Maria Ângela De Ambrosis Pinheiro Machado
U m a n o v a m í d i a e m c e n a :
c o r p o , c o m u n i c a ç ã o e c l o w n .
Doutorado em Comunicação e Semiótica PUC/SP
São Paulo 2005
Maria Ângela De Ambrosis Pinheiro Machado
U m a n o v a m í d i a e m c e n a :
c o r p o , c o m u n i c a ç ã o e c l o w n .
Doutorado em Comunicação e Semiótica
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica na área de concentração signos e significações das mídias sob a orientação da Profª. Drª. Christine Greiner
PUC/SP São Paulo
2005
II
BANCA EXAMINADORA
_________________________________
_________________________________
_________________________________
_________________________________
_________________________________
III
Resumo
Esta tese tem por objeto de estudo os processos de comunicação e
interação entre o corpo do ator e o ambiente de experimentação a partir da
pesquisa da linguagem do clown no teatro. Essa linguagem requer um
treinamento das habilidades perceptivas, da ação espontânea, do jogo e da
improvisação, sempre em trâmite entre as ações cotidianas e as ações artísticas.
O objetivo desta tese consiste em compreender esse treinamento como uma
relação comunicativa entre corpo e ambiente de pesquisa teatral. O tema que a
circunscreve refere-se às possibilidades de entendimento do corpo como mídia,
ou seja, um ambiente complexo e povoado de signos e linguagens que expressa,
informa e comunica a sua relação com outros ambientes, sempre aliando
natureza e cultura. O corpo constitui um meio que manipula, multiplica,
expande, troca, produz, retém e comunica informação. Essa compreensão
fundamenta-se em pesquisas científicas desenvolvidas por um grupo
transdisciplinar das chamadas Ciências Cognitivas, cujo foco consiste
justamente em pesquisar como o corpo conhece e interage na relação com o
ambiente, por meio de protocolos experimentais. Neste sentido, serão
apresentados alguns argumentos fundamentados nas hipóteses dos
neurocientistas Antonio Damásio, Andy Clark e Alain Berthoz.
Entre outros aspectos, estes estudos enfocam quais os mecanismos que o
organismo (humano) desenvolve para perceber, reagir e agir nas relações com e
no mundo. O entrelaçamento teórico/prático entre diversos saberes sustenta a
plausibilidade da hipótese de que o treinamento do clown habilita o ator a
interagir com o ambiente no que ele manifesta de inusitado, diferente,
polissêmico, porque ambos, ambiente e corpo do ator, estão repletos de
movimentos inusitados, diferentes e surpreendentes.
IV
Abstract
The study object of this thesis is the processes of communication and
interaction between the actor's body and the experimentation environment by
means of research of the clown language in theater. This language requires
training of perception abilities, spontaneous action, playing and ad-libbing,
always proceeding between everyday actions and artistical actions. The aim of
this thesis is to understand this training as a communicative relation between
body and the environment of theater research. The theme comprehends the
possibilities for an understanding of the body as a medium, that is, a complex
environment filled with signs and language which expresses, informs and
communicates its relation with other environments, always associating nature
and culture. The body is a medium which manipulates, multiplies, expands,
exchanges, produces, retains and communicates information. This understanding
is based on scientific research carried out by a transdisciplinary group of the
sciences known as Cognitive Sciences and whose focus consists precisely in
researching the way in which the body knows and interacts in its relationship
with environment, by means of experimental protocols. In this respect, some
arguments based on the hypothesis of neuroscientists Antonio Damásio, Andy
Clark e Alain Berthoz will be presented.
Among other aspects, these studies focus on which mechanisms the
(human) organism develops to perceive, react and act in its relation with and
within the world. The theoretical/practical entwinement between several
knowledges supports the plausibility of the hypothesis that clown training
qualifies the actor to interact with the environment in all the latter presents as
unusual, different and polysemic, since both, environment and actor's body, are
filled with unusual, different and surprising movements.
V
Aos meus mestres:
Chiara e Geraldo (in memorian), mestre de viver,
Tadashi Kawano, mestre de acompanhar,
Marina Kaori, mestre de brincar.
VI
Agradecimentos
Agradeço sem fim as ‘Cris’ que orientaram esta tese: Cristiane Paoli-Quito e Christine
Greiner.
Como sempre generosa e precisa, Cristiane conduziu-me no mergulho profundo de construção
da linguagem cômica do meu corpo. Delícia que é estar nesse lugar! Obrigada.
Atenta simplesmente, Christine orientou, incentivou, sugeriu, desburocratizou, esclareceu,
pincelou... Singela, tranqüila e, de repente, tão bela essa relação.
Um agradecimento muito, muito, muito especial para Nirvana Marinho. Mais que
pesquisadora e debatedora de minhas discussões acadêmicas/cênicas: valiosa amiga.
Agradeço em especial Jussara Setenta, Isabelle Cordeiro e Adriana Bittencourt por nosso
precioso trabalho no Grupo Sinergia.
Meus amigos e companheiros de cena Fernando Passos, Melissa Panzutti e José Renato F. de
Almeida: Vamos nessa que ainda é bom a beça!!! Estamos apenas começando...
Aos meus colegas de PUC, Cleide Martins, Lenira, Lela, Boro, Edna, Vanessa e... e... e....
Agradeço e sinto-me privilegiada de ter tido como professores também Tica Lemos e Alex
Ratton, no Estúdio Nova Dança.
Agradeço ao Estúdio Nova Dança, Pepita sempre solícita e seu Valdemar que abria a porta do
Estúdio para mim. Todos meus colegas de ralação: Alex, Melissa, Natália Catarina, Paula,
Érica, Maurício, Pedro(s), Luciana (s), Abba, Aninha, Adriana, Laura(s), Sheila(s), Karu,
André, Mara, Letícia, e mais uns 101 colegas aproximadamente.
Agradeço ao CNPq pela bolsa concedida para realização dessa pesquisa.
VII
Índice
Resumo..................................................................................................................................... IV
Abstract ..................................................................................................................................... V
Dedicatória ............................................................................................................................... VI
Agradecimentos.......................................................................................................................VII
Introdução............................................................................................................................... 09
Capítulo 1 ................................................................................................................................ 26
1. A URDIDURA DA IMPROVISAÇÃO E DO CORPO ...................................................... 26
1.1 Improvisação: características, qualidades, necessidades e discussões................. 26
1.2 Corpomídia: quando o corpo é o protagonista da cena........................................ 44
1.3 Enredando as malhas............................................................................................ 57
Capítulo 2 ................................................................................................................................ 66
2. CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA MÍDIA......................................................................... 66
2.1 O treinamento de Cristiane Paoli-Quito............................................................... 66
2.2 “Movimento-Imagem” ......................................................................................... 68
2.3 Você sabe voltar para sua casa à deriva? ............................................................. 72
2.4 Tudo é cênico ....................................................................................................... 79
2.5 Jogo: a vida das relações ...................................................................................... 88
Capítulo 3 ................................................................................................................................ 93
3. UM DIA, UMA BANANA...: LAÇOS E ENTRELAÇOS TRANSITÓRIOS ...................... 93
3.1 Entre laços: o processo......................................................................................... 93
3.2 Entrelaço: a construção das cenas ...................................................................... 102
3.3 Entrelaçando: o espetáculo ................................................................................ 114
Bibliografia .......................................................................................................................... 120
VIII
Introdução
Esta tese pretende esmiuçar os processos comunicativos que envolvem o
método de criação e a performance artística do clown1. Esta investigação,
iniciada no mestrado2, circunscreve a indagação sobre a natureza do processo
semiótico para a construção do corpo do ator. Nesse sentido, o processo de
criação do clown contempla essa especificidade no modo de construção do
personagem. Esse processo tem início no corpo do ator, na experimentação de
suas habilidades corporais, tanto as relativas a um estado de presença e
percepção diferenciado como as relativas ao jogo e à improvisação.
Diferente de um personagem descrito por meio de uma dramaturgia teatral
convencional, em que o contexto é dado pela narrativa organizada em um texto a
partir do qual se constrói o corpo do personagem, no clown, a máscara confere a
essa linguagem, antes de tudo, uma fisicalidade que expressa as características e
o modo de estar no mundo. O clown se desenvolve a partir dos desafios físicos a
que o ator se submete no treinamento; em outros termos, a exposição do corpo
ao ridículo, ao jogo com outros corpos, à sua capacidade de comunicação sem
fala e sem gestos estereotipados.
No contexto mais geral da história do teatro no Brasil, o clown reapareceu
nas décadas de 1980 e 1990 em pesquisas de linguagem teatral3. O treinamento
de clown tem sido bastante utilizado como treinamento de ator e de dançarinos
1 Clown e palhaço são sinônimos. A preferência dada à terminologia inglesa apenas se justifica para diferenciar o palhaço inserido numa linguagem teatral do palhaço inserido na linguagem circense. 2 Cartografia do conhecimento artístico: o processo de criação do ator, dissertação de mestrado defendida em 2000 no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, sob orientação da Profa. Dra. Helena Katz. 3 Conforme análise de MacManus, em seu livro No Kidding! Clown as Protagonist in Twentieth-Century Theater, o clown surge no contexto europeu do século XX, como um personagem que se contrapõe ao herói trágico. Nesse sentido, apresenta-se como uma ruptura das convenções teatrais até então estabelecidas. Para o autor, o clown é eminentemente um ícone do antiautoritarismo e sua função política encontra-se justamente na fissura que promove tanto nas regras da linguagem teatral como nas regras sociais, pois é um personagem que transita entre a ficção e a realidade e permanece sempre no limiar dessa fronteira. Ou seja, ora o personagem está envolvido na ficção teatral e lá desenvolve seu jogo, ora se depara com os empecilhos da realidade, como, por exemplo, a mala que emperra quando ele tenta abri-la e este passa a ser jogo do clown. Seu antiautoritarismo se deve às possibilidades de jogo e desafios que percorrem desde as relações com as leis físicas da natureza até as relações de poder entre os homens.
9
(vide respectivamente Lume4 e Nova Dança 45), visto que, afora a busca de uma
linguagem específica do clown para o teatro, esse treinamento instrumentaliza o
ator/bailarino em suas potencialidades expressivas, em habilidades de jogo, em
improvisação, em habilidades perceptivas, em capacidade de respostas e, ainda,
na tão buscada presença cênica, citada na maioria das atuais pesquisas de
linguagem do corpo.
O processo de criação do clown particulariza-se por enfocar o corpo do
ator. As habilidades perceptivas consistem em o ator perceber as mudanças
físicas que o uso da máscara traz. Essas mudanças transformam, por sua vez, os
hábitos de percepção, permitindo ao ator experimentar um outro modo de estar
no mundo, percebê-lo e interagir com ele. A fisicalidade demarcada pela
máscara implica evidenciar a imediaticidade da reação física diante de qualquer
fenômeno que apareça. O clown é um ser que tem suas reações afetivas e emotivas corporificadas em partes precisas de seu corpo. Ou seja, sua afetividade transborda pelo corpo, suas reações são todas físicas e localizadas. [...] A lógica do clown é física-corpórea, ele pensa com o corpo (Burnier Mello6, 1994: 261).
O treinamento do clown exercita a capacidade do jogo cênico e da
improvisação, seja com um companheiro de cena, seja com a platéia. Em cena,
ele estabelece uma comunicação direta com o público, em oposição à tão famosa
“quarta parede”7. Uma das possibilidades de jogo do clown encontra-se
justamente no aproveitamento das situações e reações do público ao estabelecer
4 Lume – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, Unicamp, fundado em 1985 por Luís Otávio Burnier Mello, Carlos Roberto Simioni, Ricardo Puccetti e Denise Garcia. As linhas de pesquisa que orientam o trabalho são: a Dança Pessoal, o Clown e a Mímesis Corpórea (Ferracini, 1998). 5 Cia. Nova Dança 4 é um grupo de dança dirigido por Cristiane Paoli-Quito que, desde 1996, tem desenvolvido um trabalho de pesquisa em improvisação, dança e teatro. Trata-se de um grupo que vem inovando as possibilidades de ligação entre a linguagem da dança e a do teatro. Entre suas técnicas de treinamento encontra-se a prática do clown. 6 Luís Otávio Burnier Mello (1956-1998) foi fundador do Lume – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, vinculado à Universidade Estadual de Campinas. 7 Termo utilizado no teatro para designar uma parede imaginária entre o palco e a platéia. Nesse sentido, o ator não se comunica diretamente com ela . Embora possa olhar na sua direção, é como se não a visse, sua concentração está no acontecimento do palco.
10
uma relação de cumplicidade com a platéia (Fabbri & Sallée, 1982; Paoli-Quito,
1994). Daí a ênfase dada ao treinamento do ator para a questão da presença
cênica, uma vez que ela instrumentaliza a percepção dos acontecimentos
imprevistos (entre ele e a platéia) e sua incorporação à cena.
Manifestando a ingenuidade, a fragilidade e a espontaneidade, os
requisitos básicos a serem desenvolvidos no treinamento configuram um estado
de generosidade, abertura e vulnerabilidade, necessários para aguçar a escuta
atenta e perspicaz (saber ouvir e ouvir-se). Tudo é novo aos olhos do clown. Um
olhar para o mundo como se fosse a primeira vez. Um olhar para as qualidades
que o mundo à sua volta apresenta e que, por meio da linguagem teatral, ele
pode reapresentar, enfatizar ou inverter os sentidos e significados
convencionalizados para o evento.
Por sua forma de ver o mundo, o palhaço pode alterar a realidade, transformando-a no que deseja. Isso introduz no ambiente uma proposta de pensamento complexo. Os fatos ganham uma nova lógica e sentido, contestando os acontecimentos até então estabelecidos. Essa alteração a princípio pode parecer um simples desvio ou imperfeição da visão tradicional de mundo, mas na verdade ela contribui para sua ampliação e desenvolvimento (Masetti, 1998: 34) 8.
O treinamento do clown potencializa, assim, as habilidades perceptivas do
ator, na medida em que sua construção é mais “aberta” e permeável aos
acontecimentos do momento e na medida em que o ator desenvolve a sua
capacidade de resposta quase imediata a eles. Sob essa perspectiva, o
treinamento do clown constitui um embrenhar-se em um estado diferenciado de
percepção no qual outras potencialidades de sentimento, sensação, movimento,
imagem, pensamento, idéia e ação poderão manifestar-se.
8 Morgana Masetti é coordenadora do Centro de Estudos dos Doutores da Alegria (São Paulo-SP). Neste trecho, ela se refere a uma intervenção dos Doutores da Alegria numa sala de espera de um hospital, transformada em sala de cinema por meio da ação dos palhaços.
11
Pesquisar o processo de treinamento e criação do clown permitirá
investigar a natureza dos processos de comunicação e semiose do corpo do ator
em diálogo com esse ambiente da pesquisa teatral. Em outros termos, pretende-
se verificar como o ator se habilita a compreender, incorporar e expressar
imagens, relações e pensamentos, ou seja, pretende-se compreender a relação de
conhecimento e interação entre o corpo do ator e o ambiente de experimentação
e pesquisa da linguagem do clown.
Essa abordagem implica repensar os parâmetros de compreensão e análise
do corpo e seus processos comunicativos, o que então constituirá a hipótese
desta tese, bem como amplia os modos de descrição e análise do processo de
criação do clown até então disponíveis bibliograficamente9. Embora parte dessa
bibliografia foque o processo de criação do clown, esses estudos limitam-se a
descrições de exercícios, tentativas de registro da experiência teatral e a busca
por uma sistematização de uma metodologia de trabalho para o ator. Com isso, o
enfoque não se concentra na compreensão desse processo, mas, na descrição
dele.
O clown caracteriza-se por ser um personagem que pode estar em
qualquer lugar. E em qualquer lugar que ele esteja, transforma o espaço,
evidenciando outros sentidos e significados das relações ali existentes. Um dos
modos possíveis de explicar tal constituição implica a possibilidade de
compreender que a característica cômica do clown encontra-se num estado
9 Poucos são os estudos que concentram atenção no clown. A bibliografia existente até o momento e que foi pesquisada consiste em pesquisa e dissertação enfocando as intervenções do clown em hospitais (Masetti, 1998, Wou, 1999). Nesse aspecto, esses estudos condizem com este projeto, uma vez que refletem a questão da interação do clown em lugares diferenciados e não-convencionais, demonstrando concretamente a permeabilidade desse personagem, as transformações que a presença de um clown gera no ambiente e, ao mesmo tempo, a maleabilidade da linguagem a fim de adaptar-se àquele ambiente e à especificidade desse tipo de intervenção concernente ao público (crianças hospitalizadas, pais, médicos, enfermeiros e instituição hospitalar). As teses e dissertações existentes sobre o processo de criação do clown (Lopes, 1990; Ferracini, 1998; Burnier, 1994; Martins, 2004; Kasper, 2004; Barboza, 2001) concentram-se na descrição e análise de alguns procedimentos e técnicas, enfocando mais amplamente o trabalho do ator e não exclusivamente o trabalho do clown ou o uso da máscara para treinamento e a criação de um espetáculo. Outras bibliografias concentram-se em reconstituição histórica do clown (Fabbri & Sallée, 1982; Levy, 1990; Burnier Mello, 1994; Pascal, 1992; Lecoq, 1987 e 1997; Kasper, 2004; Simon, 1988), relatos de experiência (Lecoq, 1987 e 1997), biografias de palhaços (Popov, 1982; Rivel, 1973; Seyssel, 1997), estudos, pesquisas, metodologias de trabalho e conceituação do personagem (Lecoq, 1997; Burnier Mello, 1994; Fo, 1998; Kasper, 2004).
12
particular de comunicação e interação. O clown e o ambiente em que ele está
dispõem-se mutuamente a um jogo de receber, trocar e devolver estímulos.
Receber, trocar e devolver comicamente os estímulos do ambiente e do clown.
Essas questões estão relacionadas de modo mais amplo à habilidade e
aptidão do corpo para permanecer no tempo e no espaço. O corpo incorpora
imagens, sensações e pensamentos de movimento e os produz na medida que
incorpora um jogo contínuo da relação corpo / ambiente (Andy Clark10, 1997,
2001; Antonio Damásio11, 2003, 2000, 1995; Alain Berthoz12, 2003 e 2001).
A hipótese consiste em que o treinamento do clown habilita o ator a
interagir com o ambiente no que ele manifesta de inusitado, diferente,
polissêmico, porque ambos, ambiente e corpo do ator, estão repletos de
movimentos inusitados, diferentes e surpreendentes.
Trata-se de uma hipótese que reconhece a complexidade da relação entre
corpo e ambiente, compreendendo a complexidade particular desses dois
sistemas no espaço, não se tratando de uma simples questão de estímulos e
respostas, mas da constituição de uma complexa rede de relações.
No panorama histórico da presença do clown nas artes cênicas,
manifestou-se com ênfase a corporeidade e fisicalidade que o uso da máscara
demanda (Fo, 1998; Levy, 1990; Pascal, 1992; Fabbri & Sallée, 1982). As
metodologias estudadas na dissertação destacam o treinamento físico e
energético por meio de técnicas de dança, acrobacias, exercícios físicos de
diversas ordens, enfim exercícios físicos intensos que objetivam habilitar o ator
para o jogo e para a presença cênica (Lecoq, 1997,1987; Paoli-Quito, 2000,
1998, 1995, 1994; Burnier Mello, 1994 e Ferracini, 1998).
10 Andy Clark (1957- ) é filósofo e cientista cognitivista. É professor de filosofia e ciências cognitivas na Escola de Ciências Cognitivas e Computação, da Universidade de Sussex, UK. Foi diretor do programa de filosofia/neurociência/psicologia na Universidade de Washington, em St. Louis, USA. 11 Antonio Damásio (1944- ) é cientista, neurologista, chefe do departamento de Neurologia da Universidade Iowa e professor adjunto do Instituo Salk de Estudos Biológicos, em La Jolla, na Califórnia. 12 Alain Berthoz (1939- ) é engenheiro, psicólogo, neurofisiologista, professor do Collège de France, onde dirige o laboratório CNRS de fisiologia da percepção e ação.
13
Por outro lado, esses estudos evidenciam uma questão atual e recorrente
nas pesquisas de linguagem teatral, formulada já desde o tempo de Constantin
Stanislavski13 (1863-1938). Essa questão refere-se ao corpo do ator e à sua
presença fundamental na cena e no processo de criação. Nesse aspecto, o
treinamento do clown tem sido incorporado ao teatro como linguagem artística
das artes cênicas e como recurso de formação de atores dadas as habilidades de
presença e disponibilidade, expressividade, jogo e improvisação que ele
desenvolve.
O Método das Ações Físicas constitui um dos mais importante legados de
Stanislavski para as gerações seguintes de atores e diretores. Entre outros
desdobramentos dessa prática, encontram-se o redimensionamento do corpo do
ator no processo de criação do personagem e os inúmeros procedimentos de
treinamento gerados por esse mesmo redimensionamento, como foi o caso das
pesquisas de Jersy Grotowski14, Eugênio Barba15 e Peter Brook16. No Brasil,
seguindo essa vertente de pesquisa de linguagem, encontramos o Grupo Lume
de Campinas, entre outros.
Desde então, o corpo e sua expressão foram ganhando espaço nos
processos de pesquisa de linguagem teatral. De fato, como também observado
por Azevedo (2002), o trabalho corporal sistematizado gera transformações
qualitativas no trabalho de criação e interpretação do ator. Este aprofunda seu
conhecimento acerca de seu corpo e seus recursos de expressão, intensifica sua
presença cênica, promove e instaura o estado de atenção e prontidão necessários
13 Constantin Stanislavski (1863-1938) ator e diretor de teatro, fundador do Teatro de Arte de Moscou. Importante referência para o processo de criação do ator, uma vez que sistematizou um método de trabalho para o ator que pode ser encontrado em suas obras (vide bibliografia). 14 Jersy Grotowski (1933-1998), diretor de teatro, criador do Teatro-Laboratório em 1959, na Polônia, cujos objetivos consistiram em pesquisar o domínio da arte teatral, sua metodologia e estética. Escreveu Em busca do teatro pobre, Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1992. 15 Eugênio Barba (1936- ) é diretor e estudioso do teatro contemporâneo. Estudou com Grotowski. Na Dinamarca, fundou, em 1964, o Odin Teatret e, em 1979, o Ista (International Scholl of Theatre Anthropology), que constituem hoje ponto de referência da arte teatral. 16 Peter Brook (1925- ) é diretor de teatro, fundou e dirige em Paris o Centro de Pesquisas Teatrais. Suas arrojadas concepções cênicas para teatro, ópera e cinema tornaram-se marcos de renovação e referências da escritura cênica ocidental.
14
à percepção das sensações, dos estados corporais, das idéias, dos pensamentos e
das imagens que o corpo produz. O ator desenvolve a consciência e a
compreensão de sua ação em cena.
A atividade corporal transforma hábitos, modos de pensar e agir. O
relaxamento de músculos, a percepção de apoios e pesos, a percepção do corpo
no espaço facilitam a presença cênica, a percepção das sensações e dos estados
corporais e das ações e movimentos engendrados, constituindo o fluxo da
linguagem e favorecendo uma ação mais orgânica do ator na criação e na
execução do personagem. Por que isso acontece e como?
Essa questão constitui o ponto de partida desta tese. Num primeiro
momento, cabe abordar as dificuldades de responder a ela, interrogando as bases
filosóficas que se relacionam com os modos de pensar o corpo e o processo de
criação do ator, atualmente.
Como mostra Steven Pinker17, conceitos como o de tábula rasa, atribuído
a John Locke (1632-1704), o do bom selvagem, desenvolvido por Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778) e o do fantasma da máquina, de René Descartes (1596-
1650) constituem “a secular religião da vida intelectual moderna” (Pinker, 2002:
3). Embora distintos entre si, Pinker demonstra a compatibilidade e até mesmo a
complementaridade entre esses modos de entendimento da natureza humana, no
pensamento moderno.
As doutrinas da Tábula Rasa, do Bom Selvagem e do Fantasma da Máquina – ou como os filósofos a chamem, empiricismo, romantismo e dualismo – são logicamente independentes, mas na prática elas são, freqüentemente, encontradas juntas (Pinker: 2002:10)18.
17 Steven Pinker (1954-) é professor do Departamento de Psicologia da Universidade de Havard. Lecionou no Departamento Cérebro e Ciências Cognitivas do MIT (Massachusetts Institute of Tecnology). Orienta pesquisa de linguagem e cognição. 18 The doctrines of the Blank Slade, The Noble Savage and the Ghost in the Machine – or, as philosophers call them, empiricism, romanticism and dualism – are logically independent, but in practice they are often found together. Todas as traduções contidas nesta tese são de minha responsabilidade.
15
Ou seja, questões científicas, artísticas, sociais, políticas, econômicas e
culturais estão impregnadas dessas noções. Cabe identificar como estas
articulam o pensamento sobre o corpo e o processo de criação e treinamento do
ator.
Preocupado em saber como a mente funciona e como o homem conhece a
verdade, John Locke compreendeu a importância da experiência para o
conhecimento humano19. Formulou o conceito de que a mente é uma tábula rasa
que vai sendo preenchida por meio da experiência. Essa noção pressupõe a
compreensão de que os indivíduos são diferentes entre si porque têm
experiências diferentes. Muda-se a experiência, muda-se o indivíduo (Pinker,
2002).
As repercussões desse modo de compreender contribuem para a
formulação da filosofia política do liberalismo, fundamentam propostas
pedagógicas e embasam teorias da psicologia. No teatro, essa noção pode ser
reconhecida, por exemplo, na questão da memória emotiva desenvolvida na
primeira fase do trabalho de Stanislavski. Como aponta Bonfitto,
as emoções deveriam ser resgatadas de um repertório de experiências pessoais iguais ou análogas às da personagem que deveria ser construída. Existia, portanto, uma ligação quase necessária entre memória e emoção. (Bonfitto, 2002: 27).
Na seqüência desse pensamento: “para Stanislavski, quanto mais vasta é a
experiência emocional do ator, mais rico é o material que ele tem à disposição
para sua atividade criativa interior” (op.cit.: 29).
Resgatar a emoção pela memória das experiências sugere a idéia de uma
“gavetinha” que contém um repertório de memórias e emoções acumuladas,
19 A teoria de John Locke surge como alternativa ao pensamento fundado na teoria das idéias inatas, a qual apregoava que o homem nasce com idéias matemáticas, verdades eternas e a noção de Deus e que, no decorrer da vida, mais precisamente, na idade adulta, com o desenvolvimento da razão, essas idéias se tornariam conhecidas. Locke e outros filósofos de sua época questionavam o fundamento do poder político na religião e na hereditariedade. Locke é, portanto considerado um dos fundadores do pensamento liberal que marca o início do sistema capitalista moderno.
16
adquiridas pela experiência e que aguardam ser solicitadas. Assim, a
necessidade de vasta experiência emocional para a construção do personagem
constitui conseqüência desse modo de pensar. Logo, um jovem ator pode
perguntar se ele tem experiência de vida suficiente para poder fazer teatro. Um
velho ator pode perguntar se as experiências que ele teve na vida servem para
trabalhar com teatro. Coitado deste último, caso a resposta seja negativa. Esta
pequena pausa especulativa sugere a falácia dessa concepção de experiência
acumulada, que repercute no modo de pensar de Stanislavski, provavelmente,
porque pertence ao contexto filosófico de sua época.
Essa questão, porém, ainda reverbera na metodologia do fazer teatral no
que respeita às questões relativas à criação de repertório. Partindo do princípio
de experiência e de conhecimento acumulados, muitos estudos sugerem que o
ator cria repertórios fixos e, conforme a necessidade, disponibiliza aquela ação.
O treinamento e a experiência em cena desenvolvem um repertório de ações
para o ator dispor no momento que necessitar. Sob essa perspectiva, esse
treinamento caracteriza-se pela construção de repertório, grosso modo, e busca-
se um corpo apto a criar e a reproduzir seu repertório de gestos e ações para
compor o personagem. Essa abordagem parece conter uma compreensão de
experiência, de memória e mesmo de repertório como algo estancado quando
apreendido e não como um fluxo de ações e interações.
Jean-Jacques Rousseau, pensador da época do Romantismo, oferece uma
imagem do homem bom, ou seja, aquele que, em seu estado natural, é pacífico,
tranqüilo, vivendo harmoniosamente em sociedade e de acordo com a natureza,
conforme os colonialistas europeus supunham acerca da vida dos indígenas das
colônias. Em contrapartida, o homem civilizado perde o contato com a natureza
e sua pureza natural é corrompida pelo convívio em sociedade (Pinker, 2002).
No teatro, não é difícil notar a presença desse ideal de comportamento
natural do homem, veiculado pela idéia do bom selvagem de Rousseau. A partir
da pesquisa de Azevedo (2002), é possível observar que, nas técnicas e nos
17
pensamentos sobre o corpo no teatro, na dança e nas técnicas corporais (fora dos
palcos) por ela apresentada, a busca por um corpo natural constitui uma
premissa comum subjacente à maioria dos métodos expostos.
Pensar o “corpo natural” implica compreender que ele naturalmente
conhece e se desenvolve distintamente do “corpo cultural” que necessita
construir. Ou seja, as condições sociais são responsáveis pelo afastamento do
modo natural do corpo ser e desenvolver-se. Um treinamento baseado nessas
premissas pressupõe exercitar e treinar o corpo para tirar suas máscaras
socialmente criadas e desvelar a ação, o gesto e a postura genuinamente naturais.
O treinamento corporal, nessa visão, buscará o reaparecimento do corpo e seu
movimento em seus estados mais puros, naturais e orgânicos que os
convencionados socialmente como um meio que permitirá uma ação mais
natural do ator na execução de seu personagem. O grande desafio de
Stanislavski foi elaborar um método no qual a ação do ator parecesse natural
(Bonfitto, 2002; Machado, 2000).
