda mantm intensas
relaes histricas de contato, de trocas, de casamentos, de alianas em torno das lutas
polticas pela terra e demais direitos, no enfrentamento de problemas comuns e nas
relaes de presses intertnicas com a sociedade envolvente. Os dois povos interagem
mutuamente na construo de suas identidades e nos processos de luta pela terra e pelos
seus direitos coletivos.
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Ao longo do tempo, tanto os Tupinikim como os Guarani sofreram processos de
colonizao, com os deslocamentos, os aldeamentos, a catequese dos jesutas, a
espoliao de seus territrios e as intensas relaes com os no ndios. Poderemos
verificar que os Tupinikim e os Guarani so povos que possuem semelhanas na histria
do contato com os no ndios, e ao mesmo tempo, apresentam-se distintos culturalmente.
Uma diferena histrica fundamental entre eles que os Tupinikim ocupam o Esprito
Santo desde tempos imemoriais, fato esse que garante direitos coletivos reconhecidos
pelo Estado nacional a esse grupo tnico. Os Guarani Mbya se estabeleceram em 1967 e
no possuem um territrio definido e demarcado para esse povo indgena, o que faz com
que os Mbya busquem estratgias para garantir terras junto aos Tupinikim. No Esprito
Santo, os dois povos indgenas, mesmo com suas especificidades, lutaram juntos em torno
da questo da terra e no acesso aos direitos indgenas, negados ao longo do sculo XX.
Tupinikim e Guarani conseguiram afirmar-se como indgenas protagonistas de sua
prpria histria ao obterem a homologao das terras. Por conseguinte, ambos os povos
ao afirmarem-se como ndios garantiram tambm o acesso ao cumprimento dos direitos
indgenas, com ganhos nas reas de sade, educao, agricultura, saneamento, etc. Ambos
os povos unidos na luta poltica pelo territrio, afirmam, entretanto, suas diferenas
tnicas, culturais, ambientais e seus distintos modos de concepo de vida e de territrio,
conforme analisaremos no captulo 1.
As fontes analisadas constituem-se de depoimentos orais das lideranas
polticas, religiosas, dos mais velhos e dos professores indgenas, de fotografias de acervo
prprio e do movimento Rede Alerta Contra o Deserto Verde, jornais locais impressos e
digitais como A Gazeta, A Tribuna e o jornal eletrnico Sculo Dirio, relatrios
ambientais da PETROBRAS e da Associao de Gegrafos do Brasil (AGB), relatrios
tcnicos da FUNAI (referentes aos anos de 1979, 1980, 1983, 1994, 1997, 1998, 2005,
2006) e documentos do Conselho Indigenista Missionrio (CIMI). Os depoimentos orais
e as entrevistas foram obtidos ao longo da pesquisa, desde o ano de 2005 no curso de
mestrado em educao. Boa parte dos relatrios fundirios foram obtidos na FUNAI de
Braslia. Alguns documentos foram pesquisados no CIMI em Braslia. Os relatrios
ambientais e os jornais foram cedidos pela professora Celeste Ciccarone.
Nossa metodologia empregada consiste na realizao de entrevistas, anlise dos
documentos escritos e orais e o uso da Etno-histria. A Etno-histria por ns
compreendida como uma metodologia que busca articular de forma interdisciplinar a
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29
Antropologia e a Histria, sem, no entanto, tratar-se de uma justaposio de ambas31.
Trigger considera que a abordagem no se constitui uma justaposio de temas, em que
Histria e Antropologia analisam elementos de maneira separada, em interpretaes que
no se articulam. Criada nos anos 1920 do sculo passado, a Escola dos Annales buscou
realizar dilogo interdisciplinar com outras cincias, como a Sociologia, a Economia, a
Antropologia. A partir dessa nova vertente histrica, houve uma nova forma de pensar a
histria sob a perspectiva social e cultural e no apenas sob o ponto de vista da histria
poltica. Dessa forma, a possibilidade de se inclurem novos sujeitos coletivos
anteriormente invisibilizados permitiu a incluso maior de ndios, negros, operrios,
mulheres na histria. Tambm passou-se a valorizar as diversas fontes histricas para
alm dos documentos escritos, como objetos, imagens, fotografias, artefatos, mitos, ritos,
etc.
