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7/24/2019 Tese - Doutorado - Educao - Habermas e Freire
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
Sandro de Castro Pitano
Jrgen Habermas, Paulo Freire e
a crtica cidadania como horizonte educacional:
uma proposta de revivificao da Educao Popularancorada no conceito de sujeito social
Porto Alegre
2008
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Sandro de Castro Pitano
Jrgen Habermas, Paulo Freire e
a crtica cidadania como horizonte educacional:
uma proposta de revivificao da Educao Popular
ancorada no conceito de sujeito social
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Faculdade deEducao da Universidade Federal do RioGrande do Sul, como requisito parcial para aobteno do ttulo de Doutor em Educao.
Orientadora:Profa. Dra. Rosa Maria Martini
Porto Alegre
2008
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP)____________________________________________________________________________
P871j Pitano, Sandro de CastroJrgen Habermas, Paulo Freire e a crtica cidadania como horizonte
educacional: uma proposta de revivificao da educao popular ancorada noconceito de sujeito social [manuscrito] / Sandro de Castro Pitano; orientadora:Rosa Maria Filipozzi Martini. Porto Alegre, 2008.
191 f. + Apndices.
Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade deEducao. Programa de Ps-Graduao em Educao, 2008, Porto Alegre, BR-RS.
1. Educao popular Cidadania. 2. Sujeito social. 3. Freire, Paulo. 4. Habermas,
Jrgen. I. Martini, Rosa Maria Filipozzi. II. Ttulo.
CDU 37.018.8
____________________________________________________________________________Bibliotecria Neliana Schirmer Antunes Menezes CRB 10/939
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Sandro de Castro Pitano
Jrgen Habermas, Paulo Freire ea crtica cidadania como horizonte educacional:
uma proposta de revivificao da Educao Popular
ancorada no conceito de sujeito social
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Faculdade de
Educao da Universidade Federal do RioGrande do Sul, como requisito parcial para aobteno do ttulo de Doutor em Educao.
Aprovada em 22 set. 2008.
______________________________________________________________________
Profa. Dra. Rosa Maria Filipozzi Martini - Orientadora
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Balduino Antonio Andreola
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Jaime Jos Zitkoski
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Gomercindo Ghiggi
______________________________________________________________________
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Agradecimentos
Agradeo professora Rosa Martini, minha orientadora, pela confiana e o apoio
manifestado ao longo desses quase quatro anos de convivncia afetuosa e dialgica.
Aos professores Joo Wanderley Geraldi, Jaime Zitkoski, Fernando Becker e
Balduino Andreola, agradeo pela disposio e o esforo de acompanhar e contribuir
para a qualificao desta tese.
Ao professor e amigo Gomercindo, pelo apoio incansvel, cuja colaborao foi
decisiva nessa trajetria.
Rosa, minha esposa, pelo amor e a compreenso, sem os quais no teria aqui
chegado.
Ao CNPq, sou grato pelo apoio financeiro, suporte indispensvel para o xito da
pesquisa.
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RESUMO
PITANO, Sandro de Castro. Jrgen Habermas, Paulo Freire e a Crtica Cidadaniacomo Horizonte Educacional: uma proposta de revivificao da educao popularancorada no conceito de sujeito social. Porto Alegre, 2008. 190 f. + Apndices. Tese(Doutorado em Educao) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade deEducao. Programa de Ps-Graduao em Educao, Porto Alegre, 2008.
Esta tese se caracteriza como um trabalho bibliogrfico, que aborda a obra dePaulo Freire e Jrgen Habermas, dimensionando e pondo em evidncia o vigordiferenciado que oferecem para as reflexes em torno da Educao Popular. Trata de
analisar o pensamento de ambos, com nfase em seus ideais de sociedade,ressaltando-os em termos de reforma ou transformao social. Evidenciadas, suasutopias sociais so cotejadas com os pressupostos ontolgicos da libertao, quando,ento, investigando e problematizando o conceito de cidado, busca-se demonstrar asua insuficincia como paradigma da ao educativa libertadora. Pretende-se, ainda,definir e propor o conceito de sujeito social como o horizonte vigoroso de formao daEducao Popular. A tese se configura a partir da crtica ao cidado e sua assunocomo ideal formativo, afirmando que o sujeito social, conceito oriundo do pensamentode Paulo Freire, e no o cidado, propsito da teoria da sociedade de JrgenHabermas, que constitui o horizonte de formao da Educao Popular, por coernciacom seus princpios fundantes. Investigar o horizonte de formao a partir docontraponto terico e prtico das propostas de Freire e Habermas deve-se forteinfluncia exercida por ambos em vrios campos da atividade humana, como aeducao, a poltica e a sociologia. Na educao, a presena de Freire marcadamente reconhecida no apenas no Brasil, onde a Educao Popular se apia,explicitamente, em seus ensinamentos, como no mundo todo. Habermas, por sua vez,tem sido considerado um pensador cuja influncia transcende os meios sociolgico efilosfico, alcanando o pensamento educacional brasileiro com considervel vigor.Uma das premissas que orientaram esta pesquisa consiste na suspeita de que a teoriasocial habermasiana, dadas as suas caractersticas bsicas, conduz reforma(mudana cultural) e no transformao (mudana radical nos mbitos cultural,econmico e poltico) estrutural da sociedade. O que representaria uma diferenafundamental entre Freire e Habermas, a ser considerada por uma educao libertadora.Enquanto Habermas estipula uma comunidade de fala ideal, compartilhada porsujeitos, lingisticamente, competentes, deliberando, livres de coao, sobreconvenes polemizadas no devir histrico, Freire lida com uma realidade muitodistante em termos de justia social daquilo que o alemo idealiza: analfabetos e semi-analfabetos em situao de opresso e miserabilidade social, vitimados pela heranade uma cultura colonialista e predatria, em processo desde o sculo XV. Um fossoenorme separa e distingue o interesse imediato dos indivduos, determinado pelaurgncia e pelo grau das necessidades em cada contexto. Tais urgncias soidentificadas, concretamente, pelas desiguais competncias dos sujeitos e das
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realidades concretas que os condicionam. Embora compartilhem um ideal semelhante,Freire e Habermas esto envolvidos com situaes que, transcendendo a variaesespao-temporais, exigem respostas, pontualmente, diferentes.
Palavras-chave: 1. Educao popular Cidadania. 2. Sujeito social. 3. Paulo Freire.4. Jrgen Habermas
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ABSTRACT
PITANO, Sandro de Castro. Jrgen Habermas, Paulo Freire e a Crtica Cidadaniacomo Horizonte Educacional: uma proposta de revivificao da educao popular
ancorada no conceito de sujeito social. Porto Alegre, 2008. 190 f. + Apndices. Tese(Doutorado em Educao) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade deEducao. Programa de Ps-Graduao em Educao, Porto Alegre, 2008.
This thesis is characterized as a bibliographic work that approaches the work ofPaulo Freire and Jrgen Habermas, where the differentiated force which is offered bythem for discussions around Popular Education is sized and put in evidence. It concernsthe analysis of both authors thoughts, with emphasis on its ideals of society, andshowing them in terms of social reformation or transformation. Evidenced, their socialutopias are compared with liberation ontological presuppositions when, by investigatingand problematizing the concept of citizen, the demonstration its insufficiency as a
paradigm of liberating education action is searched. The aim still is to define andpropose the concept of social subject as the strong horizon of formation of PopularEducation. This thesis is configured from the criticism about the citizen and hisassumption as formative ideal, saying that he is the social subject, a concept from PauloFreires thought, and not the citizen, purpose of Jrgen Habermas theory of society,which composes the horizon of formation of the Popular Education, by coherence withits base principles. The investigation of its horizon of formation from the theoretical andpractical counterpoint of Freire and Habermas proposals is due to the strong influencethat both exert on several fields of human activity, such as education, politics andsociology. In education, the presence of Freire is highly recognized not only in Brazil,where Popular Education is explicitly based on his teaching, but also in all over theworld. Hebermas, in his turn, has been considered a thinker whose influence transcendsthe sociological and philosophical means, reaching the Brazilian educational thoughtwith considerable force. One of the reasons which oriented this research consists in thesuspicion that the Habermasian social theory, given its basic characteristics, leads toreformation (cultural change), and not to structural transformation (radical change in thecultural, economic and political fields) of the society. This one would represent afundamental difference between Freire and Habermas, to be considered for a liberatingeducation. As Habermas stipulates a "community of ideal speech", shared bylinguistically competent people, and deliberates, free of coactions on polemizedconventions in the historical transformations, Freire deals with a very distant reality interms of social justice from what the German thinker idealizes: illiterates and semi-illiterates in oppression and social miserability situations, victimed by a legacy of acolonial and predatory culture, in process since the fifteenth century. A huge gapseparates and distinguishes individuals immediate interest, determined by the urgencyand the degree of needs in each context. Such urgencies are well identified by theindividuals unequal competences and concrete realities which condition them. Althoughthey share a similar ideal, Freire and Habermas are involved with situations that,transcending to space-time variations, require punctually different responses.
Key words: 1. Popular Education Citizen. 2. Social subject. 3. Paulo Freire. 4.Jrgen Habermas.