Qual é, então, esse corpo idealizado tão natural? Existe realmente alguém
(na história real ou na ficção) que podemos considerar como portador de um
corpo genuinamente natural? Moglie? Meninos-lobos? São eles corpos naturais
ou adaptados à natureza das florestas? Observa-se no livro Guia de abordagens
corporais, de Ribeiro & Magalhães (1997), cerca de cinqüenta técnicas de
modos de tratar o corpo, com fins terapêuticos ou não. Entre elas, podemos
destacar as chamadas artes marciais, educação somática e o Contato
Improvisação, que são algumas metodologias mais buscadas e citadas nas artes
corporais. Quais delas levam ao corpo natural, sem as contaminações sociais e
culturais? Qual delas pode ser considerada a melhor para voltar ao corpo em seu
estado natural, sendo que cada uma delas tem seu fundamento técnico,
filosófico, experimental e oferece resultados importantes para o
desenvolvimento e conhecimento do corpo humano?
18
O fantasma da máquina, doutrina elaborada por Descartes, pontua a
divisão entre corpo e mente, conhecida como dualismo cartesiano. Nessa
concepção, corpo e mente se diferenciam, pois a mente é indivisível, mas o
corpo pode ser compreendido em partes. O corpo tem extensão corpórea e a
mente não. O corpo consiste em instrumento de expressão da alma. Como
coloca Pinker, “Descartes rejeita a idéia de a mente poder ser operada por
princípios físicos” (Pinker, 2002: 9)20.
De imediato, a influência dessa concepção é flagrante no sistema
elaborado por Stanislavski. Nitidamente, seu método separa o trabalho interno
do ator (mental), predominante na primeira fase de sua pesquisa (Linhas de
forças motivas21 1897-1918) e o trabalho externo (corporal), sistematizado no
Método das ações físicas (1918-1938). Como nos apresenta Bonfitto, o Método
das ações físicas reorienta a utilização do método das Linhas de forças motivas,
uma vez que será a ação física a isca para a construção dos processos interiores
do ator. Isso implica um novo entrelaçamento entre ação interior e exterior, “o
conceito de ação física envolve tanto as ações executadas exteriormente quanto
as ações internas desencadeadas pelas primeiras. A ação exterior alcança seu
significado e intensidades interiores através do sentimento interior e este último
encontra sua expressão em termos físicos” (Bonfitto, 2002:26).
A partir dessa explicação, as emoções, os sentimentos, a memória e os
pensamentos continuam na esfera do mental, sem materialidade, tal como
pensou Descartes. Isso implica a compreensão do trabalho corporal como um
aflorar das potencialidades criativas e expressivas do corpo e este, por sua vez,
como instrumento a ser afinado para expressar a ação interior e responder a ela.
A ação interior motiva, impulsiona e gera a ação exterior, como uma relação de
causa e efeito, sendo que a ação exterior também influencia a ação interior. Mais
20 Descartes rejected the idea that the mind could operate by physical principles. 21 Linhas das forças motivas é a denominação dada à primeira fase do método sistematizado por Stanislavski, no período da fundação do Teatro de Arte de Moscou (1897) até 1918, com o trabalho junto ao Estúdio de Ópera do Teatro Bolshoi. A partir dessa experiência com o Estúdio de Ópera, Stanislavski deu início à sistematização do Método das ações físicas, que se estendeu até o ano de sua morte em 1938 (Bonfitto, 2002).
19
ainda, o corpo constitui um instrumento do ator para expressar o invisível:
sonhos, imagens, emoções, a alma. Em outras palavras, a expressão do corpo
constitui a manifestação da alma. Essas, entre outras, são algumas influências do
pensamento dualista nas análises das metodologias do fazer teatral.
A compreensão do processo de criação do ator está impregnada dessas
noções. Parece que não temos como fugir delas para compreender esse processo
enquanto a principal pergunta (nos estudos da área) girar em torno dos temas: na
criação do ator, o que pertence à criação da mente e o que pertence à criação do
corpo? Como uma coisa interfere na outra? Qual é a mais importante? Qual é a
“determinante” para a criação?
Embora Azevedo observe que “os trabalhos corporais pesquisados têm,
quase todos, a mesma tônica: a procura de uma contínua relação corpo-mente”
(Azevedo, 2002: XXII), as metodologias ainda compreendem o corpo e a mente
como processamentos separados. Assim, o movimento pelo movimento, sem a
presença do universo interior do ator é pura forma e o universo interior sem o
canal de expressão do corpo é puro caos ou um corpo inapto ao teatro ou
expressão cênica. O treinamento interior relaciona-se com a interpretação,
aquela que dará conteúdo a forma e o treinamento exterior relaciona-se com o
corpo para ensiná-lo a expressar o conteúdo interior. A emoção mobiliza a ação
do ator, enquanto a razão tolhe sua criatividade e espontaneidade. Enfim, o
dualismo de substância, corpo e mente, desdobra-se em inúmeras outras
dicotomias.
Se as técnicas corporais enfocam a continuidade entre corpo e mente, os
estudos científicos e filosóficos que vêm sendo realizados sobre essa questão
pelos cientistas cognitivos selecionados para esta pesquisa podem contribuir
para esclarecer essa interface, uma vez que a questão está sendo estudada
também por intermédio de protocolos científicos.
Sob os parâmetros das Ciências Cognitivas, não cabe mais compreender a
experiência e o conhecimento como cumulativos e/ou estáticos e/ou naturais,
20
pois, por exemplo, a repetição de um gesto ou de uma fala ou de uma ação
requer circuitos neuroniais não exigidos por gestos, falas ou ações realizados ou
criados espontaneamente (Ramachandran & Blakeslee22, 2002). Não cabe mais
pensar a mente separada do corpo, ou seja, não há operação mental que comanda
o corpo nem a mente é independente e autônoma em relação aos acontecimentos
do corpo. Cientifica e filosoficamente, tem-se demonstrado que o fenômeno
mental é corporal e está indissociavelmente relacionado ao sistema sensório-
motor (Damásio, 2003; George Lakoff23 e Mark Johnson24, 1999; Alain
Berthoz, 2003 e 2001).
São essas as pontes pretendidas nesta tese para cercar os argumentos que a
fundamentam. Desenvolver as questões propostas requer novos parâmetros
filosóficos e científicos, novas hipóteses sobre o corpo e sobre processos
comunicacionais, como, por exemplo, compreender o corpo como mídia de
comunicação, o que exige uma abordagem interdisciplinar e interteórica mais
complexa (Helena Katz & Christine Greiner25, 2001).
Evidentemente, para tratar ações orgânicas como processos de comunicação, precisam ser arrebanhados conceitos como informação, signo, mídia, representação, evolução, entre outros, numa espécie de coquetel científico distante dos usos metafóricos dessa terminologia. E com eles pensar o corpo como sendo um contínuo entre o mental, o neuronal, o carnal e o ambiental. Como pensar em corpo sem ambiente se ambos são desenvolvidos em co-dependência? (Katz & Greiner, 2001:89)
No caso da arte do ator, estamos tratando do ambiente complexo e
hiperpovoado de signos do corpo. O corpo do ator não é apenas uma construção
simbólica na qual se desenha, se veste e se maquia um personagem e sua ação
22 Vilayanur S. Ramachandran (1955- ), Ph.D. pela Universidade de Cambridge, diretor do Center for Brain and Cognition e professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Neurociências da Universidade da Califórnia. Professor adjunto de Biologia no Instituto Salk. 23 George Lakoff (1949- )é professor de linguística na Universidade da Califôrnia, Berkley, e co-autor com Mark Johnson de Metáforas da vida cotidiana. 24 Mark Johnson (1949- ) é professor e chefe do departamento de filosofia da Universidade de Oregon. Co-autor com George Lakoff do livro Metáforas da vida cotidiana. É autor de The body in the mind e Moral imagination e foi editor da antologia Philosophical perspectives on metaphors. 25 As professoras doutoras Christine Greiner e Helena Katz desenvolvem o projeto de formulação do conceito de corpomídia no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.
21
para significar algo. Trata-se de um corpo humano apto a conhecer, interagir
com o mundo e produzir imagens, relações e pensamentos, cujo desenho teatral,
o figurino, a maquiagem e a ação do personagem enfatizam um modo de o ator
estar no mundo ao compreender e criar aquele personagem naquele contexto da
ficção teatral.
Conforme observado, o processo de criação do clown particulariza-se por
enfocar o corpo do ator. O clown caracteriza-se pelo seu modo ingênuo (estado
de curiosidade em que os acontecimentos parecem ser sempre novos e
inusitados); pelo seu modo frágil (estado de abertura, disponibilidade e
vulnerabilidade para interação com os acontecimentos externos e internos na
relação com o ambiente) e por um estado quase permanente de alegria e prazer.
A ingenuidade, a fragilidade e a alegria são seu modo de estar no mundo.
Essas qualidades repercutem, por sua vez, no seu modo de agir,
caracterizado pela ação espontânea e pela reação física e afetiva na interação
com o ambiente. O clown manifesta a interação entre os modos de estar
(ingenuidade, fragilidade e alegria) e de se relacionar (jogo e ação espontânea)
com o ambiente-mundo.
Trata-se de um treinamento das habilidades perceptivas, da
disponibilidade, da ação espontânea, do jogo e da improvisação. O treinamento
do clown constitui um poderoso instrumento de criação e pesquisa em
improvisação. Mais que uma descrição de procedimentos ou criação de um
repertório, o treinamento é formado por um conjunto de atividades integradas,
enfocando o desenvolvimento da presença cênica, da disponibilidade, do jogo e
das relações estabelecidas em cena e com a platéia. Essa metodologia implica
questionamentos sobre o entendimento de corpo. Não é mais suficiente um
corpo que saiba repetir com eficácia uma instrução. Nesse treinamento, exige-se
um corpo que saiba articular e desarticular seus hábitos e padrões de movimento
conforme a exigência da relação com o ambiente: modos de estar, perceber e
agir.
22
O primeiro capítulo desta tese enfocará a questão da improvisação no
teatro e no treinamento do clown. Buscar-se-á uma reflexão histórica dos
entendimentos e usos da improvisação, sobretudo no século XX, com o objetivo
de mapear as indagações que acompanham o pensar e fazer a improvisação.
Nesse percurso, identificou-se como a improvisação obteve novos contornos de
entendimento e metodologia quando o corpo ganhou foco nos processos de
encenação modernos e contemporâneos. Esse fato permite vincular algumas
características da improvisação aos estudos específicos dos processos cognitivos
da relação do corpo com o ambiente e da consciência em António Damásio. A
questão da ação espontânea, tão discutida na improvisação, ganha uma outra
explicação por meio dos estudos de V. S. Ramachandran. As pesquisas
desenvolvidas por Alain Berthoz auxiliam a compreensão da relação entre
percepção e ação. E, finalmente, com Andy Clark podemos compreender o jogo
e a improvisação como tecnologia cognitiva.
Aborda-se a questão do jogo, analisando a metodologia de Viola Spolin26
(1906-1994). Para o treinamento, a criação e a ação do clown (o clown tem o
jogo como modo de comunicação com seu público), o jogo constitui um foco de
discussão imprescindível. Como o corpo desenvolve essa habilidade? Quais as
matérias de jogo para um clown?
No segundo capítulo, é realizada a descrição, análise e reflexão da
metodologia de treinamento do clown e da improvisação de Cristiane Paoli-
Quito27. A escolha dessa metodologia deve-se a duas razões: 1) desde 1998
26 Viola Spolin (1906-1994) conhecida pela sistematização do teatro improvisacional, é ponto de referência para estudiosos da improvisação e do jogo bem como para arte educação em teatro. 27 Cristiane Paoli-Quito (1960- ) é diretora da Cia. Nova Dança Quatro desde 1996, ministra curso de clown, interpretação e improvisação dança teatro no Estúdio Nova Dança em São Paulo desde 1995. Atualmente é diretora e professora da Escola de Arte Dramática (USP). Sua carreira artística data de 1977 como atriz e, a partir de 1985, como diretora. Sua formação percorreu os conhecimentos da commedia dell’ arte, teatro de animação, máscara neutra e máscara dramática, o método de Viola Spolin de improvisação para teatro, jogos teatrais e clown. Fez cursos com Philippe Gaullier, Beth Lopes, Francesco Zigrino, Maria Helena Lopes, entre outros. Desde 1991, ministra treinamentos de clown e jogos teatrais, a partir dos quais criou seu próprio método de preparação do ator por meio da improvisação. A partir de 1996, associou-se a Tica Lemos, uma das introdutoras da técnica de dança do Contato Improvisação no Brasil, e com ela cria a Cia. Nova Dança 4 onde investigam a interrelação teatro e dança a partir da improvisação. Essa pesquisa vem sendo sistematizada nos cursos de Improvisação dança teatro no Estúdio Nova Dança. Como professoras convidadas na Escola de Arte Dramática
23
venho realizando cursos e workshops de clown por ela ministrados, além de
acompanhar outras atividades como Improvisação dança teatro e as disciplinas
oferecidas na PUC-SP, em 2001 e 2002 e 2) verifico na sua metodologia de
trabalho, fundada, especificamente, no princípio “Movimento – Imagem”, um
eixo teórico/prático que sistematiza um modo possível de conhecer e explorar a
incorporação e a produção de imagem do corpo em sua ação teatral.
Assim, nesse capítulo, são descritos os modos de desenvolver as
habilidades perceptivas que permitem ao ator perceber as mudanças físicas
trazidas pelo uso da máscara, as quais, por sua vez, possibilitam ao ator
experimentar um outro modo de estar no mundo, percebê-lo e interagir com ele..
Trata-se de uma metodologia em que jogo, fisicalidade, comicidade, ludicidade
qualificam o ambiente de pesquisa do clown. Averiguo como essa metodologia
pode gerar fisicamente um estado de presença e disponibilidade, essenciais ao
clown e à improvisação.
No terceiro capítulo, é apresentado o processo de criação do espetáculo
Um dia, uma banana..., que compõe junto com esta escrita o resultado deste
processo de pesquisa. Procuro retratar as intersecções que compuseram o
processo de criação do espetáculo, relacionando os aspectos do treinamento
realizado com Cristiane Paoli-Quito, os estudos desenvolvidos no curso de pós-
graduação e alguns elementos de minha história pessoal. Com esse capítulo,
reviso conclusivamente a hipótese desta tese e seus principais argumentos,
em São Paulo, desenvolveram o curso de Improvisação dança teatro, que resultou nos espetáculos de Movimento e imagem – dança teatro – improvisação Prelúdico para clowns e guitarra (1996) e Trinta e três (1998). Com a Cia. Nova Dança 4 encenou, em 1998, Miragens e SincrônicaCidade; em 1999, Águas de março sobre Lina Bo Bardi, Poetas ao Pé d’ouvido e Acordei pensando em bombas...; em 2000, Passeios; em 2001, com bolsa da Fundação Vitae, a Cia. estreou Palavra, a poética do movimento, recebendo em 2002 o Prêmio APCA – Concepção de dança. Em 2004 realizou o Projeto Entremeios, financiado pela Lei de fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo, no qual a Cia. estreou o espetáculo Vias expressas. Entre novembro de 2000 e março de 2001 realizou no Centro Cultural São Paulo a mostra Perspectiva Cristiane Paoli-Quito – um olhar em movimento, na qual remontou oito trabalhos ao longo dos últimos 10 anos de sua carreira como diretora. Em 1999, dirigiu o espetáculo Moby Dick, uma adaptação livre do romance de Herman Melville, com a Cia Circo Mínimo e Esperando Godot, de Samuel Beckett, com A Lírica Cia, premiada como melhor direção e melhor espetáculo no Festival de São José do Rio Preto em 2000. Em 2004, dirigiu o espetáculo Aldeotas, de Gero Camilo, que recebeu o Prêmio Shell 2004. Participou do FID 2000 - Festival Internacional de Dança /BH e Encontros Acarte – festival promovido pela Fundação Gulbenkian em Lisboa/ Portugal.
24
delineando também alguns procedimentos possíveis de construção do clown,
algumas características de sua ação e de sua dramaturgia a partir da
improvisação.
O desafio de entender o processo de criação do clown pode sugerir uma
nova hipótese para o treinamento do ator. Ou seja, o treinamento do ator
pressupõe a interação corpo e ambiente. A tão buscada espontaneidade e
naturalidade do personagem pode ser conquistada pelos exercícios, exposições e
envolvimento do corpo do ator no ambiente de pesquisa teatral desenvolvida,
seja ela o clown ou não. O treinamento, a criação e a execução de um
personagem constituem um modo de exercitar os fluxos de ação e os gestos
intimamente relacionados com as sensações e sentimentos (também em fluxo no
momento da ação) que ocorrem no corpo na relação com o ambiente de pesquisa
teatral. O treinamento e a experiência em cena constituem um exercício
constante de aprendizado (manipulação, domínio, construção, criação, crítica e
percepção) da linguagem teatral, como, por exemplo, o exercício da leitura e da
escrita tende a favorecer um melhor desempenho na linguagem verbal.
25
Capítulo 1
1. A URDIDURA DA IMPROVISAÇÃO E DO CORPO
1.1 Improvisação: características, qualidades, necessidades e
discussões.
Viver é melhor que sonhar, E eu sei que o amor é uma coisa boa, mas também sei que qualquer canto
é melhor do que a vida de qualquer pessoa. (António Carlos Belchior)
A improvisação constitui um ambiente de pesquisa de teatro propício à
hipótese desenvolvida nesta tese, uma vez que sua estrutura aberta permite que o
treinamento qualifique o ator no que respeita à percepção, à ação e ao jogo de
forma integrada à relação entre ambiente, corpo e a improvisação. Além disso, a
improvisação compõe uma das técnicas de atuação do clown. Entre outras
características, o clown é um improvisador (Lecoq, 1997, Paoli-Quito, 2000; Fo,
1998), o que implica habilidade para tornar-se um jogador, desenvolvendo o
sentido de cumplicidade, de atenção e de presença, para responder às
manifestações casuais que ocorram em determinado momento. “A arte da
improvisação, eu costumo dizer, é a arte de responder ao que lhe é dado, não
exatamente de ficar fazendo qualquer coisa, mas de estar o tempo inteiro
respondendo às necessidades do momento” (Paoli-Quito, 2000, entrevista
pessoal).
Em O ator compositor, Bonfitto (2002) aponta três modos de utilização da
improvisação no teatro. Ele denominou “espaço mental” o modo de
compreensão e utilização da improvisação em pesquisas do teatro
contemporâneo, como, por exemplo, as realizadas por Jerzy Grotowski e por
Peter Brook. Identifica a improvisação como “método” quando é utilizada para a
26
construção do espetáculo e dos personagens, tal como observa nos trabalhos de
Viola Spolin e na primeira fase do Thèâtre du Soleil dirigido por Arianne
Mnouchkine1. Um terceiro modo de utilização da improvisação designada por
“instrumento” respeita o uso da técnica para a construção de personagem
presente no texto (literário ou dramático) a ser encenado (Bonfitto, 2002).
A improvisação constitui uma técnica largamente utilizada no meio
teatral. Ela ganhou diferentes concepções e metodologias no decorrer da
história. Contudo, ainda paira sobre ela uma aura de incognoscibilidade, ou seja,
dado seu caráter imediato, espontâneo e instável, a improvisação parece ser uma
experiência pouco acessível a análise mais formalizada. Essas qualidades
conferem a ela ainda uma aparente falta de dramaturgia e contribuem com a
perpetuação do caráter depreciativo com que é vista no universo da arte
dramática. Some-se a isso o fato de que a improvisação é ainda pouco
investigada a partir da grade teórica que aplicamos nesta pesquisa. O que não
ocorre na dança, uma vez que a pesquisadora Cleide Martins (2002) realizou a
árdua tarefa de estudar a improvisação na dança, em tese de doutorado, fazendo
uso da Teoria Geral de Sistemas de Mário Bunge e de alguns pesquisadores da
linha dinamicista das Ciências Cognitivas, esclarecendo as características e a
organização da improvisação como técnica e linguagem estética.
Por essas razões, cabe aprofundar as reflexões acerca da improvisação:
sua história, seus usos, seus entendimentos, seus conceitos e preconceitos no
fazer teatral, sua metodologia e promover o seu refinamento como técnica e
como linguagem e, portanto, como estética teatral.
Na história da improvisação no teatro, é possível verificar que o fazer e o
pensar a improvisação foram ganhando contornos diferentes e mais consistentes
na mesma proporção que o corpo do ator foi sendo redimensionado em sua ação
criativa. Na improvisação, o corpo do ator constitui o eixo de construção da
dramaturgia e da comunicação. Essa qualidade demanda uma especificidade do 1 Arianne Mnouchkine (1939-), fundadora, em 1964, e diretora do Théâtre du Soleil, em Paris.
27
treinamento do ator. Um olhar voltado ao corpo no processo de conhecimento e
construção do personagem, cuja largada foi dada pelo Método das ações físicas
de Stanislavski, por volta de 1918, abriu caminho para que a idéia de um corpo
comandado por uma mente fosse dando lugar à idéia de um corpo integrado à
mente (Azevedo, 2002). E finalmente, nos dias de hoje, já é possível
compreender o corpo não apartado da mente e entender que sua experimentação
deflagra processos cognitivos de incorporação do conhecimento. Essas
afirmativas são consideradas à luz dos estudos provenientes das Ciências
Cognitivas, que enfocam o corpo como a construção no trâmite da relação com o
ambiente. Sob essa perspectiva, a improvisação pode ser apresentada em um
novo relevo que embasa as suas metodologias de treinamento e qualifica as suas
concepções.
Atualmente, podemos encontrar um exemplo dessa preocupação no relato
de Oida2,
Algumas vezes descobrimos essa atuação natural através de uma investigação psicológica. [...] Mas isso nem sempre funciona, já que a trajetória emocional da pesquisa é dificultosa e às vezes enganosa. Um ator precisa de métodos que produzam uma interpretação humana convicente todas as noites, independente do que esteja sentindo (Oida, 2001: 94)
Nessa perspectiva, torna-se possível realocar a questão do conhecimento
e, portanto, questionar “como o corpo conhece?” Esse aspecto vem sendo
intensamente pesquisado e discutido nas Ciências Cognitivas desde 1950. Para
esta tese, serão estudados os pesquisadores António Damásio (2003, 2000 e
1995), Alain Berthoz, (2003 e 2001), Andy Clark (2001 e 1997) e
Ramachandran (2002 e 1999), cuja hipótese para essa questão confere ao corpo
e ao ambiente, em relação contínua, os processos de conhecimento (como e o
que se conhece). Nesta tese, a história da improvisação busca reconstituir as
2 Yoshi Oida (1933- ) é ator, formado pela escola de Artes tradicionais do Japão. Desde 1968, integra o Centre Internationel de Creation Théâtrale, dirigido por Peter Brook em Paris. Atua também como diretor desde 1974.
28
questões que ela suscita, destacando-as conjuntamente aos aspectos processuais
da incorporação do conhecimento no corpo como uma nova base para a
compreensão da improvisação.
Neste sentido, será analisado na tese escrita e apresentado em espetáculo o
modo de ação do corpo do ator no ambiente específico da improvisação teatral
com o clown. À luz das pesquisas das Ciências Cognitivas, será discutido como
ação espontânea, consciência, emoções e sentimentos, fluxos de imagens,
componentes da relação entre o ambiente corpo e o ambiente mundo,
configuram-se numa improvisação teatral e como contaminam o processo de
treinamento e composição de um espetáculo, qualificando uma metodologia e
uma dramaturgia apropriada à improvisação. Como o corpo e o ambiente
estabelecem um estado contínuo de comunicação? Como esse estado de
comunicabilidade conduz a construção da dramaturgia do clown na
improvisação? Pretende-se mapear alguns aspectos constitutivos dessa relação,
atentando, na medida do possível, para a complexidade dessa rede de relações.
Assim, serão identificados alguns nós que formam essa rede, sem a pretensão de
desenhá-la completamente. Mapear não é reconstituir o território.
O primeiro momento será dedicado a identificar algumas possíveis razões
pelas quais a improvisação foi subestimada no meio teatral. No segundo
momento, pretende-se mapear os questionamentos que acompanham a prática
improvisacional no decorrer do século XX e, concomitantemente, caracterizar a
improvisação como um ambiente de pesquisa de linguagem teatral e visualizar
as possíveis relações comunicativas que se configuram entre esse ambiente e o
corpo do ator.
Historicamente, a improvisação no teatro foi conceituada como uma
manifestação espontânea e informal, originária dos rituais e festas populares. A
partir dessas manifestações, os dramaturgos deram início à formalização dos
elementos dos rituais e das festas em texto e ação dramática, configurando a
tragédia e a comédia em textos dramatúrgicos (Chacra, 1991). Trata-se de uma
29
concepção na qual a improvisação – considerada como expressões espontâneas,
informais, momentâneas e desprovidas de forma – gradualmente alcança a
formalização no texto dramático. Valoriza-se, nesse sentido, o caráter superior
da linguagem teatral estruturada e formalizada no texto dramático em detrimento
à linguagem estruturada na improvisação.
O caráter da momentaniedade da improvisação, sua incerteza e desamparo levam os homens de teatro a se empenharem em obter conteúdos mais estruturados, procederem à seleção de elementos cênicos e formarem os alicerces de um teatro formalizado (Chacra, 1991:25)
Originária da Grécia antiga, essa concepção pejorativa da improvisação e
dos rituais e festas populares percorre os séculos, provoca preconceitos e,
possivelmente, dela deriva o pouco conhecimento que se desenvolveu acerca da
improvisação. Configura-se nesse debate a dualidade entre o pensado, o
elaborado, o artístico da linguagem teatral formalizada no texto dramático
versus o espontâneo, o momentâneo, o pré-artístico da improvisação. Um objeto
com tais características não pode encontrar respaldo teórico nos modelos
filosóficos e científicos de cunho dualista que separam razão e emoção, teoria e
prática (e outros binômios), sobrevalorizando um dos aspectos do par em
prejuízo do outro. Assim, não é possível a construção de um pensamento teórico
e estético sobre ela, como, por exemplo, a tragédia grega, que encontra um
interlocutor na Poética, de Aristóteles. Nesse sentido, recai sobre a
improvisação a pré-concepção de ela se configurar como arte menor diante do
teatro formalizado no texto literário dramático.
Cabe notar que a improvisação e a comédia ganharão estatuto de arte com
o advento da Commedia dell’arte, por volta do século XVI, na Itália. Na
expressão Commedia dell’arte, o termo arte está ligado a “ofício”, tal como as
corporações e associações de inventores e artesãos do período (Fo, 1998). Para
30
demonstrar as concepções valorativas do teatro formalizado no texto teatral
encontramos em Dario Fo a seguinte reflexão:
Um respeitável estudioso inglês, Nicoll, afirma que o termo “arte” tem o mesmo sentido de “qualidade”, sendo assim, dell’arte significa “da maestria”. Benedetto Croce, ao contrário, está de acordo com a origem corporativa, mas somente com o objetivo de demonstrar que os cômicos da comédia italiana, apesar de hábeis histriões e mímicos engraçadíssimos, não eram artistas, e sim pessoas de ofício, pois não se percebe a presença de um autor genial (Fo, 1998: 21).
Evidentemente, Croce valoriza o teatro realizado a partir do texto
literário-dramatúrgico, da linguagem verbal. Ampliando a perspectiva do
trabalho do ator para além da linguagem verbal e observando as técnicas
utilizadas na Commedia dell’arte, destaca-se esta arte como grande
revolucionária do gênero teatral em sua época. Os cômicos possuíam uma bagagem incalculável de situações diálogos, gags, lengalengas, ladainhas, todas arquivadas na memória [...]. Era uma bagagem construída e assimilada com a prática de infinitas réplicas, de diferentes espetáculos, situações acontecidas também no contato com o público, mas a grande maioria era, certamente, fruto de exercício e estudo (Fo, 1998: 17).
E ainda,
A Commedia dell’ arte se baseia na combinação de diálogo e ação, monólogo falado e gesto executado, e nunca unicamente na pantomima. Somente cambalhotas, dancinhas, caretas e gestos, as máscaras não são capazes de segurar uma cena, ao contrário do que supõe Croce (Fo, 1998: 22).
Embora restrita atualmente a poucos grupos, a Commedia dell’arte deixa
a sua herança ao redimensionar e revalorizar a questão da improvisação no
teatro, tanto no que respeita a necessidade de treinamento do ator para a
improvisação quanto à improvisação como uma possibilidade de estética teatral.
31
Da Commedia dell’arte, vale ressaltar: a roteirização das ações,
canovaccio3, sobre a qual o ator se lançava para improvisar, orientando sua ação
em cena; e a valorização do trabalho do ator e seu treinamento técnico corporal
bastante especializado, com o uso de acrobacias, trabalho vocal, mímica e
música. Não se tratava de “atores improvisados”(Chacra, 1991; Machado,
2000).
O caráter espontâneo e a vitalidade trazida pela improvisação serão foco
de atenção do fazer teatral moderno e contemporâneo, seja como recurso de
criação (improvisação como “método” e “instrumento”), seja como um modo de
ação na representação teatral (improvisação como “espaço mental”) (Chacra,
1991; Bonfitto, 2002). A improvisação como “espaço mental” sobressai quando,
nos anos 70 e 80 do século XX, os núcleos de pesquisa teatral questionam a
primazia do texto dramático no fazer teatral, ganhando maior atenção o trabalho
sobre o ator.
Constantin Stanislavski (1863-1938) representa um importante marco na
história do teatro no século XX, uma vez que dedicou seus estudos e pesquisas à
sistematização de um método para o ator. Foi com base no seu sistema que
muitos diretores e atores contemporâneos realizaram sua formação. Seu método
como um todo, seja a primeira fase (Linhas de forças motivas), seja a segunda
(Método das ações físicas), está voltado, prioritariamente, para orientar a
formação do ator e a criação do personagem de acordo com um texto dramático
a ser encenado. Sendo este seu foco de pesquisa, a improvisação em seu sistema
constituía um recurso para compreensão da peça e para a pesquisa e construção
do personagem. Conforme Bonfitto (2002), seria a utilização da improvisação
como instrumento.
Na obra de Stanislavski, não há uma preocupação explícita em discutir a
questão da improvisação, embora a sua convicção fosse de que “quanto mais os
3 Canovaccios ou cavenas: roteiro de uma peça de improvisação, uma espécie de resumo da intriga, do jogo de cena e efeitos especiais (Pavis, 2001).