A Etno-histria procura pensar a histria elaborada pelos prprios grupos tnicos
de forma interdisciplinar. Permite revisitar criticamente e compreender a historicidade
dos termos cultura, tradio e identidade tnica. Os conceitos de cultura e identidade so
considerados produtos histricos construdos por meio das complexas relaes sociais
entre indivduos e grupos em contextos diferenciados e permitem anlises mais amplas
acerca das relaes intertnicas. 32
A Etno-histria prope uma abordagem da temtica indgena para alm da
descrio do modo de vida e da cultura, pois visa ao aprofundamento das relaes
intertnicas, da historizao do contato, da abordagem em uma perspectiva do conflito de
interesses e do protagonismo indgena. Pressupe a possibilidade de cruzamento de fontes
orais e escritas. Permite ao historiador que, para alm da anlise das fontes escritas, ele
recorra pesquisa de campo para observar e aprofundar as informaes do documento,
permite vivenciar as situaes indgenas e verificar como se do as relaes intertnicas,
muitas vezes no relatadas nos documentos escritos.
Conforme Almeida, as novas perspectivas da Etno-histria permitem ultrapassar
uma srie de vises estereotipadas, preconceituosas e simplistas ao revelarem realidades
de sociedades indgenas complexas, nas quais grupos tnicos e sociais interagem,
influenciam-se e transformam suas culturas, histrias e identidades. 33
31 TRIGGER, Bruce G. apud ALMEIDA, Maria Regina C. de. Histria e Antropologia. In: CARDOSO, Ciro F. VAINFAS, Ronaldo. Novos domnios da Histria. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 151-168. 32 THOMPSON, MINTZ E BARTH apud ALMEIDA, 2012, p.151. 33 ALMEIDA, 2012,p.151.
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Boccara lembra que ocorre uma releitura sobre a histria do passado e do
presente dos povos indgenas e uma nova perspectiva de abordagem, pois se tem em
considerao o ponto de vista indgena na reconstruo dos processos histricos. Alm
disso, os historiadores e antroplogos buscam analisar os processos de resistncia, de
adaptao e de mudanas deixando a velha dicotomia de tradio imemorial e diluio da
identidade indgena por meio da aculturao imposta pelo outro. Por ltimo, a emergncia
de grupos tnicos e as novas identidades, atravs de processos mltiplos de mestiagem
e etnognese, revelam uma nova forma de se construir a histria indgena. Em suma, h
uma nova reescrita das realidades indgenas em seu contexto histrico devido ao interesse
por estratgias e discursos elaborados pelos nativos e por outro lado, h o rompimento
das dicotomias (mito/histria, natureza/cultura, sociedades frias/quentes, pureza
cultural/aculturao).34 Boccara defende a cultura como um processo conflitivo e poltico
de construo do direito diferena.35
Procuraremos, dentro da perspectiva da Etno-histria, ultrapassar os
preconceitos sobre a questo indgena. Conforme Bessa Freire, existem cinco equvocos
ao se tratar da temtica indgena no Brasil. O primeiro consiste em tratar os ndios como
culturas atrasadas. Na verdade, os ndios possuem uma cultura complexa e sofisticada
representada nas artes, na msica, na dana, na lngua, na religio. O segundo seria
analisar as culturas indgenas como culturas congeladas, ou seja, exige-se do ndio que
ele seja como em 1500, que seja um ndio autntico. Ocorre a necessidade de a histria
indgena mostrar a violncia que esses povos sofreram, os conflitos pela terra e a histria
do contato. O terceiro equivoco seria compreender o ndio com uma cultura nica e
genrica. A funo da Histria e da escola seria ultrapassar esse equvoco pois no Brasil
temos 305 etnias e 274 idiomas indgenas, segundo o IBGE (2010). O quarto equvoco
seria relegar os ndios ao passado, negando-lhes sua modernidade, sua historicidade e sua
transformao cultural. Por fim, o quinto equvoco seria afirmar que o brasileiro no
ndio, ressaltando apenas sua matriz europeia.36
O movimento indgena tem trazido tona a importncia dos sujeitos coletivos
em torno da questo tnica, identitria e multicultural. A maior parte das anlises sobre
34 BOCCARA, Guillaume. Mundos nuevos em las fronteras del Nuevo mundo: relectura de los processos
coloniales de etnogensis, etnificacin. Mundo nuevo, nuevos mundos revista eletrnica. Paris. Disponvel
em: www. ehess.fr/cerma.revuedebates.htm.2001, p.3. 35 BOCCARA, 2001, p.18. 36 FREIRE, Jos Ribamar Bessa. A imagem do ndio e o mito da escola. In: MARFAN, Marilda Almeida.
