TRABALHADORES PROTAGONISTAS DO DISCURSO NO CONTO
DE MACHADO DE ASSIS “PAI CONTRA MÃE”
Rosa Maria Saraiva Lorenzin 1 – [email protected]
Antônio A. Moreira de Faria 2 – aamf@ufmg.
Rosalvo Gonçalves Pinto 3 – [email protected]
Faculdade de Letras / UFMG
Avenida Antônio Carlos, 6627, Pampulha
Belo Horizonte/MG - CEP: 31270-901
Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar uma pesquisa que propõe realizar,
em uma perspectiva linguística, um estudo da participação do trabalhador como personagem
do discurso literário no conto de Machado de Assis: “Pai contra mãe”, que traz a figura do
trabalhador brasileiro no final do século XIX. Nessa obra, há o embate senhores versus
escravos. O personagem Cândido tinha como profissão a de caçador de escravos fugidos,
inexistente e inimaginável nos dias atuais. Portanto, o discurso de Machado levou em
consideração a presença do trabalhador e do mundo do trabalho no qual ele estava inserido.
Pode-se perceber pelo presente estudo que a identidade da sociedade é recriada na
literatura; e que a partir desta última é possível analisar as relações trabalhistas e suas
transformações sociais e econômicas no decorrer do tempo.
Palavras-chave: Discurso, Trabalhador, Linguagem, Literatura, Machado de Assis
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo apresenta, em uma perspectiva linguística, uma pesquisa que está sendo
realizada por um grupo de alunos de Iniciação Científica da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais, tendo como orientadores os professores Antônio
Augusto Moreira de Faria e Rosalvo Gonçalves Pinto. O objetivo principal é estudar a
participação do trabalhador como personagem no discurso literário brasileiro, particularmente
na transição do século XIX para o século XX. Essa pesquisa faz parte do projeto “Linguagem,
Trabalho e Identidade” que inclui a elaboração de uma antologia com obras de autores
1 Graduanda na UFMG (Faculdade de Letras, licenciatura em Língua Portuguesa). 2 Doutor em Linguística pela USP; professor da UFMG, Faculdade de Letras.
3 Doutor em Linguística pela UFMG; professor da Faculdade de Letras da UFMG.
nacionais, todas em domínio público, e que evidenciam discursos de e sobre trabalhadores.
Dentre esses autores encontra-se Machado de Assis.
Não se trata, contudo, da figura do trabalhador relegado a um segundo plano,
desempenhando um papel de mero coadjuvante nas produções literárias, mas de sua inserção
como protagonista nesse próprio discurso.
A análise da dimensão linguística desse discurso, pouco explorada por outras áreas dos
estudos da linguagem, tem como perspectiva uma visão de mundo que focalize as classes
não dominantes, privilegiando as dimensões linguística, estética e pedagógica da arte
literária. Esta última, no sentido de que a literatura pode reproduzir, por exemplo, parcelas
do discurso técnico-científico (geralmente a fim de assegurar a verossimilhança discursiva),
por meio das quais o leitor tem acesso às informações científicas.
O discurso pertence ao plano do conteúdo e consiste na materialização das formações
ideológicas, enquanto o texto pertence ao plano da expressão. Desse modo, "é no texto que o
homem organiza os elementos de expressão que estão bem a sua disposição para veicular seu
discurso" (FIORIN, 2005:41).
O discurso literário não consiste em um campo de conhecimento hermético e rigidamente
delimitado, pois dialoga com os discursos histórico, antropológico, cultural e sociológico,
entre outros. A literatura perpassa por vários campos do conhecimento e recria
linguisticamente os aspectos mencionados anteriormente.
Por isso, será possível, com a utilização do corpus selecionado, estabelecer relações
interdiscursivas a partir do percurso semântico intradiscursivo do trabalho, ou seja, relações
entre o interdiscurso, que levam em conta a forma como discursos diferentes se relacionam
em um determinado espaço e tempo, e o intradiscurso, a materialidade de um discurso, no
caso de discurso literário de Machado de Assis, o conto em questão.
Além disso, a interface do discurso literário com outros campos discursivos do
conhecimento permite a realização de análises linguísticas considerando as influências
desses campos na evolução das concepções formadas acerca do trabalho, estejam elas
evidenciadas nas obras de um mesmo autor, estejam em diferentes correntes literárias.
Exatamente por causa dessa grande abrangência da temática do trabalho, é possível que, em
um segundo momento, a análise linguística do discurso literário seja estendida às relações e
aos diálogos que ele manifesta com outros discursos, como o jornalístico e até mesmo com o
discurso artístico em geral (pintura, cinema, teatro, artes plásticas e música), dada a
relevância do trabalho enquanto temática na vida cultural e na realidade socioeconômica.
A ênfase da pesquisa, entretanto, concentra-se no discurso literário e na identificação dos
elementos linguísticos intradiscursivos e interdiscursivos nele presentes, os quais lhe
conferem uma dimensão estética e compõem a temática em estudo.