32
atores aprendessem a improvisar cenas que não estão no texto, mais eles
conseguiriam acreditar na realidade humana dos personagens e das situações que
eles representavam” (Brook, 2000: 150).
No capítulo “Adaptação”, de A preparação do ator, podemos traçar
algumas correspondências com improvisação: De agora em diante usaremos essa palavra, adaptação, para significar tanto os meios humanos internos quanto externos que as pessoas usam para se ajustarem umas às outras, numa variedade de relações e, também, como auxílio para afetar um objeto. [...] é uma expessão viva de sentimentos ou pensamentos interiores (Stanilavsky, 1989: 240)
A adaptação em Stanislavski constitui uma reação constante, adequada e
ajustada à circunstâncias sugeridas e/ou aos objetivos a serem alcançados e/ou
às necessidades do momento, tanto quanto, no dia-a-dia, cada qual se adapta às
suas necessidade e ou objetivos imediatos.
Se nas situações mais comuns da vida cotidiana as pessoas precisam e usam de uma grande variedade de adaptações, nós, atores, precisamos de um número proporcionalmente maior, pois temos de estar sempre em contato uns com os outros e, portanto, em incessantes ajustamentos (Stanilavski, 1989: 243)
Atualmente, pode-se dizer que não se trata de uma questão quantitativa,
ou seja, quanto mais adaptações melhor, mas um modo qualitativo de o corpo
permanecer no espaço, isto é, processos adaptativos são contínuos e necessários
e, para a improvisação, o diferencial encontra-se na habilidade de o ator
perceber a maneira como o corpo se relaciona com o ambiente.
Stanislavski pontua ainda que a força de um ajustamento reside na sua
imprevisibilidade e em sua origem no subconsciente. “As adaptações mais
poderosas, vívidas e convincentes são fruto dessa artista que faz maravilhas: a
natureza. São de origem quase que de todo subconsciente” (Stanislavski, 1989:
249).
33
Essa concepção aproxima-se do que entendemos por uma ação de
improvisação: um estado de percepção e prontidão que integra o ator aos
acontecimentos imediatos da cena e o torna apto a distinguir o jogo, o foco, os
objetivos e/ou as necessidades do momento e assim interagir ajustadamente.
Trata-se, pois, de uma resposta orgânica e viva na medida em que ocorre de
acordo com a integração e a interação do ator e da cena, seja numa cena pré-
organizada no texto dramático, seja numa cena que se organiza no próprio fazer,
cuja base é a da improvisação.
É interessante notar como Stanislavski sempre recorre às leis orgânicas da
natureza, tal como ele as denomina, para fundamentar o trabalho do ator. Elas
constituem um dos princípios de seus ensinamentos. Stanislavski parte do
pressuposto de que as bases orgânicas das leis da natureza e as experiências
vivas do ser humano e do próprio ator são as matérias que alicerçam esse
trabalho. São, portanto, as responsáveis pela construção de um personagem que,
artisticamente, pode reproduzir aspectos mais sutis e profundos da vida humana.
Abstemo-nos de interferir com a natureza e evitamos desobedecer às suas leis. Sempre que conseguimos nos pôr num estado plenamente natural e descontraído, ergue-se dentro de nós um fluxo criador que ofusca com seu brilho o nosso público (Stanislavski, 1989: 254).
Sendo essas as matérias de trabalho, a metodologia de Stanislavski traçará
os caminhos que o ator pode seguir para conhecê-las e utilizá-las, sobretudo, no
que diz respeito aos sentimentos e às emoções. Um dos objetivos do seu sistema
é que o ator aja com a mesma naturalidade que um cidadão comum agiria em
determinadas circunstâncias. Daí a forte recorrência às emoções e aos
sentimentos, não com o intuito de criá-los ou dominá-los mas de saber que ali
está a origem de uma ação ajustada.
Atualmente, os estudos de António Damásio permitem despontar algumas
possíveis leis da natureza que ajudam a compreender a plausibilidade dos
princípios relativos aos sentimentos e às emoções encontrados em Stanislavski.
34
Vejamos sinteticamente como, para Damásio, as emoções e os
sentimentos constituem o primeiro modo de ação do organismo na relação com
o seu ambiente. As emoções e os sentimentos constituem as funções básicas de
sobrevivência de organismos dotados destes mecanismos. Em linhas gerais, na
relação entre organismo e mundo, as emoções vinculam o objeto ou situação
vivida à regulação homeostática (regulação interna do organismo), responsável
pela preparação do corpo para a reação emocional ajustada à experiência
(afastar-se, ficar feliz, aproximar-se, sentir dor ou prazer).
O sentimento vem depois da emoção e é por ela gerado, constituindo uma
experiência não compartilhável do organismo, enquanto a emoção pode e é
expressa no teatro do corpo. Emoções geram transformações nos estados
corporais e também são geradas por eles. E os sentimentos são o que o
organismo experimenta (dor ou prazer), fruto dessa emoção. Segundo Damásio,
o sentimento é, possivelmente, a representação do mapa cerebral que, por sua
vez, será a representação da paisagem corporal, ou seja, do estado do corpo, da
emoção.
A homeostasia constitui um estado contínuo de estabilidade do
organismo. A possibilidade de conhecer consiste no efeito que o objeto a ser
conhecido (interno ou externo) exerce sobre o sistema que regula o controle
homeostático, desestabilizando o organismo e, a um só tempo, reorganizando-o
como se fosse uma função “termostática”. A continuidade do estado de
estabilidade é que permite ao organismo constituir interações mais complexas
com o mundo, uma vez que os mecanismos de estabilização do organismo
atuam constantemente.
Esses procedimentos implicam um mecanismo complexo e contínuo de
funcionamento do cérebro no qual este traça continuamente um mapa de
representação do corpo. O organismo empenha-se em relacionar-se com o objeto
e este, por seu lado, gera mudanças no organismo. Assim, a tarefa do cérebro
consiste em mapear o organismo, mapear o objeto e mapear a relação entre eles.
35
Ou seja, o cérebro é constantemente informado sobre os estados do corpo por
meio do sistema sômato sensitivo (interoceptivo, proprioceptivo e tato
descriminativo4), que transmite suas informações por meio da corrente
sanguínea ou via neural. Os estados do corpo constituem os mapas neurais5
emergentes das relações interna e externa do corpo. Os mapas neurais não são
percebidos pelo seu produtor. O objeto (interno ou externo) é representado no
cérebro e
o resultado desses comandos é uma mudança global no estado do organismo. Os órgãos que recebem os comandos mudam em conseqüência destes, e os músculos [...] movem-se conforme lhes foi ordenado. Mas o próprio cérebro sofre uma mudança igualmente notável. A liberação de substâncias [...] altera o modo de processamento de inúmeros outros circuitos cerebrais, desencadeia certos comportamentos específicos e modifica a sinalização de estados corporais para o cérebro (Damásio, 2000: 95).
Como vemos, o intrincado mecanismo no qual principiam os processos da
consciência depende das reações emocionais, da capacidade de sentir e da
capacidade de saber que se está sentindo. O cérebro representa a relação do
organismo com o objeto, na medida em que o objeto gera mudanças de estado
no organismo juntamente com os objetos evocados por essa reação do
organismo. As emoções e os sentimentos são as primeiras sinalizações passíveis
de serem conhecidas pelo corpo que as produziu e constituem estados que
orientam a ação do organismo no meio. É a partir das emoções e sentimentos
que o organismo age no mundo.
4 Interoceptivas são as sinalizações advindas do meio interno e das vísceras e estão incumbidas de perceber as mudanças no meio químico das células de todo o corpo. Proprioceptivas ou cinestésicas são as sinalizações advindas do sistemas muscular e esquelético e do sistema vestibular (mapeia o corpo no espaço). Tato descriminativo comunica sensações advindas da pele (tato, olfato, paladar, visão, audição). 5 Mapas neurais é o nome dado à formação das redes sinápticas de neurônios acionados que representam algum estado do corpo. As imagens mentais correspondem a um momento além dos mapas neurais no qual estes, conjuntamente, constituem uma imagem mental que, por sua vez, pode vir a ser conhecida por seu produtor. Ou seja, não temos acesso à formação das redes neurais e o menor controle sobre os desencadeamentos possíveis dessas redes, que só aparecem a nós como imagens mentais.
36
Para um organismo dotado de sentimento (padrões sensoriais indicativos
de dor, prazer e emoções), as emoções impactam a mente. E para um organismo
dotado de consciência (saber que está sentindo – dor ou prazer e emoção–, ter a
percepção das reações corporais da emoção), as emoções influenciam os modos
de pensamento. Nessa perspectiva, é possível compreender por que as emoções
e os sentimentos não estão fora do conhecimento, não o atrapalham e, muito
pelo contrário, são fundamentais para sua formulação.
Compreendendo o processo de criação artística como uma forma de
conhecimento, podemos observar que a emoção e o sentimento não são
privilégios do fazer artístico e a formulação de conhecimento não é privilégio do
fazer científico. Fazer arte e fazer ciência implicam processos de emoção, de
sentimento e de conhecimento.
Stanislavski percebeu a importância das emoções e dos sentimentos
porque o corpo reage, percebe e age com base nesses primeiros modos de ação
do corpo. Eles qualificam uma ação ajustada, portanto, espontânea e viva,
diferente de uma ação automatizada, como os carimbos, os clichês e os
estereótipos. Este ponto de vista acerca das emoções e dos sentimentos permite
entender que o corpo humano não é apenas uma construção simbólica instruída
pela cultura, mas um complexo processador cuja natureza o habilita a conhecer,
interagir com o mundo e produzir imagens, relações e pensamentos.
Na improvisação, não será menos importante a questão das emoções e dos
sentimentos. Fundamentando-se nessa concepção de Damásio, as emoções e os
sentimentos geram ações ajustadas à demanda do momento, ou seja, cabe ao
ator, na improvisação, aguçar sua percepção interna e externa para os
sentimentos e as emoções, para as sensações e os pensamentos que tem e
consegue perceber de acordo com a ação que realiza. Em outras palavras, temos
aqui uma possível qualificação para a chamada presença cênica: um estado de
percepção atento aos acontecimentos externos e internos, donde, então, a ação
37
realizada vem preenchida dos ajustamentos internos e externos e não
reproduzida automaticamente.
Se Stanislavski não apresenta em seus escritos uma preocupação explícita
com a improvisação, o mesmo não se pode dizer de seus herdeiros nas pesquisas
realizadas a partir da exploração do Método das ações físicas.
Entre as décadas de 1950 e 1960, as reflexões de Michael Chekhov6 e
Eugênio Kusnet7, já evidenciam algumas questões relativas à improvisação que
ainda hoje constituem o modus operandi dessa técnica. No Método das ações
físicas, por exemplo, as improvisações baseiam-se nos acontecimentos da peça,
construindo e compreendendo a cena, o personagem e a ação na prática de sua
realização. O objetivo da improvisação não é buscar as emoções e os
sentimentos do personagem, mas a sua ação e os recursos para alcançar o seu
objetivo/necessidade em cena. “As emoções virão como conseqüência natural de
uma ação certa” (Kusnet, 1992:104).
Nesses estudos, podemos identificar que as qualidades necessárias ao ator
para a improvisação são: a disponibilidade, a observação, a percepção, a
receptividade, o estado de atenção e a espontaneidade. Um fator fundamental
para a improvisação em grupo, já pontuado por Chekhov, consiste no processo
de conexão e interação entre os atores.
Uma pequena indicação de um parceiro – um olhar, uma pausa, uma entonação nova ou inesperada, um movimento, um suspiro ou mesmo uma mudança quase imperceptível de ritmo – pode converter-se num impuloso criativo, num convite aos outros para que improvisem. (Chekhov, 1953:45).
6 Michael Chekhov (1891-1955), ator, diretor e professor do Segundo Teatro de Arte de Moscou, foi responsável pela introdução do método de Stanislavski na Europa e nos Estados Unidos. Em 1952, publicou o livro Para o ator. 7 Eugênio Kusnet (1898-1975) nasceu na Estônia e iniciou sua formação artística na Rússia pré-revolução. Chegou ao Brasil em 1927. Em 1951, juntamente com Ziembinski, trabalhou como ator no Teatro Brasileiro de Comédia. Profundo estudioso e conhecedor do Método de Stanislavski, foi responsável pela formação dos atores do Teatro Arena e do Teatro Oficina nesse método. Em Ator e método, Kusnet sintetiza seus conhecimentos e reflexões sobre o método de Stanislavski bem como apresenta seus principais procedimentos como professor desse sistema.
38
Vale ressaltar que as qualidades necessárias ao ator desenvolvidas pela
improvisação não são prioridades do ator/improvisador, mas do ator de teatro.
Mesmo num espetáculo estruturado, essas qualidades da ação do ator são
fundamentais para a vitalidade da cena e do espetáculo. Como veremos mais
adiante, elas permitem ao ator perceber seus padrões de movimento e de ação e
compreender o que está se cristalizando ou mecanizando para, então, destituir os
automatismos. Por essa razão, a improvisação é e foi recurso muito explorado
para o treinamento do ator em vários outros métodos e em pesquisa de
linguagem.
A improvisação constitui-se de uma organização aberta da seqüência de
ações, mas não de uma ação arbitrária e desprovida de limitações, comumente
conhecida pelo “fazer qualquer coisa”. A roteirização das ações ou estrutura do
jogo dramático ou o canovaccio, como veremos mais adiante, apontam para o
fato de que a improvisação não é uma ação completamente livre e privada de
critérios. Não se improvisa do nada, não somente porque o corpo do ator se
depara com um roteiro de ações ou uma estrutura de jogo dramático ou um
canovaccio, mas porque esse corpo (como qualquer outro) uma vez disposto ao
improviso não se constitui como uma tábula rasa, como foi pontuado na
introdução (p.15).
A roteirização das ações ou a estrutura do jogo dramático ou o canovaccio
são formas diferentes de nomear uma delimitação para a improvisação. Tanto
para uma improvisação individual quanto coletiva, é necessário definir um
começo e um fim para a improvisação na qual, preferencialmente, o fim
contraste com o começo (Chekhov, 1953). Essa pequena regra permite ao ator
não se perder, na medida em que possui um objetivo a ser atingido.
39
Dario Fo8, em Manual mínimo do ator, descreve, nos exercícios de
improvisação, uma estrutura de jogo dramático que enfoca a necessidade de se
criar um conflito e de a história dar reviravoltas, surpreendendo constantemente,
mantendo vivo o jogo, criando a expectativa do desenlace.
O roteiro de ações e o canovaccio da Commedia dell’arte constituem
também formas de delimitação da improvisação. Na metodologia de
improvisação de Paoli-Quito, por exemplo, ela enfatiza, no aprendizado da
Commedia dell’ arte, a utilização do canovaccio – como recurso que orienta e
alinhava a leitura e a realização de uma improvisação. “Por isso que a
Commedia dell’ arte foi fundamental; eu aprendi a improvisar e a roteirizar uma
dramaturgia cênica” (Paoli-Quito, 2000). O roteiro das ações segue, de maneira
geral, a seguinte estrutura:
1. Apresentação dos personagens e do lugar da ação.
2. Apresentação das relações entre esses personagens.
3. Desenvolvimento dos conflitos dessas relações.
4. Desenlace.
Cabe compreender que esse roteiro de ações não constitui
necessariamente uma história seqüencial. Ele se compõe de poucos elementos
para orientar a ação do ator, ou seja, uma estrutura mais ampla de um modo de
organização da relação dos corpos no espaço, no caso, o espaço cênico.
Preencher essa estrutura com ações, jogo, entusiasmo, vida, alegria é a tarefa do
trabalho do ator improvisador.
Como já apontamos, o corpo do ator, como qualquer outro corpo, não é
uma tábula rasa, o que implica compreender que o corpo se encontra em
constante fluxo de troca e de comunicação consigo mesmo e com o ambiente
externo a ele (Damásio, 2000; Berthoz, 2003). Dificilmente, esse corpo
8 Dario Fo (1926- ) ator, mímico, diretor e produtor teatral italiano. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1997. Em 1959, funda com sua esposa a Cia Dario Fo – Franca Rame, produzindo e dirigindo peças de caráter satírico popular.
40
executará uma ação que não tenha sido originária de seu sistema somato
sensitivo. Este, por sua vez, não implica uma resposta linear a algum estímulo,
mas constitui uma rede de estímulos na qual circulam imagens mentais
provenientes de experiências e conhecimentos anteriores, memórias,
pensamentos, sensações, imaginações que se organizam para ajustar uma
resposta adequada às outras tantas informações desencadeadas.
O corpo do ator treinado para a improvisação se defronta com um roteiro
de ações, ou um estímulo ou uma proposição. Esse ato de percepção já sinaliza
algumas possibilidades de ação no contexto das habilidades desenvolvidas. Com
Berthoz9 (2001), podemos compreender que a percepção se constitui de uma
ação simulada. Ver um movimento surte a mesma descarga neural de fazer esse
movimento, o que sugere que haja uma simulação interna, para então, decidir a
ação.
Uma das idéias principais deste livro (Le sens du mouvement) é que a percepção não é somente uma interpretação de mensagens sensoriais: ela é constrangida pela ação, ela é simulação interna da ação, ela é julgamento e tomada de decisão, ela é antecipação das conseqüências da ação (Berthoz, 2001: 15)10.
Berthoz demonstra que o cérebro simula, prolonga, projeta, substitui, cria
uma representação do corpo e do mundo simultaneamente, a partir dos processos
perceptivos complexos. De acordo com seus experimentos, a percepção já é uma
ação do corpo, uma vez que consiste em uma simulação do movimento do
objeto percebido e do próprio corpo na percepção desse objeto. Nesse sentido,
9 Alain Berthoz enfoca também uma descrição complexa do funcionamento do cérebro em relação ao corpo e ao meio externo. A hipótese desse pesquisador é de que o corpo humano é constituído de dois corpos, um de carne e osso e outro virtual, idêntico ao de carne e osso mas simulado, ou seja, a partir da capacidade do cérebro simular esse corpo de carne e osso, ele cria uma representação dele. Essa representação constitui, segundo Berthoz, o duplo do corpo, cuja ação desencadeia processos de conhecimento e decisão. 10 Une des idées principales de ce livre est que la perception n’ est pas seulement une interprétation des messages sensoriels: elle est contrainte par l’ action, elle est simulation interne de l’ action, elle jugement et prise de décision, elle est antecipation des consequences de l’ action.
41
ela orienta uma ação possível para aquele corpo naquele momento, ou seja, uma
decisão.
A decisão é uma propriedade fundamental do sistema nervoso baseado em mecanismos de simulação interna do corpo e do mundo, que aumentaram de complexidade no decorrer da evolução. A deliberação não é somente um processo formal e consciente, é também um trabalho inconsciente, que utiliza mecanismos de criação de cenários, mesmo fora de toda realidade física. O cérebro pode decidir em simular a ação. Uma teoria neurocognitiva desta capacidade deve ser fundamentada (Berthoz, 2003: 155).11
Vale notar que, por não se improvisar do nada, a ação se compõe desse
complexo de ações simuladas que culmina numa decisão (não necessariamente
consciente) como uma resposta imediata à percepção do jogo de relações
estabelecidas no momento da ação, seja esse jogo um roteiro de cenas ou ações,
seja um jogo infantil de “pega-pega”, seja uma estrutura de jogo dramático. Sob
esse aspecto é que podemos entender esse modo da ação como espontâneo.
No treinamento de improvisação, pode-se falar do exercício da ação
espontânea no contexto dado, questionando como o corpo reage quando
envolvido em determinadas circunstâncias e diante de acontecimentos
inesperados do jogo das relações em cena. O treinamento constitui um modo de
conhecer e criar um sistema de ação e resposta ao jogo (qualidades técnicas de
ação) e habilitar o ator a entregar-se ao jogo de cena seja ele uma improvisação
ou não (disponibilidade e presença cênica).
A espontaneidade constitui um modo de ação bastante requerido no fazer
teatral e a improvisação constitui uma das formas de exercitá-la, como já
pontuou Kusnet:
11 La décision est une propriété fondamentale du système nerveux fondée sur dês mécanismes de complexité au fure et à mesure de l’ evolution. La déliberation n’ est pas seulement un processus formel et conscient, c’ est aussi un travail inconscient qui utilise des mécanismes de création de scénarios, même en dehors de toute réalité physique. Le cerveau peut délibérer en émulant l’ action. Une théorie neurocognitive de cette capacite doit être fondée.
42
Se partirmos do princípio de que a espontaneidade se revela na ação improvisada – ou vice-versa, que a ação improvisada é resultado da espontaneidade inata – podemos chegar à conclusão de que o dom de improvisação bem desenvolvido pode substituir o que chamamos de talento (Kusnet, 1992: 98).
Vejamos uma das formas de compreensão da espontaneidade nas Ciências
Cognitivas. Por meio de estudos laboratoriais de pacientes com lesões cerebrais,
V. S. Ramachandran e Sandra Blakeslee (2002) buscam lançar uma luz sobre o
funcionamento da mente e cérebro humanos.
Na verdade, podemos começar onde Freud terminou, ingressando no que se poderia chamar de a era da epistemologia experimental [...] e a neuropsiquiatria cognitiva [...] e começar a fazer experiências sobre sistemas de crença, consciência, interações corpo-mente e outras características do comportamento humano (Ramachandran & Blakeslee 2002: 25).
Buscando mostrar que os dois pontos de vista das teorias de
funcionamento do cérebro – modularidade e holismo – não são mutuamente
excludentes, os autores acima citados explicam por que o ato espontâneo de
sorrir difere de quando o mesmo ato é solicitado, por exemplo, para tirar
fotografia. Essa diferença ocorre, pois
regiões diferentes do cérebro os controlam e apenas uma delas contém um “circuito especializado em sorriso”. [...] Apesar de sua aparente simplicidade, o ato de sorrir envolve a cuidadosa orquestração de dezenas de diminutos músculos na seqüência apropriada. No que concerne ao córtex motor (não especializado parar gerar sorrisos naturais), este é um feito tão complexo quanto tocar Rachmaninoff sem nunca ter tido aulas de piano, e portanto falha completamente. Seu sorriso sai forçado, tenso, artificial (Ramachandran e Sandra Blakeslee, 2002: 37).
Se tudo isso acontece por um simples ato de sorrir, o que pensar, então,
quando o ator vai falar um texto, criar um gesto, um modo de andar, um modo
de olhar e ainda parecer natural?
43
A habilidade específica do ator profissional consiste em provocar em si mesmo, sem esforço nem artificialismo perceptíveis, estados emocionais que não pertençam a ele e sim ao personagem. [...] Nas mãos de um verdadeiro artista tudo parece natural, mesmo que a forma exterior seja tão artificial que não tenha equivalente na natureza. [...] A tarefa do ator é tornar qualquer estilo natural (Brook, 1999: 60).
Por um lado, o simples ato de sorrir espontaneamente ou não requer
circuitos diferentes e, por outro, essa citação de Brook indica que o trabalho do
ator está mais para uma ação solicitada do que para uma ação propriamente
espontânea (conforme distinção de Ramachandran e Blakeslee). Ou seja, não é
à-toa, no teatro, o medo do ator em realizar uma ação forçada, tensa e artificial,
pois é da natureza do processo de criação o exercício de fazer parecer
espontâneo o que foi criado artificialmente.
A improvisação pode ser compreendida como um modo de habilitar a
ação espontânea do ator, uma vez que ela constitui um ambiente que propicia
uma ação imediata, sem premeditação, uma ação nascida da interação com o
meio. Agir espontaneamente implica um estado quase imediato de resposta que
somos capazes de dar às imposições, aos acontecimentos. Isso exige percepção,
envolvimento, estado de alerta da mente/corpo, habilidades possivelmente
ativadas pelo que se costuma chamar de treinamento.
1.2 Corpomídia: quando o corpo é o protagonista da cena
Os trabalhos desenvolvidos por Viola Spolin constituem uma outra linha
de pensamento da improvisação no teatro. Eles diferem substancialmente das
discussões até o momento apresentadas, uma vez que investigam a ação do
corpo no jogo e o potencial de instrumentalização de jogos em suas diversas
acepções12 para a ação cênica. É uma metodologia que conjectura a
12 O termo “jogo” tem uma grande abrangência. Aqui é usado compreendendo-se como jogo tradicional os jogos e brincadeiras infantis e populares como ‘pega-pega’ e suas variações, ‘rabo do burro’, ‘esconde-esconde’, ‘duro mole’, ‘pique bandeira’, detetive etc. Como jogo teatral ou jogo de cena ou jogo do ator compreende o conjunto de acontecimentos como a enunciação de texto, a gestualidade, a réplica e o ritmo desempenhados por
44
comunicação cênica do corpo do ator, portanto, fundamenta-se na fisicalização
do personagem em oposição a uma compreensão psicológica dele. Ocupada com
o processo educativo do aprendizado de teatro, com o treinamento do fazer
teatral e com a espontaneidade do ator (aprendiz ou não) em cena, Spolin
constituiu seu método sobre a interação de dois eixos, a saber, o jogo
(tradicional, dramático e teatral) e o corpo do ator.
Em uma análise crítica a essa metodologia, vale observar que Spolin
fundamenta seu método na experiência, no ambiente de experimentação, na
incorporação e na comunicação. Nessa concepção salienta-se a importância dada
ao corpo do ator e ao jogo como instrumentos que habilitam o ator à
improvisação. Por sua vez, a improvisação constitui o modo de construção e
aprendizagem da linguagem teatral. E esta última, por fim, é compreendida
como um processo de comunicação. Assim, a metodologia de Spolin oferece
argumentações, técnicas e exercícios para o treinamento das habilidades
necessárias ao ator / improvisador, tanto no que respeita questões como
disponibilidade e espontaneidade como no que respeita questões próprias à
linguagem teatral concentradas no trabalho do ator. Talvez por apresentar uma
nova fundamentação ontológica e epistemológica para a compreensão da
improvisação, seu método de trabalho tem sido aplicado e discutido há anos.
Spolin evidencia uma preocupação com a questão da comunicação no que
concerne a “como um corpo se comunica na cena teatral?” Parte do princípio de
que o processo de aprendizagem da linguagem teatral tem início na experiência
e que esta se realiza na relação com o ambiente. Talento para ela significa a
capacidade de experienciar. E “experienciar é penetrar no ambiente, é envolver-
se total e organicamente com ele” (Spolin,1992: 4).
Esse princípio coaduna com algumas fundamentações filosóficas
subsidiárias das Ciências Cognitivas as quais compreendem que o corpo só
um ou mais atores que dinamizam a cena teatral. E jogo dramático pode ser compreendido como uma improvisação destinada ao conhecimento da arte dramática (Pavis, 2001).
45
existe num ambiente e se faz na relação com ele, ou seja, pela experiência. O
corpo só existe, se faz e age porque está na relação com o seu ambiente – tempo
/ espaço onde esse corpo está: natureza, cultura, sociedade, história. (Yuasa13,
1987; Lakoff & Johnson, 1999). “O ambiente não é o ‘outro’ para nós. Ele não é
uma coleção de coisas que nos encontram. Ele é parte de nosso ser. Ele é o lugar
de nossa existência e identidade. Nós não podemos e não existimos fora dele”14.
(Lakoff & Johnson, 1999: 566).
Esse modo de ser do corpo (ser no espaço) fundamenta o pressuposto de
Viola Spolin, enfatizando que estar no ambiente é estar em relação com ele, ou
seja, essa concepção implica que o ambiente é incorporado pelo corpo por meio
da experiência; estar no espaço implica mecanismos internos de percepção e
incorporação das relações com o ambiente externo. O ambiente faz o corpo e o
corpo faz o ambiente, numa relação contínua de troca e interação de informação.
Para uma improvisação especificamente com o clown, que é o objeto desta tese,
esse enfoque é fundamental. O clown é um personagem que interage com o
ambiente a partir do que a relação apresenta como possibilidade, seja o ambiente
um cenário ou não. Por exemplo, se há em cena uma lata de lixo, ele pode ou
não ser usado como tal, mas tanto o público como o clown sabem que aquilo é
uma lata de lixo. Não há um jogo “faz de conta que é um tambor”, aquilo é uma
lata de lixo que virou tambor e isso orienta as possibilidades das significações da
cena.
Outro elemento importante do método de Spolin consiste na
“fisicalização”, ou seja, a expressão física de qualquer emoção, sentimento,
personagem, idéia e intenção no palco. Em seu próprio glossário, ela define a
fisicalização como um modo de mostrar que se opõe ao contar (representar), ou
13 Segundo Yasuo Yuasa, semelhante modo de pensar o ser humano pode ser encontrado no filósofo japonês Watsuji Tetsurō (1889-1960). Trata-se de um conceito de pessoa por ele defendido que compreende que o homem só existe no espaço “entridade”, “betwenness”, “aidagara”; evidentemente não se trata de um espaço neutro, despido de significação, mas um espaço interconectado de sentidos e significados humanos. Esse modo de pensar a pessoa parece intervir no padrão de comportamento e pensamento do japonês. 14 The environment is not an “other” to us. It is a collection of things that we encounter. Rather, it is part of our being. It is the locus of our existence and identity. We cannot and do not exist apart from it.
46
seja, a manifestação física de uma comunicação, a expressão de uma atitude. No
capítulo intitulado “Personagem”, do livro Improvisação para o teatro, Spolin
(1992) sugere uma série de exercícios de construção do personagem sobre uma
base física estrutural. Essa concepção já indica a possibilidade de pensar o corpo
não como boneco da imaginação e do pensamento do ator, mas como o autor da
ação. Nossa primeira preocupação é encorajar a liberdade de expressão física, porque o relacionamento físico e sensorial com a forma de arte abre as portas para o insight. É difícil dizer porque isso é assim, mas é certo que ocorre. Esse relacionamento mantém o ator no mundo da percepção – um ser aberto em relação ao mundo à sua volta. [...] Um jogador que sabe dissecar, analisar, intelectualizar ou desenvolver uma história de caso sobre um personagem, mas é incapaz de assimilar e comunicá-la fisicamente, descobre que a sua compreensão do papel é inútil para o teatro. [...] Quando o ator aprende a comunicar-se diretamente com a platéia através da linguagem física do palco, seu organismo como um todo é alertado. Empresta-se ao trabalho e deixa sua expressão física levá-lo para onde quiser (Spolin, 1992 : 15).