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LISTA DE ABREVIATURAS
EB Educao Bsica
EC Escola Cidad
EF Ensino Fundamental
EM Ensino Mdio
EP Educao Popular
EPB Educao Problematizadora
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IDH ndice de Desenvolvimento HumanoIPF Instituto Paulo Freire
LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional
MEC Ministrio da Educao e Cultura
ONG Organizao No Governamental
PG Ps-Graduao
PNAD Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar
TAC Teoria da Ao Comunicativa
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SUMRIO
1. INTRODUO ........................................................................................................ 111.1 AS ORIGENS: vivncias e conflitos ...................................................................... 11
1.2 A MESMA INDIGNAO, OS NOVOS DESAFIOS.............................................. 23
1.2.1 FREIRE E HABERMAS NO CONTEXTO DA PESQUISA ................................. 28
1.3 TESE, ESTRUTURA E PROCEDIMENTOS METODOLGICOS ........................ 36
2. A RACIONALIDADE EM CRISE: entre modernidade e ps-modernidade ........ 42
2.1 FREIRE, HABERMAS E A CRISE PARADIGMTICA: como fica o sujeito? ........ 51
3. CIDADO E SUJEITO SOCIAL NA PRXIS DA EDUCAO POPULAR........... 55
3.1 O CIDADO E A EDUCAO POPULAR ............................................................ 70
3.1.1 Uma Genealogia Do Cidado .......................................................................... 75
3.1.2 A Cidadania E Seus Agregados: emancipao e reforma............................... 87
3.2 DO SUJEITO AO SUJEITO SOCIAL .................................................................... 97
3.2.1 Uma Genealogia do Sujeito ............................................................................. 97
3.2.2 Transformao e Libertao, a Prxis do Sujeito Social .............................. 109
4. JRGEN HABERMAS E A TEORIA CRTICA DA SOCIEDADE:
problematizando o cidado da esfera pblica ........................................................ 1154.1 A AO COMUNICATIVA: caminhos para uma nova racionalidade.................... 117
4.2 O CIDADO, HORIZONTE DA TEORIA DA AO COMUNICATIVA.................. 128
5. PAULO FREIRE E A UTOPIA DA LIBERTAO, UMA PEDAGOGIA DO
SUJEITO SOCIAL? .................................................................................................... 141
5.1 DILOGO E CONSCIENTIZAO, OS ALICERCES DO SUJEITO SOCIAL ..... 150
5.2 O CONCEITO DE SUJEITO SOCIAL EM PAULO FREIRE.................................. 160
6. CONSIDERAES FINAIS .................................................................................... 177
REFERNCIAS........................................................................................................... 182
APNDICES ............................................................................................................... 192
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1. INTRODUO
1.1 AS ORIGENS: vivncias e conflitos
No quero a negra desnuda.No quero o ba do morto.Eu quero o mapa das nuvens.E um barco bem vagaroso.
Que eu vou passando e passando,Como em busca de outros ares...Sempre de barco passando,Cantando os meus quintanares...
Cano de barco e de olvidoMario Quintana
do contraditrio que parto. Percebo neste termo, que expressa,
consideravelmente, o significado relacional da prxis educativa, a motivao e o estmulo
que me fizeram percorrer os caminhos pelos quais aqui cheguei. Caminhos de concretude
histrica e de finitudes, continuamente, renovadas, em que, a cada chegar, marca-se
somente momentos pelos quais vai-se passando. E o contraditrio, propulsor dos primeiros
passos, vai ressurgindo nos ancoradouros passageiros desses caminhos-rios navegados.
Em tais portos metafricos, as pausas duram apenas o tempo necessrio s reflexes
responsveis pela mudana ou manuteno do rumo. Ento o contraditrio, tal como o
vento fugidio e incerto das brisas noturnas, reaparecendo do balano do mar-conscincia,
torna a empurrar o barco em busca de novos portos temporrios.
Estando, por ora, em um desses portos, ao olhar para trs, assim que
vislumbro minha trajetria junto aos diferentes espaos educativos por onde tenho
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passado: escolas pblicas nos bairros perifricos e centrais, mantidas pelos poderes
municipal e estadual e tambm escolas privadas; cursos preparatrios para concursos e
vestibulares, sempre como educando e educador. Em todos, o contraditrio esteve
presente.Recordo, ento, os primeiros e inseguros bordejos, empreendidos no ano de
1977 na cidade de So Loureno do Sul - RS. Situada s margens da Laguna dos
Patos, bem prxima ao Oceano Atlntico, a pequena cidade entrecortada por arroios e
banhada por tranqilas praias de gua doce, oferecia, por natureza, timas condies
de navegao. quando lembro do choro no Jardim, espao-tempo de tantas rupturas1.
Ser contraditrio algum chorar por freqentar um Jardim? Talvez, no fosse este o
Jardim de Infncia, para mim to triste que deveria, ao menos, mudar de nome. Oconforto vem nas palavras de Quintana (2007, p.132), para quem o que mata um
jardim no mesmo alguma ausncia nem o abandono... o que mata um jardim esse
olhar vazio de quem por eles passa indiferente. certo que a indiferena no se fez
presente nesta primeira viagem, empreendida ainda em barco de papel, cuja aliana
entre o choro e a gua dissolveu, abreviando o bordejo involuntrio.
Um pouco mais resistente, o pequeno barco, refeito, viu-se relanado ao mar por
ventos fortes que romperam as amarras do cais da primeira infncia. Entendi que no
havia retorno e passei a enfrentar, contrariado, a viagem pela escola, que, diferena
do barco bem vagaroso de Quintana, esperava ser breve.
Cursei as sries iniciais do Ensino Fundamental ( poca, 1o grau) em uma
pequena escola pblica estadual do bairro, prxima de casa. A afinidade com os
colegas de rua, solidrios viajantes, atenuava o dissabor cotidiano e tornava mais
rpido o navegar. No raro, alguns capotavam o barco, interrompendo a viagem,
enquanto outros, naufragando, abandonavam de vez o rumo que parecia comum. Ainda
hoje, pergunto: o que acontecia, o que provocava tantas capotagens e naufrgios?Talvez o vento, o mar agitado, os barcos humildes e frgeis... Na poca, eu s
compreendia que isto deveria ser evitado: no era bom capotar, pior ainda naufragar! E
1Refiro-me, principalmente, aos efeitos provocados pela sada forosa do acolhedor ambiente familiarpara um espao estranho e to dspar, representado pela escola naquele momento.
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o barco-menino, de olhar atento ao leme e ao vento que o empurravam, foi adiante,
aportando em outra escola ao passar ileso da 4apara a 5asrie.
Com a animao da novidade, em um espao diverso e provocador de
expectativas, um novo esprito restaurava flego expedio. Parecia que os ventosajudavam ao soprar mais intensamente, fazendo com que o barco ganhasse velocidade
medida que percorresse as guas desconhecidas. Afinal, as mudanas eram
significativas: conviver com sete, oito professores e professoras formados em
universidade, ao invs de uma apenas com o magistrio (acho que aprenderemos bem
mais!); educao fsica em turno inverso, com participao possvel nas equipes de
vlei e futebol de salo da escola, disputa em campeonatos (, parece que estamos
crescendo mesmo!); interao com colegas de outros bairros (sabendo que amultiplicidade inclua meninas bonitas!). Enfim, o novo contexto exercia um certo
fascnio, a tal ponto de o barco quase dispensar o vento antes elementar. A
semelhana entre as escolas restringia-se ao fato de serem ambas pblicas e
estaduais, pois diferiam at quanto localizao: antes bairro perifrico, agora centro.
Entretanto, o passar dos dias revelou a fugacidade do encantamento. Os vrios
professores de ento pareciam consistir na mera (e fria) multiplicao dos poucos de
antes. E enquanto aprendia a diferena entre qualificao e quantificao, estranhava o
fato de a maioria deles exercer atividades paralelas ao ofcio de mestre. Tempos
depois entendi que faziam o popular bico. Ao recordar, sinto que, junto a vrias
geraes, fui terrivelmente bicado! Atitude estranha esta, agora penso, de
autodesvalorizao profissional, que se perpetua h dcadas, ganhando novas feies
ao longo dos anos. Hoje, ao menos, o bico se restringe, predominantemente, s
instncias escolares, resultando nas famosas 60 horas de trabalho semanais. No
seria mais digno lutar (de frente) pela valorizao da docncia, corporificando o
discurso banalizado de que temos de formar cidados conscientes? Sendo a condutaprofissional fortemente educativa, tanto as aes de luta por dignidade salarial e
melhores condies de trabalho, como a aceitao passiva da penria histrica vivida
pela categoria, influenciaro os educandos em formao. Os mesmos que devem ser
conscientizados para atuarem criticamente na sociedade (muitos dos quais os
educadores de amanh), o que revela mais uma grave contradio.
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No processo de ensino-aprendizagem, Paulo Freire referncia para reflexes
acerca do exemplo oferecido pelo educador aos educandos. A figura exemplar compe
um conjunto de elementos ticos constituidores e saberes desenvolvidos da educao
em sua plenitude. De acordo com Freire (1996, p.106), impossvel separar o ensinodos contedos da formao tica dos educandos quando exercemos nossa ao
docente com a coerncia e o respeito devido aos seres humanos em formao. Valores
sem os quais a figura do educador se torna desacreditada diante dos educandos,
esvaziando qualquer discurso voltado, por exemplo, para a construo da autonomia e
da participao responsvel na sociedade. No se trata, apenas, de garantir, em sala
de aula, o direito liberdade de expresso, de estimulo ao engajamento na construo
coletiva do espao. Cabe ao educador testemunhar aquilo que afirma. Discurso eprtica coerentes impedem a contradio que instiga o receio de assumir aquela
liberdade de expresso, tornando nula toda a ao conjunta. Nas palavras de Freire
(1996, p. 107):
Como professor, no me possvel ajudar o educando a superar suaignorncia se no supero permanentemente a minha. No posso ensinar o queno sei. Mas, este, repito, no saber de que devo apenas falar e falar compalavras que o vento leva. saber, pelo contrrio, que devo viverconcretamente com os educandos. O melhor discurso sobre ele o exerccio
de sua prtica. concretamente respeitando o direito do aluno indagar, deduvidar, de criticar, que falo desses direitos. A minha pura fala sobre essesdireitos a que no corresponda a sua concretizao no tem sentido.
Enquanto isso, na escola, os professores e professoras bicudos, alguns
duplamente bicudos,2 por pouco no levam o barco a afundar. Suas aulas,
anunciadoras de antevspera de que seramos protagonistas de um filme de terror,
sempre sero lembradas. O medo do erro e a rotineira ridicularizao das vtimas
perante os demais colegas constituam os elementos de uma trama rotineira, porm de
sucesso, garantido pela audincia obrigatria. Estas so as marcas negativas que,remanescentes desse perodo escolar, jamais foram esquecidas.
2Refiro-me queles e quelas que, alm de exercerem outras atividades paralelas ao ensino (bancrios,advogados, contadores, entre outras), mostravam-se, extremamente, desgostosos com a sua tarefa emsala de aula. A frieza, o mau humor e a ausncia de qualquer manifestao de afeto, corroborada pelaarrogncia, no permitem outro diagnstico possvel atravs das reflexes que hoje fao. Tem razoArroyo (2001, p.23) ao lembrar que a profisso docente tem se constitudo, no pouco, em mero biscatee um complemento salarial.