1.1 Machado de Assis e o Realismo
O conto de Machado de Assis “Pai contra mãe” pertence ao Realismo, movimento literário do
final do século XIX. A instalação do Realismo no Brasil encontrou resistências por parte das
classes sociais que até então eram idealizadas pela arte e literatura românticas.
Machado de Assis nasceu no dia 21 de junho de 1839, no Morro do Livramento, Rio de
Janeiro, então capital do Brasil. Foi cronista, contista, dramaturgo, jornalista, poeta,
romancista, crítico e ensaísta. A temática de suas obras envolve desde o uso de citações
referentes a eventos de sua época até aos mais intricados conflitos da condição humana.
Seus romances, por exemplo, tratam frequentemente da escravidão sob o ponto de vista cínico
do senhor de escravos, sempre criticando-o de forma oblíqua. Sobre a escravidão, Machado
de Assis já havia tido uma experiência familiar, quer por seus avós paternos terem sido
escravos, quer porque lia os jornais com anúncios de escravos fugitivos. Em seu tempo, a
literatura que denunciava crenças etnocêntricas que posicionavam os negros no último grau da
escala social era distorcida ou tolhida, de modo que este tema encontra uma grande
expressividade na obra do autor.
A obra estudada neste artigo traz a figura do trabalhador brasileiro no final do século XIX.
Naquela época, nossa sociedade era caracterizada, de um lado, pela elite dominante:
latifundiários, escravocratas e grandes comerciantes - os patrões -; do outro, trabalhadores
pobres e escravos – os empregados - que viviam em condições socioeconômicas lastimáveis.
A pobreza e a miséria eram grandes e não havia a preocupação em combatê-las, pois a classe
dominante necessitava dos serviços da classe dominada e da obtenção de lucros, já que
viviam em uma sociedade na qual predominava o pensamento capitalista.
2 ANÁLISE DO CONTO “PAI CONTRA MÃE”
O conto “Pai contra Mãe” foi publicado em 1906, no livro Relíquias da Casa Velha, e insere-
se na fase “madura” de Machado de Assis, de características marcadamente Realistas.
Ambienta-se no Rio de Janeiro do século XIX nos tempos do Império, antes da abolição da
escravatura. A história, narrada em terceira pessoa, gira em torno da escravidão, apresentada
de forma cruel. Nesse conto, há o embate de senhores versus escravos. Estes eram resumidos
a mercadorias. Becos estreitos, sujeira, miséria fazem contraponto com a riqueza dos donos de
escravos.
Cândido Neves é um caçador de escravos fugitivos, profissão inexistente e inimaginável nos
dias de hoje, e que lhe rende o sustento. Ele se casa com Clara e ambos sonham em ter um
filho. Clara engravida, porém os escravos fugidios começam a escassear e Cândido fica em
séria dificuldade financeira; desesperado e sem saber o que fazer para sustentar o filho, o pai
chega ao extremo de ter que optar por colocar o bebê na Roda dos Enjeitados para a criança
não morrer de fome. O pai cogita mil saídas para ficar com o filho, porém não encontrando
nenhuma, sai de casa com o filho nos braços para depositá-lo na Roda. No caminho vê uma
escrava fugitiva e, entregando o menino para um senhor, sai em perseguição da negra.
Pegando-a, ela lhe suplica liberdade e diz que está grávida e que não quer ter um filho
escravo. Nesse momento miséria e escravidão entram em luta. Cândido vence e entrega a
escrava ao seu dono. Vítima da violência implacável de seu senhor, a escrava negra aborta a
criança que esperava. Cândido recebe pela caça o dinheiro de que precisa para poder ficar
com o filho e sustentá-lo. O conto termina com a frase de Cândido que tenta justificar sua
tirania: “Nem todas as crianças vingam...”.
O autor mostra a miséria humana através dos dramas de um pai contra uma mãe lutando por
duas vidas, em que o indivíduo é capaz de aplacar sua consciência, mesmo tendo cometido o
maior dos crimes, justificando a troca de uma vida pela outra.
2.1 Relações de trabalho presentes no conto
Machado de Assis foi um dos autores brasileiros, dentre vários outros, que escreveu sobre o
trabalhador de sua época. Em “Pai contra Mãe”, o autor retratou as relações de trabalho da
época - século XIX - a partir de seus personagens principais: o caçador de escravos Cândido
Neves, a escrava e o patrão. São personagens que representam metonimicamente (a parte pelo
todo) classes de trabalhadores comumente encontradas à época.Tais relações eram
dependentes umas das outras. O caçador de escravos dependia da captura destes para ganhar
seu sustento; os senhores dependiam dos serviços dos caçadores e dos escravos, pois estes
últimos eram os responsáveis pelos serviços na casa-grande e nas lavouras; e os escravos
dependiam de seus proprietários para as necessidades básicas de alimentação e vestuário.
Além das relações de trabalho, o conto evidencia também a presença de relações de
dominação: dos senhores sobre os escravos; dos senhores sobre os caçadores de escravos, que
só recebiam algum dinheiro se entregassem ao patrão o fugitivo; e dos caçadores sobre os
escravos.
