Um império em apurosCom a crise, o lóbi das farmácias começou a sofrer. João Cordeiroé contestado e até já se separou do seu indefetível amigo de sempre,o antigo secretário de Estado Costa Freire
Com a crise a bater à porta das farmácias, João Cordeirorecandidata-se a um novo mandato à frente de um dos mais
poderosos lóbis do País. O setor está em convulsão e o potentadoempresarial criado pelo líder da ANF ameaça patinar
POR FRANCISCO GALOPE
Aofim de mais de 30 anos
a presidir aos destinos da
Associação Nacional das
Farmácias (ANF), JoãoCordeiro anunciou, no
sábado, dia 26 de novem-bro, durante uma reunião de delegados dasua organização que se recandidata a umúltimo mandato de três anos.
Passado mais de um mês de tabu em tor-no da recandidatura, Cordeiro, de 64 anos,que se demitira em outubro em protestocontra as intenções governamentais de re-duzir as margens de comercialização das
farmácias, não só deu conta de que se sub-meterá novamente ao escrutínio dos repre-sentantes das 2 794 farmácias filiadas naANF (96,2% das existentes no País), comonomeou um sucessor. Além disso, sabe-se
apenas, quanto à lista que vai apresentar,que os seus indefetíveis de sempre, JoãoSilveira e Maria da Luz Sequeira, não farão
parte dela. Tudo o resto está em aberto.Uma fonte da ANF confirmou- nos que
Cordeiro «indicou o atual secretário-geral,Paulo Duarte, como o dirigente com o per-fil e capacidade adequados para vir a lide-rar, no futuro, os destinos da associação».
O futuro não se anuncia, porém, muitorisonho. As sombras da crise turvam a luzdos néones verdes florescentes e esbatemo brilho da imagem do setor de bata branca
que Cordeiro se esforçou por criar e man-ter ao longo dos anos.A imposição pelo Governo de margens de
comercialização regressivas para produtosfarmacêuticos comparticipados pelo Servi-
ço Nacional de Saúde serviram de pretextoao líder da ANF para mais um golpe de rins.O Executivo pretende que essas margens,fixadas em 20%, desçam regressivamen-te - maiores para os fármacos mais bara-tos, menores para os mais caros. Assim,nos medicamentos com um preço à saídada fábrica de €5, a margem manter-se-ános 20%, descendo até 15,7% e fixando-senum lucro máximo de 10,90 euros nos quetenham um custo superior a 50 euros.
Com esta medida, segundo a ANF, 1 800farmácias deixarão de ser viáveis, o que jálevou João Cordeiro a referir-se às farmá-cias como um setor «quase falido».
As vendas de medicamentos em farmá-cias registaram, em outubro uma quebrade 13,4% relativamente ao mesmo mês de
2010, segundo os dados das empresas deestudos ligadas à ANF. Por seu turno, os
encargos da SNS com medicamentos ven-didos nas farmácias sofreram, no mesmoperíodo, uma erosão de 204 por cento.
A atividade movimenta atualmente cer-ca de 3 mil milhões de euros anuais, o equi-valente a 1,8% do Produto Interno Bruto(PIB) - quase tanto como o peso da agri-cultura, silvicultura e pescas no conjuntoda economia.
RISCO DE INSOLVÊNCIA
O panorama não é animador e constata-se que, na conjuntura atual, a farmácia
JOÃO CORDEIROLíder indiscutível daANF, há três décadas,dirige perto de duasdezenas de entidadesligadas à organização
? já não é um «negócio da China», ao veri-ficar-se que 24% das unidades instaladas
no País estão com os fornecimentos sus-
pensos por falta de pagamento -723 numuniverso de 2 905 - e que 36% já só podem
pagar a fornecedores a mais de 90 dias.
Segundo a organização liderada por Cor-
deiro, mais de mil farmácias encontram-se em elevado risco de insolvência.
O caso de uma farmácia do distrito de
Castelo Branco cujo trespasse foi postoà venda pelo preço simbólico de Cl (maisum passivo superior a meio milhão) temsido exibido como emblemático da pre-sente situação, pela qual o presidente da
ANF tem responsabilizado as políticas de
Saúde, sobretudo as do antigo ministrosocialista António Correia de Campos, e
as «medidas penalizadoras» introduzi-das no setor desde 2005.
Entre estas, seis diminuições sucessi-
vas dos preços dos medicamentos, a libe-
ralização da propriedade das farmácias e
a venda de fármacos não sujeitos a receitamédica fora desses estabelecimentos.