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No entanto, outros professores e professoras, assim como suas prticas,
continuaro sendo lembrados, s que de maneira oposta: pelo comprometimento,
manifestado na cumplicidade responsvel com que interagiam com os alunos; pela
afetividade, percebida na aproximao respeitosa e amiga a cada encontro; pelaalegria, enfim, sentida em sua presena. Por tudo isso e muito mais, mantm-se vivos
em meu imaginrio profissional. Provavelmente, foram eles e elas responsveis, em
parte, pela resistncia do barco em meio aos dissabores pelos quais passou passei -
no sem seqelas, bem verdade. Superei as tormentas ameaadoras, que
anunciavam a inevitabilidade da capotagem ou do naufrgio. Entretanto, muitos colegas
por ali ficaram, atingidos pelas mltiplas tempestades.
No tenho como precisar o que representou mais contentamento, se asuperao da 8a srie ou as novas expectativas provocadas pela chegada ao Ensino
Mdio (na poca, Segundo Grau). Afinal, era possvel escolher uma profisso. Dentre
trs alternativas: Curso de Formao Bsica (CFB), Magistrio e Tcnico em
Contabilidade, optei pela ltima, mesmo sem grandes convices acerca dos motivos,
exceto quanto ao turno de estudos.
Naquele mesmo ano comecei a trabalhar como garom, turno integral. Restava
apenas o horrio da noite para estudar. Nessa escola, igualmente pblica e estadual,
havia muitos professores e professoras bicudos, inclusive uns duplamente bicudos.
E enquanto eu cambiava de garom a jornaleiro e, em seguida, a servios gerais de
uma farmcia, um professor bicudo convidou-me para trabalhar como auxiliar de
escritrio na indstria de um contador, colega seu. Portanto, reconheo que no posso
reclamar de todos os bicudos3.
3Sem querer justificar a contradio, saliento que, at onde a memria alcana, no lembro, sequer, deum curto perodo em que a fartura material fizesse parte de meu cotidiano familiar. Se, por um lado, afome da barriga vaziano foi sentida, por outro, as demais necessidades bsicas foram companheiras detoda uma infncia e adolescncia humildes, vividas em meio ao afeto dos avs maternos e dos meuspais. A unio do pequeno oramento familiar no permitia nada alm da subsistncia (meu pai e meu avsustentavam a famlia, composta por seis pessoas, com o salrio mnimo que cada um recebia). Cresciconstruindo os prprios brinquedos, aprendendo com meu av, Z Luis, a manusear as rotas ferramentasde sua caixa de surpresas, que, tantas vezes, permitiu o meu contato com os brinquedos tpicos dascrianas de minha gerao. O carro de mola, feito a partir de chapas de lata de leo vegetal e madeira, aperna de pau e o taco, adaptado do tronco do bambu, so exemplos ilustrativos (e saudosos) de minhainfncia-adolescncia. Estudando noite, trabalhando desde os catorze anos sem carteira assinada,certamente, a indicao do professor representou muito naquele momento, marcando um perodo designificativa melhora nas condies de vida em famlia.
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Assim passaram-se os trs anos do EM, sem capotagens ou naufrgios de
minha parte, repletos de matemtica financeira, educao moral e cvica, mecanografia
e OSPB (para quem no vivenciou: Organizao Social e Poltica do Brasil). Conheci
novos companheiros de viagem, dos quais poucos ancoraram, ao mesmo tempo, noprazeroso porto da formatura. Neste, vrios sequer lograram ancorar um dia. Desse
perodo, saliento o prazer de ganhar a vida trabalhando, ouvindo meus pais dizerem
que era preciso estudar, pois o estudo a nica maneira de pobre ser algum. At
hoje no estou convicto se estavam certos ou errados!
Com a formao tcnica concluda e tentando pensar certo acerca do rumo a
ser tomado, decidi, por mais sensato, continuar na contabilidade, buscando o
bacharelado. Obstculos no faltavam. O principal era de ordem financeira, pois sabiado no oferecimento do referido curso por parte da faculdade pblica. Comparando o
meu rendimento de auxiliar de escritrio com os gastos necessrios para freqentar a
universidade privada, em outra cidade, percebi haver, na teoria, um empate tcnico,
mesmo dobrando o tempo para a concluso do curso. Convicto, optei por encarar o
desafio, esperanoso de ser contemplado em um tal crdito educativo que, tambm na
teoria, destinava-se a alunos economicamente carentes como eu. Mais tarde, constatei
no existir, na prtica, empate tcnico e, por conta da margem de erro desfavorvel,
dois anos depois meu barco capotou. Ancorado em um porto qualquer, apurei o saldo
contbil daquela aventura: negativo, obviamente, agravado pelas vrias prestaes a
pagar. Indignado, lembrei da fala de um professor sobre Marx, um economista que
acreditava na luta de classes como motor da sociedade. Mas, e a minha classe, com
que arma deveria lutar? Conclu ser a derrota o mais provvel em uma luta to injusta e
desigual. Seria possvel derrotar blindados aos gritos, jogando sobre eles paus e
pedras?
Resignado, abortei a viagem. Como a tempestade no dava trgua e asprevises, pessimistas, confirmavam sua longevidade, aferrei o barco no cais incerto,
lanando terra as amarras da desesperana.
Passavam-se cerca de trs anos da fracassada experincia universitria,
quando, semi-recuperado, decidi retomar viagem. Porm, j no arriscaria o barco em
guas, perigosamente, encantadoras. Aprendendo que nem sempre possvel navegar
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por onde e quando se quer, tracei o novo rumo em coordenadas mais serenas. Dos
poucos cursos noturnos oferecidos na universidade pblica, optei, indeciso, pela
Licenciatura em Geografia. Embora o magistrio no me atrasse, principalmente, pela
parca remunerao, esperava, ao menos, alm de obter um diploma, satisfazercuriosidades bsicas, provocadas e no saciadas na escola. Entre elas: mas afinal, por
que a Terra no cai?; e o serto nordestino, por que to seco e pobre, e, ainda,
como se formam as massas de ar vindas da Argentina?.... De maneira contraditria,
minhas dvidas nunca foram dirimidas com segurana, ao longo dos quatro anos do
curso. Muitas se mantiveram, outras nasceram e se somaram s antigas, provocando
novas e cada vez mais complexas buscas. Alguns objetos de dvida, somente hoje,
comeam a ser compreendidos. Reconheo, porm, a importncia das lacunas oraapontadas para os esforos investigativos, empreendidos aps o trmino da graduao.
Avancemos!
Passada a formatura, prestei, simultaneamente, dois concursos pblicos, um
municipal e outro estadual. Aprovado em ambos, fui designado para escolas de
contextos semelhantes, assumindo a disciplina de Geografia nas sries finais do EF. O
educador de agora repisava os caminhos trilhados como educando, inserido em um
meio bastante anlogo, embora, historicamente, distinto, percebendo que, de forma
geral, o panorama escolar pouco havia mudado desde ento. Um detalhe importante
que os estudantes, salvo excees, pertenciam s camadas mais pobres da populao.
Enquanto isso, eu ingressava, tambm, em uma escola particular. Como h
sempre uma necessidade na vida das gentes, empurrando-as, levando-as a fazer
coisas (FREIRE, 1991, p.101), para no fugir regra, vivenciei as minhas sessenta
horas de trabalho. E foram as marcantes caractersticas dessa escola, contraponto
radical em relao ao contexto pblico, que constituram o contraditrio maior das
minhas primeiras vivncias de educador. Algumas diferenas como a estrutura fsica daescola o acervo bibliogrfico e tcnico e o salrio eram esperadas. Entretanto, a que
mais me comoveu e instigou a buscar respostas no residia na escola em si, como
instituio. Os objetivos, as metodologias, os calendrios e, tambm, os prprios
colegas de profisso eram os mesmos. Para mim, a principal diferena estava nos
educandos, mas no em relao s possveis dificuldades de aprendizagem ou s
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corriqueiras reclamaes de indisciplina, temas comuns no dia-a-dia de qualquer
escola. Minha inquietao e indignao foi com a brutal distncia das condies de vida
entre os educandos da escola pblica e os da escola particular, acompanhadas
diariamente, em intervalos de apenas poucas horas.Participando, simultaneamente, de realidades to discrepantes, passei a analisar
a situao na qual me encontrava. Ao relacionar a situao de ambos os contextos com
o xito/fracasso escolar, algumas concluses provocaram inquietaes, acrescidas de
uma profunda indignao diante da injusta desigualdade, representada pela
comparao entre os extremos. Se na escola particular bastava, a princpio, apenas
vontade, na pblica, salvo excees, era preciso muito mais. Mais vontade, mais
determinao perante a falta das mnimas condies de sobrevivncia, as quais,existindo, certamente, proporcionariam uma melhora no aspecto psicolgico daquelas
pessoas, alterando sua trajetria educacional e, possivelmente, seu futuro como sujeito
social. Percebi que as dificuldades da maioria dos educandos da escola pblica exigiam
um engajamento ainda maior por parte do educador, pois, creio, em consonncia com
Freire (1991, p.48), que o trabalho pedaggico pode ajudar ou inibir a interpenetrao
entre os padres culturais da criana e os contedos da disciplina. Acredito que,
atravs da ao dos educadores (ideologicamente posicionada), mesmo no sendo o
fator determinante em realidades economicamente carentes, seja possvel contribuir
para o xito da aprendizagem na escola, sob uma perspectiva libertadora.
Foi dessa forma que o contraditrio, fruto da comparao entre a realidade
abundante de excessos dos alunos do meio privado e a realidade abundante, mas, de
carncias, dos alunos da escola pblica, constituiu o elemento decisrio dos rumos
tomados na Ps-Graduao. Senti a necessidade de refletir acerca dessas tenses sob
a luz de argumentos mais profundos, entendendo, conforme Brando (1985, p.15):
se ela (educao)existe dentro dos aparelhos pedaggicosda opresso, podeexistir tambm no trabalho pedaggico de quem imagina a realidade de umoutro mundo social e cr que a educao um instrumento a mais necessriono trabalho poltico de construo desse mundo. (Acrscimo meu).