Utilizamos como critérios linguísticos para a análise do discurso do trabalhador, dentro do
discurso literário dessa obra machadiana, as relações entre os personagens principais e o
léxico presente no conto. O texto aqui estudado traz exemplos de itens lexicais que ilustram as
relações de trabalho e de dominação da época. Para tanto, reproduzimos abaixo a parte inicial
do conto, que é bastante rico nesses exemplos.
A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições
sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao
pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de- flandres. A máscara fazia
perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous
para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de
beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles
tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a
honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se
alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na
porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras. O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos
fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao
alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que
sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco
era pegado. Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos
gostavam da escravidão”. “... Dos que seguiam para casa... pediam ao senhor que lhes
marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando...
“Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo.
(grifos nossos)
No trecho que reproduzimos acima há vários excertos que ilustram relações típicas da época
do autor. É o caso de “A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos” e “pegar escravos
fugidios era um ofício do tempo.” Eles ilustram uma profissão que se extinguiu com a
abolição da escravatura, mas que era um ofício importante no século XIX, época na qual se
passava a história. Trata-se da profissão de caçador de escravos, à qual já nos referimos
anteriormente.
Outras expressões referem-se à escravidão, como “ferro ao pescoço”; “ferro ao pé”; “máscara
de folha-de- flandres”. Elas indicam instrumentos de aprisionamento e de tortura usados nos
escravos fujões, como forma de castigo, e que demonstram o tipo de relação de crueldade
existente para com os escravos.
Já em “Os funileiros as tinham penduradas (as máscaras), à venda, na porta das lojas” vemos
recriada uma cena de comércio do tempo em que o conto foi escrito, além de nos apresentar
outro aspecto cruel da sociedade (que não vamos detalhar neste estudo), de como esta era
conivente com a situação deplorável de como os escravos eram maltratados.
O verbo “quitandando” também retrata o comércio da época, quando havia a venda de
quitandas (quitutes) pelos escravos nas ruas.
Por fim, assinalamos o trecho “pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel”. Nele
verificamos um exemplo da relação de trabalho existente entre escravos e
senhores/proprietários, pois os escravos podiam ser alugados a terceiros pelos seus
proprietários e estes permitiam-lhes o direito de ficar com uma parte de seus ganhos do
serviço prestado como ajudantes de padeiros, confeiteiros , marceneiros, etc., e com o
dinheiro poderiam comprar a alforria.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos concluir que a pesquisa sobre a participação do trabalhador como personagem do
discurso literário brasileiro pode confirmar o lugar de protagonista do trabalhador. Através do
estudo do conto “Pai contra Mãe” se evidencia a presença das relações trabalhistas senhor
/escravo e patrão/ empregado sob a ótica do trabalhador, mostrando as injustiças e mazelas às
quais eram submetidos. Para ilustrar essas relações, trouxemos vários exemplos lexicais que
fazem referência, principalmente, à relação senhor/escravo, e que levam o leitor a recriar
cenas do final do século XIX, quando as relações trabalhistas eram bastante diferentes das
atuais e, consequentemente, o discurso também era distinto.
Portanto, o discurso de Machado de Assis levou em consideração a presença do trabalhador e
do mundo do trabalho no qual ele estava inserido. Pode-se perceber pelo presente estudo que
a identidade da sociedade é recriada na literatura; e que a partir desta última é possível
analisar as relações trabalhistas e suas transformações sociais e econômicas no decorrer do
tempo. Podemos afirmar que há dois tipos de relações trabalhistas presentes no conto, que são
a relação senhor versus escravo e a relação patrão versus empregado.
Vale ressaltar, mais uma vez, que o autor explora essas relações tendo como protagonista o
trabalhador, e não o senhor de escravos (patrão). Muitas vezes, ele denuncia a condição
subumana em que esses trabalhadores viviam com uma linguagem irônica. É o caso, por
exemplo, do desfecho do conto que analisamos, quando Cândido afirma que nem todas as
crianças vingam, sem nenhum remorso. Na verdade, ele também não tinha opção: ao entregar
a escrava que havia fugido, contribui para a morte (aborto) do filho dela, mas faz isso para ter
dinheiro para criar seu próprio filho. Apesar de estar em condições melhores que a dos
escravos, ele também era vítima desse sistema trabalhista injusto, em que os patrões
exploravam tanto os escravos, quanto os seus empregados. Escravos e homens livres se
encontravam, portanto, próximos aos olhos da classe dominante.
4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Abstract: The current article aims to introduce a research that proposes to intend, in a
linguistic perspective, a study of worker’s participation as a character of the literary
discourse in Machado de Assis’ tale: “Pai contra mãe”, that brings the appearance of the
Brazilian worker in the end of the 19th century. In this tale there is the opposition owners
against slaves. The character Candido had as an occupation to be a hunter of escaped slaves,
something non-existent and unimaginable nowadays. Therefore Machado de Assis’speech
took in consideration the presence of worker and of the world in which it was inserted. We
can realize by this study that the identity of society is recreated in literature and that from
this last one it is possible to analyse the labouriste relationships and their social and
economical changes through time.
Key-words: Discourse, Worker, Language, Literature, Machado de Assis.