Nesse ponto, os filósofos das Ciências Cognitivas, George Lakoff e Mark
Johnson, por meio do conceito Embodied Mind (mente encarnada) trabalham
numa argumentação15 filosófica que se opõe à longa tradição da filosofia
ocidental de que a mente é desencarnada, ou seja, tem um funcionamento
autônomo em relação às atividades corporais como percepção e movimento.
Segundo essa hipótese, a mente, a razão e os conceitos são processos
profundamente arraigados ao corpo por três razões fundamentais, a saber, (1)
sistema perceptual e motor formulam tipos básicos de conceitos, restritos à
relação corpo e ambiente, que influenciam a formação do raciocínio, de
conceitos; (2) qualquer conceito, idéia, pensamento, imaginação, raciocínio
requer uma estrutura neural, ou seja, uma rede de neurônios que os constitua; (3)
15 Essa argumentação se sustenta em estudos científicos do corpo realizados por uma segunda geração dos cientistas cognitivos, cujo pressuposto e foco da pesquisa consistem em compreender os substratos orgânicos do funcionamento das operações mentais. Entre eles, podemos citar: Paul Churchuland (1942- ) (2004), Damásio (2000), Varela (1946-2001) (2002), Maturana (1928- ) (2004), Varela & Maturana (1997), Clark (1997), Berthoz (2003) e Lakoff & Johnson (1999).
47
corpo e cérebro são de tal modo formados que possibilitam um tipo de
conhecimento e não outro. (Lakoff & Johnson, 1999).
Assim, entre as respostas de Spolin à questão de como o corpo comunica,
vale destacar sua proposição de que a percepção constitui elemento norteador da
improvisação, uma vez que é ela que mantém o corpo em contato com o mundo
e que, portanto, o corpo “como um todo é alertado”. O caráter sensório-motor
do conhecimento humano, discutido e fundamentado pelos neurocientistas e
filósofos das Ciências Cognitivas abordados nesta tese, assevera a relação
comunicativa do corpo no ambiente. Para esta tese, pensar o corpo como autor
implica compreender a criação artística como um fluxo de processos, sensórios-
motores, perceptivos, imaginativos, conceituais, criativos que ganham existência
na relação do corpo com o ambiente de pesquisa teatral, neste caso, o clown e a
improvisação.
Do ponto de vista do corpo, pensar como ele comunica implica
compreendê-lo como um ambiente midiático. Urge ressalvar que midiático não
se limita a compreender o corpo somente como um suporte de difusão de
informação, mas como mídia de conhecimento e comunicação (Greiner &
Amorim, 2003; Katz & Greiner, 2001; Greiner 2005). O corpo constitui um
ambiente em fluxo de comunicação constante e simultâneo consigo mesmo e
com o ambiente externo. Isso implica mapear a constituição do corpo nos
aspectos relativos à interação, manipulação, multiplicação, expansão, troca,
produção, retenção e comunicação de informação. Em outros termos, trata-se da
capacidade de experienciar no ambiente em que esse corpo está.
Os verbos de ação como “interagir”, “manipular”, “multiplicar”,
“expandir”, “trocar”, “produzir”, “reter” e “comunicar” são funções do que
conhecemos hoje por mídia. Este constitui um primeiro argumento para
compreender o corpo como mídia. A hipótese consiste em compreender que esse
corpo só sobrevive porque interage e se comunica com as informações no
ambiente mundo.
48
As informações do meio se instalam no corpo; o corpo, alterado por elas, continua a se relacionar com o meio, mas agora de outra maneira, o que leva a propor novas formas de troca. Meio e o corpo se ajustam permanentemente num fluxo inestancável de transformações e mudanças (Katz & Greiner, 2001: 68).
No teatro improvisacional de Spolin, essa questão parece presente em suas
reflexões nas quais se pode considerar que o fluxo inestancável dos
ajustamentos meio e corpo está inserido no contexto ficcional de uma
improvisação, de um jogo dramático, de um jogo teatral ou de um jogo
tradicional. Aprender teatro e improvisação significa, pois, aprender a envolver-
se no jogo, aprender a linguagem e então poder entrar no fluxo inestancável do
corpo no meio teatral desenvolvido pelo treinamento, porque é da natureza do
corpo assim se relacionar com o ambiente em seu cotidiano e em cada ambiente
que ele estiver.
É da natureza do corpo humano conhecer por meio dos processos
perceptivos do meio externo e interno ao corpo (vide sistema somato sensitivo,
cap.1, nota 4, p.36). Novamente, com os estudos do neurologista António
Damásio, pode-se contemplar um possível entendimento desses fluxos
ininterruptos de troca de informação entre corpo e ambiente. Para ele, corpo,
cérebro e mente formam um único organismo e interagem completa e
mutuamente por meio de redes químicas e neurais, não sendo possível separar e
independer a ação de cada um deles na relação do corpo com o ambiente.
A atividade cerebral compreende a regulação de processos internos e
externos do organismo vivo na relação com o ambiente. No caso do organismo
humano, a atividade cerebral se constitui da criação e manipulação de imagens
mentais, a que se pode chamar de mente. A habilidade de perceber objetos e eventos, externos ou internos ao organismo, requer imagens. Exemplos destas imagens relacionadas com o exterior incluem imagens visuais, auditivas, táteis, olfativas e gustativas. Dor e náusea são exemplos de imagens do interior. A execução de respostas
49
automáticas ou deliberadas requer imagens. A antecipação e o planejamento de futuras respostas também requer imagens (Damásio, 2003: 195)16.
Essas imagens mentais se formam por sua vez do contínuo processo de
mapeamento que o cérebro realiza dos estados corporais. Assim, pequenas ou
grandes, mas contínuas modificações nos estados corporais são realizadas por
inúmeros fatores externos e internos e mapeados pelo cérebro, por meio de
sinalizações químicas (corrente sangüínea) e eletroquímicas (redes neurais).
Esse mapa neural gera imagens mentais. Entrelaça-se fisicamente o evento
corporal à constituição de imagens mentais. Esses mapas cerebrais representam, conjuntamente a estrutura e o estado do corpo em um dado momento qualquer. Alguns mapas relacionam-se com o mundo dentro, no interior do organismo. Outros se relacionam com o mundo fora, o mundo físico dos objetos que interagem com o organismo. Em cada caso, o que termina sendo mapeado nas regiões sensórias do cérebro e o que emerge na mente, em forma de idéias, corresponde a alguma estrutura do corpo, em um estado particular e num conjunto de circunstâncias (Damásio, 2003: 197)17.
Evidentemente, esse não é o nível de descrição que podemos perceber e
conhecer acerca do estado do corpo e dos processos mentais durante a
improvisação. Nem é esse o objetivo de qualquer exercício no teatro. O foco do
ator consiste em perceber suas sensações, estados, idéias, como elas estão
expressas em seu corpo e o que esse corpo comunica naquele estado que, de
alguma forma, se dão a ver. Conhecer os mecanismos inconscientes de produção
das sensações, estados e idéias permite dar lugar a um estado de espera e
atenção da construção dessa percepção e da construção da ação. E, no
16 That the ability to perceive objects and events, external to the organism or internal to it, requires images. Examples of images related to the exterior include visual, auditory, tactile, olfactory and gustatory images. Pain and nausea are examples of images of the interior. The execution of both automatic and deliberated responses requires images. The anticipation and planning of future responses also require images. 17 Those brain maps represent, comprehensively, the structure and state of the body at any given time. Some maps relate to the world within, the organism’s interior. Other maps relate to the world outside, the physical world of objects that interact with the organism at specific regions of its shell. In either case, what ends up being mapped in the sensory regions of the brain and what emerges in the mind, in the form of an idea, corresponds to some structure of the body, in particular state and set of circumstances.
50
treinamento, permite acurar o tempo dessa espera, da atenção, da percepção, da
ação e da continuidade dessa construção para a cena teatral.
Não se trata mais de compreender se são os procedimentos físicos ou os
mentais os responsáveis pela criação do personagem, mas de entender que
procedimentos físicos são mentais (geram e são gerados por imagens mentais) e
que procedimentos mentais são físicos (constituem-se a partir de imagens
mentais geradas nas redes neurais) e que a construção do personagem se dá no
fluxo desses procedimentos únicos: corpo/mente. A ação física é também ela
responsável pelo fluxo de constituição de imagens mentais das sensações,
sentimentos, imagens e idéias que acontecem durante uma improvisação no
corpo do ator, do mesmo modo que as imagens mentais das idéias, imagens e
pensamentos geram ações físicas acessíveis a um espectador externo.
Assim, enfocar o corpo não significa descartar os processos psicológicos,
de pensamento, de raciocínio e de imaginação do ator necessários para a
construção do personagem, pelo contrário, significa compreender a
particularidade de uma configuração corpo/mente no que respeita o processo de
criação do ator inserido no contexto da pesquisa teatral. Isso implica entender
essa relação como um desencadeamento em rede, no qual estão envolvidos os
sistemas sensórios-motores, mapas neurais, imagens mentais, estados
corporais/mentais. Enfim, todos os sistemas se reorganizam de acordo com as
informações que o corpo está recebendo e oferecendo (Clark, 1997).
O corpo/mente é autor do personagem não somente pelo que ele é capaz
de expressar, mas pelos numerosos processos de cognição desenvolvidos para
esse fim. O cérebro cria a representação do corpo de um modo complexo no
qual interagem interdependentemente processos fisiológicos dos estados do
corpo e processos mentais, como a memória e a imaginação. E a ação do corpo
(entenda-se por ação um pensamento, um gesto, uma reação emocional) realiza-
se a partir dessa representação. Tal como aponta Berthoz (2003), a simulação, a
51
projeção, a criação, o prolongamento18 constituem os variados modos de
operação do cérebro e todos fundamentam-se na possibilidade de representação
do corpo. Em outros termos, quando se representa um personagem, o que
acontece é uma representação dos processos perceptivos e cognitivos
organizados a partir de um novo estado corporal em relação co-dependente ao
ambiente de pesquisa de linguagem teatral específico. Evidentemente, para tratar ações orgânicas como processos de comunicação, precisam ser arrebanhados conceitos como informação, signo, mídia, representação, evolução, entre outros, numa espécie de coquetel científico distante dos usos metafóricos dessa terminologia. E com eles pensar o corpo como sendo um contínuo entre o mental, o neuronal, o carnal e o ambiental. Como pensar em corpo sem ambiente se ambos são desenvolvidos em co-dependência? (Katz & Greiner, 2001: 66).
Diante do já exposto, evidencia-se a complexidade da relação corpo e
ambiente. As relações comunicativas19 caracterizam-se por seu caráter vivo,
dinâmico e mediativo. Essas qualidades da relação comunicativa atravancam
qualquer suposta linearidade entre os agentes da comunicação, uma vez que os
códigos, os canais, as mensagens, os referentes e os próprios agentes estão
contaminados de outras tantas relações comunicativas e se constituem nessa
dinâmica transformando, produzindo, apreendendo, retendo, manipulando
informação. Por essa razão, podemos falar no caráter contínuo, inestancável e
imprescindível dessa relação comunicativa, seja para a integridade física do
organismo, seja para a construção da linguagem teatral. O objetivo de apresentar o corpo como mídia passa pelo entendimento dele como sendo o resultado provisório de acordos contínuos entre mecanismos
18 Os experimentos de Alain Berthoz demonstram que, quando o macaco faz uso de um instrumento como um cabo de vassoura como extensão de sua mão, a região do cérebro afetada também sofre extensão em seus acionamentos. Esse fenômeno é chamado de prolongamento (Berthoz, 2003). 19 Relação comunicativa é o terno sugerido por Ferrara para caracterizar o caráter dinâmico dos objetos da comunicação, com o objetivo de propor uma nova epistemologia que dê conta dessa dinâmica. Essa perspectiva implica numa nova epistemologia de abordagem dos objetos da comunicação: “imagina-se que uma epistemologia das relações comunicativas supere a natureza das mídias e suportes enquanto núcleos temáticos, para ousar interrogar-se não sobre o código, mas sobre as características processuais das mídias que nutrem as relações comunicativas” (Ferrara, 2003: 63). Aqui propomos indagar acerca das características processuais do corpo como mídia.
52
de produção, armazenamento, transformação e distribuição de informação (Katz & Greiner, 2001: 67).
Uma vez caracterizado o corpo como um ambiente midiático e, portanto,
sua relação comunicativa com o ambiente, cabe perguntar por que o jogo
constitui um modo eficiente para desenvolver essa relação de comunicação. E
por que o jogo é um ambiente propício para o desenvolvimento das qualidades
para improvisar?
Segundo Spolin, no momento do jogo, o corpo todo está envolvido na
solução do problema. O jogo constitui um ambiente propício à manifestação da
ação espontânea, uma vez que, na situação de jogo, emergem as dificuldades, os
contratempos, os conflitos imprevistos que desafiam a capacidade dos jogadores
envolvidos a encontrar a solução adequada. O envolvimento no jogo é condição
sine qua non para a incorporação dessa experiência. “Todas as partes do
indivíduo funcionam juntas como uma unidade de trabalho, como um pequeno
todo orgânico dentro de um todo orgânico maior que é a estrutura do jogo”
(Spolin, 1992: 5).
Spolin compreende que a cena teatral constitui-se antes de mais nada de
um jogo de relações, desafios e necessidades. Sob esse ponto de vista, o jogo
teatral, o jogo dramático e os jogos tradicionais apresentam semelhanças. Todos
têm regras, objetivos, desafios que orientam, incitam e envolvem a ação
espontânea do jogador, característica própria da improvisação. Parte-se do
princípio de que esse método permite o domínio da linguagem teatral, cujo
desenvolvimento habilita o ator/jogador a improvisações cada vez mais
complexas da ação dramática, garantido a qualidade espontânea da ação.
A aprendizagem da linguagem teatral se realiza na compreensão, na
elaboração e na incorporação da experiência cênica, por meio da busca de
solução aos problemas no jogo tradicional ou dramático (ou da relação entre os
dois).
53
Assim, por exemplo, um simples jogo de roda infantil como “quem
iniciou o movimento?”20 pode tornar-se um recurso para trabalhar alguma
dificuldade de construção da cena. Tal como o relato abaixo, Depois de jogar este jogo (“quem iniciou o movimento?”) quatro ou cinco vezes, a cena da festa emergiu e a qualidade necessária do olhar sem olhar apareceu com nitidez (Spolin, 1999: 138).
Os exercícios de improvisação da estrutura básica do jogo dramático, no
método de Spolin, concentram-se na compreensão, elaboração e experimentação
da linguagem teatral. Essa estrutura se compõe de três eixos básicos: onde (lugar
da ação), quem (personagem/relacionamentos) e o que (acontecimento), tendo
como regra o foco (objetivo do jogo ou problema a ser resolvido) (Spolin, 1992
e Chacra, 1991). A partir essa estrutura, o ator jogador prepara-se para a
improvisação.
A título de exemplo, Spolin propõe uma série de exercícios para
compreensão do onde, local onde se dá a ação teatral, ou seja, a noção, o uso e a
organização do espaço cênico. Assim, o lugar da ação pode ser comunicado pela
relação entre personagem e objetos do cenário, pela relação entre os personagens
e pela ação do personagem. A combinatória desses três eixos constrói os vários
jogos possíveis, com graus de dificuldade e complexidade diversos, além de
favorecer a construção de outros jogos similares (Spolin, 1992).
O jogo constitui estratégia fundamental no treinamento da improvisação
na metodologia de Paoli-Quito também. No treinamento, o jogo solicita um
estado de atenção e disponibilidade; desenvolve formas de conexão,
cumplicidade, foco e relações entre os atores; amplia as qualidades de jogo do
ator na medida em que se exploram as regras e as inúmeras formas de jogar,
dilatando as possibilidades de jogo dentro do próprio jogo; permite, enfim, a
criação e a percepção das várias possibilidades de situação cênica como, por
exemplo, uma disputa, uma burla das regras, um desafio e, neles, as possíveis
20 Nesse jogo, um jogador sai da sala enquanto os outros, em círculo, decidem quem será o mestre. Este deve iniciar o movimento e, durante o jogo, deve trocá-lo. O jogador que saiu deve descobrir quem é o mestre.
54
reações dos jogadores. Pode-se dizer que o jogo simula uma situação cênica e
exige respostas imediatas e espontâneas do ator, constituindo, assim, uma forma
de exercitar a ação espontânea e imediata do ator.
A atenção, a disponibilidade, a conexão, a cumplicidade, o foco, a
relação, o jogo são elementos constitutivos da improvisação. Esses elementos
impelem o ator a não se fixar em padrões adquiridos como ganhar ou perder,
mas atentar para a dinâmica das relações do ator com o jogo e com outros atores,
da relação de aprendizagem entre seu corpo e o ambiente do jogo. Esses
elementos são também constitutivos da natureza humana na sua relação com o
ambiente.
Sendo assim, o jogo e a improvisação podem ser considerados como uma
tecnologia cognitiva no sentido apresentado por Andy Clark (2001), por meio
da qual os processos de cognição avançada podem se constituir. Ou seja, a
cognição avançada consiste em processos específicos da cognição humana
como criar hipótese, conceituar, prever, planejar e memorizar. Esses processos
atrelam-se ao modo mais imediato e espontâneo de ação e experiência do corpo
na relação com o ambiente. A partir dessas experiências e ações imediatas
temos capacidade de desenvolver tecnologias cognitivas com o objetivo de
ampliar as possibilidades de uso e as habilidades do corpo/cérebro,
configurando processos de cognição avançada. os processos de cognição avançada estão arraigados em operações de mesmo tipo básico da capacidade de uso imediato e espontâneo para respostas adaptativas, mas afinados e ampliados para uma questão especial da ajuda externa e/ou cognição artificial: tecnologias cognitivas (Clark, 2001: 141)21.
Toda e qualquer tecnologia cognitiva (desde organizar um armário até o
mais sofisticado sistema de computação) é desenvolvida a partir do uso
21 To depict much of advanced cognition as rooted in the operation of same basic kinds of capacity used for on-line, adaptive response, but tuned and amplied to the special domain of external and/or artificial cognitive aids – the domain, as I shall say, of wideware or cognitive tecnology.(Clark, 2001: 141)
55
espontâneo e imediato da experiência e da ação do corpo na relação com o
ambiente. A tecnologia cognitiva favorece o aprendizado, o amadurecimento e a
operacionalização das múltiplas realizações da espécie humana (Clark, 2001).
Evidencia-se, dessa forma, que o cérebro não trabalha sozinho. Ele carece
do conhecimento incorporado pela experiência e das tecnologias cognitivas que
surgem no decorrer do processo para funcionar e se desenvolver em continuum
com o corpo.
Tomando um exemplo de Clark, ele observa que o esboço no trabalho do
artista não constitui somente um modo de memorização ou armazenamento de
idéias particulares, mas uma necessidade de pôr em contraste o que se imagina
com o que se realiza, visto que o cérebro e a imaginação não dão conta de
decompor uma forma em seus componentes. Assim, o esboço faz parte do
processo de criação como processo interativo de externalização e repercepção
do processo de conhecimento artístico.
Considerar o jogo e a improvisação sob a perspectiva de uma tecnologia
cognitiva implica compreender que as habilidades requisitadas para o jogo e
para a improvisação já constituem formas de ação do corpo no mundo. Essa
perspectiva pode contribuir para a compreensão mais apurada das condições e
técnicas de improvisação utilizadas no treinamento do clown.
Na improvisação, usa-se habilmente os acontecimentos imediatos e a
capacidade de resposta do ator na relação corpo e ambiente. Habilidades como
presença, atenção, espontaneidade e interação são constitutivos da natureza
humana na sua relação com o ambiente. Os jogos (tradicional, dramático ou
teatral) constituem um dos modos de ampliar e exercitar essas habilidades, ou
seja, os jogos são uma tecnologia cognitiva. Aplicado ao treinamento do clown,
o jogo habilita o ator a melhor articular a sua experiência imediata e as suas
ações espontâneas à linguagem constituída para o processo de comunicação
cênica. O exercício de jogar aprimora a percepção das possibilidades de jogo
56
que emergem da relação do corpo com o ambiente. Soma-se a tudo isso o prazer
e a alegria tão próprios do jogo e tão caras e peculiares à linguagem do clown.
1.3 Enredando as malhas.
Em síntese, até o momento objetivou-se traçar alguns fios que compõem
a rede da improvisação, que não são só fios, são malhas, pelas quais as relações
circulam. Simultaneamente, essa rede se compõe do corpo do ator (a malha que
protagoniza a cena e produz a dramaturgia da improvisação) e da malha
composta pelas possibilidades de ação dadas por um roteiro de ação ou de um
estímulo ou um jogo ou uma estrutura dramática.
A malha do corpo constitui-se de qualidades como a disponibilidade, a
observação, a percepção, a receptividade, o estado de atenção, interação,
conexão e a presença. Essas qualidades sustentam a natureza da ação
espontânea e adaptativa, no sentido de subsidiar uma ação adequada e ajustada
em resposta ao desenvolvimento do jogo da improvisação com os parceiros e
com o público. Ou seja, o corpo/mente do ator age de acordo com as
circunstâncias desenvolvidas (desafio, disputa, romance, etc.) e/ou com os
objetivos e/ou ainda com as necessidades imediatas no tempo real da cena,
aspectos que constituem a malha da improvisação.
Esse modo de organização da improvisação discute um modo do corpo
estar no espaço. Como vimos, as qualidades dessas malhas são primariamente
constitutivas da relação do corpo com o ambiente. No cotidiano, estamos
continuamente recebendo e dando respostas provenientes da relação do corpo
com o ambiente; ambos se constituem nessa relação. Por essa razão, podemos
qualificar a improvisação como uma tecnologia cognitiva, uma vez que ela lida
com essas qualidades de ser do homem no mundo, repercutindo em processos
de cognição avançada na medida em que instrumentaliza e otimiza esse modo
57
de relação, envolvendo processos cognitivos formulados pela consciência
ampliada22.
Dessas enredadas malhas emerge um princípio da improvisação: a
constituição da linguagem, organização e fluxo dos signos (ação, pausa,
imagem, movimento, gesto, intenção, etc) depende do contexto da ação
imediata, dado pelos estados corporais na sua interação com as possibilidades
de ação constituídas pelo jogo da improvisação. Na improvisação, o ator lança-
se no jogo sígnico, podendo ou não repetir ou criar ações. O caráter de
espontaneidade e momentaneidade da improvisação impele o ator a não se fixar
em padrões adquiridos, mas atentar para o fato de que, na improvisação, o que
está em jogo não é a repetição mecânica da linguagem constituída, mas a
dinâmica das relações dos signos corporais na interação e comunicação entre
corpo e ambiente.
Como foi visto, na relação de um organismo com o seu ambiente, nas
análises de Damásio (2000) os primeiros mecanismos acionados no organismo
são emoções e sentimentos (em organismos dotados desses mecanismos).
Poder-se-ia dizer que o treinamento tem em vista o exercício o quanto possível
consciente desses mecanismos, ou ao menos que ele seja o primeiro a falar e ser
ouvido antes que o julgamento perceptivo lidere a criação de sentido. Qual é a
sensação de imagem, de sentido e de significado que o corpo criou naquele
movimento? Qual o seu desenvolvimento sem perder a escuta primeira da
permanente construção de imagem? O que predomina no movimento: a
imagem, a sensação, a consciência do corpo, o objeto de pesquisa do
movimento naquele instante, o jogo, o sentido criado, a imagem, a intenção ou a
situação dramática? Conforme a pergunta, um foco, conforme o foco, algumas
22 António Damásio (2000) distingue dois tipos de consciência, consciência central e consciência ampliada “onde a ampliada se constrói sobre o alicerce da consciência central” (Damásio, 2000: 35). A primeira age no momento exatamente presente, aqui e agora, demonstrando a importância da consciência para soluções imediatas da sobrevivência humana, envolvendo processos cognitivos básicos; a segunda, dependente da primeira, é mais complexa, envolve memória, raciocínio e linguagem e é somente neste modo de ser da consciência que Damásio localiza os processos cognitivos avançados.
58
possibilidades de ação, conforme a ação, novas perguntas e assim
sucessivamente se constrói a dramaturgia da improvisação.
A dramaturgia da improvisação se constrói no fazer e este é um lugar
bastante difícil e arriscado para estar. Difícil porque, além de todas as
qualidades já enumeradas, a percepção da dramaturgia construída no momento
da improvisação consiste em uma das tarefas mais árduas para o ator. Arriscado
porque é muito fácil perder-se, afastando-se dos estados de atenção,
concentração e percepção tão necessários à improvisação. Entre riscos, por
exemplo, Brook pontua Se, durante uma improvisação, você sentir a presença das pessoas que o observam – como deve ser, do contrário não faz sentido - e as pessoas rirem, você corre o risco de que esse riso o leve numa direção diferente da que teria seguido sem ele. Você quer agradar, e o riso é a prova de que está conseguindo; aí você começa a tentar arrancar cada vez mais risadas, até que seus vínculos com a verdade, a realidade e a criatividade dissolvem-se imperceptivelmente na diversão. O essencial é ter consciência desse processo e não cair cegamente na armadilha (Brook, 1999: 21).
Entre os riscos e as dificuldades, ter consciência deles pode ser um bom
começo para o ator se nortear. O treinamento para improvisação, e mesmo
outros treinamentos de ator, recorrem à questão da consciência de
procedimentos corpóreos/mentais que compõem um estado de criação e
pesquisa. Cabe pontuar que a questão da consciência corporal, conhecer e
reconhecer o corpo no espaço, seu funcionamento e sua expressividade
constituem os diferenciais de treinamento e construção estética em algumas
linhas de pesquisa de teatro e na dança contemporânea, principalmente. A
especificidade do trabalho com a consciência do corpo corresponde à utilização
de técnicas corporais que focam o conhecimento e reconhecimento do corpo,
como Ideokinesis23, BMC24 e Eutonia25, entre outros, no escopo da educação
23 Ideokinesis foi sistematizada por Mabel Todd, no início dos anos 1920. Os conceitos básicos deste trabalho encontram-se nas publicações de Todd como The thinking body, de 1937, e The hidden you de 1953 e na continuidade do trabalho por seus seguidores. 24 Body Mind Centering, técnica desenvolvida por Bonne Baindridge Cohen, desde meados da década de 1970 em Massachusetts - USA. Essa técnica desenvolve um trabalho corporal com os nove sistemas do corpo humano,
59
somática, como parte integrante do treinamento. Essa questão será tratada com
mais profundidade no próximo capítulo, quando da descrição do trabalho de
Cristiane Paoli-Quito. Improvisação não é fazer qualquer coisa, mas fazer
conhecendo, tendo uma mínima noção do que se está fazendo, no fazer, no
fluxo da percepção e ação.
Mais uma vez, António Damásio pode auxiliar esclarecendo um pouco
mais acerca do funcionamento da consciência. Até o momento, pontuamos a
participação das emoções e dos sentimentos na constituição da consciência
(cap.1, p.35); a formação das imagens mentais (cap.1, p.50); e apresentamos a
função homeostática das emoções e sentimentos para a sobrevivência do
organismo (cap.1, p.35).
A homeostasia constitui um mapeamento contínuo que o cérebro faz do
corpo para mantê-lo estável. Essa estabilidade pode ser observada nas funções
orgânicas que permanecem as mesmas durante toda a vida. O estado interno do
corpo necessita manter-se estável diante do ambiente, e o estado de equilíbrio
depende de um complexo mecanismo neural que detecta e corrige as mínimas
variações químicas do corpo. Esse modo de ação do corpo é o que permite aos
sentidos vaguear no mundo, ou seja, a interação entre corpo e ambiente. O
organismo só sobrevive porque se constitui destas relações comunicativas:
organismo/organismo - organismo/mundo. Nesse ponto em que o organismo
mapeia a si mesmo ocorre, para Damásio, a constituição do self e este, por sua
vez, torna-se elemento fundamental para a compreensão da consciência, “saber
que sou eu quem está sabendo”.
Em outras palavras, resolver o segundo problema da consciência (o sentido do self) consiste em descobrir os alicerces biológicos da curiosa capacidade
a fim de centrar e incorporar esse conhecimento por meio do corpo/mente. É um estudo experimental baseado na incorporação e aplicação de princípios anatômicos, fisiológicos, psicológicos e do desenvolvimento, utilizando o movimento, o toque, a voz e a mente. 25 Eutonia é uma técnica corporal criada e desenvolvida por Gerda Alexander (1908-1994). O trabalho consiste no uso da atenção às sensações, promovendo a ampliação da percepção e da consciência corporal.
60
que nós, humanos, possuímos de não só construirmos os padrões mentais dos objetos – as imagens de pessoas, lugares, melodias e de suas relações; em suma, as imagens mentais, integradas no tempo e no espaço, de algo a ser conhecido–, mas também padrões mentais que transitam, de maneira automática e natural, o sentido de um self no ato de conhecer. A consciência, como usualmente a concebemos, de seus níveis elementares aos mais complexos, é um padrão mental unificado que reúne o objeto e o self (Damásio, 2000: 27).
Se o objeto causa uma mudança no organismo significa que ocorrerá uma
alteração na função homeostática, gerando novos estados do organismo e,
conseqüentemente, nova organização de padrões neurais do pensamento. A
consciência vai constituir-se neste movimento para incrementar esta função: o
conhecimento do que se está sentindo e do que se está percebendo melhora a
qualidade de ação do organismo na relação com o ambiente. Nesse sentido, é
que o cérebro necessita mapear também um sentido de self que se constitui um
fundamento da consciência. A realização biológica desses procedimentos
consiste no mapeamento do organismo (self), mapeamento do objeto e
mapeamento da relação entre eles.
A maior parte desses procedimentos é inconsciente, ou seja, na
terminologia de Damásio, trata-se de processos que não geram imagens mentais
(cap.1, p.50). A partir de determinado ponto de acionamentos neurais, é
possível perceber esse mapeamento do organismo. Mais precisamente, quando
esses acionamentos geram emoções e sentimentos já podemos, de alguma
forma, perceber o estado do corpo. Talvez esteja nesse ponto dos primórdios da
consciência o foco de observação das técnicas de consciência do corpo usadas
pela educação somática. Aproximando o sentido do self de Damásio e a questão
da consciência do corpo da educação somática, a percepção de si mesmo
(sentido de self e objetivo da educação somática) no treinamento para o teatro
constitui um potente qualificador tanto do exercício como da ação cênica.