Mas a crise das farmácias não se deve-rá apenas às iniciativas governamentais.
Conhecedores desse mercado falam nos
anos de deslumbramento, em que até emremotas localidades de província se che-
garam a transacionar alvarás por mais de
um milhão de euros. Ainda em 2010, hou
ve trespasses milionários, um em Aguedaascendendo aos 4 milhões de euros, parauma farmácia que faturou 1,1 milhão.
«Houve muita euforia e exagero nos
valores», comenta Diamantino Elias, se-
cretário-geral do Sindicato dos Profis-sionais de Farmácias. «Pagava-se três a
quatro vezes o valor de uma farmácia.»Muitos farmacêuticos endividaram-se
para comprar os alvarás, remodelar os
espaços e adquirir equipamentos e mer-cadorias - agora pagam os empréstimoscom as prestações a agravarem-se aoritmo da subida dos spreads bancários.E se muitos deram um passo maior do
que a perna, houve manifestos casos de
má gestão.
ASCENSÃO E QUEDA
Mas não é só o setor que está em crise.A própria ANF já viu melhores dias. «As
instituições têm fases de crescimento, de
maturação e de declínio», comenta Fran-cisco Batel Marques, um dos mais reputa-dos farmacêuticos do País.
Cordeiro construiu, ao longo dos últi-mos 30 anos, um império que vai muitoalém da venda de medicamentos ao balcão.
A ANF alargou a sua atividade a setoresdesde o agrícola às altas tecnologias, pas-sando também pela produção, armazena-mento e distribuição de fármacos.
Agora, parece ter-se iniciado a trajetóriadescendente de uma carreira ascensional,iniciada em 1988. Nessa fase, Cordeiro e ochamado «grupo de Cascais» já tinham con-solidado a liderança da organização quandoa então ministra da Saúde Leonor Beleza
padecia de uma maleita atroz: uma dívida
colossal do Estado às farmácias, que desen-
cadearam uma autêntica avalancha de pro-cessos judiciais de norte a sul do País. ?
£- Uma farmácia jᦠnão é sinónimode 'negócio da China'
*• Fernando Costa Freire, secretário de
Estado de Beleza, patrocinou, então, um
acordo entre o Governo e a ANF, segundo
o qual esta passou a intermediar os paga-mentos do Estado às farmácias (ver caixa).Uma situação que se manteve até hoje, commais ou menos nuances, e que é emblemá-
tica da influência na sociedade de um dos
mais poderosos lóbis nacionais.
Vários ministros tentaram contornaressa intermediação financeira feita pelaANF. O último foi Correia de Campos,
que denunciou o acordo entre o Estado e
a ANF, tentando criar um consórcio bancá-
rio através do qual o Estado pagaria direta
e atempadamente às farmácias. Mas Cor-
deiro trocou-lhe as voltas e criou a Finan-
farma, uma empresa defactoring, detida a
100% pela Farminvest 2, uma das holdingsda ANF. Trata-se de uma instituição finan-
ceira, a quinta maior do factoring, que com-
pra as dívidas do Estado às farmácias, às
quais paga mensalmente. Em troca, os es-
tabelecimentos pagam à ANF uma «quotavariável» de 1,5% do que faturam em medi-
camentos comparticipados pelo SNS.
Mas para adiantar o dinheiro às farmá-
cias, a ANF tem de se financiar junto da
banca. O esquema funcionou bem enquan-to não houve crise e os spreads a pagar à
banca eram reduzidos. Mas tudo começouamudar quando abolhudosubprime reben-
tou, em 2008. Os últimos anos têm sido de
aperto. Fontes do setor sugerem que, ulti-
mamente, a ANF tem encontrado dificul-dades em financiar-se junto da banca paraadiantar as verbas em dívida às farmácias.
Em 2010, a associação liderada por Cor-deiro teve de recorrer aos bancos para con-
seguir uma verba superior a 100 milhõesde euros, cm grande parte para fazer face
ao aumento das dívidas do Estada E estas
ascendem, agora, a 143 milhões de euros
(56 milhões da Administração Regional de
Saúde do Norte, 79 milhões da Região Au-
tónoma da Madeira - que já tem um planode pagamento - c 8 milhões dos Açores) .