Eis que, em meio vivncia de relaes to prenhes de paradoxos, como Freire
(1991, p.61), corri riscos, ganhei amizades, amei, fui amado, aprendi, cresci, fui
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acordado pelo caminho da descoberta de que a educao pode ser um instrumento
poltico que se soma a muitos outros para a construo de um mundo libertado e
solidrio (BRANDO, 1985, p.17). Frente a tantas e to graves desigualdades sociais,
a neutralidade no se justifica. Como se manter impassvel diante do brutal contrasteentre a misria imposta, que nega aos nossos semelhantes o direito de virem a ser,
dignamente, humanos, e a opulncia opressora de uma minoria?
Governar o prprio barco assumir, dialeticamente, o curso da vida, intervindo
de maneira ativa no mundo, mesmo sabendo que dificilmente navegar em cu de
brigadeiro. Afinal, como afirma Severino (2001, p.10), o vo do esprito se faz em meio
neblina, nunca escapa s brumas. , ainda, poder romper com o assujeitamento
imposto por um poder onipresente, que tenta, de todas as formas, tornar-nos objetos desua vontade. Percebi, desde ento, a educao como fator possibilista em relao
conscincia crtica das pessoas, viabilizando a sua autonomia poltica4, indispensvel
luta por uma democracia, efetivamente, participativa e respeitosa da condio humana.
E foi com esse esprito esperanoso, porm, muitas vezes, assediado pelo
pessimismo quanto ao vigor do processo educativo ante os problemas da opresso
social, que dediquei-me PG. Oscilando entre os limites e possibilidades da ao
docente e atento autocrtica, reveladora de muitas carncias, principalmente em
Filosofia, cursei a Especializao nessa rea. Agucei a compreenso em torno das
conexes tericas entre os clssicos do pensamento e as correntes filosficas afins,
engendradas historicamente. Tais elos, expoentes de um conhecimento evolutivo que
perpassa o esforo intelectual de grandes autores como Kant, Hegel e Marx, doravante
aproximaram-se mais da minha condio cognoscente, mostrando-se mais
significativos e menos mecnicos. Frutfero, embora breve, o curso preencheu muitas
das lacunas que eu, conscientemente, possua. Considero esse perodo como
fundamentador dos estudos ulteriores, pois, alm de alargar o cenrio epistmico,proporcionou e consolidou a minha aproximao, em especial, com a obra de
Rousseau. Sobre este autor, tornado referncia constante nas investigaes
4A autonomia um processo de construo que deve resultar, segundo Freire, no amadurecimento doser-para-si, o que ocorre pela prtica constante de experincias estimuladoras da deciso e daresponsabilidade,vale dizer, em experincias respeitosas da liberdade (FREIRE, 1996, p.121).
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empreendidas desde ento, escrevi a monografia de concluso de curso intitulada
Rousseau, uma Apologia da Igualdade entre os Homens.
Ao longo da pesquisa, as idias do autor sobre igualdade e liberdade,
idealizadas no horizonte de uma sociedade justa para todos, afloraram e vieram,claramente, de encontro ao meu contexto profissional, antes delineado. Encharcado
de uma realidade injusta e paradoxal, transitando, indignado, entre o sentimento de
impotncia e a esperana de transformao, percebi a necessidade de conhecer
melhor aquele mundo que me envolvia intensamente. O caminho mais coerente era o
Mestrado em Educao e nele me lancei.
A ao indagativa, tpica do ser humano, amplia-se por fora da indignao
perante os circunstanciais e, comumente, injustos paradoxos que se apresentam,sobretudo, no meio mais prximo em que vivemos nesse caso, o educacional.
Inseridos no devir histrico, , a partir dos mltiplos espaos e tempos vividos que,
encharcados de elementos condicionantes e por nossa ao condicionados,
propomos o enfrentamento das questes que nos afetam.
As muitas incertezas, ora provocadoras do otimismo, ora do pessimismo, faziam-
se presentes constantemente. Afinal, os problemas cotidianos, as causas e os efeitos
prticos na vida das pessoas oprimidas, com as quais convivia, eram, por demais,
conhecidos, embora de modo imediatista e superficial. O desemprego, as drogas, o
abandono e a violncia, fatores determinantes da evaso escolar5, so temas
corriqueiros nos dilogos entre professores e funcionrios da escola. Porm, tais
problemas constituem apenas faces mltiplas de uma realidade que, tomada em si, no
possibilita a transcendncia em direo ruptura. Questionar o imediato per siconduz
a explicaes simplistas, caso no sejam buscados os vnculos histricos, polticos e
ideolgicos que o condicionam. Assim como, tambm, condicionado o processo
formativo como um todo, principalmente em seu contexto escolar. Uma outraconcepo de questionamento da realidade, mais abrangente e profunda, que a
5O termo evaso utilizado por fidelidade s narrativas no interior da escola. Concordando com Freire(2002g, p.12), entendo tratar-se de uma expulso, resultante da combinao antittica de tais fatorescom toda uma cultura escolar, que vai de encontro aos mesmos: Na verdade, no h crianas seevadindodas escolas como no h crianas foradas escolas como se no estivessem dentro s porqueno quisessem, mas crianas ora proibidas pelo sistema de entrar nas escolas, ora de nelaspermanecer.
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considere como um estar sendo, permite refutar, em um primeiro momento, o
determinismo dos fatos. E, ao faz-lo, torna lcito acreditar na capacidade de ao
transformadora dos seres humanos. Sua condio de sujeitos. Ao que, vista como
possibilidade e nunca como certeza, sempre entendi conectada instncia educativa,implicando, conseqentemente, em superaes dialticas, mutuamente, imbricadas:
ao e reflexo que se enriquecem ao longo da jornada. Penso que os condicionantes
dificultam, porm,jamais inviabilizam de um todo a capacidade de superar a opresso6.
Portanto, nessa empreitada, optei por investigar alm do imediato contexto das
mltiplas carncias que os educandos, junto aos quais eu atuava, portavam. No era
necessrio perguntar por que, em noites muito frias, o Marcelo no estava presente.
Sabamos, todos, que ele faltaria, levando em conta que lhe faltava o casaco, a luzeltrica, os calados e, no raro, a comida. E que todas essas faltas o impediam de
ser. Infelizmente, muitos foram, e so, os Marcelos na escola, com suas carncias.
Mas, apenas descrever o problema no mbito material evidenci-lo acriticamente,
como quem tenta interpretar um texto destitudo de sentido imediato. Os meus
questionamentos logravam compreender, entre outras questes, de que forma a ao
educativa pode (se que pode) contribuir para romper e superar tanta injustia.
Libertos do estranhamento, continuaremos a explic-la, resignados, pelas velhas e
incuas categorias conjunturais do imediato? E nessa atmosfera segui viagem, embora
ciente dos limites de uma educao muito mais condicionada que condicionante,
obedecendo s regras do jogo antes que as estabelecendo (ROSSI, 1980, p.77).
A dissertao de mestrado, intitulada Desigualdade Social e Educao: uma
abordagem em Jean-Jacques Rousseau e Paulo Freire, foi concebida sob o impulso
da indignao com toda uma realidade injusta, que, historicamente vivida, continuava
sendo presenciada. Indignao e esperana foram companheiras da investigao,
problematizadora das relaes entre educao e desigualdade social sob a tica deRousseau e Freire. Autores que, talvez, por terem experenciado de perto a misria e a
6Exerci a docncia junto a turmas da EJA (Educao de Jovens e Adultos), EF sries finais, noturno, emuma escola pblica estadual. Foi naquele perodo que convivi de perto com tais problemas, sem que
jamais pudesse evitar ser afetado por eles. Afinal, fora o carinho e a afetividade que nunca me faltaram, apobreza, com as graves dificuldades que impe s pessoas, sempre me foi familiar. Hoje, considero tersido essa relao entre as abundncias (aspecto afetivo) e as carncias (aspecto material) quepossibilitou a minha navegao sem contratempos pelos mares da escola. Faltasse afetividade ematerialidade, essa histria, possivelmente, seria marcada por uma outra narrativa.
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desigualdade, dedicaram esforos causa dos oprimidos na sociedade. Entretanto,
aparentemente afins em que pese o abismo temporal que os separa, teriam
concepes idnticas quanto ao papel da educao na sociedade desigual? Este
questionamento conduziu ao problema de pesquisa, que, elaborado em meio scontradies antes referidas, buscava atender aos anseios do educador, diante dos
problemas resultantes da opresso no interior das salas de aula: compreender, a partir
do pensamento desses autores, se a educao pode contribuir com a superao da
desigualdade social, bem como revelar as caractersticas de uma ao educativa, que
aspire tal objetivo.
Como mtodo de pesquisa, adotei, majoritariamente, a investigao bibliogrfica,
estudando quase toda a obra de Rousseau e Freire, acompanhada pela anlise dealguns comentadores, como Balduino Andreola, Carlos A. Torres, Gomercindo Ghiggi,
Moacir Gadotti, Norberto Bobbio, Ernst Cassirer e Robert Derath, entre outros.
Qualificando tal processo, visitei o Instituto Paulo Freire em So Paulo-SP (IPF), ainda
na fase inicial dos estudos. Durante o tempo em que l estive, pude manusear os livros
da biblioteca particular de Freire, na expectativa de iluminar as provveis vinculaes
tericas entre o pensador brasileiro e Rousseau, alm de perceber como o primeiro leu
certas obras de autores afins questo de pesquisa.
Os achados do mestrado consistem, primeiro, na constatao de que, para
Rousseau e Freire, o processo educativo pode oferecer resistncia opresso social,
mesmo condicionada por obstculos de toda ordem. As propostas poltico-pedaggicas
dos autores analisados esto identificadas nessa linha de ao: Educao Negativa e
Educao Problematizadora advogam pela libertao dos oprimidos, apontando
caminhos diferentes, mas que no se opem. Ao contrrio, a aproximao para efeitos
de estudo e reflexo sobre a desigualdade social, na escola, permitiu visualizar que
elas oferecem contribuies recprocas. Representam para todos os educadores eeducadoras comprometidos com a justia social uma base referencial que se torna, a
cada dia, mais relevante, face ao crescimento brbaro da desigualdade em nveis
globais. Tal convico, motivadora de novas e mais longnquas viagens por guas
desafiadoras, resultou nos estudos de doutoramento, descritos a seguir.