Congresso Brasileiro de qualidade na educao: formao de professores. Educao escolar indgena.
Braslia, 2002, v.4. p.93-99
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os movimentos sociais no centram suas discusses na questo tnica. Com o avano dos
movimentos sociais durante as dcadas de 1970 e 1980, os movimentos tnicos e
identitrios ganharam relevncia e espao poltico, visto que esse reconhecimento acerca
da diversidade representou um avano para a consolidao da democracia. Conforme
Roberto Cardoso de Oliveira, nem etnia, nem classe, so fatos em si, seno que existem
respectivamente em relao a etnias e classes, portanto, como entidades sociais
pluralizadas37. Dessa forma, compreende-se que classe e etnia no apresentam
delimitaes objetivas e independentes entre si em uma dada realidade social. Para
Weber, grupos tnicos se constroem nas lutas polticas e criam costumes e culturas. A
comunidade tnica possui um sentimento de identidade compartilhado que se constri por
meio da ao poltica.38 Para Gellner, a nao engloba a ideia na qual um grupo quer
persistir como comunidade, devendo incluir todas as espcies de comunidades que tem
pouco a ver com as naes. (GELLNER, 1989). Para Connor (1978, 1993), a existncia
das naes justamente a tomada de conscincia de si do grupo, que o distingue dos
demais, mas ele liga essa afirmao nao como grupo mais amplo no qual os indivduos
esto ligados por uma filiao ancestral.
A cultura dinmica, mutvel e construda historicamente ao longo do tempo.
A cultura no significa estar relacionada a uma sociedade esttica, simtrica e coerente
em si mesma. Os atores atuam conforme seus interesses, suas experincias, seus passados
e objetivos prprios. Os atores de um sistema social podem empregar uma variante
cultural em vez de outra, sendo necessrio salientar que as relaes entre inteno, ato e
consequncia so variveis. Pessoas em posies sociais distintas podem realizar as
mesmas aes, ter intenes e consequncias distintas. As pessoas realizam suas aes
baseadas principalmente em experincias e aprendizados passados que podem ser
compartilhados de maneira uniforme ou no. 39
Barth compreende cultura como algo que compartilhado por meio da
experincia que por sua vez ocasiona aprendizados. A cultura no se localiza em algum
lugar definido, mas deve-se identificar como ela est sendo produzida e reproduzida. A
cultura, para Barth, apresenta uma enorme variao e ocorre de maneira contnua. Alm
disso, existem descontinuidades mais ou menos abruptas e algumas ideias compartilhadas
37 OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Etnia e estrutura de classe: a propsito da identidade e etnicidade no Mxico. Anurio Antropolgico/79. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979, p. 58. 38 WEBER, 1994, p.270. 39 MINTZ, Sidney W. Cultura: uma viso antropolgica. Tempo. Revista do Departamento de Histria da
UFF, v.14, n.28, Niteri: EDUFF, 2010.
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ou em contraste com outras. Ainda se deve pensar a cultura em um estado de fluxo
constante porque est permanentemente sendo compartilhada pelas experincias das
pessoas. 40 E. Thompson, ao estudar sobre a formao da classe operria inglesa,
valorizou o cultural, associando-o ao conceito de classe e conscincia de classe, pois
ambos se formam em conjunto, no processo histrico e fazem-se continuamente;
combinam-se os condicionamentos e a ao humana. Para o autor, a cultura um produto
dinmico que deve ser compreendido no processo histrico, no qual tanto mulheres
quanto homens vivem suas experincias. 41
O grupo tnico consiste em grupos humanos, que, em virtude de semelhanas
nos costumes ou no habitus externo, ou em ambos os casos, ou em razo de lembranas
de histrias de migrao e de colonizao, alimentam uma crena subjetiva na
procedncia comum. Para Weber, os grupos tnicos se constroem nas lutas polticas e
criam costumes e culturas. A comunidade tnica possui um sentimento de identidade
compartilhado que se constri por meio da ao poltica.42
Compartilhamos a ideia de Barth sobre o grupo tnico, pois o autor considera
que este consiste em uma forma de organizao social, em que predomina a caracterstica
da autoatribuio dos indivduos por meio da identificao e da atribuio por outros.