E se os custos financeiros resultantesdos empréstimos contraídos subiram de
2 milhões de euros para 2,4 milhões entre
2009 e 2010, este ano já atingiram 7 mi-lhões. «Neste momento, já há bancos a
exigir uma taxa ali in (Euribor, spread, co-
missões) de 12,1 por cento. O dobro do que
já reclamavam em 2011, que era o dobro de
2010», salienta fonte oficial da ANF.
Cordeiro, que não esteve disponívelpara falar à VISÃO, reconheceu, numa en-trevista ao Diário Ecojiómico, que, embora
a torneira do crédito ainda não se tenhafechado definitivamente, «a situação está
muito difícil».
Tão difícil que a ANF pondera vender
parte do seu vastíssimo património. Cor-deiro e os seus acólitos ainda não levanta-
ram o véu sobre quais os ativos que a ANF
pretende alienar. Mas, nos circuitos da
associação, comenta-se que, em cima da
mesa, está a hipótese da venda da Bliska
Apteka, uma cadeia de farmácias em que a
ANF, através da sua Farminvest IPG, outra
gestora de participações, é sócia do grupoJerónimo Martins, na Polónia. Entre os
bens a alienar poderão também figurar al-
guns dos edifícios que fazem parte de umfundo imobiliário da associação, o Imofar-
ma, com um património avaliado em apro-
ximadamente 100 milhões de euros, como
a antiga sede do Porto, uma quinta emPonte de Lima e outra em Óbidos. A sede
nacional e o Museu da Farmácia parecem,
para já, estar fora de questão.
CORDEIRO FOI ÀS COMPRAS
A ANF, que surgiu como associação de em-
pregadores e proprietários de farmácia, em
1974, e começou por criar estruturas paraprestar apoio aos sócios, converteu-se,nos últimos anos, num autêntico impérioempresarial (ver infografia) que extravasa
largamente o setor das farmácias. Só entre
2005 e 2008, os seus investimentos terão
totalizado 122 milhões de euros.
A primeira grande aquisição ocorreu noverão de 2005, quando a ANF comprou,através da sua Farminvest, 49% da filial
portuguesa da Alliance Unichem (agoraAlliance Healthcare), a segunda maior em-
presa grossista da Europa, por 49 milhõesde euros. Nessa operação surgiu associa-
da ao Grupo José de Mello, do qual é sócia
(com uma posição de 30%) na José de MelloResidências e na José de Mello Saúde, que
gere, entre outros, os hospitais CUF. As li-
gações empresariais passam, também, pelaGlintt, uma grande empresa de tecnologia
que resultou da fusão, em 2008, da Consite
(há muito no universo AN F) com a Pararc-
de, o que representou um investimento de
22 milhões de euros. Nasceu, assim, umadas maiores tecnológicas do País.
E se ultrapassam o limite do balcão dafar-
mácia, a ANF e suas participadas, também
já galgaram as fronteiras físicas do País,
contando, no seu Atlas de investimentos
diretos, com Espanha, Angola e Polónia.A sua atividade tem-se desenrolado em
PAULO MACEDO 0 ministro da Saúde quer reduzir as margens de comercialização das
farmácias, o que pode permitir, ao Serviço Nacional de Saúde, uma poupança de 50 milhõesde euros em encargos com medicamentos
áreas como a distribuição e produção de
produtos farmacêuticos, sistemas de in-
formação, «inteligência» sobre o mercado
farmacêutico, prestação de cuidados de
saúde, formação e inovação, imobiliário e
até energias renováveis.
No relatório da última auditoria do Tri-bunal de Contas ao mercado do medica-
mento, pode ler-se que «a prossecução des-
tas atividades pela Associação Nacional das
Farmácias comporta riscos de distorçõesda concorrência no mercado da distribui-
ção por grosso de medicamentos e da pro-dução de genéricos, bem como no mercado
de serviços de inteligência de mercado».
PROJETOS MEGALÓMANOS?
Mas os aleitas não vêm só do exterior. Den-
tro da ANF, as opções de Cordeiro são alvo
de fortes críticas. «A ANF não nasceu paraisto», comenta Daniel Ramos, um farma-cêutico do Porto, crítico da atual direção,afirmando que as opções expansivas da di-
reção da ANF não têm trazido benefícios
para os associados.