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1.2 A mesma indignao, os novos desafios
Como educador, sempre interroguei o sentido da ao docente e da escola
enquanto instituio social. No recordo de ter respondido sem que os sentimentos deindignao e esperana aflorassem: indignao com a violncia do sofrimento humano
em meio tanta injustia e esperana de transformar essa realidade, humanizando, no
sentido amplo, a vida das pessoas, de modo que todas vivessem com dignidade
(material, afetiva e simblica). Nunca separei o fato de ensinar os saberes bsicos de
Geografia ou de Filosofia (bsicos no somente para os alunos, como tambm a mim,
como sujeitos inacabados, em processo de construo) da funo social que atribuo
prxis educativa.
Dessa forma, avanando nos estudos do Mestrado, aspirei ao aprofundamento,
nesta pesquisa, da anlise das relaes entre a prxis pedaggica e o agravamento
dos problemas sociais na atualidade. Continuei empenhado em melhor compreender
limites e possibilidades da ao docente, orientada pelo ideal libertador diante das
contradies sociais. E tudo isso em um momento no qual a opresso se naturaliza em
meio proliferao das contraditrias crticas ps-modernas aos ideais da
modernidade, especialmente ao sujeito.
Defendo que a Educao Popular, de compromisso radicalmente libertador,justifica-se como referncia pedaggica em contextos opressores tal como o brasileiro,
cujas condies sociais dos educandos oprimidos, quase como um suporte de
sobrevivncia, correspondem ao estado de marginalidade material e/ou simblica em
relao totalidade da sociedade.
Contrariando toda e qualquer prtica pedaggica que, conscientemente ou no,
abstm-se do engajamento poltico na sociedade opressora, comprometendo o futuro
atravs de um presente aceito com resignao, a EP investe na possibilidade de
resistncia7diante da crescente desigualdade social. Representa, pois, com relao a
7 A resistncia , aqui, enfatizada com relao desigualdade e opresso social. Porm, numaperspectiva libertadora de filiao freireana, no menos relevante a resistncia aos vrios dogmatismosoriundos da modernidade em torno do conhecimento, da racionalidade, das vises de mundo, dosdualismos, entre outros. Na esteira de Freire, corroborado por Rousseau (1996), Morin (2002) e Santos(2002), libertar compreende, tambm, o reencantamento do mundo, assim como a sua reconstruoesttica e tica, o que passa, necessariamente, pela busca da complexidade, da religao e pelaincerteza, composta por uma dialogicidade polifnica. Sem jamais abrirmos mo da possibilidade de
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outras posturas pedaggicas, uma alternativa de autntico contraponto que, alm de
pensar a opresso, dispe-se a trilhar os caminhos capazes de apontar para a
superao, promovendo a ruptura.
Entendida como movimento poltico-pedaggico, a EP tem, na libertao dosoprimidos, a tarefa propulsora para atingir o seu horizonte: uma nova ordem social,
apoiada a um sistema justo de distribuio das riquezas socialmente produzidas8. A
libertao constitui, portanto, o fundamento ontolgico de sua mobilizao. A EP difere,
efetivamente, das demais prticas educativas formais, porque assume uma prxis
disposta a vincular, sob uma tica critica, as relaes de ensino e produo do
conhecimento s condies de existncia dos seus sujeitos. Entretanto, com a crise
terica dos modelos socialistas/marxistas e desorientada frente ao discurso apologticodos fins (das ideologias, do sujeito, das utopias, das classes sociais e da prpria
histria!), a EP encontra-se fragilizada. Os movimentos sociais como um todo parecem
estar dentro de um quadro de desordem, provocado pela seduo ferrenha exercida
pela globalizao capitalista. A naturalizao do sistema e, com ele, a aceitao
resignada da opresso social, ganharam impulso com a derrocada sovitica, festejada
nos discursos liberais: a livre iniciativa venceu! Cada vez mais intelectuais,
comprometidos com as lutas ideolgicas pr-socialismo, capitulam ante ao poder do
mercado. A magia da liberdade de consumo, robustecida pelos ideais, tipicamente,
capitalistas de viver o momento, concomitante constatao de que os poderes so
micro e o sujeito uma metfora, decide a queda de brao ideolgica: afinal, bem
mais fcil ser um intelectual virtual (protegido pela tecnologia virtual), que pensa
pequeno, do que ser um utpico suicida, como foi Guevara... H, portanto, um certo
pilotar, mesmo condicionadamente, o barco da histria. Como afirma Schnitman (1996, p.16): Nosomos meros reprodutores passivos de uma realidade independente de nossa observao, assim comono temos liberdade absoluta para eleger de forma irrestrita a construo da realidade que levaremos acabo. A operao ativa de construo/desconstruo (no contexto) que os grupos humanos fazem sobreo que ser seu universo objeto de conhecimento coincide com sua emergncia simultnea comosujeitos no mesmo processo de construo.8Salientar o aspecto material no significa consider-lo o fator determinante dos demais elementos quecompem a existncia humana em sociedade. possvel viver na pobreza e ser afetivo, ter acesso ecompreender, medianamente, a estruturao simblica do meio de vida. Entretanto, entendo que asituao de carncia, caracterizada pela dependncia extrema com relao materialidade, condicionaas relaes afetivas, bem como a compreenso crtica de uma simbologia, forosamente, complexa nomundo globalizado.
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desmantelamento poltico e ideolgico, que enseja uma reestruturao terica da EP
diante das dificuldades do momento.
A crise da EP evidenciada sob um conjunto de constataes problemticas
acerca da relao entre essa proposta pedaggica, com suas intencionalidadesespecficas, e a conjuntura social. Os seus sujeitos, nos esforos de pesquisa e
reflexo, precisam manter-se atentos toda gama de mudanas conjunturais que,
rapidamente, operam-se em nossa sociedade, gerando incertezas cada vez maiores.
Ao mesmo tempo, tenses internas, resultantes da percepo (no to clara) de que o
momento de transio, revelam ser urgente o reposicionamento estratgico,
principalmente, no aspecto ideolgico (terico) diante da presso ardilosa do mercado.
Como afirma Calado (1998, p.127):
Premidas, com efeito, pela avassaladora onda neoliberal, no so poucas asabordagens educativas que passam a refletir diferentes aspectos do atualcontexto, inclusive na incorporao de elementos do seu universo vocabular,tais como: Globalizao, Qualidade Total, Administrao Estratgica,Flexibilizao, Crise de Paradigmas, etc. Da toda uma multiplicidade deabordagens temticas no campo educativo, comportando diferentes linhas deinterpretao, numa crescente tendncia a se conformarem s atuais regras do
jogo, sob o argumento ou pretexto da suposta inevitabilidade do imprio dalgica do mercado.
Inserida nesta realidade, dificilmente a EP sairia inclume de tal presso. O
comprometimento da educao com a libertao social se fragiliza e desfigura sob o
peso do poder econmico, que sugere transformar educandos em consumidores,
educadores em produtores e reprodutores de conhecimento. Formar cidados e
construir habilidades e competncias dominam o cotidiano escolar, bastando um olhar
crtico para perceber, por detrs, a formatao induzida pela relao entre escolaridade,
empregabilidade e mercado (produo, circulao e consumo). Campanhas
(aparentemente) benficas (depende para quem!), como as que visam aproximarcomunidades e escolas, so guiadas pelo mercado.
Se, por um lado, os governos estimulam a assuno da ingerncia comunitria
na escola, por outro, isto no implica em sua democratizao e sim em uma espcie de
privatizao disfarada. Pais, mes e amigos da escola so convidados a ajudar,
exonerando o poder pblico do seu comprometimento como instncia mantenedora e
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responsvel pelas instituies. No pouco, os exames avaliativos da qualidade do
ensino direcionam a parcela cidad que possui a prerrogativa da escolha para os
centros de excelncia. grande maioria restam as escolas sucateadas, as quais, para
funcionar minimamente, carecem da participao comunitria. A ingerncia, nestemeio, reduz-se a administrar crises e adotar pacotes assimtricos de medidas
pedaggicas. Ao fim e ao cabo, a educao que tenta resistir ao mercado , no mnimo,
por ele modelada, quando no , tristemente, transformada em mercadoria. O
professor, por sua vez, acompanhando a depreciao generalizada do contexto de
trabalho, no raro se auto-menospreza, condicionando a prpria subjetividade atravs
dos sentimentos de fragilidade, desamparo e desrespeito, provocados pelas relaes
dialticas experienciadas no cotidiano. Nas palavras de Arroyo (2001, p.42):
As condies precrias de trabalho, os pssimos salrios, a falta deestabilidade, a condio de aulistas, o fraco ambiente cultural das escolas, aduplicidade de turnos de docncia e ainda o trabalho domstico... no apenaslimitam a qualidade da docncia, impossibilitam uma autoformao formadora.
Por fim, feito sepultasse todas as possibilidades de luta, o professor subjaz na
absoluta desesperana. Em outras palavras, a dramaticidade do contexto poltico,
ideolgico e econmico vivenciado exige que a EP opere uma adequao terica em si
mesma, ligada prtica, a qual lhe permita continuar batalhando, vigorosamente, pelas
mesmas causas que a fundamentam, como movimento poltico e pedaggico, desde a
sua gnese. At porque, opresso e injustia social continuam a existir no mundo e no
Brasil particularmente, anunciando que a bandeira histrica da EP tem motivos de
sobra para continuar sendo empunhada.
Com a advertncia de Torres (1988, p.12), aproveito para delinear, previamente,
a compreenso de EP (e sua crise), embasadora desta investigao. O mesmo afirma:
Precisamente por ser generalizado, e medida que se estende, o termo EducaoPopular foi levado a converter-se em lugar comum, em um conceito e uma prtica que
pareceriam no merecer maiores reflexes. Generalizada e estendida, a EP pode ser
compreendida a partir de duas abordagens, reveladoras de sentidos antagnicos.