Procedimentos de treinamento que se ocupam dessa questão parecem apresentar
processos mais otimizados de construção do corpo do ator. Saber como e o que
61
se faz durante um exercício físico é acurar a percepção do corpo, do ambiente e
de suas relações e saber encontrar soluções melhores aos desafios que se
apresentam.
Não podemos ignorar que expressamos incessantemente milhares de coisas com todas as partes de nosso corpo. Não temos consciência disso na maior parte do tempo, o que leva o ator a uma atitude corporal difusa, incapaz de magnetizar a platéia (Brook, 1999: 58).
Por exemplo, o ato de andar de bicicleta, da perspectiva da educação
somática, conforme a técnica, pode significar a visualização da estrutura óssea
em movimento e a postura geral do corpo (coluna, cabeça, quadris, braços e
pernas) para dar-se conta da musculatura utilizada e relaxar a musculatura
desnecessária ao movimento, perceber a respiração, as sensações e os fluxos de
pensamento, realizar os ajustes necessários para melhorar a ação. Tudo isso sem
perder o contato e a interação com o mundo externo, não só pelo o risco de
bater numa árvore, mas para perceber os estímulos externos e sua repercussão
no estado do corpo.
Assim descrito, o andar de bicicleta parece uma atividade bastante chata.
Essa percepção do corpo requer um treinamento. Quem se propõe a fazê-lo,
percebe, depois de algum tempo, a diferença que se opera na realização de um
exercício ou mesmo do ato de sentar e permanecer sentado, e o prazer de
realizar um exercício com essa qualidade de percepção. No cotidiano, não
necessitamos desse nível de detalhamento, mas no comum da cena teatral esse
detalhamento parece essencial. Talvez, andar de bicicleta com essa qualidade
possa até magnetizar alguns espectadores que poderão observar a diferença
entre você e alguém que apenas passeia de bicicleta.
Brook comenta a habilidade de Oida no manuseio de archotes
incandescentes nos ensaios de Mahabharata (1989), devido à precisão de
conhecimento de seu corpo no espaço. E, entre as possibilidades de exercício
que Oida oferece em seu livro, O ator invisível, encontra-se justamente a
62
realização das atividades diárias com o mesmo estado de presença como se
estivéssemos em cena, ou seja, com essa percepção e saber.
A distinção entre uma ação no palco e uma ação no cotidiano constituiu
uma fonte de reflexão e formulação de metodologias. Stanislavski (1989) já
apontava para as diferenças entre um ator e um não-ator, para qualificar a ação
do ator; Eugênio Barba (1995) identifica essas diferenças como ações cotidianas
e extracotidianas, em níveis energéticos diferenciados. Em suas reflexões, no
livro A porta aberta, Peter Brook (1999) pontua diferença de modos de
caminhar de um ator e um não-ator, evidenciando que o ingrediente que compõe
a ação do ator é a intensidade de vida que ele consegue colocar nessa ação.
Assim, Para que as intenções do ator fiquem totalmente claras, com vivacidade intelectual, emoção verdadeira, um corpo equilibrado e disponível, os três elementos – pensamento, sentimento e corpo – devem estar em perfeita harmonia. Só então ele cumprirá o requisito de ser mais intenso, em curto espaço de tempo, do que é em sua casa (Brook, 1999: 14).
É importante pontuar que o autor dessas diferenças é o corpo, os estados
corporais relativos ao modo de atenção e presença do corpo nas diversas
situações em que ele está, seja em um ônibus seja em um palco.
Especificamente, o diferencial na improvisação na arte do teatro encontra-se
justamente na percepção mais acurada desse jogo de relação entre corpo e
ambiente, tendo em vista também a comunicação artística com o público. A
qualidade da percepção do ator para os acontecimentos das malhas enredadas do
corpo e da improvisação constitui seu foco de atenção, ação e comunicação. De
fato, para instrumentalizar a improvisação como recurso de criação, técnica e
estética teatral há que se compreender o corpo como produtor de idéias e não
somente veículo. Como coloca Brook, Um corpo destreinado é como um instrumento musical desafinado, em cuja caixa de ressonância há uma barulheira confusa e dissonante de ruídos inúteis, impedindo a audição da verdadeira melodia. Quando o instrumento do ator, seu corpo, é afinado pelos exercícios, desaparecem as tensões e os
63
hábitos desnecessários. Ele fica pronto para abrir-se às ilimitadas possibilidades do vazio (Brook, 1999 : 18).
Na perspectiva de um corpo produtor de idéias e capaz de percebê-las e
expressá-las, a consciência do corpo é fundamental na constituição do
treinamento, conforme depoimento de Oida, A primeira coisa que o ator precisa aprender é a geografia do corpo. [...] Aprender a geografia do corpo não é uma simples questão de fazer exercícios ou adquirir novos e interessantes padrões de movimentos. Isto exige uma consciência desperta. Percebam os modos como ficamos de pé normalmente. As pequeninas regiões de tensão ou desequilíbrio afetam não só nossa facilidade de movimento e nossa expressão externa, mas também a forma como estamos nos sentindo emocionalmente. Cada minúsculo detalhe do corpo corresponde a uma diferente realidade interior (Oida, 2001: 40).
Como observam Paoli-Quito (anotação de aula26) e Peter Brook (1999) é
necessário para uma improvisação um estado de esvaziamento do corpo/mente e
um esvaziamento do espaço para que algo novo, o espontâneo, possa acontecer.
Isso não implica um vazio ignorante, sem informação, muito pelo contrário,
trata-se de um vazio inteligente, no qual o espaço, os objetos, o ator e sua ação,
já existentes, ganham sentido e significado quando co-participam de uma
construção comum: a cena. A improvisação não é um vale-tudo, parafraseando
Brook (1999), é um lugar onde tudo é possível, mas esse “tudo” não pode ser
qualquer coisa.
A habilidade para a improvisação fundamenta-se na capacidade de ouvir
o outro, responder a ele e interagir com ele. No trabalho de Paoli-Quito, o
treinamento habilita o corpo a perceber e jogar na relação com o outro. Não
necessita de uma codificação específica do movimento, mas de um corpo apto à
interação com o outro, entenda-se esse outro como os parceiros de cena, a
música, o cenário, a platéia, os imprevistos e os previstos e a própria linguagem
teatral.
26 Curso extensivo de clown, Estúdio Nova Dança, São Paulo, 2001/02/03.
64
O treinamento da improvisação garante a construção de possibilidades
sígnicas na ação inserida no contexto da criação da linguagem teatral,
construída pela improvisação. A improvisação caracteriza-se por sua
instabilidade. Para aventurar-se na compreensão dessa técnica tão fluida são
necessários novos pressupostos teóricos, metodológicos e ontológicos. Ao
repetirmos um mesmo movimento, pode ser possível retomar algumas idéias ou
sensações ou não, como também pode ser possível ou não que surjam outras
sensações e idéias. Para o ator lançar-se nessa área de incertezas e inúmeras
possibilidades é necessário um árduo treinamento. Treinamento para lidar com
os imprevistos. Treinamento para perceber o ambiente e se perceber no
ambiente. Treinamento para estar presente. Treinamento para articular signo e
constituir a linguagem cênica da improvisação.
O treinamento do clown, sob a perspectiva de Cristiane Paoli-Quito,
constitui um meio possível para explorar as questões relativas ao modo como o
corpo do ator se habilita para a improvisação teatral. Como se organiza um
treinamento do corpo para improvisação dentro do modo até aqui apresentado?
Ou seja, um corpo consciente de si e de sua relação com o espaço, disponível,
presente, receptivo, atento, apto a contemplar, observar, reagir, interagir, jogar e
criar jogos e pensar em cena lançando as possibilidades de jogo da
improvisação para construir a dramaturgia da cena. Enfim, a escolha pela
metodologia de Paoli-Quito deve-se sobretudo a essa possibilidade de
contemplar algumas possíveis e profundas respostas a essa questão na qual se
enredam as malhas do corpo à improvisação no teatro.
65
Capítulo 2
2. CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA MÍDIA
2.1 O treinamento de Cristiane Paoli-Quito
No primeiro capítulo, foi traçado um panorama no qual se
contextualizaram as questões suscitadas pela improvisação. Nesse contexto
insere-se também a metodologia de Cristiane Paoli-Quito que contempla a
improvisação nas suas qualidades de treinamento e de estética teatral. Busca-se,
por meio dela, treinar as qualidades de ação do ator (presença, disponibilidade e
espontaneidade) e investigar as possibilidades estéticas da construção de uma
dramaturgia criada e construída a partir do corpo.
Qual é então uma metodologia possível para chegar a essa dramaturgia do
corpo? Que princípio rege essa metodologia? Qual o treinamento necessário
para constituir o estado de presença cênico? Como um treinamento auxilia a
construção de um estado de percepção, um corpo alerta e disponível? Como o
treinamento orienta a construção do movimento? Qual é a demanda de
constituição do treinamento para que ele seja um ambiente propício ao exercício
da ação espontânea? E, especificamente nesta tese, como esse corpo cria e
articula seus padrões de movimento para o clown? Apresentar como Paoli-Quito
responde a essas questões em seu trabalho justifica a escritura deste capítulo.
Ele se concentrará nos procedimentos do treinamento do clown, a partir da
metodologia de trabalho de Cristiane Paoli-Quito. Busca-se com isso uma
melhor compreensão da instrumentalização técnica e artística apurada por essa
metodologia, que é regida pelo princípio de “Movimento-Imagem”
(denominação dada por Paoli-Quito) e constitui-se de técnicas e exercícios que
primam pelo desenvolvimento da consciência do corpo no espaço. A um só
66
tempo, a improvisação de movimento com essa qualidade de consciência orienta
a construção do movimento no corpo do participante por meio de sua própria
pesquisa. O jogo organiza o fluxo das relações como um parâmetro de
realização de um exercício. Em suma, trata-se de um processo de treinamento e
criação que se organiza a partir do desenvolvimento conjunto das habilidades
motoras, perceptivas e cognitivas do corpo.
Nesse ponto, vale lembrar que os cientistas cognitivos aqui estudados
pontuam o caráter sensório-motor dos processos cognitivos (vide conceito de
Embodied Mind no cap.1, p.47). Resguardadas as devidas diferenças entre as
pesquisas de Paoli-Quito e as pesquisas e protocolos científicos encontrados nas
Ciências Cognitivas, tenho por objetivo verificar que a qualidade desse
treinamento não se deve somente aos resultados que podemos verificar no corpo
dos atores e bailarinos que trabalham nessa metodologia. Mas também ao fato
de que, de uma forma ou de outra, os exercícios desse treinamento e o modo
como eles estão articulados desenvolvem um processo de aprendizagem
semelhante ao modo como o corpo aprende, tal como as Ciências Cognitivas
com seus protocolos científicos podem oferecer ao nosso parco conhecimento do
corpo humano e de seu funcionamento no ambiente.
A título de exemplo indicial dessa relação, alguns exercícios de
improvisação parecem convocar o mecanismo de ação corpo/mente que fica
mais evidenciado quando ausente, como no caso de patologias neurológicas1.
Por exemplo, Alain Berthoz (2003) comenta casos de heautoscopia, ou seja,
grosso modo, pacientes que vêem a própria imagem a sua frente. Berthoz utiliza-
se desse exemplo como argumento para fundamentar a hipótese de que o cérebro
produz uma representação do corpo que é um duplo idêntico a ele mesmo. Um
dos jogos que realizamos como pesquisa de movimento consiste em o ator
visualizar o corpo no espaço e, posteriormente, dirigir-se ao que viu (lugar e
1 Vale lembrar que Antônio Damásio, V.S. Ramachandran e Alain Berthoz são neurologistas e que suas pesquisas surgem também do atendimento de casos de patologias neurológicas.
67
forma) buscando “encaixar-se” naquilo que viu de si mesmo. Esse procedimento
exige um grau de atenção e concentração que acentua a presença cênica e
permite ao ator visualizar uma possível seqüência para o movimento iniciado.
2.2 “Movimento-Imagem”
No contexto do treinamento, o “Movimento-Imagem” é uma proposição,
criada e investigada por Paoli-Quito em seus 20 anos de observação da prática
de ensino, ensaio e pesquisa da linguagem teatral e da dança contemporânea.
Trata-se de uma terminologia utilizada para sintetizar essa prática, a partir da
qual se desenvolveu um exame minucioso do processo de construção de uma
idéia no corpo do ator. Nessa observação, Paoli-Quito pontua que essa idéia se
desenvolve a partir do movimento. O corpo se apercebe das sensações de
movimento e de imagens que está criando no espaço e que, simultaneamente,
está compondo uma idéia. O princípio do
“Movimento-Imagem” implica uma atenção especial
à percepção e à consciência do fluxo de movimento,
de imagem e de idéias, que, concomitantemente, se
criam no processo de treinamento. Em cena, esse
princípio rege a construção da dramaturgia.
Aula no Estúdio Nova Dança, em 17/06/04. Atrizes: Luciana Paes de Barros e Flávia Melman. Fotos: Ana Dupas
68
Já na dissertação de mestrado apresentei o principio fundante dessa
metodologia nos seguintes termos:
Os diversos exercícios que compõem a sua metodologia contêm a idéia do princípio do “Movimento-Imagem”: “o movimento que me leva a outro movimento, que me leva a uma imagem, que me leva a uma idéia” (Paoli-Quito, 2000). Esse princípio é chave para a compreensão desse trabalho. Consiste em o ator ter conhecimento de que imagem ele está sendo capaz de produzir e está transmitindo para o espectador. ”Fotografar cada instante. Se o ator for consciente de cada uma dessas imagens, ele vem preenchido desde lá (desde o início do movimento) e ele vem dizendo coisas. [...] Então, o improvisador começa a ter consciência de tudo que ele faz e aí ele começa jogar para a platéia” (Paoli-Quito, 2000). A seqüência de movimentos-imagens compõe uma idéia. “A idéia é a cena” (Paoli-Quito, 2000). Nesse princípio, busca-se compreender o movimento suscitando uma intenção e não uma intenção motivando um movimento (Machado, 2000: 76).
Primeiramente, embora colocado numa ordem aparentemente seqüencial –
movimento gera imagem, que gera uma idéia, que gera um movimento – é
importante pontuar que não se trata de uma relação de causa e efeito, linear e
fechada nessa relação seqüencial. Pelo contrário, trata-se de um complexo de
relações comunicativas e interativas em fluxo, uma vez que o corpo em cena
(em deslocamento no espaço ou em pausa) já contém os movimentos prováveis,
as imagens possíveis e as idéias plausíveis. As imagens já contêm os
movimentos, as imagens e as idéias concebíveis. As idéias, por sua vez, geram
movimentos e imagens e são geradas por eles. Não existe fluxo de movimento
sem a imagem e sem a idéia, não existe imagem e idéia que não se constitua de
um movimento. Em segundo lugar, é necessário observar que o termo
“movimento”, para esta tese, implica deslocamento no espaço e pausa.
No fazer, a atenção do ator pode estar na pesquisa de movimento ou no
fluxo de imagens ou de idéias que acompanham o movimento. Por exemplo,
pesquisar o movimento a partir da relação cabeça e pés. Em determinados
momentos, o que chama a atenção durante a realização da pesquisa é o fluxo de
movimento gerado por essa relação que pode sugerir a imagem de alguém
69
procurando algo no chão. O ator pode entrar na
pesquisa dessa imagem e, sem perder a relação
com o foco de pesquisa do movimento (pés e
cabeça), pode desenvolver uma idéia, uma cena
sobre a procura, sem necessariamente
representar que está procurando algo. A qualidade
da idéia torna-se mais ou menos inteligível e
clara, entre outras razões, conforme a
inteligibilidade da pesquisa e dos focos realizados
do que propriamente pela exacerbação do
movimento e/ou da imagem e/ou da idéia
desenvolvida.
Fotos de Ensaio, Puc, 23/02/05 Foto: Fernando Passos
xo do
“Mov
Ou seja, não há uma idéia preconcebida que organiza o fazer. Não se trata
de entrar em cena com um plano de ação ou algo que se quer dizer. Entra-se em
cena com algum foco de pesquisa no corpo, por exemplo, os pés. Trata-se de
perceber que o corpo produz imagens (mesmo em pausa), estas são percebidas
pelo público que, por sua vez, se mantém atento, na expectativa do que pode
acontecer. O treinamento possibilita ao ator perceber a continuidade e o flu
imento-Imagem” e, conseqüentemente, o fluxo de idéias produzido.
Além de todo esse procedimento contar com o alto grau de percepção e
consciência, o princípio de “Movimento-Imagem” constitui-se de uma
compreensão de fluxo de movimento, de imagem e de idéia. Isso implica que
70
nenhuma das três situações (movimento, imagem e idéia) se configura a priori,
nenhuma é determinante da outra e todas só se constituem no fluxo do fazer,
com maior ou menor predominância de um ou de outro aspecto. Por outro lado,
como fluxo, o conjunto do movimento, da imagem e da idéia tem seu tempo de
desenvolvimento e duração, tem um começo, um meio e um fim, única e
exclusivamente sob a perspectiva de um fluxo de energia em densidades e
dinâmicas distintas e não necessariamente de uma narrativa. Cabe ao ator
perceber esse fluxo para não se fixar, despropositadamente, no movimento ou na
imagem ou na idéia. É o que Paoli-Quito costuma chamar de não se fixar numa
históri
do ator na pesquisa rela
dos recursos
entais de sua otimização e precisão.
Aula no stúdio Nova Dança. Dia 17/06/04. Atrizes: Luciana P. Barros e Gabriela. Foto: Ana Dupas
a.
Assim, o princípio do “Movimento-Imagem” demanda um engajamento
tiva à percepção do fluxo de movimento, de imagem, da
idéia, dos estados de atenção e concentração que se
estabelecem na relação do corpo com o espaço,
integrando-os. Requer um estado de concentração e
atenção específico para perceber qualquer elemento de
dispersão que afete o engajamento, exigindo a
consciência desses procedimentos como um
fundam
E
Nesse sentido, a percepção e a consciência desses fluxos (movimento,
imagem, idéia, atenção, concentração e da própria consciência) e a integração do
corpo ao espaço dão lugar à composição de dinâmicas, às configurações de
densidades, aos constrates diversos, à realização de pausas como os elementos
dessa dramaturgia. O objetivo da cena é compartilhar com o público o fluxo de
“Movimento-Imagem”, exacerbando a criação do corpo no espaço, suas
71
possib
plia as possibilidades de
do um modo
e uma lógica próprios de cada corpo na construçã
e com osição cênica do movimento. o Estúdio Nova Dança, dia 09/06/05. Atriz: Sheila Areas. Foto: Ma Ângela
onsciência corporal de várias linhas de trabalho da
educação somática2, práticas de respiração do Aikido3 e técnicas de
ilidades criativas, imagéticas e de pensamento, ou seja, uma dramaturgia
criada pelo corpo.
No percurso dessas experimentações, inúmeros movimentos, imagens e
idéias podem ser produzidos e identificados. É possível suscitar emoções, não
necessariamente uma emoção que, por exemplo, entristeça o ator, mas que traga
a sensação da tristeza, podendo sugerir a imagem de uma pessoa triste. Inúmeros
personagens podem surgir por meio da composição fí
gestos e ação. O treinamento de Paoli-Quito am
desenvolver novos padrões e qualidades de
movimento e, mais que um repertório de
movimentos, as possibilidades de relação entre os
movimentos conquistados, distinguin
sica formada pela postura,
o
pAula n
2.3 Você sabe voltar para sua casa à deriva?
O trabalho corporal constitui o suporte articular da metodologia de
treinamento de Paoli-Quito. Isso implica que, desde o estado de presença até a
ação cênica, o corpo do ator detém inteira responsabilidade sobre o processo de
construção da sua linguagem artística e constitui foco de atenção, percepção e de
concentração, durante todo o treinamento. Esse aprendizado é alcançado por
meios de técnicas de c
improvisação em dança.
2 Cristiane Paoli-Quito realizou formação também com práticas e técnicas de dança e de treinamento do ator que
stina Brandini. Fez cursos com Pol Peletier e
investem na consciência do corpo como instrumento. Entre elas, a técnica de Klauss Vianna por intermédio de Neide Neves, técnicas de Nova Dança como Contato Improvisação, advinda da parceria com Tica Lemos desde 1996, realizou workshops BMC com Rose Akras e eutonia com Cri
72
Vale a pena um pequeno e sintético relato dessas técnicas que dialogam
com o treinamento e o instrumentalizam. Da educação somática esse
treinamento se utiliza de técnicas da Ideokinesis e do Body Mind Centering
(BMC).
A Ideokinesis consiste num método educacional de reestruturação do
corpo a partir do sistema neuromuscular. O termo diz respeito ao processo
psicofísico no qual a imagem e o senso cinestésico estimulam uma mudança
corporal. Dessa técnica vale ressaltar a utilização de um conceito de ação na
forma de imagem visual ou cinestésica (sensação de movimento) para estimular
e reorganizar o sistema neuromuscular. A percepção da imagem de movimento
e/ou sensação do movimento constitui pano de fundo de toda e qualquer
experimentação realizada no treinamento de Paoli-Quito – clown, interpretação
e improvisação dança-teatro.
O uso de conhecimentos e imagens da
anatomia humana é subsidiário da Ideokinesis
bem como do BMC. O objetivo do estudo
anatômico nesta última técnica consiste em ter
uma imagem visual do sistema do esqueleto,
por exemplo, para que, por meio do toque, se
possa reconhecer determinada forma no
ca
es
co
re
A 2
deQu3 Afora b
ula no Estúdio Nova Dança, dia8/04/05. Foto Ma Ângela
próprio corpo ou no do companheiro. Nesse
so, tanto quem recebe como quem oferece o toque instrumentaliza-se com
sa visualização. Ou seja, o reconhecimento pelo toque é tanto de quem recebe
mo de quem oferece. Esses conhecimentos de anatomia orientam o modo de
alizar o toque e o que nele pesquisar.
Improvisação por Katie Duck, além de práticas meditativas orientais. Atualmente, tem como assistente Tarina elho, educadora somática em formação pela Body-mind Centering School, nos EUA. ikido é uma arte marcial japonesa, fundada pelo Mestre Morihei Ueshiba. Foi criada com base em antigas
mas de artes marciais, adaptadas para a era moderna. Tem como princípio o fato de que a união entre a força e eleza geram uma atitude correta em relaçao às leis da natureza.
73
No BMC, o trabalho de consciência corporal é compreendido como a
incorporação de conhecimento de nosso próprio corpo. Isso se realiza mediante
estudo
iração constitui um instrumento bastante
compe
reconhecer e criar seu próprio padrão de movimento, bem como desenvolver as
s da anatomia e do toque com o objetivo de tornar consciente uma ação
que está automatizada; por exemplo, andar de bicicleta tal como exposto no
capítulo 1 (p.62). Trata-se, em última instância, de desenvolver uma habilidade
perceptiva do próprio corpo.
As técnicas de respiração vindas do Aikido são realizadas individual ou
coletivamente. Elas são bastante representativas de uma primeira busca de
integração entre as pessoas. Dentre algumas metáforas utilizadas para a relação
do palco-platéia, encontramos a idéia de o ator respirar com ela e vice-versa, ou
seja, a respiração constitui um modo de conexão entre as pessoas. Um exemplo
mais imediato pode ser encontrado numa apresentação para o público na qual
percebo, no meu trabalho em cena, que, quando canso e paro para respirar e dou
claramente um suspiro, a reação mais comum é o público suspirar também. Os
exercícios de respiração preparam os participantes para a percepção dessa
conexão. De fato, a atenção na resp
tente tanto para gerar estados corporais como para restabelecer um estado
de relaxamento que, por sua vez, habilita e revigora o estado de disponibilidade
e receptividade, retomando fluxo de concentração e percepção, seja no
treinamento seja numa apresentação.
Nesse treinamento, essas técnicas vêm acopladas ao Contato
Improvisação4, uma técnica de improvisação em dança, sistematizada pelo
norte-americano Steve Paxton, no início dos anos 1970, e consiste na
improvisação da dança baseada no contato entre os corpos, seja esse contato
direto ou não. Seus exercícios permitem a construção de um corpo apto a
possibilidades de relação, diálogos e composição cênica entre dois corpos em 4 O Contato Improvisação constitui uma técnica de improvisação em dança desenvolvida também pelo americano Steve Paxton. Entre outras dançarinas dessa técnica no Brasil, encontra-se Tica Lemos, dançarina e co-diretora da Cia Nova Dança 4.
74
movimento. Conforme Tica Lemos5, “os processos para se desenvolver os
sensos de equilíbrio, harmonia, movimento, consciência espacial, corporal e
energé
ta objetivando a automassagem,
utiliza a
i
para a dança e o teatro. Tro
integração anatômica e f
tica são trabalhados com exercícios específicos para cada coisa, mas que
visam englobar todos os elementos para a prática da dança”.
Os exercícios básicos do Contato Improvisação são os rolamentos no
chão. Aliás, o chão, no treinamento de Paoli-Quito, é constantemente usado e
explorado. Por exemplo, o corpo se movimen
ndo o chão como massageador; rolamento do
pesquisa de movimento focando-se os apoios.
Observa-se em todas essas técnicas a
contribuição para o desenvolvimento dos estudos
de anatomia e fisiologia humanas dirigidos para a
qualificação da ação do corpo, seja com um fim
terapêutico tal como é o objetivo do BMC e da
m de criação artística
cando em miúdos: ao
conhecer, por exemplo, a es
s ossos contra o chão e
Ideokinesis, seja com um f
conseguir percebê-la, usar s
ósseo com os outros sistema
de movimento, a auto-obse
observação e a interação co
modificam. Entre outras observações, a pesquisa de m
nesse sistema conduz, perceptivelmente, a uma auto-o
muscular que, com o apoio do sistema ósseo, realiza ape
A R
5 Tica Lemos, bailarina, uma das introdutoras da técnica de dança Contato Impqual desenvolve uma linguagem própria. É sócia fundadora, diretora e professfundadora e co-diretora da Cia. Nova Dança 4. 6 No treinamento de Paoli-Quito, são trabalhados os outros sistemas corporais tdos exemplos recai, porém, sobre o sistema ósseo, por uma questão de maior fam
Aula no Estúdio Nova Dança, dia 09/06/05. Atriz: Melissa
Panzutti. Foto: Ma Ângela
isiológica do sistema
trutura óssea6 (ou seja,
eus apoios, perceber a
s e etc.) e a qualidade
rvação do corpo e a
m o corpo do outro se
ula no Estúdio Nova Dança,dia 09/06/05. Atriz: Fernandaapzarda. Foto: Ma Ângela
ovimento concentrada
rganização do sistema
nas a força necessária
rovisação no Brasil, a partir da ora do Estúdio Nova Dança. É
ambém. Nessa tese, a incidência iliaridade com ele.
75
ao m
os mais
articulares e pesados, o sistema muscular favorece movimentos de contração e
expansã ilarino
desenvo
abalhar muito a intenção, a sutileza, buscar descobrir outros meios de comunicação e, assim, nesse
e na observação do ator
o corpo, com o objetivo de
ovimento, evitando tensões desnecessárias; oferece maior clareza da
relação de apoio, sustentação, peso e equilíbrio do corpo nas diversas qualidades
e padrões de movimento, sobretudo, os relacionados ao deslocamento no espaço.
Do mesmo modo, quando outros sistemas são trabalhados, ficam
evidentes as diferenças nas qualidades e padrões de movimento desenvolvidos.
Por exemplo, se o sistema ósseo favorece a realização de moviment
o. É com essas ferramentas que, basicamente, o ator ou ba
lve sua pesquisa de movimento no treinamento de Paoli-Quito.
Isso ajudou demais a fazer o ator compreender de onde vem essa presença cênica. [...] Hoje, é muito difícil conceber um trabalho sem esse anterior, sem essa conscientização. Naturalmente, o trabalho de instrumentalização ficou mais rico. Porque não fica etéreo (Paoli-Quito, 2000, entrevista pessoal). Como se fazer comunicar sem a palavra? Tr
sentido, o trabalho corporal é fundamental. Por isso existe todo um treinamento muito rigoroso de reconhecimento do corpo. E, nesse sentido, a gente vai buscar o esqueleto desde os ossos do pé, quantos são, tíbia, fêmur, quadril, coluna, cabeça (Paoli-Quito, 1998: 2).
O trabalho de consciência corporal no treinamento de Paoli-Quito conduz,
sobretudo, ao trabalho relativo à pesquisa de movimento e à interpretação. O
caminho percorrido para chegar a esse estado de pesquisa é bastante longo e
intensamente focado na concentração, na percepção
sobre seu corpo. Para tanto, a fase inicial das ativid
aquecimento individual, focalizando-se a percepção d
reorganizá-lo para a ação. Desse modo faz-se
necessário reconhecer as tensões, observar o fluxo
de respiração e de pensamento e identificar as suas
necessidades. Trata-se de um modo de relaxamento
e de atenção ao corpo como forma de despertar a
ades concentram-se num
Aula no Estúdio Nova Dança, dia 28/04/05. Foto: Ma Ângela
76
presença e a atenção do ator para aquele momento e lugar – aqui e agora. Trata-
se de um trabalho de percepção do corpo em estado de não-ação, sem
movim
a deixar-se contaminar pelas relações estabelecidas.
Poster
ue o corpo
esteja atento aos próprios proc
x
por procedimentos que o ator co
ento, apenas um estado de observação, respiração e concentração nas
sensações imediatas do corpo – uma convocação, construindo as primeiras
relações entre os ambientes de trabalho: corpo e espaço.
Vale ressaltar que esse momento do treinamento é crucial para que o ator,
na relação com os outros, possa manter-se ciente de seu eixo de pesquisa e, a um
só tempo, permeável par
iormente, o participante vai entrando em relação com os outros, por meio,
por exemplo, de jogos sutis de olhares ou toque leves, criando novos modos de
relação com o ambiente.