Tanto Weber quanto Barth consideram que a ao poltica, o sentimento subjetivo de
pertena e o carter organizacional so fatores fundamentais para a formao do grupo
tnico. 43 Nesse sentido, Cunha converge com Barth ao compreender o grupo tnico como
forma de organizao social em populaes cujos membros se identificam e so
identificados como tais pelos outros. Os grupos tnicos diferem-se de outros por
entenderem a si mesmos e serem percebidos ao longo da histria como contnuos, por
possurem a mesma ascendncia independente da separao geogrfica. Para Cunha, a
identidade tnica de um grupo indgena exclusivamente funo da autoidentificao e
da identificao pela sociedade envolvente. Os grupos tnicos possuem mecanismos de
adoo ou excluso dos indivduos, que depende da aceitao do grupo e supe disposio
em seguir seus valores e traos culturais.44
40 BARTH, Frederik. Etnicidade e o conceito de cultura. In: Antropoltica. Niteri, n. 19.2005, p.16-17. 41 THOMPSON, E.P. Misria da Teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. 42 WEBER, Op.cit.1994, p.270. 43 ALMEIDA, 2003, p.163. 44 CUNHA, Manuela C. da. Parecer sobre os critrios de identidade tnica. In: ______Antropologia do
Brasil: mito, histria e etnicidade. 2. ed. So Paulo: Brasiliense, 1987, p.113-119.
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Os Guarani Mbya do Esprito Santo formam-se enquanto grupo tnico por meio
da luta poltica em busca do territrio indgena junto aos Tupinikim. Os Mbya afirmaram
sua identidade tnica e ao mesmo tempo reconstruram um passado em comum, com base
nas situaes e necessidades do presente. As lideranas polticas e religiosas privilegiam
as narrativas do oguata por e atribuem um papel essencial xam Tatati Ywa Rete,
como fundadora do aldeamento mbya no estado e tambm no estado do Rio de Janeiro e
no estado de So Paulo. O passado comum da trajetria ao Esprito Santo foi escolhido
para ser representativo e compartilhado para justificar a prpria existncia do grupo, para
afirmar a importncia das lideranas polticas existentes e para valorizar sua histria e sua
identidade tnica. Por outro lado, o grupo tnico apresenta-se unido e consciente de que
sua identidade guarani diferenciada da de outros povos e agentes devido luta poltica
pela terra junto aos Tupinikim contra a empresa Aracruz Celulose.
Tomamos emprestado o conceito de territorializao de Oliveira que a define
como um processo de reorganizao social que implica a criao de uma nova unidade
sociocultural a partir do estabelecimento de uma identidade tnica diferenciadora, da
constituio de mecanismos polticos especializados, da redefinio dos mecanismos
polticos especializados, da redefinio do controle social sobre os recursos ambientais,
da reelaborao da cultura e da relao com o passado.45
Historicamente, os Tupinikim viveram nas aldeias do Esprito Santo e
principalmente em Aracruz, onde se mantm h um longo tempo e acionavam sua
identidade tnica indgena em momentos de luta pela terra e para reivindicar e garantia
seus direitos indgenas. No perodo de 1967, com a instalao da empresa Aracruz
Celulose e com a ao de vrios posseiros em seu territrio, os Tupinikim acionaram
novamente sua identidade poltica de ndios para garantir a posse da terra. A histria do
desenvolvimento e do processo de ocupao do campo no Brasil marcada por conflitos
sociais desde sua origem. O territrio brasileiro foi produto da conquista e da destruio
do territrio indgena.
Os Guarani Mbya preservam seus espaos de Mata Atlntica e seus recursos
naturais. A todo instante, os Mbya esto refletindo sobre sua prpria histria ao
incorporarem elementos da histria local e nacional, inserindo-se como protagonistas e
no meramente como expectadores. Some-se a esse fato a construo de sua prpria
histria por meio da participao no campo das artes, em projetos culturais como filmes,
45 OLIVEIRA, Joo Pacheco de. (org.). A viagem da volta: Etnicidade, poltica e reelaborao cultural no Nordeste indgena. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa/LACED, 2004, p.22.