Tratando-se de uma construo gramatical que comporta um substantivo educao, e
um adjetivo popular, o termo, por si s, suscita interrogaes. Afinal, o que significa
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popular? Com freqncia, popular associado a outros termos, como simples, pobre,
carente, barato, humilde, acessvel, proletrio, entre outros. Assim, temos, por exemplo,
o carro popular, o computador popular, as classes populares. comum tais termos
estarem atrelados, em sua significncia, linguagem sistmica de nosso mundomercadolgico. E, aqui, explicita-se uma primeira abordagem possvel na anlise da
EP: o seu carter popularizante, que ser, oportunamente, aprofundado no captulo
trs.
A outra abordagem consiste na existncia de horizontes de uma autntica
pedagogia popular, que aproxima a prtica educativa de uma prtica social,
politicamente, voltada para a problematizao e a transformao da realidade. Tendo
vista um outro mundo possvel, esta concepo de educao entende o adjetivo que lhecomplementa popular como o ncleo de interesses maiores, tal como um projeto
ligado uma sociedade justa e humana e que, a partir desse esse horizonte,
interrogue-se, permanentemente, sobre sua prtica, visando uma ruptura com o
status quo e construo do novo. Trata-se, portanto, de uma EP Libertadora, cuja
feitura depende menos do contexto em que ocorre e mais da intencionalidade dos
sujeitos dela participantes. Nesse sentido, pode se efetivar nas escolas da rede oficial,
tanto pblicas quanto privadas, nas prticas de educao no formal e na educao de
jovens e adultos, desde quepoliticamente comprometida com a libertao.
Baseado em Torres (1988, p.23-24), saliento algumas caractersticas de uma EP
Libertadora: responde aos interesses dos setores oprimidos; participativa; crtica;
democrtica; ligada realidade e prtica, conjugando teoria e prtica; cooperativa;
produtora de conhecimento; no formal e no oficial; questionadora da ordem social
vigente, propondo uma nova. Enfim, trata-se de uma educao que, embora
identificada com interesses dos grupos oprimidos, define-se menos pelo destinatrio da
ao do que pela explcita intencionalidade poltica que a orienta.A adequao da EP, referida anteriormente, no compreende a tomada de
posies modistas ou, o que pior, resignatrias, mas uma auto-reflexo atualizadora,
capaz de apontar fragilidades e alternativas metodolgicas de superao. Repensar os
problemas, as diretrizes terico-metodolgicas e o ideal formativo da EP exigncia da
contemporaneidade. Urge que ela se reconstitua a si mesma, sob pena de
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desaparecer, pois, ao que tudo indica, atualmente transita entre a derrota e a
possibilidade do novo (GONSALVES, 1998, p.228).
nesse sentido que desenvolvi uma reflexo comprometida com propostas
tericas possveis de contraporem-se s mltiplas tendncias que, forosamente,conduzem resignao diante da histrica violncia sofrida pelos grupos oprimidos,
como uma verdadeira semeadura do desalento.
1.2.1 Freire e Habermas no contexto da pesquisa
De acordo com Morrow e Torres (1998, p.123), h, entre Freire e Habermas,
uma enorme convergncia no trabalho, no pensamento, assim como nas suas
agendas pedaggicas e polticas. Habermas e Freire partilham uma agenda
semelhante, modernista e crtica, no sentido de aquisio do poder em educao.
Afirmar tal convergncia terica pode soar um tanto paradoxal, face ao envolvimento
concreto e preocupao de ambos ao longo de suas vidas. Nessa direo, possvel
caracterizar Habermas como um terico da sociedade, o clssico intelectual atuante
nos debates em torno das polmicas do seu tempo. O pensador alemo, herdeiro da
teoria crtica originria da Escola de Frankfurt, manteve, durante todo o perodo
profissional, a atividade de professor universitrio, envolvido nas questes filosficas e
sociolgicas. Por sua vez, Paulo Freire, tambm professor universitrio e intelectual
mundialmente reconhecido, possui uma histria de profundo vnculo com as
contradies sociais. Atuou em campanhas de alfabetizao no apenas no Brasil, mas
em grande parte do mundo, principalmente no perodo em que, forosamente, esteve
no exlio (1964-1979).No entanto, uma diferena fundamental entre Freire e Habermas, a qual, em
virtude da relevncia para o curso desta investigao, urge salientar desde j: o
contexto de ao/reflexo sobre o qual se debruam efetivamente. Enquanto Habermas
problematiza as crises do capitalismo, preocupado com a deteriorao das relaes
sociais no espao europeu desenvolvido (o estado de bem-estar social), Freire dedica
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seus esforos causa da libertao dos povos explorados da Amrica Latina, frica e
sia, marcados pela fome, expresso extrema da opresso e da indignidade humana,
produzidas pelo colonialismo9. Todavia, essa diferena de ordem contextual entre os
autores no conduz a um reducionismo de princpios ou a um certo relativismo desuas idias. Afinal, ambos convergem quanto ao ideal maior, que uma sociedade
democrtica em que todos possam conviver com dignidade. Em uma perspectiva
ampla, a democracia radical os identifica politicamente. Dito de outro modo, o espao
desigual que Freire e Habermas elegem, coerentes com suas histrias de vida, sendo
objeto de reflexo (e de ao), no impede que sejam adotados como referncia em
abordagens de alguns temas, a saber: educao, democracia, liberdade e justia social.
Apenas devem ser tomadas certas precaues (para as quais se volta, de certo modo,o presente estudo), como: a) evitar desvincul-los por completo dos contextos de que,
majoritariamente, um e outro se ocupou e b) em decorrncia, considerar a concretude
da realidade social enfocada, tendo em vista as contradies imediatas. Do contrrio, o
vigor das idias corre o srio risco de esmaecer, resultando em puro idealismo
acadmico, pois a problematizao iluminada por suas teorias no ter a coerncia e
a radicalidade que uma interveno sria e comprometida exige.
Investigar o horizonte de formao da EP, a partir do contraponto terico e
prtico das propostas de Freire e Habermas, deve-se forte influncia que ambos
exercem em vrios campos da atividade humana, como a educao, a poltica e a
9Por colonialismo considero o processo de desapropriao atravs da conquista e da superexplorao,da opresso e da inanio cultural realizado pelos colonizadores capitalistas e companhias estrangeiras(JAFFE, 2001, p.14), implementado no espao latino-americano desde o final do sculo XV por pasescomo Portugal, Espanha, Inglaterra, Alemanha e Holanda, entre outros. Inicialmente europeu, ocolonialismo se tornou norte-americano e tambm Japons, caracterizado pela globalizao docapitalismo em um sistema mundial, formado, de um lado, por um bloco de naes imperialistas quecompetem entre si por influncia e poder globais, s vezes, de uma maneira violenta, como nas duasguerras mundiais, o qual denominamos comumente de primeiro mundo. Do outro lado, temos umcomplexo de ex-colnias semicoloniais e colnias, conhecido como terceiro mundo, que, por sua vez,est colocado sobre a terra devastada de um quarto mundo pauprrimo (Idem, p.63), cuja situao demisria provocada a ferro e fogoest, diretamente, relacionada ao desenvolvimento europeu. Penso quecompreender esse processo como responsvel por impor um determinado modo de produo, revelandoas origens da opresso, fundamental para situarmos as reflexes em curso no presente trabalho. Asdisparidades entre o lugar de onde Habermas e Freire defendem uma razo comunicativae uma razodialgica, e a historicidade de suas condies atuais, uma vez relacionadas, revelam a maior ou menorconsistncia de seus argumentos. Afinal, a prxis libertadora, da qual a freireana EP faz parte, que lutapelo lugar da razo do outro: do ndio assassinado por genocdio, do escravo africano reduzido a umamercadoria, da mulher vilipendiada como objeto sexual, da criana subjugada pedagogicamente(DUSSEL, 1995, p.47).
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sociologia. Na educao, a presena de Freire marcadamente reconhecida no
apenas no Brasil, mas no mundo todo, dispensando enfatizar, aqui, evidncias alm do
que j sabido historicamente. Limito-me a destacar que, no Brasil, a EP se apia,
explicitamente, em seus ensinamentos. Habermas, por sua vez, tem sido consideradoum pensador cuja influncia transcende os meios sociolgico e filosfico, alcanando o
pensamento educacional brasileiro com considervel vigor. o que revelam trabalhos
como os de Boufleuer (1997), propondo uma pedagogia da ao comunicativa
estribada na teoria habermasiana; Hermann (1999), ao desenvolver uma anlise ampla
acerca da recepo de Habermas na educao, apontando para contribuies e crticas
em torno do autor da Teoria da Ao Comunicativa; Mhl (2003), que enfatiza a ao
pedaggica de maneira geral como sendo uma ao comunicativa por origem; Bannel(2006), estabelecendo relaes entre a teoria habermasiana e os diferentes nveis de
ensino, e Gomes (2007), salientando a importncia do consenso previsto pela
racionalidade comunicativa para a prxis da educao.
Pesquisas que trazem Freire e Habermas em conjunto, para refletir os desafios
educacionais, tambm tm sido constantes, como as teses de doutoramento de Zitkoski
(1999) e Garcia (2005). A primeira, intitulada Horizontes de Refundamentao em
Educao Popular, destaca como a maior afinidade entre eles a preocupao utpica
com uma sociedade emancipada, levando em conta que os meios para alcan-la so
a dialogicidade e o agir comunicativo, assegurando a comunicao livre, como caminho
nova racionalidade. Porm, salienta algumas diferenas importantes, que devem ser
consideradas: a) o ponto de partida: um, da realidade do povo, o outro da teoria
filosfica; b) a concepo tica: um, pela tica da libertao dos oprimidos, o outro, pela
tica do discurso em uma viso macro; c) alternativa ao neoliberalismo: um quer a
superao total, a transformao, o outro quer o controle do mercado, sua
reformulao. A segunda tese, Escola Pblica, Ao Dialgica e Ao Comunicativa: aradicalidade democrtica em Paulo Freire e Jrgen Habermas, trabalha com a
perspectiva de aproveitar as afinidades entre ambos os pensadores, no intuito de
qualificar a instituio escolar em sua relao com a sociedade. Para tanto, destaca a
radicalidade democrtica presente tanto em um como no outro, possibilitando um
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vigoroso aporte ao desenvolvimento de pesquisas em educao, com foco nos
fundamentos polticos e epistemolgicos da escola pblica.