Outros falam de «projetos megalóma-nos», que agora não podem continuar porfalta de liquidez. E há ainda os que dizem
que aANF criou umafalsa imagem de gran-de riqueza à volta das farmácias, que não
corresponde à realidade. «A política de os-
tentação, através da aplicação do dinheiro
das Farmácias em atividades empresariais
paralelas, foi um erro estratégico», salien-
ta o antigo bastonário dos Farmacêuticos,José Aranda da Silva. «Subalternizou-se o
investimento na riqueza mais valiosa da
profissão - a sua capacidade e competên-cia técnica e científica - que seria o melhor
ativo, com retomo a médio prazo.»Outro erro que apontam a Cordeiro con-
siste nas suas posições de rutura com todos
os setores envolvidos na área do medica-
mento, desde a indústria, passando pelosmédicos, até ao Governo. E isso impede,
segundo Aranda da Silva, há vários anos,
que as posições dos farmacêuticos e das
farmácias tenham qualquer peso no pro-cesso de decisão.
«Uma liderança que tende a eterni-zar-se tem os problemas das liderançasque se querem eternizar», comenta Batel
Marques.As críticas à direção de Cordeiro são
muitas, mas o certo é que ainda ninguém se
chegou à frente para formar uma lista con-tra ele. E isso quando as condições atuaisaté seriam propícias. No seio da organiza-
ção, ganham espaço as vozes dissonantes
e, recorde-se, depois de décadas de lide-
rança incontestada, Cordeiro teve de ir a
votos, em 2006 e 2009, contra o até então
anónimo farmacêutico da zona de SintraJoão Ferro Batista. João Cordeiro ganhouambas as votações, mas a sua liderança foi
beliscada pelos mais de 39% obtidos peloseu antagonista nas últimas eleições.
Daniel Ramos reconhece que é difícil, no
atual momento, «encontrar alguém capazde concorrer e dar o peito às balas, não sa-
bendo o que vai encontrar».O certo é que, segundo apurou a VISÃO,
nas últimas semanas têm decorrido, em vá-rias zonas do País, reuniões entre oposicio-nistas, com vista a encontrar um candidato
que possa representar «uma alternativaséria e credível».
Há quem diga que é a própria situaçãocriada por Cordeiro que está a condicionar
o aparecimento de opções. Outros consi-
deram que cabe ao timoneiro que dirigiuo navio para o temporal tirá-lo da tempes-tade.
Na opinião de Batel Marques, seja qualfor o desfecho das eleições de dia 28 de
janeiro, o que a futura direção vai ter de de-
bater é o paradigma, o modelo de farmácia
e de exercício profissional, que se quer parao País e em que medida a ANF se pode in-
tegrar no sistema de Saúde: «Se a farmácia
se limitar à distribuição de medicamentos,não vale a pena ter profissionais tão dife-renciados.» Q
J*2 As críticas¦ a Cordeiro sãomuitas, mas ainda não
apareceu um rival
Beleza e Costa Freire outra vez juntosAmigo de juventude de João Cordeiro. FERNANDO COSTA FREIRE foi o grandeimpulsionador do acordo entre o Estado e a ANF, celebrado em 1988, por forçado qual a associação passou a intermediar os pagamentos do SNS às farmácias.Foi esse acordo que conferiu à ANF o poder que ainda hoje detém.Depois de sair do Governo, na sequência do chamado «Processo da Saúde»
(em que foi condenado, mas acabou por prescrever), o antigo secretário de Estadode LEONOR BELEZA passou a trabalhar para a Consiste, a empresa de informáticada ANF que revolucionou as farmácias.A amizade foi duradoura. Freire e Cordeiro eram mesmo unha com carne. Duasfaces da mesma moeda, até que. no final do ano passado, o ex-secretário de Estadoabandona a presidência da Glíntt (empresa originada, em 2008, pela fusão daConsiste com a Pararede), na qual a ANF detém uma participação de 49,73 porcento. Uma saída incompreensível para muitos, que conhecem ambos, e que a
atribuem a uma qualquer incompatibilidade.Muito se especulou sobre essa saída, dizendo-se que o engenheiro Costa Freire,
depois da suposta zanga com Cordeiro, teria regressado ao círculo de Leonor
Beleza, agora na Fundação Champalimaud.Freire está, de facto, a trabalhar com a antiga ministra na fundação, só que esta
relação de trabalho remonta a 2007, quando Leonor Beleza escolheu a Consiste
para fazer o acompanhamento da obra do Centro de Investigação Champalimaud.A verdade é que, após sair da empresa entretanto rebatizada Glintt, Freirecontinuou a desempenhar o mesmo trabalho para a fundação. Só que, agora,através de uma outra empresa, a STG - Sociedade de Investimentos Imobiliários,Gestão de Obras, cujo contrato termina no final deste ano.