O relaxamento constitui um modo de tirar as tensões para estar presente
sem rigidez, logo permeável, com precisão, mas sem força desnecessária.
Assim, o relaxamento consiste num estado ativo de percepção, uma vez é
considerado um estado necessário para a disponibilidade, ou seja, a
disponibilidade para a percepção e, portanto, uma prontidão também para a ação
(Berthoz, 2003)7. Por essa razão, é preferível que o corpo não esteja entregue a
qualquer processo de relaxamento ou adormecido. É conveniente q
essos de relaxamento (inclusive aos
iliado pelo exercício de toque a dois ou mesmo
nsegue desenvolver para relaxar-se.
Entre as técnicas para alcançar o
relaxamento, o toque (a massagem) constitui um
recurso bastante eficiente e recorrente no
treinamento de Paoli-Quito. A orientação para
realização do toque sugere um profundo respeito
adormecimentos), seja ele au
7 pesquisas de Berthoz fazem a relação entre percepção e ação. Sendo a p rões neurais gerados pela percepção engendram a reação de padrões n pecto, por meio do relaxamento, talvez vemos em treinamento a relação i
AD P
Vale relembrar nesse ponto que as ercepção uma ação simulada, os padeurais que realizarão a ação. Nesse as
ula no Estúdio Nova Dança, ia 28/04/05. Atrizes Tanina Quelho eaola Musatti. Foto: Ma Angela
ntrínseca existente entre percepção e ação, tal como Berthoz apresentou como resultado de suas pesquisas.
77
àquele que será tocado em vários aspectos. Busca-se que o toque seja um
convite ao outro e não uma imposição. A atenção e a precisão de quem toca
oferecem ao outro uma informação também mais precisa. Vale relembrar que o
toque é utilizado também como modo de reconhecimento do corpo. Portanto, a
qualidade do toque varia conforme o objetivo da pesquisa, ou seja, cada sistema
do corpo8 a ser estimulado e estudado demanda um modo de tocar diverso. Essa
variação vai desde um toque de calor, no qual a mão não encosta no corpo do
outro, até um toque mais profundo em busca de desenhar os ossos. Vemos assim
que o toque exercita a receptividade, a generosidade, a possibilidade de afetar, a
concentração, a atenção, a percepção e o reconhecimento do corpo tanto para
quem o recebe como para quem o oferece. E por que não supor que esses
exercí
o num osso ou na sensação ou na respiração ou etc. O importante é
saber voltar para casa quando se está à deriva dos fluxos de “Movimento-
Imagem”.
cios de toque sejam também uma aquisição de habilidade para o “tocar” o
público?
Toda essa preparação objetiva que o ator mantenha seu foco centrado no
corpo, seja durante o treinamento, seja em uma apresentação. O centramento
favorece a percepção da própria pesquisa de movimento e do jogo de relações
que se desenvolve na cena. Contribui para manter certo controle sobre a
ansiedade, a obsessão e a autocrítica (três dos principais fantasmas que
assombram o ator durante a improvisação). E produz um estado de confiança,
uma vez que instrumentaliza o ator para algum momento em que ele não sabe
para onde ir. “Se você não sabe para onde ir, volte para casa”9; essa casa pode
ser um foc
8 Conforme o BMC, os sistemas do corpo são: esquelético, muscular, circulatório, linfático, dos órgãos, endócrino e nervoso. Nesse sentido, a orientação para o toque também é seguida conforme as instruções do BMC. 9 Frase dita pelo ator Sotigui Koyaté da Cia. de teatro de Peter Brook, em palestra proferida no Centro Educacional Unificado Inácio Monteiro (CEU- PMSP) no dia 18 de agosto de 2004.
78
2.4 Tudo é cênico
Os estados integrados de relaxamento, observação, concentração e
percepção constituem o ambiente para a realização propriamente dita da
pesquisa de movimento. Esse início do treinamento habilita o corpo à percepção
de sen
focos de
pesqu truções de somatória que o
sações e imagens de movimento constituídos por meio de exercícios de
técnicas de consciência corporal.
É importante notar que o próprio treinamento constitui um contínuo de
atividades. Ou seja, o modo e/ou os exercícios de início acabam por direcionar
também as atividades posteriores. O modo como é feito e a dinâmica que o
grupo apresentou no fazer compõe as instruções para a continuidade do foco de
pesquisa10. Assim, as instruções para a pesquisa de movimento variam conforme
as necessidades e possibilidades apresentadas no fazer, acrescidas ou não da
retomada de trabalhos dos dias anteriores. A esse procedimento Paoli-Quito
denomina de somatória. Trata-se de exercitar o corpo integrando outros
isa já incorporados. Espera-se com as ins
próprio participante integre conscientemente as pes
Por exemplo, no dia 31 de março de 2005
a proposição inicial de atividade coletiva foi a
roda de massagem dos pés
quisa já realizadas.
11. Durante a
massagem, foi proposto que quem quisesse
poderia contar uma mentira ou uma verdade e o
grupo decidiria se era mentira ou verdade. No
10 Foco de pesquisa refere-se à atenção especial dada a alguma parte do corpo (um órgão, p.ex.) ou de seu funcionamento (respiração) a partir do qual a pesquisa de movimento se desenvolverá.
Aula no Estúdio Nova Dança, dia 28/04/05. Foto Ma Ângela.
11 Roda de massagem dos pés é uma das atividades iniciais coletivas na qual cada participante massageia o pé do seu vizinho e, a um só tempo, tem seu pé massageado pelo outro vizinho, neste ínterim alguém pode cantar ou contar uma piada. Este exercício exige um grau de atenção a todos estes acontecimentos, portanto, treina conjuntamente um modo de estar presente e atento que se opera, também, similarmente, em cena.
79
decorrer do treinamento, deu-se continuidade à pesquisa que investigava o
movimento a partir dos pés, somado ao trabalho anterior sobre os olhos,
acrescidos da investigação de modos de ação do corpo para contar uma mentira
ou uma verdade. De uma forma prática, o conceito investigado nesse dia girou
em torno da questão da verdade cênica12, elemento crucial em qualquer
metodologia de trabalho de teatro. Considerando a ação cênica, é possível
perceber quando o corpo está com verdade em cena ou não. Por um lado,
evidenciou-se a importância do treinamento para atingir a verdade cênica, por
outro,
e suas qualidades em todos os
a instru
p
a importância da verdade cênica para se comunicar.
Assim, a pesquisa de movimento constitui o modo de reconhecimento,
exercitação e criação dos padrões de movimento e do exercício de percepção do
“Movimento-Imagem” a partir da atenção voltada para um foco de pesquisa. É
interessante notar que as instruções orientam o foco da pesquisa, os resultados
são particularizados para cada participante, porém é possível observar uma
recorrência de padrões de movimentos e d
participantes conforme ção oferecida.
O ator realiza a pesquisa de movimento de dois
modos complementares fazendo a sua pesquisa e
observando a pesquisa do outro. Vamos nos ater um
pouco nesse segundo modo, visto que ele é tão
importante quanto o primeiro e não foi até o momento
r
A dM
i
a
1eV
ula no Estúdio Nova Dança,ia 28/04/05. Ator: Pedro antovani. Foto: Ma Ângela
e
esqu
pontuado. Depois de realizado o toque, aquele que o
ecebeu experimenta seu corpo e sua movimentação de acordo com o foco d
isa, enquanto aquele que o ofereceu observa a pesquisa do companheiro.
Nessa tarefa, o observador exercita sua percepção em vários sentidos: 1)
dentificar o foco de pesquisa de movimento; 2) notar os fluxos de imagens que
quele corpo está produzindo; 3) verificar as possibilidades e qualidades de
2 Verdade cênica constitui uma qualidade de ação no palco na qual se percebe claramente a sinceridade do ator a sensação de veracidade na realização da ação. Pode ser verificada também em A preparação do ator, capítulo II, de Constantin Stanislavski, 1989.
80
movimento daquele foco de pesquisa; 4) observar as semelhanças e as
diversidades de movimento em relação ao seu próprio; 5) notar as sensações que
aquela pesquisa gera em seu próprio corpo. A um só tempo, aprender a ver o
outro implica desenvolver esta capacidade de observação sobre seu próprio
trabalh
cepção e, para uma cena de
impro
o
grupo, a execução de alguma técnica do olhar ou da triangulação, entre outras.
o. A essa auto-observação, Paoli-Quito denomina “observador interno”.
Por um lado, neste ponto, podemos relembrar as pesquisas de Berthoz
(2001) cujos resultados apontam para a percepção como ação simulada do
movimento tal como exposto no capítulo 1 (p.41). Observar a pesquisa do
companheiro constitui também um processo de aprendizagem do movimento.
Por outro lado, o recurso de auto-observação pode ser compreendido como o
exercício consciente de nosso sentido do self tal como apresentado por Damásio
(vide cap.1, p.60). Segundo ele, a consciência (central e ampliada) se faz porque
existe um sentido de self que relata ao corpo que é ele que está sentindo e não
outro. No cotidiano, essa função é constante e pode passar despercebida pela
própria consciência. Mais uma vez, exercitar conscientemente o sentido de self
repercute na nossa capacidade de autoper
visação, a autopercepção é fundamental.
O foco de pesquisa de movimento está diretamente relacionado com o
processo de aquecimento e de massagem (quando é utilizada). Por exemplo,
caso se realize um toque na coluna, o foco da pesquisa de movimento será
relacionado à coluna, ou seja, às suas possibilidades de movimento (torção e
flexão), à sinuosidade, à extensão e repercussão do movimento da coluna para
outras partes do corpo, à reorganização do movimento e da postura a partir da
coluna. As possibilidades de definir os focos de pesquisa são bastante grandes.
Imagine que, no mínimo, poderiam corresponder ao número de ossos de nosso
corpo, fora as combinações que se realizam, como, por exemplo, as relações
entre escápulas e entre tíbia e fíbula. Os critérios para seleção do foco de
pesquisa estão relacionados com uma série de fatores: alguma demanda d
81
Para esta tese, selecionei alguns focos de pesquisa mais recorrentes à
construção do corpo do clown. De antemão, as descrições que seguem visam
ilustrar possíveis instruções e alguns resultados. Como veremos adiante, o que
se pode verificar nesse processo é que o treinamento do clown por meio da
improvisação se caracteriza por uma série de exercícios corporais não-
padronizados ou amparados por um modelo de atuação, ou seja, exercícios que
permitem uma maior exploração do recurso expressivo de cada corpo. Portanto
se torna irrelevante descrever minuciosamente cada exercício como padrão de
movimento, visto que ele constitui apenas uma instrução, não exigindo um
modo único para ser realizado nem pressupondo um resultado único, mas, ao
contrário, caracterizando-se pela amplitude de possibilidades de resolução dos
problemas e resultados possíveis.
O que importa é compreender esse treinamento como um conjunto de
procedimentos e instruções interarticulados, um contínuo de atividades que
começa na chegada à sala de ensaio até a saída. O aquecimento individual, o
aquecimento em grupo, o jogo, o toque, a pesquisa de movimento e o jogo de
improvisação estão entrelaçados. Esse alerta serve para atentarmos no fato de
que o risco de descrever um exercício é retirá-lo de seu contexto. De algum
modo, porém, devemos correr esse risco para tentar clarificar os procedimentos
e as instruções. Caro leitor, neste caso, o melhor mesmo é fazer o treinamento.
Entre os focos de pesquisa selecionados, encontram-se os olhos e o olhar, os pés,
a coluna – principalmente a vértebras cervicais e cóccix, as escápulas e a tíbia e
fíbula.
No treinamento de Paoli-Quito, pode-se afirmar que o clown está na
qualidade do olhar, um modo específico de conexão e de afeto com o mundo.
Paoli-Quito insiste no “brilho no olhar”. Essa instrução já reorganiza o olhar do
participante. Para uma melhor incorporação dessa instrução, realiza-se um toque
no contorno ósseo dos olhos, pesquisam-se as musculaturas do globo ocular e
experimentam-se as possibilidades de movimento dos olhos (movimento do
82
globo, pálpebras e musculatura da face e a focalização) e as sensações, as
expressões e as imagens que cada movimento produz. Finalmente se investiga
também como o corpo se reorganiza nessa pesquisa. Busca-se um olhar ingênuo
(receptivo e curioso), expressivo, permeável, tranqüilo, vivo, que afete e crie
expectativa. Um dos exercícios que realizamos em dupla com os olhos consiste
em o participante conduzir seu companheiro com o olhar. Apenas com o
movimento dos olhos, o mandante ordena ao companheiro que ande, sente-se,
levante-se e etc. Dependendo do grau de conexão que se estabelece entre a
dupla, o mandante pode pedir ao parceiro que dê cambalhota e este fará o que
foi pedido.
Outro exercício é o jogo de espelho da máscara, realizado diante de um
espelho. Antes de vestir a máscara, o ator observa e explora seu rosto, suas
expressões e olhares e o rosto da máscara, suas angulações e expressões
decorrentes. É fundamental observar que se trata de uma experimentação
minuciosa e atenta às sensações, estados, emoções, expressões e idéias que o
exercício oferece. O experimento consiste em perceber, por exemplo, como
angulações da cabeça ou do olhar produzem e expressam estados corporais,
como o corpo se adequa a essas mudanças ou ainda como uma postura gera
sensações e estados corporais e assim por diante. Um jogo contínuo entre
estados do corpo e suas expressões e comunicações, sentidos e significados:
linguagem. O espelho, em um primeiro momento, auxilia a percepção mais
aproximada entre estado corporal (sensações de expressão) e expressão aparente.
Os pés são trabalhados também por meio da massagem. Eles orientam,
juntamente com a tíbia e a fíbula, entre outras possibilibades, a pesquisa de
movimento de modos de andar e suas sensações e imagens. Modos de andar, por
sua vez, podem suscitar inúmeros lugares, situações cênicas, personagens,
tempo, intenções, emoções e sentimentos (onde, o quê, quem, quando, como, de
acordo com denominação de Paoli-Quito).
83
Os pés possibilitam também o treino do que Paoli-Quito denomina de
“aterramento”, ou seja, a percepção do apoio dos pés no chão como modo de
manter o corpo/mente centrados e alertas, evitando devaneios sem consistência,
quimera do “fazer qualquer coisa”. Por um lado, os pés bem apoiados no chão
permitem identificar quando um ator está abaixo (demasiado retraído) ou acima
(demasiado altivo) de seu eixo. Nesse aspecto, o trabalho sobre a coluna
vertebral (descrito na p.81 deste capítulo) também é um forte aliado. Manter-se
no eixo, neste caso, significa ter como referência um posicionamento
perpendicular da coluna em relação ao chão e perceber quando se está à frente
ou atrás do eixo. Por vezes, no afã de comunicar-se, o ator projeta seu corpo à
frente do eixo. Esse é um dos vícios bastante comuns. O que importa é o ator
dar-se conta de que está à frente do eixo e que isso compõe o que ele está
comunicando.
Tanto o foco de pesquisa na coluna
como nas escápulas favorece uma maior
participação e presença das costas. As
escápulas vitalizam o movimento dos
braços e das mãos e auxiliam no
relaxamento dos ombros, no alargamento
das costelas e dos pulmões, promovendo
uma melhor qualidade da respiração. Quanto
ao movimento, o foco de pesquisa nas escápulas dá uma maior amplitude e
clareza do desenho e do posicionamento das mãos, dos braços e do tronco no
espaço.
Aula no Estúdio Nova Dança, dia 28/04/05. Bailarina: Lu Favoretto. Foto: Ma Ângela
A pesquisa de movimento a partir da tíbia e da fíbula tem três orientações
básicas e conjugadas: o deslizamento delas sobre o chão, o rolamento sobre elas
e as possibilidades de apoio desses dois ossos da perna. Esses exercícios
organizam o deslocamento do corpo no espaço e a exploração de padrões de
84
movimento nos vários planos (baixo, médio e alto). Assim, algumas ações como
levantar, deitar, sentar e cair podem ser exercitadas nesse contexto.
Enfim, as instruções e as pesquisas de movimento assumem uma
diversidade de funções inter-relacionadas no treinamento: a presença, a
disponibilidade, a atenção e concentração, o exercício e a criação dos padrões de
movimento do corpo e o desenvolvimento de uma determinada técnica. Muitas
composições desse gênero podem ser realizadas: nariz com cóccix, olhos e
escápula, olhos e pés, coluna e pés, atlas e cóccix etc., estimulando a percepção
das distâncias entre as partes, a oposição entre elas, suas ações em paralelo etc.
Cada qual tem funções específicas, explora padrões de movimento, produz
estados de divertimento variados e estimula possibilidades de jogos e
desenvolvimento técnico.
A triangulação constitui uma técnica fundamental para a performance do
clown. Trata-se de termo utilizado no teatro para designar o ato de olhar para o
público, quebrando a denominada quarta parede, o que é diferente de olhar na
direção dele. É uma técnica bastante utilizada na comédia. Para o clown, a
triangulação é um modo de compartilhar com o público e com o companheiro de
cena alguma sensação que está manifesta. Ela permite visualizar as
possibilidades de ação e conduzir a dramaturgia. Por meio da triangulação, o
ator convida a platéia para participar da cena. Entre outros exercícios para o
desenvolvimento dessa prática, além daqueles de olho e olhar acima descritos, a
pesquisa de movimento que integra a composição entre cervical e olhos, coluna
e nariz favorece uma aplicação mais precisa dessa técnica de comunicação em
cena.
A continuidade nesse treinamento acaba por integrar o corpo todo ao
movimento. Assim, conforme os focos de pesquisa vão sendo incorporados, o
corpo inteiro torna-se conscientemente incluído na pesquisa, mesmo que o foco
seja o pé. Por um lado, o treinamento possibilita desenvolver a presença do
corpo, o que qualifica melhor uma ação pequena como dobrar a orelha; por
85
outro lado, intensifica a percepção de tal modo que, no fluxo de movimento, o
ator pode deslocar os focos conforme a percepção do fluxo de “Movimento-
Imagem” ou do sobressalto de um foco de pesquisa inusitado advindo do
movimento.
O foco de pesquisa é acompanhado de instruções como a exploração do
movimento nos planos baixo (chão), médio (quatro apoios) e alto (dois apoios);
o desenho do corpo no espaço; identificação de começo, meio e fim do
movimento. Soma-se a essas instruções a atenção ao “Movimento-Imagem” que
cada foco de pesquisa suscita. Assim, não basta ater-se somente ao foco de
pesquisa, pois ele constitui apenas uma referência; faz-se necessário habilitar a
percepção do fluxo de “Movimento-Imagem” que é criado. Nesse sentido, a
instrução da pausa é um elemento facilitador dessa percepção.
A pausa é um elemento fundante nessa metodologia. No processo de
pesquisa de movimento e mesmo na improvisação, constitui o modo de
intensificar a percepção do ator acerca da imagem que está construída e da
sensação de seu próprio corpo, auxilia o relaxamento, o “aterramento” e a
respiração e renova a concentração e a atenção ao corpo. Pode servir como um
momento de espera de um novo fluxo de movimento e imagem, baixando a
ansiedade do “o que fazer?” Numa improvisação, a pausa gera ainda uma
suspensão que, darmaturgicamente, pode ser interessante, pois auxilia na
percepção da dramaturgia que está se compondo e gera possibilidades de jogo
para a composição da cena.
Paoli-Quito desenvolveu uma série de exercícios a partir da relação pausa
e movimento, denominada jogo de pausas. Por exemplo, numa dupla, quando
um está em movimento o outro fica em pausa; o segundo pode movimentar-se
somente quando o primeiro pausar; os dois podem pausar juntos e podem se
movimentar juntos caso saiam ao mesmo tempo da pausa. Essas e outras tantas
variações dessas regras compõem um escopo de jogo de pausa que orienta a
86
construção da cena, o jogo de composição, a percepção da situação, o foco no
corpo, a conexão, a localização e a organização no espaço.
De certa forma, o treinamento como um todo objetiva habilitar a
percepção para a manutenção da fluidez das sensações/movimento/
imagens/idéias. No conjunto do trabalho, o treinamento permite um estado de
atenção e percepção do corpo, o que prepara o ator para ter uma maior
percepção e expressão cênica das sensações, imagens e idéias que ele é capaz de
gerar por meio de seu movimento, das relações e dos jogos cênicos entre os
atores e com a platéia.
O movimento do ator não se limita à manipulação pura e simples de
músculos ou ao jogo da imaginação, mas às complexas conexões que se
articulam conjuntamente entre músculos, ossos, órgãos, sentidos, circulação,
respiração, imaginação, memória para a ação do corpo em um jogo contínuo de
trocas de informação entre esses sistemas do corpo na relação com o ambiente.
Se conhecedor da rede complexa de conexões que consiste seus atos, o ator poderá compreender mais amplamente seus processos de apreensão e conhecimento do mundo e de si mesmo, atento às questões referentes à inseparabilidade entre corpo, mente e cérebro e os estados de consciência (Nunes, 2003: 132).
Nesse conjunto de procedimentos e instruções, de fato, o que importa é o
modo como se faz, é esse estado de atenção, concentração, percepção e presença
que qualificam a pesquisa de movimento. Nos exercícios do treinamento, além
da atenção e concentração no corpo e suas qualidades de movimento, é preciso
observar a percepção das sensações, reações, imagens, sentimentos e
pensamentos que aquele movimento proporciona naquele momento e que podem
ser compreendidos como estados corporais (Damásio, 2003). Nas palavras de
Paoli-Quito corresponde à idéia de o ator estar presente em cada instante de
movimento como um fotograma de cinema. Isso habilita a experimentação, a
construção e a apropriação das possibilidades de movimento próprio de cada
87
corpo e as possibilidades comunicativas deste conjunto de ações do corpo –
movimento, sensação, imagem, pensamento – no qual todo movimento e
qualquer movimento, se não é, passa a ser cênico.
2.5 Jogo: a vida das relações
No conjunto das atividades acima descritas, a concentração do grupo no
exercício de respiração, no relaxamento, no mesmo foco de pesquisa de toque e
de movimento cria um fluxo de concentração
da sala. Trata-se de um primeiro modo para
se estabelecer um estado de conexão no
treinamento. Criam-se uma sintonia e um
contexto de pesquisa que, pode até mesmo
ser utilizado como recurso a qualquer
momento quando se sente a necessidade de
reconectar-se. Posteriormente, no espetáculo,
esse recurso será fundamental para se
perceber a dramaturgia que o grupo está criando.
Aula no Estúdio Nova Dança, dia 17/06/04. Foto: Ana Dupas
A pesquisa de movimento realiza-se também em duplas ou trios ou mais.
No trabalho de dois ou mais, além da observação do próprio movimento,
praticam-se: 1) a conexão e a cumplicidade entre os atores; 2) as possibilidades
de jogo e de composição criadas pela relação; e 3) a percepção do “Movimento-
Imagem” que o grupo desenvolve. Alguns
exemplos desses exercícios podem auxiliar
seu entendimento.
Um dos exercícios de conexão e
cumplicidade é realizado em duplas e
consiste em um ator posicionar sua mão na
A F
ula no Estúdio Nova Dança, dia 17/06/04. oto: Ana Dupas
88
região sacral13 (base da coluna) do segundo e fechar os olhos, após a realização
da técnica de respiração. O segundo realiza a sua pesquisa de movimento, que é
acompanhada pelo primeiro apenas por meio da conexão com o sacro.
O exercício de jogo de pausas conforme descrito acima permite à dupla
perceber os padrões de movimento, as imagens e as idéias, criando pequenas
cenas. Esses exercícios contribuem para a percepção da situação de jogo de
improvisação, treinam a receptividade, o conflito, enfim, as reações ao contato
com o outro.
Nesse ponto, entramos no exercício da cumplicidade e da conexão. No
treinamento, o jogo e as técnicas de Contato Improvisação constituem os
recursos que melhor desenvolvem essa disponibilidade para a relação com o
outro.
“O jogo é um modo para se manter viva a relação” (Paoli-Quito, anotação
de aula14). Com essa proposição, torna-se possível verificar como todas as
atividades desse treinamento se organizam também sob a perspectiva do jogo tal
como descrita no capítulo anterior. Relembrando, o jogo requer um
envolvimento do corpo e o exercita na realização de ações espontâneas. A
situação de jogo favorece a emergência de acasos e situações de risco que
demandam uma solução imediata do corpo e estratégias de jogo do ator. Por essa
razão, o jogo desenvolve um estado de atenção e disponibilidade, solicita estado
de conexão e cumplicidade entre os jogadores e simula uma situação cênica.
Essas condições do corpo no ambiente não pertencem somente ao contexto do
jogo, mas encontram-se no contexto da vida cotidiana, o que faz do jogo e da
improvisação uma tecnologia cognitiva, na medida em que exercita a capacidade
de resposta do homem na relação com o meio ambiente.
Nesse treinamento, o jogo implica o exercício do ator na relação com o
outro – espaço e/ou parceiro e/ou platéia –, criar e construir os “onde”, os 13 Segundo Paoli-Quito, a escolha pela região sacral se deve ao fato desta região ser considerada centro energético vital do corpo, chakra, nas práticas meditativas e curativas provindas da Índia. 14 Aula realizada no dia 25 de março de 2004, no curso extensivo de clown no Estúdio Nova Dança.
89
“quem”, os “o quê”, os “como” e os “quando” a partir da imagem dos corpos no
espaço. Diferente da abordagem de Spolin, na qual o “onde”, o “quem” e o “o
quê” são estabelecidos previamente. Na improvisação de Paoli-Quito, não se faz
a mimese das relações humanas, mas a representação dessas relações
Aula no Estúdio Nova Dança, do dia 17/06/04. Atrizes: Adriana Macul e Laura Bruno. Foto Ana Dupas
em tempo real no contexto do jogo e da ficção. Não há uma preocupação
primeira com o que se quer dizer ou o sentido e o significado das relações
estabelecidas; os atores relacionam-se e observam o “Movimento-Imagem” que
estão gerando e seu grau de sentido e significado no contexto da dramaturgia
que está sendo criada naquele momento.
Assim, desde o treinamento da consciência corporal (o trabalho mais sutil
que seja entre o ator e os ossos do dedo mínimo do pé) até o ensaio dos “tiros” 15
de improvisação compõe-se da possibilidade de ser uma relação de jogo que
envolve antes de mais nada o prazer de jogar. Essa qualidade do jogador se
apresentará também no espetáculo, como um modo de engajar o público na
pesquisa realizada, guiando sua percepção para os focos de cena que surgem no
decorrer da improvisação. “Não há representação teatral sem a cumplicidade de
um público e a peça só tem possibilidade de ‘dar certo’ se o espectador jogar o
jogo [...]” (Pavis, 2001: 220).
Em outros termos, o jogo em suas mais variadas acepções (tradicional,
dramático e teatral, vide cap.1, nota 12, p.44) constitui o fundamento no
treinamento de Paoli-Quito para a prática da cumplicidade e da conexão entre os 15 Tiro é a denominação recebida no treinamento quando o grupo ensaia um procedimento de improvisação como se fosse espetáculo. Delimita-se um tempo, o número de pessoas que podem estar em cena e se observam as construções cênicas que o grupo construiu. Ou seja, trata-se do exercício prático das técnicas pesquisadas para ensaio da improvisação.
90
atores, o espaço cênico e a platéia. Sem dúvida seu caráter lúdico permite aos
jogadores o envolvimento necessário para o desenvolvimento do jogo e suas
possibilidades cênicas e, ao mesmo tempo, conduz a um estado de alegria,
prontidão, disponibilidade e prazer, fundamentais ao exercício do clown.
Por sua vez, seu caráter competitivo promove a disputa entre os jogadores
criando possíveis conflitos cênicos, mas, no treinamento de Paoli-Quito, a
disputa constitui, principalmente, uma disciplina para a generosidade e contra a
obsessão de ganhar, sem perder a regra ou a disputa. No treinamento, o grande
prazer não está em ganhar, mas no “jogar e deixar jogar”, conforme palavras de
Paoli-Quito.
Vale lembrar que, para o clown, em um jogo tradicional, ganhar ou perder
não é o seu objetivo, mas o modo como alcança ou não a vitória. Assim, quem
ganhou o jogo pode ter perdido ou quem perdeu pode ter ganhado a cena, ambos
ganham e o público também quando nenhum dos dois perde a cena. Ou seja, a
aplicação de um jogo tradicional no treinamento, além do prazer,
disponibilidade e alegria que o risco do jogo gera, constitui um modo de os
atores envolvidos criarem uma cena interessante para quem assiste. No
treinamento, os jogos tradicionais têm essas funções. Paoli-Quito utiliza, entre
outros, os jogos de pega-pega e suas variações, esconde-esconde, toca do
coelho, rabo do burro, pique bandeira, “duro-mole”, “dança das cadeiras”,
“detetive”, “seu mestre mandou”, “jo kei pô” etc. Por meio desses jogos
exercitam-se: a conexão, a cumplicidade, a atenção, o prazer, a espontaneidade,
o frisson do jogo, que é semelhante ao de estar em cena, a qualidade de jogo do
jogador (jogar e deixar jogar) e as possibilidades cênicas surgidas nesse
contexto.
Os jogos de improvisação propostos no treinamento são constituídos
apenas de pequenas instruções. O objetivo da instrução é apenas propor uma
possibilidade. O fundamento, porém, para a improvisação está na atenção do
ator ao seu corpo, ao “Movimento-Imagem” e à construção da cena naquele
91
momento. Por exemplo, dois atores entram e devem falar “pa, pa, pa” juntos e
sair. Para esse exercício ganhar graça, os atores devem estar conectados, atentos
ao “Movimento-Imagem” que criam e às possibilidades de jogo e cena que o
fabuloso texto “pa, pa, pa” pode gerar.