Na esteira desses trabalhos, explicito aproximaes e, tambm, evidencio
afastamentos entre Freire e Habermas, dedicando especial nfase, porm, pujanaque emprestam prxis educativa na concepo popular. Uma das premissas que
orientaram esta pesquisa consiste na suspeita de que a teoria social habermasiana,
dadas as suas caractersticas bsicas, conduz reforma (mudana cultural) e no
transformao (mudana radical nos mbitos cultural, econmico e poltico) estrutural
da sociedade. Esta representaria uma diferena fundamental entre Freire e Habermas,
a ser considerada por uma educao que, problematizadora, no se satisfaz apenas
em reformar a ordem capitalista vigente a fim de fazer com que o sistema organizerelaes mais justas e humanas (BARREIRO, 1980, p.36).
Tendo como ponto de partida a realidade dos sujeitos participantes (educandos),
a EPB almeja, tanto na alfabetizao, como na ps-alfabetizao, possibilitar o
desvelamento coletivo das contradies vivenciadas em comum. Palavras e temas
geradores, encharcados de realidade concreta, por serem oriundos de um espao-
tempo compartilhado, permitem uma identificao coletiva em torno de sua significao.
O dilogo, assim facilitado, problematiza o contexto gerador e permite que se
manifestem as situaes limite, compostas por condicionantes da existncia humana
naquele espao-tempo (o lugar e suas relaes). Uma vez desvelados, tais
condicionantes mostram-se mais tangveis e vulnerveis, diante dos quais as pessoas
podem sentir-se capazes de estabelecer o enfrentamento necessrio libertao. Aqui,
tem destaque um dos grandes objetivos da pedagogia freireana: a superao das
limitaes desumanizantes. Portanto, a aprendizagem formal dos contedos
curriculares, em que pese, contextualizados no espao imediato dos educandos, jamais
desempenhada parte da tomada de conscincia acerca dos problemas locais. Oprocesso concreto de busca pela superao o que Freire chama de conscientizao
ao consciente pela libertao.
assim que, tambm nesse autor, o mundo da vida contexto gerador,
constitui ponto de partida (problematizao) e horizonte de chegada da ao dialgica
meta terico-prtica. Nas situaes de dilogo, caracterstica fundamental e no
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simples instrumento pedaggico da EPB, situam-se outros dois aspectos relevantes
para esta reflexo. De um lado, a concepo epistemolgica que aproxima Freire e
Habermas; de outro, o que talvez represente, como foi dito, uma diferena fundamental
entre eles: reportando-se a sociedades dspares em nvel macro e, sobretudo, acontextos marcados pela desigualdade, as propostas precisam dar conta de urgncias,
completamente, diferentes. Elas so identificadas, de modo concreto, pelas desiguais
competncias dos sujeitos e das realidades concretas que os condicionam. Ou seja,
embora tenham um ideal comum, Freire e Habermas esto envolvidos em situaes
que, transcendendo a variaes espao-temporais, exigem, se cotejadas em suas
carncias, respostas, pontualmente, distintas.
Habermas estipula uma comunidade de fala ideal, compartilhada por sujeitoslingisticamente competentes, deliberando, livres de coao, sobre convenes
polemizadas no devir histrico. J Freire, lida com uma realidade muito distante, em
termos de justia social, daquilo que Habermas idealiza: analfabetos e semi-analfabetos
em situao de opresso e miserabilidade sociais, vitimados pela herana de uma
cultura colonialista e predatria, em processo desde o sculo XV. Concretamente, seres
humanos que, famintos, submetem-se a situaes de dependncia e controle sistmico,
exercido com destreza e eficcia, apartados dos valores culturais e materiais, que
proporcionam uma existncia digna em sociedade. uma comunidade de comunicao
real, como salienta Dussel (1995, p.55), vivendo sob a hegemonia de outra cultura, de
outro sistema de valores, de outra lngua, etc., dentro do que o pobre excludo no
consegue significar o que a sua inteno comunicativa pretende. Diante disso, Freire
sabe que, primeiro, precisa construir uma atmosfera crtico-cultural que os liberte, a
ponto de reconhecerem para si o direito de dizerem a sua prpria palavrae exigir que
sejam ouvidos como sujeitos. Dito de outro modo, urge estabelecer as mnimas
condies objetivas para a ampliao necessria do potencial comunicativo.No que diz respeito questo epistemolgica, que aproxima os dois autores,
possvel perceber que h, neles, um movimento anlogo de superao do paradigma
subjetivista moderno. A razo auto-fundante, centrada no sujeito do conhecimento, que
age sobre o objeto a ser conhecido, igualmente ultrapassada por Freire e Habermas,
por meio do descentramento. O sujeito agente passa a ser considerado interagente,
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fundamentando uma epistemologia no princpio da subjetividade conectiva. A ao
comunicativa, exercida e possibilitada pelos princpios comuns do mundo da vida
contexto gerador, implica em uma ao cognoscente coletiva. Permutando saberes,
argumentando reciprocamente, os participantes complementam e elevam o nvel deseus discursos, convergindo para uma reconstruo do conhecimento, voltada para o
consenso almejado. Existe um entendimento anlogo de que o sujeito, ao agir sobre o
objeto, sofre uma transformao que o eleva reflexivamente.
Porm, uma diferena na concepo epistemolgica, da mesma forma vinculada
aos contextos em que Freire e Habermas operam e que define o seu posicionamento a
respeito do capitalismo, condiciona o vigor de cada um como referncia para a ao
educativa libertadora. Refiro-me conscientizao, princpio fundamental daquele quemanteve presente em seu pensamento o antagonismo de classe (Freire), e que, para
Habermas, no constitui uma categoria fundamental. Talvez pelo fato de a
desigualdade social, caracterstica maior do meio freireano, no se impor, diretamente,
a Habermas. No mundo da vida do autor alemo, coexistem diferenas, enquanto no
de Freire, desigualdades. Neste ponto, um fosso enorme separa e distingue o interesse
imediato dos indivduos, determinado pela urgncia e pelo grau das necessidades
pessoais em cada contexto. No sul de Freire, o capitalismo injusto; no norte de
Habermas, justificado, logo, bem-vindo: o Norte no precisa mudar radicalmente a
sociedade em que se encontra; em compensao, o Sul precisa fazer isso, e com
urgncia! (DUSSEL, 1995, p.59). Enquanto Habermas pensa na totalidade dos
diferentes, Freire pensa na poro oprimida do todo desigual, marcado pela opresso
brbara, na qual a fome presena constante. certo que o dilogo dos famintos,
assim como o dos sem teto, dos sem terra, dos sem emprego, dos sem qualquer
esperana de viver com dignidade, enfim, dos oprimidos, ope-se ao comunicativa
e normativa de sujeitos em um cotidiano bem mais equilibrado socialmente, como ocho de Habermas.
Problematizando o contexto alemo, com suas caractersticas simblicas e
materiais, semelhantes grande parte da Europa economicamente desenvolvida,
Habermas, talvez, julgue ser possvel abrir mo da tese marxiana acerca da evoluo
social (para Marx, o processo evolutivo resultado da contradio dialtica entre foras
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produtivas e relaes de produo). Ele tende a colocar a evoluo em termos de
competncia dos indivduos em uma dada sociedade. A emancipao que, em Marx,
exigia um processo conflituoso e superador da alienao, em Habermas dependeria
apenas dos desdobramentos provocados pelo aumento da capacidade comunicativados cidados, em busca do consenso, na esfera pblica.
Considerando o acrscimo de saber como motor do desenvolvimento social,
Habermas revela, indiretamente, a importncia por ele atribuda ao processo educativo
na sociedade. na obra Para a Reconstruo do Materialismo Histrico que ele
expe, em contraposio a Marx, que via na luta de classes o fator de mudana cultural
e material das formas de vida, a tese do conhecimento evolutivo diante dos problemas
vitais, como responsvel pelas alteraes. Habermas entende que, embora carea dereviso (ao que se prope), a teoria marxiana no est esgotada em seu potencial. A
tese epistmica habermasiana explica que o processo de formao do eu, a
subjetividade, resultado do amadurecimento provocado pela necessidade contnua de
resolver problemas, paralela ao aumento dessa capacidade. Automaticamente, a
tendncia provocar, tambm, uma maior autonomia nos indivduos, que se integram
ao sistema social e se desenvolvem, com relativa independncia, em relao ao
mesmo. Os mecanismos de aprendizagem (de origem piagetiana), em meio ao
movimento de internalizao das estruturas externas, transformam-se paulatinamente
em novos esquemas de compreenso, desenvolvendo, espontaneamente, novas
formaes da sociedade.
Cabe questionar se Habermas, ao compreender a esfera cultural como fator de
emancipao em troca das contradies sociais, no estaria legitimando,
contraditoriamente, a perversa lgica do sistema capitalista, sugerindo a sua
domesticao. Salientando que o trabalho abstrato, inerente ao capitalismo, ao
continuar pautando, materialmente, as relaes de produo, ao mesmo tempo queengendra e consolida uma determinada viso de mundo, mantm intacta a dominao
social, que se constitui em termos de necessidade de subsistncia a qualquer custo.
Diante disso, como se, propondo a livre argumentao, ele ignorasse que, em
sociedades subdesenvolvidas, a coao do sistema praticamente impossvel de ser
neutralizada. Os atores no so independentes diante dos conflitos sociais presentes
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em seu contexto. Cumpre lembrar: o que domesticado mantido, continuando a
existir sob certas condies. Ademais, que possibilidades tm os oprimidos de
interpretar textos que no produziram, considerando as condies objetivas e subjetivas
de existncia que possuem? Alis, aposto que um questionamento como este pode seratribudo a Freire, no a Habermas.
Portanto, evidenciar as diferenas entre os autores inclui considerar a urgncia
(em termos de necessidades humanas) exigida pelo contexto ao qual esto voltados.
Assim, enquanto um trata da tica da libertao dos oprimidos, convivendo com a
expulso de milhares de Marcelos da escola, o outro pode se dedicar a uma tica do
discurso. Para um, o capitalismo neoliberal impossibilita o ideal tico almejado, que
universal, em torno da libertao; para o outro, basta domesticar o sistema, fomentandoa racionalidade comunicativa em um mundo da vida, medianamente, equilibrado.