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peas de teatro e na elaborao de sua prpria histria por meio da produo de materiais
didticos, livros, filmes e da construo da casa de memria onde h o resgate de sua
chegada ao Esprito Santo.
O processo de territorializao no se configura como mo nica, sendo externo
e homogeneizador, pois a atuao dos ndios revela a afirmao da identidade tnica
diferenciada sobretudo com matiz poltica46. Os Guarani Mbya diferenciam-se dos
Tupinikim em muitos aspectos referentes religiosidade, cultura, lngua, s relaes
ecolgicas com os recursos naturais.
Este estudo ser dividido em quatro captulos. O primeiro captulo versar sobre
a histria dos Guarani Mbya desde sua sada do Rio Grande do Sul, em 1940, at seu
contato com os Tupinikim, ocorrido a partir de 1967. A histria dos Guarani Mbya do
Esprito Santo encontra-se entrelaada histria dos povos indgenas Tupinikim e
Krenak. A aliana dos Guarani Mbya junto aos Tupinikim possibilitou-lhes obter ganhos
como os direitos sobre a terra e demais direitos indgenas. Em relao aos Krenak, os
Guarani conviveram com esse povo durante o perodo militar na Fazenda Carmsia, em
Minas Gerais e ambos os povos resistiram aos rgidos castigos e imposies do perodo.
O contato com os Krenak ocorre ainda nos dias atuais por meio de visitas e alianas
polticas contra a ao de empresas na rea indgena Krenak, em Minas Gerais.
Analisamos neste captulo as questes da identidade tnica dos Guarani e dos Tupinikim,
a formao do territrio guarani atravs dos deslocamentos, bem como discutimos os
conceitos de migrao e mobilidade. Tentamos compreender como os deslocamentos so
elementos formadores da identidade tnica dos Guarani Mbya. As fontes analisadas foram
os relatrios da FUNAI e da PETROBRAS, jornais locais e depoimentos orais.
O segundo captulo trata da histria do conflito fundirio no Esprito Santo,
envolvendo os povos Tupinikim e Guarani Mbya e a empresa Aracruz Celulose.
Verificamos como a disputa territorial indgena com a empresa possibilitou aos ndios seu
protagonismo poltico na retomada do territrio por meio de diversas estratgias e por
meio de alianas com agentes diferenciados, como polticos, rgos do governo, ONGS,
entidades civis, igrejas, movimentos sociais, ambientalistas, etc. Analisamos a relao
entre os povos Tupinikim e Guarani diante da conquista da terra e dos direitos sociais.
Para tanto, as fontes analisadas foram os relatrios da FUNAI e da PETROBRAS, os
jornais locais e as entrevistas orais.
46 OLIVEIRA, 2004, p.28.
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O terceiro captulo trata do panorama das organizaes indgenas no Brasil e no
Esprito Santo, bem como as diferenas entre as lideranas tradicionais e as novas
lideranas polticas. Discutimos os desafios para as organizaes indgenas do Esprito
Santo. Dentre as fontes utilizadas, destacaram-se os relatrios do Ncleo
Interinstitucional de Sade Indgena (NISI), do CIMI, relatrios da PETROBRAS,
depoimentos orais, vdeos, CDs e DVDs de autoria mbya.
O quarto captulo versa sobre a construo dos espaos polticos da identidade
guarani, como a luta pela terra, as assembleias indgenas, a construo da histria e do
Centro Cultural Tatati Ywa Ret. Podemos observar que os Guarani Mbya constroem sua
histria e se apropriam dos espaos formando o territrio imaginado e afirmando sua
identidade tnica. Vamos enfatizar a importncia da reelaborao das histrias e das
memrias para a construo das identidades e da luta poltica. Destacam-se as fontes
analisadas: depoimentos orais, produtos culturais, dissertaes e teses.
Quanto grafia dos nomes indgenas, optamos por utilizar a normatizao da
Associao Brasileira de Antropologia (ABA) da dcada de 1950 e em relao lngua
guarani, baseamo-nos no Vocabulrio do Guarani, do Summer Institute of Linguistics
(Dooley, 1982). O sistema fontico guarani formado pelas vogais A, O, E, I, U, Y que
podem ser orais e nasais e pelas consoantes P, T, K (substituindo ca, co, cu, que, qui), J
(som j, dj), R, X (som x, tch, ch, ts), V (som v ou u), G, G; MB, M, ND, D, NG, NH.