Um outro exercício bastante significativo no treinamento é o de entradas e
saídas, em variadas formas: em arena ou em palco (coxia e platéia). O
denominado tiro de improvisação é um jogo de entradas e saídas. Nesse
exercício, a instrução é apenas “entrar para sair”. Porém, para entrar, 1) é
necessário estar atento para “o que te mobilizou para entrar?”, em termos
teatrais, “qual foi a deixa?”; 2) ter claro um foco de pesquisa em seu próprio
corpo, para começar e desenvolver; 3) se tiver alguém em cena, perceber qual o
melhor momento para entrar, ou seja, esse critério demanda perceber o fluxo de
construção, ápice e destituição de uma cena; 4) perceber os movimentos-
imagens criados; 5) perceber seu tempo de permanência em cena; 6) saber o
momento de sair de cena; e 7) saber como sair sem destruir o que foi ou está
construído. A importância desse exercício está justamente no fato de que ele é a
conjunção de todos os recursos desenvolvidos no treinamento para a realização
de um jogo de improvisação. Tal como uma repetição de cena no ensaio de
teatro com texto dramático, o jogo de entradas e saídas e suas regras constitui
uma espécie de “repetição” da improvisação.
O tempero desses procedimentos do treinamento do clown é o prazer de
estar no jogo. Qualquer fluxo de “Movimento-Imagem”, qualquer pesquisa de
movimento, individual ou coletiva, qualquer jogo proposto visa, antes de tudo, à
preparação de um estado de alegria, de prazer e de divertimento como motor da
presença, da disponibilidade, da prontidão, do jogo e da comunicação com o
público.
92
Capítulo 3
3. UM DIA, UMA BANANA...: LAÇOS E ENTRELAÇOS TRANSITÓRIOS
3.1 Entre laços: o processo
“Do lugar onde estou já fui embora.” Manoel de Barros
Um dia, uma banana... é um espetáculo solo, resultado de longo processo
de treinamento, criação e pesquisa da linguagem do clown e da improvisação,
iniciado em 19951 e vinculado, há oito anos, à pesquisa de pós-graduação em
Comunicação e Semiótica (mestrado e doutorado) como objeto de pesquisa.
A criação do espetáculo Um dia, uma banana... é
um resultado possível e transitório da intersecção entre
o treinamento de Paoli-Quito, o desenvolvimento de um
treinamento individual, as pesquisas e os estudos no
programa de pós-graduação e a história pessoal passada
e presente, carregada, revista, vivida, recriada e pensada
nessa trajetória. Ao compreender que o processo da
criação artística é fruto desses entrelaçamentos,
permito-me incluir na descrição desse processo um fato
de minha história pessoal: a gravidez, o nascimento e os primeiros três anos de
minha filha que ocorreram concomitantes ao desenvolvimento da pesquisa de
doutorado. A temática da maternidade, seus imprevistos, sustos, amores e afetos
impregnam completamente o trabalho desenvolvido a partir de então.
Espetáculo: “Um dia, uma banana...”. Tuca Arena. 30/06/05. Foto: Edson Reis
1 Em 1995, dei início a esta investigação do clown quando participei do workshop de clown oferecido por Cristiane Paoli-Quito, no Piccolo Studio – São Paulo. Em 1996, participei do curso de clown oferecido por Cida Almeida, no mesmo estúdio. E, desde 1998, realizo minha formação, com Cristiane Paoli-Quito, no Estúdio Nova Dança, em São Paulo. Participei também de alguns workshops de treinamento do Lume (Unicamp-Campinas), em 1999 e em 2004.
93
Parte da investigação que norteia esta criação consiste no aproveitamento
das ações corporais transformadas, enfatizadas e adquiridas pela maternidade em
diálogo com as qualidades técnicas de jogo, de improvisação, disponibilidade e
interatividade constitutivas da linguagem do clown. O clown prima por uma
interatividade pautada no afeto e na ingenuidade, como ocorre, por exemplo, em
uma simples troca de olhares.
Duas outras fontes de influência (e de
confluência) que permeiam a proposição da criação do
clown e do espetáculo a partir da improvisação dizem
respeito, respectivamente, ao personagem Deus do
cartunista Laerte e ao Livro sobre o nada, de Manoel
de Barros. Duas linguagens distintas à do teatro, mas
q
q
p
s
c
p
s
c
Espetáculo: “Um dia, uma banana...”. Tuca Arena. 30/06/05. Foto: Edson Reis
ue, por similaridade, nelas vislumbro as possibilidades de resposta às questões
ue almejo responder por meio do clown e da improvisação.
O Deus, de Laerte, é um personagem pleno de graça pela simplicidade e
ela humildade que o tornam uma figura singela e delicada. A sua inserção em
ituações tão cotidianas e a sua inadequação ao mundo dos homens o tornam
ada vez mais humano, principalmente quando faz uso de sua onipotência. É um
ersonagem que, apesar de todos os seus poderes, vive o seu cotidiano
implesmente. Não lhe é necessário uma grande e monumental história. Se o
lown fosse um personagem dos quadrinhos seria o Deus.
Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada. Dia 05/10/03
94
Livro sobre o nada, de Manoel de Barros foi outra descoberta que me fez
almejar um espetáculo no qual se pudesse brincar despropositadamente com a
linguagem teatral, criando o sentido no fazer, da mesma forma como Manoel de
Barros brinca com as palavras para “descriar” e recriar seus sentidos.
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria
(op.cit., p. 71).
Assim também um espetáculo a ser experimentado seria aquele que não
precisasse contar nada, mas apenas ser o que é, valorizando o insignificante, o
pequeno, brincando com o que é sobrecarregado de significado, com o que é
grande. Sempre que desejo contar alguma coisa não
faço nada, mas quando não desejo contar nada faço poesia
(op.cit., p. 69).
Nasci para administrar o à-toa o em vão o inútil. Pertenço de fazer imagens. Opero por semelhanças. Retiro semelhanças de pessoas com árvores de pessoas com rãs de pessoas com pedras etc etc. Retiro semelhanças de árvores comigo. Não tenho habilidade pra clarezas. Preciso de obter sabedoria vegetal. (Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo.) E quando esteja apropriado para pedra, terei também sabedoria mineral.
(op.cit., p. 51)
Um espetáculo que vive somente das imagens que o ator faz surgir na sua
relação com o ambiente principia do “nada” de um corpo no espaço e pode a
nada chegar, o importante é “eu não preciso de um fim para chegar” (op.cit.,
p.71). Ou seja, esse “nada” é simplesmente não premeditar, não pretender contar
95
o que não seja a relação do corpo no espaço. Vale a pena o risco, porque “É
mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez” (op.cit., p. 67). Além
disso, corpo e espaço não são tábulas rasas e o treinamento já instrui a
possibilidade de ação cênica. No treinamento, inicia-se pelo “nada a fazer” e
isso já é alguma coisa. A conjunção da improvisação e o clown podem, em
princípio, conduzir à investigação dessa possibilidade de estética teatral.
Com essas perspectivas, os conceitos desenvolvidos no Programa de
Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, apresentados no decorrer
desta tese, conjugam-se às expectativas, uma vez que tratam de mapear o corpo
em seus processos cotidianos de reação, percepção e cognição. Eles contribuem
para a compreensão da ação de meu corpo na cena em tempo real, o que
constitui a base da improvisação. Entre os conceitos, destaco o de corpomídia,
que sintetiza a capacidade de comunicação do corpo, sustentada por conceitos
do sistema geral dos signos e dos processos cognitivos do corpo na relação com
o ambiente.
Laço da autonomia e do treinamento individual
Minha participação, envolvimento e pesquisa no (e sobre) o treinamento
de Cristiane Paoli-Quito permite-me verificar que o conjunto composto do
princípio Movimento–Imagem, das técnicas de consciência corporal, da
condução da pesquisa de movimento e do jogo atribuem ao pesquisador uma
certa autonomia na pesquisa e na criação.
Depois de algum tempo, o ator capacita-se a realizar os exercícios e
técnicas em um treinamento individual. De certa forma, Paoli-Quito
instrumentaliza o ator para que ele possa se orientar na proposição e até mesmo
na criação de um exercício. A um só tempo, o intenso trabalho sobre a
percepção do corpo permite ao ator observar alguns resultados e avaliar a
qualidade da realização de um exercício no treinamento individual.
96
Num treinamento individual, o ator aguça ainda mais a percepção de si
mesmo, observa com mais clareza seus fluxos de atenção e concentração, de
engajamento e de consciência da pesquisa de movimento que realiza, identifica
os focos de pesquisa trabalhados, fica mais atento às cenas que está construindo
associada ao fluxo do movimento-imagem, reconhece o começo, o meio e o fim
dos fluxos, as dinâmicas desenvolvidas e as possibilidades de movimento
surgidas. A partir dessa autopercepção, o ator identifica também suas
dificuldades em questões como a da confiança, dos artificialismos, dos exageros,
da dispersão, dos entraves técnicos, das ansiedades etc. Uma vez que as
dificuldades são identificadas, o ator pode descobrir e treinar também os seus
próprios mecanismos para restabelecer o fluxo da pesquisa e da criação.
Tem mais presença em mim o que me falta. Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
(op. cit., p. 67/68)
Em um espetáculo de improvisação, é importante para o ator o grau de
autonomia acima descrito. Em cena, cuja base é a improvisação, cabe ao ator
perceber e sugerir focos de pesquisa vinculados ao processo de construção da
dramaturgia da cena naquele momento e dar-se conta da queda de intensidade
dos fluxos de sua ação ou o do grupo e ajustá-la. Isso porém, absolutamente não
exime o olhar do outro como um diretor ou um assistente. A presença destes
contribui muito para o ator identificar seus padrões de movimentos e a
construção da dramaturgia que realiza e para avaliar a qualidade de seu
engajamento, concentração e consciência da pesquisa que desenvolve.
97
Para o espetáculo Um dia, uma banana..., foram convidados para a
direção o Prof. Dr. Fernando Passos2 da Universidade Federal da Bahia e, como
assistente, Melissa Panzutti3.
Laço da experiência pessoal
A autonomia de treinamento individual já vinha sendo experenciada desde
2001, quando realizei a performance As quatro estações (em 5 movimentos)4
(1999). Nos ensaios individuais, já trabalhei com os procedimentos do
treinamento. O treinamento individual, porém, configurou-se de fato quando da
realização do treinamento durante a gravidez. O estado de atenção e a
necessidade de proteção exigidos pela gravidez foram fundamentais para a
percepção do corpo em movimento. A noção de peso e de eixo ganhou evidência
surpreendente no processo de pesquisa de movimento. A utilização dos apoios e
do “aterramento” (vide cap.2, p.84) tornaram-se bem mais precisos, evitando
riscos de queda.
Os cuidados exigidos pelo novo estado corporal fizeram destacar a
existência, a importância e a aceitação do limite como ferramenta da criação
artística. A consciência e a aceitação do limite corroboraram para um estado de
presença fluido e atento que, por sua vez, trouxe ao movimento uma qualidade
mais marcada pela simplicidade e inteireza do que pelo virtuosismo, por
exemplo, da destreza circense.
2 O encontro com o diretor e Prof. Dr. Fernando Passos da UFBA se deu por intermédio do Centro de Estudos do Corpo e do Programa de Qualificação Institucional UFBA/PUC, em novembro de 2003, quando, em missão de curta duração na PUC-SP, ele assistiu à apresentação dos trabalhos finais da disciplina Seminários de Estudos Avançados, ministrada pela Profa. Dra. Helena Katz, na qual realizei a performance Palestra clown: Ser mãe é pão pão, queijo queijo. Posteriormente, em uma missão de longa duração, além de assistir ao espetáculo Interstícios, do Grupo Sinergia, do qual participei, o Prof. Dr. Passos assumiu a co-direção do espetáculo Um dia, uma banana..., nos meses de dezembro de 2004, janeiro e fevereiro de 2005. 3 Melissa Panzutti é atriz formada pela Escola de Comunicações e Artes da USP e realiza o treinamento de Paoli-Quito. Além da assistência do treinamento individual, Melissa opera o som neste espetáculo. Especificamente para um trabalho de improvisação, a sonoplastia é também improvisada no sentido de que não há um momento exato da sua entrada e da sua saída. Ela depende da observação e percepção do sonoplasta como a proposição de um jogo. Nesse sentido, a sonoplastia pode ser entendida como um segundo ator em cena, daí a necessidade de treinamento, cumplicidade e conexão entre ator e operador de som. 4 As quatro estações (em 5 movimentos) é uma das performances que realizo com o clown, desde 1999.
98
Nesse período, os apoios dos dois pés no chão pareciam imprescindíveis
para a manutenção do meu corpo em pé, por uma questão da fragilidade do
equilíbrio e da pouca força abdominal disponível. O equilíbrio constituiu um dos
focos de pesquisa. Além dele, os focos mais constantes nas pesquisas de
movimentos concentraram-se na movimentação dos braços, da bacia, do tronco,
marcado pela leveza, delicadeza e lentidão do movimento. Outro ponto bastante
observado foi a minha percepção do espaço, extremamente atenta às
possibilidades de riscos.
O que posso observar, desse período, é que o grande salto de qualidade foi
justamente a configuração do estado de atenção e integração do corpo todo ao
movimento. A necessidade de cuidado com a barriga não permitia movimentos
dispersivos, de risco ou ainda muito rápidos e bruscos. Todo o processo de
treinamento já decorrido sobre a questão da consciência corporal entranhou esse
salto de qualidade.
Laços da consciência e da tecnologia cognitiva
Saber como o corpo incorpora conhecimento de acordo com as pesquisas
dos cientistas cognitivos estudados nesta tese facilitou a compreensão da função
de um exercício e da importância da atenção ao modo como está sendo
realizado. A percepção dos estados corporais que se manifestam e se
transformam ao mais sutil dos movimentos e seu relacionamento com a imagem,
com o pensamento e com a ação motora que, a um só tempo, o corpo produz
viabilizam tomar a consciência de parte do processo de comunicação entre corpo
e ambiente. A questão é como isso pode se transformar em comunicação cênica.
Em outros termos, como os procedimentos cotidianos de sobrevivência do corpo
podem converter-se em cena teatral.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
(op. cit., p. 70)
99
Reconhecer o lugar da consciência no processo da criação permite
também rever as concepções preconceituosas a partir das quais ela é considerada
um estorvo, uma barreira. Aqui talvez haja uma confusão bastante comum
acerca da consciência com autocrítica, premeditação, insegurança e
desconfiança no potencial criativo do fluxo da emoção, sentimento, consciência,
ação, pensamento e comunicação. Em vez disso, trata-se de observar o trabalho
da consciência no processo de criação, no sentido de notá-la como um poderoso
instrumento de percepção, estímulo e orientação da ação estética do corpo. A
consciência como instrumento para reconhecer a lógica subjacente à criação
artística.
Nesse sentido, todo o processo de exercícios práticos e teóricos que
apontaram para “conhecer como o corpo conhece” foi o que permitiu identificar
a improvisação e o jogo como uma tecnologia cognitiva, uma vez que
desenvolvem as habilidades cognitivas básicas
de um modo de ação do corpo, (vide cap.1, p.55)
aplicadas no cotidiano por uma questão de
sobrevivência. A importância da presença dessas
habilidades cognitivas cotidianas foi percebida
por diversos artistas, como Yoshi Oida, que
re
(O
at
pr
ve
EF
am
re
fa
nsaio na PUC-SP, dia 21/01/05. oto: Fernando Passos
chega a sugerir um treinamento a partir de atos
alizados no dia-a-dia, imaginando-os como sendo feitos para uma platéia
ida, 2001). Esse procedimento estaria relacionado à exploração de estados de
enção, concentração, percepção e consciência na realização da ação, evitando
ocedimentos exclusivamente automatizados. Ou seja, fazer o mesmo a cada
z, como se fosse singular, porque de fato é.
O que diferencia o improviso na vida do improviso no teatro é que, no
biente da cena, a improvisação visa à construção de uma linguagem teatral e
quer a percepção apurada dos fluxos de emoção, sentimentos e imagens que
zem emergir a consciência, tal como descreveu Damásio, e sua expressão por
100
meio da linguagem teatral. Isso significa compreender que o corpo está
comunicando esses fluxos. O ator pode então enfatizar, mostrar com mais realce
o que está ocorrendo com ele, usando alguns sentidos e significados que percebe
como imagem de seu corpo no espaço e organizando conscientemente os fluxos
de emoções, sentimentos, imagens e pensamentos como linguagem teatral.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas. (op.cit., p. 69)
O corpo age contaminado pelo universo de informações e conhecimentos
das mais diversas potencialidades sígnicas, cruzando o tempo todo informações
do ambiente, mudanças de estado corporal e processos imaginativos que se
elaboram nas conexões do dentro e do fora. Isso pressupõe distinguir os
melhores instrumentos técnicos para treinar o corpo para a qualidade da ação do
ator e, conseqüentemente, para a construção da dramaturgia investigada.
O treinamento do clown e o espetáculo de improvisação permitem
investigar como habilidades cognitivas básicas do ser humano podem ser
organizadas e, a um só tempo, organizam um modo da linguagem teatral. Essa
foi, de fato, a hipótese que se anunciou a partir desta tese, justificando os
cruzamentos entre procedimentos práticos e teóricos de diferentes campos do
saber.
Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada. Dia 24/02/02
Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada. Dia 07/09/03
101
3.2 Entrelaço: a construção das cenas
Conhecer este modo de operação do corpo implica criar modos de buscar
as soluções estéticas dentro das possibilidades do corpo naquele momento e não
idealizar indistintamente um modo de ação estética do corpo. Nesse aspecto,
evidencia-se, em todas as construções das cenas, uma relação profunda com os
acontecimentos mais evidentes do momento, seja no treinamento, seja na vida
pessoal, seja no desenvolvimento da pesquisa no doutorado. O ator joga para o
clown a possibilidade de divertir-se acerca de si mesmo. Nesse ponto, evidencia-
se que, para a criação de esquetes, é necessário também que o ator perceba
aquilo que o diverte, aquilo que seu corpo está experienciando com mais
intensidade e que pode tornar-se mote de uma cena. O ator pode estar atento a
alguma questão técnica do treinamento que o conduza à criação de um esquete.
Enfim, esses aspectos novamente enfatizam a importância de uma percepção do
tempo presente, do contexto de treinamento e de vida do ator para a criação
artística do clown. Isso é diferente de ter um “ideal de palhaço” a ser alcançado.
Aliás, sobre essa questão vale notar que não existe um modo único de
desempenhar um clown. Definir o que é um clown parece ser atualmente uma
tarefa improdutiva (Kasper, 2004; MacManus, 2003). As metodologias existentes
para a construção desse personagem também não são unânimes e únicas.
Sob essa perspectiva, a performance Roda peão5 (2002) foi um dos
resultados do treinamento do período da gravidez no qual a forma arredondada
do corpo sugeria um peão que, por um lado, associado ao seu movimento
giratório, estonteante, criativo e preciso, configurava uma metáfora dos
processos de mudança que a gravidez gera na vida cotidiana e, por outro, gerava
5 A performance Roda peão foi apresentada durante o processo de avaliação da disciplina Seminário de Estudos Avançados: Política dos signos: sistemas gráficos e visuais, ministrada pelo Prof. Dr. Amálio Pinheiro, 1º semestre de 2002, como forma de aprofundar a questão teórica relativa às intersemioses constitutivas da improvisação no teatro, compreendida como uma política de signos e relações sígnicas e construídas nos processos de treinamento. Essa reflexão permitiu redimensionar o valor estético da improvisação e da performance.
102
um particular estado presença e atenção indispensável aos cuidados exigidos e
possibilitava uma pesquisa acerca da questão do eixo e do equilíbrio.
Essa performance não foi selecionada para compor o espetáculo Um dia
uma banana..., mas considero importante pontuar sua presença nesta tese, uma
vez que ela evidenciou a utilização adequada das condições e possibilidades
corporais no processo de criação de esquetes do clown. Essa criação se
caracterizou pela util
reelaboradas a partir d
A origem da
configurou a partir d
grupo de pesquisad
Semiótica da PUC-SP
cada qual trazia para
(dança ou teatro) a
desenvolvendo.
6 Grupo Sinergia se constituiacima referenciado, o grupo Todas doutorandas do mesmoobjetivo do grupo é a exposiçem outubro de 2004 com umade Dança e com as apresentaorganizado pelo Senac-SP, em
Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada. Dia 21/03/04
ização das experiências vividas durante o treinamento e
as técnicas incorporadas.
cena Chair and pillow and banana (2004) também se
e um contexto específico de pesquisa. Em 2004, eu e um
oras e doutorandas do Programa de Comunicação e
formamos o Grupo Sinergia6. Nos encontros do grupo,
discussão em grupo algum aspecto de sua prática artística
ssociada à prática da pesquisa acadêmica que estava
u em 2004 e, atualmente, é composto por mim e Nirvana Marinho. No trabalho contava também com Jussara Setenta, Isabelle Cordeiro e Adriana Bittencourt. programa na PUC-SP e cujas pesquisas configuram um caráter teórico/prático. O ão e a discussão prática/teórica das pesquisas realizadas. Esse processo culminou apresentação do espetáculo Interstícios, no projeto Teorema, do Núcleo Artérias ções dos trabalhos no I Congresso de Mídias: multiplicações e convergências, outubro de 2004.
103
A pesquisadora Nirvana Marinho trouxe como proposta discutir a questão
política relacionada à problemática da cópia na dança contemporânea. Assim,
ela propôs refazer o espetáculo Chair and pillow de Ivone Rainer7 (1971) em seu
corpo e mostrar a mesma cena inserida no espetáculo Product of circumstances
de Xavier Le Roy8 (1999), coreógrafo que faz parte da sua pesquisa de
doutorado. O grupo aprendeu a coreografia e discutimos a questão da cópia a
partir dessa prática.
A partir dessa experiência, ficou evidente como cada corpo realizava o
movimento de acordo com seu treinamento pessoal. Sem que eu quisesse, a
minha movimentação saía mais cômica que a das minhas colegas. Propus-me
então a investigar como o clown performaria aquela movimentação. Esse foi o
início desta investigação. Naturalmente, ela foi se modificando quando do
ensaio do espetáculo Interstícios (2004), que preparávamos para apresentar
como resultado de nossos encontros. A cadeira e o travesseiro utilizados no
trabalho de Nirvana Marinho foram incorporados à minha cena de clown como
paródia, e a banana constituiu o toque “clownesco” da proposta, organizado
ainda por outras informações como aquelas referentes à exposição Natureza
morta9. Cenas de degustação e paródias são mesmo “pratos cheios” para um
clown.
7 Ivone Rainer nasceu em São Francisco em 1934. Ela formou-se em dança moderna em Nova York e começou o seu próprio trabalho coreográfico em 1960. Foi uma das fundadoras do Judsom Dance Theater em 1962, um movimento de dança que repercutiu na dança moderna por algumas décadas seguidas. Entre 1962 e 1975, Rainer apresentou sua coreografia pelos EUA e Europa. 8 Xavier Le Roy nasceu em Juvisy sur Orge (France) em 1963. Estudou bioquímica na Universidade de Montpellier onde conclui Ph.D. em biologia molecular em 1990. No mesmo ano, decidiu começar uma carreira em dança e começou a fazer aulas. Desde 1992 mora em Berlim e é dançarino profissional; seus trabalhos vêm sendo desenvolvidos como solos, parcerias com outros artistas e coreógrafos. 9 A exposição "Still Life/ Natureza-Morta" foi uma realização do Sesi -Serviço Social da Indústria em parceria com o Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC) e o British Council, e contou com as curadorias, respectivamente, de Ann Gallagher, do British Council de Londres e Kátia Canton, do MAC. Ficou aberta à visitação do público em geral no período de 3 de agosto a 7 de novembro de 2004, na Galeria de Arte do Sesi, Av. Paulista, 1313, São Paulo - SP.
104
Embora nascida como paródia, Chair and pillow and banana acabou
ganhando autonomia em relação a essa característica. Deixando de ser apenas
uma paródia, o desafio foi recontextualizar essa cena. Daí surgiu a questão: será
que a paródia e a repetição são possibilidades de contextualizar a ação do
clown? Que outras formas o clown encontra para criar o contexto de sua ação?
A natureza-morta é, ao mesmo tempo, um dos gêneros mais tradicionais e um dos mais banalizados da história da arte ocidental. [...] O conceito surgiu entre os séculos XVI e XVII, particularmente naHolanda, para caracterizar cenas retratadas por artistas envolvendoalimentos, frutas e flores [...] No decorrer da história da arte ocidental, além de sua popularidade original durante o renascimento, a natureza morta ressurge em determinados momentos em que a discussão sobre os limites formais e a autonomia da arte ocupam aberlinda. [...] O jogo realizado pelos artistas a partir do uso de objetos cotidianos, confere à natureza-morta uma potência permissiva, transformadora. A natureza morta se torna um coringa para mesclar
-
se às mais densas questões que tangenciam a existência humana. Kátia Canton, Catálogo da exposição “Still life Ι Natureza –Morta”, Sesi, 2004.
uadrinho publicado no domingo seguinte ao atentado terrorista de 11 de setembro, nos EUA.
Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada. Dia 16/09/01. Q
Ainda seguindo a questão do aproveitamento do contexto de treinamento
e de vida do ator para a criação de cenas, a Palestra clown: Ser mãe é pão pão,
queijo queijo10 (2003) foi a primeira cena que fiz após o nascimento de minha
filha. Essa palestra foi responsável pelo surgimento das cenas Coreografia para
olhos e insônia e A tese das bolhas de sabão no espetáculo Um dia, uma
banana...
10 Uma segunda apresentação dessa palestra ocorreu como uma palestra/seminário apresentada para a disciplina Seminário de Estudos Avançados: Corpomídia, ministrada pela Prf ª Drª Helena Katz, no 2 º semestre de 2003.
105
Desse processo de construção podemos destacar a importância das
experiências de vida no cotidiano para a construção da cena. Após o nascimento
de minha filha, os cuidados para com ela requeriam um estado de abertura e
prontidão. A cada momento, uma mudança. Esse período excedia em
imprevistos dos mais variados gêneros: mudanças de horário de alimentação e
sono, estratégias diferenciadas para ninar, brincadeiras, jogos e passeios
diversos. Não houve melhor treino para aceitar o imprevisível e lidar com ele.
Quando alguma situação parecia manter uma regularidade é porque já estava se
transformando.
Concomitantemente, no primeiro semestre de 2003, Paoli-Quito propôs
que o próprio clown palestrasse sobre a sua especialidade. Normalmente, o
clown é especialista em tudo, uma vez que não importa o que ele faz, mas como
o realiza. Naquele momento, minha especialidade era a maternidade. Tinha em
mãos um vídeo da ultra-sonografia, as fotografias de minha filha, os poemas
Poema enjoadinho, de Vinicius de Moraes, e Ser mãe, de Coelho Neto.
Conforme a improvisação se desenvolvia, eu apresentava esse material ou não.
Foi também das primeiras vezes que lancei mão da possibilidade de só jogar
com o que estava acontecendo. Não planejei realizar nada. O único enfoque da
palestra recaía sobre a crítica à idolatria do “ser mãe” a que o último poema
remete. No treinamento, a palestra contou com uma grande participação da
platéia. Essa participação tem também seu caráter pedagógico, por um lado, para
se aprender a interferir na cena e alimentá-la e, por outro, para se saber como
receber uma intervenção e sustentar-se ou apoiar-se nela. Reconhecer o jogo
proposto pelo parceiro e encenar.
Em resumo, a apresentação foi uma reflexão de um clown acerca da
experiência da maternidade. Questionando a (im)propriedade das metáforas que
referenciam (reverenciam) esse fato, demonstrou que ser mãe é pão pão, queijo
queijo. Uma forma mais “clownesca” do que as metáforas de Coelho Neto, que
aliavam a maternidade ao “padecer no paraíso”.
106
Poema enjoadinho Vinicius de Moraes (1913-1980) Filhos...filhos? Melhor não tê-los! Mas se não os temos Como sabê-lo? Se não os temos Que de consulta Quanto silêncio Como os queremos! Banho de mar Diz que é um porrete... Cônjuge voa Transpõe o espaço Engole água Fica salgada Se iodifica Depois, que boa Que morenaço Que a esposa fica! Resultado: filho. E então começa A aporrinhação: Cocô está branco Cocô está preto Bebe amoníaco Come botão Filhos? Filhos Melhor não tê-los Noites de insônia Cãs prematuras Prantos convulsos Meu Deus, salvai-o! Filhos são o demo Melhor não tê-los... Mas se não os temos Como sabê-los? Como saber Que macieza Nos seus cabelos Que cheiro morno Na sua carne Que gosto doce Na sua boca! Chupam gilete Bebem xampu Ateiam fogo No quarteirão Porém, que coisa Que coisa louca Que coisa linda Que os filhos são! (Moraes,1974: 261)
Ser mãe
Coelho Neto (1864-1934)
Ser mãe é desdobrar fibra por fibra
o coração! Ser mãe é ter no alheio
lábio, que suga, o pedestal do seio,
onde a vida, onde o amor cantando vibra.
Ser mãe é ser um anjo que se libra
sobre um berço dormido! é ser anseio,
é ser temeridade, é ser receio,
é ser força que os males equilibra!
Todo bem que a mãe goza é bem do filho,
espelho em que se mira afortunada,
luz que lhe põe nos olhos novo brilho!
Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!
(http://www.secrel.com.br/jpoesia/cne01.html)
107
Mas como um clown palestraria sobre a maternidade? Como um clown
palestra? Desafiou-me a improvisação da fala e do discurso sobre a maternidade.
Como alocar a fala a uma improvisação com o clown? Como o conceito de
corpomídia orienta essa criação e a leitura desse resultado?
Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada. Dia 13/05/01
Ao propor palestrar de acordo com as possibilidades surgidas no
momento, o desafio foi verificar um modo da ação do corpo no ambiente: a
improvisação como a resposta imediata, de acordo com as necessidades,
possibilidades e/ou objetivos surgidos no momento. O mote da maternidade era
apenas um contexto possível, próximo e gratificante. De fato, as questões
referiam-se ao modo como o corpo se ajusta a uma exposição cênica. Como
transita pela platéia e pelo seu próprio material de cena e se articula cenicamente
com eles? Ou seja, a essa palestra clown , deve-se a origem das questões que
orientam o atual espetáculo: como criar uma dramaturgia da improvisação por
meio do clown? Como perceber a dramaturgia que está sendo criada e tomar as
rédeas sem perder o fluxo da criação?
Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada. Dia 06/05/01
108
O esquete Coreografia para olhos e insônia nasceu do desenvolvimento
dessa palestra. Nesse esquete, podemos ver o quanto as noites maldormidas,
próprias da maternidade, constituíram o mote da cena, juntamente com a intensa
pesquisa de olhos que vínhamos desenvolvendo no treinamento em que
investigávamos as possibilidades de criação de sensação, sentido e expressão
que os olhos contêm (vide descrição no cap.2, p.82). Investigávamos na época
como o posicionamento dos olhos expressava, interna e externamente, uma
sensação específica, por exemplo: girar os olhos para o canto direito ou
esquerdo, sugere um estado de desconfiança e, dependendo da posição do
crânio, pode indicar um desafio e assim por diante.
109
Ensaio Aberto, dia 02/03/05. Fotos: Nirvana Marinho e Apresentação Tuca Arena, dia 30/06/05. Fotos: Edson Reis.
110
A criação da cena A tese das bolhas de sabão deve-se à reincidência dessa
bricadeira nas atividades de minha filha. Fiquei especialista em bolhas de sabão,
tendo elaborado até mesmo uma teoria sobre os três estados dessa matéria (uma
pequena e delicada referência aos procedimentos científicos e acadêmicos da
construção de conhecimento à luz da máscara do clown). A palestra clown
acabou sendo proposta como um jogo com a platéia, a partir da oferta das
bolhinhas de sabão e como demonstração de habilidades adquiridas, como fazer
embaixadinhas com bolhas de sabão e outros jogos.
O clown prima por uma interatividade com o público que seja um convite
e não uma imposição, que seja uma exposição que o valorize, que o respeite e
não o ridicularize diante de seus pares; assim,
busca sempre cumplicidade com a platéia, de
modo que esta entre no jogo de forma voluntária,
afetiva, ingênua, tranqüila. Nesse sentido, as
bolhas de sabão foram um objeto bastante
adequado para essa interação.
No treinamento, Paoli-Quito solicita a
apresentação de cenas como um modo de pôr em exercício a questão da
presença cênica e algumas técnicas desenvolvidas no treinamento. Algumas das
cenas de Um dia, uma banana... já haviam sido criadas e executadas na
condição de treinamento, sem necessariamente algum vínculo com a tese atual.
O percurso de criação das cenas caracteriza-se pela curta duração, baseando-se
nas condições de criação do momento (alguma questão técnica que estava sendo
treinada, circunstâncias, a partir de estímulos diversos). Normalmente, está
associado a uma questão técnica do treinamento a ser exercitada, como ocorreu,
por exemplo, na cena O espirro, acompanhada pelo primeiro movimento da
Suite nº 1 para violoncelo11, de J. S. Bach. Ela surgiu do desafio do “nada a
Ensaio na PUC-SP, em 21/01/05. Foto: Fernando Passos
11 Gravação de Yo Yo Ma, 1997, Sony.
111
fazer”, somente estar presente por meio de uma sutil movimentação circular do
cóccix. Dessa primeira proposição seguiu-se a possibilidade de a cena tornar-se
um espirro malsucedido ou um momento em que se propõe ao público apenas
escutar a música ou ainda alguma outra possibilidade que componha melhor
com espetáculo desenvolvido ao vivo.
Outro momento anterior a esta tese que merece ser lembrado aqui como
parte do processo foi a cena Coreografia literal, cuja música Debaixo dos
caracóis de seus cabelos 12, de Roberto Carlos, permaneceu. Ela foi criada, em
1999, para responder à pergunta: como um clown coreografa uma música, que
música escolher, quais os movimentos? Nessa cena, alguns elementos
recorrentes ao treinamento do clown são perceptíveis, como a repetição (no caso
do refrão), a literalidade entre o movimento e a letra da música e, seguindo esse
raciocínio, onde não tem letra, não tem movimento e o jogo com a música.
A escolha de O espirro e Coreografia literal para compor o espetáculo
deve-se, portanto, em parte, ao grau de desafio imposto pela sua realização. O
que conta nessas cenas é única e exclusivamente a presença. Em primeiro lugar,
só para ouvir a música. Em seguida, proposital e demasiadamente kitsch and
trash, exige presença para não cair nos exageros nem nos automatismos da
coreografia. Exige-se um estado de atenção ao movimento-imagem, ao cuidado
com a repetição e ao compartilhar com a platéia o que não pertence à
coreografia, por exemplo, o cansaço, a característica maçante da música etc.
Enquanto a primeira explora um modo de ação que pode ser aproveitado pelo
clown como “quanto menos, melhor”, a segunda explora outra possibilidade
“quanto pior, melhor”.
A cena Livros, melhor não lê-los surgiu nos ensaios com o diretor
Fernando Passos, completamente contaminada por estes entrelaçamentos:
doutorado, jogo, movimento-imagem, maternidade e clown. Levei um monte de
12 A versão utilizada é a interpretação de Caetano Veloso no CD Circuladô ao vivo, 1992, Polygram.
112
livros para o ensaio e me propus a pesquisar as possibilidades de jogo entre o
corpo e o livro. Tanto quanto o corpo, os livros vêm carregados de conotações e
denotações sociais, culturais, econômicas e filosóficas. Em um meio de pesquisa
acadêmico, então, nem é preciso falar. Brincar com os livros foi a melhor forma
de expurgar essa aura. A um só tempo, os livros foram escolhidos a dedo: livros
que utilizei na tese, livros sobre pais e filhos, livros de jogos e a literatura lida
nesse período de quatro anos. Lê-los em cena para mim, de certa forma,
correspondia a verificar como compor as informações lidas nos livros para
recontá-las por meio de gestos, fragmentos de
textos, o vínculo com os outros e a emergência
das paisagens corporais.
EF
Prefiro afuncionar:
Quando celas
Podem um
(Os objepelo abandono.)
Também
grilos dentro – ela
(Eu sou beato em
Todas as coisas apropriada Deus. Senhor, eu tenho orgulho (O abandono me protege.
O que considero importante pontuar na cena
preocupação com a produção de sentido e significad
nsaio na PUC-SP, em 23/02/05. oto:Fernando Passos
s máquinas que servem para não
heias de areia de formiga e musgo –
dia milagrar de flores.
tos sem função têm muito apego
as latrinas que servem para ter s podem um dia milagrar violetas.
violetas.)
as ao abandono me religam
do imprestável!
) (op.cit. pg. 57)
dos livros é que não há uma
o que a relação com o livro
113
induz como, por exemplo, jogar o livro no chão. A preocupação era o jogo com
objetos, as sensações, as brincadeiras possíveis, as imagens que geram e
alimentam as circunstâncias. É como o jogo inocente de uma criança com um
livro, sem noção do sentido e dos significados ali presentes. Não ignoro os
possíveis significados e sentidos que este “brincar com livros” pode trazer. No
processo, porém, nunca pareceu necessariamente a primeira coisa a mostrar.
Em qualquer das cenas, não são os sentidos e os significados que quero
mostrar, por exemplo, o erotismo da banana, ou questionar a prevalência dos
livros nos processos de conhecimento, muito pelo contrário. Os sentidos e
significados se fazem ou não na ação. A ação se constrói na relação do corpo
com o ambiente. Nesse espetáculo, em especial, o clown faz divertir pela criação
de situações inusitadas e poéticas, provocadas pelo encontro com os objetos da
cena, como a do saco cheio de livros, a da banana ou das bolhas de sabão,
acrescidas dos imprevistos advindos da platéia e da própria cena.
3.3 Entrelaçando: o espetáculo
Até o momento, foram pontuados os
entrelaçamentos mais evidentes relativos ao processo de
criação do espetáculo Um dia, uma banana... Sendo um
resultado possível e transitório, esse espetáculo também
segue um fluxo de construção a cada vez que é realizado.
Se o corpo é resultado provisório e transitório de acordos
com o ambiente, conforme a definição de corpomídia, o
espetáculo Um dia, uma banana... é e sempre será um
resultado transitório, não só porque se constrói a cada vez
u
a
EbTF
spetáculo “Um dia, uma anana...” uca Arena, dia 30/05/05. oto: Edson Reis
por meio da improvisação, como também porque, como
m corpomídia, está em fluxo contínuo de transição devido a sua relação com o
mbiente. Em última instância, todo corpo é um improvisador. O que o corpo do
114
clown anuncia é essa qualidade mesma da natureza humana, elaborando um
treinamento específico para expor o que se passa muitas vezes no campo do
invisível (nas nossas redes cognitivas e perceptivas) no âmbito macroscópico. O
que se dá a ver são as incertezas, os processos aleatórios, improváveis.
Isso não implica, porém, que o treinamento deixe de ganhar algumas
regularidades no seu fazer. De certa forma, ensaios e apresentações tendem a
criar elementos estáveis e, portanto, recorrentes em todas as apresentações. Na
atual fase de desenvolvimento desse espetáculo, é possível, por exemplo,
identificar os elementos que estão se estabilizando, como a ação de tirar os
livros da sacola. O cuidado, entretanto, não é com o que se estabiliza, mas com o
que se cristaliza e ganha uma única forma de ser realizado, perdendo o frescor
de mostrar o inusitado durante a repetição. Nesse aspecto, a cena cristalizada
perde a possibilidade de percepção para o momento presente e para outras
possibilidades de fazê-la acontecer.
A preocupação nesse espetáculo não é, portanto, com o que é
comunicado, mas com o “como” é comunicado. O objetivo é sempre mostrar
como o corpo cria imagens na sua relação com o ambiente. Esse foco exige uma
grande atenção quanto ao que já foi estabilizado e com o que pode estar se
cristalizando. Um dos modos de cuidar desses aspectos é focar a ação nos fluxos
de movimento, imagens e idéias que se organizam a cada vez no momento da
cena. Nesse sentido, o treinamento ininterrupto é importante para a manutenção
do fluxo de criação e pesquisa, mesmo que algumas cenas se repitam a cada
apresentação. O que importa no espetáculo é atentar para os estados corporais
perceptíveis e, a partir deles, a construção da cena.
No momento do espetáculo, todos esses aspectos confluem para a
construção de uma comunicação cênica. Mais do que ficar julgando se há ou não
repetição, cabe perceber se aquela ação é coerente com a dramaturgia que está
sendo construída. Ou seja, cada apresentação desafia a construção do contexto
de ação do clown. Esse contexto não é dado, ele se cria no fazer, na relação do
115
clown com os esquetes e os elementos de cena, assim como na relação com a
platéia. Nesse sentido, as apresentações corroboram para o exercício dessa
percepção.
Como parte dos procedimentos desta pesquisa, esse espetáculo foi
apresentado entre março e agosto de 2005, sendo três apresentações no Centro
Educacional Unificado Cidade Dutra (CEU- PMSP), Projeto Porta Aberta do
Estúdio Espaço 7, Semana de Artes do Corpo da PUC-SP, três apresentações na
Semana Cultural Monte Azul e seis no Projeto Recreio nas Férias da PMSP,
todas em São Paulo. Essa fase de apresentações trouxe uma outra qualidade para
os ensaios. Eles foram direcionados para questões pontuais, como treinamento
do fluxo movimento-imagem, pesquisa de movimentos diversos, utilizando ou
não os elementos da cena e exercício de improviso e cumplicidade com a
sonoplastia, enfim, procedimentos de treinamento como modos de descristalizar
ou trazer novas possibilidades para a realização das cenas.
O espetáculo Um dia, uma banana... é formado de cenas curtas e
improvisadas que acontecem aleatoriamente durante a apresentação. São elas: A
passagem, O começo, Livros: melhor não lê-los, Chair and pillow and banana,
A tese das bolhas de sabão, Meios e entremeios, Coreografia literal, O espirro,
Coreografia para olhos e insônia e O fim.
As cenas A passagem, O começo e O fim acontecem na ordem acima
disposta. Elas são demarcatórias. A passagem pontua um procedimento de
transição entre um estado de aquecimento do fluxo de movimento-imagem para
um estado intencional de comunicação desse fluxo. Trata-se de um processo de
concentração e pesquisa de movimento no qual não se ignora a presença do
público, mas se procura apenas descobrir o melhor momento para a colocação
da máscara. Isso ocorre quando percebo o fluxo e o jogo mais claro das relações
entre movimento, imagem e idéia e quando os olhos começam a expressar essa
percepção e atuar como comunicadores dessas relações. De certa forma, o
público presencia a construção do clown na cena.
116
Ao que parece, nas apresentações que venho realizando, estar em cena
realizando essa pesquisa de movimento também conduz a platéia a um processo
de transição e concentração. Tenho dado preferência para esse modo de dar
início ao espetáculo do que começar diretamente com a máscara.
O começo é demarcado pela colocação da máscara, quando o clown
começa o jogo com a música e seu carrinho. A partir de então, as cenas se
desenrolam conforme o jogo com a platéia, de acordo com as sensações e
estados corporais e em concordância com a dramaturgia criada. Meios e
entremeios são cenas de passagem, de arrumação de cenário ou pausas conforme
a necessidade. O fim, como o próprio nome diz, marca a saída do clown de cena.
Como dissemos anteriormente, a dramaturgia de cada cena se constrói no
fazer. A orientação básica é a percepção dos fluxos de movimento-imagem, dos
estados corporais, das percepções das sensações e dos pensamentos que são
gerados na ação. As escolhas se fazem no âmbito dessas possibilidades que se
apresentam no momento. A linguagem do clown organiza e enfatiza as escolhas
e as ações em seu aspecto cômico, ou seja, o tempo cômico, o ritmo, o jogo, a
situação constrangedora ou inadequada do clown ou ainda alguma cena absurda,
hilária ou surpreendente que venha a ocorrer.
Por exemplo, na apresentação realizada no Espaço 7, quando fui jogar a
água no chão na cena A tese sobre bolhas de sabão, em uma troca de olhar com
a responsável pelo espaço percebi o seu desagrado, pois aquela ação poderia
estragar o piso. Mostrei ao público o problema e busquei uma solução: fui ao
lavabo buscar toalhas de papel. Posteriormente, tudo que caía no chão ou que eu
iria jogar passava pelo crivo da responsável e isso tornou-se um jogo. A cena
Chair and pillow and banana foi também permeada por esse jogo. Sem ter onde
jogar as cascas, eu as coloquei na boca. Como então comer a banana? Um
problema para o clown é sempre um bom achado. Novamente, recorri às toalhas
de papel já utilizadas para fazer o lixinho das cascas de bananas. Nesse exemplo,
utilizar duas vezes as mesmas toalhas de papel compõe com mais precisão a
117
dramaturgia do espetáculo, como se aquilo estivesse planejado e não fosse
improvisação.
Cada uma das outras cenas, a cada vez, acontece de um modo diferente,
como um jogo proposto. Livros, melhor não lê-los é um jogo sobre as
possibilidades de seu uso, incluindo a leitura. A tese sobre bolhas de sabão
constitui um jogo com as regras acadêmicas e científicas de exposição de um
conhecimento advindo da pesquisa sob a óptica do clown. Chair and pillow and
banana constrói o seu jogo como uma disputa entre a música/coreografia e a
vontade do clown de comer a banana. O espirro joga com o nada a fazer e
Coreografia literal brinca com a tradução literal da letra da música pelo corpo.
Coreografia para olhos e insônia brinca com as possibilidades cômicas dos
olhos e do olhar. Tal como os jogos, as cenas têm algumas regras básicas e
pontos de apoio. É na sua realização, no modo como o jogo é desenvolvido que
elas demonstram a sua teatralidade, os seus sentidos e significados, o seu
aspecto cômico e poético e o seu divertimento, construindo uma dramaturgia
organizada pela linguagem do clown.
De certa forma, é no trânsito entre o pequeno e o grande,
o visível e o invisível, o que tem estabilidade e o que
desestabiliza que o clown se constrói.
O clown e o corpo.
A experiência artística e a cotidiana, sempre aliadas
na sua aptidão natural para realizar todo tipo
de inversões e brincadeiras que,
ironicamente, parecem
mais
importantes ...
118
“Mosca dependurada na beira de um ralo –
Acho mais importante do que uma jóia pendente.
Os pequenos invólucros para múmias de passarinhos que os antigos egípcios faziam
Acho mais importante do que o sarcófago de Tutancâmon.
O homem que deixou a vida por se sentir um esgoto– Acho mais importante do que uma Usina Nuclear. Aliás, o cu de uma formiga é também muito mais
importante do que uma Usina Nuclear.
As coisas que não têm dimensões são muito importantes. Assim, o pássaro tu-you-you é mais importante por seus
pronomes do que por seu tamanho de crescer.
É no ínfimo que eu vejo a exuberância”. (op.cit. p. 10)
Ensaio Aberto. PUC-SP. Dia 02/03/05. Foto: Nirvana Marinho
119
Bibliografia
ASLAN, Odette (org.). (2000) Les corps en jeu. Paris: CNRS Éditions.
AZEVEDO, Sônia Machado de. (2002) O papel do corpo no corpo do ator. Coleção Estudos – Teatro, n. 184. São Paulo: Perspectiva.
BARBA, Eugenio & SAVARESE, Nicola. (1995) A Arte Secreta do Ator: Dicionário de Antropologia Teatral. São Paulo/Campinas: Hucitec/ Unicamp.
BARBOZA, Juliana Jardim. (2001) O ator transparente: o treinamento com as máscaras do palhaço e do bufão e a experiência do espetáculo Madrugada. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas), Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.
BARROS, Manoel. (2000) Livro sobre o nada. São Paulo: Record.
BERNARD, Michel. (2001) De la création chorégraphique. Paris: Centre Nacional de la Danse.
BERQUE, Augustin. (1993) Du geste à la cite. Paris: Gallimard.
BERTHOZ, Alain. (2003) La décision. Paris: Odile Jacob.
––––––. (2001) Le sens du mouvement. Paris: Odile Jacob.
BHABHA, Homi. (2003) O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG .
BONFITTO, Matteo. (2002) O ator compositor. Coleção Estudos – Teatro, n. 177. São Paulo: Perspectiva.
BOLOGNESI, Mário Fernando. (2003) Palhaços. São Paulo: Unesp.
BROOK, Peter. (2000) Fios do tempo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
––––––. (1999) A porta aberta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
––––––. (1994) Ponto de mudança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
BURNIER MELLO, Luís Otávio P. (1994) A arte de ator: da técnica à representação – elaboração, codificação e sistematização de técnicas corpóreas e vocais de representação para ator. São Paulo. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
BUTLHER, Judith. (1997) The psychic life of power. Stanford: University Press.
CAILLOIS, Roger. (1990) Os jogos e os homens. Lisboa: Cotovia.
CHACRA, Sandra. (1991) Natureza e sentido da improvisação teatral. São Paulo: Perspectiva.
CHEKHOV, Michael. (1953) Para o ator. 1a edição brasileira:1986. São Paulo: Martins Fontes.
CHURCHLAND, Paul. (2004) Matéria e consciência: uma introdução contemporânea à filosofia da mente. São Paulo: Unesp
CLARK, Andy. (2001) Mindware. An introduction to the Philosophy of Cognitive Science. New York, Oxford: Oxford University Press.
_______. (1997) Being there, putting brain, body and world toghether again. Cambridge, London: The MIT Press.
120
COHEN, Bonnie Bainbridge. (1981) “Sentidos, sentimentos e ação”. Entrevista concedida à revista Contact Quartely, vol. VI, n. 2, Massachusetts.
DAMÁSIO, Antonio. (2003) Looking for Spinoza. Joy, sorrow and the feeling brain. London: Harcourt Ink.
––––––. (2000) O mistério da consciência. São Paulo: Companhia das Letras.
––––––. (1995) O erro de Descartes. São Paulo: Europa/América.
DAVID, H. (1997) “Visceral knowledge”, in DAVID, H. & MAZZIO, C. The body in parts, fantasies of corporeality. New York, London: Routledge.
DUPUY, Jean-Pierre. (1995) Nas origens das Ciências Cognitivas.São Paulo: Unesp.
FABBRI, Jacques & SALLÉE, André (orgs.). (1982) Clowns et farseurs. Paris: Bordas.
FERRACINI, Renato. (1998) A arte de não-interpretar como poesia corpórea do ator. Dissertação (Mestrado em Multimeios), Unicamp.
FERRARA, Lucrecia D’ Alessio. (2003) “Epistemologia da comunicação: além do sujeito e aquém do objeto”, in LOPES, Maria Immacollata V. (org.). Epistemologia da comunicação. Loyola: São Paulo.
FISHER, Seymour & FISHER Rhoda. (1981) Pretend the world is funny and forever: a psychological analysis of comedians, clowns and actors. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates Publishers.
FO, Dario. (1998) Manual mínimo do ator. São Paulo: Senac.
GABER, M. (1997) “Out of joint”, in DAVID, H. & MAZZIO, C. The body in parts, fantasies of corporeality. New York, London: Routledge.
GREINER, Christine. (2005) O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume.
GREINER, Christine & AMORIM, Claudia (orgs). (2003) Leituras do corpo. São Paulo: Annablume.
HAUSER, Marc. (1998) The evolution of communication. Cambridge, London: The MIT Press.
HUIZINGA, Johan. (2001) Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva.
IBRI, Ivo Assad. (1992) Kósmos Noetós: a arquitetura metafísica de Charles S. Peirce. São Paulo: Perspectiva.
JARA, Jesús. (2000) El clown, um navegante de las emociones. Sevilla: Proexdra.
KASPER, Kátia Maria. (2004) Experimentações clownescas: os palhaços e a criação de possibilidades de vida. Tese (Doutorado em Educação), Universidade Estadual de Campinas.
KATZ, Helena & GREINER, Christine (2001). “A natureza cultural do corpo”, in Revista Fronteiras, vol. 3, n. 2, p. 65-75.
KLUBACK, William & FINKENTHAL, Michael (org.). (1998) The clown in the agora: conversations about Eugène Ionesco. New York: Peter Lang Publishing.
KUSNET, Eugênio. (1992) Ator e método. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/Instituto Brasileiro de Arte e Cultura.
LAERTE. (2002) Deus 2 – a graça continua. São Paulo: Olho d’Água.
––––––. (2000) Deus segundo Laerte. São Paulo: Olho d’Água.
121
LAKOFF, George & JOHNSON, Mark.(2002/1980) Metáforas da vida cotidiana. São Paulo: Educ e Mercado de Letras.
––––––. (1999) The Philosophy in the flesh: the embodied mind and its challenge to western thought. New York: Basic Books.
LECOQ, Jacques. (1997) Le corps poéthique. Paris: Actes Sud – Papiers.
______. (1987) Le théâtre du geste – mimes e acteurs. Paris: Bordas. Trad. Roberto Mallet, mimeo.
LEVY, Pierre Robert. (1990) “Clowns et traditions”. In: Quand passent les clowns. Centre Culturel de L’Yonne. Abbaye SaintGermain, Syros Alternatives.
LLINÁS, Rodolfo. (2002) I of the vortex, from neurouns to self. New York: MIT Press.
LOPES, Elizabeth Pereira. (1990) A máscara e a formação do ator. Campinas. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Instituto de Artes da Unicamp.
MACHADO, Maria Ângela De Ambrosis Pinheiro. (2000) Cartografia do conhecimento artístico: o processo de criação do ator. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
MAcMANUS, Donald. (2003) No kidding! Clown as protagonist in twentieth-century theater. Newark, London: University of Delaware Press, Associated University Press.
MAGRO, Cristina (2002) “Afinidades eletivas: Cibernética, Ciências Cognitivas e a biologia do conhecer”, artigo publicado na Revista Margem, n. 15, p. 13-36, jun. 2002. São Paulo: Educ.
MARTINS, Cleide (2002). Improvisação, dança, cognição: os processos de comunicação no corpo. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
MARTINS, Elisabete Vitória Dorgam. (2004) O chá de Alice: a utilização da máscara do clown no processo de criação do ator. Tese (Doutorado em Artes Cênicas), Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.
MASETTI, Morgana. (1998) Soluções de palhaços: transformações na realidade hospitalar. São Paulo: Palas Athena.
MATTELART, Armand. (1994). A invenção da comunicação. Lisboa: Instituto Piaget.
MATURANA, Humberto. (2004) A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena.
MORAES, Eliane Robert Moraes. (2002) O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras e Fapesp.
MORAES, Vinicius. (1974) Poesia completa e prosa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Aguilar.
NUNES, Sandra Meyer. (2003) “O corpo do ator em ação”, in GREINER, Christine & AMORIM, Claudia (orgs). Leituras do corpo. São Paulo: Annablume.
OIDA, Yoshi (2001). O ator invisível. São Paulo:Beca.
––––––. (1999). Um ator errante. São Paulo : Beca.
PAOLI-QUITO, Cristiane. (2004) “A condição do palhaço”, entrevista concedida ao jornal Palhaçada Geral - o jornal do espaço Piolin, n. 3, dezembro.
––––––. (2000) Entrevista concedida a Maria Ângela De Ambrosis P. Machado, especialmente para a dissertação de Mestrado.
122
––––––. (1998) “Anjos no inferno, demônios do céu”, entrevista concedida a Cláudia Pucci, publicada em Sabotagem – Revista de Desinformação, n. 1, tiragem semestral, agosto.
––––––. (1995) “Cristiane doma os mascarados”, entrevista concedida a Adriano Garib, publicada no jornal O Estado de S.Paulo, 16 de outubro de 1995, Caderno 2, p. D-10.
––––––. (1994) “Palcos nobres para o clown”, entrevista concedida a Alberto Guzik, publicada no Jornal da Tarde, 6 de dezembro de 1994, Caderno SP, p. 1a.
PASCAL, Jacob. (1992) Le grande parade du cirque. Paris: Gallimard.
PEIRCE, Charles Sanders. (1995) Semiótica. São Paulo: Perspectiva.
––––––. (1975) Semiótica e Filosofia. São Paulo: Cultrix.
PINKER, Steven (2002). The blank slade. New York: Penguin Books.
––––––. (1999) Como a mente funciona. São Paulo: Companhia das Letras.
POPOV, Oleg. (1982) Ma vie de clown. Paris: Editions Stock.
RAMACHANDRAN, V. S. & BLAKESLEE, Sandra (2002). Fantasmas do cérebro. Uma investigação dos mistérios da mente. Rio de Janeiro: Record.
RAMACHANDRAN, V.S. & HIRSTEIN (1999). “The science of art, a neurological theory of aesthetic experience”, in Journal of Consciousness Studies, org. GOGUEN, Joseph A, vol.6, june/july.
RÉMY, Tristan. (1962) (2004) Entrées clownesque. Paris: L’ Arche.
––––––. (1945) (2002) Les clowns. Paris: Bernard Grasset.
RIBEIRO, Ana Rita & MAGALHÃES, Romero (orgs.) (1997). Guia de abordagens corporais. São Paulo: Summus.
RIVEL, Charlie. (1973) Charlie Rivel poor clown. London: Michael Joseph.
ROSSI, Paolo. (1989) Os filósofos e as máquinas 1400-1700. São Paulo: Schwarcz.
SANTAELLA, Lúcia. (1995) Teoria Geral dos Signos – Semiose e Autogeração. São Paulo: Ática.
––––––. (1997) “Roteiro para a leitura de Peirce”, in PARLATO, Erika M. & SILVEIRA, Lauro F.B. (orgs.), O sujeito entre a língua e a linguagem, p.93-114. São Paulo: Lovise. (Série Linguagem, 2).
_______. (1989) A percepção: uma teoria semiótica. São Paulo: Experimento.
SEBEOK, Thomas. (1991) A sign is just a sign. Bloomington, Indianapolis: Indiana University Press.
SELLERS-YOUNG, Barbara.(1999) “Technique and the embodied actor”. Theatre Research Internacional . vol.24, n. 1, p.89-92.
SEYSSEL, Waldemar. (1997) Arrelia – uma autobiografia. São Paulo: Ibrasa.
SIMON, Alfred. (1988) Le planète des clowns. Lyon: La Manufacture.
SKINNER, Quentin. (2002) Hobbes e a teoria clássica do riso. São Leopoldo: Unisinos.
SPOLIN, Viola. (1999) O jogo teatral no livro do diretor. São Paulo: Perspectiva.
––––––. (1992) Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva.
123
STANISLAVSKI, Constantin. (1995) A criação de um papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
––––––. (1989) A preparação do ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
––––––. (1989a) Minha vida na arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
STAROBINSKI, Jean. (1970) Portrait de l’artiste em saltimbanque. Paris: Alberte Skira Editeur.
STEWARD, Julian Haynes. (1991) The clown in native North America. New York, London: Garland Publishing.
ULANOV, Ann & ULANOV Barry. (1987) The witch and the clown: two archetypes of human sexuality. Illinois: Chiron Publications.
VARELA, Francisco. (2002) Conocer: lãs Ciências Cognitivas, tendências e perspectivas, cartografia de las ideas. Barcelona: Gedisa.
VARELA, Franciso & MATURANA, Humberto. (1997) De máquinas e seres vivos, autopoiese: a organização do vivo. São Paulo: Artes Médicas.
YUASA, Yasuo. (1987) The body, toward the Easterm mind-body theory. London: Suny Books.
WEISS, Gail. (1999) Body images: embodiment as inter corporeality. Nova York, London: Routledge.
WONG, Ling & HUARD, Pierre. (1971) Cuidados e técnicas do corpo na China, no Japão e na Índia. São Paulo: Summus.
WOU, Elvira. (1999) O clown visitador no tratamento de crianças hospitalizadas. Dissertação (Mestrado em Educação Física) da UNICAMP.
Dicionários
ABBAGNANO, Nicola. (2000) Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes.
CANTO-SPERBER, Monique (org.). (2003) Dicionário de ética e filosofia moral.São Leopoldo: Unisinos.
CHRISTEN, Kimberly A. (1998) Clowns &Tricksters: a Encyclopedia of Tradition and Culture. Santa Barbara: ABC-Clio.
PAVIS, Patrice. (2001) Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva.
WILSON, Robert A. & KEIL, Frank C. (1995) Encyclopedia of the Cognitive Sciences. Cambridge: The MIT Press.
Sites
www.conexaodanca.art.br/estudo.htm
www.fepai.org.br
www.kimpro.dk
www.gseweb.harvard.edu/~t656_web/spring_2—2_students/grinfeld_julies_ideokinesis.htm
www.bodymindcentering.com/about
http://www.secrel.com.br/jpoesia/cne01.html
124