Freire torna relativa a afirmao althusseriana, salientando que a educao pode
reproduzir, ou no, ideologicamente, a sociedade, dependendo do posicionamento
tomado frente ela. Concebendo o amanh como um futuro fechado, pr-definido,
cabe, apenas, a adaptao das pessoas. Sendo assim, a tarefa formativa consiste em
possibilitar essa preparao humana, de acordo com a reproduo das condies
empricas do presente. Porm, coerente a uma postura utpica, voltada para a
realizao da essncia humana o ser mais , Freire aposta na educao para a
liberdade, postura que define, previamente, apenas o ideal de libertao, caracterstico
de um mundo mais justo. O futuro, ento, aberto como possibilidade, vir-a-ser em
comunho de sujeitos interativos, momento no qual a educao deixa de ser do
oprimido e passa a ser de todos os homens e mulheres, universalizando uma relao
humana de amor, respeito e tolerncia. Se o ideal maior do homem consolidar sua
liberdade, a educao no pode passar ao largo ou, o que pior, ter fins contrrios
ela. Utpico, ao mesmo tempo em que denuncia a barbrie presenciada, Freire anunciaa possibilidade de reverso.
Segundo Zitkoski (2000, p.149), Freire e Habermas lanam duras crticas ao
clima de pessimismo que envolve as teorias ps-modernas, aquelas que, mesmo
indiretamente, beiram o niilismo, em um perigoso ofuscamento da realidade dura,
atravs do sugestivo simulacro. Em ambos est presente a idia de que o fatalismo
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embutido nessas teorias demonstra o vis conservador que busca justificar a realidade
tal e qual existe para nos conformarmos diante das mazelas sociais produzidas por uma
lgica excludente e opressora. Entretanto, se, para o brasileiro, a mudana implica em
transformao radical das bases polticas, sociais e econmicas aliadas a uma prxiseducativa libertadora, para o alemo, parece bastar, apenas, o exerccio do agir
comunicativo livre de coaes na esfera pblica, alterando as relaes entre sistema e
mundo da vida. Esta hiptese ser, oportunamente, melhor analisada ao longo do texto.
1.3 Tese, estrutura e procedimentos metodolgicos
A investigao bibliogrfica caracteriza esta pesquisa, que trata de investigar, em
linhas gerais, a obra de Paulo Freire e Jrgen Habermas, com nfase na concepo de
ambos acerca do ser humano na sociedade, dimensionando e pondo em evidncia o
vigor diferenciado que oferecem para as reflexes em torno da libertao. O desafio
compreender, em que medida, as idias pedaggicas e polticas, contidas na teoria dos
dois autores, contribuem para os projetos como o da EP, que lutam pela efetivao da
justia social. Uma utopia, que compreende o fim da opresso em todas as suas
formas: econmica, poltica, racial, de gnero ou religiosa.
No intuito de contribuir com o revigoramento dos ideais libertadores da EP, os
objetivos desta pesquisa consistem em analisar o pensamento de Freire e Habermas,
com nfase em seus ideais de sociedade, dimensionando-os em termos de reforma ou
transformao social. Evidenciadas, as utopias sociais so cotejadas com os
pressupostos ontolgicos da libertao, motores da EP10, quando, investigando e
problematizando o conceito de cidado, tento demonstrar sua insuficincia comoparadigma da ao educativa libertadora. Por fim, almejo definir e propor o conceito de
sujeito social, resultante da anlise bibliogrfica, como o horizonte vigoroso de
10Refiro-me ontologia como o conjunto dos caracteres fundamentais que, desde a origem, identificam aEP como uma proposta educacional prpria e diferenciada no que concerne aos ideais formativos,mtodos de trabalho e concepo de mundo que movem os seus sujeitos. Ontolgicos so, portanto,aqueles princpios que todo o ser tem e no pode deixar de ter (ABBAGNANO, 2000, p.662).
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formao da EP. A tese se configura a partir da crtica ao cidado e sua assuno
como ideal formativo de concepes pedaggicas, identificadas com os fundamentos
da EP: o sujeito social, conceito oriundo do pensamento de Paulo Freire, e no o
cidado, propsito da teoria da sociedade de Jrgen Habermas, que constitui ohorizonte de formao da EP, por coerncia com seus princpios fundantes.
Assim, o conceito de sujeito social, oriundo da investigao do pensamento de
Freire (e tambm de Habermas), proposto como capaz de restituir vigor ao
educativa em uma perspectiva popular. Uma vez definido e situado como meta poltico-
pedaggica desta concepo educativa, o sujeito social, assinalando horizontes
radicalmente opostos queles do sistema cidado, que nos condiciona em torno da
cultura seletiva, competitiva e predatria do mundo capitalista, agregaria capacidade deresistncia s tendncias de desmobilizao que a vitimam. A preocupao, portanto,
consiste em definir o sujeito pedaggico que, coerente ontologia da EP, consiga
orientar o seu horizonte formativo, construdo a partir de perspectivas definidas em
relao ao contrato social existente.
Dimensionar o educando almejado pela pedagogia libertadora fundamental
para que se tenha convico quanto ao nexo necessrio entre a formao poltica,
desenvolvida na prxis pedaggica e a meta, traada junto aos grupos oprimidos.
Configura-se, em suma, o dilema que envolve a EP: definir o perfil do sujeito
pedaggico que, numa sociedade desigual e, historicamente, opressora, deve pautar
sua estratgia de luta pela libertao, que no implique em renunciar a um projeto
amplo, cuja gnese remonta aos anos de 1950/60. Sem esquecer, acrescento, que o
sistema econmico/poltico capitalista neoliberal, travestido de democracia, no
comporta a universalizao da justia social e, o que mais grave, provavelmente,
precise do seu oposto (a opresso) para se manter. Problematizar a democracia que
est sendo vivenciadae o indivduo ela submetido, buscando apontar algumas dassuas armadilhas e contradies, revelaram-se fundamentais para o desenvolvimento da
pesquisa.
Como processo orientado para a construo de uma sociedade livre da opresso
(seu ideal), a EP precisa formular um projeto de indivduo. Por isso, enfoco o conceito
de cidado, colocando-o sob suspeita. sabido que tanto Freire, como Habermas, so
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importantes referncias subsidiadoras da prxis pedaggica (ensino e pesquisa), com
nfase em questes sociopolticas. Parto da premissa de que ambos podem, de modo
diverso, possibilitar o vnculo entre a teoria crtica da sociedade (de inspirao marxista)
com a prxis educativa, considerando-a envolvida com as histricas relaes de poderem torno do contrato social. Contrato que, para efeitos dessa anlise, constitui-se em
objeto de problematizao, oscilando entre ser mantido, com reformas constantes, ou
quebrado, no sentido de uma nova fundao. Transformado, enfim, para que atenda,
efetivamente, aos interesses de todos os pactuantes.
A aposta no sujeito social, como alternativa de reordenamento, visa contribuir
para que a EP, sob uma reorientao terica, viabilize mais concreta e, lucidamente,
suas estratgias de luta contra a opresso. Restaurar o vigor da prxis libertadora,atravs de uma abordagem radical da situao de opresso que caracteriza o contexto
brasileiro, implica, de um lado, na identificao dos horizontes utpicos almejados no
processo educativo. De outro, em adotar princpios prticos de ao que, fiis s
relaes entre o referencial terico e o ideal buscado, no conduzam,
contraditoriamente, ao fortalecimento do sistema, que deveria ser combatido. o caso
de problematizar o ideal libertador da EP em termos de ordem social atual. Ou seja,
possvel alcan-lo, tendo em vista a reforma do capitalismo? Acreditando que no, que
a justia social somente possa ser obtida com a transformao do sistema, urge que
sejam, criticamente, repensados alguns termos, largamente usados pelos educadores,
como por exemplo, o cidado.Formar cidados conscientes transformou-se em slogan,
registrado, inclusive, nos projetos poltico-pedaggicos das escolas11, como veremos.
Todavia, no pode este termo ser uma armadilha ideolgica que, aprisionando os
educadores, faz com que ajam, espontaneamente, pela reproduo da situao
opressora? Afinal, como afirma Mayo (2004, p.10), apropriar-se de um conceito de
oposio e dilu-lo gradualmente de maneira a torn-lo um aspecto integral dadiscusso dominante tem sido sempre uma das foras do capitalismo, um reflexo do
seu dinamismo.
11 Vasconcellos (2003, p.33) lembra que a cidadania parece se restringir ao exerccio do voto e dosdireitos do consumidor; neste sentido, formar para a cidadania pode significar uma fora sutil deadaptao ao esquema dado. Por fim, refora que a lei 5692/71, em pleno governo militar, tambmcolocava como objetivo da escola a formao da cidadania...
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Desde a qualificao do projeto, dei continuidade pesquisa bibliogrfica,
percorrendo os caminhos abertos a partir da fase inicial. Nesse processo, analisei, de
forma geral, todas as obras dos autores em questo, dedicando especial nfase s
seguintes: Pedagogia do Oprimido, Conscientizao, Pedagogia da Esperana ePedagogia da Indignao, de Paulo Freire, por entender que so representativas de
momentos distintos e cruciais para a sistematizao do seu pensamento; Teoria do agir
comunicativo (volumes I e II), A incluso do outro, Conscincia moral e agir
comunicativo e Direito e Democracia: entre facticidade e validade II, de Jrgen
Habermas, considerando que contm as principais teses da TAC, alm de suscitarem,
em relao vasta produo habermasiana, maior afinidade com o problema de
pesquisa. A obra Poltica e Educao tambm foi objeto de anlise, pois, nela, Freireesboa consideraes sobre a cidadania vinculada ao educativa (Alfabetizao
como elemento de formao da cidadania).
Nos estudos bibliogrficos a eles dedicados, tambm busquei apoio em alguns
comentadores, o que possibilitou aprofundar as anlises tericas necessrias. Destaco:
Brbara Freitag, Nadja Hermann, Flvio Beno Siebeneichler e Rosa Maria Martini (com
relao a Habermas) e Balduino Antonio Andreola, Carlos Alberto Torres, Carlos
Rodrigues Brando, Joo Wanderley Geraldi e Gomercindo Ghiggi (acerca de Freire).
Outros autores, tais como Enrique Du