Por vezes, utiliza-se o ou SS. As palavras guarani so apresentadas em itlico. Quando
o termo guarani se referir ao povo utilizaremos letra inicial maiscula e, caso se refira
lngua ou a outros elementos utilizaremos inicial minscula. 47
47 A sistematizao da escrita do guarani foi adotada seguindo o modelo de Ladeira (2007)
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1. A presena indgena no Esprito Santo
Neste captulo, vamos abordar a histria dos povos Tupinikim e Guarani do
Esprito Santo. Para se compreender a histria de um desses dois grupos tnicos faz-se
necessrio tambm conhecer a histria do outro, pois ambos esto interligados e inter-
relacionados. Os Guarani e os Tupinikim possuem histrias semelhantes em relao aos
processos de colonizao, como a espoliao de seus territrios, a cristianizao, os
deslocamentos, os trabalhos forados, os aldeamentos e as relaes e com os povos
indgenas e os no ndios.
Os dois povos so distintos culturalmente, possuem diferentes modos de vida e
concepes de territrio. Entretanto, mesmo afirmando-se diferentes entre si, com suas
especificidades culturais prprias, os dois grupos tnicos uniram-se na luta contra o
inimigo comum em defesa de sua terra, a empresa Aracruz Celulose.
Ao aliarem-se, os Tupinikim e os Guarani Mbya obtiveram ganhos histricos
como a homologao de suas terras em uma luta que durou quase quarenta anos. Essa
luta pelo territrio indgena tambm ocasionou o reconhecimento oficial dos Tupinikim
enquanto ndios no Estado. A luta poltica dos dois povos em torno da terra garantiu-lhes
tambm o acesso aos demais direitos como sade, educao, saneamento, trabalho, etc.
Ao assumirem suas identidades como ndios, eles asseguraram por meio da luta poltica,
os seus direitos outrora negligenciados. Primeiramente, trataremos dos Guarani Mbya,
por serem nosso objeto de estudo, e, em seguida, recuaremos no tempo e analisaremos a
histria dos Tupinikim.
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1.1.Histria e deslocamentos guarani mbya
Todos os que vieram para essas terras no vo esquecer
to fcil. Vou guardar para o resto da minha vida, onde
nossos avs pisaram, plantaram e procuraram passar
para Nhanderu ret (o lugar de Nhanderu). Ns
acreditamos em Nhanderu para que ele ilumine mais nossos pensamentos, para que sigamos o mesmo
caminho de nossos avs antigos. 48
Analisaremos nesta parte do captulo 1, a histria dos Guarani Mbya
considerando a sua trajetria at a chegada ao Esprito Santo. Faz-se importante
compreender que a histria dos Mbya entrelaada histria do contato com outros
povos indgenas, como os Tupinikim, os Krenak e com a sociedade envolvente. Os novos
caminhos percorridos pelos Guarani j tinham sido trilhados anteriormente pelos seus
antepassados. No caso, a vinda dos Mbya ao Esprito Santo j fora relatada por
Nimuendaju e consta dos relatrios do Servio de Proteo ao ndio (SPI). Essa trajetria
guarani foi realizada por lderes xamnicas, o que imprime peculiaridade a esse
deslocamento indgena. O deslocamento guarani teve diversas causas, porm
principalmente, queremos relatar que o motor propulsor dessa caminhada a busca pela
terra, so os conflitos fundirios e os conflitos intertnicos. E por fim, a construo da
identidade guarani d-se tambm com a busca pelo territrio adequado, que inclui
condies socioambientais apropriadas ao seu modus vivendi, sobretudo, vincula-se
busca e luta pela terra.
Queremos comprovar que a identidade guarani se elabora por meio da realizao
dos seus deslocamentos ou caminhadas, oguata por, pois de acordo com Benedict
Anderson, no seu livro Comunidades imaginadas, os criollos realizavam viagens
constantes ao longo do Atlntico, fato esse que lhes possibilitava perceberem-se
diferentes dos espanhis e desejarem uma comunidade distinta da metrpole
colonizadora.49 Tomamos a ideia das viagens de Anderson aplicada ao caso dos Guarani
Mbya em relao aos deslocamentos. Assim so tambm os Guarani Mbya, tomando-se
48 Depoimento de um jovem do litoral do Brasil em visita s aldeias do Paraguai e Argentina, 1997, apud
Ladeira, 2001, p. 72. 49 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexes sobre a origem e a difuso do nacionalismo. So Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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em conta os distintos contextos, pois so o nico subgrupo a realizar oguata por ainda
nos tempos atuais. Os deslocamentos desses ndios proporcionam o compartilhamento de
um sentimento de pertencimento ao povo Guarani Mbya, por meio de visitas a parentes,
de casamentos, de trocas de sementes, de alianas polticas, de conflitos internos e de
contatos com a sociedade envolvente em razo das presses intertnicas e dos conflitos
fundirios.
Durante muito tempo, estes deslocamentos foram considerados pelos
antroplogos como motivados unicamente pela crena mtico-religiosa na Terra sem Mal,
Yvy marey (CLASTRES, 1990; NIMUENDAJU,1987). Embora esses trabalhos tenham
tido suma importncia na abordagem dos mitos e da religio guarani, discordamos do fato
de que a crena na Terra sem Mal seja o fator motivador exclusivo dos deslocamentos.
Tambm refutamos o termo migrao, pois est imbudo desse aspecto mtico-religioso
como motivador dos deslocamentos (LADEIRA, 2007,2008; CICCARONE, 2001).
Essa caracterstica dos Guarani Mbya de sempre se deslocarem e buscarem um
territrio prprio multiplica os debates no campo da Etnologia guarani. O que queremos
aqui considerar esses deslocamentos numa perspectiva histrica, conflitiva e identitria
no mbito das interaes sociais com diversos agentes, como os outros povos indgenas,
a sociedade envolvente e o Estado. Nesse sentido, o deslocamento inserido no conceito
de mobilidade engloba tanto os movimentos de origem religiosa quanto os que
apresentam motivaes diversas. A mobilidade apresenta-se como uma possibilidade de
estratgia de negao diante das tentativas integracionistas e assimilacionistas da
sociedade nacional.50 A mobilidade caracteriza-se em um movimento de circularidade,
motivado por aspectos socioculturais (casamentos, visitas, disputas poltico-religiosas) ou
econmicos (mudanas de locais de cultivo). A circularidade do movimento constitui um
espao conhecido e delimitado conhecido como territrio51.
Oguata por age promovendo movimentos de desterritorializao que consistem
na perda do territrio original, ao menos de um territrio contnuo e os Guarani Mbya
utilizam como soluo para a ampliao possvel dos seus espaos o movimento de
reterritorializao, isto , um processo de relocalizao do espao.52 No caso dos Mbya
devido aos conflitos fundirios e s presses intertnicas, os ndios reelaboram seu
50 GARLET,1997, p. 16. 51 Ibid, p.17. 52 Ibid., p.18.
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territrio por meio dos deslocamentos e formam novos aldeamentos, incorporando
ambientes ecologicamente desejados para o seu modo de vida.
Partilhamos com Garlet, a ideia de que a mobilidade guarani apresenta uma
combinao de traos culturais com o impacto intertnico, isto , um resultado de uma
cultura historicamente construda, que possui elementos que se combinam e se rearranjam
conforme o momento histrico.53
Deslocar-se faz parte da lgica constitutiva do ser guarani; mover-se
movimentar o corpo e o esprito. Entretanto, veremos que o deslocamento do povo
Guarani Mbya do Rio Grande do Sul ao Esprito Santo, realizado durante quase 30 anos,
teve causas histricas. E eis que a principal questo motivadora desses deslocamentos
a terra e os conflitos fundirios com a sociedade envolvente.
Nas vises da sociedade envolvente e do Estado, a caracterstica de mobilidade
dos Guarani Mbya vista de forma negativa e preconceituosa, por meio de classificaes,
como nmades, errantes, aculturados e oriundos do Paraguai.54 Tais denominaes
representam concepes de mundo, identidade e territrio distintos dos Mbya,
promovendo dificuldades para que esses povos consigam ter o acesso legal sobre as terras
porque se realiza uma manipulao da identidade indgena. Entret